a crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva
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Jairnilson Silva Paim
Naomar de Almeida Filho
A C R I S Eutopia da sade coletiva
ISC
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Ui H li! W CASA DA SADE
A CRISE DASADE PBLICAE A UTOPIA DA
SADE COLETIVA
Y Vy VjA
v > y v >Jairnilson Silva Paim -
Naomar de Almeida
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Copyright 2000 by Jairmilson Paim, Naomar dc Almeida Filho
Depsito Legal na Biblioteca NacionalConforme Decreto n 1.825, dc 20 dc dezembro dc 1907.
Produo Editorial: Fred Lima, Marcelo 'IVcjpn
Reviso: Denise Coutinho j*
*Capa: Luiz Folgueiras
# 7 p 0 0 0 2 6 7 t f t e:da obra la* Solcil H jP .I f f l ilr Prlwird* A ilustrao reproduz detalhe c
rauii, jairnnson oiiva, ly-ty^Almcitla filho, Naomar dc, 1952
A crise da sade pblica c ^ttopia da sade coletiva /Jairnilson Silva Paim - Salvador, BA :
Casa da Qualidade Editora, 2000.
ISBN 85-85651-52-0
Inclui bibliografia
1. Sade pblica 2. Medicina - Filosofia I. Almeida f ilho,
Naomar dc, 1952 II. TtuloCDD-362.1
Todos os direitos desta edio reservados :
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COLEO SADE COLETIVA
Direo da coleo:Naomar de Almeida Filho
Conselho Editorial:Rita Barradas Barata
Maurcio BarretoSebastio Loureiro
Maria Ceclia Minayo
Jairnilson Silva PaimGuilherme Rodrigues da Silva
Lgia Vieira da SilvaCsar Gomes Victora
A Coleo Sade Coletiva tem como meta difundir
reflexes filosficas, posies tericas, abordagensmetodolgicas c conhecimento cientfico c tecnolgicoessenciais para a compreenso da realidade sanitrianacional. Atravs de textos curtos c objetivos, redigidosem linguagem clara e precisa, dirige-se principalmente
a estudantes e profissionais de sade e reas afins.Espera-se dessa maneira subsidiar polticas, planejamentos e intervenes capazes de efetivamente melhorar a dramtica situao de sade da populao, contribuindo para reduzir a imensa dvida social da sadeem nosso pas.
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A Teca, Marcele e
iMauricio, pelo carinho de sempre.
Jairnilson
A Davi,
o sexto filho.
Naomar
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SUMRIO
Introduo 11
Captulo 1
Paradigmas e crises 19
Captulo 2
Movimentos no campo social da Sade 33
Captulo 3
A crise da Sade e a Nova Sade Pblica 49
Captulo4
Sade Coletiva: campo cientfico c
mbito de prticas 59
Captulo 5Novos paradigmas, novos sujeitos 73
Captulo 6
A utopia da Sade Coletiva 105
Referncias Bibliogrficas 115
Sobre os autores 125
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INTRODUO
Na segunda metade do sculo XX, a humanidadeexperimentou rpidas e profundas transformaes em
todas as esferas da vida econmica, cultural, social epoltica, talvez como nunca em sua histria. Por sua
velocidade e amplitude tais mudanas tm provocado,de um lado, uma certa perplexidade e de outro, umgrande esforo de reflexo e ao no sentido de com-
preender e explicar o que se passa, a fim de intervirsobre a realidade. A internacionalizao da pro-
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duo, distribuio c consumo, juntamente com o
avano das tecnologias da informao, tem como resul
tado a globalizao da economia e suas consequncias
macroeconmicas: transnacionalizao empresarial,
desterritorializao da fora de trabalho, desemprego
estrutural, entre outras. Ao mesmo tempo, verifica-se
um aumento das desigualdades entre os povos e os gru
pos sociais, a ecloso de movimentos nacionalistas, aexacerbao dos conflitos tnicos, a agresso ao meio
ambiente, a deteriorao do espao urbano, a intensifi
cao da violncia e o desrespeito aos direitos humanos.
No caso da sade, o debate sobre as suas relaes com
o desenvolvimento econmico e social que marcou a
dcada de 60 amplia-se, nos anos 70, para uma dis
cusso sobre a extenso de cobertura dos servios. O
reconhecimento do direito sade c a responsabilidade
da sociedade em garantir os cuidados bsicos de sade
possibilitam o estabelecimento do clebre lema Sade
para Todos no Ano 2000 (SPT-2000). Busca-se, dessemodo, incorporar os avanos tecnolgicos da medicina
c da Sade Pblica a custos compatveis, na expectati
va de que para isso seria suficiente definir polticas,
estratgias, prioridades e modelos de ateno, gesto e
organizao de servios capazes de alcanar as metas
da SPT-2000.
Enquanto a estratgia da ateno primria sade se
difunde a partir da Conferncia de Alma-Ata, os cen
tros hegemnicos da economia mundial revalorizam o
mercado como mecanismo privilegiado para a alocao
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de recursos e questionam a responsabilidade estatal na
proviso de bens e servios para o atendimento de
necessidades sociais, inclusive sade. A nova ordem
mundial que se instaura na dcada de 80, inspirada
no neoliberalismo, acarreta uma marcante fragilizao
dos esforos para o enfrentamento coletivo dos proble
mas de sade. Particularmentc nos pases de economia
capitalista dependente, a opo pelo Estado mnimo
e o corte nos gastos pblicos como resposta chamada
crise fiscal do Estado cm muito comprometem o
mbito institucional conhecido como Sade Pblica.
Cabe aqui uma crtica quanto ao uso do termo sade
pblica como um conceito que se refere ao campo geral
da sade no mbito coletivo, ou seja, aos processos de
sade-doena-sofrimento-morte na sociedade e s
respostas sociais destinadas a lidar com tais fenmenos
(Frenk, 1992). Como vamos esclarecer mais adiante, a
designao Sade Pblica tem sido usada por refe
rncia a um dos mais importantes movimentos ideo
lgicos no campo da sade do sculo XX, justamente
aquele que se encontra questionado em suas bases
conceituais e prticas. No se justifica, portanto, a
metonmia que faz equivaler a fonte de referencia ao
objeto referido de interveno.
Constata-se ento uma crise da Sade Pblica,
percebida de modo diferente pelos distintos sujeitos
atuantes neste campo social. Para a superao da
crise, vrios aportes tm sido propostos, cada um deles
apontando para a necessidade de novos paradigmas.
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Assim, podemos incluir desde as iniciativas da OPS
de reavaliar a teoria e prtica da Sade Pblica
(PAHO 1995), at a proposio de uma Nova Sade
Pblica como parte do movimento de renovao da
estratgia sade para todos (Ncayiyana et al, 1995;
WHO, 1995), e ainda a iniciativa do Banco Mundial
de debater as prioridades na pesquisa & desenvolvi
mento cm sade (World Bank, 1996). Em pauta,
encontra-se a necessidade de construo de um marco
terico-conceitual capaz de reconfigurar o campo
social da sade, atualizando-o diante das evidncias
de esgotamento do paradigma cientfico que sustenta
as suas prticas.
Os marcos de referncia da sade no mbito coletivo
que dominaram o pensamento setorial durante mais
de meio sculo parecem esgotados no momento atual,
encontrando srios impasses e limitaes.
Nesse particular, podem ser identificados alguns sinais
de esgotamento: em toda parte, com a crescente tec-nificao da prtica mdica e a biologizao dos mode
los conceituais, observa-se um enfraquecimento dos
discursos sociais da sade; nos EUA, no final dos
anos 80, um relatrio polmico do Institute of Medi
cine intitulado The Future o f Public Health (IOM
1988), anuncia a queda de prestgio e influncia das
escolas de sade pblica, esvaziadas por abordagens
individualizadoras da sade, como por exemplo o
movimento da epidemiologia clnica; na Amrica Lati
na, em um momento de despolitizao da cpiesto do
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desenvolvimento, a sade da populao tomada
como um problema de reforma setorial, cada vez mais
focalizado dentro da pauta mais ampla das polticas
sociais (Paim, 1998).
Alguns elementos de anlise deste processo podem ser
encontrados na conjuntura poltica global. Por um
lado, a falncia do estado de bem-estar e do modelo da
seguridade social, determinada basicamente por umacrise fiscal, tem como contrapartida o fracasso do
socialismo de Estado, assolado por uma crise de pro
dutividade e de incorporao tecnolgica (Harnecker,
2000). Por outro lado, a receita do neolibcralismo (c do
modelo assistencial privatista total) tem alcanado
resultados medocres no que se refere questo social,
inclusive sade, conforme evidenciado pelo fracasso
dos governos em cumprir as metas de Sade Para
Todos no ano 2000. No obstante, acreditamos que
alguns elementos epistemolgicos interdisciplinares,
de natureza conceituai e metodolgica, estruturantes
do campo cientfico da sade, so fundamentais para a
compreenso e superao dos impasses que confor
mam a crise da sade.
Faz-se necessrio rever paradigmas e propostas de
ao, visando a estabelecer balizamentos sobre a
questo da sade no mbito coletivo. No caso especfi
co da America Latina, a construo nos ltimos 20
anos de um movimento denominado Sade Coletiva
tem permitido um dilogo crtico e a identificao de
contradies e acordos com a sade pblica institu-
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cionalizada, seja na esfera tcnico-cientfico, seja no
terreno das prticas. Em outras palavras, trata-se de
considerar, no mbito do nosso interesse especfico,
algumas questes. Ser que o movimento da Sade
Coletiva pode se apresentar como um novo paradigma
cientfico, em um sentido rigorosamente delimitado?
