a dialética como discurso do método - ricardo musse

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  • 8/14/2019 A Dialtica Como Discurso Do mtodo - Ricardo Musse

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    A dialtica como discurso do mtodo

    Ricardo Musse

    Georg Lukcs formou-se no mago da cultura burguesa, em estreita convi-

    vncia com os principais intelectuais hngaros e alemes. Aps o fim da

    Primeira Guerra Mundial, relativamente consagrado e reconhecido por seuspares entre eles Thomas Mann, Georg Simmel e Max Weber , para

    surpresa de todos aderiu ao marxismo. Apesar do pendor radicalmente an-ticapitalista de seus textos de juventude, a passagem da filosofia idealista eda crtica cultural ao marxismo desobedece qualquer lgica imanente. Em

    seu primeiro livro propriamente marxista,Histria e conscincia de classe, de1923, ele prprio chama a ateno para as circunstncias histricas, ao jus-

    tificar sua converso pela superioridade da explicao marxista do pre-

    sente, em especial da trade guerra, crise e revoluo.Histria e conscincia de classepouco alude a essa sbita transmutao.

    Embora uma srie de referncias cultura burguesa encontre-se dissemi-

    nada ao longo do livro, Lukcs parece mais interessado em posicionar-seno interior da tradio marxista. O Prefcio, por exemplo, ressalta comopropsito da obra determinar o ponto de vista do marxismo ortodoxo,

    por meio da compreenso e do esclarecimento da essncia do mtodo deMarx.

    A defesa da ortodoxia adquire um sentido preciso no cenrio de en-to, pautado pelo confronto entre concepes e prticas polticas bastantediferenciadas, um contraponto que ameaa instaurar a fragmentao e a

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    disperso na linhagem do marxismo. Ela delimita, de antemo, o campo

    em que Lukcs situa-se, isto , o movimento comunista agrupado na re-cm-fundada Terceira Internacional, uma ciso no interior do marxismo

    que se inicia com divergncias, no incio do sculo XX, acerca do carterda sociedade capitalista e do sentido da Revoluo Russa de 1905, masque se cristalizou apenas depois de 4 de agosto de 1914 e da revoluobolchevique, em outubro de 1917.

    Lnin e Rosa Luxemburgo j haviam estabelecido, no mbito poltico,

    os princpios dessa corrente, em especial sua diferena perante as alas dasocial-democracia com as quais se convivia, antes da Primeira Guerra, de

    forma mais ou menos pacfica no interior da Segunda Internacional. Na

    medida em que resume o propsito de seu livro, de forma genrica, comoa resoluo de determinadas questes tericas do movimento revolucio-

    nrio, Lukcs apenas se prope a complementar um corpusconstitudo a

    partir de crticas que adotaram como alvo prioritrio as concepes deKarl Kautsky segundo essa tendncia, a melhor encarnao do esprito

    prevalecente no partido social-democrata alemo (cf. Luxemburgo, 1974;Lnin, 1979).

    No que concerne discusso poltica propriamente dita, Lukcs pouco

    se afasta de Rosa Luxemburgo e de Lnin, ora aplainando as divergnciasentre eles, ora se orientando pendularmente em direes opostas. Sua am-bio terica, no entanto, vai alm. Procura determinar a essncia do m-

    todo de Rosa e de Lnin. O que, convenhamos, no seria demasiado, poisse parte da premissa de que esses esforos intelectuais e prticos derivamem linha direta de uma adequada compreenso da metodologia de Marx.

    Mas por que tanta nfase no mtodo, por que se concentrar em pressupos-tos e conseqncias metodolgicas de textos que prescindem, de forma

    deliberada, do tom auto-reflexivo?Histria e conscincia de classeno se prope apenas a resgatar a relevn-

    cia da estrutura terica subjacente aos textos para apresentar, em outroregistro, a trajetria poltica de Rosa Luxemburgo e de Lnin. Lukcs no

    cessa de reafirmar tambm, paradoxalmente, a pertinncia prtica do mar-xismo. A experincia histrica recente, com sua seqncia inaudita e ines-

    perada de acontecimentos extraordinrios a guerra imperialista, a crise

    do capitalismo e a vaga revolucionria que ento varria a Europa , s

    podia ser compreendida, segundo ele, pela vertente materialista. , por-tanto, como instrumento de conhecimento do presente histrico, como

    forma de acesso privilegiado compreenso do passado e do futuro da

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    sociedade burguesa, que o mtodo de Marx atualizado por Rosa

    Luxemburgo e Lnin constitui a base do marxismo ortodoxo.A fidelidade ortodoxia no reside mais, como ainda pensavam muitos

    adversrios do revisionismo de Bernstein, na pretenso de preservar aintegridade esttica do sistema de Marx. Assenta-se na capacidade emdestacar a essncia de sua metodologia: a dialtica concreta e histrica1.

    Lukcs ressalta os xitos dessa metodologia na resoluo de questes,

    de outro modo insolveis, exaltando sua fertilidade nos escritos de Rosa

    Luxemburgo e de Lnin. Mas no hesita em alertar que muitos aspectosabsolutamente essenciais do mtodo de Marx caram indevidamente no

    esquecimento, dificultando e quase impossibilitando uma compreenso

    apropriada da dialtica.Uma dimenso desse esquecimento tem nome prprio: Georg Wilhelm

    Friedrich Hegel. A omisso da dvida de Marx para com ele teria gerado

    trs graves deturpaes no marxismo da Segunda Internacional: a) a consi-derao da dialtica em Marx como um acrscimo estilstico a ser elimina-

    do em nome do interesse cientfico; b) o no-reconhecimento de que cate-gorias decisivas, utilizadas com freqncia em O capital, foram desenvolvidasantes na Cincia da lgica; c) a recusa da interpretao, estabelecida por

    Engels e reiterada por Plekhnov, que apresenta o movimento operriocomo herdeiro da filosofia clssica alem.

    A busca de conexes metodolgicas entre Hegel e Marx, o propsito

    explcito de suscitar, por meio desse material e dessa orientao repondona ordem do dia o debate sobre a dialtica, inscreve-se em um programamais abrangente. Trata-se de compreender a coeso efetiva e sistemtica

    do mtodo de Marx2.Na perseguio desse objetivo, Lukcs parece afastar-se, como admite

    no Prefcio, daquilo que seria a meta principal dessa linhagem: a inter-pretao de questes concretas da atualidade. As palavras de ordem emdefesa do marxismo ortodoxo uma vez posta assim a questo, em ter-mos metodolgicos obrigam-no a um desvio (aparentemente fiel sua

    essncia histrica) que o leva a adotar como objeto de investigao ora aprpria tradio, ora a interpretao da obra de Marx.

    Pode-se dizer ento que, a partir deHistria e conscincia de classe, o

    marxismo sofre uma inflexo pela qual o critrio de aferio da eficcia, da

    pertinncia e inclusive da veracidade e da validade de qualquer obra que sepretenda herdeira do legado de Marx vincula-se sua capacidade de dar

    conta, simultaneamente, de trs objetos distintos: o mundo atual, a hist-

    1. Um marxista ortodo-xo srio poderia [...] re-jeitar todas as teses par-ticulares de Marx, sem,no entanto, ser obriga-do, por um nico ins-tante, a renunciar sua

    ortodoxia marxista. Omarxismo ortodoxo nosignifica, portanto, umreconhecimento semcrtica dos resultados dainvestigao de Marx,no significa uma fnuma ou noutra tese,nem a exegese de um li-vro sagrado. Em mat-ria de marxismo, a or-todoxia se refere antes eexclusivamente ao mto-do (Lukcs, 2003, p.64).

