a cruz e o itxe(k)ò

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Page 1: A cruz e o itxe(k)ò

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Page 2: A cruz e o itxe(k)ò

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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia

Monografia de Graduação

A cruz e o itxe(k)ò:

Mestiçagem, mistura e ralação entre os Karajá de Buridina (Aruanã-GO)

Monografia apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília como um dos pré-requisitos para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia.

________________________________________________________ Banca examinadora:

________________

Drª. Marcela Stockler Coelho de Souza (orientadora)

________________

Drª. Karenina Vieira Andrade

________________________________________________________

Eduardo Soares Nunes

Brasília, novembro de 2009.

Page 3: A cruz e o itxe(k)ò

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Resumo

Buridina é uma aldeia karajá no centro de uma cidade (Aruanã, GO). Seus habitantes há

mais de três décadas iniciaram um processo de intercasamento com a população regional, que

até hoje segue seu curso. Desde a década de 1960, a aldeia se viu reduzida a um pequeno

grupo de pessoas ligadas entre si por estreitos laços de parentesco, e passou a ser reconhecida

por seus parentes de outras aldeias por sua relação privilegiada de conhecimento e

experimentação do mundo dos brancos. Percorrendo a história da aldeia, tento aglutinar

indícios de que a experiência urbana dos Karajá de Buridina é uma experiência do mundo tori

(não-indígena). “Virar branco” é parte fundamental da vida cotidiana destes indígenas, embora

essa seja apenas metade da questão. “Os dois lados [as ‘culturas’ ou perspectivas indígena e

não-indígena] são importantes”, dizem constantemente. Para tudo, em Buridina, há dois

‘lados’. É sobre essa duplicidade que esta monografia se debruça. Partindo dos casamentos

entre índios e não-índios, dos filhos mestiços gerados por eles e das formas de cálculo e

classificação destes últimos, o objetivo é tentar precisar a forma que a relação entre os ‘dois

lados’, as perspectivas indígena e não-indígena, assume para os Karajá desta aldeia. O mestiço,

ou mais precisamente o corpo mestiço, argumento, é o modelo desta duplicidade, que,

entretanto, não se restringe a eles. Se a totalidade da população de Buridina não é mestiça,

todos são misturados, pessoas de corpos duplos. O pano de fundo deste trabalho, importante

dizer, é uma reflexão sobre a presença indígena nas cidades, sobre as experiências e relações

que caracterizam esta situação.

Page 4: A cruz e o itxe(k)ò

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Abstract

Buridina is a karajá village located in the very center of a city (Aruanã, GO). More than

three decades ago, its inhabitants have started a process of intermarriage with the local non-

indigenous populations, that up to theese days haven’t stopped occurring. In the 1960’s, the

village was reduced to a small group of people connected to each other by very close kinship

ties. Up to then, Buridina is recognized by its relatives from other villages in the Bananal Island

for its privileged relation of knowledge and experimentation of the non-indigenous world.

Going through the history of the village, I try to put together evidences that the urban

experience of the Karajá of Buridina is an experience of the tori (non-indigenous) world.

“Turning white” (tori) is a basic feature of the daily life of these indigenous, although this is

only half of the matter. “The two sides [the indigenous or non-indigenous ‘cultures’ or

perspectives] are important”, they constantly say. Everything in Buridina, we may say, has two

‘sides’. It is over this duplicity that this monograph focuses itself. Using the marriages between

indians and non-indians, the mestiço children generated by them and the forms of calculating

and classification of these children as start points, my main effort is a trial to precise the form

that the relation between ‘two sides’, the indigenous and non-indigenous perspectives,

assumes for the Karajá of this village. The mestiço, or the mestiço’s body, most precisely, I

argue, is the model of this duplicity, that nevertheless is not restricted to them. If the totality

of Buridina inhabitants is not mestiça, they are all mixed people, misturados, people of double

bodies. The background of this work, it’s important to say, is a reflection on the presence of

indigenous populations in the cities, on the experiences and relations that characterize this

situation.

Page 5: A cruz e o itxe(k)ò

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Índice

Agradecimentos................................................................................................................... i

Lista de diagramas, tabelas, desenhos, croquis e mapas................................................... iii

Índice de fotos.................................................................................................................... iv

Convenções sobre a grafia da língua indígena................................................................... vi

Introdução.......................................................................................................................... 01

O grupo Karajá....................................................................................................... 04 Aruanã, Goiás.........................................................................................................05 A Terra Indígena e a aldeia.................................................................................... 13 Apresentação......................................................................................................... 23

Capítulo I – Aldeias urbanas ou cidades indígenas?........................................................... 26

“O povo Karajá acredita muito que saiu do fundo do rio”.................................... 28 Recusando a lógica da terminologia...................................................................... 33 Lugares indígenas.................................................................................................. 40

Capítulo II – Histórias.......................................................................................................... 43

Buridina-my ihetxi’u ijy(k)y: a aldeia grande.......................................................... 45 O fim da aldeia....................................................................................................... 49 A reestruturação.................................................................................................... 54 Casamentos........................................................................................................... 57 Tori hãwa mahãdu................................................................................................. 59

Capítulo III – Mestiçagem, mistura e relação: os muitos ‘dois lados’................................. 75

Os dois lados: um sistema de perspectivas insolúveis........................................... 75 Casamentos........................................................................................................... 80 Vai misturando, vai acabando: mas “a mistura não tem problema, não”............. 91 Da mestiçagem à mistura...................................................................................... 95 Uma aldeia Karajá.................................................................................................. 98 Os dois lados: uma aldeia misturada..................................................................... 101

Xamanismo: experimentando perspectivas Outras............................................... 110 A cruz e o itxe(k)ò: de corpos duplos..................................................................... 114

Epílogo................................................................................................................................ 121

Manter a raiz forte: Identidade como desequilíbrio..............................................121 Buridina mahãdu, simplesmente........................................................................... 125

De pessoas misturadas.......................................................................................... 126

Pelas ruas da cidade.............................................................................................. 128

Bibliografia.......................................................................................................................... 131

Page 6: A cruz e o itxe(k)ò

i

Agradecimentos

Aos meus pais, pelo amor e apoio incondicional.

Ao CNPq, pela bolsa de Iniciação Científica sem a qual não teria sido possível realizar

trabalho de campo.

Ao Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA), por ter me autorizado a

utilizar três fotos de seu acervo. E a Marlene Ossami de Moura, que me respondeu

prontamente e fez a gentileza de encaminhar meu pedido às pessoas responsáveis.

A Manuel Ferreira de Lima Filho, pela receptividade em Goiânia.

A Helena Schiel, pelo diálogo e pela gentileza de ter me passado seu ensaio inédito.

A Cristiane Portela, por ter me passado uma cópia de sua dissertação e pelo material

cedido.

Ao professor Stephen Grant Baines, por ter aceitado como bolsista de Iniciação

Científica, viabilizando, assim, minha pesquisa de campo. E pelo incentivo de sempre.

Ao professor José Antônio Vieira Pimenta, que, quando eu ainda era apenas um novato,

teve paciência com meus devaneios e a boa vontade de me ajudar naquele início de

caminhada. A ele devo o começo de tudo.

A professora Antonádia Borges, a quem, indiretamente, devo uma quantidade de coisas.

A Isa (e seu pequeno), Joana (e Leo), Naira, Nina, Pedro, Igor, Ricardo, Camila, pois foi

com eles e elas que me tornei gente. Arte e muito carinho.

A Camila, também por ter desenhado para mim os croquis da aldeia e da Terra Indígena.

A “base”, Maíra, Fred, Luísa e Sara, pois base é aquilo que nos sustenta. Conversas e

muito carinho.

A Maíra, também por uma amizade que cresceu ao longo do percurso, e por nos mostrar

que pode-se perder os cabelos e agigantar a força ao invés de perdê-la.

Ao Fred (e a Ju), também por momentos de conversa e reflexão (musical) que me

ensinaram muito, sempre.

A Luísa, também pela disposição em me auxiliar em muitos momentos durante a

construção do texto e por me ajudar na escolha e edição das fotos. Sua opinião, que levo

sempre em mais alta conta, foi decisiva para as versões finais do título e da capa, dentre

muitos outros pequenos detalhes.

A Mara, pois a dedicatória já é dela.

A Érica, minha terceira irmã, e ao Vinícius, meu cunhado.

Page 7: A cruz e o itxe(k)ò

ii

As muitas pessoas que conheci ao longo do caminho (além das já citadas) e sem as quais

ele teria sido outro: Gui e Mari Bahia, Nana, Fabi, Olavo, Danilo, Robertinho, Valéria, Júnia,

Tiagão, Verônica, Andrés, Vitor, Natália Maria, Lucas, Ana Cândida, Ester, Joca, Diego...

A todas essas pessoas devo dizer que são parte de mim, cada uma a seu modo, e que o

que hoje eu sou, é aquilo que elas fizeram de mim. “Tem muita gente dentro da gente”, como

diz a Nana.

A Marcela, minha orientadora, há tanto o que agradecer que nem mesmo sei como. Por

entender o que eu falo, pela inspiração, por sempre me fazer ver que ainda há muito a

aprender e muito por fazer (não ver isso é um dos maiores perigos, pensamos eu e o Fred),

pela atenção, pela confiança... Pois eu não teria escrito este trabalho sem ela, não da mesma

maneira, não com a mesma dedicação, não com a mesma vontade, não com o mesmo prazer.

Admiração, inspiração e muito carinho.

Aos Karajá, por terem permitido que eu fizesse parte de seu cotidiano, pelas muitas

conversas, pela companhia nos shows durante a temporada turística, pelas saídas para

acampar nas praias ou na beira dos lagos, pelos peixes e pelas tartarugas. Agradeço

especialmente ao cacique Raul, ao Renan e sua família – junto a quem passei a maior parte de

meu tempo –, à Kari e ao Gedeon. A tranqüilidade e perseverança do pessoal de Buridina,

minha admiração.

Page 8: A cruz e o itxe(k)ò

iii

Lista de diagramas, tabelas, desenhos, croquis e mapas

Diagrama 01: Genealogia do assassinato........................................................................... 50

Diagrama 02: Núcleo a partir do qual a aldeia se reestruturou......................................... 52

Diagrama 03: População da aldeia na década de 1950...................................................... 55

Diagrama 04: Os cálculos da mistura................................................................................. 81

Tabela 01: Casamentos atuais............................................................................................ 87

Tabela 02: Casamentos atuais e antigos............................................................................. 87

Tabela 03: Casamentos atuais por faixa etária................................................................... 88

Tabela 04: Casamentos atuais e antigos por faixa etária................................................... 89

Desenho 01: Brasão da cidade de Aruanã.......................................................................... 06

Desenho 02: Plano de uma aldeia Karajá (a) e de Plano de Buridina (b)........................... 102

Croquis 01: Terra Indígena Karajá de Aruanã..................................................................... 15

Croquis 01: Aldeia Buridina................................................................................................ 22

Mapa 01: Brasil, estado de Goiás, Município de Aruanã.................................................... 07

Mapa 02: T.I. Karajá de Aruanã – Gleba I........................................................................... 16

Mapa 03: T.I. Karajá de Aruanã - Gleba II........................................................................... 17

Mapa 04: T.I. Karajá de Aruanã - Gleba III.......................................................................... 18

Foto 01............................................................................................................................... 69

Foto 02............................................................................................................................... 69

Foto 03............................................................................................................................... 70

Page 9: A cruz e o itxe(k)ò

iv

Índice de fotos

Aldeia e cidade................................................................................................................... 25 f01. Pesca em família. Casal espera os peixes baterem nas redes armadas na

água, enquanto seus três filhos (canto inferior esquerdo) brincam na rasura ao lado da canoa. Ao fundo, vemos a cidade.

f02. A vista da entrada da aldeia. No centro vê-se o Centro Cultural Maurehi, o “Museu”, ponto de venda do artesanato indígena. A sua esquerda está o portão principal, e à direita vemos o rio Araguaia, Berohokў.

f03. A divisão. A cerca que separa Buridina da cidade. À esquerda vemos o “ranchão” de reuniões da comunidade e algumas casas. À direita está a principal avenida da cidade, que liga o centro às mansões e pousadas de veraneio mais luxuosas.

Cacique Raul Hawa(k)a’ti dentro do Museu....................................................................... 38 f04. No primeiro plano vemos a bancada com várias peças expostas. Destaca-se

uma canoa com dois pequenos bonecos dos ijasò, os aruanãs mascarados que vêm, sempre em dupla, à aldeia dançar nos rituais. Ao fundo, o cacique Raul observa o movimento do lado de fora.

D. Iracy Hiwelaki e seu neto Eduardo Adòri....................................................................... 39 f05. A esposa do cacique segura um de seus netos no colo. Em seu rosto vemos a

tatuagem facial característica dos Karajá, um pequeno círculo abaixo do olho.

A sazonalidade do rio......................................................................................................... 51 f06. A barreira do rio em um dos portos da aldeia. Em muitos pontos da cidade

foram construídas proteções de pedra, pois o movimento sazonal das águas vinha fazendo o barranco ceder um pouco a cada ano. A marca clara indica o nível que a água atingiu durante a cheia do rio.

f07. O rio enchendo. Quando o volume das águas está subindo, durante a época das chuvas, o rio carrega tudo que está depositada em suas margem, desde gravetos e folhas até galhadas ou troncos de árvore caídos.

Renan Wassuri fazendo raheto.......................................................................................... 61 f08. O raheto, literalmente “casa (heto) da cabeça (ra)” é um grande adorno

plumário de cabeça. O sol era o raheto do grande iòlò celeste, rararesa

(Urubu Rei). Foi Kynўxiwè, grande demiurgo karajá e javaé, quem o roubou de seu dono e o colocou a percorrer diariamente o mesmo caminho, iluminando o mundo do meio, onde vivem os inў.

A temporada turística......................................................................................................... 74 f09. Show da cantora Elba Ramalho. Os turistas vindos de várias partes do país

se divertem em um dos vários shows promovidos pela prefeitura todas as sextas-feiras, sábados e domingos durante o mês de julho.

f10. O porto principal da cidade. As canoas a motor enfileiram-se à espera dos turistas que atravessam o rio para ir às praias. No canto direito vemos a rampa do porto.

f11. O movimento noturno no centro da cidade. Os turistas circulam pelo centro de Aruanã, em meio às barracas de venda de bebida, comida e artesanato, entre outras coisas.

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Page 10: A cruz e o itxe(k)ò

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f12. A cidade pela manhã. Ainda bem cedo, não há engarrafamento, mas os carros estacionados já ocupam ambos os lados da pista. O movimento na padaria (canto esquerdo) é enorme.

As crianças dançam............................................................................................................ 86

f13. O grupo de dança dos meninos. Usando os adornos tradicionais karajá, os garotos dançam e cantam músicas indígenas. A atividade lhes agrada muito, o que deixa seus pais e avós orgulhosos.

f14. Sendo pintado. Na falta de jenipapo, a avó improvisa uma pintura facial com um pincel atômico, preparando seu neto para dançar.

Tartaruga............................................................................................................................ 97 f15. A tartaruga, (k)òtuni, na língua indígena, é um alimento tradicional karajá. É

a carne mais valorizada pelo grupo e não há partes do animal que não seja aproveitada. Come-se a tartaruga assada ou prepara-se pratos tradicionais com sua carne e/ou vísceras. Os Karajá também se alimentam de seus ovos. As tartarugas possuem as mesmas categorias de idade que os humanos.

Artesanato...........................................................................................................................109 f16. Preparando um adorno plumário de cabeça. A armação, pronta, aguarda as

penas, que vão sendo amarradas a um cordão (canto superior direito).

f17. Cestaria. O início o processo de confecção de um pote de palha de buriti. Alternando-se palha crua e tingida, a espiral vai ganhando a forma do pote ao mesmo tempo em que o desenho vai aparecendo.

f18. O trançado. Uma burdura aguarda o artesão finalizar o trançado. As tiras claras verticais, retiradas da uma espécie de bambu, são amarradas horizontalmente por uma fibra escura de entrecasca, que, passando ora por cima ora por baixo das tiras de bambu, dá-se a ver ou se esconde, e o desenho é o resultado desta dinâmica.

A terra e seus usos.............................................................................................................. 120 f19. Atravessando um lago. A gleba III da Terra Indígena (MT) é quase toda

coberta por uma mata relativamente densa e alta, como vemos à beira do lago. Os indígenas já utilizaram esta área para plantar roças de vazante, utilizando a faixa de solo – à beira do rio ou de lagos – que se descobre com a baixa das águas. Hoje a principal utilização da gleba é a pesca em seus lagos.

f20. A vegetação no Aricá. A gleba II da Terra Indígena (GO) foi retomada muitos anos depois de ter sido ocupada por uma fazenda e o cerrado ter sido transformado em pasto. Hoje, apesar de o rebanho da comunidade se alimentar desta pastagem, já começam a despontar algumas árvores em meio ao capim.

f21. Beré examinando um caco de cerâmica. Atualmente, os Karajá de Buridina têm plantado suas roças no Aricá (Gleba III da T.I.). Na foto vemos Luis Carlos Sari(k)ina, o vice-cacique Beré, examinando um caco de cerâmica. Quando começou a plantar sua roça neste local, ele encontrou vários pedaços de potes e vasilhas. Seu pai, hoje já falecido, lhe disse que naquele ponto, há muito anos – pelo menos um século, estimou Beré–, se formava um acampamento de verão.

f22. Segurando cacos de cerâmica. Detalhe das mãos de Beré segurando casos de cerâmica.

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Page 11: A cruz e o itxe(k)ò

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Convenções sobre a grafia da língua indígena

As convenções que utilizei para a grafia das palavras em inўrybè, a língua falada pelos

Karajá, Javaé e Karajá do Norte (Xambioá), se baseiam nas etnografias feitas a partir da década

de 1990, que se ancoram todas no trabalho do casal de lingüistas do SIL, David e Gretchen

Fortune. Essa é também em larga medida a grafia utilizada pelos próprios Karajá e Javaé.

Todas as letras têm o mesmo som do português, exceto as listadas abaixo.

è corresponde ao “é” do português, tal como na palavra “pé”.

ò corresponde ao “ó” do português, tal como na palavra “só”.

ã corresponde a um som similar ao “ã” do português, porém mais aberto.

r corresponde ao “r” do português, tal como na palavra “caro”.

h corresponde ao “rr” do português, tal como na palavra “curral”.

J corresponde à junção das consoantes “d” e “j” do português.

k corresponde ao “c” do português antes de “a”, “o” e “u” ou ao “qu” antes de “i” e “e”.

s corresponde ao “th” do inglês, tal como na palavra “thousand”.

tx corresponde ao “tch” do português, tal como na palavra “tchau”.

w corresponde ao “w” do inglês, tal como na palavra “win”.

y é uma “vogal central, fechada, um pouco alta e não arredondada” (Lima Filho, 1994: 16).

ў é um “som similar, porém não idêntico, ao “ã” da língua portuguesa” (Rodrigues, 2008: xiv).

O inўrybè apresenta uma diferenciação da fala segundo o sexo do falante, geralmente

caracterizada pela inserção, na fala feminina, de uma consoante (majoritariamente o “k”, mas

também o “n” e o “tx”), onde há um encontro vocálico na fala masculina (ou no caso de

algumas palavras iniciadas com vogais). Por exemplo: “estrela” é taina na fala masculina e

takina na fala feminina; “capivara” é uè na fala masculina e kuè na fala feminina; “filho(a)” é

riorè na fala masculina e ritxorè na fala feminina. Os nomes pessoais também sofrem tal

inflexão de gênero. Homens falam Maurehi, mulheres falam Makurehi; homens falam

Minauari, mulheres falam Minakukari. Os parênteses nas palavras grafadas nesta língua, como

em ta(k)ina, representam a inserção da consoante da fala feminina. Optei, assim, por uma

representação gráfica que permitisse ambas as formas masculina e feminina de pronúncia.

Quase todas as palavras da língua karajá são oxítonas. Como há exceções, optei por

marcar a sílaba tônica das palavras paroxítonas com uma apóstrofe, como no nome pessoal

Ijahu’re.

Page 12: A cruz e o itxe(k)ò

1

Introdução

“Os antropólogos pensam que porque é Karajá, todas as aldeias são uma coisa só. Mas não, cada aldeia tem seu costume”.

Raul Hawa(k)a’ti

Não me lembro bem como os Karajá de Buridina chegaram até mim. Tentarei, então,

descrever como eu cheguei até eles.

No final de meu primeiro ano de graduação, 2006, por ocasião de um pequeno grupo de

estudos independente sobre ‘identidade e relações interétnicas’, coordenado por Junia

Marúsia Trigueiro de Lima, então minha veterana no curso, hoje já mestra, uma idéia me veio

à cabeça: como será ser índio na cidade? No semestre seguinte (2007/01), cursei a disciplina

‘identidade e relações interétnicas’ ministrada pelo professor José Antônio Vieira Pimenta,

com quem tive a oportunidade de dialogar sobre esta questão que me instigava. Deste diálogo

nasceu uma orientação para um projeto de Iniciação Científica focado sobre indigenismo –

especificamente sobre a maneira como os indígenas em cidades são pensados pelo imaginário

nacional. Ainda muito pouco familiarizado com o tema e sem conhecimento de locais onde

pudesse realizar trabalho de campo, optei por uma pesquisa bibliográfica. Assim fui tomando

conhecimento de diversas situações de aldeias em cidades, de “bairros” indígenas, etc. A

situação dos Karajá de Buridina apareceu para mim, certamente, nesta época, e por algum

motivo, reteve minha atenção.

Ao longo deste projeto, acompanhei, a convite do Prof. Pimenta, dois Seminários de

Leitura do PPGAS DAN-UnB sobre etnologia ameríndia, ministrados por ele e pela Profª.

Marcela S. Coelho de Souza, que muito contribuíram para a formação das idéias expostas aqui,

direta – no caso do Capítulo I – ou indiretamente. Ao final deste primeiro projeto de Iniciação

Científica1 (primeiro semestre de 2008), me engajei num segundo (segundo semestre de

2008). A idéia, então, era realizar pesquisa de campo. Já com o caso dos Karajá de Buridina em

mente, eu precisava, então, antes de redigir o projeto, pedir autorização da comunidade para

desenvolver minha pesquisa. Talvez mesmo por sorte, recebi um e-mail divulgando que os

Karajá desta aldeia fariam uma exposição de três dias sobre sua cultura e artesanato no Museu

Antropológico da UFG, Goiânia. Naquela mesma semana em que havia recebido tal e-mail, por

acaso, o antropólogo Manuel Ferreira de Lima Filho, que escreveu uma dissertação de

mestrado sobre o ritual karajá de iniciação masculina, o Hetohokў (Lima Filho, 1994), sendo

1 O relatório final deste projeto foi recentemente publicado (Nunes, 2009b).

Page 13: A cruz e o itxe(k)ò

2

também o autor do laudo antropológico que subsidiou a delimitação e demarcação das terras

dos Karajá de Buridina (Lima Filho, 1992), estava em Brasília, por ocasião de sua participação

em uma banca na UnB. Fomos apresentados e, muito gentilmente, ele concordou em me

encontrar em Goiânia para me apresentar aos índios que lá estariam. Comprei, então, um

bilhete, subi no ônibus e fui ao encontro dos Karajá. Foi lá que conheci o cacique Raul

Hawa(k)a’ti e Renan Wassuri, duas das figuras que se tornariam centrais para minha pesquisa2.

Conversei com o cacique Raul e lhe pedi autorização, ao que ele concordou, sem fazer

considerações ou restrições de qualquer ordem3. Com o aceite prévio, redigi o projeto e fiz os

encaminhamentos legais necessários.

Em julho de 2008, durante a temporada turística da cidade, fiz minha primeira visita à

aldeia, que durou uma semana. Daí até o fim do ano, mergulhei na literatura Karajá e Javaé,

lendo boa parte do que estava ao meu alcance – em termos lingüísticos ou de acesso ao

material4. Em dezembro de 2008, fiz outra visita curta (também uma semana). Retornei no

período das chuvas do ano seguinte para um período maior de trabalho de campo, quando

permaneci 50 dias entre meados de janeiro e os primeiros dias de março de 2009, hospedado

num quarto nos fundos do posto da Funai. Voltei em maio, permanecendo todo este mês em

Buridina e fiz uma última etapa de campo, novamente com um mês de duração, entre meados

de julho e meados de agosto de 2009. Nestas duas viagens fiquei hospedado com Renan

Wassuri (dormindo em minha barraca de acampamento sob um pé de manga em frente à sua

casa). Realizei, portanto, um total aproximado de quatro meses de trabalho de campo. (†)

A pesquisa foi conduzida em português, língua falada pela totalidade da população da

aldeia. Com o tempo fui aprendendo um pouco da língua karajá, e podia, por vezes, ao menos

saber sobre o que se estava conversando. Mas meu domínio desta língua ainda é parco.

Apesar de nem todos os Karajá de Buridina falarem inўrybè, a língua indígena, minha

incompetência lingüística não poderia deixar de ser prejudicial à pesquisa. Mas não no sentido

clássico, penso. O português falado pelos indígenas, para um(a) pesquisador(a) nesta aldeia,

não é apenas uma forma de mediação entre duas línguas, a sua própria e a daqueles que ele(a)

2 É nesta ocasião que se passa a anedota contada no início do Capítulo I.

3 O que, confesso, me causou estranhamento e algum medo. Fui descobrindo aos poucos que aquela era

a maneira dos homens Karajá: deixar que as pessoas façam suas coisas (a pesquisa de um antropólogo, os projetos de ONGs ou órgãos de Estado, etc.) da maneira como entendem que deve ser feito. 4 Devido a minha dificuldade de ler em língua francesa, não pude percorrer a tese de doutorado de

Nathalie Pétesch e os artigos do suíço Hans Dietscy, exceção feita aos dois únicos artigos traduzidos para o português (Pétesch, 1993; Diestchy, 1978) – que, entretanto, foram de grande valia. Não foi possível, tampouco, ter acesso a alguns trabalhos sobre os Karajá, em particular, infelizmente, à série de artigos de Desidério Aytai (nas “Publicações do Museu Municipal de Paulínia”), cujas pesquisas foram em parte realizadas em Buridina.

Page 14: A cruz e o itxe(k)ò

3

pesquisa. Usa-se as duas línguas no cotidiano e, portanto, a possibilidade abstrata de se fazer

pesquisa apenas em inўrybè seria tão parcial quanto o é fazer apenas em português.

A idéia inicial de meu projeto era, antes de tudo, estudar etnograficamente um caso

específico para aprofundar minha compreensão da presença indígena nas cidades. Depois de

todo esse trajeto, esse objetivo teria forçosamente que ser atingido, ao menos em parte. Mas,

escrevendo estas linhas hoje, penso que talvez tenha se dado sobretudo o contrário: minhas

reflexões sobre a presença indígena nas cidades (tal como esboço no Capítulo I) acabaram por

constituir como que um ponto de partida para que eu pudesse avançar entender melhor o

caso dos Karajá de Buridina. As questões que me instigam hoje, devo admitir, estão todas

enraizadas nesta aldeia no Goiás.

Muitos pesquisadores e pesquisadoras passam por Buridina. Nenhuma das pesquisas

antropológicas, entretanto, se baseou em trabalhos de campo mais extensos. Quatro alunos

do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília defenderam monografias de

graduação sobre esta aldeia (Melo, 1999; Braga, 2002; [Cavalcanti-]Schiel, 2002; Leite, 2007) –

a minha, portanto, é a quinta da lista. Há trabalhos em outras áreas, dentre os quais destaco a

dissertação de mestrado da historiadora Cristiane Portela (2006), certamente o estudo mais

denso e detalhado existente sobre Buridina.

A experiência dos Karajá de Buridina com pesquisadores é um retrato deste estado da

arte: os(as) pesquisadores(as) fazem visitas rápidas à aldeia e, sobretudo, estão interessados

na “cultura Karajá” (ou na língua5), dizem os índios. Meu interesse por esta aldeia nunca foi

exatamente a “cultura Karajá”, mas sua situação específica desta aldeia. Certa vez Kari, uma

mulher karajá, me perguntou se não seria melhor para mim se eu estivesse fazendo pesquisa

em alguma aldeia na Ilha do Bananal, pois, afinal é lá que se mantém “a cultura forte”. Eu disse

que estava ali porque queria saber mais sobre os casamentos com tori, a mestiçagem e a

relação com a cidade, ao que ela respondeu: “Ah, se você está interessado nos dois lados,

então é aqui mesmo!”. É isso que persigo nesta monografia: o “costume” da aldeia de

Buridina, como nas palavras do cacique Raul que servem de epígrafe à Introdução. Cada aldeia

tem suas particularidades, uma habilidade especial para produção de certos artefatos (arcos,

burdunas, bonecas de barro, cestaria, etc.), uma predileção por certos alimentos, etc. A

particularidade de Buridina, poderíamos dizer, é a mistura, um amplo processo de relação

entre as perspectivas indígena e não-indígena, e é a ela que este texto se dedica.

5 Muitos pesquisadores e estudantes fizeram pesquisas na área de lingüística.

Page 15: A cruz e o itxe(k)ò

4

₪ O grupo Karajá

Os grupos karajá são ocupantes imemoriais da calha do rio Araguaia. Não se tem notícia

de que tenham migrado de outra região. Desde os primeiros relatos que temos sobre o grupo,

eles ocupavam a mesma região em que hoje estão.

O inўrybè6, a língua falada por estes grupos, por muito tempo tida como isolada, foi

posteriormente classificada dentro do tronco macro-jê (Rodrigues, 1986). São três os grupos

falantes desta língua: os Karajá propriamente ditos, os Javaé e os Karajá do Norte (Xambioá).

Há diferenças dialetais mínimas, o que não prejudica a inter-compreensão. Há também

pequenas diferenças sóciocosmológicas, mas, no geral, podemos dizer que os três grupos

partilham de uma mesma cultura. Mesmo em relação aos Javaé, cujas diferenças frente aos

Karajá – sobretudo no que tange à arquitetura do ritual e a afiliação matrilinear aos grupos

rituais ijoi –, já foram enfatizadas por Rodrigues (2008), as semelhanças são muito mais

salientes. O que não nos autoriza, entretanto, a negar as diferenças entre eles e tratá-los como

um único grupo.

O etnônimo Karajá não é uma auto-designação. O termo tem origem tupi e tem o

significado de “macaco grande”. “Era usado no Brasil meridional (...) para designar o bugio”,

afirma Baldus (1948b) com base no “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”7. Os

Karajá, Javaé e Karajá do Norte (Xambioá) se auto-designam inў, termo cujo significado é algo

como “nós”, “humanos” ou “gente”, de maneira similar a tantos outros termos de auto-

designação ameríndios.

A maior parte das aldeias karajá e a totalidade das aldeias javaé estão localizadas na

Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, com 2.000.000 km2, mais da metade dos quais

ficam submersos na cheia do rio. Os Karajá, entretanto, também têm aldeias tanto ao norte

quanto ao sul da Ilha. Buridina é o limite sul do território hoje ocupado pelo grupo. As três

aldeias dos Karajá do Norte (Xambioá) se localizam no baixo curso do rio, trecho no qual o

Araguaia divide os estados de Tocantins e Pará, constituindo o limite norte do território desses

grupos.

₪ ₪ ₪

Tori é o termo do inўrybè que designa os não-índios. Há indícios de que o termo é de

origem tupi. Os Tapirapé utilizam esta mesma palavra, mas a aprenderam com os Karajá

(Baldus, 1970: 39). Os Parakanã, outro grupo Tupi, utilizam o termo toria para designar os não-

6 Inў é o termo de auto-designação do grupo (cf. infra). Rybè significa “fala”, “língua”, “modo de falar” –

literalmente, significa ‘saliva’: ryy = boca; bèè = água (Rodrigues, 2008: 406). 7 Sexta edição. São Paulo, 1946.

Page 16: A cruz e o itxe(k)ò

5

indígenas. Fausto, entretanto, diz que “esta é uma designação incomum, ocorrendo apenas

entre povos tocantino-araguaínos” (2001: 53, nota 14), citando os Karajá, Javaé e Tapirapé.

₪ Aruanã, Goiás

O território da Capitania de Goiás (que hoje corresponde aos estados de Goiás e

Tocantins, cuja separação data de 1988), sofria, do ponto de vista dos colonizadores europeus

e neo-brasileiros, de um grave problema: a dificuldade de acesso. Esse problema do

“isolamento”, tanto em termos de transporte quanto em termos de população, só começou a

ser contornado no século XIX (Rocha, 1998). Praticamente todas as tentativas de adentrar este

território tiveram que enfrentar a dificuldade colocada por aquilo que algumas fontes chamam

de “o problema indígena”: a região era habitada por muitos grupos indígenas, sobretudo

falantes de línguas jê, que, quase sem exceções, se mostravam hostis aos invasores. Dentre

eles, podemos citar alguns grupos que, até poucas décadas atrás, ainda eram conhecidos por

sua belicosidade, como os Xavante, Kayapó e Avá Canoeiro, além de muitos grupos que

acabaram por ser extintos, como os Araé, Arachá, Crixá e Akroá. Os Karajá e Javaé estavam

também ali, mas sua atitude pacífica8 e seu empenho em estabelecer relações com os tori,

não-índios, destoava em muito do comportamento dos demais (cf. [Cavalcanti-]Schiel, 2002:

25ss).

Com a descoberta de ouro na Capitania de Goiás, conhecida neste período como Minas

dos Goyazes, “repetiu-se na região o processo ocorrido em muitos locais do Brasil no período

da colonização: ocupação das terras indígenas, escravização dos grupos mais pacíficos e

choques com os hostis” (Chaim, 1983: 101). A fim de contornar os problemas causados pelos

indígenas, recorreu-se, então, ao sistema das reduções ou aldeamentos, já utilizado na região

litorânea. Além dessa dimensão “estratégica”, digamos assim, os aldeamentos tinham ainda

outra função: “a sedentarização, cristianização e civilização dos indígenas para uma melhor

integração à sociedade colonial” (Ossami de Moura, 2008: 73). Os aldeamentos localizados na

calha do Rio Araguaia, e para os quais muitos Karajá e Javaé foram levados, foram construídos

entre os anos de 1774 e 1788.

Quase um século depois do início da construção dos aldeamentos em território goiano,

em 1849, o Governo Imperial autoriza a construção de presídios ao longo da calha dos rios

Tocantins e Araguaia. “O presídio era um misto de estabelecimento penal, colônia agrícola e

8 As referências a atitudes belicosas por parte dos Karajá e Javaé são poucas na literatura histórica, e

aparecem sempre como motivadas por massacres e espoliações por parte dos não-indígenas. Os grupos falantes de língua Karajá valorizam o auto-controle e o pacifismo, e toda ação agressiva/transformadora, no âmbito da guerra ou em outros, é pensada como uma reação: o causador/motivador da ação é sempre um Outro (cf. Rodrigues, 2008).

Page 17: A cruz e o itxe(k)ò

6

estabelecimento militar. Constituía um ‘pequeno mundo’, composto de casas arruadas

cobertas de telhas e instalações diversas e complexas: residência do comandante, enfermaria,

casa de arrecadação, carpintaria, ferraria, quartel, casa de administração, casa de engenho e

casa de escola” (Rocha, 1998: 71-72). A construção destas instalações estava relacionada ao

intuito de estabelecer o comércio e o transporte fluviais nesses dois rios, navegáveis na maior

parte de sua extensão, e, assim, criar uma possível solução para o problema do isolamento

desse território. Serviriam, portanto, como forma de proteção contra ataques indígenas e

pontos de apoio à navegação, onde as embarcações poderiam se abastecer de víveres e

gêneros alimentícios, por exemplo. A intenção era, também, facilitar o processo de povoação

desta capitania, atraindo os não-indígenas com distribuição, por parte do Governo Provincial,

de lotes de terra e de auxílio financeiro (id. ibid.).

A atual cidade de Aruanã surgiu a partir da aglomeração populacional estabelecida ao

redor de um desses presídios, o de Santa Leopoldina. O General Couto de Magalhães, em

viagem realizada nos anos de 1862 e 1863, assim o descreve:

O presídio de Santa Leopoldina está colocado na margem direita do Araguaia, junto à barra do rio Vermelho (...).

Foi fundado a primeira vez, no mês de março de 1850 (...); destruído em 1853, foi de novo fundado em 1855 (...) no largo dos Tigres, à margem do rio Vermelho, de onde foi removido para o lugar que está agora em 1856 (...).

Daí para cá, o presídio tem prosperado e hoje conta ao todo com 30 casas, entre as quais 12 de telhas (Couto de Magalhães, 1957: 92).

Com percalços de muitas ordens, como

ataques indígenas, problemas de localização,

dificuldade de acesso, etc., poucos destes

presídios permaneceram ativos por muito tempo.

O de Santa Leopoldina foi talvez o que alcançou

maior sucesso. “Em 10 de março de 1879, o

presídio, que havia cumprido seus objetivos, foi

extinto dando lugar a uma florescente povoação”

(Rocha, 1998: 78), que herdou o nome de

Leopoldina do estabelecimento militar. Em 1958, o então distrito de Santa Leopoldina se torna

um município, e a cidade ganha o nome que carrega até hoje: Aruanã9.

9 Este é o nome de um peixe encontrado na bacia do Araguaia, assim como do ciclo de danças karajá e

javaé e das entidades mascaradas que vêm dos mundos subaquático (berahatxi) e celeste (biuwètyky) para dançar na aldeia nestas ocasiões. Também na língua indígena o peixe e as entidades mascaradas têm o mesmo nome: ijasò, para os Karajá; irasò para os Javaé, e o nome em português, “aruanã”, é oferecido como tradução para ambos.

Desenho 01:

Brasão da Cidade de Aruanã

Page 18: A cruz e o itxe(k)ò

7

Mapa 01: Brasil, estado de Goiás, Município de Aruanã

Aruanã

Page 19: A cruz e o itxe(k)ò

8

Na literatura histórica, não há registro da presença de uma aldeia karajá na proximidade

deste presídio. A primeiro relato que dá conta da existência de Buridina é, provavelmente, o

de Fritz Krause, etnógrafo alemão que percorreu o rio Araguaia desde Leopoldina até seu baixo

curso, ao norte da Ilha do Bananal, em 1908. Krause faz menção a uma aldeia “na barra do Rio

Vermelho, acima de Leopoldina”, que, segundo ele, tinha o nome de xixamãdo (1941: 237). Na

década de 1940 já temos registros (tanto documentais, como algumas matérias de jornal,

quanto orais, dos antigos moradores da cidade) da presença da aldeia no local onde ela se

encontra atualmente. O córrego Bandeirantes, hoje em parte canalizado sob o asfalto, era o

limite norte da malha urbana, e a aldeia estava situada do outro lado deste mesmo córrego,

em sua margem norte. Aldeia e cidade, assim, estavam lado a lado, mas ainda espacialmente

distintas (cf. Baldus, 1948a: 145).

Desde a década de 1950, o vale do Araguaia é destino tanto de exploradores (os

“mariscadores”, caçadores de peixes, aves e animais terrestres, que visavam o comércio das

carnes, peles e penas10) quanto de turistas (cf. Caiado, 1961). O turismo foi o principal motor

do crescimento da cidade a partir dos anos setenta. É nessa década que a malha urbana

atravessa o córrego Bandeirantes, englobando a aldeia e comprimindo-a em um pequeno lote

à beira do rio – em 1986, segundo relatório da Funai, a área ocupada era de 10.000m

(Pechincha & Silveira, 1986). A primeira construção feita ao norte da aldeia, lembram os

indígenas mais velhos, foi o Sesi, hoje uma importante referência para o turismo na cidade:

com uma infra-estrutura ampla, incluindo hotel, clube e área de camping, esta instituição

recebe turistas – individualmente ou em excursões – durante todo o ano.

Apesar dessa grande expansão da cidade, o crescimento populacional não foi

proporcional. Em 1970, segundo o IBGE, o município tinha 4.778 habitantes, ao passo que a

contagem da população de 2007 registrou 6.405 habitantes: um aumento de 1627 pessoas em

quase 40 anos. Percorrendo as ruas da cidade, percebemos claramente a diferença entre as

áreas de ocupação antiga e recente: no centro da cidade e ao sul, há quase exclusivamente

residências e estabelecimentos comerciais de pequeno porte; ao norte da aldeia, há mansões

de veraneio e pousadas, ocupando toda a margem do rio e pontilhando a malha urbana. Além

do mais, a ocupação residencial dessa região da cidade, incluindo um bairro conhecido como

Taboca, é menos densa em comparação com o centro e a parte sul, que inclui o setor Faiçal.

10

Essa onde de exploração desenfreada foi um dos grandes fatores responsáveis pela imensa diminuição da fauna da região. Hoje, a quantidade de animais de caça – como porcos queixada, caititus, antas, pacas, etc. – nas matas ciliares é muito pequena, sendo difícil encontrá-los, e a pesca, base principal da dieta indígena, apresenta resultados muito piores que em outros trechos do rio, como na Ilha do Bananal, e, por vezes, nem mesmo é suficiente para o consumo diário.

Page 20: A cruz e o itxe(k)ò

9

Aruanã é hoje um dos maiores pontos de turismo nas praias do rio Araguaia, oferecendo

alternativas de lazer para públicos diversos. Durante a temporada turística, no mês de julho, a

prefeitura promove shows com artistas conhecidos no cenário regional ou nacional, todas as

sextas-feiras, sábados e domingos. Todos os dias há um grande movimento na praça da Igreja

Matriz, sobretudo em torno dos carros super-equipados com caixas de som (um movimento

hoje conhecido como ‘som automotivo’), que se enfileram trabalhando no volume máximo,

cada um tocando uma música. Barracas de comércio (a maioria vendendo bebidas e/ou

comida, algumas vendendo artesanato e outros pequenos itens) se aglomeram nas calçadas do

centro da cidade. Hotéis e pousadas ficam todos lotados e as mansões de veraneio, que no

restante do ano ficam vazias11, são todas alugadas. Há tanto opções de hospedagem de custo

relativamente baixo quanto luxuosas e, obviamente, muito caras (as diárias podem custar mais

de R$350.00). As famosas praias de areia branca ficam todas ocupadas por acampamentos,

onde pode-se alugar barracas, cabanas ou quartos, nos quais se aloja a maior parte dos

turistas. As diárias dos acampamentos que oferecem melhor infra-estrutura e opções de lazer

podem custar até R$200,00. Pequenas canoas a motor, lanchas, barcos de pequeno porte e Jet

Skis transitam tumultuadamente pelo rio, dia e noite. Durante a temporada turística chegam a

passar pela cidade cerca de 200.000 pessoas (cf. Lima Filho, 1994: 25; [Cavalcanti-]Schiel,

2002: 19).

Todo esse volume de gente e atividades não poderia deixar de afetar a vida dos Karajá.

Por um lado, há um aumento considerável na venda de artesanato, uma das principais fontes

de renda para os indígenas. Além disso, tanto no período que antecede a temporada, quando

a cidade se prepara para receber os turistas, como já em julho, há muitas oportunidades de

trabalho temporário – como barqueiro, na reforma e/ou limpeza de casas de veraneio ou

pousadas, na montagem do palco e outras estruturas, etc. –, nas quais os Karajá, sobretudo os

homens jovens, se engajam. O movimento na cidade, dizem os Karajá, com pico na segunda

metade do mês de julho, estende-se até o feriado de 7 de setembro. Para a venda de

artesanato, entretanto, os meses de agosto e setembro são melhores que julho, pois é depois

que o grande movimento acaba, quando cessam os shows e outras atrações, que chegam à

cidade os turistas estrangeiros, grandes consumidores do artesanato indígena, tanto em

quantidade quanto em relação ao valor das peças.

11

Os donos contratam uma pessoa que reside (ou a visita freqüentemente) e cuida da casa quando ela está vazia. Essa é uma fonte de renda considerável para os habitantes não-indígenas da cidade, posto que há muitas destas mansões. Atualmente não parece haver indígenas nesse tipo de ocupação, tampouco tive notícia de que isso já tenha ocorrido.

Page 21: A cruz e o itxe(k)ò

10

Tamanho movimento, por outro lado, causa grandes transtornos. Há um trânsito

constante de carros dentro da aldeia, muitas vezes guiados por pessoas que, desatentas, não

percebem que entraram em uma aldeia indígena; por isso, os Karajá tomam bastante cuidado

com as crianças pequenas que brincam no terreiro. Andar de bicicleta, principal meio de

locomoção indígena, pelas ruas da cidade – onde chega a haver congestionamento, com

veículos estacionados de ambos os lados da rua, como eu próprio pude presenciar –, pode ser

tão ou mais perigoso do que fazer o mesmo em Brasília ou Goiânia. Quando se precisa ir a

algum lugar (mercado, posto de gasolina, padaria), procura-se ir a pé, o que também não é

absolutamente seguro: o fluxo de veículos é grande, os motoristas são freqüentemente

imprudentes e, não raro, podem estar embriagados. Durante as madrugadas, o som dos shows

ou dos carros na praça da Igreja Matriz, a 350m da entrada da aldeia, fazem, por vezes, as

paredes (ou mesmo o chão) das casas (que são de alvenaria) tremer.

₪ ₪ ₪

Os Karajá de Buridina tem um conjunto de termos em inўrybè para ser referir aos

turistas tori, não-indígenas. Ibryra mahãdu, “o pessoal (mahãdu) do leste (ibryra)12”, são os tori

de Goiânia e de outras cidades relativamente próximas. Ibryrahakў mahãdu são aqueles de

cidades mais distantes, como São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro13. Os turistas vindos de outros

países são os kua wèbrijyhykў mahãdu. Kua wèbrijy foi-me traduzido como “do outro lado”,

fazendo referência à separação de dois espaços por um curso d’água. Os moradores de uma

aldeia que fica do outro lado do rio podem ser chamados de kua wèbrijy mahãdu, “o pessoal

do outro lado [do rio]”. Kua wèbrijyhykў mahãdu seria, mais precisamente, “o pessoal do outro

lado do oceano”.

