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A DEVOÇÃO AO DIVINO ESPÍRITO SANTO NO CONTESTADO
Eduardo Rizzatti Salomão1
(Colégio Militar de Curitiba)
Resumo
Este trabalho tem por objetivo expor resultados de pesquisa sobre a manifestação
da devoção ao Divino Espírito Santo entre os integrantes do movimento do
Contestado. Busca-se discutir a presença da festa do Divino nas comunidades da
região onde se desenrolou a guerra e a sua relação com as crenças, os rituais e a
organização adotados pelos integrantes do movimento. Nessa discussão serão
abordadas as manifestações de outras crenças e festejos relacionados com o Divino
no Contestado, com destaque para o culto a São Sebastião e as Cavalhadas. Das
perguntas levantadas pela pesquisa, questiona-se se a devoção ao Divino teria
relação com a constituição da liderança espiritual e guerreira rebelde, em particular o
papel de destaque exercido por moças intituladas “virgens” e a instituição dos
cavaleiros nominados “Pares de França”. Pretende-se aprofundar a discussão
apresentada por autores que observaram aspectos dessa questão, por meio de
revisão bibliográfica, com destaque para publicações de Maria Isaura P. de Queiroz,
Maurício Vinhas de Queiroz, Duglas Teixeira Monteiro, Paulo P. Machado e Pedro
Agostinho, acrescendo à discussão informações provenientes de outras obras e
fontes na intenção de explorar possibilidades interpretativas diversas e, concluindo,
questionar algumas afirmações que, acredita-se, reforçaram estereótipos a respeito
da cultura dos habitantes do Contestado.
Palavras-chave: Divino Espírito Santo; Pares de França; Cavalhadas.
Introdução
As festas religiosas organizadas por leigos são eventos presentes no Brasil
desde a colonização. Entre as celebrações mais cultuadas, a festa em louvor ao
1 Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB).
Império do Divino Espírito Santo ocupa papel de destaque na religiosidade luso-
brasileira.
Acredita-se que, originalmente, a devoção ao Divino comportou expressões
de conteúdo milenarista. Em Portugal, a instituição da "Festa do Império do Espírito
Santo" remontaria ao séc. XIV e a organização dos festejos teria encontrado
inspiração na obra do abade calabrês Joaquim de Flora, para quem a história da
humanidade estaria dividida em Três Idades: a do Pai, a do Filho e a do Espírito
Santo. Para os seguidores do abade, a chamada Terceira Idade estaria à vista e
coincidiria com o estabelecimento de um império cristão universal instituído sob os
auspícios do Paráclito (o Espírito Santo). Independente dos propósitos dos escritos
do abade, o joaquinismo se fez presente na constituição de movimentos
messiânicos e/ou milenaristas no continente europeu, alguns de caráter violento2. E
no Brasil? Estaria a festa do Divino associada a algum movimento messiânico ou
milenarista?
Lançando o olhar sobre as manifestações da religiosidade popular nos
estados de Santa Catarina e Paraná, este trabalho tem por objeto analisar a
devoção ao Divino no Contestado e a sua possível associação a expectativas
milenaristas. Primeiramente, busca-se investigar a presença da festa do Divino nas
comunidades da região, para, em seguida, discutir a relação entre as celebrações
religiosas locais e as crenças, os rituais e a organização comunitária adotados pelos
integrantes do movimento ao longo da guerra.
No limite do presente trabalho, será abordada a discussão apresentada por
autores que observaram esse problema, explorando outras possibilidades
interpretativas e, pari passu, questionar algumas afirmações que, acredita-se,
reforçaram estereótipos a respeito da cultura dos habitantes do Contestado. Entre as
questões propostas, destacam-se: teria a devoção ao Divino Espírito Santo relação
com a organização rebelde, em particular a instituição dos cavaleiros nominados
“Pares de França” (também chamados “Pares de S. Sebastião”) e a constituição da
liderança espiritual do movimento, com destaque para as chamadas “virgens”?
2 COHN, Norman. Na senda do milênio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, 1981; e QUEIROZ, Maria I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 2003.
