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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 1745
A FORMAÇÃO DO DIREITO SOCIAL EM LEGISLAÇÕES MINEIRAS DA DÉCADA DE 1920
Marlos Bessa Mendes da Rocha1
O trabalho completo apresenta uma pesquisa sobre três legislações surgidas nos anos
de 1920 no Estado de Minas Gerais. A primeira refere-se à lei 800, de 27 de setembro de
1920 (reorganiza o ensino primário do Estado e contém outras disposições); a segunda
produz a regulamentação da lei 800, aprovada apenas em 1924; e a terceira cria o novo
regulamento de ensino, em 1927, conhecido como reforma Francisco Campos. O suposto é de
que a legislação expressa um tempo histórico, vale dizer, mais do que intenções de elites
governantes, elas são expressão de uma época, com seus problemas, que a legislação busca
enfrentar, bem como de valores que ordenam o tratamento das questões. A hipótese que
procuramos demonstrar é de que tais legislações são indicadoras de um novo tempo histórico
que vem se constituindo, qual seja o do direito social à educação. Tal direito não está em
continuidade com a educação como obrigação civil ou como razão política, conforme se
estruturou ao longo do séc. XIX. Trata-se agora do direito social dos indivíduos, significando
isso um processo de reestruturação da cidadania vigente entre nós brasileiros.
O que buscamos observar é como ocorre a estruturação dessa cidadania educacional,
sem qualquer paradigma valorativo prévio do que seja cidadania. Diga-se que o processo
histórico de constituição do direito social à educação é mais amplo, pois já vem ocorrendo
desde meados do Oitocentos no Ocidente, incluindo nações próximas, como Argentina, Chile,
Uruguai que adentraram as transformações ao final daquele século. Assim, fomos um tanto
retardatários na entrada ao novo tempo, pois só o fizemos no início da quarta década
republicana. O fato de existir precedentes históricos de inúmeros outros países, entretanto,
não pode significar precedência de modelos, pois o nosso passado nos distingue
historicamente. A dificuldade de análise desses documentos se dá justamente no hibridismo
do tempo histórico nessa fase. Por mais que possamos perceber rupturas constitutivas do
novo tempo, com o surgimento de aspectos significativamente novos nos argumentos
formulados, há, ainda assim, heranças passadas muito fortes que marcam as instituições
educacionais.
1 Universidade Federal de Juiz de Fora. E-Mails: <[email protected]> e <[email protected];br>.
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Nosso procedimento metodológico é o trabalho exegético sobre as fontes, buscando a
dimensão compreensiva através da noção de temporalidade histórica, nos termos definidos
por Paul Ricoeur, vale dizer, tempo cronológico que se cruza com as dimensões fenomênicas
do tempo. As fontes que trabalhamos são as ditas legislações, os debates ocorridos na
Assembleia Legislativa do Estado de Minas, no próprio ano de promulgação das legislações
(1920/1924), Atas escolares conseguidas de acervos documentais em algumas escolas e fontes
jornalísticas de época.
Destacarei três aspectos importantes deste trabalho de investigação. O primeiro deles
diz respeito à abordagem de um objeto histórico que quer demonstrar que a cidadania
brasileira, a despeito de todos os contratempos e parcialidades, e até de momentos históricos
de retrocesso, teve marcos constitutivos relevantes. A constituição do direito social à
educação, nas décadas de 1920 e 1930, foi um desses marcos. Ele antecede a constituição
mais abrangente de outros direitos sociais, como regulação do trabalho e previdência social,
que surgem mais ao final da década de 1930, com Getúlio Vargas. É nesse sentido que não se
pode fazer tábula rasa dos direitos sociais no país, como certas interpretações o fazem, que
vêm o atraso no DNA da formação histórica brasileira, como se sempre fôssemos devedores
dos registros históricos de tempos coloniais, especialmente do escravismo, que continuou
marcando o primeira fase do país independente no séc. XIX. Sem desprezar esses traços
profundos da formação brasileira, que sem dúvida nos trouxeram atrasos históricos
relevantes em relação ao mundo, pelo menos em termos de ocidentais, no entanto, ainda
assim seguimos, com certo paralelismo não simultâneo, até com defasagens grandes de
tempo cronológico, a formação do direito social no Ocidente. Nesse sentido, a cidadania
brasileira não é nenhuma excrecência no mundo. Não somos nenhum tipo exótico em termos
do caráter nacional. As razões que impulsionaram a formação dos direitos em países como
Inglaterra, França, Alemanha entre outros também aqui ocorreram. Esses países, por sua vez,
também configuram diferentemente entre si suas cidadanias. Participamos assim de uma
história conectada.
Já estamos então enveredando pelo segundo aspecto desta apresentação dos resultados
do trabalho. A questão da formação do direito social, especialmente do direito à educação,
começa a ocorrer em países europeus e em nações norte-americanas a partir de meados do
séc. XIX. A instituição grupo escolar, voltada para o antigo curso primário, teve papel
relevante na constituição do direito social à educação, pois esteve na raiz da massificação da
escolaridade. Relevante dizer que também em países vizinhos, como Argentina, Uruguai,
Chile, pelo menos, o direito social à educação já estava se colocando ao final do séc.XIX.
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Somos então retardatários em relação esses países vizinhos. Como dizia Anísio Teixeira,
fomos anacrônicos na constituição desse direito, pois não o realizamos em sintonia com o
tempo histórico (visto pelo autor mais do ponto de vista cronológico) em que ele se colocou
no Ocidente. Entretanto, esse tempo acabou por nos perpassar naquelas décadas referidas
acima. E a sua constituição tem suas peculiaridades como buscamos destacar no trabalho.
O terceiro aspecto relevante diz respeito à interpretação das fontes levantadas.