    2.Marx, emMisria dafilosofia, um dos livros

    mais citados ao longo deHistria e conscincia declasse, lembra que a me-tafsica, a filosofia intei-ra, resume-se, segundoHegel, ao mtodo (2004,p. 120). Na seqncia,no entanto, ele apenascritica a metodologia deHegel e de Proudhon,

    sem expor de forma po-sitiva sua verso da dia-ltica.

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    ria do marxismo e a coerncia, lgica ou histrica, da doutrina de Marx.

    Lukcs pretende trazer ao primeiro plano determinados pressupostos econseqncias metodolgicos que no foram explicitados devidamente

    nem nos escritos de Marx, nem nos textos mais recentes de Rosa Luxem-burgo ou de Lnin, todos eles dotados de uma assombrosa pertinncia pr-tica. Procura assim destacar que a compreenso da atualidade, ou melhor, aprpria essncia prtica do marxismo depende de uma dimenso terica,

    latente e nem sempre visvel. Essa modesta pretenso constituiu apenas a

    pequena fresta de uma porta que posteriormente o marxismo dito ociden-tal nunca cessou de arrombar3.

    Explicitao recorrente de premissas e determinaes tericas, latentes

    no conjunto da obra ou na doutrina de Marx, o marxismo ocidental con-servou-se tributrio de uma reiterada opo de conceder primazia ao m-

    todo. Mas tambm cabe observar que, se essa linhagem, acompanhando a

    preocupao metodolgica deHistria e conscincia de classe, transformouo marxismo em um conjunto de discursos do mtodo, foi sob essa for-

    ma, hibernado em discusso terica, que ele conseguiu preservar esse lega-do, quando as condies para lev-lo adiante tornaram-se adversas.

    Visto retrospectivamente, o livro de Lukcs aparece como a fasca deto-

    nadora de uma srie logicamente previsvel. No entanto, tal posio de for-ma alguma estava posta de antemo. Afinal, a seqncia de autores e obrasque configura o marxismo ocidental se estabeleceu sob circunstncias bas-

    tante diversas da conjuntura terica e prtica na qual foram redigidos osartigos do livro.

    Histria e conscincia de classe impactou os contemporneos por motivos

    muito distintos de sua fortuna crtica posterior. Na Alemanha da dcada de1920, a recepo destacou sobretudo o diagnstico filosfico do presente

    histrico e sua tentativa de fornecer uma orientao para a ao. Com efei-to, foram os autores do marxismo ocidental que deslocaram a nfase, valo-rizando seu esforo de refinamento conceitual da metodologia marxista eda interpretao da obra de Marx.

    Por fim, no h como ignorar que, ao contrrio do que usualmente sepropaga, o livro de Lukcs no foi a primeira obra da vertente marxista a

    destacar o mtodo. Ele foi precedido por toda uma tradio, vigorosa so-

    bretudo na gerao de Labriola, Mehring, Kautsky e Plekhnov. No en-

    tanto, seu antecessor mais ilustre foi, sem dvida, oAnti-Dhring de Frie-drich Engels4.

    3. Marxismo ocidental a denominao consa-grada das tentativas deatribuirpost hocunida-de a um movimento quese desenvolveu de formaindependente e sem pla-

    no preestabelecido. Nalista de Perry Anderson,selecionada apenas entrealemes, italianos e fran-ceses, seus componentesseriam Georg Lukcs,Karl Korsch, HerbertMarcuse, Walter Benja-min, Antonio Gramsci,

    Max Horkheimer, Gal-vano Della Volpe, HenriLefebvre, Theodor Ador-no, Jean-Paul Sartre,Lucien Goldmann, LouisAlthusser e Lucio Colletti(cf. Anderson, 2004, p.46).

    4.Em polmica com

    Eduard Bernstein, KarlKautsky chega mesmoa dizer que o mto-do que resulta da apli-cao da concepo ma-terialista da histria poltica: graas a ele osocialismo tornou-seuma cincia [...]. Nosocialismo marxista o

    essencial o mtodo,no os resultados (apudHaupt, 1983, p. 369).

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    A cincia como pedra de toque

    A nfase no mtodo, no caso de Engels, parece ter sido involuntria.

    No Prefcio primeira edio doAnti-Dhring, em junho de 1878, eleexplica que, instado por companheiros da social-democracia alem a com-bater as idias de Eugen Dhring, que se apresentava como o mais recenteadepto e reformador do socialismo, aproveitou a ocasio para expor de

    forma positiva os assuntos mais diversos [...] concepes sobre questes

    controversas que apresentam hoje interesse cientfico e prtico mais geral(Engels, 1976, p. 5).

    O xito do livro surpreendeu Engels. Afinal, tratava-se da reunio de

    artigos j publicados em um importante, e amplamente difundido, rgoda imprensa operria alem, o jornal Vorwrts. Alm da demanda poucos

    anos depois por uma segunda edio, um opsculo agrupando alguns ca-

    ptulos doAnti-Dhring, com o ttuloDo socialismo utpico ao socialismocientfico, tornou-se rapidamente a mais popular introduo ao materialis-

    mo histrico, suplantando inclusive O manifesto comunista.A ampliao do peso intelectual e poltico do marxismo no ltimo quartel

    do sculo XIX e a expanso da ateno pblica para tudo o que concernia

    a esse movimento, assim como a proibio do livro pelo imprio alemo,ajudam a compreender, pelo menos parcialmente, esse sucesso editorial,como relata o prprio Engels. Ele, que, entretanto, ainda procuraria outras

    explicaes para a permanncia do interesse por esses artigos, posto que,por ocasio da segunda edio (1885), Eugen Dhring havia se tornadoum ilustre desconhecido. O segundo Prefcio acrescenta uma nova jus-

    tificativa: a crtica negativa resultou positiva; a polmica transformou-seem exposio mais ou menos coerente do mtodo dialtico e da ideologia

    comunista defendida por Marx e por mim, numa srie de domnios bas-tante vastos (Idem, p. 9).

    Somente a cautela e o comedimento de Engels em se posicionar comoco-fundador do materialismo histrico explicam seu cuidado em evitar

    ressaltar aquilo que salta aos olhos: oAnti-Dhring, em sua Introduo,reproduzida tambm emDo socialismo utpico ao socialismo cientfico, con-

    tm a apresentao sucinta de uma das lacunas da obra de Marx. Afinal,

    uma vez que esse texto foi escrito quando Marx ainda estava vivo, e a

    feitura do livro contou inclusive com sua colaborao (na redao de umdos captulos da parte consagrada economia poltica), no de se espan-

    tar que os contemporneos, e mesmo a posteridade, tivessem enxergado

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    ali a freqentemente exigida e ansiosamente aguardada exposio da me-

    todologia marxista.No Prefcio segunda edio, Engels apenas alude, modestamente,

    necessidade de tornar a dialtica, em toda a sua simplicidade e valor uni-versal, acessvel ao esprito, sem arrolar a apresentao do mtodo entre ascausas do sucesso editorial. No entanto, no resta dvida de que a chavedesse xito deriva, em grande parte, da recepo que tomou esse trecho,

    comum aos dois livros, como uma breve e autorizada exposio do mtodo

    de Marx. A maior novidade dessa apresentao que certamente no pas-sou despercebida aos contemporneos, tendo adquirido com o passar dos

    anos ares de naturalidade consiste no esforo de Engels, completamen-

    te ausente na obra de Marx, em descobrir e desenvolver as leis da dialticaa partir da natureza.

