a beleza da indiferença - reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir de um conto de...

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A LETRI A - jul.-dez. - 2006 176 Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit A BELEZA DA INDIFERENÇA reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir de um conto de Virginia Woolf de um conto de Virginia Woolf de um conto de Virginia Woolf de um conto de Virginia Woolf de um conto de Virginia Woolf Alexandre Rodrigues da Costa Faculdade Pitágoras O meu anjo me deixa ser a adoradora de um pedaço de ferro ou de vidro. Clarice Lispector R ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO Este texto analisa o conto “Objetos sólidos”, de Virginia Woolf, a partir do diálogo entre literatura e artes plásticas, com o objetivo de perceber como a opacidade dos objetos na obra de arte afeta o entendimento que o sujeito tem de si mesmo e da realidade à sua volta. P ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS - CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE Narrativa literária, artes plásticas, opacidade do objeto artístico, fragmento Em 1920, Virginia Woolf publicou um pequeno conto, chamado “Objetos sólidos”. Nele, John, um personagem com pretensões à carreira política, tem sua vida mudada quando se depara com uma gota de matéria sólida, um cubo irregular, enfim, nas palavras da autora: “um pedaço de vidro espesso a ponto de parecer quase opaco”, 1 nas areias da praia pela qual caminhava. O que ocorrerá com esse personagem pode ser analisado, ao mesmo tempo, a partir de uma postura artística que vai de Rodin, passando por artistas como Tatlin, Brancusi, Duchamp, até culminar na arte minimalista. O que podemos extrair da leitura desse conto é a maneira como o comportamento do personagem John relaciona-se com os paradigmas estéticos da modernidade, na qual os objetos do cotidiano são retirados de seu contexto para se realizarem como obra ou mesmo como negação da obra no conceito tradicional de arte. No conto de Virginia Woolf, John torna-se obcecado pelo pedaço de vidro, pela forma ideal que ele representa. Tanto é assim, que passa a procurar, nos lugares mais inusitados, coisas que pudessem lhe recordar o objeto que descansava na cornija da sua lareira: “qualquer coisa, desde que algum tipo de objeto, mais ou menos redondo, talvez 1 WOOLF. Contos completos, p. 136.

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Reflexões sobre literatura e artes plásticas a partir de um conto de Virginia Woolf.

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  • A L E T R I A - jul.-dez. - 2 0 0 61 7 6 Disponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    A BELEZA DA INDIFERENA

    r e f l e x e s s o b r e l i t e r a t u r a e a r t e s p l s t i c a s a p a r t i rr e f l e x e s s o b r e l i t e r a t u r a e a r t e s p l s t i c a s a p a r t i rr e f l e x e s s o b r e l i t e r a t u r a e a r t e s p l s t i c a s a p a r t i rr e f l e x e s s o b r e l i t e r a t u r a e a r t e s p l s t i c a s a p a r t i rr e f l e x e s s o b r e l i t e r a t u r a e a r t e s p l s t i c a s a p a r t i r

    d e u m c o n t o d e V i r g i n i a W o o l fd e u m c o n t o d e V i r g i n i a W o o l fd e u m c o n t o d e V i r g i n i a W o o l fd e u m c o n t o d e V i r g i n i a W o o l fd e u m c o n t o d e V i r g i n i a W o o l f

    Alexandre Rodrigues da CostaFaculdade Pitgoras

    O meu anjo me deixa ser a adoradorade um pedao de ferro ou de vidro.

    Clarice Lispector

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OEste texto analisa o conto Objetos slidos, de Virginia Woolf,a partir do dilogo entre literatura e artes plsticas, com oobjetivo de perceber como a opacidade dos objetos na obra dearte afeta o entendimento que o sujeito tem de si mesmo e darealidade sua volta.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V ENarrativa literria, artes plsticas, opacidade do objeto

    artstico, fragmento

    Em 1920, Virginia Woolf publicou um pequeno conto, chamado Objetos slidos.Nele, John, um personagem com pretenses carreira poltica, tem sua vida mudadaquando se depara com uma gota de matria slida, um cubo irregular, enfim, nas palavrasda autora: um pedao de vidro espesso a ponto de parecer quase opaco,1 nas areias dapraia pela qual caminhava. O que ocorrer com esse personagem pode ser analisado, aomesmo tempo, a partir de uma postura artstica que vai de Rodin, passando por artistascomo Tatlin, Brancusi, Duchamp, at culminar na arte minimalista. O que podemosextrair da leitura desse conto a maneira como o comportamento do personagem Johnrelaciona-se com os paradigmas estticos da modernidade, na qual os objetos do cotidianoso retirados de seu contexto para se realizarem como obra ou mesmo como negao daobra no conceito tradicional de arte.