Que pautas epistemolgicas, tericas, metodolgicas e
polticas devem ser ativadas para alcanar mudanas
paradigmticas no campo da sade? Pragmaticamente,
que modelos de compreenso da situao de sade
podero ser produzidos? Mais ainda, que efeitos tero
tais transformaes sobre a retrica e a prtica no
campo da sade?
Neste texto, pretendemos realizar um estudo explo
ratrio da retrica paradigmtica do campo da sade,
consubstanciada nas redes produtoras e difusoras dos
seus elementos ideolgicos. No Captulo 2, propomos
definir o nosso referencial terico com o auxlio dos
conceitos de paradigma c de campo cientfico, assina
lando suas derivaes c aplicaes na rea da sade, a
partir de uma perspectiva auto-reconhecida como prag-
matista. No Captulo 3, analisaremos resumidamente
os principais elementos de discurso dos movimentos
ideolgicos que historicamente construram o campo
social da sade da II Guerra Mundial at a conjunturaatual, em que se almeja uma renovao das bases da
Sade Pblica. Para isso, propomos no Captulo 4 uma
avaliao crtica das possibilidades de articulao desses
movimentos a novos paradigmas cientficos capazes de
auxiliar na superao da propalada crise da sade. No
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captulo seguinte, apresentamos uma tentativa de sis
tematizao do marco conceituai da Sade Coletiva,
em construo na Amrica Latina, situando mais particularmente as suas potencialidades de constituio de
um conhecimento transdisciplinar. No Captulo 6, dis
cutiremos como a transio paradigmtica poderia
ensejar a constituio de novos sujeitos, destacando
certos componentes polticos, estratgicos e pedaggi
cos. Em concluso, pretendemos propor que este movi
mento ideolgico pode melhor se articular a novos
paradigmas cientficos capazes de abordar o objeto
complexo sade-docna-cuidado respeitando sua his
toricidade c integralidade.
* * *
Este livro resulta de consultorias realizadas junto ao
Programa de Desenvolvimento de Recursos
Humanos da Organizao Panamericana da Sade,
por ambos os autores, em diferentes momentos
entre 1991 e 2000, que resultaram em uma srie de
trabalhos apresentados ou publicados. Somos gratos
OPS, especialmente nas pessoas de Luiz Ruiz c
Charles Goduc, pela oportunidade. Agradecemos a
Jos Roberto Ferreira e Paulo Buss, da Escola
Nacional de Sade Pblica da FIOCRUZ pelo decisivo encorajamento que tornou possvel o nosso
envolvimento no projeto de avaliar a crise da Sade
Pblica, seus desdobramentos e suas perspectivas.
O processo de elaborao do texto foi realizado como
parte do Projeto Integrado "Sade como Objeto-
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CAPTULO 1
PARADIGMAS E CRISES
Observa-se cada vez mais uma ampliao do uso dotermo paradigma para tratar de qualquer tipo de
conhecimento humano e, de um modo ainda maisalargado, para referir-se a prticas sociais de qualquernatureza. Atualmente, podemos encontrar desde umaequivalncia do paradigma ao conceito amplo decampo disciplinar, como na noo de paradigma daSade Pblica (Afif & Breslow, 1994), at um trata-
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mento mais regionalizado de paradigma no sentido da
mera atitude perante uma instituio, como por exem
plo nos mltiplos usos que o termo vem adquirindo no
campo das cincias da gesto (Serva, 1992). Em um
nvel intermedirio, no prprio campo da sade, docu
mentos oficiais de construo doutrinria tm feito uso
do termo na conotao de modelo ou abordagem,
como por exemplo a noo de paradigma da ateno
primria sade (Nicayiyana et al, 1995). Como
indicamos em outra oportunidade (Almeida Filho &
Paim, 1997), trata-se de utilizao indevida de uma
categoria cujo sentido tcnico encontra-se razoavel
mente estabelecido no campo terico da filosofia da
cincia, partieularmente na abordagem de crticahistrica de Thomas Kuhn (1975).
Paradigma e campo cientfico
Em A Estrutura das Revolues Cientficas, sua obra
mais divulgada, Kuhn (1975) estabelece dois conjuntos
de sentidos para o termo. Por um lado, como categoria
epistemolgica, o paradigma constitui um instrumen
to de abstrao, uma ferramenta auxiliar para o pen
samento sistemtico da cincia. Neste caso, trata-se de
uma construo destinada organizao do raciocnio,fonte de construo lgica das explicaes, firmando as
regras elementares de uma dada sintaxe do pensamen
to cientfico e assim tornando-se matriz para os mode
los tericos. Por outro lado, em um sentido mais
amplo, o paradigma constitui uma viso-de-mundo
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Paradigmas c crises -21
peculiar, prpria do campo social cientfico. Implica
um conjunto de generalizaes simblicas, geral
mente sob a forma de metforas, figuras e analogias,
configurando-se de certo modo como a subeultura de
uma dada comunidade cientfica.
A teoria kuhniana do paradigma cientfico (e suas va
riantes) rejeita claramente o sentido do senso comum
para o termo paradigma, na acepo de padro dereferncia ou modelo a ser seguido, como por exemplo
ao se dizer que o sistema de sade ingls o paradig
ma da medicina social. No nvel semntico, a catego
ria paradigma tem provocado uma grande controvrsia
entre os filsofos da cincia (Pinch, 1982). No entanto,
esta concepo fez avanar uma abordagem constru-
tivista da cincia, propondo que a construo do co
nhecimento cientfico no se d em abstrato, isolada no
individualismo dos pesquisadores, mas sim que ocorre
institucionalmente organizada, no seio de uma cul
tura, dentro da linguagem. A cincia pode ento ser
vista como social e historicamente determinada e s
existe no interior do paradigma. No nvel da prtica, a
cincia se realiza no contexto de instituies de pro
duo socialmente organizadas como em qualquer
outro campo de prtica social histrica (Minayo, 1992;
Samaja, 1994).
Em uma perspectiva autodenominada de ps-kuhniana,
Rorty (1979, 1991) prope uma praxiologia para a com
preenso da cincia, rejeitando frontalmente as tentati
vas de tomar a cincia como uma mera construo
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ideolgica, mais especificamente como um instrumen
to inevitavelmente a servio da dominao. A cincia
somente faz sentido se entendida como prtica, uma
prtica social que tem fundaes peculiares bem ver
dade, mas que se exerce em um processo de dilogo c
negociao destinado produo de um consenso
localizado e datado, com base cm uma certa soli
dariedade entre os atuantes da comunidade cientfi
ca (Knorr-Cetina, 1981). Avanando na discusso
sobre a dade retrica-prtica como forma privilegiada
de compreenso do que a cincia produz e do que os
cientistas fazem e propem fazer, Bhaskar (1997) abre
um caminho interessante de argumentao: deve-se
tratar a produo cientfica como ela concretamcnte sed, como um modo de produo, avaliado pelos seus
processos e seus produtos.
A produo cientfica se d num campo de foras sociais
que pode ser compreendido como um espao multidi
mensional de relaes em que os agentes ou grupos de
agentes ocupam determinadas posies relativas, em
funo de diferentes tipos de poder (Samaja, 1994).
Nesse particular, Bourdieu (1983, 1989) contribui com
os conceitos de capital simblico e campo cientfico,
onde operam determinaes polticas e cientficas para
a sua constituio. Para o autor, alm do capitaleconmico, cabe considerar no mundo social o capital
cultural, o capital social c o capital simblico. Este lti
mo, fundamental para a anlise do campo cientfico,
manifesto como prestgio, reputao, fama etc., seria a
fonte estruturante da legitimao das diferentes esp-
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cies de capital. O campo cientfico constitui um campo
social como outro qualquer, com relaes de fora e
monoplios, lutas c estratgias, interesses e lucros. Para
o estudo de um dado campo cientfico cumpre
recusar a oposio abstrata entre uma anlise imanente ou
interna, que caberia mais propriamente epistemologia e
que restituiria a lgica segundo a qual a cincia engendra
seus prprios problemas, c uma anlise externa, que rela
cionaria esses problemas s condies de seu aparecimento
(Bourdicu, 1983:126).
No caso da anlise do desenvolvimento cientfico, para
digmas correspondem s realizaes cientficas uni
versalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e solues modelares para umacomunidade de praticantes de uma cincia (Kuhn,
1975:13). Segundo este autor, em determinados
momentos de crise poderiam ocorrer rupturas em
relao aos pressupostos, conceitos c valores aceitos por
uma comunidade cientfica, favorecendo a emergncia
de teorias cientficas e o desenvolvimento para umadada disciplina ou campo interdisciplinar.
Na anlise das revolues cientficas, todavia, a viso
kuhniana privilegia as cincias naturais, reconhecendo
o carter pr-paradigmtico das cincias sociais. Ou
seja,enquanto, nas cincias naturais, o desenvolvimento do
conhecimento tornou possvel a formulao de um conjun
to de princpios e de teorias sobre a estrutura da matria que
so aceitas sem discusso por toda a comunidade cientfica,
conjunto que Kuhn designa por paradigma, nas cincias
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sociais no h consenso paradigmtico, pelo que o debate
tende a atravessar verticalmente todo o conhecimento
adquirido (Santos, 2000:67).
O paradigma dominante no campo cientfico da sade
fundamenta-se em uma srie de pressupostos que nos
acostumamos a chamar quase pejorativamente de
positivismo. O positivismo mais radical considera
que a realidade que determina o conhecimento,
sendo possvel uma abordagem imediata do mundo,
das coisas e dos homens (Santos, 1989). Alm disso, o
paradigma do positivismo opera como se todos os entes
constitussem mecanismos ou organismos, sistemas
com determinaes fixas, condicionados pela prpria
posio dos seus elementos. Uma verso ingnua dopositivismo ainda assola o campo da sade, principal-
mente na sua rea de aplicao mais individualizada, a
clnica mdica (Almeida Filho, 1997). Perante os
processos de sade-doena-cuidado, por exemplo, a
metfora do corpo como mecanismo (e dos seus rgos
como peas) tem sido efetivamente muito influente naconstituio das chamadas cincias bsicas da sade
(Castiel, 1994).