Portanto, algo relacionado à sua demonstrabilidade. A nossa abordagem tratou das
narrativas surgidas a partir da emergência de questões novas ou do trato novo de questões
antigas. São as novas legislações, os argumentos voltados para a sua legitimação, bem como
os contrários, os debates surgidos em congressos ou expressos em revistas ou jornais
publicados, que fundamentalmente nos interessam. Enfim, o que importa à pesquisa são as
formulações dos atores políticos relevantes nas implementações das políticas. O destaque
dado ao campo narrativo não quer desprezar causalidades estruturais existentes ou
emergentes. Mas parte do entendimento de que essas razões estruturais para produzirem
efeitos sociais/políticos precisam se configurar como narrativas, como inteligibilidades, nos
atores sociais que implementam políticas ou reagem a elas. Assim, em nosso entendimento,
qualquer determinação estrutural, seja de ordem econômica ou sociológica, não produz
efeitos sociais diretamente sem antes passar pela aquisição de sentidos formulados, trazidos
pelas narrativas a respeito da emergência das questões. Enfim, as exigências fundamentais
precisam ser sentidas e produzir sentidos aos atores sociais e políticos.
Por razões de extensão do trabalho, ele teve que ser dividido em duas partes, tendo sido
a primeira parte publicada em Anais do VIII Congresso da SBHE (2015) em Maringá, como
comunicação individual no eixo Estado e Políticas Educacionais na História da Educação
Brasileira. Aqui completamos o trabalho da pesquisa em sua última parte, referente à
configuração do direito social à educação na fase histórica chamada por Jorge Nagle de
“otimismo pedagógico”. Nosso foco mais específico agora é a regulamentação do ensino de
1927, conhecida como reforma do ensino Francisco Campos.
A Configuração do Direito Social à Educação na Fase Histórica do “Otimismo Pedagógico”
Nesta última etapa do trabalho, apresentaremos vários aspectos que, a nosso ver,
configuram o novo tempo histórico que chamamos de constituição do direito social à
educação. O foco é regional, o estado de Minas Gerais, porém o tempo histórico é público e
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abrangente, abarcando as diversidades das experiências educacionais dos estados nacionais.2
Jorge Nagle bem percebeu a dimensão abrangente do tempo histórico ao estudar as reformas
educacionais ocorridas em diversos estados como São Paulo, Ceará, Pernambuco, Bahia,
Minas Gerais e Distrito Federal (Rio de Janeiro), em todas percebendo a emergência do novo
no contraponto com a tradição de escolaridade prevalecente na Velha República, hoje
sabemos de proveniência mais antiga, de tempos do Império.
A fase que agora enveredamos é a que Nagle chamou de otimismo pedagógico. Como
dissemos acima, na primeira parte do trabalho, trata-se de uma subfase no amplo período
histórico, inaugurado na década de 1920, chamado por ele de entusiasmo educacional. A
nossa interpretação do trabalho de Nagle entende que nesta fase histórica mais ampla
características inovadoras já estão colocadas, como a preocupação de abrangência de todas as
crianças na escola na idade obrigatória, assim como o novo protagonismo do poder público
na promoção da escolaridade, em certa medida superando a velha matriz de uma educação
que se faz em colaboração com a sociedade, advinda de tempos do decreto-lei imperial
Leôncio de Carvalho (1879).
O otimismo pedagógico, entretanto, a despeito de se vincular a fase histórica do
entusiasmo educacional , é uma nova etapa histórica, que mantém as características
inovadoras desta, a abrangência da escolaridade e o protagonismo público, porém
acrescentando dimensões fundamentais na configuração do direito social à educação. Nagle
nos diz que se trata da superação, nesta subfase, de uma educação que fora fortemente
vinculada à política nacional de caráter civilista, fazendo-se agora autonômica, justificando-
se em si mesma, compreendendo a educação como vinculada aos indivíduos, não mais aos
cidadãos. Haveria, portanto, segundo o autor referido, uma despolitização da educação na
última fase do entusiasmo educacional.
A crítica a Nagle sobre tal interpretação despolitizante, como dissemos acima, já está
feita pela historiografia, mostrando que se trata de uma nova fase de politização, distinta da
primeira, porém não menos politizada. Não obstante, a ruptura com a centralidade da
questão civilista, bem percebida por Nagle, é algo que a nossa pesquisa atribui relevância,
como demonstraremos mais adiante. Não se trata do abandono da ideia cívica, mas de um
2 Dizer que o tempo histórico é público significa dizer, em termos filosóficos, que a história nos ultrapassa a despeito de sermos fazedores dela; vale dizer, mais somos sofredores do que protagonistas da história. Em outros termos, pode-se dizer que o tempo histórico possui uma dinâmica não controlável, fazendo fluir a emergência de novas questões, que os contextos mais específicos terão de responder. É nesse sentido que o tempo histórico é público e abrangente. A nossa reflexão nesta nota pretende se fundamentar na concepção de história e tempo histórico fundamentado filosoficamente pela hermenêutica contemporânea na leitura que dela faz Paul Ricoeur. Ver a respeito, do autor citado, Tempo e Narrativa, especialmente v.3 (Ricoeur, 2010))
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deslocamento fundamental no qual o eixo ordenador da política de educação já não é a razão
do Estado e sim a compreensão da educação como parte da vida da sociedade e como direito
social.
O que aqui se pretende é estender a compreensão da mudança temporal às inúmeras
transformações que estão ocorrendo no âmbito do ensino primário. Selecionamos algumas
dessas mudanças para destacar o comprometimento delas com o novo tempo histórico. O
sentido que elas apontam compromete o conjunto da transformação, indicando a
constituição entre nós do direito social à educação e sintonizando finalmente o país, embora
não de forma definitiva, infelizmente, com o que já ocorre no ocidente europeu e americano,
inclusive sul-americano.
A Finalidade da Educação
No relatório do governo estadual, apresentado ao Poder Legislativo, dando conta da
reforma do ensino primário aprovada pelo decreto n. 7.970 – A, de 15 de Outubro de 1927
(regulamento do ensino), diz-se o seguinte:
O ponto de partida da reforma consiste na afirmação, que transparece do regulamento e das instituições e processos escolares nelle instituídos, de que a instrucção primaria deve ser, antes de tudo, um instrumento de educação. Este postulado implica que a escola primaria deve estar em continuidade com a vida social de que se constitui prolongamento e dependência. (...) A escola assim considerada, não se destina apenas a ministrar noções, mas é também uma fórma de vida em comum, cabendo-lhe preparar a criança para viver na sociedade a que pertence ...