    Essa tentativa vincula-se sua crena de que o incessante acmulo de

    descobertas no mbito das cincias naturais as conduz inevitavelmente apercorrer os trilhos da dialtica. Haveria inclusive, segundo ele, uma com-

    pleta homologia entre esse domnio, com suas inmeras mutaes, e oreino da histria, no qual a trama aparentemente fortuita dos aconteci-mentos segue as mesmas leis, tambm presentes no desenrolar do pensa-

    mento humano. Nesse diapaso, Engels no hesita em afirmar que umaconcepo da histria, ao mesmo tempo dialtica e materialista, exige oconhecimento das matemticas e das cincias naturais (Idem, p. 10).

    Pode-se ver a, principalmente nessa ltima frase, a aposta de um pensa-dor que dedicou parte de seus ltimos anos de vida a acompanhar o avano,ento vertiginoso, do conhecimento da natureza. Ou mesmo o empenho

    em atualizar e complementar a doutrina de Marx, abordando assuntospouco tratados por ele, que passaram a desempenhar um papel decisivo no

    debate ideolgico da poca. Importa mais aqui, porm, destacar os delinea-mentos sobre os quais se firmou essa primeira verso do mtodo de Marx.

    Em sua exposio da dialtica, Engels, apesar de lhe conceder a prima-zia, no a pe em cena sozinha. Junto e incessantemente contraposto a ela,

    emerge outro mtodo filosfico, rival e concorrente, a especulao metaf-sica5. Para o adepto dessa metodologia, as coisas e suas imagens no pensa-

    mento, os conceitos, so objetos isolados de investigao, objetos fixos,

    imveis, observados um aps o outro, cada qual deper si, como algo deter-

    minado e perene (Idem, p. 20). A atribuio de rigidez ao objeto, a descri-o precisa de seus contornos, a determinao do mundo como um con-

    junto de coisas acabadas e imutveis, a observao estrita do princpio da

    5. Engels (1977b, p. 105)atribui a origem dessanomenclatura, hoje pou-co usual, a Hegel. Ima-gino que se trata de umaapropriao bastante livrede uma passagem daEn-ciclopdia, na qual se no-

    meia a primeira posiodo pensamento relativo objetividade comometafsica (1988, 26-36). Com esse termo,Hegel designa tanto o sa-ber filosfico anterior obra de Kant como ummodo de pensar direta-mente os objetos, pr-

    prio da filosofia incipien-te, das cincias, do agir eda prtica cotidiana.

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    no-contradio, a conexo irreversvel de causa e efeito devem muito de

    sua plausibilidade proximidade com o senso comum. No entanto, adver-te Engels, apesar de til entre as quatro paredes de uma casa, o senso co-

    mum revela-se pouco apropriado quando se arvora em mtodo cientfico.Dispensa-se o esforo de aferir, pela via do confronto de resultados, a

    superioridade da dialtica. Afinal, a prpria metafsica, uma vez aplicadade forma consciente na investigao cientfica, abre caminho para a per-

    cepo de suas limitaes. Unilateral e abstrato, esse mtodo enreda-se,

    segundo Engels, em contradies insolveis: atento a objetos determina-dos, no consegue enxergar as relaes; congelado no presente, no conce-

    be a gnese e a caducidade; concentrado na estabilidade das condies,

    no percebe a dinmica, obcecado pelas rvores, no consegue enxergar obosque.

    No molde de uma apresentao dicotmica, a dialtica surge, ponto a

    ponto, como o oposto simtrico da metafsica. No delimita de modo iso-lado os objetos, nem os toma como algo fixo e acabado. Ao contrrio, in-

    vestiga os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas e as insere emuma trama infinita de concatenaes e de mtuas influncias, em quenada permanece como era nem como existia. Nela, os plos da anttese,

    apesar de todo antagonismo, se completam e se articulam reciprocamen-te. A causa e o efeito, vigentes em um caso concreto, particular, se diluemna idia de uma trama universal de aes recprocas, na qual as causas e os

    efeitos trocam constantemente de lugar e o que antes era causa toma, logodepois, o papel de efeito e vice-versa (Idem, p. 21). Tampouco vigora oprincpio da no-contradio, pois, pelo menos no mundo orgnico, o ser

    ele mesmo, o que , e um outro.Engels expe brevemente essa dicotomia metodolgica, maneira do

    saber positivista predominante em sua poca, como uma seqncia evolutivade etapas e resultados. Mas tambm como um eco do itinerrio delineadopor Hegel na Fenomenologia do esprito, ou seja, como figuras de umaprogresso que , simultaneamente, lgica e histrica.

    A srie inicia-se com uma intuio primitiva e simplista da dialtica,presente na primeira filosofia grega. O mundo seria concebido como uma

    trama infinita de concatenaes, na qual nada permanece. A primeira for-

    mulao consistente dessa figura pode ser atribuda a Herclito, cuja

    filosofia resumida por Engels na frase tudo e no , pois tudo flui,tudo est sujeito a um processo constante de transformao, de incessante

    nascer e perecer (Idem, p. 20).

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    Semelhante viso, embora perfeitamente exata e congruente com a

    verdade das coisas, teria se mostrado pouco apropriada investigao doscomponentes que constituem o mundo. Assim, logicamente, teve de ce-

    der lugar a uma concepo que, destacando os elementos de seu troncohistrico ou natural, examina-os separadamente, cada um de per si, emsua estrutura, causas e efeitos. Historicamente, essa metodologia s seteria afirmado por completo a partir da segunda metade do sculo XV,

    com o nascimento das modernas cincias da natureza.

    Os procedimentos dessas cincias, em especial a anlise da natureza emsuas diferentes partes, a classificao dos diversos fenmenos e objetos na-

    turais em determinadas categorias, a investigao interna dos corpos org-

    nicos segundo sua diferente estrutura anatmica (Idem, p. 20), migraram,com Bacon e Locke, para a filosofia. Com raras excees, deslocadas do

    eixo principal da corrente filosfica predominante, a filosofia moderna,

    segundo Engels, incluindo os pensadores franceses do sculo XVIII, dei-xou-se contaminar pela especulao metafsica6.

    A filosofia do idealismo alemo e a trajetria das cincias naturais for-neceram as premissas para a constituio de uma nova etapa. O ritmo dedesenvolvimento das cincias, marcado pelo acrscimo ininterrupto no

    estoque de dados, teria aguado a conscincia crescente apesar da confu-so que ainda vicejaria entre os cientistas de que no mtodo metafsicoos fenmenos da natureza no so encarados dinamicamente, mas estati-

    camente, no so considerados como situaes substancialmente variveis,mas como dados fixos, dissecados como materiais mortos e no apreendi-dos como objetos vivos (Idem, ibidem). Esse avano das cincias naturais,

    conjugado com as novas tendncias da filosofia, possibilitou a restauraoda dialtica em uma forma superior, sinttica.

    Na apresentao de Engels, a dialtica marxista, descrita a partir de suasorigens, assume um carter bifronte. Por um lado, consiste em uma moda-lidade de apreenso do mundo, em uma concepo que encara as coisas esuas imagens conceituadas substancialmente em suas conexes, em sua

    filiao e concatenao, em sua dinmica, em seu processo de gnese e ca-ducidade. Mas tambm se configura, por outro lado, como mtodo ex-

    perimental, derivado de um saber cientfico que adota a explicao da

    natureza como pedra de toque (Idem, p. 21).

    A elevao da natureza condio de objeto de estudo privilegiado para acompreenso da dialtica no implica, porm, a desqualificao explcita de

    outros domnios. A nfase talvez decorra apenas da necessidade de demarcar

    6. As excees citadas porEngels soO sobrinho deRameau, de Diderot, eoDiscurso sobre a origeme os fundamentos da desi-

    gualdade entre os homens,de Rousseau.

