8 hours before and 1001 photographs

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8 hours before and 1001 photographs after| 8 horas antes e 1001 fotografias depois s > Augusto Lemos dixit. « Quand j’ai voyagé dans les pays étrangers, je m’y suis attaché comme au mien propre, j’ai pris part à leur fortune et j’aurais souhaité qu’ils fussent dans un état florissant ». (Montesquieu) Aforismos longos > on the road/railway [que é comboio] 1. No caso das 8 horas antes de Augusto Lemos, as fotografias inundam-nos a cabeça com mundos que – para mim – são quase todos desconhecidos. Os mundos significam uma concretização impossível que será em devir (d’aprés Marcel Blanchot) e durante o fim (parafraseando o título de Rui Chafes). As fotografias são citações, apropriações, metáforas, simulacros, simulações, ilusões…sendo genuínas, reais, efetivas e, portanto, incontornáveis e urgentes. Ganham essa dupla e rica oposicionalidade. 2. As fotografias de Augusto Lemos são assertivas, incondicionalmente decididas, quase tautológicas (tudo no excelente sentido dos qualificativos e substantivos). São imagens felizes que se querem assim. Transportam um pensamento lúcido e detalhado sobre o mundo que cessa e se reacende na viagem. Ao olhar, observar, contemplar e ver as fotografias da série “8 horas antes” não fico nostálgica, como é frequente acontecer em situações análogas. 3. Em cima da mesa, olhando a infindável sequência de imagens projetadas, podemos olhar tanto quanto manusear estas fotografias- Todas participam numa narrativa, pelo toque a quem não seja dado ver: é preciso “enxergar” com toda a propriedade da palavra. São fotografias partilhadas, generosas e plenas de sabedoria que este fotógrafo e historiador de pessoas, nelas projetando de si. Short break 1. “As fotografias não se podem abraçar.” 2. “A busca de lugares, passíveis de serem denominados, quanto eventualmente “reconhecidos” pela vida do espectador, quase se projeta naqueles lugares (aparentemente) anónimos, propostos pelo fotógrafo. Promovendo extrapolações geográficas que galgam países e regiões…o “exotismo” [nalguns casos algo banalizado] adentro de uma paisagem portuguesa ou estrangeira, providencia, transforma e concretiza, de modo intenso, a ânsia de viagem de e para um público – doseando, expandindo anseios e demandas. Atendendo à produção dos fotógrafos-viajantes, constato como um dos denominadores comuns entre os casos que tenho vindo a estudar, a gula pelas imagens em processo de acontecer, convertidas em alvos de retenção pelo fotógrafo-autor.” 3. “je pars de l’idée que l’image photographique est essentiellement (mais non exclusivement) un signe de réception. » 1 Aforismos longos > Back on the road/railway [que é comboio] 1. Os filósofos afoitam-se a pensar as viagens e decidem sobre quanto interiores e paradas elas devem ser. Hoje prefiro pensar que as imagens recolhem com carinho as 1 Jean-Marie Schaeffer, L’image précaire – du dispositive photographique, Paris, Ed. du Seuil, 1987, p.9

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Texto do Catálogo da Exposição de Fotografia de Augusto Lemos "8 Hours Before and 1001 Photographs" / QuaseGaleria - Porto - Abril 2015

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  • 8 hours before and 1001 photographs after| 8 horas antes e 1001 fotografias depoiss >

    Augusto Lemos dixit.

    Quand jai voyag dans les pays trangers, je my suis attach comme au

    mien propre, jai pris part leur fortune et jaurais souhait quils fussent dans

    un tat florissant . (Montesquieu)

    Aforismos longos > on the road/railway [que comboio]

    1. No caso das 8 horas antes de Augusto Lemos, as fotografias inundam-nos a cabea

    com mundos que para mim so quase todos desconhecidos. Os mundos significam

    uma concretizao impossvel que ser em devir (daprs Marcel Blanchot) e durante o

    fim (parafraseando o ttulo de Rui Chafes). As fotografias so citaes, apropriaes,

    metforas, simulacros, simulaes, ilusessendo genunas, reais, efetivas e, portanto,

    incontornveis e urgentes. Ganham essa dupla e rica oposicionalidade.