    No conto de Virginia Woolf, John torna-se obcecado pelo pedao de vidro, pelaforma ideal que ele representa. Tanto assim, que passa a procurar, nos lugares maisinusitados, coisas que pudessem lhe recordar o objeto que descansava na cornija da sualareira: qualquer coisa, desde que algum tipo de objeto, mais ou menos redondo, talvez

    1 WOOLF. Contos completos, p. 136.

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    com uma chama agonizante imersa a fundo em sua massa, qualquer coisa porcelana,vidro, mbar, rocha, mrmore , at mesmo o ovo liso de uma ave pr-histrica, lheserviria.2 Com o tempo, John abandona a carreira poltica e forma, sobre sua lareira,uma espcie de museu ideal constitudo pelo vidro encontrado na areia, um pedao deferro, que se assemelha a um meteorito, e um pedao de loua em forma de estrela. Maso conto no termina a. John continua guiado pela expectativa de encontrar objetosque no s se assemelhem a estes, mas que os superem: tornando-se seus critrios maisrgidos e seu gosto mais exigente, as decepes eram inumerveis, mas sempre um brilhode esperana, um caco de porcelana ou de vidro com alguma marca curiosa oucuriosamente quebrado o enganava.3

    Esse conto, como j dissemos, se relaciona com os ideais estticos pregados porartistas como Rodin, Tatlin, Brancusi, Duchamp. Mas a pergunta surge: de que formapodemos articular um conceito comum entre esses artistas e o conto de Woolf? A atitudedo personagem de Virginia Woolf torna-se emblemtica para ns, no momento em queele, ao escolher quais objetos sero dignos de ocupar o espao de sua lareira, acaba pornegar a simulao de um espao que se justifica atravs da ordem explicativa ou dainterioridade do artista, impressa na superfcie dos objetos. Pois, levado a realizar gestosque mudam o aspecto das coisas, sem, no entanto, conseguir mudar com elas, Johnpermanece fiel dvida. Ou melhor, faz da dvida algo com que seus visitantes, aquelesque observam to estranhas coisas sobre sua lareira, so obrigados a encarar. Mas emque consistiria tal dvida? No seria semelhante, por acaso, quela que nos proporcionaMarcel Duchamp, quando estamos frente a suas obras? Para chegar a uma resposta, importante frisar que, quando Virginia Woolf publica o conto que estamos comentando,em 1920, muitos movimentos vanguardistas j haviam desaparecido. O Cubismo, porexemplo, sofrera inmeras interpretaes, sendo talvez a mais radical a do Futurismo,cujos principais integrantes, Marinetti, Umberto Boccioni, Carlo Carr, leram afragmentao dos objetos, nos quadros de Picasso e Braque, como uma forma de sealcanar a interioridade, o ncleo do objeto, no qual estaria escondida sua lgicaestrutural. Da a necessidade que muitos desses artistas tinham de buscar a transparnciados objetos:

    Quem pode acreditar ainda na opacidade dos corpos, se nossa sensibilidade aguadae multiplicada j penetrou as obscuras manifestaes do meio de expresso? Porque haveramos de esquecer, em nossas criaes, o poder redobrado de nossa viso,capaz de fornecer resultados anlogos aos dos raios X?4

    O que os futuristas almejam e aqui podemos pensar, como exemplo, na obraDesenvolvimento de uma garrafa no espao (Fig. 1), do escultor Boccioni atingir ummodelo de inteligibilidade ideal, que oferea ao espectador

    2 WOOLF. Contos completos, p. 138.3 WOOLF. Contos completos, p. 141.4 MARINETTI. Pintura futurista, p. 295.

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    Fig. 1: Umberto Boccioni (1882-1916), Desenvolvimento de uma garrafa no espao, 1912.