Conhecer, entretanto, no apenas expor o mecanismo
do objeto nas suas peas fundamentais, mas sim ser
capaz de reencontrar a posio de cada pea, reconstruir o mecanismo e p-lo em funcionamento. No sen
tido cartesiano original, o processo do conhecimento
opera na direo da sntese, da remontagem do objeto
reduzido, na tentativa de restaurar o seu funcionamen
to. Nessa etapa, a metfora do mecanismo (Lvy, 1987)
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representa a forma talvez mais simplista de dar conta
do conhecimento como revelao do determinismo do
objeto, porm a cincia produz metforas mais sofisti
cadas c eficazes para explicar os seus objetos cada vez
menos tolerantes a abordagens reducionistas. Por esse
motivo, o paradigma mecanicista termina encontran
do uma srie de dificuldades institucionais, polticas,
histricas e principalmente epistemolgicas, logo
alcanando limites na sua abordagem. O avano do
conhecimento cientfico rompe as fronteiras impostas
por esta forma de prtica cientfica, que assim perde a
posio prestigiosa de fonte de legitimidade baseada
cm uma verdade racional.
Uma crise, novos paradigmas
Nos diversos campos da investigao cientfica, abor
dagens alternativas indicam uma clara insatisfao
com o paradigma dominante, configurando uma pro
funda crise na cincia contempornea. Fala-se em uma
matemtica das catstrofes (Thom, 1985), em uma
nova fsica (Powers, 1982), cm uma cincia da com
plexidade (Morin, 1986, 1990), c em uma cincia
ps-moderna (Santos, 1989). Prigogine & Stengers
(1997), referem-se inclusive necessidade de uma
nova aliana para rcarticular as bases metodolgicas
e conceituais da Biologia. Este movimento integra-se a
uma profunda transformao no essencial da prtica
cientfica, no modo de construo do seu campo de
aplicao. O que est sendo fundamentalmente ques
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tionado a organizao dos campos cientficos atravs
de grandes estruturas abstratas, com alto potencial de
generalizao, capazes de enquadrar e guiar todo o
processo de referncia emprica. Nas cincias ditas
naturais, esta tendncia revela-se pela opo cada vez
mais predominante entre os cientistas de buscar
micropadres de desordem e indeterminao em vez
de se concentrar em elegantes e grandiosos modelos
tericos baseados em uma expectativa de ordem c
determinao.
O campo cientfico da sade tambm passa por uma
profunda crise epistemolgica, terica e metodolgica,
uma crise paradigmtica, como diria Kuhn (1975). Um
dos signos da crise paradigmtica seria, por exemplo, o
paradoxo da planificao de sade: onde h planifi
cao nem sempre se produzem mudanas impor
tantes, enquanto que proliferam exemplos de intensas
transformaes onde no se planifica.
Uma srie de elementos epistemolgicos c metodolgicos tm sido propostos como tendncia alternativa para
a cincia contempornea, agrupados sob o rtulo
genrico de novo paradigma. Para designar o eixo
principal que unificaria parcialmente as diversas con
tribuies em direo a um paradigma cientfico alter
nativo, parece-nos mais adequada a denominao de
Teoria da Complexidade, conforme Morin (1990),
Lewin (1992) e outros autores. Trata-se de uma apli
cao generalizada da premissa de que a pesquisa cien
tfica, ao contrrio da abordagem positivista conven-
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cional, deve respeitar a complexidade inerente aos
processos concretos da natureza, da sociedade e da
histria. Nas suas verses mais aplicadas, a teoria da
complexidade se apresenta quase como um nco-sis-
temismo, atualizando e expandindo algumas
proposies da teoria dos sistemas gerais que haviam
alcanado uma certa influncia no panorama cientfico
dos anos 50 e 60 (Buckley, 1968).
A caracterstica mais definidora do chamado novo
paradigma talvez seja a noo de no-linearidade, no
sentido de rejeio da doutrina do causalismo simples
tambm presente na abordagem convencional da
cincia; esta perspectiva abre-se considerao de
paradoxos, intolerveis na epistemologia conven
cional, como por exemplo a concepo de ordem a
partir do caos (Atlan, 1992). Alm disso, um proble
ma terico fundamental das diversas perspectivas
paradigmticas alternativas consiste na possibilidade
de pensar que a realidade concreta se estrutura de
modo descontnuo. Trata-se de uma outra maneira de
lidar com a questo da determinao em geral,
abrindo-se a cincia possibilidade da emergncia,
ou seja, o engendramento do radicalmente novo
(Castoriadis, 1978), algo que no estaria contido na
sntese dos determinantes em potencial.
Por outro lado, a noo de fractais parece mais til
para o desenvolvimento de modos alternativos de pro
duo do conhecimento cientfico cm sade. Trata-se
de uma nova geometria, baseada na reduo das for-
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mas e propriedades dos objetos ao infinito interior,
como por exemplo na possibilidade de dividir uma
linha em duas partes iguais, que podero por sua vez
ser divididas, e assim sucessivamente, mantendo-se
sempre a forma original de uma linha dividida pela
metade. Na rea da sade, a proposta de modelos eco-
sociais de Nancy Krieger (1994) funda-se essencial-
mente na aplicao de uma abordagem fractal aoprocesso de construo do objeto da sade no coletivo.
Finalmente, entre as concepes menos popularizadas
das novas abordagens paradigmticas, situa-se a teoria
dos conjuntos borrosos (em ingls: "fuzzy set theory)
inicialmente proposta por Zadeh (1971). A borrosi-
dade uma propriedade particular dos sistemas com
plexos no que se refere natureza arbitrria dos limites
infra-sistmicos impostos aos eventos (unidades do sis
tema) e ao prprio sistema, cm suas relaes com os
super sistemas (contextos) e respectivos observadores.
Abordagem crtica das noes de limite e de preciso,essenciais teoria dos conjuntos, a lgica borrosa ques
tiona a analtica formal da cincia moderna (Castoriadis,
1978; Mcneill & Freiberger, 1993).
A aplicao de tais propostas, que s vezes no parecem
congruentes entre si, encontra-se em pleno desenvolvi
mento, resultando em categorias epistemolgicas
prprias (como parece ser a categoria da complexi
dade), novos modelos tericos (como a teoria do
caos) e novas formas lgicas de anlise (como por
exemplo a geometria fractal e os modelos matemticos
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Paradigmas e crises- 29
no-linearcs). O pressuposto de base desta perspectiva
que as abordagens da complexidade em geral seriam
capazes de produzir novas metforas necessrias para
compreender e superar o distanciamento entre
mundo natural e mundo histrico, considerando sis
temas dinmicos complexos, auto-rcgulados,
mutantes, imprevisveis, produtores de nveis emer
gentes de organizao (Simon, 1969; Gleick, 1987;
Morin, 1990; Lewin, 1992; Lorcnz, 1994). Apesar do
seu evidente potencial renovador, um exame crtico
dessas abordagens indica um certo risco episte-
molgico, particularmente para as cincias do social-
histrico: trata-se da atraente possibilidade de
matematizar todas as relaes objeto da inquiriocientfica, apresentando modelos no-lineares como
alternativa analtica para os casos no aderentes s
formas convencionais de explicao.
Abusos da categoria paradigma em Sade
Originrio do grego no sentido de mostrar ou mani
festar, o termo paradigma foi inicialmente utilizado
no campo da sade para orientar o desenho de planos
de estudo que facilitassem a incorporao do ensino
das cincias sociais, mediante variveis psico-socio-
culturais pertinentes (Garcia, 1971). Nesta acepo
aproxima-se da noo de modelo, representao sim
plificada e esquemtica da realidade que retm os seus
traos mais significativos, a exemplo do paradigma da
histria natural da doena de Leavell-Clark (1976) ou
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30 -A Crise da Sade Pblica
do campo da sade (Canad, 1974). Outro exemplo
na Sade Pblica a investigao do carter paradig
mtico inscrito em uma norma como o Cdigo
Sanitrio. Aps estudar os paradigmas tecnolgicos
das trs revolues industriais, Iram (1994) identificou
a categoriaflexibilidade tecnolgicacomo a que melhor
traduz o Novo Cdigo Sanitrio do Estado de So
Paulo, Brasil, correspondente terceira revoluo Tec
nolgica do capitalismo. Alguns autores discutem
novos paradigmas cientficos (Schwab & Syme, 1997)
correspondentes s interdisciplinaridade e intersetoria-
lidade ao contemplar as relaes entre sade, ambiente
e desenvolvimento, enquanto outros tratam do para
digma da tica da responsabilidade (Garrafa, 1995).
Outra conotao para o termo paradigma diz
respeito a distintos movimentos ideolgicos que se
tm apresentado sucessivamente no campo da sade,
tais como o Flexnerismo, a Medicina Preventiva, a
Sade Comunitria e, mais recentemente, a Sade
Coletiva, a Nova Sade Pblica ou o movimento da
Promoo da Sade (Deccache, 1997). A partir de
uma anlise crtica sobre o carter de modelo, para
digma ou proposta disciplinar, tem-se realizado uma
reflexo sobre os marcos terico-conceituais desen
volvidos no mbito acadmico da Sade Pblica:sanitarista, biomdico, epidcmiolgico clssico,
higienista preventivo, ecologista, epidemiolgico
social, sociomdico materialismo histrico e
sociomdico neoconservador (Arredondo, 1993).