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    Ricardo Musse

    uma posio e um terreno ainda pouco assentados. A histria humana e a

    atividade espiritual dela decorrente tambm se apresentam, em Engels,como campos frteis para a investigao das leis da dialtica.

    Passveis de apreenso sob a mesma metodologia, os territrios da na-tureza, da histria e do pensamento j haviam sido alvos de uma explica-o conjunta na obra de Hegel, primeiro estgio do moderno renasci-mento da dialtica. Essa tentativa, cujo mrito maior, segundo Engels,

    residiria no fato de ter colocado o mtodo dialtico novamente em pauta,

    fracassou por uma srie de motivos: no fundo, limitaes inerentes ao ho-mem e sua poca.

    Em rpidas consideraes sobre a dialtica hegeliana, Engels destaca so-

    bretudo dois pontos. Primeiro, o contgio do mtodo pelo idealismo, mar-ca distintiva dessa filosofia. Na medida em que no postula como fonte das

    idias as coisas e os fenmenos, antes visualizando estes como projees de

    uma idia existente no se sabe onde, antes da existncia do mundo(Idem, p. 22), Hegel teria subvertido, revirando do avesso, a concatenao

    efetiva do mundo. Desse modo, foi impelido a adotar posies acomoda-tcias, artificiosas, arbitrrias. Afora esse pendor idealista, pouco convin-cente para crebros educados nas modernas cincias da natureza, a filosofia

    hegeliana encontrar-se-ia perpassada por uma contradio insolvel entre omtodo, que no aceita a afirmao de verdades absolutas, e o sistema, que seapresenta como resumo e compndio de uma verdade absoluta.

    Tais observaes configuram, no entanto, mais que uma interpretaoprpria da obra de Hegel, desenvolvida com detalhes posteriormente emLudwig Feuerbach e o fim da filosofia clssica alem, de 1888, e na qual

    ressoam algumas das determinaes crticas estabelecidas na dcada de 1840pelos jovens-hegelianos. A nfase de Engels em temas clssicos da recepo

    do pensamento de Hegel, mas nem por isso menos polmicos, como oplatonismo e o modelo de sistema, indica as balizas mnimas a partirdas quais teriam sido estabelecidas, segundo sua tica, as premissas domarxismo.

    Contra essa idia existente no se sabe onde, Engels prope o restabele-cimento do materialismo. Mas no em sua verso racionalista, metafsica e

    mecnica, predominante na filosofia francesa do sculo XVIII, cujo conte-

    do j se havia corporificado na sociedade burguesa. Postula um materialismo

    apto a compreender o dinamismo da histria e da natureza, um materialismoque, apesar de consciente da total inverso em que o idealismo alemo in-

    correra, tenha como qualificao mais apropriada o termo dialtico.

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    O materialismo, nessa nova verso, substancialmente dialtico, no

    considera mais a natureza, como fizeram os filsofos franceses e mesmoHegel, como um todo permanente e inaltervel. Resumo organizado dos

    novos progressos das cincias naturais cujo cerne pode ser localizado natese segundo a qual a natureza tem tambm sua histria no tempo, o quesignifica que as espcies e os organismos, assim como os mundos que elashabitam, nascem e morrem , o materialismo proposto por Engels pres-

    cinde do esprito sistemtico: um sistema universal e compacto, definiti-

    vamente plasmado, no qual se pretende enquadrar as cincias da naturezae da histria incompatvel com as leis da dialtica (Idem, p. 23).

    O alvo de Engels, no entanto, aponta para algo mais que a crtica do

    apego de Hegel sistematizao. Segundo ele, nos ltimos anos, as cinciasque cuidam especificamente dos dois objetos prioritrios da dialtica, a na-

    tureza e a histria, teriam se desenvolvido o suficiente para atingir a maiori-

    dade. Uma vez incorporada a dialtica, para essas cincias e para o novomaterialismo que lhes inerente, j no h necessidade de uma filosofia

    superior, de um saber especialmente consagrado a estudar as concatena-es universais. Assim, cabe observar que, ao contrrio da percepo pelaposteridade no interior do prprio campo marxista, o socialismo cientfi-

    co, tal como proposto por Engels, no resulta de uma inverso da filosofiaidealista de Hegel, pois no se autocompreende mais como filosofia.

    No relato histrico das origens da dialtica materialista, Engels acompa-

    nha de forma concomitante a trajetria de duas fontes, a filosofia e a cincia.Essa bifurcao no deixa de repercutir em sua determinao do mtodo,ora descrito com traos de concepo filosfica, ora como pura metodologia

    cientfica. Nada disso, entretanto, impede o socialismo cientfico de seapresentar como superao dessa dicotomia. O novo materialismo, na me-

    dida em que se qualifica a si prprio como cincia, no se prope a ultrapas-sar apenas o pensamento de Hegel. a prpria filosofia, em sua totalidade,que se encontra sujeita condenao, explicitada na famosa frase: tudo omais se dissolve na cincia positiva da natureza e da histria.

    A dialtica do processo histrico

    Histria e conscincia de classe, por sua vez, retoma deliberadamente a

    primazia do mtodo. Antes de expor seu contedo, Georg Lukcs, nopropsito de recuperar a configurao original da dialtica, estabelece como

    premissa uma determinao que reputa essencial, enunciada de forma bre-

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    Ricardo Musse

    ve no dstico: A dialtica materialista uma dialtica revolucionria (2003,

    p. 64).Lukcs desdobra essa frmula em diversas variantes dialtica como

    lgebra, como veculo da revoluo etc. Com isso, busca ressaltar a impor-tncia da metodologia na determinao das condies de possibilidade daunidade entre teoria e prtica, destacando o vnculo estreito que articula,no marxismo, o mtodo com a transformao do mundo.

    Ao ressaltar esse nexo, Lukcs indica sua preocupao em transpor os

    termos sob os quais a questo do mtodo foi apresentada, sobretudo porEduard Bernstein e Rudolf Hilferding, durante o perodo de proeminncia

    poltica e terica da Segunda Internacional. Ele adverte que tal discusso

    no pode ser travada nos parmetros de um enfoque estritamente gnosiol-gico, nem ser restringida pelo esquadro de uma indagao puramente cien-

    tfica, na qual o mtodo pode ser rejeitado ou aceito, segundo o estado da

    cincia, sem que a atitude fundamental diante da realidade e do seu cartermodificvel ou imutvel sofra a menor mudana (Idem, p. 68).

    Na origem desses equvocos estaria, segundo Lukcs, nada mais nadamenos que a verso engelsiana da dialtica. No mnimo como parcela res-ponsvel, ainda que indiretamente, pela adoo posterior de um procedi-

    mento que se quer estritamente cientfico embora, na verdade, permaneaaqum do mtodo de Marx.

    Caso interesse uma distino que no deixa de redundar em uma clas-

    sificao um tanto quanto compartimentada, a contestao da apresenta-o engelsiana da dialtica, levada a cabo porHistria e conscincia de clas-se, desdobra-se, de modo geral, em dois movimentos distintos. Lukcs ora

    avalia a exposio concisa da dialtica, ensaiada na Introduo do Anti-Dhring, pela aplicao que outros autores lhe deram, ora a julga por si

    mesma, tomando-a como um todo coerente, ainda que independente eapartada do conjunto da obra de Engels.