Alguns estrangeiros possuem, ainda, designações específicas. Algumas fazem referência

a características físicas, como no caso dos japoneses, irubrota’ri mahãdu, “o pessoal (mahãdu)

12

Os Karajá com os quais conversei mais detidamente sobre este assunto traduziram ibryra como leste, em oposição a bè(k)yra – termo também equacionado a uma coordenada geográfica, o oeste. Em outras etnografias, esses termos são referenciais espaciais que têm a aldeia como base. Rodrigues (2008: 379), por exemplo, traduz o par Javaé ibyryra e bèkyti como “o lado do seco” (ou perto do mato) e “o lado do barranco do rio”, respectivamente (cf. também Toral, 1992: 51). Como sempre houve aldeias Karajá e Javaé em ambos os lados do rio, estes referenciais são variáveis. Numa aldeia situada na margem leste do rio, o “lado do mato” corresponde ao leste, ao passo que, se ele estivesse situada na outra margem, o “lado do mato” corresponderia ao oeste. Os Karajá de Buridina (cuja aldeia fica a leste do rio), portanto, parecem ter fixado estes termos, relacionando-os diretamente às coordenadas geográficas leste e oeste, ao invés de relacioná-las indiretamente, por meio da coincidência do “lado do mato” com o leste, por exemplo. 13

Hakў é “grande” ou “muito”, marcando aumentativo ou servindo como intensificador. A vogal entre o “h” e o “k” é variável em função da palavra que a partícula acompanha. Assim temos, por exemplo, berohokў, ta(k)inahakў ou wèbrijyhykў, todas as terminações possuindo o mesmo significado.

Page 22: A cruz e o itxe(k)ò

11

do olho (rubro)14 inchado/puxado (ta’ri)”, uma categoria, na verdade, utilizada para diversos

asiáticos que compartilham esta característica física. Outras fazem referência a seu território

de origem no extremo leste, direção equacionada também ao alto (biuwètyky, o céu ou

“mundo das chuvas”, nível superior do cosmos). Os alemães, por exemplo são designados por

dois nomes: txuu òlòna bire’ki hãwadu mahãdu, “o pessoal (mahãdu) dono (du) do

território/lugar (hãwa) próximo (bire’ki) de onde o sol nasce (txuu òlòna)”, ou isò isòhòkў

mahãdu, “o pessoal (mahãdu) vermelho (isò). Dizem que são avermelhados porque ficam

muito próximos do sol, queimando-se.

Perguntei a uma mulher porque os tori eram “do leste”, ao que ela me respondeu:

“porque eles sempre vêm de lá [apontando na direção sudeste]. Eles nunca vêm de canoa, de

baixo (iraru), sempre vêm de carro ou de ônibus por lá [ibò(k)ò/leste]”.

Estes termos são utilizados sobretudo pelos mais velhos. Os jovens, nesse como em

outros domínios da língua indígena (a toponímia, por exemplo), têm se utilizado de palavras do

português, imprimindo sobre elas as características fonéticas do inўrybè. Assim, se referem aos

estrangeiros em geral ou aos estado-unidenses, especificamente, como ameri(k)anu mahãdu,

aos portugueses como portugueisi mahãdu, aos italianos como italiãnu mahãdu, e assim por

diante.

₪ ₪ ₪

Antes de prosseguir com esta breve descrição da situação territorial dos Karajá de

Buridina, gostaria de fazer um outro parêntese, agora sobre a dinâmica sazonal da cidade em

função da temporada turística de julho.

A prática Karajá e Javaé de abandonar temporariamente suas aldeias quando da baixa

do rio, permanecendo acampados nas grandes praias de areia branca que surgem no “verão”

(estiagem, de maio a outubro) até que as águas comecem novamente a subir, é amplamente

documentada na literatura específica. O “inverno” (época das chuvas e da cheia do rio, de

novembro a março), por outro lado, é um tempo de concentração da população na aldeia e de

realização de rituais – o que acaba por atrair pessoas vindas também de outras aldeias15. No

“verão” a base da dieta é a pesca (de peixes e tartarugas) e a coleta (de frutas, ovos de

tartaruga, etc.); no “inverno” a condição do rio dificulta a pesca e as roças e a caça crescem em

importância16. Segundo Toral, a família extensa era o limite da extensão dos pequenos

14

Rubro, na verdade, é a região do olho. O olho, apenas, os Karajá chamam ruè. 15

Sobre esta dinâmica sazonal, cf. Baldus 1979: 165; Toral, 1992: 93-97. 16

Apesar de boas roças serem fundamentais para a realização dos rituais karajá e javaé, o que confere à agricultura um papel que não poderíamos subestimar, a pesca é atividade de subsistência que tem maior valor para o grupo. Apesar de alguns Karajá me dizerem que os Javaé são melhores agricultores, a

Page 23: A cruz e o itxe(k)ò

12

acampamentos de verão formados nas praias do rio, e a dispersão propiciada por tal prática

constituía uma força contrária às tensões entre famílias, característica da vida em aldeia. Diz o

autor:

O verão era como um “descanso” e uma solução às tensões resultantes do intenso convívio social nas aldeias durante a época das chuvas. No verão abria-se uma possibilidade maior de separação de grupos (famílias extensas, grupos de descendência ou facções) tensionados pela política interna da aldeia (1992: 94).

Ou, como me disse um homem, “a distância é o remédio do conflito”. O contraste entre

verão e inverno, assim, parece ser um contraste entre duas socialidades. No inverno, a

concentração da população na aldeia propicia um convívio entre famílias, ao passo que a

socialidade do verão seria doméstica, no sentido em que, devido à dispersão, o convívio ficaria,

muitas vezes, restrito à família extensa (ou mesmo nuclear).

Essa prática de dispersão é hoje bem menos intensa que em tempos antigos, por

diversos motivos, como as obrigações do calendário escolar ou de trabalho. Em Buridina,

muitos dizem, ela foi abandonada. Mas talvez se possa pensar isso em outros termos que o de

‘o abandono de uma determinada prática ou costume’. Durante o trabalho de campo,

sobretudo no verão, tive oportunidade de participar de viagens para acampar nas praias ou na

beira dos lagos, além de ter tido notícia (presenciado a partida ou a chegada) de inúmeras

outras das quais não participei. Todas estas saídas da aldeia são, com efeito, bastante rápidas

(de um a três dias, geralmente). De todo modo, a direção que quero apontar é outra. A

dinâmica do turismo na cidade de Aruanã constitui uma oscilação sazonal que tem

consequências para o cotidiano da comunidade de Buridina. Se não há uma dispersão literal da

população durante o verão, o envolvimento das pessoas com o pesca ou com os diversos tipos

de trabalho propiciados pela temporada faz com que, neste período, o convívio esteja

praticamente restrito aos limites da família extensa. Assim, é comum ouvir a declaração de

que “na temporada a gente quase não encontra um com o outro, é cada um para o seu canto”.

As tensões interfamiliares que em janeiro e fevereiro pairavam constantemente sobre a aldeia,

vez por outra resultando em algum conflito concreto, durante a temporada ficou em segundo

plano, por assim dizer: os comentários e críticas de uma parte a outra praticamente sumiram e

a tensão se esvaiu consideravelmente. Durante a época das chuvas, apesar das condições do

campo de futebol estarem longe do ideal, os rapazes da aldeia jogavam todos os dias; durante

a temporada, apesar de em muitos fins de tarde os jovens estarem na aldeia, quase nunca o

literatura específica é unânime em descrever o empenho relativamente reduzido dos Karajá e Javaé na agricultura quando comparados com algumas outras etnias, e o valor menor que conferem à caça, tanto ideológica quanto quantitativamente.

Page 24: A cruz e o itxe(k)ò

13

faziam17.Também meu trabalho de campo, penso, refletiu essa oscilação: durante a estação

das chuvas, era muito mais fácil encontrar as pessoas em suas casas, ao passo que, durante a

temporada, quase não tive oportunidade de encontrar algumas delas, a despeito de eu

procurá-las com freqüência.

Se o que retemos destes contrastes é o efeito que eles produzem, em termos de

propiciar ou não um convívio interfamiliar, e não somente as práticas ou eventos pelos quais

essas duas sazonalidades são levadas a cabo, podemos encontrar uma certa continuidade

entre ambas as dinâmicas. Assim, talvez a ausência da mobilidade aldeia-acampamento em

Buridina não implique um regime tão diferente do de outras aldeias, por mais que trabalhar

arduamente durante uma temporada turística seja algo muito distinto de uma família

permanecer meses isolada nas praias do Araguaia, empenhada apenas em desfrutar de seus

alimentos prediletos.

₪ A Terra Indígena e a aldeia

Na década de 1940, Baldus registra a atuação de um posto do Serviço de Proteção aos

Índios, chamado “Carajá do Sul”, junto aos Karajá da aldeia “pegada à Leopoldina” (1948: 143).

Ao que consta, o serviço havia demarcado uma área para este pequeno grupo, cujos limites

norte e sul eram os mesmos da atual Gleba I da Terra Indígena Karajá de Aruanã (os córregos

Xibiu e Bandeirante, respectivamente), mas se estendia para leste por alguns quilômetros.

Assim registra a memória de indígenas e dos antigos moradores da cidade18. O encarregado do

posto era João Artiaga, homem de grande influência local. Assim, por exemplo, um morador da

Aruanã declarou que “ele, João Artiaga, era chefe político aqui, era tudo, mandava prender,

mandava soltar e o povo diz que mandava matar também...” (Melo, 1999: 23). Enquanto ele

estava vivo, contam os Karajá, esta reserva se manteve intacta. Depois de sua morte, seus

filhos, que não tinham as mesmas boas intenções, lotearam a área valendo-se de uma aliança

com o então escrivão do cartório da cidade – cunhado de um deles –, e as escrituras foram

passadas às mãos da prefeitura e de particulares. Não posso afirmar com precisão a data de

17

Apenas as crianças jogavam futebol aos fins de tarde, durante o verão. 18

Manuel Ferreira de Lima Filho, no laudo produzido para a demarcação das terras dos Karajá de Buridina, diz que, de acordo com o relato dos Karajá mais velhos, hoje já falecidos (Lídia Dikuria, Jacinto Ma(k)urehi, Luis Bydè e Mario Arumani), “a área tradicionalmente ocupada pelo grupo era desde o córrego Bandeirantes até o córrego Xibiu” (1992: 12). Pelos relatos que pude escutar (não diretamente destas pessoas), a referida área, com fronteiras bem delimitadas, antes que uma área tradicionalmente ocupada, corresponderia à reserva delimitada pelo SPI.

Page 25: A cruz e o itxe(k)ò

14

tais acontecimentos, mas parecem ter ocorrido na década de 197019, quando a cidade se

expandiu para o norte, atravessando o córrego Bandeirantes. Na década de 1980, a escritura

do pequeno lote (100mx100m) onde situavam-se as poucas casas da aldeia estava em nome

de uma moradora da cidade.

Os Karajá sempre manifestaram sua vontade de permanecer no local onde estavam,

mas o projeto da Funai era tentar transferir a pequena população para junto de seus parentes

na Ilha do Bananal (cf. Capítulo II). O órgão não ofereceu praticamente nenhuma assistência a

essa população até a década de 1980, quando cede a pressões tanto dos índios quanto de

alguns regionais e dá início ao processo de demarcação de suas terras, no ano de 1986. A

população da aldeia, neste ano, era de 26 pessoas (Pechincha & Silveira, 1986: 7). O processo

de demarcação gerou diversos conflitos e se arrastou por muitos anos: o laudo antropológico

que fundamentou a delimitação da área, feito pelo antropólogo Manuel Ferreira de Lima Filho,

data de 1992; a aprovação dos relatórios de identificação e delimitação data de 1995, e, em

1998, a Terra Indígena Karajá de Aruanã é por fim homologada20. A T.I. foi demarcada em três

glebas. A gleba I corresponde a uma faixa de 100m de largura, localizada no centro da cidade,

entre a avenida Altamiro Caio Pacheco e o rio Araguaia, e soma 14 ha. A gleba II, uma área de

893 ha, situa-se em território do estado do Mato-Grosso, do outro lado do rio, em frente ao

centro da cidade. A gleba III, com 705 ha, é também localizada em território goiano, no limite

norte da cidade.

Quando teve início o processo de demarcação, os Karajá ocuparam os poucos lotes

incluídos nos limites da gleba I e que ainda não haviam sido ocupados por seus donos não-

indígenas. A área em que hoje se encontram é o resultado desta ampliação forçada. As partes

desta gleba que já estavam ocupadas em 1986, continuam assim até hoje. Dentro desta

primeira parte da T.I., encontramos um guarda-barcos, algumas mansões e pousadas de

veraneio – que funcionam a todo vapor durante a temporada turística –, o Colégio Estadual

Dom Cândido Penso, a casa do atual prefeito de Aruanã, Hermano de Carvalho, e as casas de

três regionais. Depois do levantamento fundiário em 1992-1993, durante o processo de

identificação e delimitação, novas benfeitorias (de má fé) foram construídas, sobretudo pelos

proprietários das mansões e pousadas de veraneio.

A gleba II (MT), na cheia do rio, é parcialmente alagada. Por este motivo, sua vegetação,

uma mata ciliar (consideravelmente densa e alta, na maior parte da área), não foi derrubada

19

No laudo de Lima Filho (1992: 23) encontramos uma outra versão destes acontecimentos, segundo o relato de um antigo morador da cidade, Renato da Costa Nunes, que data de 1959 o processo de titulação das terras. 20

Para detalhes do processo de demarcação e dos conflitos dele decorrentes, cf. Braga (2002).

Page 26: A cruz e o itxe(k)ò

15

Croquis 01: Terra Indígena Karajá de Aruanã

Desenho: Camila Maia

MT GO

Page 27: A cruz e o itxe(k)ò

16

Mapa 02: T.I. Karajá de Aruanã - Gleba I

Page 28: A cruz e o itxe(k)ò

17

Mapa 03: T.I. Karajá de Aruanã - Gleba II

Page 29: A cruz e o itxe(k)ò

18

Mapa 04: T.I. Karajá de Aruanã - Gleba III

Page 30: A cruz e o itxe(k)ò

19

para a instalação de fazendas. O que não significa, porém, que ela tenha ficado livre de

ocupantes não-indígenas. Havia, numa área de vegetação mais baixa, três ou quatro

moradores, que residiam em pequenas chácaras. A área diante da aldeia, um pedaço de

campo entre o rio e a mata alta, era utilizada, durante a estiagem, como pastagem para

rebanhos. Os agentes de Estado responsáveis pela desocupação da área não obtiveram êxito

na retirada desses posseiros até o ano de 2002. Neste ano, os Karajá decidiram agir por conta

própria: alguns jovens ocuparam a área, com o apoio da comunidade, ameaçando matar o

rebanho bovino caso os ocupantes não se retirassem. Os posseiros se mostraram incrédulos,

ao que uma rês foi abatida. Vendo a concretude da possibilidade dos Karajá cumprirem sua

ameaça, e desamparados legalmente, eles decidiram deixar a área. Hoje, a vegetação toma

conta dos locais dessas antigas chácaras. Também nessa região à beira do rio, onde os

rebanhos pastavam, a vegetação começa a crescer, árvores já despontam, e alguns animais,

sobretudo a capivara, aumentam em quantidade.

A gleba III se situa a 1,2km ao norte da gleba I. O local foi, há algumas décadas,

transformado em uma fazenda de nome Aricá, e assim os Karajá ainda chamam esta terceira

parte da T.I. Depois que o processo de demarcação já havia sido concluído e os ocupantes da

área retirados, a fazenda foi invadida por um homem que se dizia Coronel, que construiu uma

mansão (com mais de dez quartos e piscina) como sede. Ele e seus vários jagunços andavam

sempre muito armados e faziam ameaças constantes aos indígenas – se os Karajá passassem

da cerca da fazenda “dele”, seriam mortos, dizia. O tal Coronel, descobriu-se depois, não era

portador de tal título e havia sido expulso de uma área Xavante pelo mesmo motivo. Apenas

em 2005, também por uma ação dos indígenas, a área foi desocupada. Com o apoio da

comunidade, um grupo de jovens homens, aproveitando que o “Coronel” havia viajado,

deixando apenas um jagunço para vigiar a fazenda, ocuparam a mansão-sede. O processo

durou poucos dias e foi todo muito tenso (os indígenas tinham medo que os posseiros

cumprissem com a promessa e abrissem fogo). Uma equipe da polícia federal foi enviada ao

local e o “Coronel” e seus homens enfim desocuparam a área, sem que, felizmente, nada de

grave tenha acontecido. Os Karajá puderam, então, retomar essas terras: alguns poucos

passaram a morar lá, mas a maioria apenas utiliza os espaço para plantar roças (não muito

grandes). O padrão disperso de ocupação, segundo os indígenas, foi escolhido para evitar que

a área fosse invadida21. Ali, os Karajá construíram também um novo cemitério22.

21

Outras informações sobre a Terra Indígena, os conflitos decorrentes do processo de demarcação e os processos de desocupação das áreas podem ser encontradas em Melo (1999), Braga (2002), [Cavalcanti-]Schiel (2002), Lima Filho (1993, 2003, 2005) e Leite (2007).

Page 31: A cruz e o itxe(k)ò

20

Esse processo histórico de confinamento territorial pelo qual passaram os Karajá de

Buridina foi, sem dúvida, difícil e traumático, sobretudo para os então mais jovens (hoje com

idades entre 20 e 30 anos). As muitas pressões e preconceitos dos regionais acabaram por

criar nesta geração um certo mal-estar em relação à própria cultura. Assim, por exemplo,

deram preferência ao uso do português e hoje não sabem falar o inўrybè23. Mesmo quando

seus pais lhes direcionam a palavra na língua indígena, eles respondem em português. Com o

objetivo de reverter este quadro, foi criado, em 1994, um projeto de revitalização da língua e

da cultura karajá, que leva o nome do fundador da aldeia: Projeto de Educação de Cultura

Indígena Maurehi. O projeto tem de duas frentes principais. A primeira é o Centro Cultural

Maurehi. Localizado na entrada da aldeia, ao lado do portão principal, é chamado pelos

indígenas de Museu (e assim também me referirei a ele). A construção tem o formato

tradicional das casas karajá. Em uma sala na parte de trás estão guardadas algumas poucas

peças de cerâmica e palha; na parte da frente funciona uma loja de artesanato karajá, uma das

principais fontes de renda da comunidade, como dito. A segunda frente é a Escola Indígena

Maurehi, escola bilíngüe vinculada à rede estadual pública de educação. Hoje ela conta com

dois prédios e atende a maioria das crianças e jovens da aldeia (a outra parte estuda no colégio

estadual D. Cândido Penso).

O Projeto Maurehi tem, certamente, atingido seus objetivos. Antes, por exemplo,

“apenas 5% do grupo falavam fluentemente [a língua karajá], e nem mesmo os jovens, filhos

de pai e mãe karajá, a usavam em sua comunicação. Hoje, 90% da comunidade têm, em

proporções diferentes, algum conhecimento dessa língua. Mais de 30% a usam em casa e na

comunidade” (Pimentel da Silva, 2006: 391-392)24. A experiência das crianças de hoje está

muito longe de ser aquela de um ‘mal estar em relação à própria cultura’, e mesmo aqueles

jovens sobre os quais fiz esta afirmação passaram por um processo político de afirmação e

valorização de sua identidade karajá (cf. Portela, 2006).

A aldeia conta com um posto da Funai e outro da Funasa, no qual recebem assistência

odontológica e onde cinco indígenas trabalham (uma enfermeira, dois agentes de saúde, um

AISAM e um segurança). Na Escola Maurehi também trabalham indígenas e alguns cônjuges

22

Havia um grande cemitério ao norte da aldeia. Quando a cidade se expandiu nesta direção, o maquinário que abria a avenida Caio Pacheco destruiu o cemitério, jogando ossadas e panelas de cerâmica no rio (Cf. Lima Filho, 2003). 23

Ou, ao menos dizem não saber. Certa vez, um rapaz que dizia não saber falar a língua indígena, quando embriagado, tentou conversar comigo em inўrybè (a comunicação não foi longe, como se poderia supor, devido à minha falta de conhecimento desta língua). Não se trata, portanto, de uma questão de desconhecimento: entende-se tudo o que se fala em inўrybè, e sabe-se falar minimamente nesta língua, apenas não se fala. 24

Sobre o projeto Maurehi, cf. também Pimentel da Silva, 2009.

Page 32: A cruz e o itxe(k)ò

21

não-indígenas. O Projeto Maurehi e a Funasa, portanto, são as principais fontes de trabalho

assalariado. Geralmente não se trabalha como assalariado fora da aldeia (com algumas poucas

exceções). Os homens jovens, entretanto, sempre fazem trabalhos temporários na cidade para

conseguir algum dinheiro – geralmente trabalha-se por diária.

Em 1997 a Funai construiu 16 casas de alvenaria para os indígenas. Posteriormente, os

próprios Karajá fizeram algumas outras construções, também “de tijolo”, como dizem. Hoje há

25 casas na aldeia. Há ainda outras 8 moradias no Aricá (parte III da T.I.) e um pequeno grupo

que mora na cidade. A população total, incluindo os indígenas e seus cônjuges tori, soma

pouco mais de 200 pessoas.

A comunidade tem um rebanho bovino de cerca de 70 cabeças, que é cuidado por um

vaqueiro não-indígena. A Funai fornece remédios, sal e o que mais for necessário para a

manutenção dos rebanhos e cabe ao vaqueiro, como pagamento, a quarta parte das crias.

Todos os dias, na hora em que o sol está nascendo, o leite das vacas é tirado e os indígenas vão

até o curral (que fica no Aricá, gleba III) buscá-lo.

₪ ₪ ₪

Buridina vive hoje um momento de alegria e entusiasmo em relação a seu projeto de

revitalização cultural, que os Karajá chamam de “resgate”, em parte devido às transformações

ocorridas na Escola Maurehi do ano de 2008 para o de 2009, como a mudança dos professores

e um rearranjo da grade horária, equilibrando o ensino das matérias do currículo das escolas

públicas estaduais e da língua e da cultura indígenas (cf. Capítulo III). As crianças têm mostrado

um grande entusiasmo e conhecimento em relação às questões culturais karajá, o que é

motivo de muito orgulho para os adultos. É neste momento que minha etnografia se inscreve,

e isso tem implicações sobre o tema específico desta monografia.

Os trabalhos anteriores sobre Buridina destoam do que escrevo aqui em aspectos

importantes, pois em geral afirmam que os casamentos com tori não são, de forma alguma,

preferenciais, e que os Karajá de Buridina dizem que se casam com os não-índios

principalmente por dois motivos: primeiro, por ser a Ilha do Bananal muito distante, o que

torna as visitas às aldeias lá situadas algo muito custoso; e segundo, não poderiam se casar

entre si por serem todos parentes. Uma visada sobre a história da aldeia (cf. Capítulo II), bem

como sobre o atual estado dos casamentos (cf. Capítulo III), me leva a sugerir alternativamente

que a mestiçagem e os casamentos com tori foram e são, antes que uma questão de falta de

opção, uma escolha. Durante meu trabalho de campo, não escutei nada sobre os casamentos

com tori serem pouco desejáveis. Pelo contrário, ouvi várias vezes afirmações de que estes

casamentos misturados “não têm problema”, desde que se mantenha a cultura... Essa ênfase

Page 33: A cruz e o itxe(k)ò

22

Croquis 02: Aldeia Buridina

Legenda:

01 a 25 – Casas residenciais A – “Museu” B, C, D, E – Estrutura da Escola Maurehi F – “Ranchão” de reuniões da comunidade G – Campo de futebol

H, I, N – Casas de regionais J – Posto da Funasa K – Posto da Funai L – Casa do atual Prefeiro M – Estrutura do colégio estadual D. Cândido Penso

Desenho: Camila Maia

Page 34: A cruz e o itxe(k)ò

23

em ‘manter a cultura’, e não nos problemas causados pelos casamentos com tori, me parece

um reflexo deste estado de otimismo no qual os Karajá se encontram. No Capítulo III veremos

a maneira como estas duas questões, a mestiçagem e o “resgate”, se relacionam.

Assim, penso que não é o caso de descartarmos as descrições anteriores, tomando elas

como incompletas, insensíveis a determinados aspectos da vida dos Karajá de Buridina, ou

errôneas, simplesmente. Os diferentes discursos dos Karajá, como os que acabei de apontar,

são, certamente, transformações uns dos outros, e não contradições, ou tampouco meros

erros do(a) etnógrafo(a). O que há em comum entre eles, portanto, só pode ser aquilo que

permite que um se transforme no outro. Nessa medida, minha descrição não poderia ser outra

coisa que uma transformação das descrições anteriores. Com um pouco de sorte e de boa

vontade do(a) leitor(a), talvez meu trabalho possa ser uma primeira contribuição para nosso

entendimento deste ‘aquilo’ no caso dos Karajá de Buridina.

₪ Apresentação

A monografia se divide em três capítulos. Começo por esclarecer que a diferença de tom

e de conteúdo entre o primeiro e os dois últimos é também uma diferença temporal. O texto

que serve de base ao Capítulo I é originalmente um trabalho final de curso apresentado à

disciplina “Tópicos Especiais: Sociocosmologias indígenas”, ministrada por minha orientadora,

Profª. Marcela Coelho de Souza, no primeiro semestre de 2008. Depois de algumas mudanças

nesta primeira versão, o texto foi novamente revisto para dar forma a este capítulo. O caráter

bibliográfico e a ausência dos Karajá nas discussões centrais assim se explicam. Na primeira

parte do texto, escrevo sobre indigenismo, sobre a maneira como os índios – especificamente

aqueles em cidades – são concebidos no imaginário nacional. Na segunda parte, discuto

algumas questões relativas à presença indígena nas cidades, como o que é esta urbanidade de

que se fala e a relação entre espaço físico e socialidade, tentando, com isso, criar um quadro

de referência que nos auxilie na descrição e análise de um caso concreto, o dos Karajá de

Buridina. Termino fazendo algumas considerações sobre o que, do ponto de vista indígena,

poderia ser o espaço – o “lugar”.

Os Capítulos II e III são o corpo da etnografia. No primeiro narro a história da aldeia,

desde dos tempos antigos, quando Buridina foi a maior aldeia karajá da qual já se teve notícia,

até a décadas de 1970 e 1980, quando ela já era um agrupamento de algumas poucas famílias

ligadas por estreitos laços de parentesco. Percorrendo as escolhas das personagens (os

pais/mães, tios/tias e avôs/avós dos indígenas mais velhos de hoje) e os motivos alegados –

para, por exemplo, permanecer junto à cidade de Aruanã, não realizar rituais e não levar os

filhos para participar deles em outras aldeias, casar com não-índios, etc. –, procuro delinear o

Page 35: A cruz e o itxe(k)ò

24

sentido que essa ‘experiência urbana’ me parece ter para o grupo. Não tenho a pretensão de

discorrer sobre o sentido que os acontecimentos narrados tiveram para as personagens que os

viveram: o sentido que persigo é o que a narrativa tem para os meus narradores,

descendentes das personagens principais. Argumento que a experiência urbana dos Karajá de

Buridina é uma experiência do mundo tori. Mas essa é apenas metade da questão, pois há um

outro ‘lado’, que é o que trato no capítulo seguinte.

Inicio o Capítulo III discutindo a idéia de mistura, afirmando que, para os Karajá de

Buridina, a relação entre sua própria perspectiva e a dos tori é uma questão de duplicidade,

antes que de ambigüidade ou contradição. Inicio, portanto, colocando a idéia que sobre a qual

o capítulo se debruça. Depois passo aos casamentos interétnicos, explorando as classificações

karajá dos descendentes de casamentos entre índios e não-índios. Delineio, em seguida, o

aspecto problemático que a mestiçagem e a mistura assumiram na experiência histórica deste

grupo, para depois indicar que estes termos têm significados distintos. Focando, a partir de

então, o texto na mistura, me dedico a mostrar diversos exemplos dessa duplicidade de

Buridina, os ‘dois lados’ de muitas coisas, para, por fim, explorar uma dimensão específica e

crucial da questão: a duplicidade dos corpos. Este capítulo é uma versão revista e bastante

ampliada de um texto anterior (Nunes, 2009c).

No Epílogo, faço uma reflexão sobre a (im)possibilidade de uma duplicidade plenamente

equânime, sobre como a identidade é uma questão de desequilíbrio das perspectivas.

Na conclusão, além de retomar alguns pontos do texto, avanço uma hipótese acerca da

construção da pessoa em Buridina.

Antes de seguirmos para o Capítulo I, apenas faço um esclarecimento sobre o

posicionamento das fotos. Mais do que simplesmente ilustrar visualmente o que digo, a idéia

foi construir uma narrativa visual paralela, que, obviamente, se conecta ao texto, mas não de

maneira linear nem meramente explicativa/ilustrativa.

Page 36: A cruz e o itxe(k)ò

25

Page 37: A cruz e o itxe(k)ò

26

Capítulo I

Aldeias urbanas ou cidades indígenas?

We were seen as ‘cardboard cutouts’, white in orientation with different coloured skins. Many aboriginal people living in urban centres have refused the logic of the terminology that have been foisted upon us by successive pieces of legislation, and now by the social scientists: ‘half-caste’, ‘coloured’, ‘detribalized’, ‘remnant’ and so on. We have rejected the notion that we are assimilating into the European population and adopting white lifestyles. We are exploring our own aboriginality and are finding that the white social scientists cannot accept our own view of ourselves.

Marcia Langton

Não há dúvidas que o cenário recente em que se vêem hoje engajados os povos

indígenas – e sua presença, utilização, apropriação das cidades parece saltar aos olhos como

um caso proeminente neste “novo”25 cenário – tem colocado uma série de questões

desafiadoras para a etnologia. Os universos indígenas com os quais viemos a nos familiarizar

envolvem-se, cada dia mais, com processos de nosso próprio mundo, como, por exemplo, o

consumo, a monetarização, a dependência de mercadorias industrializadas, o dinheiro, o

capital... Se evoco estes exemplos, e não outros – a lista poderia se estender até quase o

infinito: conversão religiosa, educação escolar, formação acadêmica/intelectual ou técnica,

modos de se vestir, modos de comer, modos de pensar... –, é por toda a carga que eles

trazem, pelo peso que a economia tem em nossa própria forma de organizar e dar sentido à

experiência mundana. Como não pensar, por exemplo, em Marx e toda a conotação subversiva

que tem o dinheiro em sua obra? O capital dissolveu, para este autor, tudo o que encontrou

pela frente, instaurando sua própria (e inevitável) lógica. “Tudo o que era estável e sólido

desmancha no ar” (Marx & Engles, 2001: 29). Mas não é o caso, felizmente, de evocarmos um

pessimismo sentimental (Sahlins, 1997a; 1997b) como na famosa lamentação com a qual

Malinowski abre seu principal livro:

Encontra-se a moderna etnologia em situação tristemente cômica, para não dizer trágica: no exato momento em que começa a colocar seus laboratórios em ordem, a forjar seus

25

Entre aspas, pois, sabemos, a presença indígena nas cidades brasileiras é antiga, mesmo que esse fato não tenha encontrado paralelo na produção antropológica...

Page 38: A cruz e o itxe(k)ò

27

próprios instrumentos e a preparar-se para a tarefa indicada, o objeto de seus estudos desaparece rápida e inevitavelmente (1976: 15).

Os “povos nativos” não estão desaparecendo diante de nossos olhos; e o adjetivo

moderno já não basta para descrever nossa disciplina. Isso são águas passadas. Mas daí até

encontrarmos soluções teórico-etnográficas satisfatórias para descrever alguns desses

recentes processos pelos quais esses povos vêm se engajando, há um longo caminho. Não que

a etnologia não tenha feito alguns progressos consideráveis – a literatura recente sobre qual

esta trabalho se ancora é prova disso –, mas ainda há muito o que se entender.

No que tange à questão que se persegue aqui, isto é, a presença indígena nas cidades,

estamos, me parece, ainda alguns passos atrás. Primeiro, por que apenas muito recentemente

– menos de uma década, eu diria – essa situação, que foi (e tem sido) descrita como de

“urbanidade” indígena26, começou a parecer legítima aos olhos de antropólogos e

antropólogas, ou ao menos começou a efetivamente despertar interesses de pesquisa. Depois

do pioneiro trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira sobre os Terena nas cidades de Campo

Grande e Aquidauana, no Mato Grosso (1968), e de quatro dissertações de mestrado do início

da década de 1980 (Romano, 1982; Lararin, 1981; Fígoli, 1982; Penteado, 1980 – as três

primeiras sob orientação do próprio RCO), e que permaneceram aí isoladas, é apenas nos anos

2000 que a temática volta a aparecer entre as preocupações etnográficas de alguns.

Aqui talvez possamos equacionar nossa própria disciplina à idéias que circulam num

âmbito mais amplo, o imaginário nacional, no qual há uma associação entre índios e

floresta/natureza, por um lado, e não-índios e cidade/civilização, por outro. Num tal contexto,

a passagem (lógica27) dos indígenas ao ambiente urbano tende a ser pensada como um

processo de “desagregação cultural”, aculturação, tornar-se igual a outro e, em conseqüência,

perder-se de seu próprio ser. Eis aqui um conjunto de idéias análogas àquelas que sustentam o

pesadelo de Marx – a corrosividade do capital. Não se trata, porém, de afirmar que esse jogo

de associações seja a única forma, o único arranjo, que encontramos no imaginário nacional

das relações entre os termos em questão – apesar de os termos parecerem bastante mais

estáveis que as relações. Mas certamente é um arranjo possível, como pretendo mostrar pela

análise de uma breve anedota etnográfica, no primeiro tópico deste capítulo. E, também

certamente, a antropologia não ficou imune a essas idéias; e ainda hoje sente seus efeitos, em

algum grau. Explorando a questão, pretendo mostrar como, do ponto de vista indígena, um

26

Alguns rótulos comumente utilizados para designar os indígenas em cidades são “índios urbanos”, “índios citadinos”, “índios desaldeados” e, por que não, “índios aculturados”. Cf. infra (p. 37, nota 34) objeções sobre a propriedade destas expressões para designar a situação em questão. 27

Não me refiro, com esta expressão, a um processo efetivo (de mudança espacial), mas a uma forma de concebê-lo. A passagem, por isso, é lógica.

Page 39: A cruz e o itxe(k)ò

28

problema crítico desta associação entre índios e natureza (e de suas conseqüências) é uma

concepção de cultura que supõe uma essência, o que implica que a mudança, “tornar-se

outro”, seja vista como um movimento contra-identitário, algo como perder-se de seu próprio

self.

Na segunda parte do texto, passo a uma reflexão sobre alguns conceitos, na tentativa de

formular essa “questão urbana” de uma maneira mais sensível ao ponto de vista indígena. O

esforço, num sentido, é de pensar a cidade como um análogo de outros espaços (como as

roças ou o “mato”, por exemplo), atentando, assim, para a maneira como os indígenas se

relacionam com os diferentes lugares (e com os seres que os habitam), antes que para os

processos e relações que, do nosso ponto de vista, são inerentes a um determinado espaço – a

cidade. Pois tomando cerveja de mandioca ou cerveja industrializada, comendo frango ou

caititu, pintando o corpo ou usando “roupas de branco”, estamos falando de populações cuja

forma de pensar é muito distinta da nossa; e não poderíamos supor que os índios passassem a

usar nosso próprio esquema cognitivo-categorial apenas por que se apropriam de nossas

coisas. Não poderíamos, igualmente, supor que a busca ativa por incorporação de capacidades

de seres Outros, através da experimentação de seus pontos de vista, por exemplo, só fosse

operativa para outros grupos indígenas ou certos animais. Nós, não-índios, também somos

Outros dos índios. E se assim o é, por qual motivo suporíamos, a priori, que isso se daria de

outra forma quando os índios estão nas cidades?

₪ “O povo Karajá acredita muito que saiu do fundo do rio”

No mês de maio de 2008, alguns Karajá de Buridina estiveram em Goiânia (GO) fazendo

uma exposição sobre sua cultura e artesanato. Havia poucos representantes do grupo,

concentrados em uma rede de parentesco bastante próxima da liderança da aldeia, o cacique

Raul Hawa(k)a’ti. Eram, 6 pessoas, 3 homens – Raul, seu filho e seu primo Renan – e 3

mulheres – uma delas era irmã do cacique. Na varanda em frente à porta principal do Museu

Antropológico da UFG, local da exposição, estavam todos, exceto Raul, expondo suas peças de

artesanato. Homens de um lado e mulheres de outro, cada grupo vendendo um determinado

tipo de artesanato, bem ao gosto da forte divisão de gênero operante entre eles. Dentro do

Museu, em uma sala logo à direita da porta, estava a exposição sobre a cultura karajá. Um

rádio tocava uma música cantada durante o Hetohokў (o ritual karajá de iniciação masculina),

escondido atrás de um televisor, onde um vídeo dessa festa era exibido periodicamente. No

chão, logo à frente, havia uma esteira de palha trançada, também utilizada no contexto da

iniciação masculina. A parede lateral estava coberta com fotos da aldeia de Buridina, e ao

fundo havia outra esteira e três chocalhos colocados sobre pilares.

Page 40: A cruz e o itxe(k)ò

29

No início da tarde do último dia da exposição, uma escola trouxe seus alunos para visitá-

la: cerca de 50 crianças, que deviam ter algo entre oito e dez anos, não mais que isso. Uma das

organizadoras chamou o cacique e lhe pediu que contasse uma narrativa mitológica para as

crianças, para que a coisa toda ficasse mais animada. Ele sentou-se, então, na esteira, de

costas para o televisor, e a meninada aglomerou-se ao seu redor. Contou o “mito de criação”

de seu grupo, e logo de saída soltou a frase: “O povo Karajá acredita muito que saiu do fundo

do rio”. Prosseguiu narrando a descoberta do mundo em que hoje se vive, o regresso do

descobridor, a volta dos curiosos e ansiosos por um mundo amplo e diverso – distinto, por

isso, do fundo do rio – e, por fim, a consolidação do atual estado das coisas através do

fechamento da conexão entre os mundos subaquático e da superfície. E encerrou a narrativa

repetindo a frase inicial, “o povo Karajá acredita muito que saiu do fundo do rio”28.

Contado o mito, as professoras perguntaram se as crianças tinham perguntas a fazer.

Um silêncio tomou conta da sala. Depois de alguns instantes, elas foram novamente instigadas

a fazer perguntas. Teve início, então, a avalanche. Várias mãos erguidas ao ar disputavam a

oportunidade de fala. Outras falavam sem levantar a mão, simplesmente. Logo de saída, um

garoto dirigiu-se à professora com a pergunta: “Ele é índio de verdade?”. Risadas de uns,

constrangimento de outros. Raul respondeu que sim, era “índio puro”, tanto sua mãe como

seu pai eram índios, igualmente “puros”. Seguiram-se, então, perguntas de todos os tipos. “É

verdade que antigamente matavam um só animal para toda a tribo comer?”; “Que tipo de

dança eles fazem lá na tribo?”; “Antigamente eles andavam nus?”; “Que tipo de comida que

eles comem lá na tribo?” Seria exaustivo e desnecessário reproduzir todas as perguntas aqui.

Bastam alguns comentários. O fato de o público ser composto de crianças dá contornos

interessantes à situação. O estranhamento produzido pelo encontro era visível. A inabilidade

em formular perguntas mostrava o quanto não estavam familiarizadas com a situação e o

pouco conhecimento que tinham sobre os índios. Mas isso não torna a situação menos

ilustrativa. Pelo contrário, acredito que essa experiência ilustra com clareza que comumente se

faz sobre os indígenas.

Ao se depararem com um índio Karajá, que em outros termos poderia ser descrito como

um magro senhor, cabelos lisos, negros, e compridos, bigode, óculos, vestido com uma calça

jeans, uma blusa amarela e um grande relógio prateado, a primeira reação das crianças foi se

questionar se ele era realmente índio. Notem que o autor desta primeira pergunta não se

dirigiu ao próprio cacique, mas à professora. As perguntas expressavam (produziam), assim,

28

Cf. versões deste mito em Rodrigues (2008: 76-77), Lima Filho (1994: 140), Pimentel da Silva & Rocha (2006: 90-108), Ehrenreich (1948: 79-80) e Lipkind (1940: 248-249), estas duas últimas tendo sido retomadas por Lévi-Strauss no primeiro volume das Mitológicas (2004: 180-181).

Page 41: A cruz e o itxe(k)ò

30

um duplo distanciamento, sincrônico e diacrônico. Ou seja, o imaginário que as crianças

nutriam sobre os índios, de que tais perguntas são expressão, situava seu objeto de reflexão

num lugar remoto geográfica e temporalmente através do conceito de tribo. Tribo representa

tanto a aldeia, associada nesse imaginário à natureza, espaço natural oposto por definição ao

espaço urbano (distância geográfica, sincrônica), quanto uma certa concepção de povo não

civilizado (distância temporal, diacrônica). E isso foi evidenciado pela estrutura das perguntas.

A grande maioria das crianças se dirigiu às professoras, e não a Raul. Ele próprio não parecia,

na maior parte do tempo, um interlocutor possível. Mas a palavra lhe foi sim dirigida

diretamente, algumas vezes. Nesse caso, os pronomes de referência variavam entre o “eles” e

o “vocês”, marcando a exclusão ou inclusão daquele indígena do restante dos Karajá. Quando

as interlocutoras eram as educadoras, a referência ficava sempre, é claro, a cargo do pronome

“eles”, excluindo, assim, aqueles de quem se falava do contexto da fala, qual seja, o presente e

a cidade. Raul, nesse caso, não passava de um suporte de símbolos, idéias e ideais... No

tocante aos deslocamentos sincrônico e diacrônico, poderíamos sintetizar as estruturas

interrogativas (cognitivas) como conjugando dois pares de oposição: aqui / lá (tribo, aldeia) e

hoje / antigamente. Essas oposições eram articuladas entre si sempre de maneira a produzir

um dos dois distanciamentos: ou se dizia “hoje, lá na tribo (aldeia)...”, ou “antigamente...”, não

se negando, neste último caso, a possibilidade de coexistência espacial (mas marcando a

temporal). O que quero enfatizar é que estes três referentes (tempo, espaço e o pronome de

referência e a quem se dirige a fala,) eram combinados de modo que, no plano cognitivo, os

índios nunca eram simultaneamente situados no mesmo tempo e espaço que os falantes. E

quando o eram, isso se dava por meio da segregação do cacique do restante da coletividade

Karajá, como se ele mesmo não fosse indígena – posto que se estava falando sobre “os índios”,

mas não se estava falando dele.

Aqui, volto ao propósito de ter inserido essa anedota no texto. As idéias de que as

perguntas dessas crianças são expressão, acredito, não são casuais ou contingenciais. Ao

contrário, são muito gerais, parte deste indigenismo29, deste estoque de idéias e ideais de que

falava linhas acima. O que fica evidente através delas é uma associação de índios e não-índios,

29

Tomo o conceito no sentido que Alcida Ramos lhe confere. A autora expande seu significado para além da concepção de Antônio Carlos Souza Lima, que assume indigenismo como “um conjunto de idéias (e ideais) referentes à incorporação dos povos indígenas aos Estados Nacionais” (Souza Lima, 1991: 239 apud. Ramos, 1998: 6), incluindo um vasto imaginário que se tem a respeito destes povos. “O que a mídia escreve, romancistas criam, missionários revelam, ativistas dos direitos humanos defendem, antropólogos analisam e os índios negam sobre o índio contribui para um edifício ideológico que toma a ‘questão indígena’ como sua unidade constitutiva [building block]. (...) Indigenismo remonta a um elaborado construto ideológico sobre alteridade [otherness] e identidade [sameness] no contexto da etnicidade e da nacionalidade” (Ramos, 1998: 6-7) [traduções minhas].

Page 42: A cruz e o itxe(k)ò

31

ou melhor, das essências de ambos (supondo, portanto, que elas existem), a

espaços/ambientes diametralmente opostos, floresta e cidade. O que está no fundo destas

concepções, o que as sustenta, é uma definição negativa do índio, como aquilo que os não-

índios não são. Apenas nós mesmos temos, nesse esquema, subjetividades e concepções de

mundo autônomas, levadas de fato a sério. Para o indigenismo não importa muito o que os

índios realmente sejam, basta que eles sirvam, como mencionei acima, de suportes simbólicos

para as elaborações filosóficas do ocidente sobre o que viria a ser algo que não ele próprio,

elaborações sobre Outros, sobre alteridade, em suma.

Depois do bombardeio das crianças, Raul saiu da sala, no momento em que uma mulher

lhe abordou. Conversaram um pouco e ela saiu. Me aproximei dele e comentei, em tom de

brincadeira, que não havia sido fácil para ele lidar com as perguntas da criançada. Sua resposta

foi que estava acostumado a falar para públicos bem maiores. Aquelas (aproximadamente)

cinqüenta crianças não o assustaram. Quanto às perguntas, disse ele, eram geralmente

parecidas, expressavam sempre essas mesmas idéias. Concluiu, então: “Mas é assim, mesmo.

Cada um fala o que pensa”.