    2. As fotografias de Augusto Lemos so assertivas, incondicionalmente decididas, quase

    tautolgicas (tudo no excelente sentido dos qualificativos e substantivos). So imagens

    felizes que se querem assim. Transportam um pensamento lcido e detalhado sobre o

    mundo que cessa e se reacende na viagem. Ao olhar, observar, contemplar e ver as

    fotografias da srie 8 horas antes no fico nostlgica, como frequente acontecer

    em situaes anlogas.

    3. Em cima da mesa, olhando a infindvel sequncia de imagens projetadas, podemos

    olhar tanto quanto manusear estas fotografias- Todas participam numa narrativa, pelo

    toque a quem no seja dado ver: preciso enxergar com toda a propriedade da

    palavra. So fotografias partilhadas, generosas e plenas de sabedoria que este

    fotgrafo e historiador de pessoas, nelas projetando de si.

    Short break 1. As fotografias no se podem abraar.

    2. A busca de lugares, passveis de serem denominados, quanto eventualmente reconhecidos pela vida do espectador, quase se projeta naqueles lugares (aparentemente) annimos, propostos pelo fotgrafo. Promovendo extrapolaes geogrficas que galgam pases e regieso exotismo [nalguns casos algo banalizado] adentro de uma paisagem portuguesa ou estrangeira, providencia, transforma e concretiza, de modo intenso, a nsia de viagem de e para um pblico doseando, expandindo anseios e demandas. Atendendo produo dos fotgrafos-viajantes, constato como um dos denominadores comuns entre os casos que tenho vindo a estudar, a gula pelas imagens em processo de acontecer, convertidas em alvos de reteno pelo fotgrafo-autor.

    3. je pars de lide que limage photographique est essentiellement (mais non exclusivement) un signe de rception.

    1

    Aforismos longos > Back on the road/railway [que comboio]

    1. Os filsofos afoitam-se a pensar as viagens e decidem sobre quanto interiores e

    paradas elas devem ser. Hoje prefiro pensar que as imagens recolhem com carinho as

    1 Jean-Marie Schaeffer, Limage prcaire du dispositive photographique, Paris, Ed. du Seuil, 1987, p.9

  • passagens rpidas, os instantes, as situaes imprevisveis que as viagens propiciam. A

    partida de um local de origem apenas o momento inicial, inicitico mesmo.

    2. As viagens de comboio possuem uma definio distinta do procedimento que se quer

    ou experimenta ao viajar de carro ou avio. Disfruta de semelhanas ao que ocorre

    com os voos, isso bvio por demais, pois na fase da deslocao (segundo momento

    da viagem convencionalizada) o destino , necessariamente, efetivo: aquele que se

    escolheu e no outro qualquer. Est-se condicionado pelos horrios estipulados e que

    se escolhem. Salvaguardando algo que sucede de inesperado, desenrola-se a viagem

    at ao seu termo, exceto se decidido sair numa estao de caminho-de-ferro antes do

    suposto de permeio

    3. Entre os destinos que se sinalizaram com antecedncia, as paisagens vo circulando,

    desenrolam-se. Achadas e escolhidas revelam-se nos seus fragmentos.

    4. As paisagens recebem figuras oportunas. Assim, as paisagens tornam-se cenrios

    habitados; deixam de estar em suspenso e atualizam-se. Sejam elas [paisagens], de

    natureza genuna ou tpicos fabricados/urbanos, agarram-se s breves paragens para

    contemplar algo aquela especificidade singular - que se evidencia por confronto ao

    fundo.

