a leitura do gÊnero tira de humor em uma perspectiva...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO DOUTORADO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS
A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA
PERSPECTIVA ENUNCIATIVA
POR: JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA
Orientador: Prof. Dr: FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA
Niterói
2007
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JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA
A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA
PERSPECTIVA ENUNCIATIVA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como requisito parcial
para obtenção do Título de Doutor, na área
de concentração em Estudos Lingüísticos.
Orientador: Prof. Dr. FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA
Niterói
2007
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AGRADECIMENTOS A Fernando Afonso de Almeida, pela orientação cuidadosa e estimulante. Minha eterna gratidão pela forma como ajudou a conduzir a produção deste trabalho. À minha mãe, Nair, que me apoiou em todos os momentos para que eu tivesse força e tranqüilidade para realizar esta pesquisa. À professora Carmen Perez que em um momento difícil me fez acreditar que eu podia continuar. Aos professores que contribuíram de maneira decisiva em minha formação, em especial, Edwiges Zaccur, Cecília Goulart, Bethânia Mariani, Mariluci Novaes. Às funcionárias da secretária do departamento de pós-graduação da UFF, Nelma Pedretti e Tânia Maria de Olveira. À minha irmã Marta pela conversas nas horas de intranqüilidade. À amiga Graça pelas palavras de estímulo e revisão desta tese.
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JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA
A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA
ENUNCIATIVA
Examinado e aprovado em ______/ _______/2007
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Professor Doutor Fernando Afonso de Almeida (Orientador)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________ Professora Doutora Angela Maria da Silva Corrêa
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________ Professora Doutora Victória Wilson
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
__________________________________________________ Professora Doutora Edwiges Zaccur (Universidade Federal Fluminense)
__________________________________________________
Professor Doutor David Shepherd (Universidade Federal Fluminense)
SUPLENTES
__________________________________________________ Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________ Professor Doutor José Carlos Gonçalves
(Universidade Federal Fluminense)
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RESUMO
Esta pesquisa tem o propósito de investigar os recursos de linguagem presentes no gênero
tiras em quadrinhos de humor a partir de uma perspectiva teórica que enfatize os processos
enunciativos que exploram a ambivalência e o implícito para provocar o efeito risível. Para
alcançar tal objetivo, desenvolvemos um estudo sobre o modo de constituição das tiras em
quadrinhos a fim de delinear a construção do gênero tira de humor e o conjunto de
possibilidades icônicas e verbais que ajudam a promover o humor. No interior desta
proposta caracterizamos o funcionamento do domínio cômico-humorístico, especificando a
noção de chiste e de comicidade na compreensão do humor presentes nas tiras em
quadrinhos de nosso corpus de análise: Hagar, o horrível de Dik Browne e Mafalda de
Quino, publicadas em jornais, livros e internet. Em seguida, aplicamos os dispositivos de
análise adotados pela Pragmática, pela Semântica-Argumentativa e pela Lingüística da
Enunciação na interpretação das tiras a fim de estabelecer uma proposta de leitura do
gênero tira de humor em uma perspectiva enunciativa.
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RÉSUMÉ Cette recherche se propose d’examiner les moyens langagiers mobilisés par le genre bande
dessinée d’humour à partir d’une perspective théorique qui souligne les processus
énonciatifs responsables de la mise en jeu de l’ambivalence et de l’implicite pour
provoquer l’effet risible. Pour atteindre tel objetif, on a développé une étude sur la manière
dont sont constituées les bandes desinées afin de faire apparaître les contours de ce genre de
discours et l’ensemble des possibilités iconiques et verbales qui aident à la promotion de
l’humour. À l’intérieur de cette proposition on cherche à expliquer le fonctionnement du
domaine comique-humoristique, en spécifiant la notion de mot d’esprit et de comique
nécessaires à la compréhension de l’humour caractéristique des bandes dessinées
composant notre corpus d’analyse: Hagar, o horrível, de Dik Browne et Mafalda, de
Quino, publiées dans des journaux, des livres et sur internet. Pour ce faire, on se sert de
dispositifs d’analyse fournis par la Pragmatique, la Sémantique -Argumentative et par la
Linguistique de l’Énonciation pour l’intérpretation des bandes dessinées dans le but
d’établir une proposition de lecture du genre bande d’humour dans une perspective
énonciative.