A passagem (lógica) do índio ao ambiente urbano, problema tratado aqui, lida

diretamente com essa questão das essências, como colocado acima. A idéia de “índios

urbanos” parece a esse imaginário uma contradição em termos. O selvagem fora da selva,

(quase) camuflado entre prédios, é pensado como um indivíduo deslocado, fora de seu próprio

mundo, em contradição com a essência de seu ser. Um dos problemas envolvidos aqui é uma

certa teoria da mudança cultural, que toma a transformação como um processo de

degeneração da identidade, tornar-se diferente de si próprio, deixando, assim, de ser quem se

é30. Nas palavras de Viveiros de Castro,

Entendemos que toda sociedade tende a preservar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessário uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu preservar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras que si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm volta. Não há retroceder, a forma anterior foi ferida de morte (2002a: 195).

O autor está, aqui, sintetizando a aplicação da metáfora do mármore e da murta, esta

última simbolizando uma concepção em larga medida oposta à apresentada, e que

caracterizaria mais precisamente o modo indígena de mudar. A murta não apresenta uma

forma fixa. Poda-lhe, molda-lhe, e os galhos tornam a crescer, deformando a imagem que lhe

havia sido imprimida. Aos olhos dos ameríndios, a forma não é o fator determinante do ser. A

30

Esse “quem se é”, sendo a essência que se supõe.

Page 43: A cruz e o itxe(k)ò

32

transformação é, antes, a maneira mesma pela qual eles se auto-constituem como coletivos

propriamente humanos. Se há algo que caracteriza a murta, não é, certamente, sua forma,

sempre cambiante, mas sim sua dinâmica de metamorfose. Em oposição, “nossa idéia corrente

de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de

murta (id. ibid.)”.

Se o propósito deste texto é refletir sobre as ‘cidades indígenas’, como sugere o título

do capítulo, sobre o que é, do ponto de vista indígena, essa “experiência urbana”, talvez

pareça longa esta parte inicial, que versa sobre a perspectiva oposta. Mas se optei por me

deter um pouco neste ponto, o fiz por que a antropologia não esteve (e em larga medida ainda

não está) livre desta forma de conceber a questão.

Talvez o exemplo mais célebre deste fato seja o trabalho de Robert Redfield, sobretudo

seu conceito de continuum folk-urbano, pelo qual o autor tenta apreender a idéia de que as

instituições tradicionais da sociedade de folk tendem a se dissolver a medida em que os

indivíduos seguem (leia-se, mudam-se) em direção às cidades, num processo contínuo e

progressivo (ou regressivo) que liga os dois extremos, a sociedade de folk e o mundo urbano,

onde o que caracteriza o agrupamento das pessoas oriundas do outro extremo do continuum

seria a desorganização social (1953). Índios/brancos, selva/civilização, campo/cidade,

aldeia/cidade, folk/urbano, todas essas oposições parecem ser do mesmo tipo. No fundo,

talvez todas elas respondam, ou sejam reflexo, de outra dicotomia, altamente ocidental e

ocidentalizante: natureza/cultura.

Me pergunto se essa dificuldade de conceber sem excessivos desconfortos conceituais

um urbano “folkizado” ou um folk urbanizado, de ver, por exemplo, as relações inter-pessoais

na cidade perpassadas por relações de parentesco ou outras relações, sempre simbolicamente

mediadas, de um lado, e, de outro, ir a cidade comprar calções coloridos para fazer a marcação

das distintas “turmas” masculinas de um ritual Xikrin de nominação e voltar também com

rádios e televisões ou fogões na bagagem (Gordon, 2006), me pergunto se essa dificuldade não

está em conexão direta com o trabalho de purificação, de que fala Bruno Latour (1994), atrás

do qual toda a massa de híbridos é trabalhada de maneira a produzir dois pólos puros

(purificados, entenda-se) e distintos: natureza e cultura. Seriam campo (aldeia, folk) e cidade

lugares caracterizados por tipos de sociabilidades tão distintas assim?

Ditas essas palavras, passo a uma reflexão sobre o que exatamente viria a ser este

objeto que se persegue. O significa este binômio “índios urbanos”? Quais as conseqüências de

sua utilização? O que, afinal, pode significar essa cidade, do ponto de vista dos índios?

Page 44: A cruz e o itxe(k)ò

33

₪ Recusando a lógica da terminologia

A maneira como se lida conceitualmente com a presença indígena nas cidades tem

implicações epistemológicas importantes. Olhemos mais de perto a idéia-valor “índios

urbanos”. Existiria um tipo de índio que é “urbano”, diferente dos outros, que seriam rurais,

aldeados, ribeirinhos? Tal idéia é tributária dessa “nossa idéia corrente de cultura”, que

“projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore”, para tornar a

Viveiros de Castro. A passagem (lógica) ao ambiente urbano é pensada como uma lapidação

relativa deste mármore-self, cristalizando-se, assim, estados ou situações, em modos de ser. O

que proponho aqui é que recusemos essa lógica da terminologia, como diz Marcia Langton

(1981: 16) no trecho que serve de epígrafe a este capítulo. A lógica que nos interessa é a

indígena.

O que significa, então, este ‘estar na cidade’? Há muitos casos. Desde grupos como os

Pankararu, que, há décadas, migraram do nordeste brasileiro e se estabeleceram no arredores

(hoje periferias, favelas) de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Há casos como

os Yaminawa, no Acre, que não moram nas cidades, por assim, dizer, mas estão em um vai e

vem constante entre as elas31 e suas aldeias. (Calavia Sáez, 2006). Julio Cezar Melatti, em um

artigo sobre a população indígena brasileira, distingue algumas situações quanto à “população

indígena urbana”. Algumas Terras Indígenas assistiram cidades nascer e crescer em seu

interior, provocando uma situação em que “os índios vivem próximo ou mesmo dentro da

cidade”. É o caso de Águas Belas, Pernambuco, dentro da TI dos Fulni-ô. “Situação semelhante

é a de indígenas que têm sua terra indígena encostada em cidade” (2004: 29). Um exemplo são

os Ticuna que vivem junto ao aeroporto de Tabatinga ou ao lado da cidade de Benjamin

Constant, no estado do Amazonas. Melatti cita ainda cidades que aglutinam indígenas de uma

determinada área, como São Gabriel da Cachoeira (AM), e centros mutli-regionais ou

metropolitanos, para onde convergem índios de diferentes regiões (id.: 28-29).

O que essa diversidade nos mostra é que não há uma situação a que se possa referir

como essa “situação de urbanidade” dos índios. As especificidades de cada caso implicam

modos (e intensidades) de relação específicos com a cidade (e seus habitantes). Assim, ao

pensar um caso de inserção indígena na cidade – e isso deve ser feito empiricamente –, há

obviamente de se levar em conta sua cosmologia e, dentro desta “estrutura” geral, sua noção

específica de territorialidade. O caso dos Guarani do Mato Grosso, etnografado por Alexandra

Barbosa da Silva, fornece um exemplo interessante. As aldeias desse grupo estão, hoje,

situadas em uma área densamente povoada, ocupada por cidades e fazendas e costurada por

31

Desde alguns pequeninos aglomerados urbanos próximos à Terra Indígena, até Rio Branco, ou ainda além, por vezes.

Page 45: A cruz e o itxe(k)ò

34

rodovias. Grande parte dessas terras hoje ocupada pelos não-índios é parte do território

historicamente ocupado pelo grupo.

Ocorre que os Guarani raramente se distribuíram no território em espaços restritos, os quais poderiam ser classificados como “aldeias”. Assim, este termo, que atualmente se encontra generalizado mesmo entre os índios para denominar a área indígena, espaço de exclusividade étnica, é produto da lógica colonialista (2007: 14).

A autora analisa a movimentação dos índios através deste território. Há famílias situadas

nas reservas, outras nas fazendas, algumas à beira das estradas e, finalmente, há aquelas

morando nas cidades. Ao longo da tese, ela demonstra a impropriedade de se falar desse

movimento em termos de migração, pois, para os Guarani, as modificações que aconteceram

nesse território, qual seja, o surgimento de cidades, fazendas e rodovias, não constituem “algo

como territórios diferenciados”. São, antes, tipos distintos de ambiente, que entram na

composição deste território específico, conhecido e ocupado historicamente pelos Kaiowa e

Ñandéva. O cerne da análise, para a autora, não é, portanto, o espaço, o ambiente físico onde

os índios se instalam – que, não obstante, certamente engendra relações específicas e

diferenciadas. “O elemento central, a atuar como princípio orientador das ações, relações e

condutas ao longo do tempo e de todo o processo ... é o te’yi/ñemoñare, ou seja, a família

extensa” (id.: 239). A autora interpreta a presença guarani nesses diversos ambientes como

uma estratégia de diversificação que permite às famílias uma ocupação diferenciada do

território. “A presença de membros de um grupo doméstico em vários ambientes vem a

potencializar a capacidade de obtenção de recursos e/ou de acesso a estes” (id.: 240).

O exemplo levanta considerações interessantes sobre o problema. Fica claro que o

trânsito guarani pelo território obedece à lógica indígena. Arrisco dizer que, para eles, sair da

“aldeia” e ir morar na cidade seja menos urbanizar-se que colocar-se numa posição diferencial

em relação à família extensa32, posição essa que cumpre função específica na perpetuação do

grupo doméstico. Estando em outro ambiente, a vida que se leva certamente não é mais a

mesma, mas a lógica que orienta as “ações, das relações e das condutas” continua sendo a

lógica da família extensa, ou talvez poder-se-ia dizer, da produção do parentesco.

A noção de ambiente permite complexificar a questão, distinguindo duas dimensões do

conceito de cidade, comumente indistintas – cidade como espaço físico; e cidade como locus

32

O fato de o diferencial desta posição ser um trato mais direto e intenso com o mundo não-indígena, não deve suscitar a idéia de que ela seja, por isso, mais distintiva, mais valorizada que outras. Pensar assim seria atribuir um peso indevido à influência de nosso próprio universo sobre a percepção indígena do mundo. Tal posição é diferencial sim, mas tão diferencial quanto outras, por exemplo a de curador/xamã ou de líder de te’yi/ñemoñare. Se os recursos dos não-índios são imprescindíveis, são tão imprescindíveis quanto outros.

Page 46: A cruz e o itxe(k)ò

35

de um modo de existência específico. A esse propósito, cito um trecho da dissertação de

mestrado de Raimundo Nonato da Silva, sobre os indígenas na cidade de Manaus.

Antecipo que não é minha intenção realizar um estudo do fenômeno urbano por meio de seus processos analíticos, mas, tão-somente, categorizá-lo, como bem definiu Nels Anderson (1993), ao afirmar que o urbanismo como um modo de vida que “no se confina a las ciudades y pueblos, aunque surge de los grandes centros metropolitanos. Es uma forma de proceder y eso significa que uma persona puede ser muy urbana em su modo de pensar y su conduta aunque viva en una aldea” (Anderson, 1993: 15) [2001: 15].

A urbanidade seria então esse “modo de vida” – modo de existência, prefiro dizer – que

se origina na cidade, mas não se confina a ela. Já em 1968, Roberto Cardoso de Oliveira, em

seu pioneiro Urbanização e Tribalismo, sua tese de doutorado sobre os índios Terena nas

cidades de Campo Grande e Aquidauana (MT), reconheceu essa distinção, a seu modo. E isso

está contido no próprio título do livro. No capítulo conclusivo, o autor fala de um duplo

processo, qual seja, a “presença” da cidade na aldeia/reserva, e a “persistência” da aldeia na

cidade.

A “presença” da Cidade na Reserva deve ser entendida como a incorporação de costumes e valores urbanos (i. e., observáveis na cidade) ao estilo de vida de Aldeia, alterando-o em poucos, mas significativos, aspectos. (...) A idéia da “persistência” da Aldeia na Cidade dever ser entendida como a manutenção dos elos tribais [essencialmente de parentesco] nas condições de vida urbana (1968: 209-210).

Alexandra Barbosa da Silva afirma que este autor acaba sugerindo, mesmo que

indiretamente, que há um “índio de cidade” ou “de fazenda” (2007: 204), reificando, assim,

um esquema tipológico. Talvez. Acredito que isso, no entanto, não pode encobrir este avanço

significativo do autor. Numa época em que a idéia de aculturação ainda estava decisivamente

viva33, Roberto Cardoso abre espaço para pensar tanto os indivíduos nas reservas quanto os

nas cidades como igual e legitimamente indígenas. Ao longo do livro fica claro que, em ambos

os ambientes, a mesma lógica está a operar, ordenando e dando sentido às ações e relações.

Aqui, também, tratava-se da lógica do parentesco.

Mas note-se que, nesse duplo deslocamento proposto por Cardoso de Oliveira

(“urbanização” e “tribalismo”), a idéia de cidade assume os dois sentidos apontados acima. A

cidade “presente” na aldeia/reserva é um modo de existência, uma socialidade específica, ao

passo que nessa cidade na qual a aldeia “persiste”, está-se falando do espaço físico. Em um

certo sentido, poder-se-ia situar o conceito de ambiente, utilizado por Barbosa da Silva, entre

estes dois outros – espaço físico e modo de existência –, pois ele carrega parte de ambos.

Ambiente não é apenas um local, inclui um componente relacional, implica interações

33

Se é que ainda não estamos nessa época...

Page 47: A cruz e o itxe(k)ò

36

específicas com agentes mais ou menos determinados. Mas apenas em um certo sentido, pois

há uma associação com um determinado espaço físico. Só há um ambiente urbano na cidade.

Isso torna-se particularmente interessante a medida que não parece haver, para o

pensamento indígena, uma distinção significativa entre o físico e o social. Estar na cidade

implica relacionar-se com estes seres tecnicamente potentes e moralmente decaídos, os

brancos. Estar na floresta, da mesma maneira, implica relações (outras) com seres outros.

Longe de ser “objetividade pura”, como em nosso discurso materialista, a matéria é localizada

culturalmente, e só faz sentido pois é significada, pois está imersa em nossa estrutura

simbólica (Sahlins, 2003). Para dar conta dessa ‘dupla dimensão’ da idéia de ambiente, opto

aqui por utilizar o conceito de lugar.

Fazendo essa distinção entre as duas dimensões do conceito de cidade, podemos ver

que os processos vivenciados não são inerentes ao ambiente urbano, apenas aí se concentram,

pois daí se originam. Afinal, é de algumas características da socialidade dos não-índios que

estamos falando. Tomemos o livro de Geraldo Andrello como exemplo. Intitulado Cidade do

Índio (2006), o trabalho trata sobre Iauaretê, povoado multi-étnico e múlti-linguístico situado

no rio Uaupés, afluente do rio Negro, no lado brasileiro da fronteira entre Brasil e Colômbia.

Iauaretê surgiu a partir de uma missão salesiana que se instalou no local, onde havia então

uma grande maloca. A missão constituía um atrativo a outros indígenas da região pela

possibilidade que representava de acesso a mercadorias, tratamento de saúde e escolarização.

Desta forma, os diversos grupos étnicos – Tukano, Tariano, Pira-Tapuia, Hupda, Arapasso,

Wanano, Tuyuca, entre outros – foram se aglutinando no local, acabando por formar

aglomerados algo parecidos a pequenos bairros. Quando do trabalho de campo do autor (por

volta de 2002), o lugar, “um núcleo que hoje assume feições urbanas” (op. cit.: 18, grifos

meus) – com ruas, luzes, festas e divertimentos noturnos, etc. –, já abrigava mais de 2.500

pessoas. Andrello mapeia em Iauaretê processos “tipicamente urbanos”, como a urbanização

mesma (construções em alvenaria, energia elétrica, um comércio local, etc.), adensamento

populacional, diminuição da capacidade dos jovens de mapearem as relações sociais que

envolvem suas famílias (crescente impessoalidade do ambiente) e a inflação do fluxo de

mercadorias e de dinheiro. É evidente, entretanto, que essa descrição só faz sentido tendo

como referência o modelo de socialidade do caso Tukano. Duas mil e quinhentas pessoas não

são uma superpopulação para alguns grupos jê, por exemplo, mas sim para estas etnias que

viviam em malocas separadas cuja população não deveria passar de duas centenas de pessoas.

O mesmo pode-se dizer sobre a incapacidade dos jovens de mapear as relações nas quais sua

família está envolvida, pois essa capacidade dependia, antes, da separação espacial entre os

grupos agnáticos, hoje consideravelmente mesclados pelos bairros de Iauaretê. Essa

Page 48: A cruz e o itxe(k)ò

37

observação traz de volta uma consideração colocada linhas acima, de que ao consideramos um

caso específico de inserção indígena no ambiente urbano, devemos fazê-lo tendo em conta o

modelo de socialidade específico do grupo em questão.

É curioso, portanto, que, apesar do título sugestivo, o autor cautelosamente opte por

designar o local como um povoado, e não como uma cidade. O título é, parece, mais uma

indagação do que outra coisa. Qual seria o limiar que permitiria enfim considerar Iauaretê

como uma cidade? Será preciso que seja habitada por brancos? Penso que não. O ponto,

porém, é que, se há esse limiar, pouco importa. Pois o que está em jogo não é qualquer

definição de cidade, mas os processos34 de interação, inter-relação, indigenização, apropriação,

re-significação do mundo dos brancos que, eu arriscaria dizer, definem a experiência indígena

da cidade. Pois é na cidade que este mundo se concentra, num certo sentido. As cidades são o

símbolo do desenvolvimento do Ocidente e da modernidade. É lá que estão as fábricas, as

emissoras de televisão, as companhias aéreas, os servidores de internet. Ou, na visão dos

índios do Noroeste Amazônico em São Gabriel da Cachoeira (AM), lá há “escola, hospital,

telefone, estabelecimentos comerciais, moradores brancos” (Lasmar, 2005: 145). Ou seja, a

cidade é o locus do conhecimento dos brancos. A cidade, poder-se-ia dizer, é a perspectiva dos

brancos35. Talvez isso que alguns têm chamado de “urbanidade” dos índios, seja a forma mais

intensa e o ponto mais privilegiado de experimentação e (tentativa de) controle desse

conhecimento, de acesso a essa perspectiva. Para os grupos Tukano em Iauaretê, o dinheiro,

por exemplo, “constitui uma forma de subjetivação dos brancos”. Assim, “embora algum

dinheiro e mercadorias pudessem ser adquiridos com trabalho, conseguí-los em maior

quantidade e em sua ampla gama de variedades dependia da aquisição de novas capacidades,

isto é, aquelas controladas pelos brancos” (Andrello, 2006: 255).

34

Aqui reside um problema conceitual importante. A postura crítica ante a noção “índios urbanos”, como um conceito que reifica tipificações e dicotomias, como comentado no corpo do trabalho, levou-me a tentar formular um outro conceito, igualmente generalizante, porém menos carregado, para abarcar essa diversidade de situações de inserção indígena nas cidades. Minha tentativa nesse sentido é designar estes variados casos sobre a rubrica de “índios em cidades”, apostando na abertura a uma dimensão processual e situacional que esta expressão possa ter. 35

E quanto maior a cidade, melhor. Os Karajá de Buridina, quando contrastam os regionais com os não-índios das capitais, de outras grandes cidades ou do exterior, operam uma espécie de gradação na qual os estes últimos seriam como que “mais brancos (tori)” que os primeiros.

Page 49: A cruz e o itxe(k)ò

38

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39

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40

Para reforçar esta idéia de que o que está em jogo são os processos,

independentemente de como categorizamos seus cenários, cito um exemplo. É digno de nota

que o livro de Andrello apresente conclusões tão próximas das de Cristiane Lasmar, em seu

livro De Volta ao Lago do Leite (2005). A autora trabalha na cidade de São Gabriel da

Cachoeira (AM), com indígenas das mesmas etnias que os de Iauaretê. Mas, se este é um

aglomerado indígena em torno de uma missão, São Gabriel é o que se pode chamar com

propriedade de ‘uma cidade’. Fundada em torno de um forte e habitada por brancos, os índios

chegaram lá depois, descendo o rio e se instalando nos bairros da periferia. Hoje, 80% da

população de São Gabriel se considera indígena (Lasmar & Eloy, 2006: 237). Entretanto,

situações aparentemente tão díspares engendram processos muito semelhantes. Afinal, em

ambos os locais, os Tukano, Wanano, Desana, etc., estão lidando com processos e relações

semelhantes: consumo de mercadorias, educação escolar, aumento do fluxo monetário,

trabalhadores assalariados, festas e divertimentos noturnos, para citar apenas alguns.

₪ Lugares indígenas

Até aqui consideramos, primeiro alguns aspectos do indigenismo, i.e., a maneira como

os índios são concebidos pelo imaginário nacional e, depois, alguns aspectos da apropriação

que os indígenas fazem do espaço urbano. Da primeira questão retive as conseqüências desse

imaginário para se pensar a passagem (lógica) dos indígenas das aldeias às cidades. Na

segunda, a partir de algumas etnografias, esbocei uma crítica a uma associação demasiado

literal entre espaços e socialidades, argumentando que não importa tanto onde os processos e

relações ocorram, cidade ou aldeia, mas sim os processos e relações elas mesmas. No discurso

indígena, porém, quase em toda parte encontramos uma associação tão literal quanto a nossa

entre certos espaços e suas socialidades correspondentes. Veremos que os Karajá de Buridina

são um bom exemplo disto. Cidade e aldeia, em seu caso, são lugares conjugados, mas

distintos: ambas existiam lado a lado, separadas apenas por um córrego, até que a cidade se

expandiu e a malha urbana envolveu a aldeia – os limites entre ambas, entretanto, tendo sido

mantidos. Assim, a cidade tem suas "leis" (propriamente uma socialidade tori, não-indígena),

dizem eles, e a aldeia tem as suas próprias, algo que por vezes se refere como "a cultura

indígena" (cf. Capítulo III). Em uma reunião da comunidade, certa vez, um senhor casado com

uma mulher não-indígena, declarou publicamente que, por vezes, quando ele acorda e olha

sua esposa ao lado, "não sei se eu estou na aldeia ou na cidade". Como pensar então, esse

descompasso básico?

O fato de encontrarmos essa mesma associação entre um espaço e uma socialidade,

como no conceito de lugar que tentei delinear páginas atrás, quando discutia a dupla

Page 52: A cruz e o itxe(k)ò

41

dimensão do conceito de cidade, não implica, entretanto, que ela se dê da mesma forma entre

nós e entre os ameríndios: quando a separação entre dois lugares, aldeia e cidade, dá lugar a

uma dinâmica, i.e., quando o que está em questão não é a diferença entre dois lugares, mas,

através da presença de pessoas de um lugar no outro, a forma da relação que uma pessoa

proveniente de um lugar estabelece com um lugar outro, as conseqüências em um e outro

caso são muito distintas. Entre nós, diria que o foco está na separação, a diferença. Na

passagem do rural para o urbano, como na elaboração do continuum folk-urbano de Redfield,

a associação das pessoas aos seus lugares de origem é substituída por uma associação com o

novo lugar: quem está na cidade é (ou será) urbano. Mas estes termos, como apontei em

outro lugar, não são pensados de maneira independente, a partir do que lhes é característico:

define-se o "urbano" a partir, como poderíamos supor, de suas características (infra-

estruturais, sobretudo), e para o que fica fora dele dá-se o nome de "rural"36. A cidade é 1, o

campo -1: nas medições censitárias, por exemplo, praticamente todos os resultados para o

“rural” são inferiores aos constatados no “urbano”, um reflexo de se utilizarem de categorias

que ancoram-se todas em um modelo ideal (urbano) de desenvolvimento (cf. Nunes, 2009b).

Entre os ameríndios, de outro lado, cada termo parece só poder ser definido por aquilo

que lhe caracteriza. Ou melhor, por aqueles: a atenção dos indígenas sobre os lugares (como

virtualmente sobre todo o resto) parece estar voltada para seus agentes e agências. Cada

lugar, além de ser pensado como uma “criação”, resultado da agência de algum ser37, têm seus

habitantes, e a maneira de estar ali depende da relação que se estabelece com eles. Tomando

o exemplo Kïsêdjê,

habitar a paisagem, construindo casas e aldeias, abrindo roças, viajando e acampando, pescando, caçando, buscando frutos, cipós, madeiras, sem provocar maiores desastres e conflitos, é uma arte calcada na capacidade de identificar essas agências; conhecer o território é perceber a ação e os sujeitos que, assim como eles próprios, fazem os lugares (Coelho de Souza, 2009b: 31).

As cidades (e seus habitantes não-indígenas) poderiam, é claro, completar esta lista.

Assim, se o nosso ponto de vista parece se focar sobre a separação dos lugares (a diferença

entre eles), para os ameríndios a dinâmica (as relações entre eles, mediadas pelas pessoas e

outros seres) parece ser muito mais importante: o que se é em determinado lugar depende da

36

Assim define, por exemplo, o IBGE: “Como situação urbana, consideram-se as áreas urbanizadas ou não, correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (sedes distritais) ou às áreas urbanas isoladas. A situação rural abrande toda a área situada fora destes limites, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos e outros aglomerados” (IBGE 2005: 16). 37

Marcela Coelho de Souza diz que “se os Kïsêdjê de fato não dizem que os lugares, como tais, são gente, não há praticamente nenhum aspecto notável da paisagem que lhes pareça poder ter sido formado por outra coisa que por uma agência do mesmo tipo que a agência humana” (2009b: 31).

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42

relação que se estabelece com seus habitantes (ou “donos”). E isso de duas formas: a relação

entre os humanos e determinados animais, por exemplo, pode se dar tanto como uma relação

de predação (um caçador para um porco queixada ou uma onça para um humano) quanto

como uma relação de comunicação (xamânica). No primeiro caso, cada parte da relação

enxerga a si próprio como humano e o outro como um Outro (predador ou presa, dependendo

da posição). No segundo caso, como no exemplo de um animal que ataca um humano,

levando-lhe a “alma” e provocando, com isso, uma doença, é preciso que o curador (xamã)

saiba ver o Outro como um humano para se comunicar com ele (e ser assim capaz de

recuperar a alma do doente). O importante, por hora, é que, não só o estar na cidade depende

da relação que se estabelece com os brancos, como o que aí se é está em função disto.

₪ ₪ ₪

Estas considerações iniciais sobre a presença indígena nas cidades, contexto no qual os

Karajá de Buridina se inserem, nos servirão como um pano de fundo para os capítulos

seguintes. A comunidade sobre a qual este trabalho versa é certamente um caso muito

interessante, e minha descrição, acredito, servirá como uma exemplificação detalhada de

questões levantadas neste primeiro capítulo. O objetivo aqui, entretanto, não foi oferecer

generalizações sobre a presença indígena nas cidades. Os casos são muitos e, é claro,

consideravelmente diferentes. As proposições sobre os significados desses processos

são, pois, meramente tentativas. Este capítulo pode, com efeito, ser oposto aos dois

seguintes, ambos etnográficos, como duas partes do trabalho que, embora se

iluminem mutuamente, diferem em seus focos e propósitos.

Passemos, então, à apresentação da etnografia.

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43

Capítulo II

Histórias

Buridina já foi a maior aldeia Karajá de que já se teve notícia, dizem seus habitantes. Em

fins da década de 1940, entretanto, dois episódios dispersam a quase totalidade de sua

população, restando ali apenas um homem com sua família, que, nas décadas subseqüentes,

reúne junto a si as famílias de dois irmãos e de uma sobrinha. É em torno deste grupo de

parentes que a aldeia se reestruturou e cresceu até o ponto em que a encontramos hoje. Na

década de 1970, um surto de turismo estimula o crescimento da cidade, que atravessa o

córrego que a separava da aldeia. Uma década depois, a malha urbana já havia circundado a

pequena Buridina.

Uma investida sobre esse processo histórico tem a clara importância de compreender a

maneira pela qual a situação territorialmente extrema e matrimonialmente ímpar dos Karajá

de Buridina veio a se delinear. Este esforço nos permitirá remontar, por exemplo, à gênese de

certos discursos que ainda hoje se fazem presentes e operantes – como o de que não há

endogamia de aldeia devido à proximidade dos laços de parentesco entre seus membros –, o

que nos permitirá aprofundar um pouco mais a compreensão do sentido das configurações

atuais das práticas relacionadas a esses discursos.

A idéia de um capítulo sobre história, assim, escapa ao propósito de uma mera

introdução à/contextualização da descrição etnográfica que o seguirá. É claro, entretanto, que,

uma vez a história narrada, este será um de seus “subprodutos”. O sentido de algumas

expressões, relações e práticas atuais não apenas se aprofundam e complexificam quando

escutamos as narrativas karajá sobre o passado de Buridina: em alguns casos, só se pode

compreendê-las historicamente. Desta forma, o capítulo desemboca num argumento histórico

acerca do sentido da experiência urbana dos índios desta aldeia e da relação (territorial) de

Buridina com a cidade de Aruanã – uma relação entre socialidades que se configura como uma

relação entre espaços/lugares, como tentei apontar no capítulo I.

A história de Buridina, como contada por seus atuais habitantes, é uma narrativa

bastante complexa, cheia de detalhes não convencionais e de episódios instigantes, mas sobre

os quais não há muita coisa que se possa dizer sem um tom especulativo. Ela é uma versão

composta de narrativas diversas, mas que se conectam e se complementam umas às outras,

que contrasta, por exemplo, com a história documental (mas tão legítima quanto esta,

excusado dizer). Ihetxi’u ijy(k)y, por exemplo, é um dos termos do inўrybè para as narrativas

Page 55: A cruz e o itxe(k)ò

44

sobre os tempos antigos (algo que poderíamos chamar de narrativas míticas), reconhecidas

como um conhecimento especializado e restrito a algumas pessoas, mais idosas, conhecidas

como ijy(k)y du, “donos/controladores (du) das narrativas [ijy(k)y]”, numa tradução

aproximada. Assim, quando o jovem Ijura’ru Gedeon solicitou a sua avó Hatawaki que narrasse

a história da antiga e grande aldeia, ele se referiu a narrativa como buridina-mў ihetxi’u ijy(k)y.

Essas narrativas ocorrem em contextos mais formalizados, envolvendo a relação entre um(a)

narrador(a) que é um(a) conhecedor(a), ijy(k)ydu, “dono (du) das histórias [ijy(k)y]”, e um(a)

ouvinte que é um(a) aprendiz (ou um antropólogo...).

As narrativas sobre quando “a aldeia acabou”, envolvendo descrições de conflitos,

assassinatos e acusações de feitiçaria, por sua vez, já não são vistas como um conhecimento

restrito a alguns poucos conhecedores, e os contextos no qual apareceram foram bem menos

formalizados. Havia uma espécie de deslocamento da autoria, marcado principalmente pela

expressão “diz que” – ao invés de dizerem, p. ex., que ‘uma epidemia de sarampo acabou com

a aldeia’, diriam ‘diz que o que acabou com a aldeia foi uma epidemia de sarampo’ – que, se

posso afirmar, é algo bastante característica das narrativas Karajá (e, provavelmente, da

maneira como concebem o conhecimento). As histórias sobre os acontecimentos das décadas

de 1960 em diante, sobre a reestruturação de Buridina e a formação de sua atual

configuração, se aproximam dessas narrativas. Elas certamente apareceram nos contextos

menos formalizados, em momentos diversos e, por vezes, mesmo como comentários

aleatórios, lembranças suscitadas por acontecimentos pontuais ou por tópicos da conversa.

Elas diferem das duas primeiras, por tratarem de personagens que são parentes próximos dos

narradores, como pais/mães, tios/tias, avôs/avós e primos/primas, e com os quais conviveram

intimamente, na maioria dos casos. Nos dois primeiros casos, as personagens são

genealogicamente mais afastadas dos narradores, configurando-se, assim, como uma narração

de histórias a eles narradas.

Essa caracterização das narrativas não dever ser lida como uma tipologia. Tudo o que

pretendo é fornecer uma certa caracterização da maneira como eu próprio estabeleci uma

relação com elas, através de meus narradores e narradoras. O que se segue, portanto, é uma

espécie de mosaico cuja cola é minha própria experiência etnográfica. De certa forma, só fui

capaz de juntar esses pedaços e tecer este capítulo através da parte da pesquisa que sustenta

o capítulo seguinte.

Na introdução vimos um breve apanhado, baseado em uma história documental, sobre

a vila de Leopoldina e a presença da aldeia no local. Aqui, deixando este registro de lado, nos

depararemos com um descompasso básico quanto à anterioridade ou não da presença

indígena na região – posto que os Karajá afirmam que, quando o fundador da aldeia ali se

Page 56: A cruz e o itxe(k)ò

45

estabeleceu, não havia nenhum tori. Um problema evidente, se fosse o caso, aqui, de crermos

necessário encontrar um denominador comum entre estas versões, i. e., de acreditarmos que

há uma única história, comum a índios e não-índios. Mas não é o caso. As histórias contadas

pelos Karajá formam um corpo narrativo autônomo, dotado de lógica própria. O que pretendo

aqui é explorar significados que elas põem em jogo. Além do mais, esperar que estas duas

versões coincidam seria supor que as memórias e narrativas indígenas – assim como seu

conceito de tempo – operassem da mesma maneira que as nossas. O que também não é o

caso aqui.

Como disse, entretanto, este mosaico pode parecer ao leitor demasiado especulativo. E

em parte o é: tentar extrair significado das ações de personagens já falecidas as quais nem

mesmo pude conhecer seria um empreendimento no mínimo arriscado. Mas o que persigo

não são os significados que as ações dessas personagens tinham para elas próprias, mas sim a

teia de significados que os atuais Karajá construíram com e sobre eles. Quanto a isso, tudo que

posso esperar é que o leitor consiga navegar por esta teia, olhar para o mosaico e enxergar a

figura.

₪ Buridina-my ihetxi’u ijy(k)y: a aldeia grande

Kabitxa’na, o caçula de um grupo de sete germanos, foi o fundador da aldeia Buridina.

Ele era um grande hyri (xamã) da aldeia Hãwalò (Santa Isabel do Morro). Era muito poderoso,

“mas ele só curava”, dizem seus descendentes38. O xamã karajá, entretanto, assim como

ocorre dentre muitos outros grupos indígenas, é uma figura ambígua. Sua face pública é a de

curador, mas a feitiçaria é sempre uma contraparte possível, pois tanto a cura quanto o feitiço

são viabilizados por meio do aprendizado de um mesmo conjunto de transformações e

técnicas39. E quanto mais poderoso for o hyri em termos de cura, mais seus (possíveis) feitiços

serão temidos. “Porque meu povo é assim, muito incutido com esse negócio de feitiçaria.

Morre um, acontece outra coisa, é outro que está fazendo macumba. É assim... 40”, me

explicava uma senhora. A feitiçaria é um elemento sobredeterminante, a segunda lança de que

fala Evans-Pritchard (2005). Toda morte, exceto os assassinatos, tem como causa última a

feitiçaria: por mais que se reconheçam outras causas, como uma doença, por exemplo, o

feitiço é o que causa a doença.

Apesar, assim, de Kabitxa’na ser apenas curador, sofria muitas acusações de feitiçaria.

“Aí diz que todo menino que morria, as crianças que adoecia, jogava tudo em cima dele, aí diz

38

“A reação normal de quase todos os Karajá, quando os julgam feiticeiros, é negar tal qualidade, alegando ser apenas curadores” (Fénelon Costa, 1978: 43). 39

Cf. Rodrigues (1993: 150) e Donahue (1982: 217) sobre as duas faces do xamã. 40

Fala de Dona Meire Nunsia.

Page 57: A cruz e o itxe(k)ò

46

que judiava de bater nele, aí chegou um certo ponto, [...] ele desgostou tanto que veio

embora”41, resolveu procurar um outro lugar para viver. Ele e sua mulher, Hãbibi, subiram o rio

de canoa a remo e foram parando de aldeia em aldeia, mas em nenhuma delas seus anfitriões

lhe ofereceram um lugar para morar. Ofereciam comida, mas não moradia. Terminada a

refeição, então, Kabitxa’na e Hãbibi partiam. Por ele ser um hyri extremamente respeitado e

temido, muitos tinham certo receio até de lhe dirigir a palavra. É provável, especulam alguns

Karajá, que seus anfitriões “ficassem sem jeito” de convidar aquele grande (e perigoso)

homem para morar em sua aldeia. Mas se ele pedisse, ninguém negaria. Kabitxa’na, por sua

vez, desejava ser convidado, não queria pedir. Nesse mal entendido, passou por todas as

aldeias e acabou se assentando junto à margem sul do córrego Xibiu. Hoje o cacique Raul

Hawa(k)a’ti conta que, quando era criança, fez a mesma viagem, de Santa Isabel à Buridina,

junto à seu avô, Jacinto Ma(k)urehi, que lhe contava a história de Kabitxa’na e lhe apontava as

aldeias e outros pontos de pouso onde ele parou.

Quando Kabitxa’na chegou à região, não havia ninguém por lá. Ele ergueu um rancho e o

casal ficou morando ali por um tempo até que, para sua surpresa, começaram a chegar muitas

famílias karajá e javaé que se instalaram junto à eles, sob o comando de Kabitxa’na. Karajá e

Javaé sempre “moraram misturados”, me disseram. Assim, em uma aldeia Karajá, desde os

tempos antigos era comum encontrar uma minoria javaé, e vice-versa. Os índios de Buridina

insistem que, nessa época, não havia brancos, nem cidade, nem tampouco outros índios na

região. “Diz que tinha uma fazenda ali, mas só uma fazendinha, só. Mas o resto era só os

índios! A aldeia aqui era grande!”42.

A chefia da aldeia “foi passando de geração em geração, [de acordo com o modo

tradicional hereditário de transmissão,] que de um para outro, formou a maior aldeia de toda

história do vale do Araguaia. De Conceição do Araguaia [PA] até chegar aqui em Aruanã, a

aldeia, aqui, diz que foi a maior que já teve”43. As fileiras de casas se estendiam entre os dois

córregos que hoje formam os limites norte e sul da Área I da terra indígena, Xibiu e

Bandeirante, respectivamente, numa extensão de aproximadamente 800m. Fazendo

referência a esta época, alguns de seus parentes da Ilha do Bananal se referem (ou o faziam,

até duas ou três décadas atrás) aos Karajá de Buridina como hãwahakў mahãdu, “o pessoal

(mahãdu) da aldeia grande (hãwahakў)”. Outro indício do grande tamanho da aldeia era a

41

Fala de Raul Hawa(k)a’ti, em Portela (2006: 152). 42

Fala de Ijura’ru Gedeon (em português), traduzindo e comentando a narrativa (em inўrybè) de sua avó Hatawaki. 43

Fala de Raul Hawa(k)a’ti, em Almeida (2007: 23).

Page 58: A cruz e o itxe(k)ò

47

presença de duas hetokrè44, Casas de Aruanã, o centro da vida ritual do grupo45. Quanto ao

nome da aldeia, há uma controvérsia. Alguns dizem que a aldeia grande tinha outro nome,

antes de se chamar Buridina, mas não sabem precisar qual era. O povoado herdou o nome

Leopoldina de uma antiga moradora, que não se confundia com a Princesa Leopoldina, dizem

os índios. Os Karajá também teriam nomeado a aldeia em homenagem a esta mulher (ou ao

povoado), mas como não conseguiam pronunciar o nome corretamente, diziam apenas parte

dele, com algumas adaptações fonéticas. Outros sustentam uma outra versão, contada por

velhos javaé da Ilha do Bananal, que andaram pela região quando jovens: o nome

originalmente seria Burudena hãwa. Buru é uma espécie de caramujo cuja concha alongada

fica para fora d’água quando o rio está bem baixo. O termo dena faz referência a disposição de

objetos sobre uma superfíce, “como os copos numa prateleira”, comparou um rapaz. Uma

tradução aproximada, portanto, seria “lugar onde há muito buru”. Quando o rio estava baixo,

era diversão das crianças pegar os caramujos quando iam tomar banho no rio (sozinhas ou

acompanhadas de suas mães, que iam lavar roupa). Este nome remontaria à época da grande

aldeia.

A região era de muita fartura. Havia grande quantidade de caça e pescado. Até as

décadas de 1950 e 1960, quando houve uma onda de mariscadores46 que diminuiu

consideravelmente a fauna da região47, podia-se ver muitos filhotes48 saltando para fora

44

As informações sobre a quantidade de pessoas que esta aldeia chegou a aglutinar são controversas, variando entre 300 (Pechincha & Silveira, 1986: 2), 800 ([Cavalcanti-]Schiel, 2002: 44) e mil pessoas (Almeida, 2007: 23) – todas baseadas em relatos indígenas. A julgar tanto pelo comprimento das fileiras de casas quanto pela presença de duas casas rituais, esta última estimativa parece mais provável. Se tomamos em comparação as maiores aldeias hoje existentes, com populações variando entre 300 e 600 pessoas (cf. a tabela das populações das aldeias atuais elaborada por Rodrigues, 2008: 168-170), nenhuma delas é grande o suficiente para possuir duas destas casas. Nem mesmo na grande Canoanã, que chegou a reunir 800 pessoas, este foi o caso. Isto, é claro, se eu estiver correto em supor que a quantidade de casas rituais é uma variável da quantidade de pessoas em uma aldeia. 45

A este respeito, cf., por exemplo, a descrição de Lima Filho (1994) do ritual Hetohokў. 46

Caçadores e pescadores que percorriam regiões interioranas atrás de matéria animal valorizada, como carne de peixes como Pirarucu, Filhote e Pirarara e peles de Jacaré, Ariranha, entre outros. 47

Assim, por exemplo, escreve um jornalista que percorreu a região em 1950: “A destruição da fauna pelífera é praticada pelos comerciantes e intermediários. O cervo (...) considerado espécie rara, é morto em grande quantidade. Nas proximidades das lagoas pantanosas, é comum encontrarmos várias carcaças com as cabeças cortadas para serem vendidas aos comerciantes. (...). A anta, (...), também animal protegido, é morta somente para se sentir o macabro espetáculo da queda do pesado animal contra o solo. A ariranha (...), animal considerado espécie rara, é caçada constantemente. A sua pele é valiosíssima e os caçadores, o dia inteiro, perseguem ou espreitam o bando. A ema (...) é abatida em grande quantidade para suas penas serem vendidas nas casas atacadistas. Essas matanças são praticadas em qualquer época do ano, mesmo na época de ‘defeso’ e durante o ano inteiro. Esse comércio prejudicial, sem que haja repressão, e os crimes de depredações à fauna vêm extinguir as nossas espécies, o que já notamos em várias regiões” (Caiado, 1961: 14). 48

Nome regional do primeiro dos três estágios de desenvolvimento de uma espécie de peixe de couro encontrado nas bacias dos Rios Amazonas, Tocantins e Araguaia. Os estágios subseqüentes são a Piraíba

Page 59: A cruz e o itxe(k)ò

48

d’água logo em frente à aldeia e à cidade. “É a fartura que move a gente. Fartura de caça, de

pesca, de material, fruta. De vocês é o dinheiro, um lugar que tem muito trabalho”, me

explicava um homem. Este é certamente o motivo que direciona muitas das viagens das

famílias durante o período de dispersão – formação de grandes praias de areia branca – e

fartura – facilidade de pescar e de coletar ovos de tartaruga nas praias – propiciado pela baixa

do rio49. Assim, muitas famílias subiam da Ilha do Bananal até a região de Buridina para visitar

os parentes, acampar em pontos de bastante fartura e coletar materiais escassos, inexistentes

ou de pior qualidade em seus territórios de origem. O motivo mais lembrado para essas

viagens é a coleta do taquari, espécie de bambu fino utilizado na fabricação de flechas,

especialmente o existente em quantidade na região de Britânia50, famoso por sua qualidade.

Buridina não era, entretanto, a única aldeia na região ao sul da Ilha do Bananal. Existiam

também diversos pontos de pouso ao longo do caminho. Luís Alves, logo ao sul da boca do rio

Javaés, onde hoje ainda há algumas famílias Karajá, já foi uma aldeia maior. Junto à cidade de

Cocalinho (MT), onde hoje reside uma família Javaé (19 pessoas, em 2006 – Almeida, 2007: 2),

um pouco mais ao sul, existiu uma grande aldeia chamada horenihikў, “grande coqueiral”. Na

terceira parte da área indígena, na roça de um dos índios, ainda se pode encontrar cacos de

panelas e potes de cerâmica. A julgar pela grossura das peças, alguns Karajá acreditam se trata

de um material muito antigo (pelo menos cem anos), pois hoje não se fabrica mais cerâmica

tão grossa assim. O local fica junto a um barranco no meio do cerrado, formando um “canal”

que se conecta ao corpo do Araguaia por ambos os lados, por onde a água escorre na cheia.

Eles especulam ainda, por meio de uma série de observações das transformações topográficas

ocorridas no rio ao longo de suas vidas, que ali deveria ter sido em tempos passados, se não o

próprio leito do rio, ao menos um braço. No local há também alguns pés de Bacuri da mata,

um coqueiro comumente plantado nas aldeias. Não sabem dizer, entretanto, se tratava-se de

uma aldeia fixa ou provisória, de verão51. Há também antigos pontos de pouso ainda hoje

existentes e visitados pelos índios, sobretudo para pesca, como Mata-coral52 e as Cangas53.

e a Piratinga. Pode chegar a pesar 300kg e medir 2m. Seu nome em inўrybè é Bedò. (cf. Lima Filho, 1994: 63 para um desenho). 49

Sobre a dinâmica sazonal de concentração da população nas aldeias fixas em barrancos altos na época da cheia (chuvas, inverno) e de dispersão das famílias (ou formação de aldeias temporárias) em acampamentos nas praias que se formam na época da vazante (seca, verão), cf. Toral (1992: 93-97) e Baldus (1979: 165), por exemplo. 50

Hoje uma cidade cede de um município homônimo (vizinho ao de Aruanã) no estado de Goiás. 51

Uma breve pesquisa arqueológica feita no local confirma que a composição da cerâmica é a mesma que a dos Karajá. Não há, entretanto, datação do sítio (Mário Arruda da Costa, inf. pessoal – cf. infra, nota 56). 52

O nome é uma aproximação do português à mўta(k)òra, expressão na língua indígena que faz referência a presença no local de um mata de cançanção (mўta= cançanção; ò=árvore; ra= neste caso parece funcionar como um pluralizador – “é porque tem muito”).