    Bronze, 38 x 61 x 33 cm. Nova York: Coleo particular.

    uma nica viso do objeto apresentada como a soma de todas as vises possveis, cadauma delas entendida como parte de uma circunavegao contnua do objeto que seestende pelo espao e o tempo, mas unificadas e controladas pelo tipo especial deinformao que a transparncia do objeto transmite com clareza para o observador.5

    Ora, com base tanto nas palavras de Marinetti quanto nas de Rosalind E. Krausssobre a esttica futurista, podemos perceber que o personagem do conto de VirginiaWoolf busca a superfcie muda, a opacidade dos corpos, a incompletude de qualquerpercepo isolada e, dessa forma, no s contradiz os postulados do Futurismo, comotambm parece ir contra os ideais estticos de um movimento que estava sefundamentando no momento em que o conto foi publicado. Estamos falando doConstrutivismo, representado por artistas como Naum Gabo, Antoine Pevsner, El Lissitzky,Moholy-Nagy. Quando se olha para uma escultura de Gabo, por exemplo, temos, comono futurismo, a transparncia do objeto a revelar-lhe o ncleo, de tal forma que a obrasurge para o espectador como instrumento a servio de um raciocnio voltado para ainteligncia analtica. No temos, a, o incmodo de um sentido pleno demais, queencontramos no conto de Virginia, uma vez que a obra se abre para o espectador sem orisco de este formular qualquer dvida sobre ela.

    Ao ler o conto de Woolf, a percepo que conseguimos extrair do seu personagem,que se move em torno daquelas estranhas peas sobre a lareira, bem poderia se assemelharaos primeiros contempladores das obras do escultor russo Vladimir Tatlin, contemporneotanto dos futuristas quanto de Virginia Woolf. Nas obras de Tatlin (Fig. 2), no h ummodelo de inteligibilidade ideal, como encontramos nas obras futuristas ou nasconstrutivistas, j que seus objetos rejeitam o espao transcendental, no momento emque apontam para os materiais de que so construdos e a relao destes com o espaoque os circunda. Conforme Rosalind Krauss sobre a obra de Tatlin: a lgica carregadapela superfcie, e a noo de uma ciso dualista entre interior e exterior resolvida por

    5 KRAUSS. Caminhos da escultura moderna, 76.

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    intermdio de uma unificao visual do significado da estrutura externa e do centroexperiencial da obra.6 Nesse sentido, a obra surge para o espectador no como sntesede vrias vises, na qual a estrutura resulta da transparncia como forma de alcanaruma totalidade fsica e ultrapassar a percepo isolada e limitada do objeto. As coisasque John coleta e deposita sobre a lareira, no conto de Virginia Woolf, por exemplo,confrontam, de forma semelhante ao que ocorre com as esculturas de Tatlin, o espectadorcom a estranheza do espao no qual esto situadas, pois se justificam a partir daimpossibilidade que temos de apreender algum significado que seu ncleo revele. Osobjetos escolhidos por John rejeitam a idia de um espao transcendental, no momentoem que, conforme Krauss sobre as esculturas de canto de Tatlin, apresentam umacontinuidade em relao ao espao do mundo e dependem deste para ter um significado.7

    No conto de Virginia Woolf, os objetos, as coisas, s ganham significados quandose projetam como fragmentos do mundo real, quando sua interioridade e os limites desua forma no so revelados de maneira to explcita ao leitor. Isso significa dizer que,no exato instante em que achamos que a coisa, ou o texto que a constri, se revela emsua plenitude, d-se o contrrio, nos vedado um centro, uma direo segura que nosleve a um nico sentido. Somos, na verdade, confrontados com o incmodo de nosencontrarmos na armadilha de um texto cujo sentido aponta para direes diversas,exigindo, mais que ateno, uma redefinio de nosso lugar de leitores. Estamos sob odomnio daquilo que Duchamp chamou de beleza da indiferena.8 Expresso que