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SUMÁRIO I- INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------------1
- Procedimentos teórico-metodológicos------------------------------------------------------ 4 II - A CONSTITUIÇÃO DAS TIRAS EM QUADRINHOS CÔMICAS E HUMORÍSTICAS ----------------------------------------------------------------------------- 10 - O movimento pioneiro das tiras em quadrinhos------------------------------------------- 11 - O marco fundador das tiras em quadrinhos e a presença do cômico-------------------- 14 - Os diversos gêneros nas tiras em quadrinhos ----------------------------------------------19 - A renovação do humor nas tiras em quadrinhos-------------------------------------------21
III - A NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO E AS TIRAS EM QUADRINHOS --- -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 26 - O estilo do autor, a sociedade e o texto na constituição do gênero----------------------- 29 - O redimensionamento da noção de gênero e estilo na esfera cotidiana ------------------35 - Gênero do discurso, tipologia e gênero textual----------------------------------------------39 - Humor em quadros para além de uma tipologia narrativa---------------------------------45 IV - O DOMÍNIO DISCURSIVO DO HUMOR -----------------------------------------50 - O cômico e a carnavalização ------------------------------------------------------------------ 52 - Elementos de comicidade ----------------------------------------------------------------------57 - A composição da cena cômica ---------------------------------------------------------------- 60 - O humor ------------------------------------------------------------------------------------------ 65 - O chiste e o discurso do humor --------------------------------------------------------------- 69 - O chiste tendencioso e o chiste inocente----------------------------------------------------72 O chiste tendencioso como descarga do impulso agressivo -------------------------------- 73 O chiste tendencioso em forma de smut --------------------------------------------------------74 O chiste ingênuo ou inocente -------------------------------------------------------------------- 75 Sobre o chiste de palavras e o chiste de pensamento------------------------------------------77 O funcionamento do chiste de pensamento ----------------------------------------------------78 a) nonsense ------------------------------------------------------------------------------------79 b) raciocínio falho ---------------------------------------------------------------------------80 c) representação pelo oposto --------------------------------------------------------------- 82
Sobre as técnicas do chiste de palavras----------------------------------------------------------83
Condensação --------------------------------------------------------------------------------------- 84 a) condensação com formação de palavra composta -------------------------------------84 b) condensação acompanhada de leve modificação --------------------------------------87
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Múltiplo uso do mesmo material ---------------------------------------------------------87 a) múltiplo uso como um todo e suas partes --------------------------------------88 b) múltiplo uso do mesmo material em ordem diferente-------------------------89 c) múltiplo uso com leve modificação ---------------------------------------------90 d) múltiplo uso com sentido pleno e sentido esvaziado ------------------------ 90
Duplo sentido -------------------------------------------------------------------------------92
a) significado como um nome e como uma coisa --------------------------------92 b) significados metafórico e literal -------------------------------------------------94 c) duplo sentido propriamente dito (ou jogo de palavras) ----------------------96 d) double entente ---------------------------------------------------------------------97 e) duplo sentido com uma alusão -------------------------------------------------- 97
Ponderações e encaminhamentos -------------------------------------------------------- 99 V – PROCESSOS ENUNCIATIVOS E OS IMPLÍCITOS NAS TIRAS EM QUADRINHOS DE HUMOR -----------------------------------------------------------101 As propriedades da enunciação -----------------------------------------------------------104 Os dêiticos e a não coincidência referencial no discurso ------------------------------106
A constatação e o ato de fala ------------------------------------------------------------- -108 O verbo performativo e a força ilocucional -----------------------------------------------112
A expressão dos atos de fala ----------------------------------------------------------------117 A infração de uma lei conversacional e a produção de implicaturas ------------------119 As implicaturas conversacionais canceláveis ---------------------------------------------125 Posto, pressuposto e subentendido na produção do humor -----------------------------126 O processo argumentativo nas tiras de humor ------------------------------------------- 129 O discurso citado e a heterogeneidade ---------------------------------------------------- 135 Da polifonia na literatura à polifonia no enunciado ------------------------------------- 138 O movimento polifônico da ironia----------------------------------------------------------144 A ironia manifestada pelo personagem/locutor e pelo autor/locutor-------------------146 A importância dos estímulos ostensivos na teoria da relevância -----------------------148
VI – CONCLUSÕES E PONDERAÇÕES ------------------------------------------------153 VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -----------------------------------------------159
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INTRODUÇÃO
Se fizermos uma viagem no tempo, veremos que o discurso verbal com tendência
cômico-humorística sempre atuou como forma de catarse e de quebra de hierarquia nas
relações de poder. Pela via cômico-humorística, o homem pôde criticar costumes e ações
humanas consideradas execráveis, compondo, assim, um modo menos tenso de se
relacionar com a realidade. Tais fatos podem ser observados tanto nas sociedades mais
primitivas (pela mediação de documentos e relatos de antropólogos e historiadores), como
no mundo contemporâneo em suas diversas esferas comunicativas. Para produzir o riso, os
grupos sociais sempre exploraram, de forma inteligente, diversos recursos de linguagem:
gestuais, mímicos, figurativos, sonoros e verbais. A partir destes elementos expressivos,
configura-se a organização de um sistema semiótico que permite ao sujeito estabelecer o
escárnio, a ironia, a zombaria e conseqüentemente produzir um discurso de feição
humorística.