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Paradigmas c crises -31
Este uso menos rigoroso do termo corresponde a umconjunto de noes, pressupostos e crenas, relativa
mente compartilhados por um determinado segmentode sujeitos sociais, que serve de referencial para a ao.Verifica-se um certo abuso do seu emprego em anosrecentes, reduzindo-o, muitas vezes, ideia de enfoqueou abordagem. Chama-se a ateno para o fato de queas reas produtivas dispem de paradigmas para a sua
gesto (taylorismo, fordismo, toyotismo etc.) enquantoa rea social fica oscilando entre burocratismos estataise privatizaes desastradas por lhes faltar paradigmasde gesto correspondentes (Dovvbor, 1999). Na mesmalinha, tenta-se elaborar uma conceituao de administrao pblica e identificar paradigmas para umprocesso de mudana para o Sistema nico de Sade(S, 1993).
No campo da sade vrios documentos doutrinriostm feito uso do termo na conotao do senso comumcomo a noo de paradigma da ateno primria
sade, de paradigma da Sade Pblica , de paradigma da administrao pblica e de paradigma dasade integral. Da a pertinncia de revisitar criticamente a obra de Kuhn:
buscando reafirmar a investigao cientfica como uma
prtica institucional, fundam entalm cntc baseada em umquadro de referencias, representaes, valores c atos que
denomina de paradigma (Almeida Filho & Paim, 1997).
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nil -V
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CAPTULO 2
MOVIMENTOS NO CAMPO SOCIAL DA SADE
Terris (1992) atualiza a clssica definio de SadePblica elaborada por Winslow, na dcada de 20, nosseguintes termos: a arte e a cincia de prevenir a
doena c a incapacidade, prolongar a vida c promovera sade fsica e mental mediante os esforos organizados da comunidade. A partir dessa concepo, oautor prescreve quatro tarefas bsicas para a teoria ca prtica de uma Nova Sade Pblica: prevenodas doenas no-infecciosas, preveno das doenas
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34 -A Crise da Sade Pblica
infecciosas, promoo da sade, melhoria da ateno
medica e da reabilitao.
Frenk (1992) considera como campo de aplicao da
Nova Sade Pblica as condies e respostas
assentadas nas bases cientficas das cincias biolgi
cas, sociais e comportamentais tendo como reas de
aplicao populaes, problemas e programas. Para
melhor delimitar o novo campo cientfico, o autordesenvolve uma tipologia da investigao em sade,
distinguindo os nveis de atuao individual e
subindividual, onde se concentram a pesquisa bio-
mdica e a pesquisa clnica, em relao ao nvel po
pulacional que toma como objeto de anlise as
condies (pesquisa cpidcmiolgica) e as respostas
sociais frente aos problemas de sade (pesquisa em
sistemas de sade - polticas de sade, organizao
de sistemas de sade, investigao em servios e
recursos de sade).
Testa (1992), ao analisar as respostas sociais no campoda Sade Pblica, denomina ateno primitiva
sade aquela adotada nos pases que dispem de
servios diferenciados para distintos grupos sociais e
que esto preocupados, fundamentalmente, em
reduzir os gastos em sade organizando servios de
segunda categoria para uma populao considerada
inferior. A partir de uma reflexo sobre as polticas
sociais, c buscando o redimensionamento terico da
sade como campo de fora c de aplicao da cin
cia, este autor e seus colaboradores (Iriart et al, 1994)
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Movimentos no campo social da Sade -35
reconhecem a Sade Pblica como prtica social, uma
construo histrica portanto.
A importante contribuio das abordagens etnogrficas
contemporneas da prtica cientfica, especialmente no
contexto da chamada virada hermenutica (Santos,
1989), indica que os mbitos da prtica humana no se
configuram a partir de uma estrutura racional de base
normativa ou prcscritiva, nem pela vertente doxolgica(da doutrina), com o estabelecimento de objetivos
heteroregulados, nem pelo vis epistemolgico formal.
Em outras palavras, definies mesmo aquelas
exaustivas e objetivas como por exemplo a definio
Winslow-Terris , ou estruturas lgicas descritivas
como a classificao de Frenk -, no so capazes de dar
conta do essencial dos campos cientficos e seus respec
tivos mbitos de prtica. Mas se as proposies das
polticas de sade e as prescries da Sade Pblica so
contextualizadas num campo de fora como
podemos apreender a partir da crtica histrica de Testa
(1992, 1995), outros sentidos e significados podem ser
extrados dessa retrica. Por isso, antes de analisar os
elementos discursivos das novas propostas, necessrio
contextualizar prticas e discursos que, nos ltimos 50
anos, vm constituindo o campo social da sade bem
como seus efeitos sobre a estruturao dos discursosoficiais nacionais c internacionais. Antes ainda, vamos
repassar brevemente as razes histricas dos elementos
discursivos e pragmticos dos movimentos ideolgicos
do campo social da sade.
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36 -A Crise da Sade Pblica
Antecedentes das prticas sanitrias
A rea da sade, inevitavelmente referida ao mbitocoletivo-pblico-social, tem passado historicamente
por sucessivos movimentos de recomposio das prti
cas sanitrias decorrentes das distintas articulaes
entre sociedade e Estado que definem, em cada con
juntura, as respostas sociais s necessidades e aos
problemas de sade. As bases doutrinrias dos discursos
sociais sobre a sade emergem na segunda metade do
sculo XVIII, na Europa Ocidental, em um processo
histrico de disciplinamento dos corpos e constituio
das intervenes sobre os sujeitos (Rosen, 1980). Por
um lado, a Higiene, conjunto de normatizaes c pre
ceitos a serem seguidos e aplicados em mbito indi
vidual, produz um discurso sobre a boa sade franca
mente circunscrito esfera moral. Por outro lado, as
propostas de uma Poltica (ou Polcia) Mdica estabele
cem a responsabilidade do Estado como definidor de
polticas, leis c regulamentos referentes sade nocoletivo c como agente fiscalizador da sua aplicao
social, remetendo os discursos e as prticas de sade
instncia jurdico-poltica (Paim, 1986).
No sculo seguinte, os pases europeus avanam um
processo macrosocial da maior importncia histrica: a
Revoluo Industrial, que produz um tremendo
impacto sobre as condies de vida e de sade das suas
populaes. Com a organizao da classes trabalhado
ras e o aumento da sua participao poltica, principal
mente nos pases que atingiram um maior desenvolvi-
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Movimentos no campo social da Sade- 37
mento das relaes produtivas, como Inglaterra, Frana
e Alemanha, rapidamente incorporam-sc temas rela
tivos sade na pauta das reivindicaes dos movi
mentos sociais do perodo. Entre 1830 c 1880, surgem,
nesses pases, propostas de compreenso da crise sanitria
como fundamentalmente um processo poltico e social
que, cm seu conjunto, receberam a denominao de
Medicina Social (Rosen, 1980). Em sntese, postula-seque a medicina poltica aplicada no campo da sade
individual e que a poltica nada mais que a aplicao
da medicina no mbito social, curando-se os males da
sociedade. A participao poltica a principal estrat
gia de transformao da realidade de sade, na expec
tativa de que das revolues populares deveria resultardemocracia, justia c igualdade, principais determi
nantes da sade social. Apesar de esvaziado no plano
poltico, o movimento da Medicina Social gera uma
importante produo doutrinria e conceituai que
fornece as bases para os esforos subseqentes de pen
sar a questo da sade na sociedade (Fleury, 1985).
Em paralelo, principalmente na Inglaterra e nos Esta
dos Unidos, estrutura-se uma resposta a esta proble
mtica estreitamente integrada ao do Estado na
sade, constituindo um movimento conhecido como
Sanitarismo (Paim, 1986). Em sua maioria funcionrios das recm-implantadas agncias oficiais de
sade e bem-estar, os sanitaristas produzem um dis
curso e uma prtica sobre as questes da sade basea
dos cm aplicao de tecnologia e cm princpios de
organizao racional para a expanso de atividades
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38-/1 Crise da Sade Pblica
profilticas (saneamento, imunizao e controle de
vetores) destinadas principalmente aos pobres e setoresexcludos da populao. O advento do paradigma
microbiano nas cincias bsicas da sade representa
um grande reforo ao movimento sanitarista que, em
um processo de hegemonizao, e j ento batizado
de Sade Pblica, praticamente redefine as diretrizes
da teoria e da prtica no campo da sade social nomundo ocidental.
No incio do sculo XX, com o clebre Relatrio
Flexner, descncadcia-sc nos Estados Unidos uma pro
funda reavaliao das bases cientficas da medicina, que
resulta na redefinio do ensino e da prtica mdica apartir de princpios tecnolgicos rigorosos. Com nfase
no conhecimento experimental de base subindividual
proveniente de pesquisa bsica realizada geralmente
sobre doenas infecciosas, o modelo conceituai flexne-
riano refora a separao entre individual c coletivo, pri
vado e pblico, biolgico e social, curativo e preventivo(Fee, 1987). E nesse contexto que surgem as primeiras
escolas de sade pblica contando com pesados investi
mentos de organismos como a Fundao Rockefeller, ini
cialmente nos Estados Unidos e em seguida cm vrios
pases, inclusive na Amrica Latina. De fato, as refern
cias paradigmticas do movimento da Sade Pblica no
expressam qualquer contradio perante as bases posi
tivistas da medicina flexneriana, conforme demonstrado
pelo processo de seleo das demandas de subveno
destinadas institucionalizao dos centros de formao
de sanitaristas e epidemiologistas da poca.