3
A primeira coisa a reparar nos termos do documento é a compreensão da instrução
primária como “instrumento da educação”, vale dizer, não há outra razão social para
implementá-la senão a de fazer parte, como etapa, da educação em geral. Ela justifica-se
como exigência da vida, e não de qualquer outro objetivo político. Nesse sentido, sua
prioridade não é a transmissão de “noções”, mas de preparo para a vida em sociedade.
Atentar que não é pouca coisa o que aí se diz. É precisamente esta definição que irá
possibilitar as profundas transformações pedagógicas que irão acontecer. Inicialmente
porque se foca no ser criança como etapa da formação humana, voltando-se para ela todo o
esforço da inteligibilidade educacional. Segue-se que já não se trata de inculcação de valores
ou de conceitos, mas da atentar para os processos de ensino/aprendizagem. Não à toa, mais
adiante, na própria mensagem ao poder legislativo, há referência ao método Decroly.
3 Annaes da Camara dos Deputados, segunda sessão da decima legislatura, anno de 1928. Belo Horizonte: Imprensa Official de Minas Gerais, 1928. p.9
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Um terceiro aspecto, já não mais retirado estritamente do recorte acima citado, mas no
mesmo espírito da reforma, é a ideia de uma educação genérica, estendida às populações,
sem qualquer critério de seletividade delas. É o que se pode perceber no discurso de
Francisco Campos em cerimônia de entrega de diplomas e prêmios aos alunos dos
estabelecimentos de ensino primário que concluíram o curso. Nele observa-se o júbilo pelo
crescimento da oferta desse ensino (próximo de meio milhão de crianças atendidas), bem
como a conclamação de uma educação primária com as características assinaladas acima:
genérica, extensiva e sem seletividades. Vale a citação: “Estarão preparadas as nossas escolas
para cultivar, modelar, enriquecer e aprimorar esse precioso material humano, nobre metal
com que contamos para erguer o monumento collectivo do nosso império espiritual e de
nossa independência econômica?”4 Mais adiante, incita à escola a ser “ativa”, voltada à
formação da personalidade e da inteligência.
A dúvida levantada pelo eminente Secretário de Justiça Francisco Campos, a qual
estava afeto os assuntos da Diretoria de Instrução, é significativa. Percebe-se que não será
apenas por obra de uma nova legislação que se dará a transformação pretendida na
escolaridade. É preciso ingentes esforços de formação de um ator fundamental da escola: o
professor. A reforma do ensino normal é uma consequência necessária. Quase um ano antes
do discurso comemorativo de Francisco Campos, em artigo no jornal Diário de Minas, jornal
do Partido Republicano Mineiro, intitulado “A reforma do ensino normal” (s/ assinatura) já
se indica a exigência daquela reforma, ali apontando o sentido da educação pretendida:
educação eficiente, estendida a todas as camadas da população e de forma “integral”, ou seja,
completa às exigências da criança (emocional, personalidade, vitalidade, penhores
individuais).5
Ora, mas para pretender a eficiência da reforma do ensino normal é preciso um novo
protagonismo do Estado nesta esfera. Já não basta a escola normal modelo da Capital,
tampouco os critérios de equiparação de escolas normais regionais. É preciso que o Estado
assuma novas obrigações. A distinção entre escolas normais de 1º grau e de 2º grau,
reservando-se a esta estritamente o caráter público, não sendo estendida a possibilidade às
equiparadas, é uma das medidas; outra é a nomeação pelo Estado dos professores de
metodologia do ensino, obrigatória a todas as escolas normais, de 1º e 2º graus; e uma
terceira é a exigência de que em todas as escolas, também de 1º e 2º graus, existam classes
primárias de aplicação, que seriam financiadas pelo Estado.
4 Diário de Minas, 12/dez/1928. 5 Diário de Minas, 02/fev/1928.
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Naturalmente que não foram sem resistências que essas medidas foram
implementadas. A começar pelas escolas normais católicas equiparadas, que não admitiam
que ficassem elas restritas às escolas normais de 1º grau. Outro aspecto litigante consistiu na
nomeação de professores de metodologia do ensino pelo Estado, com possibilidade do
profissional nomeado não respeitar o aspecto confessional de uma instituição católica. A
saída imediata do Secretário do Interior para a última questão é a razoabilidade. Mas logo
cederá a pressão católica, restringindo a nomeação estadual para aquelas escolas a
“educadoras filiadas a ordens religiosas, especializadas na instrucção de creanças.”6
Reforçando os argumentos, vale se referir ainda a outro discurso de Francisco Campos
quando da inauguração do curso de aperfeiçoamento na Escola Normal da Capital, ocorrida
em 14 de junho de 1928.7 O centro do argumento é a compreensão de uma educação voltada
para a criança como condição humana primordial. É a natureza dessa criança que precisa ser
levada em conta no processo educacional. Tudo mais (currículo, programas, métodos) são
consequências das considerações científicas sobre a criança. O foco, portanto, já não é o de
uma escola conformadora moral da criança, mas de uma escola que se adapta para levar em
consideração a natureza humana dela. A escola já não é doadora de princípios, mas
instigadora de uma formação que não pode ocorrer estritamente na família. Como diz o texto,
a família é “o órgão de adaptação da infância, que representa a natureza apenas desbastada
pela educação espontânea do lar”; já a escola expressa a integração “ao mundo de valores
adquiridos ao homem pela civilização ...” (idem)
Parece haver ao tempo uma clara consciência do caráter profundamente transformador
do que ali está ocorrendo em matéria de educação. O artigo de J. Guimarães Menegale,
importante articulista, na Revista do Ensino naquele ano de 1928 é bem expressivo dessa
consciência. Diz ele:
Crear escola para a creança, ao contrario do que sempre fizemos, é sacudir, revolucionar um século de ensino primário, até aqui cerrado ás projecções do espirito scientifico, que vem esflorando, sobre a secura da rotina e do empirismo,os segredos da psychologia infantil.