Apesar da longa tradição da cultura do riso, os textos cômico-humorísticos sofreram
grandes alterações em seu modo de difusão e organização lingüístico-discursiva a partir do
final do século XX. O marco dessa mudança está ligado, principalmente, às inovações dos
meios de comunicação como a imprensa jornalística, o cinema e a televisão. Neste
contexto, o humor é incorporado pela arte seqüencial projetada na mídia, assumindo
horizontes comunicacionais distintos da interação verbal face-a-face.1 Se até a Idade Média
a popularização dos textos de humor se dava, de forma predominante, nos eventos festivos,
nas peças teatrais e no cotidiano da cultura oral, com a difusão dos meios de comunicação
de massa, o risível ganha novos veículos de entretenimento. Dessa forma, os discursos que
conjugam o código verbal com o iconográfico são incorporados às práticas
comunicacionais. Encontramos como fruto destas novas tecnologias, as histórias em
1 O humor produzido em uma dimensão face-a-face conta com a explicitação contínua da expressão facial e gestual dos agentes que produzem os eventos engraçados. Outro fator importante são as entonações dos enunciados que determinam o ritmo da piada, oferecendo uma série de indicações que inspiram o riso. A explosão do riso de um agente da platéia tende a contaminar o riso de outros que ocupam o mesmo papel de espectadores. Já na interação com textos verbal-iconográficos, a manifestação do riso assume uma orientação mais indiv idualizada, isto é, o sujeito ri sozinho diante dos traços engraçados que configuram o discurso humorístico pela mídia. O código visual associado ao discurso verbal, a partir de um recorte dado pelos novos veículos de comunicação, expande as formas enunciativas, gerando outras possibilidades de produção de ditos engraçados.
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quadrinhos, as charges e os desenhos animados. Tais textos passam a fazer parte do
cotidiano das pessoas, como um elemento propulsor de prazer e entretenimento.
Durante muito tempo, as tiras em quadrinhos, de maneira especial, foram vistas
como objeto de leitura pernicioso e alienante por diversos intelectuais, portanto banido da
esfera educativa. Geralmente, a leitura deste gênero se dava no dia-a-dia de maneira
espontânea e intuitiva, por meio de jornais e revistas em quadrinhos, no espaço privado. O
leitor se divertia com as piadas encontradas nas tiras, sem se preocupar com os mecanismos
que o autor utilizava para produzir o humor. Contudo, a leitura das tiras passa a ser vista
sob uma nova perspectiva com os estudos discursivos que refletem sobre o uso da língua
nas diversas situações comunicativas. Este novo enfoque passa a valorizar o estudo dos
diferentes gêneros de discurso, estimulando a investigação dos fatores lingüístico-
semântico-pragmáticos voltados para a leitura dos textos de humor.
A tendência de analisar a linguagem das tiras em quadrinhos para identificar
aspectos humorísticos ganha maior visibilidade por volta de 1990. Muitos livros didáticos
de Língua Portuguesa passam a ter seções dedicadas à análise de pressupostos e implícitos
presentes na fala dos personagens. Tornam-se freqüentes, nas provas de interpretação de
textos dos vestibulares, questões sobre procedimentos discursivos que os autores das tiras
utilizam para promover o humor. Tais práticas, incorporadas ao universo didático são
tributárias de um novo paradigma teórico apoiado nos estudos da enunciação2, por assim
dizer, fundados por Bakhtin, Benveniste e Ducrot. Este arcabouço teórico, impulsionado
pelo filósofo da linguagem, Bakhtin (1992), inspira a afirmação de que todo enunciado só
pode ser compreendido no interior de um gênero discursivo.