Sobre o assunto, colheu-se da obra de Maria Isaura P. de Queiroz, La ‘guerre
sainte’ au Brésil: le mouvement messianique du ‘Contestado’ 3 , as primeiras
impressões sobre a presença da festa do Divino no Contestado. Duglas T. Monteiro,
autor de Os errantes do novo século 4 , e Maurício V. de Queiroz, autor de
Messianismo e conflito social 5 , ao investigarem a Guerra do Contestado,
reconheceram o estudo das festividades religiosas como elemento importantes para
se compreender a mentalidade e organização dos rebeldes do Contestado. E, do
conjunto do material consultado, revelou-se fundamental, em particular pelas
reflexões propostas, o artigo “Império e cavalaria no Contestado”, de Pedro
Agostinho6. De Paulo P. Machado, autor de Lideranças do Contestado7, buscaram-
se dados atualizados a respeito do perfil das lideranças rebeldes, entre outras
informações.
Dos textos e documentos consultados, mereceram atenção memórias de
personagens presentes na região à época da guerra, relatórios militares, inquéritos
policial-militares, matérias publicadas em jornais e livros escritos por militares e
padres que atuaram na região. Muito do material deixará de ser citado nesse
espaço, dado os limites do presente texto. Do conjunto, ressalto o manuscrito de
Alfredo de O. Lemos, “A história dos fanáticos de Santa Catarina e parte de minha
vida naqueles tempos” (s.d.); os livros Campanha do Contestado, de Demerval
Peixoto (1916) e A campanha do Contestado, de Herculano Assunção (1916) –
ambos militares que atuaram no conflito; e as memórias do padre Rogério Neuhaus
(publicadas por Pedro Sinzig, em 1939).
A Devoção ao Divino
3 QUEIROZ, Maria. I. P. La ‘guerre sainte’ au Brésil: le mouvement messianique du ‘Contestado’. Tese de Doutorado. Ècole Pratique des Hautes Études, Universidade de Paris. Paris, 1955. Publicada no Boletim n. 187, Sociologia I, n. 5, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 1957. 4 MONTEIRO, Duglas T. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974. 5 QUEIROZ, Maurício V. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado. São Paulo: Editora Ática, 1977. 6 AGOSTINHO, Pedro. "Império e cavalaria no Contestado" in: Ilha, Florianópolis, v. 4, n. 2. 2002, p. 29-30. 7 MACHADO, PAULO P. Lideranças do Contestado. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
Provenientes de Portugal, os festejos em louvor ao Império do Divino se
estabeleceram ao longo da colonização do Brasil, passando dos povoados costeiros
as comunidades do interior do continente. Arraigada no catolicismo popular, a
celebração do Divino tem, tradicionalmente, início em Pentecostes (50 dias após o
domingo de Páscoa) e perdura de acordo com os costumes de cada comunidade.
Originalmente, a festa em louvor ao Divino envolvia a coroação de um imperador e
de dois reis. O imperador ostentava coroa e cetro (ou espada), tendo por
acompanhantes três juízes e duas donzelas (damas de honra).8 Há variações na
composição da corte. Nas comunidades brasileiras é comum o coroamento de um
imperador e de uma imperatriz, acompanhados de várias damas de honra, vestidas
de branco, também chamadas de “virgens”, a exemplo do que se verifica ainda hoje
em Pirenópolis, Goiás.9 Em Portugal e no Brasil, não é incomum ser escolhido como
imperador do Divino um menino, menor de 12 anos de idade, comumente filho de
quem financia a festa.10
Sobre os rituais da festa do Império do Divino, é tradição a formação de um
cortejo, destinado a percorrer a comunidade, visitando residências, na coleta de
óbolos, retribuídos com louvores e pedidos de graças − é a chamada Folia do
Divino, que ocorre antes da festa principal em algumas comunidades; em outras, a
folia é percebida como a festa propriamente dita. Nas diversas versões da folia, é
comum o acompanhamento musical, os cantos e rezas em louvor ao Divino e a
queima de fogos que se destina a anunciar a passagem do cortejo.