    6 WOOLF. Contos completos, p. 76.7 WOOLF. Contos completos, p. 67.8 Em uma entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp explica o que determinava a escolha do ready-made:Isto dependia do objeto: em geral, era preciso tomar cuidado com o seu look. muito difcil escolherum objeto porque depois de quinze dias voc comea a gostar dele ou a detest-lo. preciso chegar aqualquer coisa com uma indiferena tal, que voc no tenha nenhuma emoo esttica. A escolha doready-made sempre baseada na indiferena visual, e ao mesmo tempo, numa ausncia total de bom oumau gosto. CABANNE. Marcel Duchamp, p. 80.

    Fig. 2: Vladimir Tatlin (1885-1953),

    Relevo de canto, 1915. Ferro, alumnio

    e base, 78,7 x 152 x 76,2 cm.

    Destrudo; reconstruo feira por

    Martyn Chalk, 1966-1970,

    a partir de fotografias do original.

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    pode ser traduzida no impacto que uma obra gera no espectador, no momento em queela est desvinculada dos sentimentos pessoais do artista e no oferece nenhuma respostaao esforo de decodific-la ou compreend-la. Entre as inmeras obras de Duchamp,podemos encontrar vrias cujos sentidos so esquivos ao espectador. Sua famosa Fonte(Fig. 3), um mictrio que Duchamp girou noventa graus e no qual assinou e datou R.Mutt/1917, por exemplo, rompe com toda possibilidade de decifrao formal, na medidaem que o reposicionamento fsico do objeto no altera sua estrutura, mas faz com que oespectador perceba esse ato como o momento em que o objeto se torna transparente aseu significado. E esse significado nada mais do que a curiosidade da produo oenigma do como e do por que isso aconteceu.9

    Fig. 3: Marcel Duchamp (1887-1968), Fountain (Fonte), 1917.

    Readymade, urinol, 18 x 15 x 12 in. Rplica; original perdido.

    Em certa medida, a postura do personagem John aproxima-se dessa estratgia detrabalhar as coisas, os fatos, livres de um sentimento ou de uma narrativa que justifiquea existncia da obra, deixando-a prevalecer como enigma que se oferece ao olhar doespectador. Mas no o que acontece em muitos textos de Virginia Woolf? Maisespecificamente em seus contos, percebe-se um olhar que se volta para os objetos deforma semelhante ao que ocorre na obra de Duchamp. Em contos como O smbolo,Trs quadros e A marca na parede, apenas para citar alguns, possvel perceber deque maneira a autora busca negar o narrar atravs do prprio narrar, oferecendo aoleitor uma escrita na qual a transparncia, o significado que viria a revelar o porqudas coisas, nos negado.

    O que faz com que determinado objeto torne-se uma obra de arte? Essa perguntaque perpassa todo o trabalho de Duchamp tambm pode ser aplicada ao conto Objetosslidos, uma vez que, a, surge aquele mesmo princpio que rege os ready-made, ouseja, a seleo de um objeto, entre o nmero quase infinito de objetos j prontos, sobreo qual o artista no exercera nenhum controle na sua elaborao:

    9 KRAUSS. Caminhos da escultura moderna, p. 94-95.

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    Era um caco de vidro, to grosso a ponto de se tornar opaco; tudo o que fosse forma ougume j se gastara por completo com o alisamento do mar, sendo impossvel dizer assim sehavia sido de garrafa, vidraa ou copo; no era nada, a no ser vidro; era quase umapedra preciosa. Bastaria circund-lo de uma borda de ouro, ou perfur-lo com um arame,para que se tornasse uma jia; parte de um colar, ou uma luz verde e fosca sobre um dedo.10

    Segundo Octavio Paz, os ready-made no so obras, mas signos de interrogaoou de negao diante das obras.11 Talvez no seja por acaso que o conto de VirginiaWoolf nos leve a tantas perguntas, j que os objetos nos quais o narrador se apia paraconstruir seu museu so esvaziados de seus significados, ao serem inseridos em outrocontexto, de forma muito semelhante ao que ocorre com o ready-made:

    Desalojado, fora de seu contexto original a utilidade, a propaganda ou o adorno oready-made perde todo significado e se transforma em um objeto vazio, em coisa em bruto.S por um instante: todas as coisas manipuladas pelo homem tm a fatal tendncia aemitir sentido. Mal se instalam em sua nova hierarquia, o prego e a prancha sofrem umainvisvel transformao e se tornam objetos de contemplao, estudo ou irritao. Da anecessidade de retificar o ready-made: a injeo de ironia ajuda-o a preservar o seuanonimato e neutralidade.12

    Atravs do gesto, o ready-made se faz obra. No entanto, obra que nega o estatutode obra de arte, no momento em que configura o gesto e este se torna coisa para servista, contemplada. Segundo Krauss, uma das respostas sugeridas pelos ready-made ade que um trabalho de arte pode no ser um objeto fsico, mas sim uma questo, e queseria possvel reconsiderar a criao artstica, portanto especulativa de formularquestes.13 A ironia atravs da questo, de forma semelhante ao que ocorre na obra deDuchamp, o que faz com que John, o personagem de Virginia Woolf, ao voltar-se sobresi mesmo, destrua aquilo mesmo que cria. Ao se deter sobre um objeto manufaturado, oconto arranca-o de seu significado para colocar em seu lugar interrogaes: o que fazdeste objeto uma xcara? possvel escrever sobre ele e transform-lo em outra coisaque no uma xcara? Que outra coisa seria esta? Ora, o conto no tem a pretenso deresponder a essas questes, j que John age compulsivamente, tentando estabelecer umaconexo entre os objetos que encontra.14 No entanto, ao inseri-los em outro contexto,destri seus significados originais, encaixando-os em um lugar de permanncia, libertosdo tempo e do espao que os criou.

    John, em momento algum, fala do motivo por que est colecionando aqueles objetos.Sua linguagem, como a de um escultor, a do silncio que permeia seus atos. Mas apartir do no falar, da sucesso de definies que carregam suas escolhas, que o texto

    10 WOOLF. Contos completos, p. 136.11 PAZ. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, p. 23.12 PAZ. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, p. 26.13 KRAUSS. Caminhos da escultura moderna, p. 91.14 importante notar como a memria de John passa a funcionar de forma intermeditica, ou seja, elebusca estabelecer uma comunicao entre os vrios campos de sua percepo, sem uma hierarquia deconhecimentos, como se houvesse apenas presente. Nesse sentido, sua memria jamais se completa, poisseu passado se cumpre a partir de cada nova conexo entre objetos sobre a lareira.

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    de Virginia Woolf nos leva a refletir de que maneira os objetos, ao serem deslocados delugar, alteram no s nossa percepo sobre eles, mas como nos vemos no mundo:

    Munido de uma bolsa e de uma vara comprida na qual se adaptava um gancho, revolveutodos os monturos de terra; escarafunchou sob densos emaranhamentos de mato; buscoupor todas as vielas e espaos entre paredes onde se habituara a esperar descobrir objetosdesse tipo jogados fora. Tornando-se seus critrios mais rgidos e de gosto mais exigente, asdecepes eram inumerveis, mas sempre um brilho de esperana, um caco de porcelanaou de vidro com alguma marca curiosa ou curiosamente quebrado, o enganava.15

    Nesse trecho, podemos perceber como John torna-se um escravo do acaso, pois so acaso, no ideal de arte que almeja, pode lhe oferecer objetos despojados de sua origemconvencional. E a surge a duvida: John age realmente como um artista ou ele no nada mais que um colecionador? Mas pode um colecionador tambm ser um artista? Deacordo com Walter Benjamin, para o colecionador, em cada um dos seus objetos, omundo est presente, e de fato, ordenado, s que de acordo com uma relaosurpreendente e incompreensvel em termos profanos.16 H no colecionar de John, abusca de significados abstratos e arbitrrios. A obsesso em procurar semelhanas entreos objetos leva-o a aceitar que as coisas podem ter suas formas maleveis e se ajustarumas s outras dentro desse universo ideal que concebido para elas. Da que, emnenhum momento, no conto de Virginia Woolf, a descrio pretenda agarrar o objeto.O que se v liberta-se, ao ser colocado no ponto extremo do olhar, sem nenhumajustificativa, esvaziado de seu significado inicial, aberto possibilidade de que estepode ser mudado por outro a qualquer momento. Assim, colecionar, como forma de secompletar nas coisas, torna-se chance de buscar a incompletude do mundo que noscerca, no instante em que cada objeto se configura, atravs de uma escolha, como gestosuspenso, significado incomunicvel, resposta invlida, enfim, fragmento de um todo,sobre o qual nosso olhar se detm, ao mesmo tempo, como continuidade e negao,aquilo que Duchamp chamou de a beleza da indiferena.