    Histria e conscincia de classeaproxima, at quase a indistino, a dial-tica compendiada por Engels da apropriao cientificista do mtodo, des-

    dobrada pela gerao subseqente. Tal associao permite inferir conclu-so compartilhada pelos dois lados que se enfrentaram por ocasio e em

    torno da publicao do livro de Lukcs que Engels, apesar de suas co-

    nhecidas divergncias em relao prtica poltica reformista, no teria

    deixado de calar o terreno para tais deturpaes.Por outro lado, independentemente da questo da legitimidade da uti-

    lizao, no mnimo polmica, da obra do ltimo Engels pelos mentores da

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    Segunda Internacional (Eduard Bernstein em particular), alguns pontos

    precisos da exposio engelsiana (fortalecendo a veracidade da infernciaacima citada) foram includos por Lukcs diretamente no rol dos fatores

    que, jogando indevidamente no esquecimento aspectos absolutamenteessenciais, dificultaram uma adequada compreenso da dialtica.

    Entre eles, um ponto central sem dvida consiste na observao de queEngels teria descurado da essncia prtica da teoria. A conseqncia maior

    de tal descuido grave entre marxistas reside em sua contribuio, mes-

    mo que involuntria, para relegar a segundo plano ou pelo menos a umaesfera distinta a questo da transformao da realidade. Semelhante desa-

    teno pode ser atribuda nfase concedida por Engels ao carter cient-

    fico da dialtica ou pelo menos ao vnculo, que promoveu e intensificou,entre o mtodo do marxismo e o desenvolvimento cientfico.

    Lukcs recapitula, uma a uma, as determinaes da dialtica engelsiana:

    dissoluo da rigidez dos conceitos e dos objetos que lhes correspondem,passagem contnua de uma determinao a outra, permanente superao

    dos contrrios, substituio da causalidade unilateral e rgida pela intera-o recproca. Maculadas pela subordinao do marxismo s cincias natu-rais ou pelo fato de no se levar em conta a dimenso prtica da teoria, ou

    melhor, uma vez ausente a considerao metodolgica da relao dialti-ca do sujeito e do objeto no processo da histria, Lukcs avalia que taisdeterminaes seriam insuficientes para suplantar a perspectiva meramen-

    te contemplativa, prpria da cincia burguesa.Nunca demais lembrar o choque causado pela reivindicao de auten-

    ticidade totalmente inusitada dentro das fileiras do marxismo , mani-

    festada nessa acusao e reafirmada com todas as letras no Prefcio deHistria e conscincia de classe. Lukcs se auto-atribui representante, contra

    o prprio Engels, do ponto de vista do marxismo ortodoxo.Desviando, entretanto, a ateno do escndalo ou mesmo das conse-

    qncias polticas de semelhante crtica, torna-se possvel discernir nos ter-mos da acusao, na contraposio implcita, uma primeira determinao

    positiva da verso lukacsiana da dialtica. A dualidade, enfatizada reitera-damente, entre os plos contemplativo e ativo (prtico) recobre, mas tam-

    bm contribui para delimitar, uma distino mais essencial que ope, de

    um lado, a cincia burguesa e, de outro, a ao revolucionria. Tal diferen-

    a, por sua vez, permite esclarecer as diversas modalidades de ncoras quesustentam as verses, bastante distintas, da dialtica conforme Engels ou

    segundo Lukcs.

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    Ricardo Musse

    A interpretao elaborada emHistria e conscincia de classeacusa Engels

    de ter deixado de investigar, tanto na teoria como na maneira como elapenetra nas massas, esses momentos e essas determinaes que fazem da

    teoria, do mtodo dialtico, o veculo da revoluo (Idem, p. 65). Negli-genciando os aspectos histricos ou mesmo polticos da questo, ou seja, apartir de um ponto de vista estritamente lgico, essa censura assenta-sesobretudo em uma discrepncia conceitual, aqui reduzida ao mnimo:

    Lukcs considera a condio prvia da dialtica revolucionria, seu mo-

    mento indispensvel, uma determinao totalmente ausente da exposioengelsiana do mtodo a unidade de teoria e prtica.

    A importncia dessa determinao, responsvel, de certo modo, por

    um novo desenho da dialtica, vai alm de sua capacidade em configurar, maneira de um plo magntico, uma reorganizao geral das articulaes

    metodolgicas. Ela se manifesta tambm na forma como Lukcs articula

    teoria e mtodo. Embebido nessa relao, o mtodo dialtico, essnciaterica da teoria marxista, possibilita uma outra redefinio pela qual a

    teoria passa a ser concebida como expresso pensada do prprio processorevolucionrio.

    Tudo isso no resulta apenas da ancoragem da dialtica na relao entre

    teoria e prtica. Deve ser atribudo sobretudo ao intermedirio que Lukcsposiciona como mediador entre esses dois termos. Como se sabe, os desdo-bramentos da essncia prtica da teoria, consolidados no lema unidade

    de teoria e prtica, dependem, no arcabouo deHistria e conscincia declasse, da elevao conceitual doproletariado condio de sujeito e objeto doprocesso histrico, mediando assim a relao entre conscincia e realidade:

    Somente quando for dada uma situao histrica na qual o conhecimento exato da

    sociedade tornar-se, para uma classe, a condio imediata de sua auto-afirmao naluta; quando, para essa classe, seu autoconhecimento significar, ao mesmo tempo,

    o conhecimento correto de toda a sociedade; quando, por conseqncia, para tal

    conhecimento, essa classe for, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento

    e, portanto, a teoria interferir de modo imediatoe adequado no processo de revolu-

    o social, somente ento a unidade da teoria e da prtica, enquanto condio

    prvia da funo revolucionria da teoria, ser possvel (Idem, p. 66).

    A indiferena em relao ao vnculo que une dialtica e proletariadoteria contribudo, ou at mesmo provocado, a capitulao metodolgica

    do marxismo s normas do saber burgus. Esse feito foi, em geral, compu-

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    tado sobretudo como resultado da apropriao da exposio esboada no

    Anti-Dhringpelos tericos da Segunda Internacional e quase nunca comouma responsabilidade do prprio Engels. Lukcs, no entanto, como vi-

    mos, em sua reconstituio da questo, deliberadamente polmica, atribuipesos idnticos apropriao dos seguidores e verso engelsiana do m-todo dialtico.

    Alm do descuido em relao dimenso revolucionria ou, em termos

    mais brandos, determinao prtica da teoria, manifesta na despolitizao

    do mtodo, inerente sua ancoragem nos progressos da cincia, Lukcsacrescenta outra acusao. Tanto Engels como a gerao subseqente teriam

    adotado de forma indiscriminada as cincias naturais como regra e modelo.

    Histria e conscincia de classeatribui essa subordinao da teoria e domtodo a ditames e desdobramentos de uma tradio de conhecimento

    para a qual indiferente a considerao da dimenso histrica. Mas tam-

    bm reitera que semelhante restrio resulta, paradoxalmente, de uma hybris:Engels teria se afastado do modelo marxista que concebe a teoria, atenta

    s relaes que o saber estabelece com o objeto, como expresso pensadado prprio processo revolucionrio na medida em que no restringiu aaplicabilidade da dialtica realidade histrico-social:

    Os equvocos surgidos a partir da exposio de Engels sobre a dialtica baseiam-se

    essencialmente no fato de que Engels seguindo o mau exemplo de Hegel esten-

    de o mtodo dialtico tambm para o conhecimento da natureza. No entanto, as

    determinaes decisivas da dialtica (interao entre sujeito e objeto, unidade de

    teoria e prtica, modificao histrica do substrato das categorias como fundamen-

    to da sua modificao no pensamento etc.) no esto presentes no conhecimento

    da natureza (Idem, p. 69, nota).