8
Em seguida, o texto diz que a escola se reduziu a diminuir a porcentagem da
analfabetismo, sem nos dar aquilo que poderia dar o aparelho de educação popular. A
instrução primária que preza apenas o ideal de alfabetização mutila-se, “amesquinha-se nos
6 Ver a respeito da resistência à reforma do ensino normal, entrevista de Francisco Campos ao jornal católico O Horizonte, sob o título: “A reforma do ensino normal. A palavra do governo”, publicado também no Diário de Minas, 02/março/1928; sobre a concessão aos católicos, ver Diário de Minas, 31/03/1928.
7 Publicado no jornal Minas Gerais (órgão oficial do Estado), em 15 /06/1928, p.8. 8 Revista do Ensino, 1928, V.3, n. 25.
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seus objetivos, que são os da educação integral ...” (p.16) Segue o artigo argumentando que a
reforma do ensino primário, embora se dê lentamente, é imediata, não aguardando a
formação das novas gerações de professores a ser dada pela reforma da escola normal, que
segue a do ensino primário.
Os sentidos que hoje podemos perceber do que ali se passa àquele tempo, qual seja o
estabelecimento da conexão nacional com o que vem ocorrendo no mundo Ocidental, o
surgimento do direito social à educação, com pretensão de extensão a toda a população, já
aparece ao tempo como exigência de sintonia da educação com a ciência e com a dimensão
humana em geral, não mais se conformando a educação a meras políticas contextuais.
Atente-se, entretanto, aos desvios ao caráter público, ou acomodação deste às pressões
políticas de contexto, num estado de forte cultura religiosa católica, e de um governo que se
quer respaldar nesses segmentos. De toda forma, isso não esconde o sentido histórico do
tempo público que ali está acontecendo. Outros tantos itens que iremos trabalhar a seguir
pretendem demonstrar aquele sentido histórico.
A Questão da Oferta e da Demanda
O traço característico da oferta de escolas foi desde sempre, desde tempos imperiais, o
de uma oferta pelo Estado à medida da existência antes de tudo de possibilidades
orçamentárias que sequer estão previstas na anualidade dos entes provinciais, municipais e
União, depois, na República, pelos entes federativos. Os gastos regionais em educação são
extremamente diversificados entre as províncias do Império; na República não houve nas
três primeiras décadas qualquer regulamentação da questão.
A outra condição para o emprego da verba pública na criação de escolas ou no subsídio
público é a existência de demanda de populações locais que as solicitam. Foi assim no
Império e continuou sendo dessa forma nas primeiras décadas republicanas. Não há garantia
de atendimento do poder público à demanda, mas a condição prévia para que haja a
possibilidade do atendimento é a reinvindicação da população local, manifesta em abaixo-
assinados ou outros recursos, apelando ao poder municipal, sempre demonstrando haver
crianças em número suficiente para a abertura do estabelecimento oficial (normalmente 20
crianças no meio rural e 40 no meio urbano).. Em caso de subsídio público, a escola é criada
previamente, existindo durante certo tempo e demonstrando haver nela matrícula e
frequência mínimas estabelecidas, e sempre de forma diferencial no meio urbano e no meio
rural.
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Portanto, há em todo o período do Oitocentos, abarcando também as primeiras três
décadas republicanas, uma relação forte entre oferta de estabelecimentos educacionais e
demanda da população por eles. A razão de ser dessa relação é, por um lado, nas justificativa
de época, a necessidade do bom aproveitamento do dinheiro público gasto no serviço, já que
só vale a pena despendê-lo frente à solicitação do público que garanta a matrícula e a
frequência no estabelecimento. Por outro lado, prevalece a compreensão em todo o período
de que a expansão do ensino elementar é depende da tomada de consciência da população de
sua necessidade. Por sua vez, há forte relação entre matrícula e frequência na regulação da
escolaridade pública, dela dependendo a permanência da instituição ou a sua reclassificação,
o que prevaleceu ainda na primeira metade da década de 1920, como estabelece o
Regulamento do Ensino de 1924, conforme demonstramos na primeira parte do trabalho.
Aqui nos cabe anotar um deslocamento na questão. Apelamos, inicialmente, por um
importante comunicado da Inspetoria Geral da Instrucção sobre a questão da frequência
escolar. Diz o comunicado:
As estatísticas vêm demonstrando que o poder publico, apesar de todos os esforços, ainda não tem infelizmente podido atender aos legítimos reclamos populares, no sentido de provêr effectivamente de escolas a todos os logores que delas precisam e na relação de suas necessidades. (...) Não é, portanto, admissível que as escolas, que o Estado mantem com sacrifícios da contribuição do povo, não tenham a inteira efficiencia de que são capazes, pela infrequência constante de uma considerável parte dos alunos matriculados, que permanecem por isso sem nenhum ou quase nenhum ensino, ocupando, entretanto, nos livros de matriculas, centenas de logares que poderiam servir a outros tantos, que por falta de ingresso nas escolas se acham sem os beneficios da instrucção fundamental, a que todos têm egual direito.
Há que destacar, de início, uma mudança significativa na questão da oferta de ensino. É
o Estado que lamenta a não oferta de escolas públicas no tamanho da demanda. Já não se
trata de velha imputação de culpa ao público pelo não crescimento da oferta. Antes se dizia
que o poder público buscava corresponder às demandas na medida em que ela se
apresentava. Agora, atribui-se inteiramente ao poder público a responsabilidade pela não
oferta. Já no que diz respeito à infrequência, a lógica agora é outra: a denúncia da
infrequência já não atinge a instituição, levando-a ao rebaixamento de sua classificação,
como ainda estava previsto no Regulamento do Ensino de 1924, como dissemos, mas dirige-
se ao desperdício do dinheiro público com alunos que estão matriculados, ocupando vagas,
porém infrequentes, que poderiam estar ocupadas por outros alunos.