Page 60: A cruz e o itxe(k)ò

49

Ao sul de Buridina, havia algumas aldeias de verão, como a dos Botes54 e a do lago do

Jacu (Rio Vermelho). Parte da literatura histórica – Krause (1941: 241), por exemplo, fala que a

aldeia junto à Leopoldina teria se mudado do Rio Vermelho para ali por volta do ano de 1903 –

e os antigos moradores de Aruanã apontam para a existência destes locais, sobretudo o

último, como aldeias fixas, onde havia inclusive danças de Aruanã, o que é veementemente

negado pelos índios, que dizem que Buridina sempre foi a única fixa (informação esta

endossada pelo fato de que o cemitério desta aldeia é o único de que se tem registro na

região). As outras eram pontos onde sempre se formavam aldeias de verão. Esse também era

o caso do lago de Britânia55. Pesquisas arqueológicas realizadas na região, ainda na década de

1970, encabeçadas pelo Padre Ignacio Schmitz, recompuseram uma fileira de 5 km de

extensão de fogos de cozinha paralelos ao lago (associado a casas) distando cerca de 50m uns

dos outros, e apresentaram uma datação aproximada entre os anos de 1.200 e 1.250 (Mário

Arruda da Costa, inf. pessoal)56. O lugar atraía, pela fartura extrema – além da abundância de

taquari, já mencionada –, grande quantidade de Karajá e Javaé, tanto de Buridina quanto de

aldeias mais ao norte. As famílias ficavam acampadas, comendo peixe e caça com mandioca

durante meses. Bastava trazer a massa de mandioca de suas aldeias.

₪ O fim da aldeia

Buridina era uma aldeia muito próspera, um lugar muito bom para se viver. Seus

habitantes eram conhecidos como ibò(k)ò mahãdu, “o pessoal de cima/do alto”. Ibò(k)ò, o

extremo do rio acima, é um termo de referência espacial (em contraposição à iraru, o extremo

do rio abaixo) mas que encerra um componente valorativo associado à tripartição cósmica.

Tudo o que está associado ao alto, ao extremo rio acima, ao leste, à luz e à cor branca e ao

biuwètyky (o céu, um patamar cósmico superior) é valorizado, em contraposição ao que está

associado ao oeste, ao baixo, ao extremo rio abaixo, à falta de luz e à cor negra e aos

patamares cósmicos inferiores (cf. Rodrigues, 2004). Os habitantes da grande aldeia, me

53

Local onde há um lago. Nos tempos antigos, pousava-se na margem (hoje) goiana do rio, temendo ataques dos kyrysa, Xavante. 54

Nome em português de um trecho do Araguaia a montante de Aruanã, mas não muito distante. 55

O nome é uma aproximação do português à biritahina, expressão na língua indígena que faz referência à grande quantidade de periquitos que dormiam na ilha existente neste lago (biri=periquito, tahina=poleiro, local onde se dorme). 56

A análise da composição da cerâmica encontrada no local detecta a presença de duas substâncias, uma proveniente do cauxi – um material que se acumula na água, geralmente em torno de cipós, muito comum no Rio Araguaia – e outra proveniente da casca da árvore cega-machado, ambos materiais utilizados pelos Karajá para produzir as cinzas que misturam ao barro de sua cerâmica. Em pesquisas posteriores, feitas na região de Aruanã, a arqueóloga I. Wüst relacionou os dois sitos, pela semelhança da composição da cerâmica, abrindo a possibilidade de se relacionar a tradição arqueológico identificada em ambos os sítios ao grupo étnico Karajá. (cf. também Lima Filho, 1994: 29. n. 4).

Page 61: A cruz e o itxe(k)ò

50

Diagrama 1:

Genealogia do assassinato

Buriti Telibrè

Ijahi´na

Tybiru

contava Raul Hawa(k)a’ti, eram conhecidos como ibò(k)ò mahãdu porque entre eles havia

grandes “historiadores”57, lutadores e hyri (xamãs). “Agora, se tem historiador que difama,

guerreiro que mata só por matar, hyri que mata, aí é iraru mahãdu”. Os próprios iraru

mahãdu, “pessoal de baixo”, não gostam de ser assim chamados, pois o termo indica o

distanciamento de um ideal de comportamento e de conhecimento inў, humano. Ibò(k)ò está

para iraru, comparava ele, assim como a cidade grande está para o interior, Goiânia para

Aruanã, o centro da cidade para a Taboca58.

Mas a década de 1940 guardava revezes para o

destino de Buridina. Dois acontecimentos alteraram

radicalmente sua situação populacional: de uma grande e

ritualmente (super)ativa aldeia, ela ficaria resumida a uma

única família, menos de 10 pessoas (cf. Diagrama 3).

Primeiro, um assassinato iniciou um movimento de

dispersão da população. Foi aí que a aldeia “começou a

acabar”, como dizem. O homem assassinado, Alfredo

Ijahi’na, era muito respeitado, “era tipo um chefe que tem

na aldeia”, segundo o Cacique Raul. Dizia-se dele, entretanto, que era perigoso feiticeiro.

Tybiru, uma moça de cerca de 12 anos, morreu repentinamente. Ela era filha de criação de

Telibrè e casada com Buriti (cf. Diagrama 1). Os dois homens, convencidos de que a causa da

morte teria sido um feitiço de Ijahi´na, o assassinaram e fugiram. Buriti foi para a aldeia

Macaúba. Telibrè foi para Krè Hãwa, aldeia São Domingos.

Pouco tempo depois, a aldeia é acometida por uma epidemia de sarampo. Em Buridina

havia um Javaé, Warikina, poderoso hyri. A epidemia, acreditavam, havia sido causada por

feitiço seu. Ele próprio, entretanto, pegou sarampo, e ficou sob os cuidados de Lídia Dikuria e

Alice Koabiru, até ficar bom. Quando se curou, disse que não se esqueceria dos cuidados que

havia recebido e que era boa a decisão que haviam tomado em não partir, de permanecer ali.

Na aldeia grande, disse, há muita briga, muita confusão. Depois partiu. Esse episódio

intensifica o movimento de dispersão iniciado com o assassinato. As pessoas voltaram para

57

“No mundo Karajá”, como gosta de dizer o cacique Raul, há pessoas que se destacam em áreas específicas, desenvolvendo uma espécie de maestria socialmente reconhecida. Assim, há os artesãos, lutadores, ceramistas, etc. Ele chama de “historiadores”, numa analogia com o mundo tori, pessoas reconhecidas como grande conhecedoras da terminologia de parentesco e das relações (de respeito, evitação, proximidade, etc.) que ela implica, das genealogias e de histórias de tempos antigos – como a que narro aqui, envolvendo conflitos, mudanças de aldeia, acusações de feitiçaria e assassinatos, por exemplo. Assim, quando declarava meu interesse em saber sobre a história da aldeia, grande parte das pessoas me disse que eu deveria procurar ou o próprio cacique ou sua irmã, D. Meire Nunsia, duas das pessoas mais idosas da aldeia e reconhecidas como conhecedoras desta história. 58

Taboca é um dos setores da cidade de Aruanã.

Page 62: A cruz e o itxe(k)ò

51

Page 63: A cruz e o itxe(k)ò

52

suas aldeias de origem. O assassinato e a epidemia são pensados como o “fim da aldeia”, e os

Karajá se referem a eles como o período em que “a aldeia acabou”. Apenas um homem,

Jacinto Ma(k)urehi, e sua família, de que as duas mulheres citadas acima faziam parte, decide

permanecer no local e reúne em torno de si, nas décadas subseqüentes, dois irmãos e uma

sobrinha. É em torno deste núcleo de parentes (cf. Diagrama 2) que a aldeia se reestruturará e

crescerá até o ponto em que a encontramos hoje.

₪ ₪ ₪

A parte da história narrada até aqui é certamente muito rica e envolve uma quantidade

considerável de temas relevantes para a vida karajá nas aldeias e para seus deslocamentos,

como, por exemplo, a feitiçaria e o ritual. Prosseguindo, adentraremos em uma outra “fase

histórica”, por assim dizer, no qual a memória indígena deixa de se basear apenas nos relatos

escutados de seus ascendentes para se transformar em uma narrativa na qual a própria

experiência (sobretudo da juventude) dos narradores faz parte. Muda-se, assim, de registro.

Mas antes de prosseguir, quero fazer um parêntese especulativo sobre os acontecimentos já

descritos, tentando extrair deles um pequeno conjunto de significados.

Os hyri, xamãs, são figuras recorrentes na narrativa. Eles (e elas59) são personagens

importantes da vida Karajá. Uma de suas capacidades mais aguçadas é a visão: diz-se que

podem ver tudo o que se passa na aldeia a qualquer hora do dia ou da noite (enxergam

59

Há xamãs mulheres, embora a maioria delas tenha capacidades consideradas menores, como o conhecimento dos “remédios” (plantas medicinais), ou negativas, como a feitiçaria. É bastante raro encontrá-las desempenhando funções xamânicas rituais, como trazer e controlar os ijasò (Aruanã), entidades mascaradas que vêm de outros planos do cosmos para dançar na aldeia, uma atividade sem dúvida associada ao mundo masculino. Toral (1992: 219), apesar de afirmar que “todos os atuais hàri são homens”, faz referências a mulheres hyri no passado (se bem entendo, o autor se refere às funções xamanísticas cerimoniais). Cf. também Lima Filho, 1994: 131.

Diagrama 2:

Núcleo a partir do qual a aldeia se reestruturou

Jacinto Ma(k)urehi

Luiz Bydè Mariana

Maluhèrèru

João Lawa(k)uri

Waira

Ijahu´re

Page 64: A cruz e o itxe(k)ò

53

durante a noite como se o sol ainda estivesse a pino), nem mesmo as paredes da casa

constituindo impedimento para tal. São eles os únicos capazes de completar o movimento

ascensional narrado pela mitologia, cujo epítome, segundo Rodrigues (2008), seria a

caminhada do herói Kynўxiwè. Tendo ascendido ao “mundo de fora” (ahana obira) no alto

curso do rio, ele empreendeu uma longa caminhada rio abaixo, ao longo da qual promoveu

uma série de transformações – sobretudo a transformação de diversos tipos de humanos em

distintos animais, conquistando-lhes utensílios e capacidades para os humanos, e a alteração

da topografia, imprimindo-lhe a forma hoje conhecida. No baixo curso do rio, ele abandona a

humanidade à sua condição mortal e sobe ao plano superior do cosmos, biuwètyky, “o mundo

das chuvas”, onde passa a viver uma vida plena, como a de todos os habitantes do lugar. Lá

não se precisa trabalhar para comer – pois a comida aparece magicamente, de modo xiburè –,

a afinidade efetiva do mundo do meio, onde vivem os Karajá, não mais existe, assim como

também não há morte. Rodrigues (2008) descreve este plano cósmico como encarnando o

ideal de socialidade javaé. Helena Cavalcanti-Schiel o caracteriza de maneira similar, embora o

considere como um espaço aberto à especulação, caracterizado pela “superação da afinidade

enquanto problema” (2005: 69). Aqui, Karajá e Javaé apresentam distintas versões: enquanto a

literatura Karajá (cf. Pétesch, 1993; Lima Filho, 1994; Donahue, 1982) concorda que apenas os

próprios xamãs, e, dentre eles, apenas os mais poderosos, conseguem ascender após a morte

para o mundo das chuvas, entre os Javaé, segundo as descrições de Patrícia Rodrigues (1993,

2008) e André Toral (1992), os próprios xamãs levam consigo alguns de seus parentes mais

próximos.

É notável, portanto, a seqüência de acontecimentos que formam a grande aldeia de

Buridina. Um muito poderoso, respeitado e temido hyri inicia um deslocamento para

montante do rio, ibò(k)ò, direção associada ao sul, ao leste e ao alto, i.e., ao mundo das

chuvas60, à procura de um lugar melhor para morar, longe das acusações de feitiçaria e das

mortes e brigas causadas por elas. Depois de uma longa viagem, frustrado em sua expectativa

de ser convidado a se juntar a uma aldeia já estabelecida, se instala no alto curso do rio e vê,

repentinamente uma grande quantidade de Karajá e Javaé chegaram para se juntar a ele. Ali

floresce uma grande e próspera aldeia, cujos habitantes, entre os quais havia grandes xamãs,

lutadores e conhecedores das histórias e genealogias, eram conhecidos como ibò(k)ò mahãdu,

60

“O lugar onde o Sol surge (Txuu òlòna), por sua vez, chama-se também biura (‘céu ou chuva branca’), um outro conceito para o ‘leste’, o que tem relação com o fato do Céu ser a origem do Sol e da claridade no mito em que Tanўxiwè conquista o Sol do Urubu-Rei celeste” (Rodrigues, 2008: 250).

Page 65: A cruz e o itxe(k)ò

54

“pessoal de cima/do alto”. O lugar é descrito como ritualmente super-ativo, contendo duas

casas de Aruanã, e de muita fartura61.

Narrativas como estas, sobre tempos antigos, podem sempre super-dimensionar certos

eventos e este é um efeito do modo como os povos indígenas lidam com o tempo e a história –

o que está em questão quase nunca é o dimensionamento das coisas – que não podemos

controlar. Mas não poderia deixar de especular que estas histórias significam a antiga Buridina

como uma experimentação da possibilidade de viver, ainda em vida, num estado bastante

próximo à socialidade plena do mundo das chuvas que, após a morte, apenas alguns teriam a

possibilidade de experienciar. Uma grande aldeia não se forma da noite para o dia, como

narrado: é necessário algo extraordinário para aglutinar tantas pessoas em tão curto prazo. A

localização da aldeia, a mais próxima das cabeceiras do rio, é outro apontamento neste

sentido. Deslocar-se pelo rio é, simultaneamente, deslocar-se pelos cosmos62 e, nesse sentido,

a viagem rio acima de Kabitxa’na foi em direção ao ‘mundo das chuvas’. A experiência

“celeste” de Buridina, entretanto, esbarrou em algo próprio da imperfeita socialidade dos

humanos do meio, a morte. Como descrito, a aldeia encontrou seu “fim” através da morte por

assassinato e por feitiçaria. Desgostosos (ou desiludidos), se minha especulação tiver algum

fundamento, com a evidência da impossibilidade de “transcendência em vida” (e em massa),

por assim dizer, a maioria das pessoas regressou a suas aldeias de origem. Uma grande aldeia,

igualmente, não se desfaz repentinamente. Restou ali apenas um homem que, como veremos,

dará início a uma outra espécie de experiência, igualmente ímpar: a do mundo tori. A

socialidade humana, inў, como bem descreve Rodrigues (2008) é uma socialidade do meio

(itya) e a realidade do mundo das chuvas é um ideal que não se pode realizar em vida, i.e.,

enquanto propriamente humanos.

₪ A reestruturação

Na década de 1950, outros dois assassinatos levaram duas famílias que permaneceram

no local a mudar-se. A aldeia via-se, então resumida à família de Jacinto Ma(k)urehi (cf.

Diagrama 3). Vivendo ali, entretanto, ele sentia-se sozinho. Com o passar do tempo, começou

a fazer viagens para trazer alguns parentes para junto de si. Mariana Maluhereru, sua

sobrinha, junto com seu marido Pedro Wassuri Javaé, os filhos do casal e Maria Severia foram

61

Não é por acaso, parece-me, que o lago de Britânia (biri tahina), local descrito como de fartura quase absoluta, onde pouco esforço era necessário para se obter os alimentos mais valorizados pelos Karajá, seja o ponto mais próximo das cabeceiras do rio que o grupo já ocupou. 62

Lipkind (1940: 248) diz que “if you peddle many days downriver, you will como to a village of the transformer Kanashiwe, the world’s northern limit. An equal journey upstream will take you to its southern limit, another village os Kanashiwe”. Toral (1992: 276) descreveu o deslocamento dos Karajá e Javaé em direção ao alto curso do rio como uma continuação do movimento ascensional mítico.

Page 66: A cruz e o itxe(k)ò

55

Diagrama 3: População da aldeia na década de 1950

Maria Severia

Jacinto Ma(k)urehi

Lídia Dikuria

Mariana Maluhèrèru

Pedro Wassuri

Javaé

Tehaluna Kuti Ismael

+ _ + _

Meire Léia Raul

Alice Koabiru

Hãbibi

os primeiros a voltar. Logo quando aconteceu o assassinato, eles saíram da aldeia e foram para

Ouro Fino, uma pequena aglomeração, próxima a Cuiabá (MT), que surgia em torno de um

garimpo. Jacinto foi até lá “buscar eles”. Mas eles não queriam vir, achando que ainda havia

muita gente ali. Só se convenceram quando Jacinto lhes contou do esvaziamento (“o fim”) da

aldeia. Mas o casal andava muito pelo rio, passando, por vezes, longos períodos nessas

viagens. Jacinto ia também até Santa Isabel e chamava seu irmão João Lawa(k)uri para morar

com ele, mas Joãozinho (como era conhecido) nunca aceitava o convite. Foi só quando sua

filha (a segunda mais velha) morreu, vítima de feitiçaria, que ele cedeu aos pedidos insistentes

de sua mulher, Isabel Sawakaru, e aceitou o convite. Ficaram desgostosos e resolveram ir

embora, confiando na afirmação de Jacinto de que em Buridina poderiam criar seus filhos com

tranqüilidade. Chegam no primeiro biênio da década de 1960.

Mário Arumani chegou um ou dois anos depois. Ele ia até esta aldeia com certa

freqüência, visitar sua mãe, Isabel Sawakaru. Ele era casado, mas largou sua mulher e fugiu da

aldeia com Jandira Diriti, com quem viveu, em Buridina, até sua morte (novembro de 2005) –

ela ainda está viva. Essa é certamente uma ocasião onde é necessário deixar a aldeia e

procurar outro local para morar, pois, caso ficassem, os irmãos da mulher abandonada vingar-

se-iam. Antes dele partir, entretanto, lhe disseram que, lá em Santa Isabel, ele nunca teria

filhos, não criaria netos. Depois de um tempo, já com um filho pequeno, o casal resolveu

desafiar os que haviam lhes dito aquilo e voltou para a Ilha. Ocorreu, porém, que o menino

Page 67: A cruz e o itxe(k)ò

56

faleceu, vítima de feitiço. “Porque o pessoal falou que ele não podia ter filho lá: podia, mas era

desse jeito. Se tivesse, eles mandavam matar. Feitiçaria, era negócio de feitiçaria. (...) Aí ele foi

fazer o teste lá e o menino morreu. Por isso que ele veio para cá”, assim me contava seu meio-

irmão, Nicolau Kawinў. Desgostosos, resolveram voltar para Buridina, na esperança de poder

criar os filhos com mais tranqüilidade.

Luiz Bydè, por sua vez, não gostava da vida de aldeia. Ainda muito jovem saiu para

trabalhar na lida do gado em fazendas e cidades no interior de Goiás, desaprendendo, assim, a

falar o inўrybè63. Morou com sua primeira esposa no Mata-Coral e só foi para Buridina já com

certa idade, depois do fim de seu segundo casamento e sob muita insistência dos irmãos.

Casou-se novamente nesta aldeia e teve seis filhos, que ainda hoje lá residem.

A década de 1960 marca o início da reestruturação da aldeia, com a reunião deste

núcleo de parentes que, embora ainda pequeno, constituiu a base sobre a qual a população

cresceu. A década seguinte marca a alteração da configuração espacial, com o crescimento da

cidade e o início do processo de englobamento da aldeia pela malha urbana, (cf. Introdução).

Na segunda metade da década de 1970, acontecem os primeiros casamentos com tori. É nesse

período, portanto, que a situação de Buridina começa a ganhar seus contornos atuais. Há,

poder-se-ia dizer, uma inversão em relação à antiga e grande aldeia. Antes a vila de Leopoldina

era apenas uma pequena aglomeração e a aldeia congregava um extenso contingente

populacional; agora a população da cidade é mais de 30 vezes maior que a da aldeia. Antes

havia uma delimitação espacial (um córrego), cidade e aldeia mantendo-se territorialmente64

distintas; agora, Buridina é (do ponto de vista da cidade) um pequeno fragmento da malha

urbana. Antes, notara Krause, a cidade dependia da produção indígena para se sustentar65;

agora, boa parte dos produtos básicos da alimentação dos indígenas, como arroz, feijão,

farinha e óleo, é comprada no comércio local. Antes se destacava a intensa vida ritual da

aldeia, a ponto de a cidade ganhar o nome do ciclo de danças de Aruanã: agora, o que

caracteriza buridina é o que chamo de sua experiência urbana, i. e., sua intensa relação com o

mundo não-indígena.

63

Ele dizia não saber falar, mas, certo dia, algumas crianças brincavam em uma praia e, quando escutaram que uma canoa se aproximava, esconderam-se. Era Luiz Bydè, que vinha zingando – propulsionando a canoa com uma vara apoiada no fundo da água – e cantando em inўrybè. Surpreendido pelas crianças, parou de cantar. 64

De um ponto de vista lógico-formal, pois, se consideramos o conceito indígena de território, a situação se altera: a cidade é ela própria parte do território (hãwa) da aldeia. Cf. Infra p. 26-27. 65

Diz Krause: “Os moradores [de Leopoldina] davam a impressão de verdadeira penúria. De que vivem, em que se ocupam, não o sei. Qualquer coisa que se queira comprar, não a possuem, e qualquer atividade que se indague, a ela não se dedicam. Há carne seca? Não. Toucinho? Não. Arroz? Não. Feijão? Não. Farinha? Não. Moringas? Não. Cestos? Não. Quem fabrica esses objetos? Nós não, só o índio. Tudo faz, tudo tem o índio; o brasileiro aí nada tem e nada faz. Quem pesca? Quem caça aves? Só o índio. Ele parece de fato viver melhor do que os brasileiros dessas paragens” (1940: 177).

Page 68: A cruz e o itxe(k)ò

57

₪ Casamentos

Os dois primeiros casamentos com tori – os de Meire Nunsia e Luiz Bydè – aconteceram,

na verdade, nas décadas de 1950 e 1960, mas em ambos os casos o casal não foi morar em

Buridina. Quando os Karajá falam do início dos casamentos com não-índios, “casar com

branco”, estão se referindo ao processo iniciado na segunda metade da década de 1970, com

o casamento de Nicolau Kawinў – ainda existente –, no qual os cônjuges tori passaram a ser

trazidos para morar dentro da aldeia. Mas porque os Karajá de Buridina iniciaram tal processo?

A literatura especializada apresenta um certo dissenso em relação categorias

preferenciais de casamento entre os Karajá e Javaé. Ou as fontes discordam entre si, falando

da preferência ora pelos(as) primos(as) de primeiro grau (FZC, FBC, MBC e MZC), ora pelos(as)

primos(as) de segundo grau (MMZCC, por exemplo), ou mesmo falando que “não há padrões

prescritos de casamento entre os Karajá” (Donahue, 1982: 144). Talvez esse dissenso se funde

mesmo na busca de “regras” matrimoniais, enquanto, penso, o casamento entre estes

indígenas se configura no equilíbrio entre a proximidade (que, em excesso, é inviável,

incestuoso) e a distância de parentesco (que, em excesso, é indesejada, perigosa), uma

ponderação que depende, muitas vezes, mais da maneira como as relações genealógicas

foram atualizadas – primos distantes que foram criados pelo mesmo casal, por exemplo,

podem ser considerados próximos demais – do que das relações genealógicas elas próprias.

(Entram também em consideração outros princípios, como a diferença etária entre os cônjuges

– cf. Donahue, id. ibid.). Essa literatura, entretanto, concorda quanto à preferência pela

endogamia de aldeia – cf. Rodrigues (2008: 738), Donahue (1982: 145) e Lima Filho (1994:

134). De fato, a relação de uma pessoa com sua aldeia, o lugar aonde se nasce, é crucial para

os Karajá. “One´s village is the focus of considerable value for the Karajá. There is a feeling of

homesickness when away, and never does a Karajá become confortable in another village”

(Donahue, 1982: 174). Na grande maioria dos casos de mudança de aldeia, isso ocorre mais

por necessidade66 que por opção – de todos os casos que escutei em campo, nenhum tinha o

desejo de se morar alhures como motivo alegado. Uma exceção são os casos de criação de

novas aldeias, bem menos freqüentes, como se pode imaginar.

Mas não é difícil imaginar que possa ocorrer uma situação onde não haja cônjuges

possíveis em uma dada aldeia – por serem próximos ou distantes demais, velhos ou novos

66

Como nos casos de se matar alguém ou de se “roubar a mulher” de outro homem. Caso se permaneça, a retaliação por parte dos parentes da vítima é certa. O assassino ou “ladrão”, então – junto com sua família, pois a retaliação pode incidir sobre qualquer parente próximo dele –, sai “corrido” e busca outro local para morar. Fénelon Costa menciona a feitiçaria e o adultério como os principais motivos de desarmonia nas aldeias (1978: 40).

Page 69: A cruz e o itxe(k)ò

58

demais, por exemplo –, especialmente se sua população for pequena. Donahue (id.: 146) diz

que, apensar da proclamada preferência Karajá pela endogamia local, há relações

matrimoniais entre aldeias, descrevendo um caso, inclusive. O autor também aponta para as

restrições populacionais como um fator que proporcionaria um impulso para estas uniões

localmente exógamas. E esse é um dos motivos alegados pelos Karajá de Buridina para terem

iniciado o processo de intercasamento com os regionais: a população da aldeia nas décadas de

1950, 1960 e 1970 era toda ligada por laços de parentesco extremamente próximos, o que

impossibilitava que se casassem entre si. Como o incesto é algo tão impensável quanto não

casar, tiveram que buscar cônjuges fora do grupo.

Mas, no caso de Buridina, o motivo alegado para terem começado a se “misturar”

esconde uma escolha: Por que optaram pelos tori? Por que não foram procurar cônjuges nas

aldeias da Ilha do Bananal? Poderiam tê-lo feito, reconhecem, mas não o fizeram. É bem

verdade que, para que um casamento entre pessoas de distintas aldeias ocorra, é necessário

que elas se encontrem, oportunidade que os então jovens de Buridina da década de 1970 não

tiveram. Os Karajá mais velhos não queriam levá-los para as aldeias da Ilha, sobretudo nas

ocasiões rituais, uma das oportunidades de encontro para os jovens. O próximo tópico se

deterá mais sobre isto. Além disso, muitos dos mais velhos estimulavam seus filhos a casar

com tori. O que fica claro, aqui, é que, ao se depararem com a impossibilidade de praticarem

endogamia local e com a conseqüente necessidade de procurar cônjuges alhures, os Karajá de

Buridina optaram, direta ou indiretamente, por negar a possibilidade de casar seus filhos com

outros indígenas da Ilha do Bananal e por vê-los casados com os regionais.

O início desse processo veio acompanhado da inversão do padrão de uxorilocalidade,

amplamente descrito na literatura Karajá (cf. Lima Filho, 1994; Toral, 1992; Rodrigues, 2008;

Dietschy, 1978). Os homens indígenas que se casaram com mulheres tori passaram a levá-las

para morar consigo, na aldeia, e as mulheres indígenas que se casaram com homens tori

saíram da aldeia para morar junto à seus maridos, constituindo, assim, casamentos virilocais.

[Aqui há uma importante questão de gênero: ao contrário de outras situações, como no caso

dos indígenas na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas (Lasmar, 2005),

ou na aldeia Javaé Txuiri (Bonilla, 2000), onde apenas as mulheres indígenas casam com não-

índios, em Buridina, desde o início do processo de mestiçagem, tanto homens quanto

mulheres, indiscriminadamente, se uniram aos tori.] Essa inversão, entretanto, do ponto de

vista feminino, foi apenas temporária, circunscrita, pois as mulheres mais novas (assim como

em alguns casos de segundo casamento das mais velhas) não saíram da aldeia ao casar,

trazendo, ao contrário, seus maridos para a aldeia. Há, aqui, duas coisas a se notar. Primeiro, a

virilocalidade sob a qual os casamentos com tori se derem, num primeiro momento, coincide

Page 70: A cruz e o itxe(k)ò

59

com o padrão de casamento dos regionais, ainda hoje predominante, sobretudo nos contextos

rurais da região. De uma só vez, portanto, os Karajá de Buridina optaram por experimentar

tanto os cônjuges quanto a lógica do casamento dos brancos. Mas trata-se menos, como

tentarei mostrar, de eles terem se apropriado (tentativamente) de um aspecto da socialidade

tori (o casamento) do que de terem mesmo se incluído nesta socialidade Outra, numa

experiência de imersão. O segundo ponto é que o retorno das mulheres à uxorilocalidade, após

os primeiros casamentos virilocais, criou uma diferenciação de gênero no padrão de

casamento, pois os homens continuaram seguindo a virilocalidade. Na verdade, o que antes

era fixo em termos de gênero (o deslocamento do homem ou da mulher após o casamento,

uxori ou virilocalidade), passou a se fixar em termos espaciais (étnicos): o padrão que se

estabeleceu então é que os cônjuges não indígenas (de ambos os sexos) passam a morar na

aldeia.

₪ Tori hãwa mahãdu

Mas porque Jacinto Ma(k)urehi optou por permanecer ali, mesmo com todas as

pressões que sofreram? Desde os dois acontecimentos na década de 1940 que

desestruturaram a aldeia até pressões por parte da população brasileira até o início da década

de 1980, os Karajá de Buridina declararam seu desejo de permanecer ali, e foram firmes

quanto a isso. Um esforço contra a corrente, tanto no sentido de ir contra as pressões dos

regionais e da Funai, como no de ser uma postura ímpar mesmo entre os Karajá: como vimos,

ao se defrontarem, com a morte, quase toda a população da grande aldeia abriu mão daquele

território e voltou para suas aldeias de origem. Este último episódio já foi narrado. Aqui, quero

enfatizar que a permanência de Jacinto foi sim uma escolha.

Os episódios posteriores também deixam transparecer essa permanência como uma

escolha. Ainda nas décadas de 1950 e 1960, Jacinto Ma(k)urehi é pressionado pelo SPI para

sair dali e mudar-se para junto de seus parentes na ilha do Bananal, mas insiste em

permanecer. Com o processo de expansão da cidade na década de 1970, a Funai continuou

tentando transferir os indígenas, mas sempre encontrou resistência ferrenha (cf. Portela,

2006: 162). Em 1976, o médico João Paulo Botelho Vieira Filho visita a aldeia e registra que “os

índios de Aruanã externam o desejo de permanecer onde estão” (1976: 152). A própria

expansão da cidade se constituiu também como uma pressão para que eles abandonassem o

local, quando passaram a ver-se progressivamente confinados pela malha urbana, por uma

cerca viva de moitas bambu e por uma grade. A idéia de viver em um território delimitado por

cercas é algo extremamente incômodo para os Karajá, que gostam da “liberdade”, como

dizem, de trânsito dos espaços abertos. Jacinto previu o desfecho do processo de crescimento

Page 71: A cruz e o itxe(k)ò

60

da cidade que ele via se iniciar – “Tio Jacinto dizia assim: que a cidade estava crescendo e que

daqui a um pouco a gente ia estar cercado, igual a porco no chiqueiro”, disse sua sobrinha, que

confirma sua previsão dizendo que “o pior é que tudo o que ele dizia está acontecendo!”

(Cavalcanti-Schiel, 2008: 6) – e mesmo assim quis permanecer. Além do mais, a área da cidade

já estava toda loteada e o terreno onde a aldeia se encontrava possuía um proprietário.

No ano de 1982, a Funai empreendeu uma última tentativa de transferir a população da

aldeia, chegando um funcionário a oferecer uma quantia de 5.000 cruzeiros para Raul

Hawa(k)a’ti, atual cacique, dizendo que “ isso é para você recomeçar a vida”. Mas o terreno

onde a aldeia estava valia, na época, 100.000 cruzeiros, me dizia Raul, que recusou tanto o

dinheiro quanto a possibilidade de sair dali. Não que, se o dinheiro oferecido pelo lote fosse

justo, eles aceitariam: a tentativa de “suborno” foi colocada nesta conversa para enfatizar a

atitude incorreta e imoral, segundo seu ponto de vista, dos funcionários que lhe fizeram tal

proposta, pois além de intentar retirá-los de seu próprio território, algo sem fundamento, lhe

ofereceram uma quantia de dinheiro bastante inferior ao valor do lote, uma tentativa de

trapaça, em suma. A alegação do pessoal da Funai, segundo ele, era que, como os indígenas

estavam no meio da cidade, nem mesmo havia como o órgão ajudá-los. “Se a gente, que está

aqui pertinho de Goiânia, eles custam fazer algumas coisas, imagina se a gente tivesse lá no

meio da ilha!”, disse, comentando sobre como a decisão de permanecer foi acertada.

Fracassadas essas tentativas, a Funai cede à pressões contrárias, que exigiam que o órgão

fornecesse a devida assistência à comunidade67, e inicia em 1986 o processo de demarcação

da Terra Indígena Karajá de Aruanã (cf. Braga, 2002). Também em 1986, um relatório da Funai

registra mais uma vez que “o grupo expõe claramente o desejo de permanecer no local onde

se encontra e insiste na premência em que sejam postas a efeito providências que contribuam

para a melhoria de sua condição de vida” (Pechincha & Silveira, 1986: 6).

Mas quais os motivos alegados para que Jacinto tenha permanecido em Buridina? Por

que, diante de tais pressões, os Karajá desta aldeia optaram por permanecer em uma situação

territorialmente extrema, adversa para a realização de um ideal Karajá de uma ‘boa vida’? O

que, neste lugar, despertava seu interesse?

Uma das respostas que os Karajá me ofereceram para a primeira destas três perguntas

tem um sentido territorial, da relação que uma pessoa estabelece com seu local de origem.

''Ele [Ma(k)urehi] nasceu aqui, gostava daqui, para onde ele poderia ir? Não ia se acostumar

em outro lugar'', me disse uma senhora, ou “aqui era o território”, como fraseou um homem.

Há duas formas pelas quais se pode estabelecer esta ligação territorial – que os Karajá

67

Em Portela (2006: 74), por exemplo, encontramos uma carta do então prefeito da cidade, datada de 1975, relatando a situação da comunidade e cobrando atitudes do órgão.

Page 72: A cruz e o itxe(k)ò

61

Page 73: A cruz e o itxe(k)ò

62

costumeiramente formulam como uma relação de ‘origem’ (“fulano é original daqui” ou “a

origem dele é lá de Macaúba”, por exemplo). Uma delas está relacionada a ser descendente

em linha direta dos fundadores da aldeia (cf. Toral, 1992: 62, Rodrigues, 2008: 658). A outra

está relacionada a nascer, ter o umbigo enterrado68 e ser criado no local, um produto, em

suma, da socialidade do parentesco. Estas formas não parecem se excluir mutuamente, ambas

tendo sido agenciadas (tanto por pessoas diferentes quanto pela mesma pessoa) em um

conflito territorial que pude acompanhar durante meus períodos de campo. Mas tal explicação

ainda me parecia insuficiente: dentre as pessoas que foram embora quando a aldeia “acabou”,

muitas eram, assim como Jacinto Ma(k)urehi, originais dali. Porque, então, apenas ele

resolveu ficar? Quando perguntei isso a um homem, sua resposta foi bastante simples: “pois é,

eles foram embora, mas o tio Jacinto não, ele segurou”, i.e., foi firme em sua conduta. Como

ele era original de Buridina, não abriria mão de viver em “seu território”, como dizem, e, como

comentei acima, os casos de mudança de aldeia não registram a vontade ou o desejo como

motivação, mas situações problemáticas nas quais “mudar é o remédio do conflito”, conforme

me explicava o mesmo homem.

Essa é, certamente, uma explicação correta, mas que, assim como entendo, não encerra

o sentido desse desejo assertivo de permanecer neste local. E há, de fato, um outro motivo

alegado para essa permanência: Jacinto dizia que queria “a liberdade do menino não-índio

para os netos”, queria ter tranqüilidade para criar as crianças. Aqui há um contraste com a vida

de “aldeia grande”, de que as maiores aldeias da Ilha do Bananal servem hoje de modelo,

marcada pela rigidez. Ao contrário do que se poderia imaginar, “aldeia grande” não aparece

em oposição à “aldeia pequena”. Quando, por exemplo, perguntei a uma senhora se havia

aldeias pequenas na Ilha do Bananal, ela me respondeu de pronto que não. Todas eram

grandes e em todas elas dança-se69. Depois, disse que ''tem, assim, aldeia que separa. Mas aí

dança na outra, onde os parentes estão''. O contraste, assim, é sobretudo ritual. Quando falam

68

Quando nasce uma criança, corta-se o cordão umbilical, que, juntamente com a placenta e todo o resto expelido no parto, é enterrado (cf. também Krause, 1943: 201). Quando o restante do cordão, que permanece junto ao corpo do bebê, seca e cai, a mãe guarda-o e, quando a criança já está crescida o suficiente, i.e., quando sua capacidade de memória já é suficiente para que ela registre este evento, mostra-o para o filho(a), para depois enterrá-lo nas proximidades de onde a placenta se encontra (cf. também Donahue, 1982: 113-114). Não sei dizer se esta prática continua viva entre os Karajá, mas suspeito que, sobretudo em Buridina, e grande quantidade de partos em hospitais a tenha alterado. Os karajá dizem que, mesmo que a pessoa se mude muitas vezes de aldeia, ela sempre volta para o local onde jaz seu umbigo, porque “o umbigo chama”. 69

Dançar é uma referência ao ritual. Quando os ijasò (Aruanã) e outras entidades, algumas delas mascaradas, chegam à aldeia para a festa, eles vêem para dançar, dizem os Karajá, que se referem a um dos ciclos rituais como danças de Aruanã. É provável que estes termos escolhidos para descrever as situações e ações rituais tenha relação com a alegria que caracteriza as festas. Quando os ijasò voltam para seu mundo de origem e cessam-se as atividades rituais, dizem que o lugar fica triste (sobre este contraste, cf. Rodrigues, 1993).

Page 74: A cruz e o itxe(k)ò

63

da rigidez, que “é muito rígido”, estão se referindo ao conjunto de restrições rituais que pesa

sobre crianças e mulheres, que não podem circular irrestritamente pela aldeia, nem muito

menos pelo mato, sob o risco de variadas restrições/punições. Rodrigues, por exemplo, relata

sobre o (k)òrera (k)uni, o “corpo velho do jacaré-tinga”, que “quando [ele] anda pela aldeia, as

mulheres e crianças trancam-se assustadas dentro das casas, nas quais ele bate

ameaçadoramente, com uma grande vara, ao escutar alguma mulher ou criança falando”

(2008: 870). Ele anda, por vezes, durante a noite batendo nas casas, impedindo que mulheres

e crianças durmam. Ele bate nos animais domésticos que encontra pelo caminho, e faz o

mesmo com as crianças, se as encontrar. Há outras entidades ainda mais perigosas, como o

ilabi(k)èhekў. Vejamos a descrição de Lima Filho (1994: 101).

Havia um sentimento de medo e expectativa na aldeia. O Ilabiehekÿ chegaria no final da noite. Seus gritos seriam ouvidos na madrugada. (...) A aldeia se recolheu cedo, a noite avançava e todos tinham medo do Ilabiehekÿ. A Casa Grande [hetohokў] estava completamente vazia. (...) O Ilabiehekÿ é avô dos Worÿsÿ. (...) Perigoso, ele não pode ser visto nem pelos homens. Os Karajá que o encaram são tidos como especiais, e fazem parte do grupo dos homens Mahãdu Mahãdu. (...) Mas, mesmo assim, jamais deverá olhar de frente a grande figura mascarada. Se o fizer, Ilabiehekÿ comerá seu fígado e a morte é certa.

A preservação do “segredo ritual masculino”, vedado à mulheres e meninos não

iniciados, talvez seja a maior das restrições. Há uma narrativa mitológica sobre como a

revelação deste segredo por parte de um menino em processo de iniciação para sua mãe

ocasiona a morte de uma aldeia inteira70. É na iniciação masculina, durante o hetohokў, que os

garotos aprendem o segredo masculino, além de serem aconselhados sobre aspectos diversos

da vida. Trata-se de uma ruptura da criança com o mundo feminino, encenada no momento

em que o garoto é levado para o período de reclusão. A partir deste momento, ele fará parte

da coletividade masculina, sendo integrado na rotina da casa dos homens como uma espécie

de “auxiliar de serviços gerais”: sempre que solicitado pelos mais velhos, ele faz pequenas

tarefas como buscar água no rio, comida nas casas, etc. As crianças Karajá são criadas com

muita liberdade por seus pais, não havendo praticamente nenhum tipo de restrição (exceto, é

claro, as rituais) a qualquer coisa que elas façam71. A iniciação, assim, é pensada como um

sofrimento para os meninos, uma restrição penosa a liberdade de que gozam.

70

Trata-se do episódio ocorrido no local hoje conhecido como inўwèbohona (cf. Baldus, 1979: 125-130; Erenreich, 1948: 81; Rodrigues, 1993: 273-274; Rodrigues, 2008: 578-579; Pimentel da Silva & Rocha (orgs.), 2006: 134-139). 71

Meu anfitrião, Renan Wassuri, me contava, por exemplo, que, quando ele retornou para Buridina, comprou um sofá e colocou na sala, em frente à TV. As crianças da casa começaram a “brincar” de cortar o sofá com uma faca. Renan disse que ficou observando aquilo (sem recriminá-los), e comentou

Page 75: A cruz e o itxe(k)ò

64

Há ainda outra dimensão da vida em “aldeia grande” comumente ressaltada como ruim:

os conflitos e, sobretudo, a feitiçaria. Um dos motivos disto é, sem dúvida, que nos pequenos

agrupamentos familiares, como era Buridina nas décadas de 1950 e 1960, a proximidade dos

laços de parentesco torna os conflitos raros72. Desentendimentos, brigas, acusações,

agressões, feitiços e assassinatos, são gradações de um anti-ideal de socialidade Karajá que

aumenta com a distância [do parentesco]73. As aldeias maiores são conjugações de famílias e

são elas, usualmente, as unidades mínimas dos conflitos. A feitiçaria, por seu turno, pode

aparecer tanto no âmbito destes conflitos inter-familiares como em conseqüência do ritual.

Lembro aqui que, como dito acima, o principal motivo que levou tanto João Lawa(k)uri quanto

Mário Arumani a se mudarem para/fixarem em Buridina foi a morte de uma criança por

feitiçaria.

“Aldeia grande”, como disse, não se opõe a “aldeia pequena”, mas a pequenos

assentamentos familiares que não se caracterizam como “aldeias”74. Buridina é um desses

pequenos assentamentos, não-aldeias. Uma mulher, por exemplo, me dizia sobre seu irmão,

que acabou mudando-se dali para uma aldeia na Ilha do Bananal: “meu irmão gostava de ser

índio. Ele queria viver em aldeia, mesmo. Aqui não servia para ele”. (Mas, se não servia para

ele, porque serve para ela? Será que ela não se importa em “não ser índia”? Veremos que essa

é sim uma questão relevante, embora seja apenas metade da relevância ora em questão – cf.

infra, p. 24ss.) É nesse sentido que devemos entender a afirmação que seus moradores fazem

de que “a aldeia acabou”, na década de 1940. Ela não se extinguiu enquanto um hãwa

(aldeia/território/lugar), mas enquanto uma “aldeia grande”, ritualmente ativa e

potencialmente conflitiva. O ritual é uma dimensão importante desta definição para os Karajá,

e os conflitos e a feitiçaria são a ele associados.

Eu conversava certa vez com um senhor sobre ritual e as restrições à liberdade das

crianças, ao que ele comentou que “aldeia grande é aquela que tem tradição, ainda”. Outro

comigo: “Rapaz, menino é terrível, mesmo!” Por fim, o sofá estragou, foi colocado no quintal, atrás da casa, e virou poleiro das galinhas. 72

Esse é, de fato, um dos motivos alegados para a preferência do casamento com “primo segundo” (de segundo grau), comum até duas ou três gerações atrás: se o casal se desentender – o que é difícil, posto que, por serem primos, tiveram praticamente “a mesma criação” –, o conflito se resolverá entre seus pais, que são eles próprios, “primos primeiros” entre si. 73

A maior parte dos motivos alegados para estes conflitos envolvem casamentos, i.e., as relações de afinidade. Nas aldeias do céu, onde não existe afinidade, onde se vive apenas entre os seus, estes conflitos e tesões não existem. 74

Em outros níveis de contraste, entretanto, como no caso de todos os assentamentos Karajá e/ou Javaé estarem em consideração ou no caso de um (pequeno) assentamento específico ser o foco da fala, a palavra “aldeia” serve como uma categoria abrangente. Assim, pode-se ouvir os Karajá de Buridina se referir ao seu local de moradia como uma aldeia, assim como quando falam das “aldeias Karajá”, também estão incluindo Buridina neste grupo.