    John, portanto, um artista, mas no um artista como aqueles dos moldes clssicos,que faziam sua obra a partir de escolhas determinadas por convenes. Como Duchamp,John trabalha com conceitos e a concretizao desses conceitos em obras fsicas. Paraque isso acontea, o artista no deve almejar construir uma obra que justifique suaidentidade, pois no momento em que ele trabalha a obra como nada mais que umconceito, a preocupao passa a ser outra, a de pesquisar a criao como ato de umatransformao esttica. Nesse sentido, John, como o artista francs, afirma um espaono qual toda criao, tudo aquilo que se configura como fico, torna-se esquivo a umnico sentido. A forma, sempre aqum da escolha definitiva, enfim, indeterminada,oculta a identidade daquele que a cria, pelo simples prazer da perda.

    A opacidade do objeto reflete, assim, a opacidade da palavra que nega revelar o quedesigna, j que o que a mantm o vazio, a expresso de algo que nem ao menos se viu.A surpresa que o conto nos proporciona, est no olhar pego pela armadilha do objeto ausente,uma vez que ele nunca se d pela totalidade, mas se configura por um sempre fazer. A

    15 WOOLF. Contos completos, p. 140.16 BENJAMIN apud BUCK-MORSS. Dialtica do olhar, p. 416.

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    descrio de detalhes aponta, dessa forma, para vrios sentidos, pois a opacidade dessalinguagem, que John estranhamente maneja, est no fato de, conforme Merleau-Ponty,tornar-se por sua vez algo como um universo capaz de alojar em si as prprias coisas depois de as ter transformado em sentido das coisas.17 Da que Virginia Woolf nos levea caminhar pelas coisas no-ditas, a ir alm dos signos, ao encontro de signos abertos,das coisas em seu estado provisrio, nas quais se elege a opacidade como aquilo que capaz de romper com o carter narrativo, explicativo, de uma obra, tornando-a inacabada,sustentada sobre o vazio.

    Diante de uma obra que se d como fragmento, o espectador poderia ser tanto o dasesculturas de Duchamp quanto aquele que observa os objetos sobre a lareira do personagemJohn. Pois a afirmao do espao por objetos estranhos a ele que faz com que o espectadorperca suas referncias sobre o que vem a ser uma obra de arte e o que se define como beleza.Com relao a isso, o poeta Rainer Maria Rilke diria: Que tipo de objeto? Belo? No. Quemteria sabido o que significa beleza? Era algo semelhante. Um objeto no qual se reconheciaaquilo que se amava e o que se temia, e o seu carter enigmtico.18 Mas bom frisar que ascoisas sobre a lareira, no conto de Virginia Woolf, possuem esse carter enigmtico, noporque foram simplesmente trazidas para um novo lugar, mas porque a sua prpria estruturase fundamenta como enigma, no momento em que se apresentam como fragmentos de algoque no se sabe o que e assim ocultam o seu ponto de origem. A obra que John pretendecompor, da mesma forma que a de Duchamp, regida por objetos preexistentes e no porobjetos inventados, o ato esttico gira em torno da colocao desses objetos descobertos,que os transpe para um contexto particular em que sero lidos como arte.19