Em muito pouco tempo, no sentido cronológico, altera-se significativamente o marco
definidor da oferta pública de escolas, bem como o papel da frequência escolar na regulação
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da instituição escolar, já não mais ameaçada de extinção ou rebaixamento mediante a não
obtenção de frequência nos níveis estabelecidos. Para reforçar o argumento, apelamos ao
artigo publicado no jornal Minas Gerais, órgão oficial do Estado de Minas. Ele é assinado
pelo articulista J. Guimarães Menegale, já citado anteriormente, intitulado “Em Primeiro
Logar, A Escola e o Professor”. 9 Há aí interessante argumentação a respeito do necessário
processo de criação de escolas e o que deve levar a isso. A afirmativa do autor é o de que a
expansão educacional pública não pode ser tomada sob o entendimento de que o volume
orçamentário necessário ultrapasse as possibilidades do Estado. Isso porque, segundo o
autor, o problema do analfabetismo se agravaria. Cita o exemplo do Japão onde prédios
simples são construídos extensivamente para somente depois serem melhorados
arquitetonicamente. O que deve valer para o autor é uma expansão educacional
fundamentalmente horizontal. Continua o seu argumento afirmando que compete ao Estado
antecipar-se a demanda pública tomando como critério para a criação dos prédios escolares,
tanto a densidade demográfica, como “as circunstancias de caracter econômico (que) estejam
prenunciando o rápido desenvolvimento de um núcleo popular.”
O que pode parecer inicialmente como uma crítica do autor a uma escolaridade que
vem sendo proposta em Minas, acentuando novos referenciais pedagógicos da escola,
destacando o qualitativo em detrimento do quantitativo, o que não seria uma crítica justa, a
se levar em conta os níveis de crescimento da oferta pública apresentados pelo governo,
entretanto, pode também ser lido, mais provavelmente, como percepção de uma nova lógica
do processo de expansão educacional, não estritamente dependente da demanda das
populações. É neste último sentido que compreendemos no artigo a sintonia com um novo
tempo histórico em que oferta e demanda das populações por educação já não determinam a
expansão da escolaridade.
Um ano antes (1927) aparece na Revista do Ensino artigo que é bem sugestivo da
emergência de um fator político novo naquele contexto.10
Trata-se de uma emulação interna
ao Estado de Minas, fruto da centralidade assumida pela reforma educacional no governo
Antônio Carlos de Andrade. Diz o articulista: “O afã oficial tem conseguido levar o povo a
interessar-se pelo progresso desse ramo dos públicos serviços.” (p.532) Seguindo os
argumentos do artigo, aparece outro âmbito da emulação. Assim o autor se expressa:
9 Minas Gerais, 2 e 3 de Julho de 1928. 10 Revista do Ensino, 1927, V.3, N.23 pp. 531 em diante. Artigo assinado por Bento Ernesto Jr., intitulado: A
Escola Primária.
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Minas participa de coração desse contentamento, de vez que já póde, presa do mais santo dos orgulhos, apresentar resultados bem positivos da dedicação do seu esforço em prol da dignificação da escola primária na terra das montanhas, nesse particular podendo desassombradamente sujeitar-se ao confronto com suas irmãs da federação. (p.532)
Tudo indica que o novo fator não se restringe apenas ao Estado de Minas, mas ocorre
em âmbito nacional, através da emulação entre os estados, no afã de ficarem à altura das
reformas exigidas pelo novo tempo. Para o autor do artigo, o impulso que parece instigar o
Estado à promoção do crescimento da oferta pública consiste na intenção moral de combate a
“desanalphabetização das massas”. Hoje percebemos que se trata muito mais do que isso,
pois a reforma mineira já não se encontra nos marcos estritos das grandes campanhas
civilistas de alfabetização do povo, que vigorou mais intensamente na década anterior. A
reforma mineira tem outra matriz impulsionadora que é a busca por corresponder ao novo
tempo histórico do direito social à educação.
Para fechar este tópico, outro sinal da mudança histórica, não menos relevante, é o
surgimento de sugestões para que finalmente se estabeleça no orçamento público
porcentagens fixas para o serviço educacional. E a sugestão vai aparecer em grande estilo,
como tese apresentada no Primeiro Congresso de Instrucção Primaria do Estado de Minas.
Trata-se da 15ª Tese que estabelece a necessidade da colaboração dos municípios com a
educação, repassando ao governo estadual a porcentagem de 15% do seu orçamento, ficando
o estado então inteiramente encarregado do ensino primário. Também os prédios escolares
ficariam ao encargo do estado.11
A oferta pública de escolas de forma continuada exige orçamentos públicos fixados para
o atendimento ao serviço da educação. A despeito de considerarmos que o novo tempo já
esteja se expressando com intensidade nessa segunda metade dos anos de 1920, ainda não
será nesta década que a nova regra pública se estabelecerá. Aguardar-se-á a Constituição de
1934 para que o orçamento público estabeleça fixamente a porcentagem educacional aos
entes federativos.
Matrícula, Frequência e Civismo
Como já se viu na parte anterior, matrícula e frequência jogam um papel decisivo na
regulação do sistema escolar ainda na primeira metade da década de 1920. Isso se devia à
concepção de que o gasto público no serviço da educação era dependente de uma consciência
11 A respeito de todas as teses apresentadas naquele congresso, ver Revista do Ensino, 1927, V.3, N. 22, pp 477 em diante.
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cívica do dever de se educar. Diferentemente da velha tradição do Império, ainda
prevalecente nas três primeiras décadas republicanas, de que a educação era um ato de
vontade dos sujeitos que buscavam se tornar cidadãos, a nova consciência dos primeiros anos
que inauguravam a quarta década republicana era de que a educação deveria ser extensiva a
todos, porém na condição de que perpassados pelo dever cívico de se educar, critério
fundamental para uma nação moderna se constituir, incorporando a sua população na regra
do jogo político democrático. Essa é a consciência política que atravessa a geração dos críticos
republicanos, também chamada por Vicente Licínio Cardoso de nascidos com a República. A
marca dessa geração é o descontentamento com as promessas não cumpridas pela República,
de incorporação de todos os nacionais na condição de cidadãos, contrapondo-se à Velha
República que restringiu o jogo político às elites dominantes. Ocorre que essa consciência
política nova, que é decisiva nas transformações que vem acontecendo naquela década, é
perpassada por um civilismo, emergente na década anterior, cuja marca é o dever cívico, vale
dizer, consciência cívica que antecede a condição de cidadania. É precisamente essa exigência
antecedente que não é compatível com as transformações que vem ocorrendo de forma mais
acentuada na própria década de 1920.