    Ante tamanha insistncia, impe-se a ressalva: Lukcs no estaria sendodemasiado drstico, aproximando indevidamente os dois patamares, o dasdeterminaes da verso da dialtica formulada por Engels com o das apro-

    priaes perpetradas por seus seguidores no ambiente intelectual (e polti-co) da Segunda Internacional?

    Tal indagao adquire maior pertinncia quando se observa que Eduard

    Bernstein, por exemplo, inverteu completamente a estratgia de Engels.

    Em lugar de procurar oxigenar as cincias da natureza, investigando, emsua lgica prpria, afinidades que apontem no sentido de uma progressiva

    aproximao ao procedimento dialtico, Bernstein considera o mtodo

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    corriqueiro emprico e matematizante, logo no dialtico das cincias

    naturais como modelo adequado para o marxismo7. No seria, portanto,muita caturrice de Lukcs associar coisas to distintas como a idolatria do

    mtodo das cincias naturais, por parte dos tericos da Segunda Interna-cional, e a (ilusria) percepo engelsiana de que a natureza tambm esta-ria sujeita s leis da dialtica?

    As passagens deHistria e conscincia de classe que procuram refutar a

    incorporao, por marxistas, do mtodo das cincias naturais, apesar de

    assentarem sua bateria unicamente sobre os epgonos de Engels, no dei-xam de reforar essa continuidade. No dissociam, como seria de se espe-

    rar, interpretaes dialticas ou no dialticas dos mtodos das cincias

    naturais. Antes, concedem o mesmo tratamento, embora nunca o mesmoespao, s duas metodologias.

    O primeiro ensaio deHistria e conscincia de classe(O que marxismo

    ortodoxo), por exemplo, indaga acerca do significado metodolgico doempirismo. Lukcs no se limita a observao de que a mera enumerao

    dos fatos relevantes para o conhecimento que, como se sabe, varia confor-me os objetivos do saber j pressupe uma interpretao e, com ela, ummtodo e uma teoria, o que alis se tornou lugar comum aps Hegel ou

    Max Weber. Atribui a adaptabilidade dos dados percebidos ao padro deconhecimento imposto pelas regras das cincias naturais a incorporao

    ao saber de fatos puros por meio de procedimentos tais como a observa-

    o, a abstrao e a experimentao a uma iluso socialmente necessria,constitutiva da prpria sociedade capitalista.

    Recorre-se assim teoria do fetichismo da mercadoria, delineada por

    Marx em O capital. A reduo dos fenmenos sua dimenso quantitati-va, condio prvia de sua expresso em nmeros e em relaes numri-

    cas, decorre do prprio desenvolvimento histrico do capitalismo:

    O carter fetichista da forma econmica, a reificao de todas as relaes humanas,

    a extenso sempre crescente de uma diviso do trabalho, que atomiza abstratamen-

    te e racionalmente o processo de produo, sem se preocupar com as possibilidades

    e capacidades humanas dos produtores imediatos, transformam os fenmenos da

    sociedade e, com eles, sua apercepo (Idem, p. 72).

    A teoria de Lukcs, ao adotar como vetor explicativo o fenmeno dofetichismo, descola-se substancialmente das consideraes de Engels. No

    entanto, sua descrio dos procedimentos correntes no saber tradicional,

    7.Segundo Bernstein,os desvios de Marx dostrilhos da cincia deve-riam ser atribudos suadesconsiderao dos da-dos empricos, matriz deuma srie de constru-es arbitrrias. Assim,seus equvocos resulta-riam principalmente douso indiscriminado domtodo dialtico (cf.

    Bernstein, 1982, pp.111-133).

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    primeira vista, mantm-se consoante com as determinaes do mtodo

    metafsico, estabelecidas emAnti-Dhring.Histria e conscincia de classeapresenta o procedimento em que um fenmeno da vida transportado,

    realmente ou em pensamento, para um contexto que permite estudar asleis s quais ele obedece sem a interveno perturbadora de outros fen-menos (Idem, p. 71), matriz dos sistemas parciais isolados e isolantes,como resultado de uma determinao prpria e histrica (isto , nem na-

    tural, nem perene) da sociedade burguesa.

    Conclui, assim, que os equvocos resultantes da adoo dessa metodo-logia padro tornam-se evidentes quando se confronta a necessidade ine-

    rente ao mtodo das cincias naturais de trabalhar com dados constantes

    e invariveis com a realidade, permanentemente mutvel, da evoluo his-trica. Por conseguinte, a simples considerao histrica dos fatos parece

    suficiente para pr em dvida a exatido e a objetividade desse mtodo.

    Dessa forma, Lukcs reitera, ainda que pontualmente, os ensinamentosde Engels, a quem alis concede os crditos necessrios. Mas no se trata de

    uma incorporao tout courtdo mtodo apresentado noAnti-Dhring. Anfase engelsiana na incessante mutabilidade dos fatos adquire, em Lukcs,uma funo teraputica, na medida em que possibilita uma inicial apreen-

    so dos erros inerentes a uma metodologia explicitamente no dialtica.Lukcs s acompanha a exposio engelsiana at esse ponto. Quando se

    trata de restabelecer a objetividade do conhecimento, ou mesmo quando o

    diagnstico aprofunda-se, buscando esclarecer os fatores que concedem aomtodo das cincias naturais sua espantosa naturalidade, as determinaescom que configura sua verso da dialtica tomam uma direo oposta ao

    caminho ensaiado por Engels.O vetor principal no consiste na considerao de que os fatos esto

    envolvidos num processo de contnua mudana, mas antes na observaode que so, precisamente na estrutura de sua objetividade, produtos deuma poca histrica determinada: a do capitalismo (Idem, p. 74). O tra-tamento histrico-dialtico a que os dados devem ser submetidos depende

    assim da apreenso de seu condicionamento histrico, ou melhor, de suasmediaes. Dessa forma, Lukcs instaura uma distino primordial entre

    sua existncia real e seu ncleo interior, entre representaes e conceitos,

    premissa indispensvel compreenso do carter necessrio da aparncia

    fenomenal8.A objetividade do conhecimento, por conseguinte, s se torna possvel

    quando as determinaes fatuais, primeira vista simples, puras, imedia-

    8.Segundo Lukcs,essa dupla determina-o, esse reconhecimen-to [do carter necess-rio da aparncia] e essasuperao simultnea do

    ser imediato, constitui justamente a relaodialtica (2003, p. 76).

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    Ricardo Musse

    tas e naturais no mbito do capitalismo, perdem sua condio de dados

    inquestionveis e passam a ser compreendidas como momentos de umatotalidade concreta como reproduo intelectual da realidade. Sem a

    apreenso dos condicionamentos histricos, bem como da necessidadeinerente forma que sua apreenso adquire na sociedade capitalista, per-manece-se ainda no campo oposto:

    Aquela cincia que reconhece como fundamento do valor cientfico a maneira

    como os fatos so imediatamente dados, e como ponto de partida da conceitualiza-

    o cientfica sua forma de objetividade, coloca-se simples e dogmaticamente no

    terreno da sociedade capitalista (Idem, p. 74).

    Consuma-se assim o veredicto acerca da verso engelsiana da dialtica.

    Esta se apresenta como insuficiente, uma vez que no vai alm da simples

    constatao de mutabilidade dos fatos (que pode inclusive se dar dentro deuma mesma ordem social, desde que considerada temporalmente), ou de

    sua incluso em um processo contnuo e ininterrupto. Lukcs reivindicaque a compreenso do carter histrico de um dado fatual qualquer estejavinculada apreenso dos condicionamentos que o configura como mo-

    mento determinado de uma totalidade scio-histrica.As determinaes da dialtica engelsiana (dissoluo da rigidez dos con-

    ceitos e dos objetos que lhes correspondem, passagem contnua de uma

    determinao a outra, permanente superao dos contrrios, substituioda causalidade unilateral e rgida pela interao recproca) nada significam,segundo Lukcs, sem a considerao metodolgica da relao dialtica do

    sujeito e do objeto no processo da histria.