    5. No interessar muito (ou sim) qual o meio de locomoo privilegiado. Alis, nestas

    imagens fotogrficas que Augusto Lemos apresenta, nada assinala, denuncia qual a

    via: rodoviria, area ou ferroviria. O comboio como causa eficiente subtil. Ou seja,

    os ritmos das etapas das viagens tornam possvel a compilao de fotografias que um

    oneway destiny no tornaria vivel.

    6. As estaes, que recebem passageiros de comboio que sejam viajantes, convertem-se

    em intervalos de respirao demorada. Da a disponibilidade estado de suspenso

    once and again que subjaz e permite uma tal angariao de excertos, fragmentos de

    vidas de pessoas/figuras e paisagens/natureza. Registam-se costumes, rotinas alheias;

    isolam-se gestos e atitudes distintivas; cartografam-se proximidades e afastamentos;

    pois as viagens interrompidas deliberadamente surgem mapas, outorgando

    cartografia uma prevalncia significativa.

    7. O viajante garante que ainda existe validao, que ainda persiste impulso, para esse

    estado de esprito que as artes por seu desgnio - costumavam proporcionar. Assim,

    se o viajante for artista, deparamo-nos com uma valncia dupla que garante

    generosidade e sabedoria.

    8. Com o advento do comboio, instaurou-se uma consequente nova viso do mundo. E

    tambm, uma nova forma de o viver, entender e dirigir que ter condio de

    alteridade quando assume ser substncia, contedo iconogrfico reificado em

    imagem.

    9. A imagem subsiste alm do tempo que a matria lhe outorga integridade na coisa

    fsica real. Seja rvore, edifcio, bicicleta ou pessoa. Independendo do que seja, e para

    que sirva, os contedos iconogrficos (estando-lhes agregados os contedos

    semnticos) subsistem nas fotografias.

  • Intervalo/short break para viagem mental [comboio/railway] e regresso sala

    Os priplos demorados e longnquos de Augusto Lemos, meticulosamente planeados,

    cumprem a viagem como utopia possvel salvaguardada esta expresso paradoxal. E, com a

    maior certeza, so sempre to gratificantes quanto j eram enquanto pensados. No se

    verifica disparidade entre o ambicionado e o que seja concretizado. uma harmonia de

    existncia partilhada que se rev em cada fotografia recolhida para um catlogo raison

    [mental] que quase ultrapassa, excede as medidas do humano.

    No encontro precariedade nas imagens fotogrficas de Augusto Lemos; elas vencem os

    desgnios que, durante dcadas, foram atribudos e constrangiam a deciso axiolgica sobre a

    sua artisticidade e razo. As fotografias desenvolvem-se e potenciam imagens fotogrficas que

    guardam as evocaes internalizadas do ver durante as viagens. Mesmo que estas viagens

    correspondam conquista de um atlas paradisaco onde o humano protagonista de direito e

    igualdade.

    And since the gates of the Garden of Eden are locked forever, the aesthete's voyage

    beyond good and evil inevitably ends with a diabolical temptation.2

    A viagem pede o eu do viajante. E supe a inevitabilidade de todos aqueles outro(s) que

    reconhecem o viajante como tal. O conceito foi edificado em definies heterogneas,

    persistindo para alm das mentalidades em movimento, em tempos e espaos dspares.

    Denominar o outro, que no oponente ou opositor, antes cmplice de uma autognose

    mediante as inmeras propostas da intersubjetividade que se cumpra na viagem, para

    irromper na paisagem da utopia O viajante, eu tanto quanto outro e outros.

    Viagem deliberao sria, condio privilegiada para edificar em bases sustentveis a

    identidade que nunca se fecha, antes de processa em etapas agregadoras e nicas. Duas

    viagens a um mesmo destino, nunca podem ser idnticas.

    Ocorre-me algo de muito urgente: perguntar ao Augusto Lemos se padece de sndrome de

    Stendhal.

    Maria de Ftima Lambert

    2 Giorgio Agamben, The man without content, [ebook in http://actpolitik.org/wp-

    content/uploads/2008/04/giorgioagamben-themanwithoutcontent.pdf]