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Movim entos no campo social da Sade - 39
Do Preventivismo Sade Comunitria
Na dcada de 40, como conseqncia de processosexternos e internos ao campo da sade (por um lado, os
reflexos sociais da crise econmica de 29 e, por outro
lado, o incremento de custos devido ao aumento da
especializao e da tecnologizao da prtica mdica)
articula-sc nos Estados Unidos a proposta de implan
tao de um sistema nacional de sade (Arouca, 1975).Pela ao direta do poderoso lobby das corporaes
mdicas daquele pas, no lugar de uma reforma setorial
da sade nos moldes da maioria dos pases europeus,
prope-se a mudana no ensino mdico, incorporando
uma vaga nfase na preveno. Em 1952, realiza-se em
Colorado Springs uma reunio de representantes das
principais escolas de medicina norte-americanas,
ponto de partida para uma ampla reforma dos currcu
los de cursos mdicos no sentido de inculcar uma ati
tude preventiva nos futuros praticantes (Arouca, 1975).
No nvel da estrutura organizacional, prope-se aabertura de departamentos de medicina preventiva
substituindo as tradicionais ctedras de higiene,
capazes de atuar como elementos de difuso dos con
tedos de epidemiologia, administrao de sade e
cincias da conduta at ento abrigados nas escolas de
sade pblica (Garcia, 1972). O conceito de sade
ento representado por metforas gradualistas do
processo sade-enfermidade, que justificam con-
ceitualmente intervenes prvias ocorrncia concre
ta de sinais e sintomas em uma fase pr-clnica
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40 -A Crise da Sade Pblica
(Leavell & Clark, 1976). A prpria noo dc preveno
radicalmente redefinida, atravs de uma ousada
manobra semntica (ampliao de sentido pela adjeti-
vao da preveno como primria, secundria e ter
ciria) que termina incorporando a totalidade da prti
ca mdica ao novo campo discursivo. Que isso tenha
ocorrido somente no nvel da retrica indica a limitada
pretenso transformadora do movimento em pauta,
efetivamente preso no que Arouca (1975) com muita
perspiccia denominou dc dilema preventivista.
Com entusiasmo compreensvel, organismos interna
cionais do campo da sade aderem de imediato nova
doutrina, orquestrando uma internacionalizao da
Medicina Preventiva j francamente como movimento
ideolgico. Na Europa, realizam-se congressos no
modelo Colorado Springs em Nancy (Frana), no
mesmo ano de 1952, e em Gotemburgo (Sucia) no
ano seguinte, patrocinados pela OMS; na Amrica
Latina, sob o patrocnio da OPS, so organizados os
Seminrios dc Vina dei Mar (Chile) em 1955 e de
Tehuacn (Mxico) em 1956 (Arouca, 1975).
O sucesso do movimento no seu pas de origem
inegvel: a nica nao industrializada que at hoje
no dispe de um sistema universal de assistncia
sade justamente os Estados Unidos. Na Amrica
Latina, apesar das expectativas e investimentos de
organismos e fundaes internacionais, o nico efeito
do movimento parece ser a implantao dc departa
mentos acadmicos dc medicina preventiva em pases
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Movimentos no campo social da Sade - 41
que, j na dcada de 60, passavam por processos de
reforma universitria. Na Europa Ocidental, em pases
que dispunham de estruturas acadmicas de longa
tradio e que no ps-guerra consolidavam sistemas
nacionais de sade de acesso universal c hierarquiza
dos, a proposta da Medicina Preventiva no causa
maior impacto nem sobre o ensino nem sobre a orga
nizao da assistncia sade (Paim, 1986).
Os clebres anos 60 marcam nos Estados Unidos uma
conjuntura de intensa mobilizao popular e intelectual
em torno de importantes questes sociais, como os
direitos humanos, a guerra do Vietn, a pobreza
urbana e o racismo. Diversos modelos de interveno
so testados c institucionalizados sob a forma de movi
mentos organizados no mbito local das comunidades
urbanas, destinados principalmentc ampliao da
ao social nos setores de habitao, educao e sade
(particularmente sade mental), reduzindo tenses
sociais nos guetos das principais metrpoles norte-
americanas (Donnangelo, 1976). No campo da sade,
organiza-se ento o movimento da Sade Comu
nitria, tambm conhecido como medicina comu
nitria1, baseado na implantao de centros comu
nitrios de sade, cm geral administrados por organi
zaes no-lucrativas porm subsidiados pelo governofederal, destinados a efetuar aes preventivas e prestar
cuidados bsicos de sade populao residente em
reas geograficamente delimitadas (Desrosiers, 1996).
1 * Esta denominao
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42-/1 Crise da Sade Pblica
A proposta da Sade Comunitria inegavelmente recu
pera parte importante do arsenal discursivo da Medici
na Preventiva, particularmente a nfase nas ento
denominadas cincias da conduta (sociologia,
antropologia e psicologia) aplicadas a problemas de
sade. Entretanto, o conhecimento dos processos
socioculturais e psicossociais destina-se no a facilitar a
relao mdico-paciente ou a gesto institucional emsade, como no movimento precedente, mas sim a pos
sibilitar a integrao das equipes de sade nas comu
nidades problemticas, atravs da identificao e
cooptao de agentes e foras sociais locais para os pro
gramas de educao em sade. Em um certo sentido, o
movimento da Sade Comunitria consegue colocarcm prtica alguns dos princpios preventivistas, eviden-
temente focalizando setores sociais minoritrios e
deixando mais uma vez intocado o mandato social da
assistncia mdica convencional (Paim, 1986).
Desta feita, o fracasso do movimento da Sade Comunitria, artificial c distanciado do sistema dc sade pre
dominante no pas de origem, parece evidente.
Desrosiers (1996) chega a ser irnico, ao comentar que
nos Estados Unidos, dado o carter parcial e muitas
vezes temporrio das experincias de medicina ou
sade comunitria, restou somente a expresso (...) nolugar da sade pblica tradicional. No obstante, mais
uma vez, organismos internacionais do campo da sade
rapidamente incorporam o novo movimento ideolgi
co, traduzindo o seu corpo doutrinrio para as necessi
dades dos diferentes contextos de aplicao potencial.
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Movimentos no campo social da Sade - 43
Com o endosso da Organizao Mundial da Sade, os
princpios destes programas comunitrios de sade
passam a enfatizar mais a dimenso da assistncia sim
plificada visando extenso de cobertura de servios
para populaes at ento excludas do cuidado
sade, principalmente em reas rurais, sendo incorpo
rados ao discurso das agncias oficiais (secretarias,
ministrios) de sade. Efetivamente, data de 1953 adefinio dos servios bsicos de sade da OMS,
cobrindo as seguintes atividades: a) ateno sade da
mulher e da criana; b) controle de doenas transmis
sveis; c) saneamento ambiental; d) manuteno de sis
temas de informao; e) educao em sade; e) enfer
magem de sade pblica; f) assistncia mdica debaixo grau de complexidade (WHO, 1995a). A Reviso
de 1963, realizada por uma comisso de especialistas j
engajados no movimento da Sade Comunitria,
prope incluir nesta relao a participao da popu
lao (Ncayiyana et al, 1995).
Na Amrica Latina, programas de sade comunitria
so implantados principalmcntc na Colmbia, no Brasil
e no Chile, sob o patrocnio de fundaes norte-ameri
canas e endossados pela OPS, na expectativa de que o
seu efeito-demonstrao pudesse influenciar positiva
mente o desenho dos sistemas de sade no continente(Paim, 1996). Em um plano mais geral, h mais de 20
anos (1977), a Assemblia Mundial da Sade lana a
consigna Sade para Todos tio Ano 2000, assumindo
uma proposta poltica de extenso da cobertura dos
servios bsicos de sade com base em sistemas simpli-
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44 -A Crise da Sade Pblica
lcados dc assistncia sade (WHO, 1995a). No ano
seguinte (1978), em Alma Ata, a Conferncia Interna
cional sobre Ateno Primria Sade, promovida
pela OMS, reafirma a sade como direito do homem,
sob a responsabilidade poltica dos governos, e reconhece
a sua determinao intersetorial (WHO, 1995). Esta
belece tambm a Ateno Primria Sade como
estratgia privilegiada de operacionalizao das metasda SPT-2000, implicitamente incorporando elementos
do discurso da Sade Comunitria. Mais tarde, j na
dcada dc 80, com o rtulo atualizado dc SILOS, Sis
temas Locais de Sade e dentro de um modelo distri-
talizado com base em nveis hierarquizados de
ateno, a retrica da sade comunitria integra-se sprimeiras iniciativas de reforma setorial da sade nos
pases subdesenvolvidos (Paim, 1998).
A Promoo da Sade
Em 1974, no Canad, o documento conhecido como
Relatrio Lalonde (Dener, 1988) define as bases de um
movimento pela Promoo da Sade, trazendo como
consigna bsica adicionar no s anos vida mas vida
aos anos. Estabelece o modelo do campo da sade
composto por quatro plos: a biologia humana queinclui a maturidade e o envelhecimento, sistemas inter
nos complexos e herana gentica; o sistema dc organi
zao dos servios, contemplando os componentes
recuperao, curativo c preventivo; o ambiente, que
envolve o social, o psicolgico c o fsico; e, finalmente,
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Movimentos no campo social da Sade - -45
o estilo de vida,no qual podem ser considerados a par
ticipao no emprego e riscos ocupacionais, os padres
de consumo e os riscos das atividades de lazer. Prope
como estratgias considerar a gravidade dos problemas
de sade, a prioridade dos tomadores de deciso, a
disponibilidade de solues efetivas com resultados
mensurveis, os custos e as iniciativas federais cen
tradas na promoo da sade, na regulao, napesquisa, na eficincia da ateno sade e no esta
belecimento de objetivos.