    A perspectiva da totalidade

    Os equvocos da exposio engelsiana da dialtica, entretanto, no de-correm apenas de uma indevida incorporao do conhecimento da nature-

    za e da cientificidade que lhe prpria. Segundo Lukcs, assentam-se tam-bm em uma compreenso incorreta da relao entre Marx e Hegel.

    Como se sabe, o ltimo Engels apresenta a metodologia do marxismo

    como uma confluncia na qual um dos troncos consiste na inverso mate-

    rialista da dialtica hegeliana premissa indispensvel para a superao doplatonismo que lhe caracterstica. A possibilidade dessa metamorfose,

    de certo modo, seria fornecida pelo prprio carter revolucionrio do m-

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    todo hegeliano, em flagrante e permanente contradio com o esprito

    conservador do sistema. O descompasso entre a dialtica incompatvelpor definio com afirmaes absolutas e o empenho sistemtico de

    Hegel em apresentar sua filosofia como resumo e compndio de umaverdade absoluta impe, na viso de Engels, o giro materialista como umdesdobramento quase diria necessrio desse pensamento.

    Lukcs no rejeita propriamente a tese que considera o materialismo

    histrico o herdeiro do idealismo alemo. Antes, procura at mesmo

    aprofund-la, e para tanto no hesita em alterar o qualificativo da relaoentre Hegel e Marx de desdobramento para prolongamento. Entre-

    tanto, ao contrrio de Engels, Lukcs concede pouca nfase ao giro mate-

    rialista. Segundo ele, a maneira como se praticou essa inverso (em Engelse em seus epgonos na Segunda Internacional) no deixou de provocar um

    enfraquecimento do empenho sistmico, acarretando uma fragmentao

    que dispersou o conhecimento em esferas autnomas, semelhana dateoria de Max Weber.

    Em contraposio a esse diagnstico, Lukcs salienta que Marx conse-guiu transmudar a dialtica hegeliana em lgebra da revoluo sobretu-do porque se ateve sua matriz principal (totalmente ignorada por Engels),

    categoria, ou melhor, ao ponto de vista da totalidade.O domnio do todo sobre as partes, configurado por meio da apreenso

    dos mltiplos fenmenos parciais como momentos do todo, como parce-

    las de um mesmo processo, torna-se, em Histria e conscincia de classe,fator decisivo para a definio do campo marxista. Identificado com aessncia do mtodo de Marx, o ponto de vista da totalidade sobrepujaria

    inclusive outras determinaes, consideradas at ento suficientes paradelimitar suas diferenas diante da cincia burguesa, como o predomnio

    de motivos econmicos na explicao da histria ou mesmo a prtica decontrapor sociedade burguesa contedos revolucionrios.

    Segundo essa perspectiva, que ressalta a importncia da categoria tota-lidade para a compreenso da metodologia do materialismo histrico, a

    aproximao entre Marx e Hegel seria maior que a proximidade entre Marxe a maioria dos tericos, declaradamente marxistas, da social-democracia:

    Mesmo a polmica materialista contra a concepo ideolgica da histria dirigida

    bem mais contra os epgonos de Hegel do que contra o prprio mestre que, a esserespeito, estava muito mais prximo de Marx do que este pde imaginar em sua

    luta contra a esclerose idealista do mtodo dialtico. O idealismo absoluto dos

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    Ricardo Musse

    epgonos de Hegel chega, com efeito, a dissolver a totalidade primitiva do sistema,

    a separar a dialtica da histria viva [...]. Contudo, o materialismo dogmtico dos

    epgonos de Marx repete a mesma dissoluo da totalidade concreta da realidade

    histrica. Se o mtodo dos epgonos de Marx no degenera, como o dos epgonosde Hegel, num esquematismo intelectual vazio, ele se atrofia numa cincia espec-

    fica e mecanicista, em economia vulgar (Idem, pp. 116-117).

    Uma primeira conseqncia de se considerar a dialtica conforme a

    perspectiva da totalidade seria, portanto, a exigncia de superar as distin-es abstratas sobretudo no que tange relao entre sujeito e objeto do

    conhecimento, premissa inicial da constituio de domnios autnomos

    de pesquisa, separados em decorrncia da diviso intelectual do trabalho e daespecializao cientfica. Trata-se de redirecionar o conhecimento para con-

    siderar a sociedade uma totalidade, recomendao enfatizada na clebre

    passagem: Para o marxismo, em ltima anlise, no h, portanto, umacincia jurdica, uma economia poltica e uma histria etc. autnomas;

    mas somente uma cincia histrico-dialtica, nica e unitria, do desen-volvimento da sociedade como totalidade (Idem, p. 107).

    Certamente, Lukcs no ignora a necessidade, durante o processo de

    elaborao do conhecimento, de isolar e abstrair elementos de um amplocampo de investigao, de focalizar complexos de problemas ou ainda decondensar conceitos de um dado campo de estudos. Para ele, porm, o

    decisivo consiste em saber se esse isolamento apenas um meio para o co-nhecimento do todo, inserido como momento determinado de uma cone-xo total, ou se o conhecimento abstrato de regies parciais isoladas preser-

    va sua autonomia, convertendo-se, maneira da cincia burguesa, emfinalidade prpria.

    No transplante da dialtica de Hegel para Marx nem tudo, como seriade se esperar, permanece idntico. Na medida em que, para Lukcs, o m-todo de Marx apresenta-se como a continuao conseqente do que He-gel havia almejado, mas que no obtivera concretamente (Idem, p. 92), o

    prolongamento da dialtica hegeliana inclui algumas correes. No quetange perspectiva da totalidade, a modificao mais substancial diz res-

    peito necessidade de que essa categoria determine no s o objeto, mas

    tambm o sujeito do conhecimento.

    A cincia burguesa, em especial a economia clssica, mantm-se presa considerao dos fenmenos sociais a partir da perspectiva do indivduo (o

    agente capitalista). Despreza-se assim, na perspectiva de Lukcs, simulta-

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    neamente, duas caractersticas primordiais da dialtica a exigncia da

    totalidade tanto como objeto determinado como sujeito que determina.Hegel, por sua vez, embora encare o objeto como totalidade, s preen-

    che metade dos requisitos, j que hesita entre o ponto de vista do grandehomem e o do esprito abstrato do povo (Idem, p. 108).

    Marx, porm, particularmente em O capital, na medida em que con-sidera os problemas de toda a sociedade capitalista como problemas das

    classes que a constituem, sendo a dos capitalistas e a dos proletrios apreen-

    didas como conjuntos, atinou para o papel-chave do conceito de classe.Descortina assim um sujeito que, na sociedade moderna, para se pensar a

    si mesmo obrigado a pensar o objeto como totalidade.

    Parte-se, portanto, da premissa de que o ponto de vista do indivduono pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos

    de um domnio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmen-

    trio: a fatos desconexos ou a leis parciais abstratas. Nesse diapaso, atotalidade s pode ser determinada se o sujeito que a determina ele mes-

    mo uma totalidade (Idem, p. 107). Lukcs reconstitui assim o marxismocomo uma forma de saber umbilicalmente vinculada ao proletariado9.