Como se disse na primeira parte do trabalho, a construção de escolas elementares pelo
poder público era inteiramente dependente da reinvindicação popular e pela demonstração
de sua necessidade. Mais do que isso, toda a ordenação escolar, ou seja, as regras que
constituem a instituição escolar, como a abertura do ano letivo, a constituição das classes, a
classificação da escola, as regras de funcionamento e de manutenção de sua classificação, a
distribuição de professores nas escolas, enfim tudo passa por dois critérios fundamentais:
matrícula e frequência. A escola que não obtém matrícula e frequência suficiente sofre
rebaixamento de sua condição anterior, podendo ser suprimida. Não vamos nos alongar no
que já foi trabalhado em outra parte deste texto. Basta assinalar aqui que essa configuração
da escolaridade, que ainda prevaleceu no primeiro quinquênio da década de 1920, é a
expressão no âmbito da política pública de educação daquela consciência do dever cívico que
antecede a condição de cidadão, pois é este civismo que coloca as exigências de matrícula e
frequência para que a instituição escolar possa existir em certo lugar.
No material de pesquisa que conseguimos levantar aparecem algumas indicações que
respaldam a interpretação acima. Iniciamos com aquela já assinalada que diz respeito ao
comunicado da Inspetoria Geral da Instrucção sobre a questão da frequência. Como se disse
acima, o reclamo pela infrequência agora é um apelo contra o desperdício do dinheiro
público, por conta da ocupação de matrículas que poderiam ser destinadas a outros alunos.
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Já não é uma sanção institucional à própria escola que não mantém a matrícula e a
frequência de anos anteriores. A punição referida no comunicado é a diretores e professores
que não comuniquem à Inspetoria Geral da Instrucção aquelas ausências, apelando aos
Art.28 a 33 do novo regulamento do Ensino Primário, o de 1927.12
Esses artigos, que vêm
reproduzidos no comunicado, tratam também da punição de pais e responsáveis pela
infrequência de seus tutelados.
Não é pequena a alteração. Desmonta-se através do novo regulamento de ensino, o de
1927, toda a arquitetura institucional que regia a constituição de escolas fundada na
matrícula e na frequência. Mas não é só fundado em punição de pais e professores que se
pretende enfrentar a questão da infrequência. A nova sintonia do tempo, tomando agora
como eixo o que se passa no interior da escola, volta-se para a qualificação do ensino. Além
da adoção do método Decroly, explicitado no próprio regulamento do ensino13
, busca-se a
estimulação de professores através de prêmios, de formação de uma carreira docente e da
promoção por merecimento. É o que vem previsto na These 8ª do Primeiro Congresso de
Instrucção Primaria de Minas. Na discussão da proposta ainda aparece a ideia de
classificação de professores segunda à frequência obtida em suas salas. Porém, agora, é algo
que já não extrapola o que ocorre na sala de aula. A nova tônica é o aproveitamento escolar, a
dimensão pedagógica da relação ensino/aprendizagem. Introduz-se finalmente nas escolas a
influência de Pestalozzi.
Para fechar o tópico, não podemos deixar de nos referir, como sintonia com o novo
tempo histórico, à conferência de Firmino Costa, diretor da Escola Normal de Belo
Horizonte, assim como delegado mineiro ao IV Congresso Brasileiro de Educação, convocado
pela Associação Brasileira de Educação (ABE), também convocado pelo próprio governo
revolucionário, recém-empossado, sob o argumento de que aquele congresso formularia as
diretrizes gerais da educação brasileira. Firmino Costa promove a conferência intitulada “As
grandes diretrizes da Educação”, em sintonia com as expectativas do novo governo. A
relevância da conferência de Firmino está na sua compreensão do que consistem as
qualidades cívicas. Para ele, são qualidades de caráter do indivíduo: perseverança,
sinceridade, bom-senso, energia, coragem, domínio de si mesmo. Essas qualidades são
transmitidas na escola, nas práticas das aulas e da vida escolar em geral, não por disciplina
específica.
12 Jornal Minas Gerais (órgão oficial do governo de Minas Gerais), 09/06/1928. 13 Ver artigo do Regulamento que explicita o método.
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Nessa compreensão, o civismo que perpassa os indivíduos se refere às suas qualidades
individuais. Já não é uma consciência cívica que se impõe aos nacionais para que se tornem
cidadãos.
O Crescimento da Oferta da Escolaridade
Não se pode pensar em constituição do direito social à educação sem considerar a
instalação da preocupação institucional com a pretensão de universalização do acesso à
escolaridade de todas as crianças na idade obrigatória. Como se viu anteriormente, a nossa
interpretação, acompanhando Jorge Nagle, é que a questão encontra-se formulada já no
início da década de 1920, e a reforma paulista do início da década seria paradigmática neste
sentido. Diga-se que instalação da preocupação institucional quer se referir ao
estabelecimento nas esferas do Estado de um horizonte de futuro que a partir de então a
política pública do setor já não pode se desvencilhar. Não se trata, portanto, de uma
realização sociológica dessa universalização, pois entre nós isso só ocorrerá décadas à frente,
e, em certa medida, ainda é uma questão que nos perpassa hodiernamente, se atentarmos
para a questão do aproveitamento escolar.
Precisamos então constatar nas informações pesquisadas se houve realmente
crescimento da oferta do ensino primário no Estado de Minas Gerais, no período estipulado.
Encontramos no material levantado algumas informações a respeito. Na mensagem do
governador ao Poder Legislativo, publicado pelo Diário de Minas, a respeito da reforma do
ensino primário, entre outras coisas, diz-se que houve 370.000 alunos matriculados em todo
o estado, o que significa um aumento de 18% em relação à matrícula de igual período do ano
anterior. Diz ainda que a instrução primária é ministrada no estado “em 267 grupos
escolares, com um total de 2.218 classes; e em 4.255 escolas singulares.” 14
Duas coisas nos chamam a atenção nessa parte do comunicado. O crescimento em um
ano de 18% não deixa de ser expressivo. O outro fato é o de que ingressamos na quarta
década republicana, 20 anos após a criação dos primeiros grupos escolares em Minas, e
encontramos o estado com quase o dobro de salas de aula em escolas singulares (na
suposição de que cada escola singular é composta de uma única sala) do que aquelas
existentes em grupos escolares. Isso parece ser bem indicativo de que a conexão entre grupo
escolar e tempo histórico de universalização do acesso não é imediata, vale dizer, os grupos
escolares começaram a se constituir num tempo outro em que a questão do direito social à
14 Diário de Minas, 20/07/1928, p. 4.
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educação não estava ainda colocada.15 Então, é razoável pensar que o tempo novo começa a
se colocar naquele contexto da década de 1920, mais especificamente na segunda metade da
década. Podemos então entender os níveis de crescimento mais expressivo da escolaridade,
não apenas como acuidade governamental para o setor, mas como exigência do ingresso do
estado no novo tempo histórico do direito social à educação.