Os símbolos de maior destaque ostentados na folia são a coroa e a bandeira
do Divino. A bandeira é o elemento principal, confeccionada geralmente em tecido
vermelho, tendo, em destaque, no centro da flâmula, o desenho de uma pomba
branca, símbolo do Espírito Santo. No transporte da bandeira é utilizado um mastro,
de pouco mais de um metro, decorado com fitas multicoloridas, encimado por uma
pombinha.
8 CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiros. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. São Paulo: USP, 1988, p. 294 e 335. 9 CARVALHO, Adelmo de. Pirenópolis: coletânea 1727-2000. Pirenópolis: Edição do Autor, /s.d./, p. 95. 10 ABREU, Martha C. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Tese de Doutorado em História. UNICAMP. Campinhas/SP, 1996, p. 23 e ss.
Em diversas localidades, antes da festa principal, é muito comum que a
bandeira do Divino, acompanhada por poucas pessoas, quando não individualmente
– ou seja, sem cortejo, cânticos e louvores – percorra a comunidade na coleta de
ofertas. A bandeira é recepcionada como portadora de poderes especiais, assim
como aqueles que a conduzem, daí a importância da distribuição de bênçãos, as
quais teriam a função de afastar doenças e proteger lavouras.11
Em Santa Catarina, Estado onde se insere a maior parte da extensão de
terras que outrora compuseram a chamada “região do Contestado”, a festa do Divino
é uma das celebrações religiosas mais concorridas, tendo origem, ou se
intensificando, a partir da segunda leva de imigração açoriana (1748-1756).12 Apesar
da perda de adeptos ao longo dos anos, e mesmo de seu desaparecimento em
muitas localidades, os festejos ainda ocorrem em vários municípios, em especial no
litoral, a exemplo da capital, Florianópolis, onde se registraram, anualmente, mais de
uma dezena de celebrações.13
À semelhança de outras regiões brasileiras, a Folia do Divino em Santa
Catarina contava com a bandeira, a coroa do império e as famosas cantorias em
louvor a Terceira Pessoa da Trindade. Doralécio Soares registrou que, quando o
cortejo do Divino chegava à porta das casas dos catarinenses, eram entoados
cânticos.14 Recepcionar o Divino era motivo de alegria, beijava-se a bandeira, a
coroa era acomodada em uma mesa enfeitada de flores, seguindo-se a oferta de
bebidas e comidas aos integrantes da comitiva.15
A devoção ao Divino no Paraná também é registrada. Por exemplo, em Ponta
Grossa há uma residência, tombada pelo município, chamada "Casa do Divino", cuja
origem remontaria a devoção da dona do imóvel, que, em 1882, teria, para
agradecer a uma graça alcançada, montado um altar permanente em louvor ao
11 ARAÚJO, Alceu M. Cultura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 9 12 FRADE, Cáscia. “Festas do divino no Brasil” in: Textos escolhidos de cultura e arte populares, v. 2. n. 2, 27-36. 2005, p. 27. 13 ALVES, Joi C. “Culto ao Espírito Santo no Brasil Meridional” in: Anais do II Congresso Internacional sobre as Festas do Divino. Porto Alegre: Casa dos Açores do Estado do Rio Grande do Sul, 2006, p. 33. 14 SOARES, Doralécio. Folclore brasileiro. Santa Catarina. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979, p. 39. 15 Id. Ibidem, p. 38-40.
Espírito Santo, o qual se tornou alvo de peregrinação, atraindo pessoas de diversas
localidades.16
Maria I. P. de Queiroz reconheceu que as celebrações religiosas observadas
entre os habitantes do Contestado, à época imediatamente anterior à eclosão da
guerra, recordavam diversos aspectos presentes nos festejos em louvor ao Divino17.