    Afinal, uma vez que a superioridade cientfica e metodolgica do ponto

    de vista de classe sobre a perspectiva individual assenta-se no fato de que so-mente a classe, por sua ao, pode penetrar a realidade social e transform-laem sua totalidade (Idem, p. 125), a nica classe capaz de promover a espera-

    da modificao social, garantindo, ao mesmo tempo, a unidade de teoria eprtica, seria o proletariado. Recuperando uma frase clebre de Marx, noManifesto do Partido Comunista, que identifica o proletariado como execu-

    tor da sentena de morte proferida pela burguesia contra si mesma, Lukcsconclui que o proletariado, ao reconhecer sua situao, age, e ao combater o

    capitalismo, reconhece sua situao (Idem, p. 127).O giro principal efetivado por Marx em relao ao mtodo de Hegel,

    portanto, segundo Lukcs, no consiste precisamente na passagem do idea-lismo para o materialismo como s vezes sugere o prprio Marx, e Engels

    no cessava de reiterar. O mais decisivo foi a transio do ponto de vista doindivduo para a perspectiva das classes sociais.

    Histria e conscincia de classeressalta ainda que, ao adotar a perspectiva

    da totalidade, Marx teria transplantado diretamente de Hegel no apenas a

    considerao de todos os fenmenos parciais como momentos do todo oua identidade entre sujeito e objeto, mas tambm a compreenso do proces-

    so dialtico como unidade de pensamento e experincia. Segundo ele, esse

    9.Lukcs contesta a se-parao, prpria da so-

    cial-democracia alem elevada ao extremo porRudolf Hilferding (cf.Prefcio a O capitalfinanceiro [1985]), en-tre o marxismo comocincia objetiva e o so-cialismo como tendn-cia latente na sociedade.

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    38 7 junho 2005

    Ricardo Musse

    modo de conceber o vnculo entre lgica e histria tornou-se um fator

    determinante no recente renascimento do marxismo, consagrado nas obrasdecisivas de Lnin e Rosa Luxemburgo respectivamente, O estado e a

    revoluo eA acumulao do capital.Lukcs detecta a manifestao dessa unidade de conceito e temporalida-

    de em partes pouco valorizadas e mal compreendidas desses livros, em tre-chos dedicados a balanos histricos da literatura produzida sobre a questo

    em pauta, como o caso dos segundo e terceiro captulos do livro de Lnin,

    A experincia de 1848-1851 e A experincia da Comuna de Paris(1871), e da segunda parte do de Rosa, Exposio histrica do problema.

    Diferentemente do ato de tomar em considerao os precursores, t-

    pico da cincia burguesa (mas tambm dos tericos da social-democracia),distante da enumerao infindvel e despropositada do especialista, Lnin

    e Rosa teriam conseguido desenvolver nesses captulos a to almejada uni-

    dade de teoria e histria:

    Devido a essa relao com as tradies de mtodo e de exposio referentes a Marx

    e a Hegel, Lnin fez da histria do problema uma histria interna das revolues

    europias do sculo XIX; a abordagem histrico-literria dos textos por Rosa

    Luxemburgo se desenvolve numa histria das lutas em torno da possibilidade e daexpanso do sistema capitalista (Idem, p. 118).

    Esse mtodo, segundo Lukcs, est presente em Marx j em sua pri-meira obra acabada, completa e madura,Misria da filosofia, por meio dacrtica direta das verdadeiras fontes de Proudhon (Ricardo e Hegel). E

    estrutura tambm outros livros de Marx, como O capital e Teorias sobre amais-valia, ainda que sob uma forma modificada e menos ntida.

    Desse modo, o procedimento de reconstruir o processo histrico pormeio de um exame dialtico da literatura disponvel acerca dos temas abor-dados atesta mais que a pertinncia e a eficcia do predomnio da perspec-tiva da totalidade. Indica tambm que:

    O mtodo filosfico de Hegel, que sempre foi de maneira mais convincente na

    Fenomenologia do esprito histria da filosofia e filosofia da histria ao mesmo

    tempo, jamais foi abandonado por Marx em relao a esse ponto essencial. Pois, a

    unificao hegeliana dialtica do pensamento e do ser, a concepo de sua unida-de como unidade e totalidade de um processo, formam tambm a essncia da

    filosofia da histria do materialismo histrico (Idem, p. 116).

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    A dialtica como discurso do mtodo, pp. 367-389

    Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 138 8

    Lukcs explicita assim o mtodo inerente, ainda que inconsciente, de

    Lnin e Rosa Luxemburgo como a realizao efetiva do programa do idea-lismo alemo. Desse modo, no deixa de situar, pelo menos no que tange

    a essas obras especficas, esses dois autores como pontos inaugurais daque-le movimento que a posteridade nomeou como marxismo ocidental.

    A juno, que teria sido promovida desde Marx, de histria da filosofiae filosofia da histria, do a priori e do a posteriori, da teoria e da experincia,

    do lgico e do histrico, serve tambm de guia para quem queira evitar os

    dilemas em que se enredam as tentativas de, num trnsito de mo nica,compreender as formaes ideolgicas, tpicas da superestrutura, unica-

    mente a partir da base objetiva da sociedade.

    Seja qual for o tema em discusso, o mtodo dialtico trata sempre do mesmo proble-

    ma: o conhecimento da totalidade do processo histrico. Sendo assim, os problemas

    ideolgicos e econmicos perdem para ele sua estranheza mtua e inflexvel e se

    confundem um com o outro.A histria de um determinado problema torna-se efetiva-

    mente uma histria dos problemas. A expresso literria ou cientfica de um problema

    aparece como expresso de uma totalidade social, como expresso de suas possibili-

    dades, de seus limites e de seus dilemas. O estudo histrico-literrio do problema

    acaba sendo o mais apto a exprimir a problemtica do processo histrico. A histriada filosofia torna-se filosofia da histria (Idem, p. 117).

    , portanto, sob a gide da filosofia da identidade que a categoria datotalidade justifica, em Lukcs, o trnsito de mo dupla entre fenmenosobjetivos e subjetivos, economia e superestrutura, que se tornar, a partir

    de ento, uma das marcas distintivas do marxismo ocidental.

    Referncias Bibliogrficas

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    BERNSTEIN, Eduard. (1982),Las premissas del socialismo y las tareas de la socialdemocracia.

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    Ricardo Musse

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    ______. (2004),A misria da filosofia. So Paulo, cone.

    Resumo

    A dialtica como discurso do mtodo

    Uma vertente da tradio marxista adota como critrio de filiao a essa linhagem a

    fidelidade metodologia de Marx. Este, no entanto, no escreveu nada semelhante a

    um tratado sobre o mtodo. A questo do mtodo tornou-se assim ponto de litgio.

    Examinam-se, aqui, pela via do confronto, as exposies metodolgicas de Friedrich

    Engels e Georg Lukcs, adotando por fio suas concepes sobre natureza e histria,

    teoria e prtica, bem como suas avaliaes acerca das relaes entre Marx e Hegel.

    Palavras-chave: Mtodo; Dialtica; Marxismo; Marxismo ocidental.

    Abstract

    Dialetics as method work ing process

    A line of the Marxist tradition adopts as an affiliation criterion to it the fidelity to the

    methodology of Marx. He, however, never wrote anything similar to a treaty on the

    method. The question of the method became thus a point of disagreement. Here are

    examined, through confrontation, the methodological expositions of Friedrich Engels

    and Georg Lukcs, adopting as a line their conceptions on nature and history, theory

    and practice, as well as their evaluations about the relationship between Marx and Hegel.Keywords: Method; Dialectics; Marxism; Western marxism.

    Texto recebido em 11/3/2005 e aprovado em12/4/2005.

    Ricardo Musse dou-tor em Filosofia e pro-fessor no Departamen-to de Sociologia da USP.E-mail: [email protected].