Page 76: A cruz e o itxe(k)ò

65

dia, sentado, como de costume à beira do barranco, um rapaz veio me contar sobre uma

conversa que tivera no dia anterior com outro homem. Ambos jovens e vindos de aldeias

“grandes”, na Ilha do Bananal, comentavam jocosamente sobre um terceiro homem, dizendo

que “ele nasceu aqui [em Buridina], cresceu aqui, não sabe nada sobre a festa indígena [a

dança de aruanã e o Hetohokў]. Tem que ir pra Ilha para conhecer”. Em outra ocasião, ainda,

eu conversava com uma senhora, que, nascida em uma “aldeia grande”, foi para Buridina com

poucos meses de vida, sobre as festas Karajá, ao que ela se lamentou, dizendo: "É triste,

porque nessa idade, nunca vivenciei a cultura. Tudo o que eu sei foi de ouvir os outros falar".

Buridina, aparece nesses comentários, e em muitas outros, que pude escutar em ocasiões

diversas, como contraposta às “aldeias grandes”. Ela certamente não é o locus da tradição, da

cultura ou das festas – os três termos nos quais o contraste aparece formulado nestas falas –,

e a seus habitantes falta conhecimento e, sobretudo, experiência nestes tópicos. Falando

sobre seus parentes da Ilha do Bananal que ocasionalmente vão à Buridina para visitar e

passear, um homem me dizia que “eles não vem por causa da tradição. Quando eles vêm para

cá já sabem que vão comer um pão com margarina, tomar refrigerante, ir para o forró...” Mas

isso significa algo muito diferente de uma aculturação, por dois motivos. O segundo é uma

questão de fundo de todo o capítulo III e, por isso, será retomado depois. Concentremo-nos no

primeiro, então.

Note-se que os três termos do contraste, tradição, cultura e festas, não têm o mesmo

significado, mas o contraste que agenciam é basicamente o mesmo. Isso porque os conceitos

que não tem o mesmo significado são os nossos, mas como teriam os Karajá se apropriado

deles? Estes indígenas operaram, de fato, uma fusão nesta trinca, igualando seus significados.

Quando falam da ausência de cultura ou tradição, estão se referindo à ausência de vida ritual.

Se estas categorias envolvem, para nós, uma dimensão muito mais ampla da vida deles (bem

como da nossa), como concepções cosmológicas, regras ou preferências de casamentos, talvez

uma outra língua, trejeitos corporais peculiares, etc., para nos determos sobre uma lista curta,

os Karajá as equacionaram exclusivamente ao ritual, às festas. Não que eles não reconheçam

suas particularidades em relação a estes outros aspectos do que chamamos cultura ou

tradição. Há, certamente, diferenças entre os Karajá de Buridina e seus parentes da Ilha do

Bananal, mas eles se reconhecem mutuamente e a si próprios como igualmente indígenas:

essas diferenças, portanto, não são do tipo que permitiriam alguém pensar os Karajá da Ilha

como mais “tradicionais” que os de Buridina, mais “aculturados”. Mas, aqui, é necessário dar

um passo atrás na argumentação, pois o próximo capítulo se deterá um pouco mais sobre esta

questão.

Page 77: A cruz e o itxe(k)ò

66

Vendo a “aldeia grande”, a cultura, a tradição e as festas acabarem, Jacinto optou por

permanecer ali, uma opção que parece ter sido mesmo pela ruptura. Isso pode ser entrevisto,

por exemplo, em sua declarada vontade de criar as crianças com tranqüilidade, livres das

restrições e perigos do ritual. Poderíamos especular, entretanto, que desejos como este

podem ser algo mais comum do que poderíamos a princípio imaginar, que outras pessoas

tenham optado por morar em pequenos assentamentos familiares por este mesmo motivo,

um afastamento das tensões e restrições da vida em uma “aldeia grande”. Este parece ser

também um ideal da socialidade Karajá, assim como ocorre no mundo das chuvas. As aldeias

do céu, segundo a descrição de Rodrigues (2008) são habitadas por poucas pessoas,

estreitamente relacionadas entre si, como um homem, sua mãe e seu tio materno, por

exemplo. Mas a realização de rituais neste plano do cosmos, o social mundo do meio, depende

de aldeias populosas e é um aspecto central da vida do grupo, parte fundamental da

construção da pessoa – ao menos para os Javaé (id. ibid.). Esses pequenos assentamentos,

desta forma, se articulam às aldeias maiores e ritualmente ativas pelos laços de parentesco

que seus habitantes entretêm. Forma-se, parece-me, uma rede cujas conexões variam em

densidade, conexões estas que se constituem como os canais de participação no ritual para

aqueles residentes em localidades onde não se realizam festas. Assim, durante o Hetohokў,

por exemplo, a aldeia que sedia a festa recebe muitas famílias de outras localidades, que vêm

para assistir, simplesmente, ou para que um menino seja iniciado.

Mas a ruptura pela qual Jacinto Ma(k)urehi optou inclui também a quebra de vínculos

rituais. Apesar de a comunicação com outras aldeias não ter ficado interrompida desde a

década de 1950, nenhum dos Karajá mais velhos jamais levou seus filhos e netos para vivenciar

a cultura na aldeia grande, como na fala citada – o que, hoje, é uma importante preocupação

dos adultos –, nem levou os meninos para serem iniciados. O cacique Raul Hawa(k)a’ti me dizia

que Jacinto nunca o fez, pois, dizia ele, os meninos não tinham preparo. Tinha medo que eles

fizessem ou dissessem algo errado. Por mais que ele estivesse sempre falando sobre como as

coisas funcionavam, eles não tinham experiência prática, i.e., nunca tinham vivenciado. Isso

parecia ser algo especialmente grave em relação às moças, sobre quem a rigidez das regras

rituais pesa muito mais do que aos homens75. “Como nós éramos muito atentadas, ele tinha

medo”, uma mulher me disse. Como cresceram em Buridina, estavam acostumadas a andar

livremente, conversar com “todo mundo”, etc., ao contrário das mulheres das aldeias da Ilha

75

O segredo masculino é um dos motivos para tal, pois, como algo vedado à elas, envolve atividades masculinas e que elas tem de tomar uma série de preocupação para não presenciar, ao preço de terem suas próprias atividades ceceadas com isso ou de serem efetivamente punidas. Assim como os homens, por outro lado, o risco de feitiçaria é outro sempre presente.

Page 78: A cruz e o itxe(k)ò

67

do Bananal, cujo comportamento é contido, andam de cabeça baixa (evitando o contato

visual76) e “não conversam com qualquer pessoa fácil, não”. “Acho melhor vocês ficaram por

aqui e casar com tori mesmo, já que não tem outro jeito”, dizia Jacinto.

Não deixa de ser curioso que, depois de ter feito uma opção por romper com a vida de

“aldeia grande” – e com os vínculos rituais, conflitos e feitiçaria nela implicados –, ele alegue

que não tem outro jeito. Essa foi justamente a impressão de seu neto Raul Hawa(k)a’ti, atual

cacique, diante do episódio narrado por ele a mim, que reproduzo abaixo.

A primeira vez que Jacinto permitiu que Raul saísse da aldeia foi em 1967, para ir a São

Paulo, conhecer a cidade, numa viagem que durou três meses. Depois de algum tempo, o

fotógrafo alemão Jesco Von Puttkamer passou por Buridina, conheceu Raul e gostou do jeito

dele. João Lawa(k)uri já havia chegado, nesta época. Jesco gostou também de Nicolau, filho de

Joãozinho. Ele conversou com algumas pessoas na cidade, pois queria levar os dois jovens

consigo. Depois conversou com os parentes dos meninos, entre eles Jacinto, e conseguiu

autorização para levá-los para Goiânia. Nicolau não ficou muito. Na verdade, foi apenas para

fazer um serviço para um conhecido de Jesco. Voltou pouco tempo depois, com uma arma

(uma “22 de cinco tiros”) que recebera como pagamento. Raul chegou a ficar dois anos e meio

sem voltar à Buridina. Uma prima sua, transcorrido este tempo, foi até Goiânia lhe procurar e

acabou encontrando. Foi então que ele retomou o contato com a aldeia. Vinha sempre para

cá, geralmente no fim do mês. Jesco lhe dava dinheiro e ele ficava por aqui, pescando ,

bebendo. Quando já estava de volta, casado e com filhos, Jacinto disse a Mário Arruda77 que

estava assustado ao ver Raul tão solto, jogando bola com o pessoal da cidade, conversando

descontraidamente, etc. Seus filhos não falavam o Karajá e respondiam em português mesmo

quando Raul ou sua mulher os interpelavam em inўrybè. Jacinto disse que Raul estava

perdendo a cultura. Mário contou isso a ele, que se surpreendeu. “Ele queria que eu tivesse a

liberdade do não-índio agora está dizendo que eu estou perdendo a cultura?” Depois refletiu

sobre isso e chegou a conclusão de que Ma(k)urehi estava certo. Foi a partir deste episódio,

me dizia Raul, que a idéia do Projeto Maurehi surgiu.

Este episódio parece indicar que Ma(k)urehi, ao fazer a opção por permanecer em

Buridina, não sabia quais seriam os resultados, a médio prazo, daquele experimento.

Justamente porque parece se tratar precisamente disto, uma experiência, que, sem dúvida,

gerou seus efeitos colaterais. A diferença de comportamento entre os rapazes e moças desta

aldeia e de outros jovens da Ilha do Bananal é uma conseqüência da especificidade territorial

76

A troca de olhares é um indicativo de desejo sexual. 77

Mário Arruda é professor de antropologia da UCG. Chegou à Aruanã e começou a trabalhar com os Karajá no início da década de 1970 e teve longo convívio com Jacinto Ma(k)urehi.

Page 79: A cruz e o itxe(k)ò

68

de Buridina, i.e., de sua conjunção com a cidade. Como diz o Cacique Raul, eles foram criados

“no meio do povão” (convivendo cotidianamente com não-índios) – “com a liberdade do

menino não-índio”, como quis Jacinto –, desenvolvendo, assim, uma outra socialidade, que,

parece-me, se configurou como um padrão nesta aldeia. Se, por um lado, certamente a

experiência dessa primeira geração de jovens guarda suas diferenças para com a experiência

da juventude atual (a terceira geração), essa diferença de comportamento em relação à seus

parentes da Ilha parece ter permanecido basicamente a mesma.

Mas se opção de Jacinto em permanecer ali foi um experimento, o que exatamente eles

queriam e estavam experimentando? Depois de tudo que já foi dito e narrado aqui, não é

difícil chegar à conclusão de que tratava-se de uma experimentação do mundo dos tori. Em

relação aos casamentos, já vimos como os Karajá optaram, num primeiro momento, tanto

pelos cônjuges quanto pelo padrão de casamento dos regionais, um movimento que inverteu a

uxorilocalidade do grupo. Tendo sido criados “no meio do povão”, na cidade, o padrão de

socialidade que ali se configurou em muito coincide com a socialidade dos não-índios, bem

apreendida por Jacinto através da categoria solto (em contraste com a formalidade e as muitas

restrições da vida Karajá) e como ainda hoje podemos perceber. Houve, de fato, um empenho

em aprender a ser branco, tanto por parte dos Jovens quanto dos mais velhos, e isto desde

muito cedo. Já em 1908 Krause relata a presença de uma aldeia ao lado da vila de Leopoldina,

descrevendo-a como habitada por “índios civilizados, que preferem as vantagens da civilização

(fumo, sal) à convivência com a tribu” (1941: 241). Baldus (1948a: 145-148), em um relato

sobre uma curta passagem por esta aldeia no ano de 1947, faz uma curiosa descrição da sua

situação de “aculturação”, descrevendo a presença de objetos industrializados e do uso das

roupas dos brancos, convivendo com utensílios, vestimentas e adornos Karajá. Em Ossami de

Moura (2006: 327) encontramos três fotos do interior da casa de Jacinto Ma(k)urehi e de sua

mulher Lídia Dikuria, tiradas já no ano de 1991. Numa delas (Foto 01) vemos uma televisão

sobre um pequeno móvel. Em suas prateleiras há vários livros, todos perfeitamente

organizados, e um forro bordado triangular que o enfeita, certamente uma réplica perfeita do

interior de uma casa regional. Na outra (Foto 02) vemos uma estante cheia de panelas de

alumínio e alguns pratos. Estas panelas, nos contam alguns indígenas, eram um dos principais

fascínios dos Karajá antigos com o mundo tori. Na terceira (Foto 03), vemos Lídia Dikuria

cozinhando num fogão à gás.

Page 80: A cruz e o itxe(k)ò

69

Foto 01 Rosimar da Silva Acervo: PUC-GO / IGPA

Foto 02 Rosimar da Silva Acervo: PUC-GO / IGPA

Page 81: A cruz e o itxe(k)ò

70

Foto 03 Rosimar da Silva Acervo: PUC-GO / IGPA

Page 82: A cruz e o itxe(k)ò

71

Poderíamos, enfim, recolher inúmeros fragmentos que nos auxiliariam a reforçar a hipótese

que exponho. Mas vou me deter aqui sobre um último ponto, pois ele indica que essa é

justamente a imagem que alguns dos Karajá da Ilha fazem destes seus congêneres. Desde pelo

menos a década de 1960, seus parentes da aldeia de Santa Isabel começaram a chamar os

moradores de Buridina de tori hãwa mahadu, expressão cuja tradução literal seria “pessoal

(mahãdu) da aldeia/território/lugar (hãwa) dos brancos (tori)”. Os próprios Karajá de outras

aldeias, assim, passaram a reconhecer a relação de conhecimento privilegiada de Buridina em

relação ao mundo dos brancos. Nessa época, me disse um senhor, alguns Karajá da Ilha do

Bananal iam até esta aldeia fazer trocas. Levavam coisas como um enfeite plumário ou um

feixe de sementes de melancia e desejavam artigos industrializados como roupas. Por vezes, o

produto trazido não tinha valor equivalente ao da roupa, fato desconhecido pelos visitantes.

Mas a ética Karajá reza que pedidos de parentes próximos não devem ser negados, algo que

causou constrangimento a alguns destes visitantes quando o descobriram. Ainda hoje essa

associação com o mundo dos brancos permanece. Quando os indígenas desta aldeia chegaram

a Santa Isabel, há alguns anos atrás, para a ocasião de assistir ao Hetohokў, escutaram de seus

parentes o seguinte comentário: “Lá vêm os tori de Buridina” ([Cavalcanti-]Schiel, 2002: 50).

Isso não ocorreu uma única vez. Conversando com um homem sobre o assunto, ele me

relatava um comentário semelhante, falando que os Karajá de Santa Isabel dizem que até o

sotaque do inўrybè destes seus parentes (daqueles que o falam fluentemente) “puxa mais para

o lado do branco”78.

Mas seria apressado supor que os Karajá de Santa Isabel pensam que seus parentes de

Buridina não são índios, até mesmo porque eles são reconhecidos como indígenas em diversas

situações. Mas continuemos pela via do conceito tori hãwa mahãdu. Se falei de um “tradução

literal” é porque há algumas sutilezas no significado desta expressão. Hãwa é um conceito

traduzido pelos índios como aldeia, lugar onde se situa/constrói uma aldeia, ou simplesmente

como lugar. Se as aldeias Karajá são inў hãwa, as cidades dos brancos são tori hãwa,

“aldeia/território/lugar dos brancos”. Esta informação está também presente na etnografia de

Donahue (1982: 172). Assim, a tradução mais apropriada, menos literal, para a expressão em

questão parece ser “pessoal da cidade”, indicando que a experiência urbana destes Karajá é,

ao mesmo tempo, uma experiência do mundo tori. Há, aqui, uma importante dimensão

territorial. Se optei por traduzir hãwa de uma maneira ampla, como uma

aldeia/território/lugar, é porque tal conceito não se restringe a aldeia em si – o arruado de

78

Cf. outro registro semelhante em Portela (2006: 206 - fala de Uberena).

Page 83: A cruz e o itxe(k)ò

72

casas –, contendo também uma dimensão territorial. Rodrigues diz que “hãwa é tanto uma

‘aldeia’ quanto um território definido ao redor de uma aldeia” (2008: 247, nota 7).

Sentado, certa vez, na varanda de uma casa da aldeia, conversava com seu dono sobre a

relação aldeia-cidade. Perguntei se a aldeia estava dentro da cidade, ou se era o contrário; se a

cidade fazia parte da aldeia, ou se era o inverso; ao que ele me respondeu: “É a cidade que faz

parte da aldeia! Estamos no centro da cidade, mas é a cidade que faz parte da aldeia!”

Prosseguiu exemplificando: quando os Karajá da Ilha do Bananal dizem “vou para Aruanã”,

estão falando da aldeia, não da cidade. Isso sugere que a própria cidade, os não-índios, suas

instituições (escolas, Funai, Funasa, bancos e mercados, p. ex.) e instrumentos (bicicletas,

barcos a motor, combustível, tratores, etc.) são também parte do território Karajá, ou, mais

especificamente do hãwa de Buridina79; são recursos e agentes dos quais igualmente se

utilizam ou com quem se relacionam, análogos, assim, aos lagos, espíritos, matas, animais –

alguns de caça, outros, predadores –, matérias primas vegetais, etc80. Falando ainda sobre seus

parentes da Ilha, o que os motiva a visitar Buridina, por exemplo, além da visita ela mesma, é a

possibilidade de acesso aos recursos não-indígenas, ali abundantes. Lá eles podem vender seus

artesanatos, circular pela cidade, de dia ou à noite (nas muitas festas e shows que a cidade

apresenta na temporada turística), e, sobretudo, tem guias experientes. Essas visitas,

poderíamos argumentar, portanto, constituem uma exploração do território de Buridina, da

mesma forma que, até meados do século passado, eles subiam o rio Vermelho para buscar

taquari para fabricar suas flechas; ou da mesma forma que adentravam este rio, acampando

nos bancos de areia às margens do lago conhecido como Biritahina (hoje Britânia), para passar

algum tempo por lá usufruindo da abundância alimentar do local. Nessas viagens, é claro,

paravam no meio do caminho para visitar seus parentes.81

₪ ₪ ₪

79

Não poderia deixar de assumir, aqui, minha dívida para com a análise de Alexandra Barbosa da Silva sobre a situação territorial dos Guarani do Mato Grosso do Sul (2007). 80

Em outro lugar (Nunes, 2009a), partindo de dois casos de tentativa de fissão de aldeia, explorei um pouco mais detalhadamente esta e outras questões sobre a territorialidade karajá, fazendo também um contraste de fundo com as noções e práticas territoriais dos tori. 81

Em Índios e Criadores, Melatti (2005[1967]) relata uma situação cujos paralelos com a situação de Buridina não poderíamos deixar de notar. Quando da fusão de uma aldeia maior, parte de sua população formou outra aldeia que Nimuendaju denominara “Donzela”. A outra parte permaneceu no antigo local, chamado Pitoró. “Este último grupo abandonou logo a forma circular da aldeia, os cerimoniais e passaram as famílias que o constituíam a morar em casas afastadas umas das outras, segundo o padrão dos civilizados da área. Pouco a pouco, porém, os membros do grupo de Pitoró foram-se passando para o de Donzela e com isso retornando aos costumes indígenas. Somente Bernardino e seus filhos continuaram a viver a parte. Hoje os filhos de Bernardino moram em algumas casas próximas do Morro do Boi (dentro do território indígena), todos casados com regionais” (op. cit.: 32). Um grupo, de maneira aparentemente deliberada, escolhe viver “a maneira dos civilizados”. Parte dele, algum tempo depois, desiste e volta a viver à maneira indígena, na aldeia. Resta apenas poucos indivíduos nesta situação e que, com o passar do tempo começam um processo de mestiçagem.

Page 84: A cruz e o itxe(k)ò

73

Este capítulo, poderia dizer, é uma inversão de minha trajetória de incursão etnográfica.

Inicialmente não pretendia nada com a história da aldeia, além de uma tradicional

contextualização (e, talvez, uma reconstituição da origem de certas práticas). À medida,

entretanto, que minha pesquisa sobre a mestiçagem e a mistura ganhava contornos, as

narrativas e comentários sobre o passado da aldeia iam se conectando e ganhando um sentido

muito incisivo em relação à constituição atual da questão que eu pesquisava. Aqui, por algum

motivo enigmático, escolhi inverter essa ordem e construir uma narrativa que se aproxima da

mestiçagem e da mistura através história da aldeia. Mas essa aproximação é apenas parcial, no

sentido de que ela se detém sobre uma dimensão da questão que será abordada no capítulo

seguinte, e, portanto, só pode nos falar algo sobre a “metade”, por assim dizer, da dimensão

da vida dos Karajá de Buridina ora em foco. Aqui tentei caracterizar a peculiaridade histórica

desta aldeia como uma experimentação do mundo tori cuja intenção era apreender a ser

brancos. Acredito que os Karajá tenham sido bem sucedidos nessa empreitada e logo a

situação deixou de ser um experimento para se transformar propriamente na vida deles. Mas

isso não encerra a questão – i.e., não se trata de um caso de “aculturação” –, pois, para tornar-

se tori, eles não deixaram de ser Karajá, nem nesses tempos antigos, aqui narrados, nem nos

dias de hoje. No capítulo III, assim, investiremos sobre o sentido desta duplicidade e da relação

que eles estabelecem entre ambos “os lados”, entre ser índio e ser branco, entre o

conhecimento e perspectiva de índios e não-índios.

Page 85: A cruz e o itxe(k)ò

74

Page 86: A cruz e o itxe(k)ò

75

Capítulo III

Mestiçagem, mistura e relação:

os muitos ‘dois lados’

Mistura [definição química]

Uma mistura é constituída por duas ou mais substâncias puras [...]. Todas as substâncias que compartilham um mesmo SISTEMA, portanto, constituem uma mistura. Não se pode, entretanto, confundir misturar com dissolver. Água e óleo, por exemplo, misturam-se, mas não se dissolvem. Isso torna o sistema água + óleo uma mistura, não uma solução.

Existem três tipos fundamentais de misturas: [1] as homogêneas, [2] as heterogêneas e [3] as coloidais.

[1] Uma mistura é dita heterogênea quando apresenta duas ou mais fases e os componentes da mistura são perceptíveis. Observação: a visualização não é, necessariamente, a olho nu. As fases de uma mistura heterogênea podem ser detectadas no microscópio ou separadas em uma centrífuga. Como exemplos têm-se o sangue e o leite.

[2] A mistura homogênea é aquela cujas substâncias constituintes não podem ser identificadas [...], pois possuem as mesmas propriedades em toda a sua extensão. Tais substâncias sofrem dissolução, ou seja, a sua mistura produz somente uma fase. Isso quer dizer que toda mistura homogênea é uma solução [...]. Um exemplo é a mistura da água com álcool: quando misturadas essas duas substâncias é impossível distinguir uma da outra.

[3] Misturas coloidais é quando [...] se consegue distinguir os seus componentes a olho nu.

(Wikipédia, a enciclopédia livre – negritos nos original, itálicos do autor).

₪ Os dois lados: um sistema de perspectivas insolúveis

Uma aldeia no centro da cidade, “moderna, não é?”, me dizia um homem Karajá. À beira

do rio Araguaia, dois espaços usualmente pensados como em tudo distintos, opostos, aldeia e

cidade, se encontram espacialmente conjugados, mas não diluídos: Buridina nunca perdeu sua

Page 87: A cruz e o itxe(k)ò

76

tradicional configuração de aldeia Karajá82, e o crescimento da cidade (e, posteriormente, a

demarcação da Terra Indígena) fez com que os limites de aldeia e cidade coincidissem (uma

única linha serve de borda a ambas as figuras). Como num minúsculo bairro, passar da aldeia

para a cidade é dar um passo através do portão: do meio fio para lá está um mundo de Outros.

Essa afirmação, na verdade, é um tanto imprecisa: o mundo dos tori não está apenas na

cidade e, num certo sentido, Buridina é também parte da cidade. Os Karajá comem nossas

comidas, estão integrados no comércio local, usam nossas roupas, nossa língua, nossos nomes,

têm televisões, telefones, fogões, geladeiras, freezeres, bicicletas, algumas motos, camas,

guarda-roupas, barracas de acampamento, canoas de alumínio com motores de popa, etc.

Além do fato de terem muitos amigos não-indígenas na cidade e, sobretudo, filhos com eles.

No capítulo passado já vimos como este processo se iniciou. Hoje os Karajá de Buridina se

dizem misturados, classificando àqueles filhos resultantes desses casamentos como mestiços,

termos também usados pelos brancos para se referir a eles. Uma aldeia incrustada no centro

da cidade, habitada por índios “aculturados”83, em sua maioria mestiços, que levam uma vida

de branco. Para a maioria dos moradores e visitantes de Aruanã, a aldeia é apenas mais um

bairro da cidade e os índios pouco (ou nada) se diferenciam deles.

Essa é apenas uma forma de contar a história, eu diria. Há também as relações de

parentesco, o inўrybè, as comidas típicas, as disputas políticas características do grupo,

xamanismo (ainda que sem xamãs reconhecidos), práticas de resguardo, nominação, etc.

Importante notar, entretanto, que tampouco se trata de um mero preconceito: os próprios

índios, por vezes, contam essa história. Não se trata de escolher entre as duas versões qual

seria mais apropriada para descrever essa comunidade. Nem, muito menos, de escrever uma

‘história do meio’, algo como uma negação de seu estigma de aculturados por meio do

reconhecimento de que seu engajamento extremo no mundo não-indígena não lhes tira a

condição de indígenas, pois sua tradição não está em contradição com a nossa “modernidade”.

Não que isso não seja verdade. Detenhamo-nos um pouco aqui.

Para explorar esta questão, tomarei como exemplo dois autores. O que se segue,

entretanto, não é propriamente uma crítica a respeito dos trabalhos de ambos. Explorando

82

A planta das aldeias Karajá é tradicionalmente composta por uma ou mais fileiras de casas paralelas ao rio e, nos locais onde as há, uma “casa de aruanã”, hetokrè, situada na região mediana da fileira das residências e delas um pouco afastada na direção do mato. Ela possui apenas três paredes fechadas: o lado voltado para o mato é aberto, em oposição, assim, às casas de moradia, cujas portas se dispõem para o rio. O eixo rio-mato se sobrepõe, na grande maioria dos casos, ao eixo do sol, leste-oeste, mas de uma maneira variável: nas aldeias localizadas na margem esquerda do rio, o mato corresponde ao oeste, ao passo que, nas aldeias situadas na margem direita, corresponde ao leste. Cf. Toral (1992: 51-56), Krause (1941: 253-254), Donahue (1982: 181; 183-184). Cf. também infra, Desenho 01 (a). 83

Cf. Portela (2006) e Motta (2004) sobre o imaginário da população regional e dos turistas sobre os índios de Buridina.

Page 88: A cruz e o itxe(k)ò

77

(parte de) seus argumentos, quero apenas evidenciar a maneira como eles constroem a

relação entre “os dois lados”, isto é, como aí se relacionam o ponto de vista indígena e o não-

indígena, “o [mundo do] índio e o mundo dos brancos”84. Comecemos por aí, Roberto Cardoso

de Oliveira.

Neste seu livro (1972[1964]), Cardoso de Oliveira trata de uma situação que apresenta

características similares às que encontramos entre os Karajá de Buridina. Trata-se dos índios

Ticuna do alto curso do Rio Solimões, que num contexto de extrativismo de caucho, estavam, à

época, bastante integrados à sociedade regional, sendo reconhecidos pelos não-índios como

“caboclos”. Num memorial escrito por posseiros, ocupantes da reserva indígena, ao então

presidente da República, estes chegam a declarar que não havia “neste recanto índios e sim

civilizados caboclos” (op. cit.: 110). O autor certamente não compactua com esta visão. “A

interiorização dos padrões de comportamento do branco pelo índio” 85 (op. cit.: 100) não é

suficiente para promover a transformação total dos Tukúna em “civilizados”. Para fazer tal

afirmação, o autor se apóia no mecanismo “tribal” de auto-reconhecimento: a afiliação

clânica. Assim, “a condição de membro de um clã confere a um indivíduo o status sem o qual

ele não teria lugar na comunidade indígena, pois não seria reconhecido como Tukúna. Em

outras palavras, não pertencer a nenhum clã é não ser Tukúna” (op. cit.: 66), dando exemplos

tanto de um indivíduo com grande conhecimento sobre questões culturais do grupo que não é

reconhecido como indígena (e não se reconhece como tal) por não possuir filiação clânica

quanto de outro que, mestiço criado junto à sua mãe não-indígena e tendo herdado o clã de

seu pai Ticuna, “em nenhum momento deixou de ser aceito pela comunidade indígena” (id.

ibid.). Outro elemento fundamental para a permanência dos Ticuna enquanto tais é o sistema

de parentesco que lhes fornece “meios para calcularem sua posição no contexto intratribal,

classificando-os num sistema de status” (op. cit.: 71). Assim, a respeito dos “resultados da

interferência entre duas ordens distintas, a tribal e a nacional” (op. cit.: 70), o autor conclui:

É mister considerar que os Tukúna estão sendo surpreendidos num momento do processo de sua transformação, i. e., de uma transformação que os afeta de modo total mas cujo processo ainda está muito no começo: o que explica a permanência de um estrutura social segmentada em grupos unilineares de descendência, associados em metades exogâmicas, sustentados por um sistema de parentesco extremamente operativo, formando, a bem dizer, o núcleo da ordem tribal Tukúna. Esse núcleo, como área estratégica do sistema

84

A escolha destes autores é um tanto aleatória, e muitos outros e outras poderiam os substituir, para o fim em questão. Se optei por eles, entretanto, certamente é devido a influência que seus trabalhos tiveram sobre o meu. 85

Tanto para os indígenas quanto para os regionais, “o falar bem o português (ao lado de se vestir e de se paramentar de utensílios ‘civilizados’) simboliza a passagem da condição de ‘selvagem’ (...) para a de ‘civilizado’” (op. cit.: 100).

Page 89: A cruz e o itxe(k)ò

78

social indígena ainda não foi tocado em suas estruturas cruciais, a despeito da situação de conjunção intercultural existente (op. cit.: 80-81).

E se esse núcleo, essa área estratégica, fosse tocado? Sem querer diminuir a

complexidade de uma possível tal situação – nem muito menos as muitas tensões, pressões e

violências da situação abordada por Cardoso de Oliveira –, creio que só é possível formular a

questão desta forma se pensamos que as duas “ordens” em questão se situam em um mesmo

plano, estando assim, passíveis de mutua interferência; se pensamos que ambas as ordens

constituem um único processo; se pensamos, enfim, que o resultado desta ‘mútua

interferência’ é uma unidade uma. Penso, entretanto, que essa não é a única forma de relação

entre ‘as duas ordens’: elas podem estar em planos distintos, paralelos e independentes, e a

unidade formada por esta relação, assim, só poderá ser compósita, repartida. Desta forma, a

análise que ele faz da figura do caboclo, “o Tukúna transfigurado pelo contato com o branco”

(op. cit.: 83), desemboca num esquema que só pode ser explicado por uma ambigüidade.

Em certo sentido, o caboclo pode ser visto como resultado da interiorização do mundo do branco pelo Tukúna, dividida que está sua consciência em duas: uma, voltada para seus ancestrais, outra, para os poderosos homens que o circundam. (...) Fracionada sua personalidade em duas, ele bem retrata a ambigüidade de sua situação total (id. ibid.)

86.

A figura do caboclo nos interessa sobremaneira pela proximidade que há em alguns

pontos com a figura do mestiço e, sobretudo, com a pessoa misturada. Veremos mais adiante

que esta “dupla consciência” também a caracteriza, mas não por sua ambigüidade, e sim por

sua duplicidade, não-ambígua.

O segundo autor que nos servirá de exemplo é Marshall Sahlins, com artigo sobre como

“a cultura não é um ‘objeto’ em vias de extinção” (1997a; 1997b). Nos interessam aqui não

suas respostas às críticas ao conceito de cultura, mas a argumentação sobre o que o Sahlins

chamou de “pessimismo sentimental”. Para tal, ele toma três exemplos, mas aqui nos

deteremos apenas em dois deles. Quando Rena Lederman e seu marido chegaram aos Mendi,

um povo das terras altas da Nova Guiné, se chocaram com um aparente estado de deplorável

indigência, da qual a apropriação do lixo por parte dos índios para fabricar diversos objetos era

um aspecto impactante. “Os etnógrafos se convenceram inicialmente de que os desejos dos

Mendi por objetos iriam necessariamente atrelá-los aos significados e relações portados por

essas mercadorias, a ponto de comprometer suas formas tradicionais de existência” (1997a:

61). Com o tempo, entretanto, passaram a perceber que aquilo parecia consistir mais em um

86

Embora eu discorde das implicações que o autor tira dessa “bipartição”, suas palavras antecedem as minhas em mais de quatro décadas. Também este livro de Roberto Cardoso de Oliveira eu só poderia caracterizar como pioneiro.

Page 90: A cruz e o itxe(k)ò

79

processo criativo do que degenerativo e, assim, a “ver detalhadamente o modo como os

Mendi conseguem infundir seus próprios significados a objetos estrangeiros” (id.: 60). À parte

expectativa de muitos de nós de que a expansão do sistema mundial provoque uma

homogeneização cultural, o caso de vários povos da Nova Guiné mostrava que “os impulsos

comerciais suscitados por um capitalismo invasivo são revertidos para o fortalecimento das

noções indígenas de boa vida” (id. ibid.), tendo, em muitos casos, possibilitado uma expansão

das trocas cerimoniais e das redes de parentesco87.

O segundo exemplo, extraído da mudança de postura de um intelectual indígena, Epeli

Hau’ofa, traz basicamente as mesmas considerações que o primeiro. Mas, ao invés de focalizar

um processo de expansão intensiva (ritual) propiciado pelo fluxo de objetos, focaliza um

processo de expansão territorial (extensiva) propiciado pelo fluxo de pessoas, percebendo as

redes de relações das “comunidades translocais”, que conectam territórios (países, muitas

vezes) distantes, como extensões das redes de relação existentes entre as pequeninas ilhas do

Pacífico, conectadas pelo mar. Mas em ambos os exemplos a tônica é a mesma: os povos

indígenas não estão desaparecendo, pois eles estão se apropriando dos nossos objetos,

lugares, roupas, dinheiro, etc., para suas próprias finalidades. O “paradigma do ‘objeto’ em

vias de extinção” é, por assim dizer, um falso problema88. O capítulo primeiro, enfim, trata em

grande parte desta questão.

Mas aqui se pode dizer o mesmo que antes: por sofisticado e importante que possa ser

o argumento de Sahlins (assim como de outros), ambos os lados da história são pensados

como estando em um mesmo plano. Às custas de se preocupar com as finalidades indígenas,

ele põe de lado as finalidades dos brancos. E de que outro modo poderia ser? Afinal, pontos de

vista são coisas auto-excludentes: não se pode olhar algo sob vários deles de uma só vez – e a

pretensão de estar-se fazendo isso implica um esquema de englobamento e hierarquia que é

antes um terceiro ponto de vista do que uma posição de imparcialidade89. Abordagens como

essa são certamente importantes e trouxeram muitos ganhos para a compreensão de diversas

situações de inter-relação entre os mundos indígena e não-indígena – eu próprio tendo,

obviamente, me beneficiando dela ao longo deste trabalho. Mas o ponto é que ela resolve a

87

O caso dos Waiwai (Howard, 2002) é outro interessante exemplo disto. 88

O terceiro exemplo, a apropriação do conceito de cultura pelos Kayapó, vista a partir do trabalho de Terence Turner, será aqui deixado de lado, pois leva o argumento em outra direção: os povos indígenas não estão desaparecendo porque, além de tudo o mais, estão ativamente se apropriando de nossos conceitos e meios (como o vídeo) para defenderem e preservarem sua cultura, numa batalha que, bem sabemos, tem surtido resultados, tanto diante de nossos olhos quanto diante dos deles. 89

Para os povos com os quais estamos lidando, afinal, “se trata menos de um sistema global de segmentaridade (...) que de um esquema para o qual o ponto de vista da definição das categorias da alteridade pertence aos próprios termos, não a um termo situado em um ponto de vista superior” (Lima, 1999: 49).

Page 91: A cruz e o itxe(k)ò

80

questão do nosso ponto de vista, i. e., desfaz, com argumentos etnográficos, contradições que

antes existiam em nosso próprio pensamento. Para o pensamento indígena, porém, a questão

parece sim poder se por em outros termos, e os Karajá de Buridina nos colocam frente a uma

outra forma de pensar a relação entre os pontos de vista, entre as perspectivas. Neste capítulo

tentarei explorar a forma desta relação, que parece predominar na maneira como estes

indígenas pensam e agem frente ao mundo não-indígena.

Aqui, portanto, não nos deteremos sobre a possibilidade de mútua influência entre os

pontos de vista (uma solução), pensando-os em um mesmo plano, como um processo único,

mas sobre o que me parece ser uma outra dimensão desta inter-relação, a coexistência de

pontos de vista em uma unidade repartida (uma mistura heterogênea). Numa tal situação, um

sistema de perspectivas insolúveis, os pontos de vista estão em planos distintos, de modo que

o aprendizado da perspectiva tori pelos Karajá não guarda relação necessária com o

(des)aprendizado de sua própria perspectiva. Assim, a “dupla consciência” do caboclo, de que

fala Roberto Cardoso de Oliveira, quando a transpomos para a figura do mestiço, não é

ambígua, mas sim dupla. O meio (caboclo ou mestiço) não é um entre dois, no sentido de um

lugar intermediário entre os mundos indígena e não-indígena. O meio não é um um, é um dois

sem intervalo, no qual só se pode estar em um dos lados. O meio é ambos os lados, sem nunca

sê-los ao mesmo tempo. Não há um ponto de vista mestiço, pois o meio é a possibilidade de

ser ambos.

Mas voltemos aos Karajá.

₪ Casamentos

No capítulo passado vimos como se iniciou, na década de 1970, a mestiçagem90, i.e., o

processo de intercasamento com a população regional, processo este que fundou um outro

padrão de casamentos. Desde então, as uniões entre dois indígenas é rara e, geralmente, fruto

de particularidades das histórias pessoais: o normal, poder-se-ia dizer, é casar com tori. Mas

antes de irmos a uma caracterização do atual estado das uniões, vejamos de que maneira os

Karajá conceitualizam esta questão.

Há uma tríade conceitual indígena básica: puro, mestiço e tori. Índio(a) puro(a), ou

simplesmente puro, é a pessoa cujos dois genitores são indígenas (ou seja, puros). Os mestiços

90

Advirto que este é o termo que escolhi utilizar para definir o processo em questão. O conceito utilizado pelos Karajá é mistura, que, como veremos, tem um significado algo mais abrangente que este outro. Assim, utilizo mestiçagem para me referir estritamente aos casamentos entre índios e regionais e às crianças deles resultantes.

Page 92: A cruz e o itxe(k)ò

81

são os frutos das uniões destes com os tori, i. e, os não-índios91. Esta é uma forma geral de

classificação, mas que, estritamente, só abrange as duas primeiras gerações – A, B, D, E, no

Diagrama 4. O que acontece, então, quando descemos neste diagrama? Como são

classificados/pensados os netos, bisnetos, etc., deste primeiro casamento misturado? Os

Karajá formulam tal questão a partir de dois principais idiomas: o da geração e o da distância.

O primeiro opera por uma

espécie de marcação da geração

do indivíduo ao qual se refere.

Explico-me. Seguindo o exemplo

do Diagrama 4, se uma mulher

pura (A) se casa com um homem

tori (B), terão um filha mestiça (E).

Se ela (E) se casa novamente com

homem tori (F), os filhos do casal (I,

J) serão ainda considerados

mestiços, mas “mestiços de

terceira geração”, ou

simplesmente “de terceira

geração” (g3, no Diagrama 4). Se um destes (J), por sua vez, repete o matrimônio com não-

índio (K), os filhos do casal (M) serão ditos “mestiços de quarta geração”, ou simplesmente “de

quarta geração” (g4). E assim sucessivamente. Por vezes os Karajá se referem aos mestiços (D,

E) como “de segunda geração” (g2), sobretudo em contextos em que estão fazendo cálculos

sobre um fragmento de genealogia. Mestiço, portanto, é um termo não marcado: pode tanto

se referir a qualquer indivíduo que tenha não-índios nas gerações ascendentes próximas

quanto especificamente à “segunda geração”.

O Diagrama 4, advirta-se, não é genealógico: ele apenas sintetiza (com o engessamento

próprio deste tipo de representação), a lógica dos cálculos feitos pelos Karajá a partir de

ambos os idiomas, o da geração e o da distância (que veremos a seguir). Seu ponto de

referência é fixo: é o primeiro ascendente puro que se casa com tori, o que corresponderia a

91

Como notara [Cavalcanti-]Schiel (2002), a forma triádica deste esquema, tendo em vista as inúmeras estruturas ternárias entre os Karajá – como a tripartição do cosmos, da estrutura da aldeia, das estruturas erguidas para o ritual, os conceitos ibò(k)ò (rio acima), itya (meio do rio) e iraru (rio abaixo), entre outros –, não parece ser eventual. Aproveito para esclarecer que os trabalhos desta autora (2002, 2008) já haviam registrado esta tricotomia classificatória básica e abordado alguns aspectos relativos à mestiçagem, e, assim, acabaram por se constituir com um de meus pontos de apoio.

Diagrama 4: Os cálculos da mistura

K H

C

A (g1)

F

G

M (g4) L (g2)

D (g2)

B

E (g2)

I (g3) J (g3)

Page 93: A cruz e o itxe(k)ò

82

“1ª geração” (g1)92. Note-se, também, que a progressão das gerações não é linear.

Encontramos, por exemplo, a seqüência de descendência: A(g1) > E(g2) > I(g3) > L(g2). Por

mais, portanto, que os cálculos dos Karajá se norteiem por uma dada linha de descendência (a

que liga o indivíduo L a sua “avó” A, em nosso exemplo), a identificação de L à 2ª geração nos

permite pensar que estes cálculos admitem mais de um ponto de referência. Se pelo lado

paterno L volta de g3 para g2, do lado materno, L passa de g1 para g2. L está para H, assim

como D/E está para A. Tudo se passa como se a introdução da mulher H no esquema

inaugurasse uma nova linha de descendência, i.e., um novo ponto de referência do esquema.

Note-se, porém, que esta formulação das gerações está focada nos sucessivos matrimônios

com os regionais.

Uma segunda formulação está pautada no idioma da distância. Trata-se de uma forma

geral de classificação que permite pensar sobre outras situações além dos casamentos

sucessivos com regionais. Muitas vezes interpelei pessoas com perguntas tais como: Se os

filhos de índios com não-índios são mestiços, os filhos destes últimos com não-índios seriam o

que? Ainda mestiços? Haveria uma outra categoria para classificá-los? E quanto aos filhos de

mestiços com índios puros? Apenas algumas pessoas responderam a essas questões de forma

assertiva: filhos de mestiços com não-índios são tori, já não são mais indígenas; e filhos de

mestiços com índios puros voltam a ser puros. A maioria das respostas que recebi, entretanto,

eram geralmente vagas – “Rapaz, não sei! Acho que...”–, mas concordam com essa

formulação assertiva num sentido: nas falas dos Karajá há um consenso de que o casamento

com tori provoca um afastamento em relação à cultura/característica indígena (o que

corresponde a uma progressão no esquema das gerações, de A[g1] para E[g2], para J[g3]...), ao

passo que casar com índio puro direciona esse processo no sentido contrário (a passagem de

I[g3] para L[g2] ou de D para G, por exemplo). Quanto aos filhos de mestiços com tori (I, J e M),

por exemplo, dizem que “vai distanciando”, “vai acabando”, “puxa mais para o lado do

branco”. Já os filhos de mestiços com índios puros (G), “acho que volta [a ser puro], não é?”,

“volta de novo”, “puxa mais pro lado do índio”. Apenas uma pessoa disse que a mistura seria

um caminho sem volta, “misturou, está misturado. Não volta a ser puro mais não”93. Já na

formulação anterior, a volta é um caminho possível, como se pode notar. Mesmo com uma

distância genealógica considerável. Se um homem de sexta geração (tataraneto de um

mestiço), por exemplo, casa com uma índia pura, o filho desta união será mestiço. Se a nora

92

Os Karajá não utilizam a categoria “1ª geração”, apenas da “2ª geração” para frente. Trata-se, aqui, portanto de um desdobramento da lógica colocada pelo esquema da marcação da geração. 93

Veremos mais à frente, porém, que essas duas formas de pensar a mestiçagem não se contradizem. Cf. infra, nota 106.

Page 94: A cruz e o itxe(k)ò

83

também for pura, o neto do casal “volta a ser puro”, como dizem. Não importa de qual

geração é um mestiço, se de terceira ou de quinta, sexta: se ele (um homem, suponhamos) se

casar com uma índia pura, o filho do casal voltará à segunda geração94. Afinal, como dizia

acima, se assumimos sua linha de descendência materna como referência, o deslocamento é

apenas de uma geração.

Já os filhos de casamentos entre dois mestiços, continuam mestiços: afinal, um

casamento entre iguais não provoca nem distanciamento nem aproximação – da mesma forma

que filho de dois índios puros é igualmente puro ou filho de dois tori é igualmente tori. Aqui

encontramos uma diferença em relação aos cálculos deste mesmo tipo feitos pelos Karajá do

Norte (Xambioá), em tudo semelhantes a estes que descrevo aqui, exceto que, para este outro

grupo Karajá, “o filho de mestiço com mestiço, para grande satisfação dos avós, igualmente,

‘puxa mais pro puro’” (Cavalcanti-Schiel, 2008: 17)95.

Paralela às duas formulações apresentadas, os Karajá utilizam ainda uma outra: o

sangue. Um mestiço trás consigo sangues diferentes, vindos tanto da mãe quanto do pai. É

comum ouvir comentários do tipo “fulano, quer ver, já tem três sangues, Karajá, Javaé e Tori!”,

falando de um mestiço cujo pai, por exemplo, seja um índio (mestiço de Karajá e Javaé) e a

mãe seja tori.