As festividades do planalto catarinense destinavam-se a comemorar datas especiais,
dedicadas aos santos, a celebrar batizados, casamentos ou atender aos interesses
políticos do momento.18
No Contestado, consta que entre os promotores das festas religiosas estavam
fazendeiros, pequenos proprietários e comerciantes. Queiroz afirma, em sintonia
com autores como Monteiro, que as celebrações religiosas no Contestado eram
organizadas e dirigidas por irmandades leigas, tendo por patronos mais destacados
o Divino Espírito Santo e S. Sebastião.19
Uma das festas que ficou famosa na região, graças a sua relação com os
eventos que desencadearam a Guerra do Contestado, foi a festa em louvor ao
Senhor Bom Jesus. Realizada no mês de agosto, em Taquaruçu, localidade então
sob a jurisdição do município catarinense de Curitibanos, a festa era bastante
concorrida, contando com a participação de pessoas advindas de outros distritos,
com destaque para Perdizes, onde se organizava a festa em louvor ao mártir S.
Sebastião. Nos festejos de 1912, Taquaruçu recepcionou um curandeiro que crescia
em fama. Atendendo por monge José Maria, esse personagem não seria um
anacoreta ou integrante de uma ordem religiosa, mas um andarilho dedicado a
receitar remédios. Os moradores locais identificaram em José Maria um continuador
da obra de João Maria, personagem considerado santo no planalto catarinense e
assim cultuado em muitos lares. 20 Perseguido, José Maria buscou refúgio nos
campos do Irani, onde, numa malfadada operação policial, morrera para, em 1913,
16 RODERJAN, Roselys V. “Folclore no Paraná” in: Vasco José T. Ribas e Faissal el-Khatib (org.). História do Paraná. Vol. III. Curitiba: Grafipar, 1969, p. 159-162. Sobre a Casa do Divino, em Ponta Grossa, ver: <www.pontagrossa.pr.gov.br/casa-do-divino>. 08/2014. 17 QUEIROZ, Maria. I. P. de. La ‘guerre sainte’ au Brésil: le mouvement messianique du ‘Contestado’, op. cit. p. 88. 18 Id. Ibidem, p. 84-86. 19 Id. ibidem, p. 87. 20 CABRAL, Oswaldo R. A campanha do Contestado. Florianópolis: Lunardelli, 1979, p. 107-198.
“retornar” no imaginário dos rebeldes ao lado de S. Sebastião junto a um Exército
encantado.21
Lançando os olhares sobre os registros da guerra, muitos são os elementos
que sugerem que a devoção religiosa não apenas permeou o cotidiano dos
rebeldes, mas converteu-se em ideologia que animava parcela do movimento e
inspirava a sua organização. Sobre essa questão, no agir ao longo dos combates,
na organização dos chamados “redutos” (acampamentos rebeldes), na condução
das práticas religiosas e na composição da liderança há elementos que apontam
para a relação entre as crenças de diversos rebeldes do Contestado com devoções
religiosas populares, tendo destaque a devoção ao Império do Divino.
Responsável por conduzir missões religiosas no planalto catarinense, frei
Rogério Neuhaus relatou a existência de capelas dedicadas ao Divino Espírito Santo
em comunidades do Contestado.22 Na época da guerra, no município catarinense de
Canoinhas foi preso José Tavares Freire por suspeita de integrar o grupo de devotos
de José Maria, estando de posse, segundo dados do depoimento, da bandeira de
Santa Ritta e outra acrescida de uma cruz verde e as iniciais “S.D.J.” (segundo o
declarante significando “Senhor Divino Jesus” ).23 Um dos sobreviventes da guerra,
Benedito Chato, narrou a Duglas T. Monteiro que era costume na região o cortejo
com a Bandeira do Divino Espírito Santo.24 Os relatos sobre os combates informam
que os rebeldes portavam bandeiras brancas, acrescidas do desenho de uma cruz
verde no centro da flâmula, a exemplo da bandeira apreendida com José T. Freire
em Canoinhas.
No Contestado, bandeiras com desenhos de cruz, pomba e mesmo a
reprodução do martírio de S. Sebastião foram observados entre os rebeldes.