Com base nestes princpios e estratgias, c no contex
to do que veio a se chamar de rvolution tranquile,
implanta-se em vrias provncias do Canad uma rede
de centros comunitrios de sade c servios sociais,
efetivamente integrados a um sistema de medicina
socializada, que representa uma sntese dos modelos
de ateno precedentes. De acordo com Desrosicrs
(1996:22), esta reforma do sistema de sade canadense
teve como objetivos:
reun ir os servios sociais e os servios de sade sob a autori
dade de um mesmo ministrio chamado de Ministrio dos
Assuntos Sociais, nos mesmos estabelecimentos em mbito
local, os CLS C [Centros Locais de Servios Comunitrios],
com uma equipe pluridisciplinar composta de agentes sani
trios e sociais; favorecer uma medicina global pela prtica
nos CLSC e atravs de laos estreitos entre clnicos c espe
cialistas da sade pblica no mbito dos hospitais; enfim,
assegurar uma participao importante dos cidados na
administrao dos servios de sade.
A Carta de Ottawa (Canad, 1986), documento oficial
que institucionaliza o modelo canadense, define os
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principais elementos discursivos do movimento da
Promoo da Sade: a) integrao da sade como parte
de polticas pblicas saudveis; b) atuao da comu
nidade na gesto do sistema de sade; c) reorientao
dos sistemas de sade; d) nfase na mudana dos esti
los de vida. Cronologicamente, o movimento corres
ponde ao desmantelamento do National Health
Serviceda Inglaterra, na conjuntura do Tatcherismo, e
reforma dos sistemas de sade e seguridade social dos
pases escandinavos, face ao recuo da social-democra
cia no continente europeu, o que restringe o seu poten
cial de expanso mesmo entre os pases desenvolvidos.
Nos Estados Unidos, na dcada de 80, desenvolvem-sc
programas acadmicos levemente inspirados por estemovimento, sob a sigla HPDP (Health Promotion
Disease Prevention), indicando a clara opo pela
proposta mnima de mudana de estilo de vida por
meio de programas de modificao de comportamen
tos considerados de risco (como hbito de fumar, dieta,
sedentarismo, etc.). No que se refere absoro do discurso da promoo da sade pelos organismos interna
cionais, podemos referir o Projeto Cidades Saudveis
da OMS, lanado com bastante publicidade em 1986
(WHO, 1995). Vale ainda mencionar que o Banco
Mundial, em conjunto com a Organizao Mundial da
Sade, patrocina em 1991 uma atualizao dos princ
pios do movimento da Promoo da Sade, nele incor
porando a questo do desenvolvimento econmico c
social sustentado como importante pauta extra-setorial
para o campo da sade. Alm disso, no contexto da
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Movim entos no campo social da Sade -47
Conferncia Mundial pelo Meio Ambiente, promovida
pela ONU no Rio de Janeiro e conhecida como ECO
92, a Sade Ambiental foi definida como prioridade
social para a promoo da sade, dentro da clebre
Agenda 21 (WHO, 1995; 1995a).
A essa altura, a receita neoliberal adotada pelos
organismos financeiros internacionais e imposta aos
pases que pretendem inserir-se na nova ordem docapitalismo mundial sobretudo depois da derrocada do
Leste Europeu e dos impasses do socialismo real. Jus
tamente nesse contexto a OPS promove, a partir de
1990, um debate sobre a crise da Sade Pblica privile
giando uma reflexo sobre os conceitos, teorias,
metodologias, elementos explicativos, determinantes
estruturais, repercusses operacionais e nas prticas de
sade, e perspectivas futuras para a Sade Pblica nas
suas relaes com o Estado c a sociedade (Ferreira,
1992). Paralelamente, a OMS patrocina uma reflexo
articulada sobre as bases de uma Nova Sade Pbli
ca, organizando um conjunto de seminrios c reunies
sobre formao avanada, liderana institucional, teoria
c prtica cm Sade Pblica (WHO, 1995a).
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CAPTULO 3
A CRISE DA SADE E A NOVA SADE PBLICA
Presentemente, diversos pases realizam reformaseconmicas, polticas e administrativas buscando assegurar algum espao na nova configurao dos mercadosmundiais. A reforma do Estado, ainda que no suficicn-temente explicitada, coloca-se na agenda poltica de go
vernos com diferentes espectros poltico-ideolgicos e,nesse particular, emergem propostas setoriais como c ocaso da sade. Na Amrica Latina, muitas das reformasdo setor sade so apoiadas por organismos financeirosinternacionais, a exemplo do Banco Mundial, cujospressupostos c diretrizes divergem bastante dos projetos
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originais dc reforma sanitria (Paim, 1998). Portanto, c
necessrio discernir os contedos substantivos de cada
um dos projetos para que, por exemplo, seja possvelcompreender as especificidades do sistema dc sade
canadense em comparao com o projeto Clinton para a
atualizao do complexo de servios de sade
estadunidense, do mesmo modo que se faz necessrio
considerar as diferenas entre a organizao dos servios
dc sade em Cuba, com nfase na ateno primria, c as
propostas dc reforma setorial da Bolvia e da Colmbia.
Respostas pragmticas podem ser visualizadas, no caso
da Amrica Latina, atravs das propostas do Banco
Mundial que valorizam a eficincia c a eficcia em
detrimento da eqidade mediante polticas dc ajustemacroeconmico e, no setor sade, atravs da foca-
lizao c da cesta bsica de servios (Banco Mundial,
1993). Assim, muitas reformas setoriais no chegam a
ser concebidas nem debatidas pelas escolas de sade
pblica ou organismos assemelhados e, em certos
casos, passam ao largo dos prprios ministrios da
sade, sendo negociadas diretamente entre as agncias
financeiras e a rea econmica dos governos.
Qualquer reflexo sobre a Nova Sade Pblica que
procure examinar, criticamente, os determinantes da
crise da Sade Pblica, passa a ser identificada pejorativamente como assunto dc sanitaristas, isto , de esco
las c pesquisadores do campo da sade bem como de
funcionrios pblicos com responsabilidades operativas.
A correlao de foras polticas e institucionais vigente
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mantm afastados do cenrio das reformas de vrios
pases no s os trabalhadores do setor como especial
mente os distintos segmentos da populao que sero
objeto das reformas. As conquistas democrticas
alcanadas pelos povos latino-americanos e caribenhos,
especialmente a partir da dcada de 80, ainda no
foram suficientes para garantir a publicizao (isto :
controle pblico das polticas e prticas institucionais
dos respectivos Estados) dos seus aparelhos e mesmo
das suas burocracias.
A linha mais pragmtica, prescritiva e intervencionista
adotada por um painel convocado pela OMS para dis
cutir a Nova Sade Pblica (WHO, 1995a), em con
sonncia com as vises de representantes europeus eamericanos da Sade Pblica, no parece resolver os
impasses identificados na regio das Amricas, particu
larmente na Amrica Latina e Caribe. Como integram
sistemas relativamcnte estabilizados cm que as regras
de jogo mudam lentamentc, para eles a crise no
estrutural e representaria apenas uma dada interpre
tao de sanitaristas. Propem assim a agregao de
novos temas e habilidades ao campo da Sade Pblica
ou ao seu mbito de prticas e de instituies. Todavia,
este enfoque pode resultar em reformas curriculares
das respectivas escolas ou em reformas administrativasnas instituies de sade mas, seguramente, insufi
ciente para implementar uma poltica de eqidadc,
solidariedade e sade tal como prope a prpria OMS
(WHO, 1995).
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Conseqentemcnte, as instituies acadmicas e de
servios em sade no podem ignorar o movimento
que se engendra em torno da formulao de uma
poltica global de sade como componente diretivo do
corpo doutrinrio elaborado em funo de uma pro
posta de Renovao da Sade para Todos (RSPT).
Desse modo, podero reatualizar suas concepes e
prticas acerca da Sade Pblica e, simultaneamente,estaro em condies de explorar oportunidades de
dilogo e de construo de alianas entre organizaes
no-governamentais e organismos de governo para o
enfrentamento dos problemas de sade. Entretanto,
mais que dilogos e alianas, as instituies acadmicas
e de servios podem produzir novos conceitos, teorias eprticas que, num processo de interfertilizao sero
capazes de influir na prpria doutrina da RSPT e na
poltica de sade a ser concebida quando se celebra 20
anos de Alma-Ata.
Diante das dificuldades bvias de se dispor de uma
concepo convergente sobre a Nova Sade Pblica,
faz-se pertinente sistematizar algumas questes pre
liminares. Como os sujeitos que atenderam convo
cao para este importante debate vcm o campo social
da sade e o perfil do profissional que atuar nos dis
tintos mbitos de ao? Que contedos devem ser privilegiados? Se o campo de conhecimento da Sade
Pblica to amplo que no comporta um tipo nico
de profissional para atuar nas instituies e servios,
qual o ncleo bsico de conhecimentos e habilidades
que dever compor o novo perfil profissional num con
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texto que incorpora novos atores para o seu mbito de
ao, exigindo capacidade de negociao, agir comu
nicativo c administrao de conhecimentos?
Iniciativas recentes da OPS (Paim, 1992) visando li
derana e formao avanadas em Sade Pblica
possibilitaram uma discusso ampliada dessa questo
na Regio das Amricas, incluindo, portanto, o
Canad, os EUA e os pases do Caribe. Assim, noperodo 1987-1988, proccdcu-se anlise da infraestru-
tura privilegiando as seguintes reas crticas: polticas
pblicas, sistemas de informao e desenvolvimento da
epidemiologia, economia e financiamento, recursos
humanos em sade, desenvolvimento tecnolgico e sis
temas de servios de sade. Nos anos 1989-1990 foram
realizados seminrios para a anlise da prestao de
servios no que diz respeito recuperao da sade,
preveno de doenas e promoo da sade. Final
mente, no perodo 1991-1995, a OPS encaminhou um
ambicioso projeto para reflexo e crtica sobre a teoria
c a prtica da Sade Pblica,(OPS, s/d) tendo como
referncia os textos bsicos e a reunio do Grupo de
Consulta ocorrida cm New Orleans, em 1991, culmi
nando com a Ia Conferncia Panamericana de Edu
cao em Sade Pblica, realizada no Rio de Janeiro
em 1994 (ALAESIJ 1994).