Certamente esse esquema conceitual utilizado pelos Karajá tem relação com a forma

pela qual concebem a descendência, como nota Cavalcanti-Schiel (2008: 16). Dada a

reconhecida bilateralidade do parentesco, alguns autores caracterizaram o sistema Karajá

como de dupla descendência, apontado para a dualidade entre uma afiliação matrilinear ao

espaço doméstico aldeia (derivada ou associada a um padrão de residência uxorilocal), e

patrilinear aos grupos rituais masculinos ijoi (cf. Lipkind, 1948; Dietschy, 1963: 44 e 1978: 77,

Donahue, 1982: 186-187; Pétesch, 1993: 373; Toral, 1992: 18; Fénelon Costa, 1978: 39). Entre

os Javaé, segundo Rodrigues, apesar de a afiliação tanto aos grupos masculinos ijoi quanto ao

94

No caso Craô, já comentado, também há a possibilidade da “volta”: “um índio comentou certa vez que, se os habitantes do Morro do Boi casassem com índias ao invés de com negras, iriam pouco a pouco acabando com o sangue ‘cristão’” (Melatti, 2005[1967]: 75). 95

Se os cálculos da mistura feitos pelos Karajá de Buridima e Karajá do Norte (Xambioá) são idênticos, operando, ao que tudo indica, pelos mesmos princípios de distanciamento e aproximação, diferindo apenas no que concerne às uniões entre dois mestiços, qual seria o sentido dessa singular diferença? Se em Buridina, o que provoca o movimento, seja de aproximação seja de distanciamento, é o casamento entre diferentes, por que, entre os Karajá do norte, uma união entre iguais, mestiços – pois no caso de dois índios puros ou dois tori, não há, como em Buridina, movimento –, provocaria movimento. O que mais interessa dessas questões, acredito, é pensarmos o que permite que a mesma “equação” (M=M=) gere dois resultados distintos (M ou P), i.e., qual o princípio de transformação que nos permite passar de um para o outro. Um tal exercício seria análogo ao de Peter Gow, no qual ele analisa “como o fenômeno “ex-Cocama” faz sentido enquanto uma variante transformacional de outros sistemas de parentesco amazônicos, e argumentarei que, nessa medida, ele não consiste em uma evidência do colapso da lógica social indígena, mas sim de sua contínua transformação” (2003: 58 – grifos meus).

Page 95: A cruz e o itxe(k)ò

84

espaço doméstico ser igualmente matrilateral (2008: 564), diferindo neste ponto dos Karajá,

reconhece-se a “bilateralidade dos laços de descendência” (id.: 521) – apesar de as

contribuições substanciais do pai e mãe serem distintas. A descrição de Roberto Cardoso de

Oliveira sobre os Ticuna nos fornece um contraste. Tendo a filiação clânica, herdada

patrilinearmente, como base para o reconhecimento étnico dos indivíduos, os casamentos

entre mulheres Ticuna com homens regionais implicou no não reconhecimento das crianças

geradas por eles como pertencentes ao grupo, posto que não possuíam um clã (1972[1964]).

Parece claro que a forma particular de conceber a relação com maternos e paternos do ponto

de vista da construção da pessoa está na base de tudo. Mas, parece igualmente claro, que

“regras” de descendência não operam de forma mecânica, sendo antes a base a partir da qual

tais cálculos são feitos. Sendo uma questão de parentesco, tudo depende da maneira como

categorias (que implicam relações determinadas) serão atualizadas, i.e., da construção do

parentesco. Continuemos no exemplo de Cardoso de Oliveira: o autor descreve um caso de

uma mulher Ticuna que teve um filho com um mestiço, filho de mãe indígena e pai regional,

um homem que, desta forma, não possuía um clã. O avô materno da criança, num esforço para

incorporar seu neto ao grupo, solucionou o problema transmitindo para a criança o clã do avô

de seu genro. Assim, saltando uma geração, ele pode conferir uma filiação clânica a seu neto,

fornecendo o meio para que ele fosse reconhecido como Ticuna, sem alterar a característica

patrilinear da transmissão (id. ibid.: 84-85).

Tenho aqui falado da mestiçagem como algo referente aos casamentos entre os Karajá e

os tori. Mas o grupo tem também um longo histórico de intercasamento com os Javaé (embora

isso sempre signifique uma parcela diminuta da população de uma aldeia), assim como com os

Tapirapé. Independentemente de qual grupo estrangeiro está em questão, os Karajá fazem o

mesmo tipo de cálculo. Assim, os filhos de meu anfitrião, Renan Wassuri, ele próprio um

mestiço de Karajá e Javaé e casado com uma mulher Javaé, são considerados Javaé puros. As

preocupações e problemas que a situação de Buridina coloca para seus moradores não são

exclusividade da inter-relação com nosso próprio mundo. Somos um entre muitos Outros,

afinal. Os comentários sobre a aldeia da barra do rio Tapirapé, onde quase todos são

descedentes de casamentos entre Karajá e Tapirapé, mostram isso de maneira clara: as

preocupações com a continuidade da tradição, por exemplo, são basicamente as mesmas.

₪ ₪ ₪

Dia 15 de fevereiro de 2009, a respeito de uma longa conversa que eu havia travado

naquele dia, eu escrevia em meu diário de campo:

Page 96: A cruz e o itxe(k)ò

85

A situação foi curiosa para mim. Sentado ali com Kari, refletindo sobre a mestiçagem, eu me vi concentrado, prestando atenção nas exatas palavras que ela usava, pois ela falava sobre o que tenho considerado como o ponto central de minha pesquisa. Eu estava ali, pensava, para escutar o que ela tinha a me dizer, tentando compreender um pouco melhor que tipo de formulação ela fazia sobre a questão. Ela, entretanto, subvertendo a imagem que eu fazia de mim mesmo, paciente da informação, do conhecimento, insistia em me voltar sua reflexões em forma de enfáticas perguntas – “não é?” “O que você acha?” –, pedindo, com isso, para que eu confirmasse (ou não...) seus cálculos. Ali, eu a instigava a refletir sobre uma questão sobre a qual não apenas ela tem pensado. “Eu me preocupo com o futuro dos nossos filhos”. Contou sobre quando ela e uma outra mulher refletiam sobre os cálculos. Como ficariam as muitas crianças de terceira geração?

Eu esperava ouvir sua reflexão, mas ela insistia em me convidar a refletir com ela. O que

me incomodava ali, entretanto, não era uma questão de participação, de eu querer ou não

participar/interferir na reflexão. Mas essa situação me colocava de maneira certeira e potente

algo que já vinha me chamando atenção: muitos desses cálculos e elaborações sobre a

mestiçagem são afirmações em certa medida especulativas, e minhas perguntas levavam as

pessoas a refletir sobre aquilo. Raramente se tratou de fazer perguntas para obter uma

resposta previamente elaborada. Talvez boa parte do próprio empreendimento etnográfico

seja mesmo assim, baseado em uma série de reflexões indígenas às quais a etnografia imprime

a forma de uma narrativa única, mais ou menos consistente. Nunca quero negar isso com as

muitas frases "para os Karajá de Buridina, a mistura..." dispersas ao longo do texto. Acontece,

porém, que estas reflexões, por algum motivo, misterioso que seja, mesmo quando vindas de

pessoas com posturas políticas antagônicas, tendem a coincidir. Certo dia eu procurei um

senhor que discorda da grande maioria das ações do Cacique Raul, de seu vice Beré e das

pessoas politicamente alinhadas a eles. Sabendo disso, e ainda muito no início do trabalho de

campo, cada passo que dava em direção à sua casa vinha carregado de uma palpitação, um

medo de que, tendo conversado até aquele momento somente com “o grupo” do cacique,

uma pessoa do “outro grupo” pudesse me fornecer uma outra visão sobre a questão da

mestiçagem e, assim, me revelasse o quão parciais eram as idéias que eu havia começado a

construir. Eram quase 15:00h. Cheguei até ele, sentamos e conversamos a tarde toda. É claro

que as idéias e descrições que construímos são sempre parciais de algum modo. Mas quando

perguntei sobre a mestiçagem, me deparei com cálculos idênticos a muitos outros que havia já

escutado e que iria escutar. Sejam mais velhas, mais novas ou politicamente dissidentes, as

pessoas apresentam as mesmas formulações sobre a questão, tanto em termos destes cálculos

“genealógicos” quanto em termos da mistura, que veremos mais a frente.

₪ ₪ ₪

Page 97: A cruz e o itxe(k)ò

86

Page 98: A cruz e o itxe(k)ò

87

Esses cálculos são especulativos também em um outro sentido. Em algumas conversas

chegávamos a pensar as possibilidades de casamentos, tanto com tori quanto com puros, até a

quinta ou sexta gerações de mestiços, mas a experiência cotidiana dos Karajá de Buridina é

bem mais restrita. Há apenas três casamentos entre mestiços de terceira geração e regionais,

sendo que apenas dois destes geraram descendentes, ou seja, crianças “de quarta geração”96.

Isso ficará claro ao formarmos um quadro sobre a composição dos casamentos atuais e antigos

desta aldeia.

As informações que se seguem foram retiradas em parte dos censos referentes aos anos

de 2008 e 2009, feitos pela Funasa. As informações que eu próprio levantei serviram tanto

para completar eventuais lacunas dos censos quanto para compor o quadro dos casamentos

antigos. Considerei aqui apenas o grupo dos originais de Buridina, por alguns motivos:

primeiro, as famílias que vindas recentemente da ilha do Bananal certamente não tem a

mesma experiência histórica que os habitantes de Buridina, o que poderia gerar alguns

descompassos – o aumento do número de casamentos entre dois índios puros, p. ex.; quanto

às poucas pessoas que moram dispersas pela cidade, parte de uma só família, tive poucas

oportunidades de conviver com elas – as informações que possuo a seu respeito sendo, por

este motivo, fragmentárias –, o que me faz recuar e me esquivar de estender o conteúdo deste

trabalho também à experiência delas.

Na Tabela 1, vemos que a grande maioria dos atuais casamentos (77,8%) envolve um

cônjuge, seja puro ou mestiço, e um tori. Quanto aos casamentos entre dois puros, três deles

96

Um destes casamentos não aparece nas tabelas a seguir por a pessoa em questão não fazer parte do grupo levado aqui em consideração. * Esta categoria refere-se aos casamentos entre Karajá ou Javaé (inў) e índios de outras etnias (ixўju).

Estes dois casos são o de duas mulheres Karajá, uma casada com um homem Xerente e outra com um Tapuia, este último casal tendo já um filho.

Tabela 1

Casamentos atuais

Casamento Quantidade %

Puro -Puro 4 11,1

Puro-Tori 14 38,9

2ª ger. 12 33,3 Mestiço-Tori

3ª ger. 2 5,6 38,9

Mestiço-Puro 1 2,8

Mestiço-Mestiço 1 2,8

inў-ixўju 2* 5,6

Total 36 100,0

Tabela 2

Casamentos atuais e antigos

Casamento Quantidade %

Puro -Puro 6 8,6

Puro-Tori 34 48,6

Mestiço-Tori 23 32,9

Mestiço-Puro 2 2,9

Mestiço-Mestiço 2 2,9

inў-ixўju 3 4,3

Total 70 100,0

Page 99: A cruz e o itxe(k)ò

88

estão em uma mesma família, a de Renan Wassuri, que morou 15 anos na Ilha do Bananal. O

outro é o casamento do Cacique Raul, que casou com uma mulher da aldeia de Santa Isabel.

Comparando as Tabelas 1 e 2, vemos que os números são praticamente os mesmos. Isso

certamente tem relação com uma constância no histórico de cônjuges de uma pessoa: a maior

parte dos que casaram duas ou mais vezes, o fez com a mesma categoria de cônjuge, sendo

bem menos comum casos em que a primeiro esposo de uma mulher, por exemplo, tenha sido,

um tori, o segundo um mestiço e o terceiro um índio de outra etnia (ixўju). A grande maioria

das pessoas se casou uma (46,5%) ou duas (39,5%) vezes, tendo algumas poucas acumulado

três (7%), quatro (4,5%) ou cinco (2,5%) matrimônios.

Na Tabela 3 temos os casamentos atuais distribuídos por faixas etárias. Tentei agrupar

as idades de forma que correspondessem grosso modo às gerações da população atual. O

pequeno tamanho do universo em questão, apenas 36 matrimônios, certamente dificulta a

visualização de certas tendências, mas tentemos observá-las. Em relação aos casamentos

entre dois puros, vemos que quase não há variação em função da idade. Quanto às categorias

puro-tori e mestiço-tori, vemos que elas têm comportamentos progressivos inversos: com o

aumento da idade, a primeira também aumenta, ao passo que a segunda regride. Isso é uma

conseqüência estatística de um padrão de casamento inaugurado a pouco mais de 30 anos: os

casamentos com tori. Caso este padrão fosse bastante antigo, não haveria variações

significativas ao longo das gerações, supõe-se. O que essa diferença reflete, assim, é uma

diferença geracional: a maior parte dos índios puros tem hoje mais de 35 anos, ao passo que os

mestiços têm, em sua grande maioria, idade inferior a esta – o que pode ser visualizado ao

Tabela 3

Casamentos atuais por faixa etária

Faixa etária

Até 25 a. De 26 a 35 a. De 36 a 50 a. Mais de 50 a. Total Casamento

quant. % quant. % quant. % quant. % quant. %

Puro -Puro 1 9,1 0 0,0 1 9,1 1 33,3 3 8,3

Puro-Tori 1 9,1 4 36,4 7 63,6 2 66,7 14 38,9

Mestiço-Tori 9 81,8 4 36,4 2 18,2 0 0,0 15 41,7

Mestiço-Puro 0 0,0 1 9,1 0 0,0 0 0,0 1 2,8

Mestiço-Mestiço 0 0,0 0 0,0 1 9,1 0 0,0 1 2,8

inў-ixўju 0 0,0 2 18,2 0 0,0 0 0,0 2 5,6

Total 11 100,0 11 100,0 11 100,0 3 100,0 36 100,0

Page 100: A cruz e o itxe(k)ò

89

analisarmos separadamente cada faixa etária (as colunas da tabela). Esses números também

dão suporte a afirmação, feita no capítulo anterior, que o início da mestiçagem corresponde

ao estabelecimento de um novo padrão de casamento, pois em todas as faixas etárias, a

maioria dos casamentos envolve cônjuge tori (Até 25 a. - 90,9%; De 26 a 35 a. - 72,8%; De 36 a

50 a. – 81,8%; Mais de 50 a. – 66,7%) – o que não se modifica se distribuímos todos os

casamentos, tanto atuais quanto antigos, pelas mesmas faixas etárias (Tabela 4).

Vimos que um dos motivos alegados para os Karajá terem começado a casar com os

regionais era a impossibilidade de se casarem entre si, devido à proximidade dos laços de

parentesco. Ainda hoje, quando se pergunta sobre os matrimônios dos atuais jovens, essa é

uma resposta dada: “É todo mundo parente”. Algumas vezes, entretanto, quando insistia,

perguntado se ainda hoje seria possível dizer isto, mesmo a aldeia tendo crescido, a questão

tomava outro rumo. “É, agora já pode casar, porque já distanciou um pouco”, me dizia uma

mulher. Ela recuperou em sua memória três casamentos internos à aldeia, nenhum dos quais,

porém, deu certo. Mas mesmo que ‘a distância tenha aumentado um pouco’, tornando

possível a endogamia de aldeia, os jovens vão continuar casando com tori, ela concluiu. Leite

(2007) já havia registrado a diferença de comportamento social entre os jovens de Buridina e

das aldeias da Ilha do Bananal como um empecilho para as uniões entre ambos: os primeiros

são vistos pelos segundos como “muito tori” e os segundos pelos primeiros como “muito

tradicionais”. “Ambos os grupos indígenas consideram as respectivas aldeias muito diferentes

no seu modo de vida e acreditam não se acostumar se tivessem de viver fora de sua aldeia de

origem” (id.: 37). Aqui certamente temos que considerar a relação dos Karajá com “sua

Tabela 4

Casamentos atuais e antigos por faixa etária

Faixa etária

Até 25 a. De 26 a 35 a. De 36 a 50 a. Mais de 50 a. Total Casamento

quant. % quant. % quant. % quant. % quant. %

Puro -Puro 1 6,3 0 0,0 4 16,7 1 11,1 6 8,6

Puro-Tori 4 25,0 8 38,1 14 58,3 8 88,9 34 48,6

Mestiço-Tori 11 68,8 8 38,1 4 16,7 0 0,0 23 32,9

Mestiço-Puro 0 0,0 2 9,5 0 0,0 0 0,0 2 2,9

Mestiço-Mestiço 0 0,0 1 4,8 1 4,2 0 0,0 2 2,9

inў-ixўju 0 0,0 2 9,5 1 4,2 0 0,0 3 4,3

Total 16 100,0 21 100,0 24 100,0 9 100,0 70 100,0

Page 101: A cruz e o itxe(k)ò

90

origem”: mudar de aldeia não é, sob nenhuma circunstância, um ideal. Mas, neste caso, há

outras coisas envolvidas nessa mudança. Ir de Buridina para a Ilha ou da Ilha para Buridina,

poderíamos dizer, é passar de um lado para outro (e vice-versa) da escolha que fizera décadas

atrás Jacinto Ma(k)urehi (cf. Capítulo II), é refazer sua escolha ou desfazê-la. Trata-se, afinal, da

opção entre ausência ou presença de ritual, preponderância do português ou do inўrybè,

agricultura e pesca ou dinheiro como base da subsistência, etc. É claro que falo de

preponderâncias, pois ambos “os lados”, a cultura e conhecimento indígena e não-indígena, se

fazem presentes em qualquer aldeia97. (E isso tem uma implicação importante: os problemas

colocados pela mudança de aldeia em caso de casamento entre uma pessoa de Buridina e

outra da Ilha são análogos para ambas as partes. O estranhamento e a dificuldade de

adaptação, i.e., a experiência de aprendizado imperativa para a vida no novo local e a falta que

fazem as coisas características de sua aldeia de origem, são recíprocos, e pensar que isto seja

uma questão somente para os Karajá de Buridina, supondo que o que é difícil ou problemático

é seu relativo desconhecimento da cultura karajá, e não a diferença mesma entre as aldeias,

seria atribuir um peso indevido para as questões de nosso próprio mundo.) A língua é uma

questão importante aqui: há vários relatos de como os jovens de Buridina, sobretudo os

homens, ficam com vergonha por não possuírem o domínio desejável da língua indígena, o que

coloca uma barreira de comunicação entre eles e as mulheres da Ilha. O problema é

amenizado no caso das jovens de Buridina, pois os homens nas aldeias da Ilha, em geral,

dominam o português.

Para além de pensar as impossibilidades de se casarem entre si ou os empecilhos de o

fazerem com seus parentes da ilha, o que nos interessa aqui é ver esse fenômeno a partir de

suas próprias motivações e características. Os Karajá de Buridina casam com tori porque

“estão acostumados com outra forma de namorar”, como disse uma mulher e, diria eu, de

casar, de criar seus filhos, de “ganhar a vida”, de construir parentesco e pessoas, etc. Hoje, os

Karajá dizem não haver problema que os jovens se casem com não-índios, desde que, com

isso, não deixem de devotar a devida atenção à cultura e tradição karajá. Em Portela (2006:

169) encontramos um exemplo desta postura em uma fala citada pela autora:

Mas o meu caso é mais tentar fazer que a aldeia mantenha sua cultura, num importa que tá casando com não-índio, não importa não, porque as duas coisas são importantes.

Também o Cacique Raul me dizia que, “no meu modo de ver, não tem jeito de parar os

meninos de casar na cidade. Contanto que mantenha a cultura, pode casar [com tori] à

vontade!”.

97

Assim como “os dois lados” Karajá e Javaé e, am alguns casos, também o “lado” Tapirapé.

Page 102: A cruz e o itxe(k)ò

91

₪ Vai misturando, vai acabando: mas “a mistura não tem problema, não”.

Mistura é o termo utilizado pelos Karajá para se referir aos casamentos com não-índios

(ou outras categorias de Outros), e a uma série de processos a eles relacionados. Ela é a

explicação oferecida para uma série de coisas taxadas pelos regionais como “aculturação”,

como a perda da língua e mudanças de certos padrões de pensamento e nos ‘costumes’ (da

produção para o consumo à produção para venda, por exemplo). Quando conversava com

uma senhora Karajá, por exemplo, sobre a história da aldeia, ela começou a falar sobre como

tradicionalmente se dava o casamento Karajá98, dando o exemplo de seus pais, para em

seguida fazer um comentário sobre o estado atual das coisas.

Eles se conheceram depois que casaram. Igual casamento de internet, daquele jeito. É! Porque a lei era assim, os velhos tinham que combinar o casamento dos filhos, e depois de combinar ninguém desmanchava. Aí tinha que casar. Minha mãe mesmo casou desse jeito, não conhecia meu pai nem meu pai conhecia ela. Eles se conheceram depois de casar. Diz minha mãe que para conhecer ele, para ver o rosto dele, levou um mês, ainda. (...) Agora não estão casando mais assim, não, por que acabou a tradição, acabou, não tem mais... Agora casa aí de qualquer jeito. Porque casamento mesmo, igual minha mãe casou com meu pai... acabou também, não tem mais. Só se for lá pra Ilha [do Bananal], é capaz que ainda tem esse casamento assim. Mas está acabando tudo, essas coisas. E agora pior vai ficar, por que está misturando muito! Aqui, quem é puro aqui em casa é só eu. Já meus netos, meus filhos, já são todos mestiços.

Também os conflitos familiares na aldeia são associados aos casamentos com tori, um

casamento, afinal, distante – e, nesse sentido, indesejado –, que tem, como uma de suas

conseqüências, o não reconhecimento dos parentes. Assim, alguns dizem que o motivo das

brigas é o não reconhecimento dos laços de parentesco – e das relações de respeito, evitação,

etc., que implicam. Quando conversava com um índio vindo de uma aldeia da Ilha do Bananal,

ele se queixava para mim de seu estranhamento em relação à Buridina: “É difícil! Misturou

muito, não tem mais o costume”. Ou como quando eu conversava com um outro índio sobre

as diferenciações de gênero das tarefas relacionadas à manutenção da casa. Se o homem deve

pescar, buscar lenha para sua mulher, é ela que deve cozinhar, por exemplo. Ele falava que,

em Buridina, este padrão tem se alterado – alguns homens acordam cedo e fazem o café antes

de irem até o curral buscar leite ou de saírem para trabalhar – e comentava que um índio

vindo da ilha para visitar seu primo ficou assustado com tal situação. “Nessa parte, então, aqui

puxou mais para o lado tori”?, perguntei. “Não! Acabou mesmo!” Essa descaracterização é

imputada também aos mestiços, em certas ocasiões. Um homem me relatava um caso de um

98

Cf. Donahue (1982: 147-151) para uma descrição do harãbie, “the tradicional arranged marriage”. Cf. também Rodrigues (2008: 745-757), Dietschy (1978: 74-75) e Fénelon Costa (1978: 47).

Page 103: A cruz e o itxe(k)ò

92

jovem que havia levado um amigo não-indígena para pescar em um lago dentro da reserva.

Perguntei se o rapaz era índio, ao que ele respondeu que sim, para depois complementar:

"mas é de quarta geração, já não tem quase mais nada de Karajá".

A mestiçagem, entretanto, não é algo exclusivo de Buridina, podendo-se encontrar

mestiços em muitas aldeias da llha do Bananal, e a maneira como os Karajá de Buridina falam

sobre eles nos traz uma consideração importante. Um senhor me contava sobre dois

exemplos. O primeiro caso, o de dois rapazes negros, altos e fortes. O segundo, o de duas

meninas loiras, bonitas e de cabelo liso e comprido. Em ambos os casos, apresar da fisionomia

não apresentar características indígenas – “você olha, assim, e não tem nada de índio” –, os

mestiços em questão dominavam bem “as duas linguagens”. No caso das meninas, com 13, 14

anos, estavam de férias na aldeia, se pintavam e dançavam com Aruanã. “Deram um show”.

Quando o pai (tori, com quem moravam) foi buscá-las, não queriam voltar para a cidade com

ele. Acabaram ficando na aldeia e se casaram por lá. A despeito de sua fisionomia (a

“característica”) destoante da maioria dos indígenas, estes mestiços falam as duas línguas e

“conhecem a cultura”, i. e., participam dos rituais, conhecem histórias, topônimos, utilizam a

terminologia de parentesco, etc. Como são criados na aldeia junto a suas avós, não há nada

que os diminua frente aos seus parentes puros99. Isso me suscitou a idéia de que os mestiços,

antes que pessoas a meio-caminho, sem identidade – “Um mestiço. Nem branco, nem índio.

Nada.” (Vasconcelos, 1965: 13) – eram pessoas de certa forma privilegiadas nessa empreitada

de conhecer “os dois lados”. Tendo um pai tori e uma mãe inў, por exemplo, “viria desde

pequeninho”, como dizem os Karajá, conhecendo tanto a cultura indígena como a dos brancos.

Rodrigues, por exemplo, menciona que os mestiços “produto recente de uma união entre

membros de grupos étnicos diferentes, podem apelar para os dois princípios, separadamente,

ou mesmo ter as duas identidades” (2008: 559). Mas, curiosamente, quando perguntava isso

aos índios de Buridina, eles diziam que não, os mestiços cresciam sabendo mais da cultura tori,

99

Exceto sua ascendência misturada, que, nunca esquecida, por vezes serve como forma de xingamento, como tori ri(tx)orè! (filho de não-índio!) ou ixўju ri(tx)orè! (filho de “estrangeiro”/índio não-inў!). Rodrigues (2008: 413) diz que, em certas situações, os Javaé “tentam omitir, envergonhados, algum antepassado Kayapó, Karajá ou de qualquer outro povo ixyўju desprezado” e também se refere aos termos mencionados como formas de reconhecimento pejorativas da ancestralidade não-Javaé de indivíduos ikurinўky, “misturados” [palavra usada pelos javaé e a tradução dada pela autora] (: 559). Muitos outros acontecimentos da história de uma pessoa, entretanto, – como algo que a pessoa disse ou ‘deu a entender’, uma briga, uma traição, avareza, etc. – podem ser mobilizados para esse mesmo propósito, e, suspeito, não haveria motivos para supor que a ancestralidade misturada seja um caso a parte. Tudo o que posso dizer é que, em Buridina, não se recrimina a ascendência misturada de ninguém, até porque, dizem eles, todos têm brancos na família – o que parece apontar para uma dimensão importante destes xingamentos: são contextuais. No conflito familiar que pude presenciar nesta aldeia, as pendengas eram sempre de outra ordem – sobretudo, diversos tipos de comportamentos inadequados.

Page 104: A cruz e o itxe(k)ò

93

“puxando mais para o lado dos brancos”. Mas quando eu replicava “e na Ilha [do Bananal]?”,

as respostas mudavam. “Na Ilha, não. Aí, pra pessoa, capaz que é mais fácil [de conhecer

ambos os lados], não é? Porque a mãe é índia e o pai é branco, então vai saber falar as duas

línguas”, um homem me disse.

Assim, quando os Karajá dizem que “a cultura/tradição está acabando, porque misturou

muito”, o que está em foco não é a mestiçagem em si, mas a forma específica que este

processo vinha tomando nesta aldeia –um privilégio da perspectiva dos tori –, desde a década

de 1970, com o início dos casamentos misturados. E, em algumas ocasiões, os Karajá assim o

reconhecem. Uma mulher, por exemplo, me contava sobre o caso da roça comunitária do

município, que não tem funcionado muito bem, pois, se, por exemplo, trinta pessoas se

inscrevem para participar, na hora de trabalhar na limpeza do cultivo, na hora de roçar, menos

de dez compareciam. E comentou que “o pessoal diz que é assim porque misturou. Mas não é

não, lá na Ilha [do Bananal] é a mesma coisa”. Um outro exemplo é a reclamação de um

senhor de que muitos índios têm investido nos seus estudos, mas não tem usado isso para

“divulgar a cultura” e para trabalhar em prol da comunidade. “Mas se fizessem isso não teria

problema em estudar?”, perguntei. Sua resposta foi: “Não! Aí era bom!”.

A questão que se colocam hoje os Karajá nesta aldeia é o desafio de reverter esse

privilégio da perspectiva tori em seu cotidiano, um processo que eles têm rotulado como

“resgate cultural”. Os dois pólos do Projeto de Educação e Cultura Indígena Maurehi, o Museu

e a escola bilíngüe são, segundo eles, partes fundamentais desse processo de “resgate”.

Processo este que não é uma volta, um retorno a uma situação anterior, mas sim um reforço

da perspectiva indígena, dizem os Karajá, pois “as duas coisas se complementam, a cultura do

índio e do não-índio, os dois lados são importantes”. Como no caso dos Wari’, os Karajá não

querem “voltar para ‘o mato’”, i. e., afastar-se dos brancos e de sua perspectiva para viver

simples e exclusivamente como Karajá ou Wari’100, “e explicitam que estar junto dos Brancos é

uma opção deles” (Vilaça, 2000: 69). Eles querem e buscam ativamente ser dois. “Ao dizerem

que são ‘brancos completamente’, os Wari’ não entendem que estão perdendo sua tradição,

ou sua cultura, como poderíamos pensar”, o que também podemos dizer dos Karajá, “o que

acontece é que tem agora a experiência de um outro ponto de vista” (Vilaça, 2005: 512). Não

se está interessado em saber apenas sobre o mundo Karajá. Muito pelo contrário – embora

seja fundamental conhecê-lo muito bem. “Nós somos seres humanos que têm outras culturas

e outros costumes, me vejo como índia que tenho duas culturas: Karajá e não-índio”, como

100

“Ah, Karajá mesmo é poder viver só da caça e da pesca, poder ficar bem longe do pessoal dos brancos, poder falar só na linguagem dos índios”, disse um jovem de Buridina (Portela, 2006: 206 – grifos omitidos).

Page 105: A cruz e o itxe(k)ò

94

disse uma mulher de Buridina (Portela, 2006: 197). O próprio “resgate cultutal” é, assim, algo

que supõe a coexistência de ambos “os lados”, as perspectivas indígena e não-indígena,

inclusive porque, em grande parte, ele (o “reforço” da perspectiva inў) se faz, como notou

Castro (2008) em seu belo trabalho sobre os Pataxó, pelos meios dos tori: é na escola bilíngüe,

através de livros (elaborados ao longo do Projeto Maurehi), vídeos, técnicas de ensino tori,

fotos, com o incentivo monetário da venda do artesanato no museu, etc., que esse

desequilíbrio tem sido revertido101. A questão problemática, portanto, não é a mistura em si. A

resposta que Renan Wassuri deu à pergunta que lhe fizeram num curso de formação de

professores indígenas é emblemática nesse sentido. Uma índia de outra etnia lhe perguntou:

“O que você acha da mistura?”, falando sobre os casamentos com brancos. Ele próprio me

relataria a pergunta e sua resposta, depois do acontecido.

A mistura não tem problema, não. Porque todos nós, seres humanos, somos assim, misturados. Para mim, não importa a característica, se é de índio, se não é. Importa é ele saber quem ele é, filho de índio. Então, para ele, as duas coisas são importantes, tanto o conhecimento do índio como o do não-índio. As duas coisas são importantes para nós, como para nossas crianças. O meu lado direito [do cérebro] pode ser inў, o esquerdo é tori!

Em outra ocasião, conversando, ainda com Renan, sobre os mestiços na Ilha do Bananal,

tendo ficado evidente para mim que a questão problemática em Buridina não era a

mestiçagem em si, mas a dificuldade de se acessar a perspectiva indígena, perguntei então

como seria se todos em Buridina soubessem falar o inўrybè, soubessem cantar e dançar nas

festas, conhecessem as narrativas míticas, enfim, “conhecessem a cultura”? Ainda assim a

mestiçagem seria um problema? “O importante para nós é guardar a cultura na memória, no

sangue”, me respondeu. “Não importa que a mãe ou o pai não seja índio?”, continuei. “Pode

ter o olho azul, não importa”. Com efeito, na maior parte dos comentários sobre os mestiços

na Ilha do Bananal os Karajá de Buridina se mostravam impressionados pela sua capacidade de

falar as duas línguas ou de participar ativamente na vida ritual do grupo. O que os encanta, me

parece, é “equidade” que estes outros mestiços estabelecem entre “os dois lados” – levando

101

Não quero dizer com isso, entretanto, que o aprendizado se faça lendo os livros, assistindo as aulas, etc. O Museu e a Escola são antes “espaços de sustentabilidade cultural e lingüística dos indígenas de Buridina” que um Museu e uma Escola nos nossos termos. O próprio programa de revitalização da língua indígena promovido pelo Projeto Maurehi não se restringe à língua ela própria, mas se fundamenta “no contexto histórico e numa perspectiva sociocultural e intercultural” (Pimentel da Silva, 2009: 12-13). Afinal, o conhecimento indígena se faz por outros meios (cf. infra, p. 108). Também

Cavalcanti-Schiel (2008: 31) diz algo neste sentido, se referindo, entretanto, à “dinâmica faccional” do

grupo: “Se a escola funcionar, ou seja, se efetivamente se prestar à educação formal das crianças na aldeia, tanto melhor, mas não parece ser essa a preocupação central. Se ela não funcionar, estará igualmente alimentada a máquina de reprodução da política faccional da aldeia”.

Page 106: A cruz e o itxe(k)ò

95

até o fim a constante afirmação de que “os dois lados” ou “as duas coisas” são igualmente

importantes –, justamente a questão a qual os Karajá de Buridina tem hoje se dedicado.

Em Buridina, há um acoplamento discursivo da mestiçagem ao lado da mistura que tem

se mostrado problemático para eles. Um acoplamento, porém, que é apenas discursivo, no

sentido de que o que se mostra problemático de fato não é a mistura em si, mas sim um certo

desprivilégio da perspectiva indígena – ou um certo privilégio da perspectiva dos tori –, algo

que parece ser fruto da forma como este processo vinha (verbo flexionado no passado) se

dando entre os Karajá de Buridina. Eles, porém, direta ou indiretamente, reconhecem que essa

é apenas uma possibilidade de desenvolvimento do processo de mistura. O que os interessa,

hoje, é a reversão desse desequilíbrio, não no sentido de um desequilíbrio contrário, i.e., uma

volta ao “tempo do Karajá antigo”, quando se mantinha tradição “muito forte” e se tinha

pouco conhecimento do mundo dos brancos, mas de um fortalecimento do lado indígena

dessa dualidade. Mais do que isso (ou talvez como conseqüência disto), a eles não interessa

deixar de viver como brancos, mas sim a possibilidade de viver tanto a vida dos tori (virar

branco) quanto a dos Karajá – i.e., a possibilidade de ser ambos – sempre que quiserem ou

precisarem. Algo que só se pode fazer se houver uma mínima equalização do acesso a ambas

perspectivas (cf. Epílogo).

₪ Da mestiçagem à mistura

Voltemos aos comentários que associam a mistura à “perda da cultura”. Prestando-se

atenção a quem são endereçados comentários como aqueles, percebe-se que muitas vezes

eles não se referem exclusivamente a mestiços. Em diversas ocasiões dizem que, “hoje em

dia”, os jovens não se interessam mais por certas questões culturais, como a ética de respeito

referente ao relacionamento com parentes e afins (e, portanto, ao uso da terminologia de

parentesco) ou as práticas de resguardo. A fala de um indígena, hoje falecido, que Portela cita

em sua dissertação nos serve de exemplo.

Mas, como os meninos de hoje não tão querendo aprender o que nós, o que nossos avôs usavam, tão puxando mesmo é só pro lado dos brancos, então ficou difícil pra nós, porque nós já tá no meio da cidade mesmo, os meninos já veio falando foi o português mesmo, não fala assim nossa linguagem... (2006: 186).

Em uma reunião sobre questões indígenas, o Cacique Raul comentou sobre o pouco

respeito que os mais jovens tem tido para com os mais velhos. Ele então me contou que um

cacique Tapirapé apoiou sua fala, dizendo que “esses jovens de hoje querem saber só do lado

dos brancos, estão deixando a tradição morrer”, concordando com o homem: “ele disse isso, e

é verdade!”. Ora, portanto, os Karajá falam que “está acabando” porque “misturou” ou “está

Page 107: A cruz e o itxe(k)ò

96

misturando”, ora falam que “está acabando” devido à falta de interesse dos jovens. Poder-se-

ia dizer que essas duas explicações nada mais são, na verdade, que formas alternativas de

dizer a mesma coisa, pois a grande maioria dos jovens de Buridina é mestiça. Mas um outro

exemplo indica que não parece ser este o caso. Eu conversava com um homem (puro) – que

veio com sua família da Ilha do Bananal para Buridina há pouco mais de seis anos – sobre os

jovens, que são muitos ligados ao hábito de assistir televisão, gostam de ir para as festas na

cidade, fazem amigos tori e circulam com eles pelas ruas de Aruanã, etc., ao que ele comentou

sobre seus próprios filhos – todos puros: “Lá em casa já está misturando também!”. Ele não

falava, das relações conjugais de seus filhos, pois são todos solteiros, mas de um processo de

conhecimento e experimentação do mundo não-indígena. A fala de Renan Wassuri citada

páginas acima também nos serve de exemplo. Ele é um índio puro que mora com outras

dezesseis pessoas na mesma casa, entre sua esposa, filhos, netos e genros, todos puros –

exceto um dos genros, mas o casal ainda não teve filhos. Seus pequeninos netos falam a língua

indígena, e só agora, com três, quatro ou cinco anos, começam a compreender melhor o

português e a apreender a falar algumas palavras de nossa língua. Quero chamar atenção, ao

dizer isso, para o salto que há em sua fala da terceira pessoa do singular (“Importa é ele saber

quem ele é”) para a primeira pessoa do plural (“As duas coisas são importantes para nós”): o

trecho se inicia falando sobre os mestiços, mas o foco muda-se repentinamente sobre todos

“nós”, mais ainda tematizando a mistura. Além do mais, “todos nós, seres humanos, somos

assim, misturados”. A oscilação apontada nas falas entre ‘jovens’ e ‘mestiços’, assim, parece

apontar que o foco dessas falas não são os mestiços, e sim a mistura. Ela, portanto, é uma

questão tanto para mestiços quanto para puros, algo bem mais geral e que caracteriza a

experiência urbana – i.e, tori – dos Karajá de Buridina. A mistura é uma linguagem mais ampla

que a mestiçagem.

Na dissertação de André Toral encontramos a descrição de um caso de fissão de uma

aldeia Karajá do Norte (Xambioá), que nos fornece um outro exemplo de como mestiçagem e

mistura não são termos equivalentes. Nas palavras do autor,

Em 1987 os emigrados ‘explicavam’ a separação, aos visitantes, como sendo motivada pelo desejo de se separar os Karajá ‘misturados’ dos ‘puros’, que ficariam circunscritos à aldeia ‘do Posto’ e ‘nova’, respectivamente. No entanto, existem tanto ‘brancos’ e ‘mestiços’ em uma e outra aldeia e ‘em ambas observa-se praticamente o mesmo grau de perda dos costumes tradicionais e da língua’ (Maia, 1987: 4). A manutenção da cultura e de uma pretendida ‘pureza’ racial passou a ser um argumento na disputa entre facções, uma vez que as duas principais envolvidas concordam na necessidade de manter a cultura ‘tradicional’” [Toral, 1992: 17].

Page 108: A cruz e o itxe(k)ò

97

Page 109: A cruz e o itxe(k)ò

98

Se ambas as “facções” concordam quanto a necessidade da ‘manutenção da cultura’ e em

ambas há tanto tori quanto mestiços, não poderíamos supor que a “pureza” reclamada pelos

emigrados seja “racial”: só pode tratar-se de algo de outra ordem.

₪ Uma aldeia Karajá

Apesar de já ter enfatizado a importância que ambos os lados têm aos olhos dos Karajá,

a descrição que fiz até este momento está, em sua maior parte, focada no lado tori de Buridina

– ao menos não se detém muito sobre o outro lado. Mas já deve ter ficado claro que há sim

um outro lado. Falemos algumas palavras sobre isto. Apesar de a experiência – sobretudo dos

mais jovens – com a mistura apresentar um aspecto visto como problemático, expresso

geralmente em termos de um privilégio por parte destes da perspectiva dos brancos, a

perspectiva dominante na aldeia é a dos inў. Num curso de formação de professores indígenas,

perguntaram ao mesmo Renan Wassuri o que ele achava de sua aldeia. Sua resposta foi a

seguinte.

É muito bonita! Poderia ser mais, mais ainda assim é bonita. E ainda é uma aldeia mesmo! Estamos aqui [no centro da cidade], a sociedade conhece nós, nossas crianças. Ainda é aldeia. No dia que descontrolar, aí vai virar setor [da cidade] descendente de Karajá, porque aí acabou, né? Mas ainda é aldeia, aldeia mesmo!

Certa vez, perguntei ao Cacique Raul se poderíamos dizer que a conjugação entre aldeia

e cidade seria uma característica de Buridina, pensando justamente na relação de

conhecimento privilegiada em relação ao mundo tori, reconhecida por seus parentes da Ilha

do Bananal quando estes os chamam de tori hãwa mahãdu, ao que ele respondeu de pronto e

categoricamente: “Não. O ritmo da aldeia é normal, como qualquer outra”. Apesar de estarem

no meio da cidade, tori hãwa, aldeia/território/lugar dos brancos, Buridina mantém-se como

inў hãwa, “aldeia mesmo”. Um processo que teve pontos baixos e bastante complicados, mas

que hoje vê-se transformando para melhor.

Em relação especificamente aos mestiços poder-se-ia dizer a mesma coisa. Se em certas

circunstâncias pode-se ouvir críticas a respeito deles, como que “puxam mais para o lado dos

brancos”, que “não sabem falar a língua”, que “não sabem contar história pros filhos” (cf.

[Cavalcanti-]Schiel, 2002: 50), em outros momentos ouve-se as mesmas pessoas falar dos

mestiços de outra forma: “fulano, que é índio...”, “de índio lá tinha fulano e sicrano...”, ou,

como certa vez disse um homem a seus parentes da Ilha do Bananal, que estavam em Aruanã

à passeio, irritado com seus comentários – sobretudo das crianças – sobre a ascendência tori

dos Karajá de Buridina, “aqui todo mundo é índio!”

Page 110: A cruz e o itxe(k)ò

99

Se todos nesta aldeia têm um nome em português (geralmente escolhido por um ou

ambos os pais da criança), todos também têm seu nome indígena, e a nominação é algo sobre

o qual dificilmente poderíamos traçar distinções drásticas entre esta e outras aldeias. Por sua

reduzida população, entretanto, a pequena quantidade de potenciais nominadores provoca

algumas alterações. Uma criança, ao nascer, recebe um estoque de nomes. Cada um dos

quatro avós pode transmitir seu próprio nome ou de um de seus pais ou tios, mas apenas um

destes se fixará, e é por ele que a pessoa será conhecida102. Não há nenhuma cerimônia de

nominação103. Se uma pessoa é muito idosa e bastante respeitada, ela pode dar nomes para

outras crianças que não seus próprios netos. Em Buridina, assim, em alguns casos nos quais os

avós da criança já haviam falecido, o pai ou mãe indígena da criança procura uma das pessoas

mais idosas e respeitadas da aldeia para que a criança ganhe um nome. Talvez mesmo como

conseqüência disto, o estoque de nomes de uma pessoa vê-se assim reduzido, se restringindo,

muitas vezes, a um único nome.

Também sobre a mistura pode-se ouvir discursos aparentemente contraditórios de uma

mesma pessoa. Sentado no sofá da sala de uma senhora, ela me falava de uma de suas avós104,

filha de um português que era comandante de um dos vapores que navegou no Araguaia, bem

como de outros ascendentes, Javaé e Tapirapé. E concluiu: “Então nós temos quatro sangues

misturados, nós não somos Karajá puro, puro, mesmo”. A essa altura eu já pensava comigo

que isso não impedia que ela se dissesse, em outros momentos, (e apontasse outras pessoas

como) índia pura. Aqui não poderia deixar de lembrar da etnografia piro de Peter Gow (1991).

Também ali não há contradição entre ser de sangre mezclada e Piro, simplesmente. Os

paradoxos identitários, sabemos bem, muitas vezes estão mais na cabeça dos antropólogos

que na das populações estudadas105. O que, em um nível é um dos dois termos homogêneos

(os Karajá puros, em oposição aos não-Karajá/não-índios) relacionados um ao outro por um

102

Não tenho certeza sobre porque um determinado nome se fixa como o principal. Donahue (1982: 127) sugere que seja pela preferência dos pais. Ouvi de alguns Karajá que, simplesmente, “o primeiro nome é o que fica”. De outros, que isso pode ser uma função da relação que os pais entretêm com os nominadores. Assim, se um dos nomes foi dado por uma avó muito respeitada pelos pais da criança, haveria uma chance maior de este ser o nome a se fixar. Pude observar um caso, sobre cuja generalidade, porém, não posso atestar: um menino recebeu de sua avó materna (MM) o nome do pai dela (MMF) e de seu avô paterno (FF) o nome do pai deste (FFF), este último nome tendo sido o que se fixou. Sua avó (MM), entretanto, só o chamava pelo nome de seu pai, que ela própria havia transmitido à criança. 103

Sobre nominação cf. Rodrigues (2008: 671-672), Donahue (1982: 127-128), Dietschy (1978: 75), Krause (1943: 201). 104

Os Karajá traduzem o termo lahi, do inўrybè, pelo termo avó, do português. Em ambas as línguas, entretanto, mantém-se o significado do termo indígena: lahi é toda e qualquer mulher da segunda geração ascendente para cima (G+2, G+3...). O mesmo vale para o par masculino: avô e labi(k)è. 105

Poderíamos mesmo nos perguntar se, do ponto de vista destas populações, estas questões que a literatura antropológica têm chamado de identitárias sejam de fato uma questão de identidade.