Exemplares desses estandartes se encontram em museus, merecendo destaque a
“bandeira de S. Sebastião”, parte do acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de
Janeiro (consultado pelo autor deste artigo). Os “fanáticos” eram vistos agitando
21 Sobre o assunto, ver SALOMÃO, Eduardo R. A Guerra de S. Sebastião (1912-1916): um estudo sobre a ressignificação do mito do rei encoberto no movimento sociorreligioso do contestado. Brasília, 2012. 22 SINZIG, Pedro. Frei Rogério Neuhaaus. Petrópolis: Editora Vozes, 1939, p. 188. 23 Depoimento de José Tavares Freire, 18 de outubro de 1914. Auto de perguntas, acervo do Arquivo Histórico do Exército (AHEx). 24 MONTEIRO, Duglas T. Os errantes do novo século, op. cit. p. 234.
essas bandeiras durante os combates, atitude que foi interpretada por observadores
como um sortilégio para conferir proteção contra as armas inimigas.25 Tal atitude
sugere que a crença no poder milagroso das bandeiras consagradas ao Divino e aos
santos era difundida no Contestado.
Nos “redutos” (acampamentos rebeldes), eram organizadas formaturas
(reuniões) diárias. Muitas dessas reuniões incluíam a realização de rezas e
procissões que percorriam um quadrilátero nomeado de “Quadro Santo”, onde
brados eram proferidos, a exemplo de "Viva o São José Maria! Viva o cavalo de São
José Maria! Viva a Monarquia! Viva a coroa do Império! Viva o acampamento de
São Sebastião! Viva a espada de São José Maria! Vivam os poderes de São José
Maria!".26 (Grifo meu). Vários autores perceberam na coroa do Império citada no
brado uma alusão direta a monarquia – seria essa única intenção de um brado que
reunia tantas referências? Muitas são as possibilidades interpretativas, não estando
descartada que essa referência possa aludir a coroa do Império do Divino, sem
prejuízo ao saudosismo monárquico.
Ainda sobre indicativos de que o culto ao Divino Espírito Santo esteve
presente nos “redutos” rebeldes, há uma questão que parece decisiva. Nos
acampamentos rebeldes, a presença de moças chamadas "virgens" foi objeto de
atenção de muitos observadores, que nelas perceberam jovens inocentes dispostas
ou coagidas a ceder aos caprichos de lideranças mal-intencionadas. As informações
apontam que tais moças, distantes de se dedicar a atender aos “caprichos” dos
chefes, atuavam como assistentes das lideranças e videntes (médiuns), sendo
destaque nas procissões realizadas nos acampamentos, isso quando não assumiam
papel de maior relevância, chegando mesmo, em alguns casos, a comandar
acampamentos, caso da afamada virgem Maria Rosa 27 . O papel de “virgem” é
reconhecido como parte da devoção ao Divino e, ainda hoje, no município goiano de
25 LEMOS, Alfredo de Oliveira. A história dos fanáticos de Santa Catarina e parte de minha vida naqueles tempos – 1913/1916. Passo Fundo: Gráfica e Editora Pe. Berthier, /s.d./. p. 22. 26 ASSUNÇÃO, Herculano T. de. A campanha do Contestado. Vol. 1. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1917, p. 236. 27 MACHADO, PAULO P. Lideranças do Contestado, op. cit., p.222 e ss.
Pirenópolis, as festividades envolvem a coroação do imperador e a presença das
“virgens” vestidas de branco.28
Outro aspecto que merece destaque foi a formação de cavaleiros intitulados
“Pares de França” – a presença de grupo homônimo é ainda hoje observada em
diversas localidades nos festejos em louvor ao Divino. Afirmar-se que à época da
guerra, durante a permanência em Taquaruçu, José Maria teria concebido e
organizado uma irmandade, distribuindo funções de comando entre os adeptos,
horários para as rezas e procissões, entre outras práticas 29 , destacando-se a
formação de um conselho, guarda pessoal ou esquadrão de elite constituído de 24
cavaleiros – não 12, como na legenda original.30 A fonte de inspiração do curandeiro
seria a novela de cavalaria História do Imperador Carlos Magno ou os Doze Pares
de França (doravante denominada História). O rebelde Benedito Chato afirmara que
“Ele mesmo [José Maria] fazia a leitura do livro de história de Carlos Magno”.31
Poucos dias após a batalha do Irani, o jornal Diário da Tarde publicou uma matéria
comentando a leitura e utilização da História do Imperador Carlos Magno pelo
curandeiro.