Esta breve resenha sugere um clima estimulante de
efervescncia terica e crtica, propiciando pautas de
ao capazes de iniciar um processo de modernizao
conceituai para sustentar uma nova prtica da Sade
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Pblica. Segundo Rodriguez (1994), para esta nova
prtica, necessita-se de novos profissionais, capazes decumprir distintos papis, desde uma funo histrico-
poltica de
resgatar, do prprio processo histrico de construo
social da sade, os conhecimentos, xitos e fracassos da
humanidade cm sua luta pela cidadania c bem-estar at
uma funo agregadora de valor atravs da produo e
gesto do conhecimento cientfico-tecnolgico; desde
uma funo de gerncia estratgica de recursos escassos e
mediador estratgico das relaes entre as necessidades c
problem as de sade e as decises polticas at um a funo
de advocacy,utilizando o conhe cimento como instrum en
to de denncia, promovendo a mobilizao crescente da
sociedade cm demanda de realizao do seu potencial de
sade c exerccio do direito de cidadania.
Nessa perspectiva, as Escolas de Sade Pblica deve
riam fortalecer o seu processo de independizacin. A
I Conferncia Panamericana sobre Educao em
Sade Pblica (ALAESF| 1994) props o aprofundamento do debate em torno da transformao da estru
tura organizacional das respectivas escolas, con
siderando a pertinncia da desvinculao administrati
va em relao s faculdades de medicina. De fato, o
conceito de espao transdisciplinar tende a desestru-
turar a idia de faculdade ou escola como organizaoauto-suficiente. Da a proposta de criao de espaos
de excelncia que, semelhana das novas organiza
es empresariais, funcionem como "redes institiionais
agregadoras de valor" (Rodriguez, 1994). A idia bsica
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que se desenvolvam processos de formao e capaci
tao sistemticos, criativos e inovadores, cujos eixos
fundamentais sero a investigao e a articulao com
os servios de sade. A produo de lideranas setoriais
e institucionais passa a constituir um dos propsitos
bsicos das novas instituies acadmicas:
Liderana setorial em sade significa a capacidade do
setor de transfo rm ar a sade no referente bsico para a formulao de todas as outras polticas pb licas. A poltica de
sade condicionaria, cm grande parte, no s comporta
mentos individuais, mas tambm aes coletivas, sociais e
polticas. A liderana institucional c defin ida como a
capacidade que possui uma organizao de irradiar
valores, gerar conhecimento c promover compromisso
com esses valores, por parte da populao e de outrasorganizaes. Uma organizao lder produz diferenas
fundamentais na comunidade (...). Capacitar-sc para a
liderana , portanto, um produto de aquisio de novos
valores c habilidades, como o desenvolvimento de novos
significados da misso e da filosofia institucionais. Como
o objetivo da liderana promover com prom issos pblicos
com ideais bsicos, o setor ou a instituio lder se
reconhece no s pela qualidade de suas aes, mas prin-
cipalmcntc pelo compromisso que gera nos setores, insti
tuies ou atores que lidera. (OPS, 1994)
Podemos destacar, no caso do desenvolvimento da
Sade Pblica na dcada de 90, o seu carter de movi
mento ideolgico, seja utilizando o seu brao acadmi
co (ALAESP por exemplo) seja acionando o seu brao
poltico-ideolgico (OPS). Assim, a reflexo sobre as
possibilidades de incorporao de novos paradigmas
inscreve-se, embora no integralmente, no captulo das
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polticas dc sade. As inflexes produzidas no campo do
saber encontam-se subordinadas s modificaes no
mbito das prticas, ainda que inovaes conceituais c
desenvolvimentos disciplinares, cientficos c tecnolgi
cos possam afetar a formulao e a implementao de
algumas dessas polticas. No se trata de uma determi
nao mecnica das polticas sobre o campo mas, em
ltima anlise, uma decisiva influncia, j que possvel conceber situaes em que produtos desse campo do
saber exercem alteraes, ainda que parciais, sobre a
organizao das prticas de sade.
As modificaes do panorama poltico e social do
mundo e da situao dc sade (principalmente a falta
de mudanas esperadas) pem em cheque as premissas
c previses dos antigos modelos. Ou talvez o problema
seja mais profundo, no nvel no dos modelos c sim do
paradigma cientfico que fundamenta esse campo de
prtica social c tcnica.
Frente aos elementos discursivos e extradiscursivosligados constatao de um esgotamento dos para
digmas vigentes, desafiados pela crise da Sade
Pblica, surgem demandas por novos paradig-
mas(Ncayiyana et al, 1995). No particular dos ele
mentos discursivos, cabe destacar os pressupostos de
que o desenvolvimento da sade supe a excluso da
doena e que a cincia e a tcnica dispem de um
potencial inesgotvel para superar a enfermidade.
Como elementos extradiscursivos do debate encon-
tram-se as restries econmicas que comprometem
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a capacidade do Estado suportar, a longo prazo, o
custo crescente da ateno sade, particularmente a
assistncia mdico-hospitalar, alm do fato de que
esta assistncia no garante melhor nvel de bem-
estar ou produtividade social. Reconhece-se, ainda, a
crescente iniqidade dos determinantes da sade
(WHO, 1995), seja no nvel singular, relativo
qualidade do ambiente social, seja no nvel geral,referente s disparidades da distribuio de renda c
poder entre os segmentos sociais.
Espera-se assim que, ao se debater a reforma do setor
sade, seja implementada uma prxis voltada para os
determinantes de sade a partir da qual se poderia
construir um novo paradigma da sade.
Em concluso, urgente e necessrio discutir a
questo da sade no terreno pblico-coletivo-social
e as propostas de ao subscqcntes. No caso espec
fico da Amrica Latina, a emergncia nos ltimos
20 anos de um campo que se designou como SadeColetiva (Donnangclo, 1983) permite a identificao
de pontos de encontro com os movimentos de reno
vao da Sade Pblica institucionalizada, seja
como campo cientfico, seja como mbito de prti
cas, c mesmo como atividade profissional. Com
efeito, as propostas de consolidao do campo da
sade como forma de superao da chamada crise
da Sade Pblica podem significar uma oportu
nidade para efetivamente incorporar o complexo
promoo-sade-doena-cuidado em uma nova
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perspectiva paradigmtica, mediante polticas pbli
cas saudveis, e participao mais efetiva da sociedade
nas questes de vida, sade, sofrimento c morte.
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CAPTULO 4
SADE COLETIVA: CAMPO CIENTFICO EMBITO DE PRTICAS
Como ponto de partida, podemos entender a SadeColetiva como campo cientfico (Ribeiro, 1991), onde
se produzem saberes e conhecimentos acerca do objetosade e onde operam distintas disciplinas que o contemplam sob vrios ngulos; e como mbito de prticas (Paim, 1992), onde se realizam aes em diferentes organizaes e instituies por diversos agentes(especializados ou no) dentro e fora do espao con-
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vcncionalmentc reconhecido como setor sade.
Assumir a Sade Coletiva como um campo cientfico
implica considerar alguns problemas para reflexo.
Trata-se, efetivamente, de um campo novo ou de um
novo paradigma dentro do campo da Sade Pblica?
Quais os saberes que do suporte ao campo e, conse-
qentemente, s prticas dos seus atores sociais?
Quais os obstculos epistemolgicos que dificultam seu desenvolvimento cientfico? Quais os
obstculos da prxis perante a reorganizao dos
processos produtivos, a sociedade da informao, a
reforma do Estado e a suas novas relaes com a
sociedade?
Algumas respostas provisrias sero apresentadas neste
captulo, ainda que um aprofundamento sobre a
temtica exija texto de maior flego.
Originalmente, o marco conceituaf proposto para
orientar o ensino, a pesquisa e a extenso em Sade
Coletiva no caso brasileiro foi composto pelosseguintes pressupostos bsicos:
a) A Sade, enquanto estado vital, setor de produo e
campo do saber, est articulada estrutura da sociedade
atravs das suas instncias econmica c poltico-ideolgica,
possuindo, portanto , uma historicidade;
b) As aes de sade (promoo, pro teo, recuperao,
reabilitao) constituem uma prtica social c trazem con
sigo as influncias do relacionamento dos grupos sociais;
- Garcia (1971) define marco conceituai como a apresentao de um fenmeno ou acon
tccimcnto a tendend o s as suas linhas ou caractersticas mais significativas, de m odo a facili
tar um certo nvel de generalidades que o torna aplicvcl a situaes distintas dentro de uma
rea semelhante".
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Sade Coletiva: campo cientfico c m bito de prticas -61
c) O objeto da Sade Coletiva con strud o nos limites do
biolgico c do social c com preende a investigao dos
determinantes da produo social das doenas c da organizao dos servios de sade, c o estudo da historicidade
do saber e das prticas sobre os mesmos. Nesse sentido, o
carter intcrdisciplinar do objeto sugere uma integrao
no plano do conhecimento c no no plano da estratgia,
de reunir profissionais com mltiplas formaes; (...)
f) O conhecimento no se d pelo contato com a reali
dade, mas pela compreenso das suas leis e pelo compro
metimento com as foras capazes de transform-la
(Paim, 1982:18-19).
No obstante a adeso que tais pressupostos possam,
ainda hoje, estimular, cabe ressaltar que o desenvolvi
mento da Sade Coletiva, como rea do saber e campode prticas nos ltimos anos, permite recontextualizar
alguns desses pressupostos. Assim, a definio de
objeto acima apresentada sugere o entendimento da
Sade Coletiva como cincia ou disciplina cientfica.
Em um momento posterior, Fleury (1985) chega a
definir Sade Coletiva como rea de produo deconhecimentos que tem como objeto as prticas e os
saberes em sade, referidos ao coletivo enquanto
campo estruturado de relaes sociais onde a doena
adquire significao.