Page 111: A cruz e o itxe(k)ò

100

meio (os mestiços), em outro é o próprio meio que relaciona dois outros extremos (dois povos

ixўju, estrangeiros)106. Como que lendo meu pensamento, ela prosseguiu dizendo que talvez,

pensava ela, o sangue dos tori e dos Javaé fosse mais forte que o sangue Karajá, e usou como

exemplo um mestiço Karajá/Javaé. “O Renan, por exemplo, é mestiço de Karajá com Javaé. Ele

puxou mais pro Javaé. Ele, as filhas dele... se bem que as filhas dele já são Javaé puras, porque

a mãe é Javaé e o avô também era...” 107

O mundo ameríndio, sabemos, é altamente transformacional, como nos mostram as

mitologias dos diversos grupos das terras baixas sul-americanas (e alhures). Essas mitologias,

poder-se-ia dizer, são mesmo o modelo (sócio-cosmo)lógico da transformação (dos corpos-

perspectivas). E o xamanismo, por sua vez, é a linguagem mestra dessas transformações. Mas

a mudança, a transformação, no mundo ameríndio, difere da forma como nós próprios a

pensamos (como comentado também no Capítulo I), pois, se para nós a identidade é uma

medida de continuidade consigo próprio, algo que não pode ser revertido facilmente, do

ponto de vista indígena o ser é muito mais um transformar-se, onde a forma é sempre

provisória, do que um progressivo e penoso modelamento (Cf. Viveiros de Castro, 2002a). Só

se transforma, num sentido, porque se pode voltar: a reversibilidade é justamente uma

característica deste processo. O grupo que ficou conhecido na literatura etnológica como Suyá,

autodenominado Kïsêdjê, nos fornece um exemplo interessante.

Tendo adentrado na bacia do rio Xingu desde pelo menos duzentos anos, este grupo Jê

foi se integrando parcialmente ao sistema alto-xinguano. “O mais importante efeito dessa

participação foi o que se pode chamar a ‘xinguanização’ dos Kïsêdjê, em diversos planos: no da

106

Cf. Rodrigues e sua argumentação, com base numa extensa narrativa mitológica Javaé, de que a ‘sociedade Javaé’ é ela própria o resultado de uma mistura, “uma relação criativa entre diferentes” onde não há termos anteriores a ela. “O mito não fala de uma ou mais essências originais sobre as quais influências externas foram sobrepostas e digeridas – nenhum dos ancestrais mencionados é referido como ‘os Javaé originais’ –, mas apenas de relações entre fontes diversas que foram se fundindo ao longo do tempo e construindo uma nova forma” (2008: 103). Ou como numa fala já citada, “Porque todos nós, seres humanos, somos assim, misturados”. É nesse registro, penso, que podemos inscrever aquela afirmação, aparentemente destoante do restante dos cálculos da mistura, de que “misturou, está misturado. Não volta a ser puro mais não”. 107

A mistura certamente não é algo peculiar aos Karajá, tampouco aos de Buridina. Talvez ela seja mesmo a expressão de um fenômeno bastante geral. Cito aqui um trecho de Índios e criadores, de Julio Cezar Melatti (2005[1967]), em meio a um tópico denominado “definições de índio e de craô”, muito instigante nesse sentido. “Portanto, ser índio, para os craôs, parece constituir questão de gradação. De um modo geral, aqueles que, seja qual for seu aspecto físico, habitem nas aldeias circulares, tomando parte nas atividades rituais, são considerados índios. Os outros, que abandonam as aldeias e vão viver isolados, à maneira dos sertanejos da região, já não são vistos do mesmo modo: são índios mas também são civilizados. Alguns exemplos nos ajudam a notar essa diferença. Um deles é o do antigo chefe Chiquinho, velho cafuzo [i.e., mestiço] de pele bem escura e cabelo lanoso, mas considerado um dos maiores conhecedores das tradições craôs. Disse-nos dele o falecido índio Jacinto, quando nos preparávamos para visitá-lo: ‘Você vai ver como o cabelo dele é encolhido!’ E acrescentou: ‘Mas é craô, filho daqui mesmo; agora nós tudo, essa rapaziada tudo, é tudo misturado; mas é craô mesmo!’” (op. cit.: 75-76 – grifos meus).

Page 112: A cruz e o itxe(k)ò

101

tecnologia e cultura material; na ornamentação corporal e na fabricação dos corpos; no

repertório musical e cerimonial” (Coelho de Souza, 2009a: 3). Em 1969, depois de uma mal

sucedida tentativa de “pacificação”, os 41 sobreviventes dos Tapayúna (grupo muito próximo

lingüística e culturalmente) foram alocados junto aos Kïsêdjê. “Sua chegada mudou

consideravelmente a ênfase da cultura Suyá. Eles olhavam, falavam e agiam como os

ancestrais Suyá” (Seeger, 1980: 165), e tal evento provocou uma iniciativa de revitalização da

sua cultura anterior à entrada na bacia do Xingu, i.e., sua cultura jê. Assim, “do ponto de vista

kïsêdjê, não apenas essa aculturação não é um processo finalizado ou finalizável, como

tampouco se trata de algo irreversível” (Coelho de Souza, 2009a: 4). Uma outra “pressão

aculturativa”, a resultante da intensificação das relações com a sociedade não-indígena, com

seus objetos e com seu conhecimento, tem provocado resultado semelhante: “O momento é

de intensa, ainda que ambivalente, experimentação: de um lado, emerge uma espécie de

‘fundamentalismo cultural’ que orienta uma série de ações ‘depurativas’ no sentido de manter

o caráter ‘jê’ da sua ‘cultura’, em oposição às culturas xinguanas, e ‘indígena’, em oposição aos

brancos; de outro, um desenfreado esforço de aquisição desses bens e recursos alienígenas”

(id. ibid.: 5).

Um mestiço, assim, pode ser branco (“puxar mais para o lado do branco”) em um

momento e índio em outro, sem que isso seja uma contradição, assim como um índio puro

pode ser puro em um momento e misturado em outro, ou um xamã pode ser Karajá em um

momento e sucuri em outro, humano em um momento e não-humano108 em outro.

₪ Os dois lados: uma aldeia misturada

Buridina, o leitor atento deve ter percebido, é uma aldeia dividida, por assim dizer, uma

aldeia misturada, na qual para tudo há dois lados, duas formas de se contar a mesma história.

Detenhamo-nos um pouco sobre alguns exemplos desta dualidade.

A começar pelo nome da aldeia, sobre o qual já dissemos algo nesse sentido (cf. Capítulo

II). Alguns afirmam que é uma corruptela do antigo nome da cidade (Leopoldina). Outros,

entretanto, afirmam que Buridina é uma aproximação para o português do verdadeiro nome

108

Há outros exemplos desta lógica do movimento das fronteiras do conceito de “puros”. Em Coelho de Souza (2002) encontramos uma descrição, a partir de uma análise dos termos de auto-designação de vários grupos Jê, da maneira como o par de oposições humano/não-humano se replica em níveis distintos, fazendo com que pessoas que se enquadram na categoria de humanos em um nível, em outro não mais o sejam. Em Taylor (1996: 204) encontramos descrição semelhante, na qual a expressão shuar, “nós” ou “pessoa”, “refers to a multi-layered set of relations between contrastive terms”, seu conteúdo sendo contextualmente variável – pode se referir à ‘minha parentela bilateral’, ao ‘meu grupo local’, aos Achuar ou aos Jivaro (do qual os Achuar são um subgrupo) – e funcionando, assim, “as a generalized 'we/they' classifier”.

Page 113: A cruz e o itxe(k)ò

102

da aldeia em inўrybè: burudena hãwa, nome que parece seguir a lógica dos topônimos Karajá e

Javaé109.

À diferença das outras aldeias Karajá e Javaé, as duas fileiras de casas de Buridina têm

suas portas frontais orientadas para sentidos opostos: uma das fileiras está virada para o rio, a

outra para a principal avenida da cidade (que está, portanto, no lugar do rio para esta fileira de

casas) – cf. também Cavalcanti-Schiel, 2008: 18. Quando perguntava para alguns moradores o

porque desta diferença, me respondiam que, à época da construção das casas, no ano de

1994, foi uma opção dos moradores da segunda fileira de casas que suas portas frontais não

ficassem voltadas para o rio. Assim, tendo “dois rios”, um a leste e outro a oeste, o “mato”

enquanto referente espacial que se opõe rio foi anulado. Com efeito, com a inversão do

sentido de orientação de uma das fileiras, o caminho que geralmente há entre elas deixou de

existir, só havendo pequenos trilheiros perpendiculares ao rio (que conectam os dois caminhos

principais). Esta faixa entre as casas não serve para trânsito e, na verdade, aí cresce uma certa

quantidade de mato (cf. Desenho 01).

Come-se tanto comida inў quanto tori. A base da dieta alimentar é arroz e feijão e,

muitas vezes, farinha, produtos via de regra comprados no comércio local. Assim, o que

diferencia a “comida de índio” da “comida de tori” é a mistura110, termo que se refere à carne

da refeição. Assim, se a mistura é carne vermelha (de gado ou de porco) ou frango, trata-se de

109

Pelo que pude apreender do levantamento que fiz, embora não seja muito extenso. 110

Termo bastante difundido tanto entre regionais quanto entre diversos grupos indígenas.

Desenho 02: Plano de uma aldeia Karajá (a) e de Plano de Buridina (b)

(a) (b)

Mato Casas Casa de Aruanã Caminhos da aldeia Rio

Page 114: A cruz e o itxe(k)ò

103

“comida de tori”, ao passo que peixe ou tartaruga caracterizam a “comida de índio”. Se as

primeiras carnes são sempre compradas, as segundas são sempre fruto da pesca indígena111.

No caso da comida indígena, devo dizer que nem sempre há o consumo de arroz ou feijão.

Quando se está acampando nas praias do rio ou nos lagos, muitas vezes se come peixe assado

na brasa e acompanhado apenas de sal e farinha. Há também as três principais maneiras de se

consumir a tartaruga – brète112, bòròrò113 e o animal assado dentro do próprio casco – nas

quais não há qualquer acompanhamento (exceção feita à farinha, no caso do bòròrò)114.

Fala-se tanto a inўrybè quanto o português, e todos têm um nome não-indígena e um

nome inў. Algumas pessoas ficaram conhecidas, quando se fala em português, pelo nome tori,

outras pelo nome indígena. Mas é a língua que se está falando que geralmente determina a

forma como se refere à determinada pessoa. Assim, por exemplo, eu conversava com Kari

sobre Jacinto Ma(k)urehi. Ela se referia a ele como tio Jacinto, como quase todos os mais

velhos da aldeia fazem. Em determinado momento, ao não se lembrar de um detalhe da

história que contava, consultou sua irmã mais velha, que estava conosco na hora. Ao conversar

em inўrybè com ela, entretanto, Kari se referiu a seu tio como Makurehi. Um outro exemplo

vem também de uma conversa com ela. Não raro, em nossas prosas, eu comentava que tinha

vontade de aprender a língua Karajá, ao que ela não dizia nada. Certo dia, entretanto, ela me

ofereceu uma resposta115: “pede para o Renan colocar um nome em você”. Nessa primeira

conversa de que eu falava, ocorreu um mal entendido que acabou por esclarecer este outro

comentário. Ela conversava com sua irmã e lhe contava que eu havia acompanhado a ela e seu

marido em uma pescaria no Lagoão do Santana (na parte II da T.I., MT). Ela falava em inўrybè,

e se referia a mim como tori, numa frase cuja tradução seria algo como: “o tori foi com a

gente no [lago do] Santana”. Sua irmã não entendeu, e lhe perguntou de quem ela falava, ao

que Kari replicou, apontado, para mim: “Tori!”. Mal entendido desfeito, ela me traduziu a

conversa. As duas continuaram a conversar e, logo depois, sua irmã fez um comentário sobre

mim. Já falando em português Kari se voltou para mim e disse: “Ela está te chamando de ‘meu

111

Diretamente da família que consome, ganhada de algum pescador ou, eventualmente, comprada dele. 112

Uma espécie de farofa feita no casco de baixo, a parte plana do peito do animal. 113

Um pirão feito com os miúdos do animal e preparado no casco “de cima”, a parte curvada do lombo do animal. 114

A tartaruga é o alimento por excelência dos Karajá. “A tartaruga é a nossa vaca”, dizem, pois, da mesma forma que aproveitamos praticamente tudo das vacas, não há nada deste quelônio que os índios não utilizem. Cheguei mesmo a escutar uma descrição de como, antigamente, o casco do animal era guardado para, nos tempos da chuva, quando a pesca da tartaruga é difícil, se extrair dele o óleo que ainda havia no osso – despedaçando o caso e cozendo-o –, que era consumido de maneira similar à gordura da tartaruga (como acompanhamento do beiju, ou de mandioca cozida, por exemplo), extraída dos animais maiores. 115

Não que eu esperasse uma. Era de fato apenas um comentário.

Page 115: A cruz e o itxe(k)ò

104

tio’, wulana, porque, como você não tem nome, ela não sabe como te chamar. O Renan já

colocou um nome em você? Você falou com ele?”116.

Patrícia Rodrigues evoca a situação da aldeia Txuiri, na qual, “enquanto o pré-nome

brasileiro é escolhido pelos pais da criança, no seu nascimento, os nomes (série nominativa)

Karajá são sempre atribuídos segundo o seu próprio sistema de nominação” (Bonilla, 1997: 90.

apud. Rodrigues, 2008: 687), algo que também ocorre entre os Karajá de Buridina. Disto, a

autora conclui que “a lógica antiga da nominação é re-apropriada diante de uma nova

realidade, de modo que o nome ‘estrangeiro’ é dado pelos genitores de corpo aberto,

enquanto os nomes ‘ancestrais’ são dados pelos avós de corpos fechados” (Rodrigues, 2008:

687), o que está associado a uma série de contrastes básicos em sua leitura da sócio-

cosmologia Javaé, cujos termos principais, no que interessa aqui diretamente, seriam

alteridade, transformação e corpos abertos, de um lado, e identidade, estatismo/permanência

e corpos fechados, de outro. A coerência da duplicidade dos nomes e da nominação entre os

Karajá de Buridina me parece, entretanto, poder ser explicada de outra maneira. Se os nomes

inў, como vimos acima, são transmitidos da maneira tradicional, a atribuição dos nomes tori

(que, note-se, não são transmitidos, mas ‘dados’) segue a tradição dos brancos: dá-se nomes

tori aos filhos, em suma, da mesma maneira que os tori eles próprios o fazem. Este seria,

portanto, mais um aspecto misturado de Buridina.

A escola é dividida em dois turnos: pela manhã as crianças têm aula da língua indígena; à

tarde, estudam as matérias do currículo do sistema de ensino público estadual – português,

matemática, história, geografia, inglês, etc. –, ao qual a escola indígena foi integrada. Eles se

referem às aulas matutinas como “aulas de inўrybè” e às aulas vespertinas como “aulas de

torirybè”, i.e., a fala, modo de falar ou língua dos tori.

Há o reconhecimento de que aldeia e cidade são marcadas por distintas socialidades,

que não se confundem. Dizem que a cidade tem suas “leis”, falam “na lei da cidade”, na “lei do

branco”, a “organização lá de fora” 117, utilizando estes termos para contrastar com a “cultura”,

o “jeito cultural”, o “nosso jeito” ou a “lei do índio”. “Pela lei do branco é assim, mas na cultura

é diferente”. Ou, como Renan certa vez me explicou:

Quando a gente vai pra cidade, quando atravessa o portão [da aldeia] ali, tem que tirar a memória indígena, guardar no bolso e colocar a memória de não-índio no lugar [gesticulando com as mãos como se tirasse e colocasse pequenos chips de memória em

116

Não cheguei a ver o resultado de eu próprio ter recebido um nome indígena, pois isto acabou só acontecendo nos derradeiros dias de campo. 117

Aqui não poderia deixar de lembrar algo que Roberto Cardoso de Oliveira fala sobre os Terena: “É freqüente ouvir-se entre os jovens aldeados a expressão ‘aprender o regulamento‘, como significando a necessidade que sente o Terêna de saber as regras de boa conduta social correntes no meio urbano” (1968: 125).

Page 116: A cruz e o itxe(k)ò

105

sua cabeça]. Quando chega pra cumprimentar alguém é “bom dia”, “como vão os senhores?”, se for uma mulher abraça e dá um beijo no rosto, ou então dá um beijo nas costas da mão. Aí vão saber que quem está ali é um cavalheiro. Porque os índios não se cumprimentam assim, é na distância, não se encostam. Aí quando passa do portão pra dentro tem que tirar a memória do não-índio da cabeça e colocar a memória indígena, que estava guardada [no bolso], no lugar. Aí volta a funcionar do nosso jeito. Então a gente tem que ter essas duas memórias, e as duas são muito importantes pra gente.

Aqui vemos claramente que cada “memória” está relacionada a um espaço

(aldeia/cidade) e a uma socialidade (indígena/não-indígena). Mas, dentro da aldeia e em

relação à questões indígenas, também nos deparamos com esta dicotomia. Por vezes, os

Karajá resolvem que devem agir à maneira não-indígena, por assim dizer. Quando a associação

da aldeia recebeu uma doação de cestas básicas, fizeram uma reunião para decidir como

dividiriam a comida. Como, nessa época, havia uma briga familiar em curso, dividindo a aldeia

em dois grupos, houve uma certa tensão em relação à presença do grupo minoritário na

reunião: eles compareceriam ou não? Se comparecessem, um provável desacordo em relação

à forma como fariam a distribuição tornaria uma discussão (e talvez uma confusão) iminente.

Mas eles não foram. Aos presentes, entretanto, interessava evitar qualquer possibilidade de

reclamação posterior por parte deste outro grupo. Então decidiram repartir as cestas “à

maneira do tori”: como fora a associação que recebera a doação, somente os associados

receberiam cestas. Estaria assim, “tudo no papel”, pois fazia pouco tempo que haviam

atualizado o cadastro dos associados.

Provavelmente, porém, o principal contexto no qual o contraste entre “a lei do tori” e “o

jeito cultural” é agenciado é no que tange ao comportamento dos cônjuges tori, sobretudo os

homens, que passam a morar dentro da aldeia. É muito comum ouvir-se dizer que eles casam

com as índias sobretudo pelas vantagens que isso lhes propicia: não pagam aluguel, nem água,

podem pescar, dentro dos limites da reserva, em épocas ou condições proibidas para a

população nacional118, têm acesso ao atendimento da Funasa – o que inclui tratamento

odontológico. Talvez isso não fosse uma questão tão enfatizada se estes tori não “abusassem”:

já houve casos, por exemplo, de alguns deles utilizarem madeira retirada da T.I. com fins

comerciais, mas uma das acusações mais frequentes é que, quando são parados no rio pelos

118

Os indígenas não sofrem restrições quanto à pesca, nem quanto ao período nem quanto às técnicas utilizadas. Assim, todos os pescadores da cidade estão parados na piracema – ou pescam escondidos, algo constante, mesmo dentro da reserva indígena; não se pode pescar sobre os cardumes, devendo respeitar uma distância de 1 km para cima ou para baixo de seu centro; ainda nos cardumes, há um controle do tamanho mínimo do pescado; a utilização de tarrafas e redes de malha pequena é proibida; a pesca da tartaruga é estritamente proibida. Aos Karajá, nenhuma destas restrições se impõe, algumas na condição de estarem dentro dos limites da T.I., outras em qualquer ponto do rio. Essa diferença de possibilidades legais de ação é percebida pelos regionais não como um direito diferenciado, mas como um privilégio, o que comumente gera suas tensões.

Page 117: A cruz e o itxe(k)ò

106

ficais ambientais, são abusados, falando alto, de maneira agressiva, por vezes mesmo xingando

os fiscais, alegando que, por serem “maridos de índia” – e utilizando também o nome da Funai

–, estão “no seu direito”, que podem pescar em qualquer ligar, com rede, tarrafa ou o que for,

e que, portanto, eles não podem falar nem fazer nada. Essa atitude contrasta marcadamente

com a atitude dos indígenas, que, no caso de serem parados e terem seu material e/ou

produto da pesca apreendidos, costumam não falar nada e ir, depois, queixar-se ao chefe de

posto, que é quem vai resolver a questão. Também se reclama destes tori que não são bem

dispostos ao trabalho – muitas vezes não suprindo a expectativa que a família da mulher tem

de que ele a sustente bem –, que querem receber os “benefícios” destinados aos indígenas

sem se esforçar para tal, reclamando constantemente da Funai, dizendo que a

responsabilidade de suprir determinadas demandas da comunidade é do órgão e que,

portanto, ela deveria arrumar uma saída, qualquer que fosse, para supri-las.

A tudo isso se associa uma outra quebra de expectativa que o comportamento destes

cônjuges não-indígenas gera: eles querem viver como brancos na aldeia, fazendo um curto-

circuito na distinção que existe do ponto de vista dos Karajá. O problema não é, por exemplo,

que eles pesquem, mas sim que eles não pesquem de maneira satisfatória, trazendo peixes

para sua mulher. A questão, em termos gerais, pode ser colocada da seguinte forma: não há

problema que se case com tori, nem que eles venham morar dentro da aldeia. Mas, se eles

decidem viver com os índios, que vivam como eles – que pesquem para suas mulheres (e,

eventualmente, plantem algo também), vão todos os dias pela manhã buscar leite no curral,

façam trabalhos temporários na cidade para conseguir dinheiro, aprendam a maneira indígena

de pensar e agir e que pelo menos ajam de acordo com elas. Ou então, como radicalizou um

senhor, que leve sua mulher para morar na cidade e dê a ela uma vida de tori. O problema é

que esses cônjuges não-indígenas encontraram na aldeia uma possibilidade de burlar alguns

dos imperativos da vida urbana, i.e., vivem como brancos na aldeia. Se o trânsito entre aldeia e

cidade é, para os Karajá, um trânsito entre “o jeito cultural” e “a lei do branco”, ou seja, uma

questão de (troca de) perspectiva, os tori não operam qualquer rotação de perspectiva, tudo é

pensado a partir de seu próprio ponto de vista.

Esse choque de formas de pensamento, de filosofias, coloca aos Karajá a iminência de

uma última dualidade que gostaria de explorar aqui: para todos, os brancos são tanto parentes

quanto Outros. Todos têm tori em suas famílias e, assim, entretêm com eles relações de

parentesco – sobretudo como pai/mãe ou, segundo a tecnonímia Karajá119, ‘pai/mãe do meu

neto(a)’, i.e., genros e noras. Por outro lado, a incapacidade destes parentes tori de se

119

Cf. a esse respeito Rodrigues (2008: 697) e Dietschy (1978: 79).

Page 118: A cruz e o itxe(k)ò

107

comportarem como parentes verdadeiros, como as acusações descritas acima indicam, marca

sempre, aos olhos dos Karajá, seu lado Outro120. Certa vez eu conversava como um homem,

quando ele fazia muitas reclamações sobre o comportamento desses tori, dizendo que, se

fosse na Ilha do Bananal, a comunidade já os teria expulsado. Perguntei, então, porque isto

não acontecia aqui, ao que ele respondeu: “Não sei. E se falar alguma coisa, acha ruim. A

menina acha ruim porque é o marido dela, a mãe acha ruim, também, porque é o genro dela,

vai falar que ele está fazendo aquilo para sustentar a filha dela”.

₪ ₪ ₪

Aqui encontramos alguns dos elementos que os Karajá parecem eleger como

marcadores da diferença de perspectiva que há entre eles e os tori. Certa vez, o Cacique Raul,

em meio a uma conversa sobre outro assunto, comentou que “o índio é diferente do não-índio

na comida, no pensamento e na fala". Assim, há a “comida de índio”, a solidariedade e a

generosidade do parentesco e o inўrybè, por um lado, e a “comida de tori”, a redução do

parentesco por meio do comportamento sovina e individualista, e o português.

Sobre a língua, há outra coisa a se dizer. Wagner já havia notado que, nas tradições,

como as ameríndias, em que o coletivo “[is] felt to represent the ‘given’ nature of being

human”, i.e, é construído como dado, “language is also considered to be part of this innate

humanity” (1981: 106). Em tradições como essas, portanto, a língua é muito mais do que uma

habilidade que pode ou não ser desenvolvida, como entre nós: ela se constitui como um

estatuto da humanidade (ou alteridade) dos seres. A língua, assim, acaba por emergir como

um signo da diferença. Tais signos, poderíamos dizer, são totais ou totalizantes, i.e., o

120

O caso dos Wari’, cuja descrição de Vilaça (1992, 2000, 2006) em praticamente tudo se aproxima da que faço aqui, guarda, porém, uma diferença, neste ponto. Por uma situação que os levou a morarem próximos de alguns outros grupos indígenas, inimigos, os Wari’ procederam a uma incorporação destes. “Constituindo sempre uma minoria em cada posto, estes índios se casam com os Wari’, comem sua comida e adotam sua língua. Se antes eram chamados wijam, inimigos, são hoje, em vários contextos, classificados como Wari’, especialmente quando se quer diferenciá-los dos brancos. (...) Nos dias de hoje, os brancos são os únicos a serem insistentemente chamados de wijam” (Vilaça, 2006: 494-495). Os Wari’ “aproximaram-se dos brancos mantendo-os diferentes, inimigos. Os demais inimigos com os quais passaram a conviver foram, como vimos, ‘warinizados’ pela convivência e, sobretudo, pelo casamento. Não oferecem mais uma diferença a ser experimentada. Os Wari’ entendem que, em relação aos brancos, essa diferença poderia de algum modo ser preservada, e optaram por isso evitando o meio definitivo de anulá-la, o casamento” (id. ibid.: 502). Os Karajá de Buridina, como vimos, se aproximaram dos brancos justamente por meio do casamento, e, diria eu, não se esforçam para que essa diferença seja mantida. Em muitos contextos podemos escutá-los dizendo coisas como “eu penso no lado da pessoa, não importa se é índio ou se não é” ou, como ouvi certa vez sobre um homem karajá que havia cometido um crime, “eu sei que ele é índio, mas o que ele fez está errado, acho que ele tem que pagar”, anulando, assim, a diferença entre as maneiras indígenas e policiais de resolução do conflito. De algum modo, entretanto, essa diferença se mantém. Talvez, como no caso em voga dos cônjuges tori, sejam os brancos mesmo que insistam em fornecer elementos que explicitam sua dimensão Outro. Mas essa é ainda uma questão para se refletir.

Page 119: A cruz e o itxe(k)ò

108

movimento provocado por eles não é uma intensificação ou atenuamento das diferenças (seu

reposicionamento dentro de um mesmo esquema geral de significação), mas sim uma

mudança de perspectiva (sua inserção em outro esquema de significação). Quando um dos

envolvidos numa relação faz emergir um signo de diferença, o efeito resultante é sua

reconsideração pelo outro envolvido como um ser Outro. O que estes signos, como a língua,

representam e operam são esses ‘sistemas de conceitualização’ como todos, não como partes

uns dos outros – o que nos levaria a um esquema de englobamento alheio ao ponto de vista

indígena (cf. Lima, 1999). Falar uma outra língua é uma evidência da alteridade de um ser,

antes que da sua capacidade lingüística. Um homem, por exemplo, falando sobre as belas

mulheres Javaé que conheceu, ou sobre uma bela pesquisadora que esteve na aldeia, disse ter

se assustado quando abriram a boca com suas “linguagem[s] completamente diferente[s]! É

um outro mundo, completamente diferente!” A diferença da língua não transformou as ‘belas

mulheres’ em ‘mulheres belas porém com uma fala estranha’ – o que seria, afinal, apenas

rearranjar os mesmo termos, utilizando ainda o mesmo esquema de significação. Ele se situava

naquela relação a partir das continuidades humanas que supunha entre eles, mas a

emergência de um signo de alteridade o fez se reposicionar na relação: estava, afinal, diante

de Outros. Não mais as belas mulheres eram estrangeiras, mas sim as estrangeiras que eram

mulheres belas. Converte-se, assim, os substantivos em adjetivos e vice versa.

Uma fala de um jovem de Buridina, citada na dissertação de Portela (2006: 206) nos

fornece outro exemplo:

Pelo que eu vi também na Ilha do Bananal, eles falam muito também da gente, diz que nós de Aruanã somos tori. Teve um lá de Fontoura que chegou e falou assim que eu era tori, perguntou se eu conversava só o português, ai eu respondi pra ele em Karajá e disse que eu sou Karajá e que não é pra ficar me chamando de tori não. Foi e ele ficou sem graça, me falou: __ Ah, você sabe conversar Karajá, é Karajá mesmo.

Na escola indígena, como dito, as aulas são divididas entre inў e tori rybè, a língua dos

índios e a dos brancos. Como um marcador ou signo de alteridade, a diferença lingüística

opera uma diferença total (ou de perspectiva). O conteúdo das aulas de inўrybè incluem, além

do ensino da fala e da escrita da língua indígena, lições sobre artesanato, técnicas de plantio e

cultivo de horta, as festas indígenas, ‘brincar na praia’, etc. O conteúdo das aulas de torirybè,

por seu turno, também soma ao ensino do português (gramática, literatura, redação), diversas

matérias, como matemática, geografia, história, ciências, etc. Trata-se, por assim dizer, de

lições matutinas de filosofia indígena e vespertinas de filosofia tori.

Page 120: A cruz e o itxe(k)ò

109

Page 121: A cruz e o itxe(k)ò

110

₪ Xamanismo: experimentando perspectivas Outras

A experiência urbana dos Karajá de Aruanã é, como argumentei, uma experiência tori,

uma experiência do mundo dos brancos. Em alguns momentos formulei isto como uma

questão de conhecimento; em outros, em termos de experimentação. Pouco importa por qual

destes termos se opte, pois, para os ameríndios, não há forma de conhecimento que não seja

uma questão de experimentação.

Se, como bem mostra Wagner (1981), a idéia de “cultura” tira seu pleno sentido de

nosso próprio modo de simbolização – o que a “torna paradoxal e desafiante quando aplicada

aos significados das sociedades tribais” (id.: 33) –, não poderíamos esperar que o

conhecimento que estes povos produziram e produzem sobre nosso mundo – um dentre

outros exemplos de relação com Outros – fosse um conhecimento do mesmo tipo daquele que

nós produzimos sobre o mundo deles: racionalizações, sínteses, abstrações121, interpretações –

a descrição de uma “cultura”, em suma. A antropologia dos índios, justamente porque não se

faz pelos mesmos meios que a nossa, só pode ser uma “antropologia reversa”: se nós

‘descrevemos cultura’ – inventando, assim, o mundo indígena como parte de nosso esquema

conceitual, como “análogos da Cultura (como ‘regras’, ‘normas’, ‘gramáticas’, ‘tecnologias’), a

parte consciente, coletiva e ‘artificial’ [pois pensada como um conjunto de acordos, consensos,

etc.] do nosso mundo, em relação a uma ‘realidade’ única, universal e natural” (id.: 142) –, os

ameríndios experimentam perspectivas – pois a “subjectivity (...) is primarily a matter of

refraction: it takes its source in the sense one has of other’s perceptions of self” (Taylor, 1996:

206). A ciência indígena é xamâmica.

Se o conhecimento, na epistemologia ocidental moderna, é uma questão de

objetificação ou dessubjetivação, extrair do objeto aquilo que sobre ele fora projetado pelo

sujeito da interpretação e que, assim, não lhe é intrínseco, “o xamanismo ameríndio parece

121

A discussão sobre a diferença entre mestiçagem e mistura, no início deste capítulo, nos fornece um exemplo sobre o pensamento abstrato. As respostas dos Karajá às minhas perguntas sobre os mestiços em Buridina invariavelmente foram do tipo “vai misturando, vai acabando”, acoplando a mestiçagem ao lado da mistura que historicamente se mostrou problemático, como argumentado. Quando perguntava sobre os mestiços na Ilha do Bananal, entretanto, as respostas (ou comentários) sempre ressaltavam sua capacidade de falar as duas línguas, de ‘conhecerem a cultura’ – paralelamente ao conhecimento sobre o mundo tori –, etc. Se, do meu ponto de vista, tratava-se de dois tipos de afirmação, que enfocavam diferentes aspectos de um processo geral abstrato (a mistura), para os Karajá, acredito, tratava-se antes de duas situações distintas, nas quais os mestiços entravam diferentes relações de conhecimento com sua “cultura”. Enquanto eu pensava em termos abstratos – o que me interessava era um construto do qual ambos os casos seriam atualizações –, os Karajá me ofereciam respostas nas quais os agentes específicos (mestiços da Ilha ou de Buridina) e a relação (‘conhecer a cultura’) eram indissociáveis. O pensamento ameríndio não parece operar por abstração: um agente só se constitui como tal dentro da relação, e, portanto, não se pode decidir se os mestiços estão ou não em vantagem na empreitada de “conhecer os dois lados” sem se levar em consideração as relações que, em cada caso, eles entravam com a ‘cultura’ indígena. Mais precisamente, a questão da mistura, fora dessas relações, não existe para os Karajá.

Page 122: A cruz e o itxe(k)ò

111

guiado pelo ideal inverso. Conhecer é personificar, é tomar o ponto de vista daquilo que deve

ser conhecido – daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que

é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente” (Viveiros de Castro, 2002b: 358). E se, portanto,

nesse sistema de conhecimento, “o objeto da interpretação é a contra-interpretação do

objeto” (id. ibid.: 360), pois o que está em jogo é a relação entre dois (tipos de) sujeitos, trata-

se antes de um sistema de comunicação e mediação, como precisou Sztutman (2005).

O trânsito dos Karajá entre aldeia e cidade, como indica uma fala de Renan Wassuri,

citada acima, parece ser um trânsito entre perspectivas: ‘do portão para lá’ age-se como tori;

‘do portão pra dentro, volta a funcionar do nosso jeito’, indígena. Mas não apenas em

depoimentos pode-se perceber isto. Acompanhando os indígenas nas suas idas à cidade, para

comprar gasolina, ir ao banco, ao supermercado ou atravessar a cidade para ir ao Aricá

(terceira parte da T.I., MT), pode-se ver um esforço de transformação. Pelas ruas da cidade,

montados em suas bicicletas, os trejeitos corporais, os afetos e afecções, se modificam:

mesmo a descontração dos jovens dá lugar a um comportamento, contido. Geralmente não se

conversa enquanto se desloca e observa-se tudo com muita atenção. O corpo muda, e sua

transformação é visível122, embora seja uma tarefa árdua descrever isto de maneira

interessante. Ir à cidade é algo análogo, penso, a ir ao mato. Sob a sobra das árvores no

pedaço de mata que cobre a área II da T.I., indo em direção ao Lago do Santana, por exemplo,

caminha-se cuidadosa e atentamente. Assim como na cidade, há uma contenção corporal e

presta-se atenção em todos os detalhes da paisagem (tanto visual quanto auditiva). Acha-se

rastros de bichos, frutas comidas, pássaros em árvores, etc. Sinais visuais e, sobretudo, ruídos,

mesmo o menor deles, podem revelar a presença de outros seres nos arredores123. Assim

como a cidade, o mato é cheio de perigos124, e o maior deles são as onças. Mas foi só depois de

ter acompanhado os indígenas duas ou três vezes nesta trilha é que me foi feito um

comentário que deixou transparecer o sentido desta mudança de afetos. Ao longo da

122

A transformação é algo que depende, não só do próprio esforço, mas também da percepção de outros: só se sabe que a transformação foi bem sucedida quando, além de conseguir enxergar o ser Outro no qual se transforma como um igual, é-se visto como um igual por ele. Tanto mais difícil quando trata-se de virar branco, um dos poucos tipos de seres não muito hábeis no jogo da perspectiva. Esse esforço de transformação, assim, só pode ser algo complexo e instável. 123

Esse corpo que tento descrever aqui, contrasta notadamente com o corpo de quando se está acampando nas praias do rio, lugar do qual os Karajá tradicionalmente desfrutam. A praia está para a aldeia (locais ‘domésticos’, reinos da socialidade do parentesco), diria, assim como a cidade está para o mato (lugares habitados por seres Outros). 124

Como eu anotara no diário de campo no dia 25.07.09: “Ontem, quando o sol entrava, eu e Kari pedalávamos de sua casa no Aricá em direção à aldeia. Ainda na sua casa conversávamos sobre onças e outros perigos do mato, assunto que continuou enquanto atravessávamos o Aricá de bicicleta. Quando atravessamos a porteira, ela olhou para uma rua escura e disse: ‘não vamos por aqui, não, porque é perigoso!’. Eu ri, dizendo que, se no Aricá tinham os perigos do mato, a cidade tem outros perigos, como, por exemplo, motoristas [turistas] imprudentes. Ela também riu, ‘é, de todo jeito tem perigo’”.

Page 123: A cruz e o itxe(k)ò

112

caminhada, minhas tentativas de conversar eram sempre malfadadas: caminha-se a maior

parte do tempo em silêncio, pude logo perceber, e sempre que eu perguntava algo as

respostas eram curtas – às vezes estavam prestando tanta atenção no mato e em seus

habitantes, que minha pergunta nem mesmo era compreendida. Em certo momento,

entretanto, um homem se virou para mim (que era o último da fila da trilha) e disse para que

eu olhasse, de quando em quando, para trás, pois as onças são silenciosas, nunca se escuta seu

caminhar125. No mato, é-se presa, e age-se como uma, sorrateira e atentamente: vale mais

passar despercebido do que correr o risco. O corpo-tori-da-cidade tem suas semelhanças com

o corpo-presa-do-mato, pois ambos se constituem por uma relação com a perspectiva dos

seres que habitam estes lugares126.

Para perceber essa transformação na cidade – que eu tentava descrever –, é preciso,

digamos assim, saber ver. Há, entretanto, uma outra transformação, como aquelas operadas

por máscaras127, que se dá a ver: vestir-se como tori. As roupas dos brancos são algo tão básico

para os Karajá de Aruanã quanto o são para nós. E, nesse sentido, são parte de seu cotidiano,

objetos apropriados e inseridos na lógica corporal indígena. Mas há roupas e roupas. Até o

começo do período letivo, em fevereiro, eu não havia – nas curtas estadias anteriores –

presenciado a movimentação dos jovens em direção à escola. No primeiro dia de aula, fiquei

surpreso ao ver todos muito bem vestidos, com roupas e a acessórios que, depois de mais de

um mês de campo, eu nem mesmo sabia que existiam (em algumas casas): sobretudo calças

jeans e tênis, todos reluzindo como novos, impecavelmente limpos. Esses itens servem

exclusivamente a esse fim: ir à escola128, e fazê-lo exatamente da maneira como os tori o

fazem, como comentou certa vez um homem. Na verdade, há uma outra situação em que se

pode usá-los: sair para “ver o movimento” ou “o frevo”, nas noites de julho (durante a

125

Mesmo caminhando sobre as folhas e galhos secos que cobrem o chão da mata, diz-se que o único sinal da presença do grande animal é um barulho que ela faz como as orelhas – “ela quebra a orelha”, dizem –, produzindo um estalado algo semelhante a um graveto sendo quebrado. Mas nunca se escuta seu caminhar. Diz-se também que, no mato, a onça está sempre observando os humanos que ali estão e que nunca podem vê-la, exceto quando ela própria se mostra. 126

Embora isso se faça de maneiras distintas em ambos os casos. No caso do corpo-presa, os Karajá estão posicionados dentro de sua própria perspectiva, pois ser humano, inў, é ser uma presa para as onças; no caso do corpo-tori o que está em jogo é mesmo a assunção do ponto de vista não-indígena. 127

Se eu estiver certo quanto à intuição de que os Ijasò, os Aruanãs que vão dançar nas aldeias durante o Hetohokў e as festas de Aruanã, são seres Outros, o ritual inў nos fornece um exemplo: os dançarinos vestem máscaras de palha, que são réplicas dos corpos dos Ijasò, tal como observados pelo hyri (xamã), e, ao fazerem isto, talvez transformem-se eles mesmo nos Aruanãs – vestir a máscara não seria, também, vestir o ‘corpo velho’ [ty(k)ytyby] do Aruanã (justamente a parte de sua pessoa-corpo trazida pelo xamã à aldeia)? 128

Aqui faço referência ao Colégio Estadual Dom Cândido Penso, localizado fora da aldeia (apesar de dentro da T.I. – Conferir Introdução, Croquis 01). Quando se trata de ir ao Colégio Maurehi, a escola bilíngüe (dentro) da aldeia, nunca vi esforço comparável de se vestir ao modo tori – a indumentária é bem próxima da cotidiana.

Page 124: A cruz e o itxe(k)ò

113

temporada turística) em que as ruas da cidade se enchem de turistas e há diversos shows de

artistas conhecidos no cenário nacional. (O propósito, entretanto, parece ser o mesmo em

ambos os casos.) A primeira vez com que me deparei com este situação foi ainda em

Fevereiro, durante o carnaval. Numa noite de sábado, eu havia saído para dar uma volta,

comer um cachorro quente e, quando já rumava de volta para “meus” aposentos, topei com

Kari e seu marido tori. Eles estavam vestidos da mesma maneira que qualquer turista, com

roupas ‘de festa’, além dos cabelos penteados e de estarem perfumados. Os calçados mais

uma vez me chamaram a atenção: ele calçava um bonito tênis branco e ela um sapato,

brilhante e negro, ostentando um curto salto – ambos também impecavelmente limpos.

Caminhamos pela rua, subimos pela praça da Igreja Matriz, onde eles decidiram sentar-se. Até

quando fiquei ali com eles, foi só isso que fizeram: sentados, observavam, fazendo,

eventualmente, alguns comentários.

Algum tempo depois, durante o mês de julho, acompanhei a família de Renan Wassuri

até a praça Couto de Magalhães, onde, no placo ali armado, assistiríamos (em dias diferentes)

os shows de Elba Ramalho e das bandas Alquimia e Biquini Cavadão. Eles em suas melhores

roupas, perfumados e cabelos penteados, sobre sapatos e tênis reluzentemente limpos,

cruzamos a aldeia rumo ao centro da cidade. Nestes três dias, o roteiro foi basicamente o

mesmo: tomar sorvete, andar um pouco, sentar e observar, assistir o show, comer pipoca (ou

outra coisa) e voltar para casa. Durante esses passeios, a impressão que se tem é que as

relações internas àquele pequeno grupo indígena davam lugar a uma relação de cada um deles

com o ambiente em que estavam: praticamente não conversavam entre si. Os momentos dos

shows foram ainda mais impressionantes, para mim: escutando as músicas, observando os

artistas e o público, os corpos permaneciam perfeitamente estáticos. Num desses dias, quando

fui ao banheiro público (construído para a temporada turística de 2009), encontrei o Cacique

Raul: com o cabelo preso, ele usava uma camiseta de gola pólo de largas listras horizontais,

azuis e roxas, cuidadosamente colocada para dentro da calça jeans, onde se afivelava um

cinto, preto como os sapatos que usava129.

O que está em questão nestas situações, acredito, é mesmo a experimentação do ponto

de vista dos tori – fazer, como disse, o que eles fazem e, sobretudo, fazê-lo exatamente da

129

Fénelon Costa relata uma dicotomia similar em termos da dimensão cotidiana ou trasformativa da roupa: “Os rapazes de Santa Isabel (e mesmo os homens adultos) usavam no Posto (casa do encarregado e escola, etc.), em 1957 e 1959-60, apenas um calção, reservando a indumentária complera para irem ao povoado neobrasileiro de São Félix [do Araguaia, MT], no outro lado do rio” (1978: 31). Sobre os Karajá de Buridina, dois outros autores escrevem coisas semelhantes. Baldus (1948a: 145-146) diz que “os Karajá tiram a roupa, ou pelo menos parte dela, logo que, chegando em casa, se sentem exclusivamente entre si e fora do contato com os brancos”. Já Wüst (1975: 104, apud Lima Filho, 1992: 11) fala que “ainda em 1945 não usavam roupa, a não ser quando vinham para a cidade”.

Page 125: A cruz e o itxe(k)ò

114

mesma maneira que eles. O que parece estar em questão, enfim, é mesmo a experimentação

como uma forma indígena de conhecimento. Certa vez, por exemplo, o Cacique Raul me

contou que passou sete ou oito anos freqüentando uma igreja evangélica e que, quando já

estava quase se tornando pastor, decidiu sair. Surpreso, perguntei por que ele, depois de tão

longa data, optou por abandonar a vida religiosa, ao que ele respondeu: “Não, eu entrei só

para conhecer, mesmo”. A experimentação das perspectivas alheias, percebe-se, é algo que se

leva muito a sério.

₪ A cruz e o itxe(k)ò: de corpos duplos

Voltemos aos cálculos da mistura, cujas formulações foram apresentadas no início deste

capítulo. Seriam aquelas equações genealógicas e sanguíneas uma teoria genética da inter-

relação cultural130? Certamente não, mas certamente sim. Explico-me. Certamente não, se o

que temos em mente são tipos similares de explicação (sócio-biológicas, sócio-genéticas) que

ainda hoje podemos encontrar em nosso próprio mundo. Por outro lado, não pretendo dizer,

com isso, que a explicação indígena seja metafórica, que falam de corpo querendo dizer outra

coisa: trata-se sim de uma teoria corporal. Apenas seus corpos são diferentes dos nossos (cf.,

por exemplo, Viveiros de Castro, 2002b; Vilaça, 2005). As teorias sociais ameríndias são tão

corporais quanto suas teorias corporais são sociais: mais precisamente, essa distinção [entre o

corpo (natural, dado) e relações sociais (construídas)], clássica entre nós, não existe entre eles,

como bem mostra Rodrigues para o caso Javaé.