[...] José Maria fez da história do famoso rei a sua bíblia. Que teria nesse livro que tanto impressionou o espírito grosseiro desse caboclo? Qual seria a façanha que o levou a fazer desse livro o seu evangelho.32
Corroborando essa versão, há a publicação do jornal O Dia, de 17 de
dezembro de 1914.
Na organização do estado maior dos fanáticos, encontra-se a influência da História de Carlos Magno, tanto assim que em Taquaruçu existem os 12 Pares de França e, em poder de um jagunço, já as forças legais encontraram um exemplar daquele livro.33
28 CARVALHO, Adelmo de. Pirenópolis: coletânea 1727-2000.op.cit. p. 94-96, 98 e ss. 29 CABRAL, Oswaldo R. A campanha do Contestado op. cit., p. 180-181. 30 QUEIROZ, Maurício V. de. Messianismo e conflito social, op. cit., p. 125. 31 Depoimento de Benedito Pedro de Oliveira (Benedito Chato). Cit. MONTEIRO, Duglas T. Os errantes do novo século, op. cit., p. 235. 32 Diário da Tarde, Curitiba, edição de 1º de novembro de 1912. Cit. por BERNARDET, Jean Claude. Guerra camponesa no Contestado. Coleção Passado e Presente. São Paulo: Global Editora, 1979, p. 29. 33O Dia, Florianópolis, edição de 17 de dezembro de 1914. Cit. por ESPIG, Márcia J. A presença da gesta carolíngia no movimento do Contestado. Dissertação de Mestrado em História. UFRGS. Porto Alegre, 1998. p. 127.
Os Pares de França ficaram famosos pela bravura e por cometer crimes ao
longo da guerra. Supõe-se que os Pares estrearam no combate do Irani – marco do
início da guerra – a eles cabendo a morte do comandante da tropa atacante, capitão
Gualberto.34
Considerações finais
A semelhança de diversos autores, Aujor A. da Luz concluiu que, graças a
uma interpretação equivocada do significado da dignidade de “par” (igual,
semelhante), a guarda de elite inspirada nos Doze Pares foi formada erroneamente
por 24 cavalheiros.35 Para Luz, a ignorância e a incapacidade de compreensão do
“sentido” da palavra “Par” teriam aumentado o séquito de Carlos Magno.
No que se refere aos Pares e sua associação a devoção ao Divino, sabe-se
que em algumas localidades brasileiras a festa de Pentecostes é precedida da
comemoração das Cavalhadas, cujo término marca o início das comemorações.
Nessa cerimônia encenam-se batalhas em reminiscência à reconquista da Península
Ibérica, tendo como fonte de inspiração os contos de gesta transmitidos pela
tradição oral e a literatura popular. Os contendores são identificados pelos trajes e
emblemas heráldicos: doze mouros vestem roupas vermelhas e ostentam o
crescente, doze cristãos trajam uniforme azul e têm a cruz ou a pomba do Divino por
brasão. Após a encenação de lutas, o espetáculo termina com a derrota e a
conversão dos mouros, seguindo-se uma confraternização entre os cavaleiros que
terminam por formar “24” pares (dignidades).36 Justamente o número de cavaleiros
dos Pares de França do Contestado.
No Paraná há registros das Cavalhadas a partir do séc. XVIII. Os folcloristas
citaram a sua ocorrência nos municípios de Apucarana, Campo Largo, Clevelândia,
34 PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado: episódios e impressões. Edição do autor. 3 vols. Rio de Janeiro, 1916, p. 129. 35 LUZ, Aujor Ávila da. Os fanáticos: crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos. Florianópolis: Editora UFSC, 1999. p. 157. 36 MACEDO, José R. “Mouros e cristãos: a ritualização da conquista no velho e no novo mundo” in: Francisco das Neves Alves (org.). Brasil 2000 – Quinhentos anos do processo colonizatório: continuidades e rupturas. Rio Grande/RS: Fundação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FURG). 2000, p. 9-18.