Mais adiante no informe do governo à Assembleia Legislativa trazem-se quadros
estatísticos dando conta da relação entre matrículas e frequências. A relação entre matrículas
nos grupos escolares urbanos e distritais e as demais escolas singulares (distritais, rurais,
urbanas, noturnas e ambulantes) é da ordem de 42,79%, confirmando o dado anterior
assinalado, relativo à comparação de números de salas de aula, ou seja, a ocupação nos
grupos escolares é menor que a metade em relação aos estabelecimentos singulares. O que se
destaca, no entanto, é o que vem a seguir, indicando que a porcentagem de frequência em
relação à matrícula, nos grupos urbanos/ distritais e nas demais escolas singulares, é da
ordem de 63,09% para aquelas e 61,48% para estas. A pouca diferença entre elas, parece ser
significativo de que o processo da atratividade das escolas ainda não se faz como decorrente
da melhor qualidade arquitetônica dos grupos escolares, ou melhores processos pedagógicos
que supostamente ali haveria, em relação às escolas singulares. O alto nível de infrequência
num e noutro caso, se comparados a padrões atuais, decorreriam da própria questão da
aceitabilidade da instituição escolar de forma massiva na sociedade. Ela ainda é, como
instituição que interfere na rotina da vida, uma dimensão nova. E a nova pedagogia que
começa a se esboçar àquele tempo, especialmente nos grupos escolares, ainda não disse a quê
veio.
A mensagem do governo do estado continua fornecendo dados, agora relativos à
matrícula e quantidade de escolas privadas existentes no estado. Ali se indica a suspensão da
existência de 131 escolas particulares primárias, até o final de junho daquele ano. Talvez isso
possa ser indicativo, finalmente, de maior atratividade da escola pública em relação à escola
privada existente.
Enfim, o tempo novo apenas emerge, está longe de se encontrar consolidado, mas
alguns dados inovadores começam a acontecer.
15 Diferentemente, na experiência da expansão da escolaridade primária francesa há uma conexão imediata entre a formação dos grupos escolares e o acesso universalizado de crianças na idade obrigatória. Dominique Julia nos indica que num espaço de 10 anos, na década de 1860, todas as escolas primárias francesas tornam-se grupos escolares. Ver a respeito: (Julia, 2001).
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A Assistência Escolar
No assistencialismo escolar também se pode perceber mutações em sintonia com o
novo tempo. Indicamos na parte anterior do trabalho que na fase do entusiasmo educacional
apareciam alterações na assistência escolar bem significativas. Já não se pretendia fazer
dessa assistência um apelo amplo à sociedade, no molde da velha matriz na qual se
compreendia que o serviço educacional é obrigação do Estado, porém dividindo-a com a
sociedade. Assim, o caixa-escolar não é mais mantido por “livro-ouro”, formado por
contribuições das elites locais, bem no formato da assistência filantrópica. Agora suas fontes
são outras, localizadas em cada escola. Solicita-se a contribuição de pais que tem seus filhos
na escola, bem como de mestres da escola. A pecúnia obtida de eventos promovidos pela
escola também resulta em benefício do caixa-escolar. Mais do que isso, no regulamento de
1924 se prevê fontes de financiamento públicas, provenientes de renda do professor
subtraída de seus dias de falta. Não durou muito, entretanto, aquele regulamento. Em 1927,
cria-se o Fundo Escolar pela lei 989, de 20 de setembro. Nela se estabelece as
entidades prepostas á proteção e incremento da atividade escolar – Associações de Mães de Família, Conselhos Escolares, Ligas da Bondade, outras tantas fórmas de acção social desinteressada, constituem valiosas e inestimáveis instrumentos auxiliares da escola retirando-a de seu isolamento, cercando-a de interesse e de pretigio, cooperando com ella ... Tais instituições, porém, somente poderão ser uteis, si contarem com a sympathia popular ... Grandes influências podem ellas exercer nas escolas ... concorrendo, assim, para a primeira e mais importante obra escolar, que é, incontestavelmente, a frequência. 16
Reparamos que há uma inflexão na compreensão da assistência escolar aí proposta.
Embora apareçam entidades à semelhança da velha matriz filantrópica, o fundamento já não
é o mesmo. Essas entidades cumprem uma função à escolaridade, qual seja retirar a escola do
seu isolamento. Elas têm, portanto, o papel de integração da escola ao meio social num
processo que se faz em colaboração com a instituição escolar. A condição para tal é
arrebanhar a simpatia popular, vale dizer, ter apoio amplo da sociedade, não de certos
segmentos sociais privilegiados e altruístas. A finalidade em última instância é voltar-se à
melhora da frequência escolar.
Já não se trata de escola pública para pobres, mas de escola para todos.
16 Mensagem do governo de Minas à Assembleia Legislativa, publicado em Diário de Minas, 20/07/1928, p.5.
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À Título de Conclusão
A seleção dos temas acima trabalhados restringiu-se, por um lado, aquilo que
consideramos como relevante para a caracterização do tempo histórico da formação do
direito social à educação, conforme a perspectiva que buscamos fundamentar. Por outro lado,
a restrição também se deveu aos limites desta pesquisa, que não cabe aqui justificar. Apenas
anotamos que há muito mais material a ser pesquisado. A Revista do Ensino, importante
publicação do período, p.ex., estende-se até o ano de 1937. No entanto, não ultrapassamos o
ano de 1931. Jornais pesquisados também sofreram restrições cronológicas, que nos levaram
a não ultrapassar o ano de 1928. Não houve determinação teórica do nosso objeto que nos
tenha levado a tal delimitação de temporalidade, embora o tempo pesquisado tenha sido
relevante para o que quisemos demonstrar. Foi uma contingência da pesquisa.