    Nesse sentido, a ateno deve se dirigir para a maneira como se consegue apreender esentir ou, em outras palavras, como se d a nossa percepo frente a uma obra que se completapela ausncia de suas partes. Os objetos que John escolhe e coloca sobre sua lareira tornam-se prolongamento de um espao que no existe, o que significa dizer que, neles, reconhecemoso vazio sustentado alm das suas medidas, o oculto como forma de se alcanar a perda. Nessesentido, parece apropriado que citemos Walter Benjamin: S completa a obra o queprimeiramente a quebra, para fazer dela uma obra em pedaos, um fragmento do verdadeiromundo, o torso de um smbolo (Torso eines Symbols).20 Quando se detm sobre a questo dofragmento em seu texto As afinidades eletivas de Goethe, Benjamin relaciona-o quiloque chama de o inexprimvel: O inexprimvel aquela potncia crtica que pode, nocertamente separar, no seio da arte, a falsa aparncia do essencial, mas impedir pelomenos que se confundam.21 Para isso, a obra deve deixar sua origem mostra, no nosentido de designar de onde veio, mas sim o que est em via de nascer no devir e nodeclnio. 22 A origem, para Benjamin, jamais se revela totalmente, seno para serreconhecida, de um lado, como uma restaurao, uma restituio, e, de outro lado,

    17 MERLEAU-PONTY. Signos, p. 43.18 RILKE. Auguste Rodin, p. 84.19 KRAUSS. Caminhos da escultura moderna, p. 108.20 BENJAMIN. Selected writings, vol. I, p. 340.21 BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha, p. 173-174.22 BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha, 170.

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    como algo que por isso mesmo inacabado, sempre aberto.23 Da que os objetos surjampara John como corpos despedaados, como indcios de tudo o que se perdeu, ao trazerseu lugar aberto, visvel, mas desfigurado pelo fato mesmo de pr-se a descoberto.24

    Nesse sentido, aquele que olha para eles coloca-se sempre em uma posio de presentereminiscente, uma vez que olhar, a, consiste em desenterrar cada um daqueles objetosde seu passado e traz-los para um presente, no qual o reinventamos atravs das formasde nossas memrias. Assim, olhar para os objetos que John recolhe dos entulhos e terrenosbaldios adquire um significado que ultrapassa a idia de transitoriedade das coisas, poisfaz do incompleto e do inacabado o ponto intermedirio do passado e do presente. Aoolharmos para a obra de um artista como Duchamp ou lermos os textos de VirginiaWoolf, corremos o risco de debruarmos sobre o vazio, de aceitar o vazio como parte denossas medidas. Pois, se as formas que reconhecemos reagem perda, certeza de umaevidncia, no exato momento em que olhamos para uma superfcie que desconhecemos,tudo se assemelha a si mesmo, sem se imitar, cada coisa se perpetua atravs de nossosolhos, ao separar-se daquilo que tomou outras formas.

    AAAAA B S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TThis article analyzes the short story Solid Objects by VirginiaWoolf, focusing on the dialogue between literature and finearts with the aim of discovering how the opacity of objects inthe work of art affects ones understanding of oneself and ofreality.

    KKKKK E Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SLiterary narrative, plastic arts, opacity of the artistic object,

    fragment

    RRRRR E F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A S

    BENJAMIN, Walter. Selected Writings 1: 1913-1926. EILAND, Howard; JENNINGS, MichaelW. (Ed.). Cambridge, MA, and London: The Belknap Press of Harvard University Press,2000.

    BUCK-MORSS, Susan. Dialtica do olhar: Walter Benjamin e o projeto das passagens.Trad. Ana Luiza de Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

    CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. 2. ed. Trad. PauloJos Amaral. So Paulo: Perspectiva, 1997.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. Prefciode Stphane Huchet. So Paulo: Editora 34, 1998.

    KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da escultura moderna. Trad. Julio Fischer. So Paulo:Martins Fontes, 1998.

    23 BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha, 170.24 DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha, 176.

    AA

  • 1 8 52 0 0 6 - jul.-dez. - A L E T R I ADisponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    MARINETTI, Filippo Tomasso. Pintura futurista: manifesto tcnico. (1912.) In: CHIPP,Herschel B. (Org.). Teorias da arte moderna. Trad. Waltensir Dutra et al. So Paulo:Martins Fontes, 1996, p. 295.

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