Entretanto, o trabalho terico-cpistemolgicoempreendido mais rccentcmcnte aponta a Sade Cole
tiva como um campo interdisciplinar e no propria
mente como uma disciplina cientfica, muito menos
uma cincia ou especialidade mdica (Ribeiro, 1991).
Cumpre ressaltar as influncias mtuas entre esse
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desenvolvimento e os movimentos pela democratiza
o das formaes sociais latino-americanas, especial-
mente os processos de reforma sanitria desencadeados
cm alguns pases da regio. De fato, o marco conceituai
da Sade Coletiva, tal como vem sendo construdo a
partir da dcada de 70, resulta, de um lado, da crtica
aos diferentes movimentos e projetos de reforma em
sade ocorridos nos pases capitalistas e, de outro, da
elaborao terico-cpistcmolgica e da produo cien
tfica, articuladas s prticas sociais.
A constituio da Sade Coletiva, tendo cm conta os
seus fecundos dilogos com a Sade Publica e com a
Medicina Social, tal como vem se concretizando nas
duas ltimas dcadas, permite uma delimitao com-prccnsivclmentc provisria desse campo de conheci
mento e mbito de prticas. Como campo de conheci
mento, a Sade Coletiva contribui com o estudo do
fenmeno sade/doena cm populaes; investiga a
produo e distribuio das doenas na sociedade como
processos de produo e reproduo social; analisa as
prticas de sade (processo de trabalho) na sua articu
lao com as demais prticas sociais; procura com
preender, enfim, as formas com que a sociedade identi
fica suas necessidades e problemas de sade, busca sua
explicao e se organiza para enfrent-los.Na Amrica Latina, e no Brasil em particular, realiza-
se nas duas ltimas dcadas um trabalho de construo
de novas teorias, enfoques e mtodos da epidemiologia
c da planificao em sade, alm de investigaes
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Sade Coletiva: campo cientfico c m bito de prticas -63
concretas buscando a aplicao de mtodos das cin
cias sociais no campo da Sade Coletiva (Canesqui,
1997). Desse esforo de reconstruo terica, tmemergido novos objetos de conhecimento e de inter
veno, como os casos da comunicao social em
sade e da vigilncia em sade. Cabe referir o desen
volvimento cientfico e tecnolgico do campo medi
ante importantes contribuies nas reas de Epidemi-
ologia Social (Laurell, 1994), Polticas e Prticas de
Sade (Schraiber, 1995), Planificao em Sade
(Testa, 1995), e Epistemologia e Metodologia em
Sade (Samaja, 1994).
A Sade Coletiva pode ser considerada como um
campo de conhecimento de natureza interdisciplinarcujas disciplinas bsicas so a epidemiologia, o plane-
jamento/administrao de sade e as cincias sociais
em sade. Contempla o desenvolvimento de atividades
de investigao sobre o estado sanitrio da populao,
a natureza das polticas de sade, a relao entre os
processos de trabalho e doenas ou agravos, bem como
as intervenes de grupos e classes sociais sobre a
questo sanitria (Ribeiro, 1991). So disciplinas com
plementares do campo a estatstica, a demografia, a
geografia, a clnica, a gentica, as cincias biomdicas
bsicas etc. Esta rea do saber fundamenta um mbito
de prticas transdisciplinar, multiprofissional, inter-
institucional e transetorial.
A Sade Coletiva envolve determinadas prticas que
tomam como objeto as necessidades sociais de sade,
como instrumentos de trabalho distintos saberes, disci
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plinas, tecnologias materiais c no-materiais, e como
atividades intervenes centradas nos grupos sociais e
no ambiente, independentemente do tipo de profis
sional e do modelo de institucionalizao. Abrange,
portanto, um
conjunto articulado dc prticas tcnicas, cientficas, cul
turais, ideolgicas, polticas e econmicas, desenvolvidas
no mbito acadmico, nas instituies de sade, nas orga
nizaes da sociedade civil e nos institutos de pesquisa,
informadas por distintas correntes dc pensamento resul
tantes da adeso ou crtica aos diversos projetos dc refor
ma em sade (Paim, 1992).
Contudo, mais do que definies formais, a Sade
Coletiva requer uma compreenso dos desafios no
presente e no futuro que transcendam o campo institu
cional e o tipo de profissional convencionalmcntc
reconhecidos como da Sade Pblica. A possibilidade
de redimensionar objeto, instrumentos de trabalho e
atividades, considerando sua articulao com a totali
dade social reabre alternativas metodolgicas c tcnicaspara pensar c atuar no campo da Sade Coletiva nesse
trnsito para o novo milnio. Conforme destacado
cm uma das fecundas contribuies a esse debate,
os avanos da epidemiologia crtica, a cpistcmologia
poltica, os novos aportes das cincias sociais, a planifi
cao estratgica, a comunicao social e a educao
popular tm consti tu do bases fundam entais para a elabo
rao de novos instrumentos de docncia, investigao c
cooperao com as organizaes c instituies da
sociedade civil c do Estado. A prpria experincia de
resistncia c luta cm sade por parte dc nosso povo nos
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tem permitido encontrar cm nossa histria e cultura os
elementos fundamentais para o avano de nosso pensa
mento c ao(...). No somente se necessitam conhecimentos para apreender a realidade, mas tambm se deve
realizar uma aproximao gnoseolgica distinta com vista
a encontrar na realidade - ademais de conhecimentos -
saberes, desejos, sentidos, projees de luta e mudana,
que constituem tambm aspectos fundamentais da ao
humana (Escuela de Salud Publica/OPS,1993).
A superao do biologismo dominante, da natura
lizao da vida social, da sua submisso Clnica e
da sua dependncia ao modelo mdico hegemnico -
cuja expresso institucional no mbito das universi
dades a subordinao funcional, poltica c adminis
trativa s faculdades de medicina - representam elementos significativos para o marco conceituai da
Sade Coletiva. E preciso, portanto, identificar uma
nova positividade na articulao das dimenses
objetiva e subjetiva no campo social da sade. A
retomada da problemtica do sujeito no significa a
negao das estruturas, do mesmo modo que adefinio de um marco conceituai para a Sade Cole
tiva no implica a adoo de um quadro terico de
referncia exclusivo e excludente. Isto porque
tanto o mundo natural, quanto o mundo social se encon
tram determinados e em constante devir, porm sua
diferena radica cm que no segundo o conhecimento se
transforma cm conscincia c sentido de necessidade c
necessidade de ao qu e encobre uma potencialidade para
a ao; ento, necessrio pensar que para poder estudar
o processo sade/enfermidade se requer considerar os
sujeitos sos e enfermos no unicamente para explic-los
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mas sim para comprccndc-los c conjuntamente construir
potencialidades de ao (Granda, 1994).
Conseqentemente, a anlise das relaes entre as
cincias sociais, a vida cotidiana c as cincias natu
rais, ao tempo em que examina a constituio dos
sujeitos sociais, pode localizar essa nova positivi-
dade, tanto na militncia sociopoltica, quanto na
incorporao tecnolgica (Testa, 1997). A valorizaoda dimenso subjetiva das prticas de sade, das
vivncias dos usurios e trabalhadores do setor tem
proporcionado espaos de comunicao e dilogo
com outros saberes c prticas abrindo novas perspec
tivas de reflexo e de ao. A reviso crtica de algu
mas proposies tais como campo de sade (Dever,1988), promoo da sade (Buss, 2000), vigilncia
em sade (Mendes, 1993), confere novos sentidos
para as reflexes sobre a Sade Coletiva no conti
nente. O trecho a seguir ilustra as potencialidades de
tais redefinies:
A variedade c o carter frequentemente restrito e restritivo
das conceptualizacs do colctivo/social no invalidam o
fato de que as prticas sanitrias se viram constantemente
invadidas pela necessidade de construo do social como
objeto de anlise c como campo de interveno. Nem devem
induzir suposio de que a vida social concreta acabe por
tornar-se mero produto dessas opes conceituais. Elairromper, certamentc, sob outras formas, tambm no
campo do saber, quando as malhas conceituais e sociais se
revelarem estreitas face concretudc dos processos sociais
(Donnangclo, 1983).
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Sade Coletiva: campo cientifico e mbito de prticas- 67
A discusso entre as finalidades das prticas de sade e o
seu objeto, meios de trabalho e advidades, bem como a
anlise das relaes tcnicas e sociais do trabalho em
sade como via de aproximao entre os modelos assis-
tenciais e de gesto, constituem desafios tericos e prti-
cos para a Sade Coletiva. Isto resulta de uma ampliao
dos objetos de interveno, a partr da noo de pre
veno e ateno primria para os conceitos de qualidade
de vida e promoo da sade, como observam Schraiber
& Mcndes-Gonalves (1996) no seguinte trecho:
a ateno primria vem progressivamente se tornando um
complexo assistcncial qu e envolve difceis definies de tec
nologia apropriada. No s a medicina desenvolveu-sc
muito cm seus diagnsticos precoces e definies de riscosgentico-familiares, como epidemiologicamcntc a definio
de situao de risco tambm se complexificou. Alm disso, a
dimenso de aes que promovem diretamente a sade,
mais que aes de restaurao ou preveno, tornaram a
promoo sade um conceito a ser melhor delimitado.
Esta noo, mal esboada nos anos 50, embora j presente
enquanto inteno, traz novas questes para a assistncia,como por exemplo uma melhor definio do conceito de
qualidade de vida.
O fenmeno sade tem sido tambm concebido como
expresso do modo de vida(estilo e condies de vida),
capaz de explicar, juntamente com as condies de
trabalho e do meio ambiente, o perfil epidemiolgicoda populao (Possas, 1989). O estudo da situao de
sade, segundo condies de vida, tem privilegiado