Ora, o período pesquisado constitui apenas uma preliminar de um processo histórico
que se alonga, a rigor, até tempos contemporâneos, ainda que se possam fazer recortes mais
determinados no tempo alongado. Isso nos faria contemporâneos apenas até certo ponto do
que ali se configurou. Uma limitação que percebemos no restrito tempo cronológico
recortado pela contingência da pesquisa diz respeito às circunstâncias sociais/ políticas que,
de alguma forma, se originaram da política pública educacional que ali se esboçou.
O caráter público da nova política deixou suas marcas naquela sociedade. E provocou
reações. Há que se pensar como aconteceram essas reações, que não devem ser entendidas
apenas como resistência da tradição. O espectro social apontado pelas reformas educacionais,
ocorridas nas décadas de 1920/1930, culminado pela fase chamada de otimismo pedagógico,
tem como horizonte de futuro a constituição de um cidadão portador e reivindicante de
direitos. Isso colide fortemente com um classicismo social arraigado, com pouco afeto às
massas populares reivindicantes. O recorte cronológico estabelecido pelas circunstâncias da
pesquisa pouco pode perceber sobre essas resistências às mudanças propostas ao tempo.
Os dualismos educacionais, que pareciam definitivamente superados nos anos
trabalhados pelo nosso recorte, tornam-se novamente vigorosos no âmbito do ensino médio,
mas também no próprio ensino primário, como denunciou Anísio Teixeira, em suas
conferências nos anos de 1950, demonstrando o caráter acentuadamente seletivo deste
ensino.17Embora o tempo histórico aponte para a universalização do acesso, a realização
17 Ver a respeito: Teixeira, Anísio. Educação não é privilégio. Rio de Janeiro: Edurj, 1994.
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sociológica desse vetor histórico custa a se constituir entre nós. Como entender a inércia
social/política dessa implementação?
A historiografia educacional brasileira, de alguma forma, já constituiu certa
inteligibilidade do que ocorreu no período posterior, nos anos de 1930/1940. A contribuição
do Estado Novo, como buscamos demonstrar em outro lugar (Rocha, 2000), é ambígua
frente às contingências do novo tempo histórico: ao mesmo tempo que dele não pode fugir,
pois a emergência das novas questões estão instaladas, como a exigência de enfretamento da
universalização do acesso ao ensino primário, como aludimos acima, não obstante, as
respostas que dão à questão são decisivas no sentido de uma reconfiguração educacional já
não tão cidadã. P. ex., ao retirar conquistas políticas daquela fase histórica, como a extinção
dos índices orçamentários constitucionais à educação nos entes federativos, estabelecidos
pela Constituição de 1934. Outro exemplo são os paradoxos que se instalam, inclusive sobre o
papel político de figuras tão decisivas na implantação das reformas educacionais
modernizantes, em Minas Gerais, como Francisco Campos. Tornou-se, no tempo posterior,
protagonista na reconfiguração dualista da educação.
Talvez seja interessante, para aprimorar o entendimento, fazer reflexão comparativa
com a fruição histórica de outras realidades. Estudos muito conhecidos do sociólogo inglês
Theodor Humpley Marshall, publicado por aqui nos anos de 1960, pela Zahar (Rio de
Janeiro), sobre a evolução da cidadania inglesa, pode ser sugestivo para pensarmos o nosso
contexto.18 Ali Marshall demonstra que a conquista de direitos, na fase histórica dos direitos
sociais, dá-se pelo estabelecimento de conquistas sociais corporativas de certos segmentos
que, ao fim e a cabo, tornam-se públicas, extensivas a todos. O processo de conquistas é de
crescente demanda e de lutas políticas, onde outros segmentos reagem para evitá-las. Mas no
momento em que as conquistas tornam-se vitoriosas, novo patamar social, político e
paradigmático de inteligibilidade se estabelecem. Aquelas conquistas, entretanto, criam
também novos padrões de desigualdade, de renda e de status, recolocando a luta social por
mais igualdade sempre de novo. Mas sempre em novo patamar.
O que parece nos especificar, no contraponto com o caso inglês, na descrição de
Marshall, é que no nosso cenário conquistas se dão, porém sem garantia de que um novo
patamar se estabeleça em definitivo. As reações às conquistas não retroagem ao anterior,
porque o tempo histórico é implacável, obrigado a seguir em frente por conta das novas
18 (Marshall, 1966); (Marshall, 1967).
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questões emergidas. Porém, as reconfigurações políticas, muitas das vezes retroativas,
acabam por responder a essas questões com paradigmas superados no tempo.
Um exemplo nos ocorre para a inteligibilidade do nosso devir histórico, relacionado
com esta pesquisa. A compreensão de um civilismo, como noção de um cidadão portador de
direitos, que foi tão relevante para a constituição das novas regras da escolaridade moderna,
entretanto, no tempo quase imediatamente vindouro, vê-se comprometida. O Estado Novo
reforça a visão civilista como aquisição de consciência de valores pré-determinados,
retirando das massas populares a condição reivindicante de sua cidadania, ou seja, de uma
cidadania que esta posta, antes de qualquer preliminar de uma consciência valorativa pré-
estabelecida, que de modo geral nada tem a ver com a luta reivindicante.
Pode-se imaginar o imbróglio que tal circunstância produz. Sem qualquer pretensão de
respostas ao complicador social/político que nos envereda, apenas anotamos que velhas
respostas a novas questões não deixam de exercer papel contentor do fluxo histórico do
tempo, permitindo a Anísio Teixeira, lá nos anos de 1950, classificar a educação brasileira
como historicamente anacrônica em relação ao mundo, pois não respondeu no tempo devido
às questões que tantos outros países já haviam se colocado e respondido a contento.19
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19 Ver a respeito do conceito de anacronia em A. Teixeira, do autor: Escola pública, universal e gratuita (conferência). Em: do autor: Educação não é privilégio. Rio de Janeiro: Edurj, 1994
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