Tudo aquilo que no Ocidente está localizado “fora” do corpo – na alma, na psique ou no intelecto – e que constitui o sujeito abstrato, seja a inteligência ou o pensamento, a sensibilidade artística ou as emoções, a criatividade conceitual ou as imagens oníricas, a consciência ou o inconsciente, para os Javaé está profundamente “dentro da carne”, é imanente à matéria de que é constituído o corpo humano. Não se trata meramente de uma não oposição entre emoção (sentimentos) e razão (pensamentos), ambos situados dentro do ky, mas de uma inadequação total da clássica oposição entre os atributos e produtos do corpo e os atributos e produtos da mente/alma, entre o concreto e o abstrato, entre o material e o sutilmente invisível, entre o biológico e o conceitual. (...) Em suma, o sujeito humano não é uma abstração racional ou imaterial, mas antes de tudo um corpo (Rodrigues, 2008: 406-407).

Se a distinção entre atributos da mente e atributos do corpo não nos ajuda a melhor

compreender o que se passa no mundo ameríndio, nossas noções sociais (e mentais) de

mudança e relação cultural também tampouco o fazem. Uma mudança social, para os

ameríndios, apresenta sempre um correlato corporal, ou melhor, é sempre ela própria corporal:

130

Seria mesmo necessário que nos perguntássemos se é sobre a ‘inter-relação cultural’ que os índios teorizam...

Page 126: A cruz e o itxe(k)ò

115

“não há mudança espiritual que não passe por uma transformação do corpo, por uma

redefinição de suas afecções e capacidades” (Viveiros de Castro, 2002b: 390). O que poderíamos

dizer, então, sobre o caso dos Karajá?

“Eu valorizo muito os dois lados. Não valorizo só a nossa cultura, não só a do branco: uma

complementa a outra”, dizem constantemente os Karajá. Um homem, por exemplo, criticava a

atitude de algumas pessoas da aldeia porque, quando morre alguém, “eles fazem é levar padre

lá pra rezar”. Ele disse não concordar com isso por não estar-se fazendo “do jeito cultural”. O

correto, prosseguiu, era que as duas “religiões” (como ele dizia) estivessem presentes, não só a

dos tori: “a cruz e o itxe(k)ò131, tem que ter os dois, mas o corpo é um só”. Ou, como ele próprio

havia me dito em outra oportunidade, “minha característica é indígena, mas eu uso duas coisas

ao mesmo tempo, característica, língua...” Se a mistura, para os Karajá de Buridina, como

argumentei, é um dois sem intervalo, uma duplicidade na qual só se pode estar de um dos lados

– sob uma das perspectivas – a cada momento, o aspecto corporal deste fenômeno só pode se

apresentar também como uma duplicidade. Vejamos o caso dos xamãs Wari’, que nos fornecerá

uma imagem deste ser dois.

Tudo começa como uma doença por jamikarawa, ou seja, quando uma pessoa é

acometida pelo “espírito” de um animal, que leva consigo a “alma”, jam, da pessoa. Se não

houver uma cura xamânica, recuperando o jam da pessoa, ela morrerá e se transformará em

um do animal da mesma espécie daquele que a agrediu. Esse, entretanto, não é o único

destino possível: pode-se estabelecer uma relação com os espíritos animais, adiando, assim, o

momento em que se torna um igual, um consubstancial, do animal em questão. É assim que se

torna xamã. “Na doença iniciatória, o xamã dorme e sonha com karawa, que ele vê com a

forma humana, como um igual. É durante o sonho que ele será banhado por jamikarawa e se

sentirá ‘curado’, com melhor disposição física” (Vilaça, 1992: 82). Depois do banho, os

jamikarawa oferecem ao xamã uma esposa, o que estabelece entre eles uma relação de

aliança. O casamento, entretanto, só será consumando posteriormente, quando sua esposa

“se tornar moça”. A consumação do casamento corresponderá à morte do xamã frente a seus

parentes humanos e à sua transformação definitiva em um jamikarawa. Com o banho, “o jam

[do xamã] torna-se karawa [animal], e com isso o processo de desaparecimento do corpo físico

(doença-morte) é interrompido; o agora xamã se torna um doente crônico, um wari’ com jam

autônomo, um homem-animal” (id. ibid.: 83). “Tudo se passa como se o xamã tivesse dois

corpos: um humano, entre os Wari’, e outro animal, junto aos animais” (id. ibid.: 80). “Diz-se

131

“É a cruz indígena”, artefato de madeira adornado que se coloca na cabeceira do túmulo. Cf. Ehrenheich (1948: 66-68).

Page 127: A cruz e o itxe(k)ò

116

que o xamã jamu, ou seja, por meio de seu espírito, ele se transformou e passou a ter um

outro corpo” (Vilaça, 2006: 203)132.

A relação dos Wari’ com os brancos se daria de maneira similar: assim como o xamã não

deixa de ser wari’, humano, quando ele jamu, i.e., quando sua “alma” torna-se um corpo

animal, o conhecimento e a experimentação do mundo dos brancos constituem-se como um

outro corpo-perspectiva possível, que não exclui seu ponto de vista indígena. Nas palavras da

autora:

Eu diria que os Wari’ querem continuar a ser Wari’ sendo brancos. Em primeiro lugar, porque desejam as duas coisas ao mesmo tempo, os dois pontos de vista. (...) Os Wari’, pelo que entendo, não querem ser iguais aos brancos, mas mantê-los como inimigos, preservar a diferença sem, no entanto, deixar de experimentá-la. Nesse sentido, vivem hoje uma experiência análoga a de seus xamãs: têm dois corpos simultâneos (id. ibid.: 515; id., 2000: 69).

Quando a autora pediu, em 1987, a Maxün Hat que desenhasse um homem Wari’, ele o

representou com traços duplos, “de modo que a roupa ao estilo ocidental, como aquela a qual

os Wari’ se vestem hoje, se sobrepõe ao corpo sem, no entanto, escondê-lo. O que se vê, na

verdade, são dois corpos simultâneos: o do Branco, por cima, e o do Wari’, por baixo” (Vilaça,

2000: 57)133.

Às conclusões as quais a autora chega, percebe-se logo, vão precisamente ao encontro

da descrição que faço aqui – exceto no que concerne aos Wari’ não-casarem com seus Outros

(e isto, quando ocorre, anular a diferença em questão) e os Karajá o fazerem134.

132

Cf. a descrição da autora em Vilaça, 1992: 79-83; 2006: 202-207. 133

Também os Kayapó oferecem aqui um exemplo. Falando sobre as transformações decorridas das relações entre estes indígenas e os brancos, Turner (1993: 60) diz que “assim como a totalidade social é vista agora como constituída de um lado nativo e um lado brasileiro (...), assim também o grupo doméstico e o membro individual da sociedade nativa se tornaram seres duplos, divididos diametralmente entre uma parte interna, Kayapó, e uma parte externa, feita de mercadorias brasileiras”. O ‘aspecto Kayapó’, assim, “se reveste de um verniz de bens de origem brasileira, sem o qual não pode mais passar”. Vemos, entretanto, que as implicações que o autor tira desta duplicidade são bastante diversas das que tento descrever aqui. A própria idéia de uma divisão diametral não parece ser compatível com a de uma divisão (concêntrica) entre interior (o ‘aspecto Kayapó’) e exterior (o ‘verniz’ não indígena) – a descrição do autor, entretanto, sendo focada na segunda divisão. 134

Cf. supra, nota 120. Quanto a isso, seria também necessário explorar a maneira como os Karajá pensam a proximidade física operada pelo casamento (alimentação, relações sexuais e convivialidade) – tratar-se-ia de uma consubstancialização ou consanguinização? Seja como for, o casamento não parece ser um operador de transformação, e há dois motivos para que eu suponha isso. Primeiro, apesar da tecnonímia, que se constitui como um mecanismo de negação das relações de afinidade, substituindo-as por duas relações consaguíneas – não há termo para o ‘sogro’, por exemplo, que é tecnonimicamente chamado de ‘avô dos meus filhos’, wariorè labi(k)è – continua-se chamando os afins pelos termos de parentesco pelos quais se referia a eles antes do estabelecimento da aliança (Rodrigues, 2008: 721). Assim, se um homem casa com uma prima, continuará chamando seu sogro de “tio materno”, por exemplo. Donahue (1982: 319) diz que, mesmo depois de casado, um homem continua a chamar sua esposa de lerў, categoria que abarca todas as mulheres da geração de ego, desde as irmãs reais interditas até as primas distantes casáveis. Segundo, os casos de Buridina (Cf. Capítulo II) e de Txuiri,

Page 128: A cruz e o itxe(k)ò

117

Também para os Karajá de Buridina, a relação entre seu próprio ponto de vista e o dos

tori, mediada pelos casamentos misturados, se constitui como uma questão corporal. Eles

querem e buscam ativamente ser dois, e isto está em seus corpos: a possibilidade de uma

experiência dupla (o ser dois, poder corriqueiramente acessar dois pontos de vista, como faz o

xamã135) é uma duplicidade dos corpos. Não se trata, porém, de algo que é viabilizado por um

corpo duplo, mas de algo que o corpo duplo é: uma experiência dupla. Assim, para os Karajá,

segundo percebo, essa relação é o próprio corpo mestiço. Note-se que quando falam dos

sangues de uma pessoa mestiça, por exemplo, os Karajá não falam de um sangue misturado,

como no caso Piro (Gow, 1991), mas dos dois (três, quatro...) sangues da pessoa. “Então nós

temos quatro sangues misturados”, me dizia uma senhora. Ou quando eu conversava com um

homem sobre os possíveis futuros filhos de uma jovem mestiça (cujo pai era mestiço de Karajá

e Javaé) casada com um índio Xerente, ele comentou que “a criança já vai ter, quer ver...

quatro sangues: Karajá, Javaé, tori e Xerente”. Uma perspectiva-corpo misturada não funde os

corpos-perspectivas que lhe dão origem: ela apenas os põe em relação. O mestiço, a mistura,

parece encarnar justamente essa relação. Não um um (um único sangue), mas um dois sem

intervalo (dois sangues em um mesmo corpo), onde só se pode estar na relação de um dos

lados, sob uma das perspectivas.

₪ ₪ ₪

Patrícia Rodrigues diz sobre os Javaé, que “não se acredita que o parentesco seja

baseado no compartilhar de um mesmo sangue”: reconhecem-se laços bilaterais de

descendência pela “mistura do sêmen paterno [que forma o corpo da criança] e de influências

menos visíveis das substâncias maternas”, configurando uma consubstancialidade que não é

uma consangüinidade (2008: 521). A conexão substancial entre os parentes, portanto, seria de

outra natureza136. Embora não tenha conseguido me aprofundar sobre este ponto, os poucos

aldeia na qual os Karajás expressam “sua preferência por genros tori, porque isso permitiria que suas filhas aprendessem mais facilmente as ‘coisas dos civilizados’” (Bonilla, 2000: 79), indicam que a proximidade do matrimônio parece ser mesmo uma forma de experimentação e conhecimento, que, como já dito, não anula a diferença entre eles e os tori. 135

Dizer que se trata de algo corriqueiro não implica dizer que se trata de algo trivial. A transformação é algo que tem seus perigos. Há sempre o risco de ser capturado pelo ponto de vista do Outro, e não conseguir voltar. Nestes processos, a definição indubitável e a certeza não existem. Citei, páginas atrás, uma fala em que Renan discorre sobre das duas “memórias”. A continuação daquele trecho nos serve de exemplo aqui. Diz ele: “Então a gente tem que ter essas duas memórias, e as duas são muito importantes pra gente. Mas tem que saber lidar com elas, senão a pessoa enlouquece. Daqui a pouco vai ter gente pescando no asfalto, por aí!”. 136

Resta saber qual, como lembra Vivieros de Castro: “Devo esclarecer que uso aqui a noção de ‘grupo de substância’ em sentido lato, uma vez que não sei que ‘substância’ é essa que define o conjunto de pessoas que os Araweté consideram como afetos à regra de abstinência por doenças. Visto não ser o sêmen (...), tampouco é o sangue. Seria mais bem uma ‘unidade mística’” (1986: 439).

Page 129: A cruz e o itxe(k)ò

118

Karajá a quem perguntei se a criança herdava o sangue tanto do pai quanto da mãe me

responderam que não. Entretanto, em outros contextos de conversa, os Karajá falavam do

sangue como uma espécie de conexão entre as pessoas. Diversas vezes, ao comentar certos

tipos de comportamento (geralmente de crianças) tidos como “herdados” de um dos

genitores, eles diziam-me: “o sangue puxa! Está vendo? O pai é do mesmo jeito, a avó

também!” Ou, quando falam sobre mestiços se referindo aos “dois sangues” da pessoa, como

dito acima137. Neste último caso, portanto, os Karajá não parecem estar afirmando que o a

criança é composta pela substância-sangue herdada bilateralmente; parecem antes estar

reconhecendo essa “bilateralidade dos laços de descendência”, de que fala Rodrigues, um

vínculo substancial, sim, mas que não se confunde com o sangue enquanto substância138.

₪ ₪ ₪

E se, como argumentei, essa relação (a mistura) não se restringe aos mestiços, não havia

motivos para supormos que, no que tange aos corpos, isto seria diferente: os corpos puros são

tão duplos quanto os corpos mestiços. Assim, o corpo mestiço é, poder-se-ia dizer, o modelo

da relação entre estes dois pontos de vista. Um modelo, porém, não no sentido de algo

distinto da relação ela própria e que lhe confere forma, mas simplesmente porque, se nem

todos os corpos são mestiços, todos são misturados. A procriação – o que diferencia, afinal,

puros e mestiços – é apenas uma parte do processo de construção de um corpo-pessoa

propriamente indígena (humano). Nem mesmo a concepção é, como entre nós, aquele

momento mágico que inaugura um processo de desenvolvimento biológico autônomo – a

alimentação ideal, por exemplo, sendo antes um fator limitante de tal processo do que algo

que o constitui. Entre os Karajá, como entre muitíssimos outros grupos indígenas das terras

baixas sul-americanas, a formação do feto depende de contínuas relações sexuais: o corpo do

filho é formado pelo acúmulo de sêmen paterno no útero139, não é algo automático. Os

corpos-pessoas não nascem nem prontos, nem mesmo humanos: é necessário que se os

construa, desde dentro da barriga (cf. Coelho de Souza, 2004). E, importante, isso se faz por

137

O sangue, em inyrybè, se designa halubu. Nestas falas dos Karajá, vemos que a palavra “sangue”, em português, não possui um significado único, sendo empregada para designar mais de uma coisa. Penso que quando estávamos falando de se a criança herdava ou não tanto o sangue do pai quanto o da mãe estávamos falando da substância-sangue, que, penso, é o que os Karajá designam como halubu. Levar estas reflexões adiante, porém, requereria, além de compreender melhor estes descompassos lingüísticos, pesquisar as elaborações karajá sobre o halubu (do que exatamente está-se falando, quais suas formas de transmissão, contaminação, influência, etc). 138

De modo semelhante, Peter Gow (2003: 63) diz: “Está claro que o que os Cocamilla entendem por “sangue” não é a substância biogenética imaginada por europeus e norte-americanos, mas antes uma substância corporal transmitida, juntamente com o nome correspondente, pelo homem a seus filhos”. 139

Sobre o caso Karajá, cf. Donahue (1982: 106) e Lima Filho (1994: 132). Sobre os Javaé, cf. Rodrigues (1993: 50-51).

Page 130: A cruz e o itxe(k)ò

119

diversos processos, que vão desde a alimentação e “técnicas corporais” (como o uso de

adornos corporais, escarificações e aplicação de substâncias geralmente vegetais) aos cuidados

e carinhos dos parentes (cf. Gow, 1997). Os “corpos aqui”, em suma, “são feitos, não dados, e

uma etnografia após a outra tem mostrado como os corpos são construídos e transformados

por meio do compartilhamento de substâncias como os alimentos, as palavras e as doenças”

(Gow, 2003: 66). Em Buridina, todos estes processos são misturados, para os índios puros

como para os mestiços. Já falamos, por exemplo, como se come tanto ‘comida de índio’

quanto ‘comida de tori’; como a maior parte das pessoas tem tanto parentes Inў quanto tori;

como tem-se dois nomes, um indígena e outro não140. Para tudo, enfim, há dois lados...

A mestiçagem é a linguagem privilegiada pelos Karajá de Buridina para falar da mistura,

justamente porque o corpo mestiço, contendo em si os dois sangues, sem nunca misturá-los,

encarna ele próprio o modelo da relação entre as perspectivas: contendo ambos os pontos-de-

vista em si, ele é a própria relação. Penso que é através dessa linguagem corpórea, que os

Karajá têm pensado sobre sua experiência de intensa inter-relação com o mundo dos tori

hãwa mahãdu, os brancos da cidade. Afinal, “Em um mundo onde tudo o que existe na

realidade é corporificado, os processos corporais são a principal linguagem para todos os

[demais] processos” (Rodrigues, 2008: 474). A cultura é algo que se guarda no sangue.

140

Os nomes são partes constituintes e constituitivas das pessoas. Coelho de Souza fala de uma “dupla face dos nomes”: eles têm uma dimensão “corpo”, “pele”, e outra dimensão “alma”, uma parte durável da pessoa, ambas as faces sendo importantes no processo de construção da pessoa (2002: 573). Rodrigues fala dos nomes como uma “substância invisível” que, enquanto tal, é transmitia pela nomeação, pode ser externalizada pela utilização dos nomes próprios como vocativo (num processo análogo a externalização do sangue através de um corte na pele), etc. “Os nomes”, em suma, “são componentes essenciais da formação da pessoa” (2008: 681ss).

Page 131: A cruz e o itxe(k)ò

120

Page 132: A cruz e o itxe(k)ò

121

Epílogo

₪ Manter a raiz forte: Identidade como desequilíbrio

O cacique Raul me contava, em uma das muitas conversas em que ficávamos sentados

na varanda de sua casa, que havia feito parte, quando ainda bastante jovem, da Guarda Mirim

de Aruanã. Ele gostou muito da experiência, pois o comandante dizia que os garotos que

passavam por ela entravam muito mais preparados para entrar no exército do que os outros,

pelo conhecimento das regras disciplinares da vida militar que adquiriam. (Era seu desejo,

nesta época, ingressar no exército). “Na vida Karajá é assim também. Antes de fazer as coisas

[casamento, danças] tem que ter todo um preparo”. Depois de mais um tanto de prosa sobre

os “costumes” indígenas, ele parou por um momento e exclamou: “não é costume, não, é

treinamento!”.

Essa não foi a única vez que eu me deparei com essa idéia do preparo, evocada pelos

mais velhos com certa freqüência – sendo o ritual talvez o contexto em que ela tem mais força.

Jacinto Ma(k)urehi, por exemplo, dizia para seus sobrinhos e netos que não os levava para

participar das festas na Ilha do Bananal pois eles não tinham preparo. Em relação ao mundo

não indígena, entretanto, o preparo também é algo fundamental.

Certa vez, por exemplo, eu conversava com um senhor sobre os casamentos com tori e a

mistura. Ele criticava os jovens que, segundo ele, vêm dando muita atenção ao conhecimento

dos brancos e têm se preocupado pouco com sua própria cultura. Perguntei qual seria o

motivo de tal desequilíbrio, ao que ele me disse: “A civilização chega. E se você não estiver

preparado ela te leva!”. O motivo pelo qual uma maior atenção tem sido dada à perspectiva

tori, dizia ele, é a falta de preparo e orientação. No mundo Karajá, continuou, a criança é

preparada desde cedo, ouvindo conselhos, orientações sobre o comportamento adequado,

etc. O ápice deste processo, no caso masculino, é o Hetohokў, quando o garoto fica confinado

por um mês, segundo ele, ouvindo os conselhos e orientações. “Sai de lá preparado”. No caso

das mulheres, o preparo acontece no cotidiano, nas palavras das que as criam, a mãe e,

sobretudo, a avó. Só há preparo, portanto, onde há orientação, alguém que saiba corrigir as

atitudes consideradas incorretas, imorais, etc. Em suma, alguém que não deixe os jovens “se

perderem”.

Esse é, sem dúvida, um aspecto historicamente problemático da mistura na aldeia de

Buridina: a falta de preparo dos jovens os levou, muitas vezes, a dedicar muito mais atenção à

perspectiva tori do que à inў. Um episódio ocorrido com o cacique Raul, relatado no capítulo II,

é bastante ilustrativo disto: seu avô Jacinto se espantou quando viu que Raul estava “muito

solto” – como se ele tivesse levado a sério demais a idéia de viver a ‘liberdade de não-índio’ –

Page 133: A cruz e o itxe(k)ò

122

e constatou que ele estava “perdendo a cultura”. Mas Jacinto sempre se preocupou em

preparar Raul (bem como todos seus outros sobrinhos e netos), sempre falou muito sobre “a

cultura”, contando histórias e aconselhando sobre o comportamento ideal (no casamento, na

vida ritual, na família, etc). Jacinto mantinha as crianças dentro da aldeia e não falava em

português com elas, enquanto eram pequenas. As pessoas hoje mais velhas, as crianças de

então, foram criadas como crianças Karajá, para apenas depois de uma certa idade, depois de

certo preparo, iniciarem um processo mais intenso de aprendizado do mundo dos brancos. A

maneira como eles criariam seus filhos, entretanto, seria um tanto diferente. Um dia, quando

eu voltava da cidade, vi que o cacique Raul estava no Museu vendendo artesanato e me

aproximei. Como de costume, sentei na janela e fiquei escutando a conversa dele com um

homem que olhava as peças. Ele contava ao turista que em um encontro sobre educação

indígena, o líder Kayapó Raoni disse ser contra o ensino do português nas escolas indígenas,

pois se as crianças crescem desde muito cedo aprendendo o português, tenderiam a esquecer

a língua indígena. “Na época eu estranhei, mas hoje eu acho que ele tem razão. Eu, por

exemplo, até a idade de nove anos eu não falava português. Já meu filho mais novo, está com

onze para doze anos, já está na sétima série e não sabe falar bem a linguagem [o inўrybè]”.

Ainda no capítulo II, quando relatava o episódio do espanto de Mau(k)rehi, disse que ali

surgira a idéia do Projeto de Educação e Cultura Indígena Maurehi. É por meio projeto,

também já foi dito, que o privilégio da perspectiva tori vem sendo revertido, em prol de uma

certa equanimidade das perspectivas inў e tori. A escola, diria eu, começa a se configurar como

uma nova forma de preparo, não pelo que efetivamente é ensinado ou aprendido nela, mas

pelo que ela tem se tornado: uma escola efetiva e equanimemente dupla, na qual se dedica

metade do tempo ao aprendizado/experimentação do mundo que se objetifica pela língua dos

brancos (as aulas de torirybè) e metade àquele que se objetifica pela língua dos índios (as aulas

de inўrybè). O otimismo recente dos Karajá de Buridina em relação ao projeto de “resgate”,

penso, está estreitamente relacionado com as mudanças igualmente recentes na escola. Até

pouco tempo, o ensino da língua indígena era uma entre outras matérias do currículo escolar,

com duas aulas semanais. Mesmo sem o respaldo da secretaria de educação do estado, a nova

direção da escola decidiu alterar este quadro: instituíram um turno matutino exclusivamente

para o ensino da língua e cultura Karajá. Se o atual projeto da comunidade continuar se

desenvolvendo bem, portanto, é provável que a médio prazo eles consigam levar a cabo uma

certa equidade das perspectivas, de maneira distinta, certamente, mas análoga a maneira

como o fazem os mestiços na Ilha do Bananal.

Ao longo deste trabalho insisti sobre esta idéia, ‘os dois lados’ da mistura, mas seria

mesmo possível que ambas as perspectivas sejam plenamente equivalentes? O que é a

Page 134: A cruz e o itxe(k)ò

123

identidade de uma população equanimemente dupla, indígena e não-indígena a um só tempo?

Em um artigo recente, Aparecida Vilaça se debruça sobre uma espécie de tensão existente nas

descrições dos “corpos amazônicos”, “revealed by the apparent contradiction between the

abundance of indigenous discourses and practices concerning the gradual make-up of the

body, and diverging ideas on the way in which this carefully fabricated body can – in the blink

of an eye, as Lévy-Bruhl puts it – turn into another type of body” (2005: 446). “This general

uncertainty over forms”, a instabilidade crônica dos corpos, propõe Vilaça, seria um aspecto

fundamental da corporalidade amazônica. A descrição que fiz nesta monografia, focada mais

na transformação do que nos aspectos de construção dos corpos, poderia bem ser um

exemplo disto: a duplicidade dos corpos é justamente aquilo que possibilita a dinâmica de

transformação inў-tori. Anne-Christine Taylor, preocupada com a subjetividade como “uma

questão de refração”, coloca questão semelhante: “if selfhood as person is a state, it is also by

nature a very unstable one, in so far as one’s inner landscape is shaped by the understanding

one has of others’ perceptions of oneself” (1996: 207). Mas se os corpos, assim como a

percepção de si próprio, a perspectiva – duas formas alternativas de dizer a mesma coisa,

como notei no capítulo III –, são cronicamente instáveis, como se estabilizam os pontos de

vista ou os corpos? Como é possível, em meio a um estado de transformação, “in the absence

of a minimally stable subjectivity” (id.: 202), se definir como Karajá?

Taylor sugere que uma solução para esta questão “is to be found in the web of notions

pertaining to affect and memory (...). As we all know from reading Gow’s fine book (1991),

memory, for Amazonian peoples, is intimately linked to kinship. Indeed, in some sense it is

kinship itself” (id.: 206). Afinal, é através do parentesco que muitos destes coletivos se

constituem como humanos (cf. Coelho de Souza, 2004 e Gow, 1997). Para Vilaça, haveria ainda

uma outra forma de estabilização, que, ao contrário desta primeira – a fabricação do

parentesco, que trabalha no sentido de neutralizar o potencial de transformação envolvido na

instabilidade crônica dos corpos –, “involves the maximization of this potential through a

continual experiencing of one’s own jam-/soul from the viewpoint of the other” (2005: 458).

Penso que o preparo para a lida com o mundo não-indígena que os Karajá de Buridina

vêm hoje levando a cabo num contexto amplo, mas no qual a escola aparece como um ponto

de referência, como dito, é justamente uma dessas formas de estabilização. Mas um tal

processo tensiona a relação entre as perspectivas inў e tori no sentido inverso ao de uma

equalização: trata-se, com efeito, de um privilégio da perspectiva Karajá. Quando sugiro que a

possibilidade de ser dois que o grupo explora depende de ‘uma mínima equalização do acesso

a ambas perspectivas’, não falo de uma suposta equidade absoluta entre elas, mas da

capacidade de acessar plenamente a ambas: algo como um processo de auto-constituição

Page 135: A cruz e o itxe(k)ò

124

Karajá (humana) que envolve tanto transformar-se em inў quanto em tori. A igual importância

conferida por estes indígenas para ambas as perspectivas em questão, só pode ser algo interno

ao ponto de vista Karajá, e subordinado, portanto, aos aspectos centrais da auto-constituição

deste coletivo como humano, inў, Karajá. A “identidade”, portanto, só pode ser uma questão

do desequilíbrio entre perspectivas. E talvez esse desequilíbrio seja mesmo central para sua

continuidade: ela, assim como os corpos, é cronicamente instável. A “identidade”, afinal, é

uma questão corporal141.

₪ ₪ ₪

Penúltimo dia de campo, fui me despedir de Kari. Ela me disse que eu não esquecesse

deles. "Quando você tiver um tempo, nas férias, você vem. Nós vamos estar aqui, dando

continuidade ao trabalho de resgate”, dizia ela. É importante que as crianças, sobretudo, não

percam “a raiz”. Mas sua conclusão, para minha feliz surpresa, ao contrário de outras

conversas que havíamos travado sobre o futuro da aldeia, na qual ela exprimia sua

preocupação e dúvida quanto ao futuro – "eu fico me perguntando como é que vai estar a

aldeia daqui há uns anos" –, foi que o projeto de “resgate” tem dado certo: “mas se bem que

as crianças já estão ficando com a raiz forte..." Novos tempos, pensamos eu e os Karajá, estão

começando a se construir na aldeia de Buridina.

₪ ₪ ₪

O ponto central abordado nesta monografia, os casamentos interétnicos e a

mestiçagem, nos remete, sem dúvida, à temática da identidade e do “contato interétnico”.

Optei, entretanto, por tratar o material Karajá de uma maneira que prescindisse de uma

distinção radical (ontológica) entre os não-índios (seu mundo, suas idéias, seus bens, etc.) e

outros tipos de Outros. Somos, afinal, para os Karajá, um entre vários Outros, como os cálculos

da mistura, por exemplo, ao operarem de maneira idêntica em relação aos casamentos com

tori ou com ixўju (índios de outras etnias), deixam claro. Assim, o “contato” torna-se uma

inter-relação, e o que passa a ser central para a reflexão é a forma indígena da relação.

Partindo dos casamentos com regionais, meu esforço foi de tentar compreender um pouco

melhor como se dá, do ponto de vista dos Karajá de Buridina, a relação entre a sua perspectiva

141

Estamos diante, portanto, de duas idéias distintas de identidade. O que consideramos sob tal rótulo é a dimensão do Eu (self), que, para os Karajá, é apenas metade da questão, pois transformar-se em Outro é um processo fundamental para constituição do Eu. Por outro lado, para nós, que pensamos a identidade uma propriedade de nosso self, alterar-se, “virar Outro”, só pode ser uma tensão contra-identitária. A “identidade” indígena, assim, só pode estar entre aspas, pois ela extrapola os limites de nosso conceito.

Page 136: A cruz e o itxe(k)ò

125

e a dos tori. A “identidade”, por outro lado, passa a ser uma questão de humanidade – de

auto-constituição de um coletivo como propriamente humano, inў, e de sua diferenciação em

relação a outros, menos ou não-humanos –, com todas suas sutilezas, multiplicidade de níveis,

etc.

₪ Buridina mahãdu, simplesmente

Buridina é há bastante tempo vista, pensada e descrita como uma aldeia aculturada. Já

em 1908, o etnógrafo alemão Fritz Krause diz da aldeia “na barra do Rio Vermelho, acima de

Leopoldina”, que “habitam-na índios civilizados, que preferem as vantagens da civilização

(fumo, sal) à convivência com a tribo” (1941: 237). Baldus, que passou por Leopoldina no ano

de 1947, depois de uma breve descrição da comunidade enfatizando sobremaneira a

convivência de elementos das culturas indígena e não-indígena, conclui que “essa felicidade,

porém, é cada dia mais ameaçada. Numerosos são os indícios de desambientação cultural,

provocada não só pelos vizinhos neo-brasileiros, mas também pelo próprio Serviço de

Proteção aos Índios (1948: 147). Ainda hoje, acredito que a forma como se vê esta aldeia

pouco mudou. E os Karajá bem o sabem: estão habituados a situações quase semanais na qual

se defrontam com turistas que deixam isso claro nas perguntas ou comentários que fazem.

Nas situações de conflito ou tensão com os regionais (envolvendo, principalmente, a questão

fundiária, a pesca e os direitos indígenas diferenciados), também estes deixam transparecer o

que pensam sobre os Karajá de Buridina. Em Motta (2004) encontramos uma série de

depoimentos de turistas e regionais que colocam a questão de maneira incisiva. De modo mais

amplo, existe no imaginário goiano a idéia de que não há indígenas neste estado (Portela,

2006).

Penso também que a maioria dos (poucos) trabalhos existentes acerca desta aldeia, ao

fazerem descrições das ausências (“Em Buridina não há mais isso, não se faz mais aquilo,

etc.”), introduzem a idéia da aculturação pela porta dos fundos. Neste trabalho não estive

preocupado com uma matriz cultural karajá, da qual os indígenas de Buridina poderiam estar

mais próximos ou mais distantes. Todo meu esforço foi de tentar descrever esta aldeia

positivamente, pelos processos, idéias, pessoas e relações com as quais me deparei lá, em

campo. Tudo o que me interessa é a vida efetiva dos Karajá de Buridina, não o que ela deveria

ser.

A relação de conhecimento e experimentação privilegiada de Buridina para com o

mundo dos tori, incluindo aqui a mestiçagem, não faz dela uma aldeia aculturada. Há dois

motivos básicos para que eu possa afirmar isso. Primeiro, os Karajá podem bem casar conosco,

Page 137: A cruz e o itxe(k)ò

126

se utilizar dos nossos bens, da nossa língua, vestir nossas roupas, comer nossa comida, etc.,

mas, num sentido, eles o fazem à sua maneira e à serviço de suas próprias finalidades, como

bem argumenta Sahlins (1997a, 1997b). Segundo, e num outro sentido, como me dediquei a

mostrar ao longo deste trabalho, a vida em Buridina é uma vida dupla, misturada. Para todos

os aspectos significativos, há dois lados, um inў e outro tori. Supor que o conhecimento e a

experimentação do mundo não-indígena implique uma des-indigenização, uma aculturação, é,

ao mesmo tempo, (contra-)supor que as duas “identidades” em questão sejam pensadas e

vividas em um mesmo plano, como um único processo, o que implica que a atenção dedicada

a uma corresponda a uma proporcional desatenção à outra. Tentei mostrar que os Karajá são

as duas coisas, e que, como dois processos distintos, um ‘lado’ não tem qualquer relação

necessária com o outro. Vivendo junto à cidade de Leopoldina, e posteriormente dentro de

Aruanã, os Karajá de Buridina, nas palavras de Lima Filho, “desenvolveram um modus vivendi

que coadunava sua própria tradição e identidade cultural e a maneira de viver dos tori” (2005:

349), “sem abrirem mão nem da sua própria identidade indígena (...) nem da cidadania

brasileira” (id.: 327).

₪ De pessoas misturadas

A impressão de que Buridina seria uma aldeia aculturada, ou ‘menos tradicional’ que as

aldeias na Ilha do Bananal, certamente tem relação com sua situação atípica. Ela reúne,

provavelmente, a maior quantidade de mestiços e casamentos misturados entre os grupos

falantes de língua karajá. E a ausência de vida ritual, comum a outras aldeias pequenas, soma-

se sua localização, circunscrita como está pela malha urbana da cidade de Aruanã142. Gostaria

aqui de avançar uma hipótese acerca da situação atípica de Buridina em relação à ausência de

vida ritual nesta aldeia e à construção da pessoa.

A casa de Aruanã, hetokrè, é o centro da vida cerimonial karajá. Se, por um lado, as

danças de Aruanã constituem uma socialidade ritual, quase podemos dizer que elas são

também um componente do cotidiano: as danças são quase diárias e ocorrem durante boa

parte do ano (cf. Rodrigues, 1993). A hetokrè é também um importante espaço de convívio

masculino, onde os homens se encontram e passam parte do dia. O ritual, além do mais, é

uma dimensão fundamental da vida social Karajá. A iniciação masculina, durante o Hetohokў,

como dito, constitui parte importante do preparo de um homem para a vida adulta. Patrícia

Rodrigues argumenta em sua tese (2008) que a associação de uma criança a um Ijasò

142

A proximidade entre aldeias Karajá e cidades não é algo raro. A grande maioria delas, na verdade, não dista muito de algum núcleo urbano. Mas em nenhuma situação, a proximidade e a intensidade das relações parecem ser tão grandes quanto em Buridina.

Page 138: A cruz e o itxe(k)ò

127

mascarado, um aruanã, contribui para o fechamento de seu corpo, sendo, assim, parte do

processo de construção da pessoa Javaé.

Desde os primeiros escritos sobre os grupos falantes de língua karajá (Ehrenreich, 1948;

Krause 1940, 1941 e 1943), entretanto, encontramos referências a aldeias de tamanhos

variados, incluindo pequenas aldeias nas quais não havia casa de Aruanã e, portanto, ritual. O

que levaria, então, essas pequenas aldeias a não construir uma dessas casas para si? Há dois

motivos principais. Primeiro, a falta de um especialista, um hyri (xamã) que detenha o

conhecimento necessário tanto para a construção da casa quanto para a feitura do ritual

(Rodrigues, 1993: 143). O segundo motivo está ligado ao próprio tamanho da aldeia. Os

moradores de Txuiri, por exemplo, dizem que lá não há hetokrè por que “se trata de uma

aldeia ‘nova’, que não possui número de habitantes suficiente para que valha a pena construir

uma casa de ijasò” (Bonilla, 2000: 47). Quando os Karajá de Buridina, por outro lado, lembram

do grande tamanho da aldeia na década de 1940, enfatizam que lá existiam duas casas de

aruanã. “Não era normal ter duas casas de aruanã, que sempre tem uma, e aqui é o contrário,

tem duas casas, quer dizer que tem muito índio” (Portela, 2006: 154)143. Esse requisito de um

número mínimo de pessoas para que a casa possa existir parece estar relacionado tanto à

manutenção do segredo ritual masculino – algo sobre o que encontramos menção em quase

todos os escritos sobre o grupo –, quanto à grande quantidade de trabalho necessária para a

realização dos rituais (“É como um mutirão”, me explicou uma senhora).

Quais, então, seriam as consequências da ausência de vida ritual para a vida em uma

aldeia pequena? As aldeias maiores se constituem como espécies de “centros rituais”. Um

Hetohokў realizado em Santa Isabel, por exemplo, reunirá famílias vindas de outras aldeias

simplesmente para participar da festa ou para iniciar uma criança. Mas há certamente

consequências para o cotidiano, que provavelmente implicarão em algum tipo de

reconfiguração. Assim, por exemplo, na aldeia Txuiri, algumas casas vazias serviam de ponto

de encontro aos jovens, substituindo a casa de Aruanã como um espaço de convívio masculino

(Bonilla, 2000). Um homem me disse, numa tarde em que estávamos sentados no terreiro em

frete à sua casa, que “uma hora dessas a gente estava lá na casa de Aruanã. Como não tem, a

gente fica assim, no terreiro mesmo, tudo misturado [com as mulheres e crianças]”. Essa

diferença tanto cotidiana quanto ritual entre aldeias grandes e pequenas foi muito pouco

explorada, e penso que uma reflexão sobre isto poderia trazer à luz alguns aspectos da

socialidade Karajá sobre os quais ainda não nos detivemos. Isto, provavelmente, é reflexo de

143

Fala de Raul Hawa(k)a’ti.

Page 139: A cruz e o itxe(k)ò

128

praticamente todas as etnografias de maior peso terem se concentrado em aldeias grandes e

ritualmente ativas144.

Em aldeias pequenas, portanto, se a “dimensão cotidiana do ritual” (a presença da casa

de Aruanã como um espaço de convívio masculino, por exemplo) é certamente alterada pela

ausência de uma hetokrè, a participação nas festas de aldeias vizinhas pode solucionar outros

tipos de problemas advindos da ausência do ritual, representando a possibilidade de ter os

filhos iniciados e de participar do ciclo de danças de Ijasò. Mas o que podemos dizer de

Buridina em meio a tudo isto, uma aldeia que, como vimos no capítulo II, optou por romper

com seus vínculos rituais? Seriam estes Karajá pessoas a meio caminho, incompletamente

construídas? Conversando com algumas pessoas sobre as visitas que os Karajá desta aldeia

fizeram ao Hetohokў de Santa Isabel, no âmbito do projeto Maurehi, sempre me chamou a

atenção sua postura: todos dizem ter gostado muito da visita, ter aprendido mais sobre “a

cultura”, etc., mas não demonstram, se bem percebo, preocupação em ter seus filhos iniciados

neste ritual – tampouco declaram intenção de fazê-lo. Penso – e esta é a hipótese – que, se eu

estiver correto em supor que a vida ritual não é uma questão central para a construção da

pessoa em Buridina, como indica sua pouca dedicação a esta questão, é porque estes Karajá

devem estar focando sua atenção sobre outra coisa. O crucial para os Karajá de Buridina,

parece-me, é se construir como pessoas misturadas, seres duplos, capazes de acessar tanto a

perspectiva inў quanto a tori.

₪ Pelas ruas da cidade

Os povos indígenas hoje em território brasileiro (e alhures, certamente), temos visto,

têm se empenhado cada dia mais em conhecer e adentrar nosso mundo. E os meios que têm

se utilizado para tal são diversos: educação escolar, formação superior, busca por formas de

conseguir dinheiro e bens – seja por trabalho pessoal, por parcerias ou projetos – e diversos

tipos de capacitação – dentre as quais o aprendizado das técnicas de filmagem tem se

destacado enormemente –, por exemplo. A presença indígena nas cidades, viver com e como o

branco em suas “grandes aldeias” (tori hãwa, para os Karajá), é mais um destes meios, talvez

mesmo o de maior intensidade (e perigo, conseqüentemente). A experiência de já mais de

cinqüenta anos de “vida urbana” dos Karajá de Buridina é um exemplo disso. Em praticamente

todas as aldeias dos grupos falantes de língua karajá, há mestiços, professores indígenas,

144

Lima Filho (1994), Nathalie Pétesch (2000), Georges Donahue (1982) e Fenelón Costa (1978) trabalharam em Santa Isabel do Morro, a maior aldeia Karajá. Patrícia Rodrigues (1993, 2008) trabalhou em Canoanã. Há duas exceções: a dissertação de Toral (1992), que foi multicentrada, fruto de anos de trabalho do autor com as populações Karajá, Javaé e Karajá do Norte (Xambioá), e o belo trabalho de Lydie Oiara Bonilla (2000) sobre a aldeia Txuiri, ao qual devo parte da inspiração desta monografia.

Page 140: A cruz e o itxe(k)ò

129

assalariados, jovens instigados com as cidades e seus habitantes tori, etc. Buridina é “uma

aldeia como outra qualquer”, como me disse o cacique Raul, seus habitantes se reconhecem

como Karajá, assim como são reconhecidos pelos seus parentes da Ilha do Bananal. A

característica de Buridina, o que a diferencia de outras aldeias, é a intensidade de suas

relações com a cidade de Aruanã, uma relação privilegiada de conhecimento e

experimentação do mundo dos tori hãwa mahãdu.

Situações como esta (dentro ou fora das cidades, em graus distintos), entretanto, foram

por muito tempo (e ainda o são, em larga medida) pensadas fora do escopo da “tradição”

indígena145, como se, quando o que está em questão é ‘virar branco’, os índios estivessem

fazendo algo diverso do que fazem usual e/ou tradicionalmente. Dois pesos e duas medidas,

“tradição” de um lado, “modernidade” de outro. Quando os índios falam, por exemplo, “eu

sou uma arara”, ou contam uma história sobre um humano que nos tempos míticos teve

relações com um jaguar, a atitude dos(as) antropólogos(as) é se perguntar “o que diabos ele(a)

quis dizer com isso?” Compreende-se, então, o significado do jaguar ou da arara, e um campo

de relações se estabelece, revelando uma teia de significados dotada de lógica própria.

Quando, porém, um índio entra numa loja, tira algumas notas do bolso, às estende ao

atendente e diz “eu quero aquele relógio”, a maioria dos(as) antropólogos(as) tem pensado

que o índio está, simplesmente, comprando um relógio. O que estão fazendo, na verdade, é

simplesmente deixando de se perguntar qual o significado daquela ação – e do objeto que

compra, do dinheiro através do qual realiza a ação, e a lista poderia se estender quase

indefinidamente... – para o sujeito que a pratica, pois tomam como obvio que comprar um

relógio é comprar um relógio, e não há como ser outra coisa. Talvez o problema seja mesmo a

facilidade com que se percebe o “nativo” como um outro sujeito, como disse Viveiros de

Castro, impedindo, assim, que vejamo-lo com um outro ponto de vista, i.e., como um sujeito

outro. “Sabe[-se] demais sobre o nativo desde antes do início na partida” (2002c, p. 117).

A transformação, virar branco, é uma prática de conhecimento antes do que uma

questão histórica de sucessão de “modos de vida”, “formas de ser”, ou qualquer coisa do

gênero. Assim, por exemplo, conclui Maria Soledad M. de Castro sobre sua experiência junto

aos Pataxó de Coroa Vermelha (BA):

Os Pataxó não relatam uma passagem de uma vida tradicional a uma vida moderna, tampouco advogam estarem retornando de um contexto moderno em direção a um contexto tradicional. Na verdade, a experiência do grupo parece apontar para uma

145

Embora haja exceções, como sempre as há. Cito algumas: Bruner (1961), Cardoso de Oliveira (1968, 1972[1964]), Langton (1981), Sahlins (1990, 1197a, 1997b), Gow (1991, 1997), Vilaça (1996, 2000, 2006), Bonilla (1997, 2000), Albert & Ramos (2002), Lasmar (2005), Gordon (2006), Andrello (2006), Barbosa da Silva (2007), Castro (2008), Melatti (2009[1972]).

Page 141: A cruz e o itxe(k)ò

130

situação muito diferente daquela encontrada no senso comum de nossa perspectiva sobre a história: tradição e modernidade não são momentos ou processos que se sucedem; não há passagem de um a outro. Ao contrário, trata-se, na verdade, de categorias e oposições binárias que se reproduzem ao longo do tempo. Sempre, concomitantemente (Castro, 2008: 129).

A transformação, poderíamos dizer, é uma prática de auto-constituição: ser índio

(humano, Inў) é um continuado virar índio, de uma maneira determinada. Virar branco é

apenas um processo análogo e anexo. Pelas ruas da cidade de Aruanã, em suma, os Karajá de

Buridina se constituem como um grupo propriamente indígena (humano, Inў), num processo

histórico cujo aspecto problemático nunca foi sua duplicidade.

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