Guarapuava, Imbituva, Morretes, Palmas, Paranaguá, Ponta Grossa, Rebouças e
São José dos Pinhais.37 Atualmente poucas são as localidades que preservam esse
folguedo, destacando-se Guarapuava e Palmas. Escassas são as referências sobre
as Cavalhadas em Santa Catarina (mas abundantes no tocante ao Divino), mas é
revelador observar que no Paraná, em municípios próximos à região do Contestado,
as Cavalhadas eram encenadas e sobreviveram, preservando a tradição inspirada
na saga dos Pares de França.
A respeito do assunto, em depoimento o “par” Clementino afirmou que
Eusébio e Manoel Rocha (chefes do movimento) “diziam que ia fazer mil anos da
Guerra de Carlos Magno”.38 A referência ao comandante dos Pares, Carlos Magno,
associa-se a uma mensagem milenarista condizente com a expectativa do advento
do imperador dos últimos dias, monarca encarregado de preparar a segunda vinda
de Cristo. Outras fontes ressaltam que a citação a Carlos Magno não era incomum
na região. Uma oração encontrada nos pertences de Jerônimo Antônio Pereira,
ajudante do comandante-geral do reduto de Santa Maria, cita: “Todas as pessoas
muito se ademiram do grande milagre e o Rei dos 12 pares de França mandou
descrever com palavras do Santo Evangelho”.39
A mensagem profética presente no discurso de integrantes do movimento
sugere que não só de festejos e Cavalhadas se fez a formação dos Pares. Numa
tentativa de apaziguar os ânimos, Frei Rogério Neuhaus deparou-se com situação
inusitada. Durante um encontro buscando a rendição dos rebeldes, Neuhaus teria
sido ofendido pelo neto do líder Eusébio, Manoel – um menino de aproximadamente
12 anos –, a quem os acampados tomaram por líder espiritual. Na ocasião o menino
teria assumido uma postura desafiadora, interpelando o frade: “O que o senhor quer
fazer aqui? Cachorro! Retire-se, senão apanha!”.40 Em sua defesa, Neuhaus teria
retorquido: “Respeitem os padres! [...] eles são ministros de Deus. Deus aqui nos vê.
37 RODERJAN, Roselys V. “Folclore no Paraná” in: Vasco José T. Ribas e Faissal el-Khatib (org.). História do Paraná. Vol. III. Curitiba: Grafipar, 1969. p. 162. 38 Depoimento de Clementino. Cf. QUEIROZ, Maurício V. Messianismo e conflito social, op. cit. p. 111. 39 “Oração de S. Salvador do Mundo”. Cit. por ASSUNÇÃO, Herculano T. de. A campanha do Contestado. Vol. 1., op. cit., p. 306. 40 SINZIG, Pedro. Frei Rogério Neuhaus. Petrópolis: Editora Vozes, 1939, p. 225.
Se me tocardes, Deus vos castigará!”. 41 Prosseguindo a discussão, em dado
momento, Querubina, avó do menino, teria respondido ao sacerdote: “Os padres não
valem mais nada”.42 Por fim, Neuhaus não conseguiu convencer Eusébio sobre o
risco iminente da ação militar e por pouco escapou de ser agredido. Expondo as
suas convicções, Eusébio teria concluído a discussão erguendo a espada e
proclamado o fim da autoridade dos sacerdotes e anunciando o despertar de uma
nova época: “Liberdade! Estamos agora em outro século!”.43
Ecos de um profetismo de inspiração joaquinista? Sebastianismo reeditado?
Muitas são as questões suscitadas pela presença de elementos constitutivos da
devoção ao Divino no Contestado e sua associação com o profetismo bíblico e o
milenarismo judaico-cristão, evidenciando um tema desafiador e que merece ser
aprofundado.
Referências
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41 Id. Ibidem. 42 Id. Ibidem, p. 226. 43 Id. Ibidem, p. 226.
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