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
2 Segundo Dias (1996), o termo ‘enunciação’ já é encontrado em 1361 nos textos de um autor chamado Oresme, denotando ‘coisa enunciada’. Observando a contribuição de Bakhtin (1995) no deslocamento de sentido da palavra enunciação e a construção de uma teoria sobre esse objeto, Flores (1995) sintetiza: “A teoria da Enunciação é, como se conhece, o conjunto de trabalhos que estuda os fatores e atos que provocam a produção de um enunciado. Refletindo sobre questões de interlocução, intersubjetividade, tempo e lugar, essas teorias buscam preencher as lacunas da lingüística pelo argumento de que o estudo semântico dos enunciados é insuficiente quando não se leva em conta a enunciação”.(Teixeira & Flores, 1995, p. 20).
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não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissociavelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, aos quais denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 1992, p. 279).
A ênfase do funcionamento da língua no interior do gênero discursivo fez com que a
linguagem fosse vista de uma maneira especial nos diferentes tipos de textos que circulam
no mundo social. Seu aparato teórico, de certa maneira, derivou novos estudos que
apreciam o modo de organização dos signos na produção de efeitos de sentidos. Noções
como gênero textual e tipologia textual são tributários da noção de gênero do discurso e
passam a fazer parte das propostas pedagógicas relacionadas ao ensino da língua materna.
No entanto, essas categorias de descrição de fenômenos discursivos assumem, muitas
vezes, formas divergentes. Elas são apresentadas como um corpo teórico homogêneo,
acompanhadas de um conjunto de dispositivos de análise pasteurizada, sem ênfase nos
aspectos enunciativos. Propostas de grande porte, como a dos PCNs (parâmetros
curriculares nacionais) de Língua Portuguesa, têm gerado grandes confusões do ponto de
vista epistemológico. De acordo com Brait (2000), o documento elaborado pelo MEC não
especifica as diferenças entre a proposta de estudo de Bakhtin e a proposta de estudo de
tipologia textual. Com isso mesclam noções de gênero discursivo com procedimentos
ligados a propostas de análise da superfície do texto:
É a partir daí que aparecem os conceitos de gêneros discursivos, em parte diretamente calcados em Bakhtin, embora não haja referência no corpo do texto, e que ao juntarem com “organização interna a partir de seqüências discursivas – narrativa, descritiva, argumentativa, expositiva e conversacional”, concepção advinda de outra fonte teórica, mesclam, indeterminadamente, gênero discursivo e tipologia textual, estruturando o restante do trabalho com o ensino e aprendizagem da língua, quase que exclusivamente, a partir de tipologias textuais. Não haveria nenhum problema se não se estabelecesse uma nova confusão de gêneros discursivos e tipologias textuais, como se pode perceber no conjunto das sugestões do documento em contraste com um percurso, grosso
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modo, dos escritos bakhtinianos que constroem a concepção de gênero (BRAIT, 2000, p.18).
Na verdade, Brait chama a atenção para a não efetivação de práticas voltadas para
questão do gêne ro discursivo nos PCNs. Se do ponto de vista teórico a proposta pedagógica
assume a perspectiva do gênero discursivo, no corpo de sugestões de procedimentos
reduzem as práticas a um conjunto de tipologias. Ao propor um trabalho com gênero
discursivo acabam por restringir-se à descrição de regularidades que compõem seqüências
lingüísticas, promotoras de uma tipologia: narrativa, descritiva, explicativa, argumentativa
e injuntiva. Falta no corpo da proposta do MEC a explicitação de dispositivos que explorem
reflexões sobre os processos enunciativos, do ponto de vista do sujeito que produz e recebe
os enunciados em uma perspectiva semântica e pragmática.
No bojo dessas questões, entram as tiras em quadrinhos que, diante de propostas de
estudo divulgadas sob um viés do gênero do discurso, acabam por se limitar a um estudo
tipológico ou gramatical. Em nossa pesquisa, procuraremos investigar as bases enunciativas
que constituem o gênero tiras em quadrinhos de acordo com os princípios bakhtinianos. A
compreensão dos enunciados, de acordo com a perspectiva de gênero, deve levar em conta
o contexto sócio-comunicativo de sua realização, e não somente o reconhecimento de
estruturas típicas que compõem os gêneros.
Para explicitarmos elementos reguladores do discurso cômico-humorístico e as
implicações teóricas que permitem analisar os enunciados no interior do gênero, elegemos
como corpus desta pesquisa as tiras em quadrinhos Hagar, o Horrível do norte americano
Dick Browne e Mafalda do argentino Quino. A escolha destes dois autores se deve a uma
série de motivos, dentre eles: a) a riqueza de recursos cômico-humorísticos que utilizam nas
tiras; b) a presença de formulações que exploram o implícito no âmbito lingüístico e
pragmático; c) o uso constante destas tiras em livros didáticos e provas de vestibulares para
análise lingüístico-discursiva; e d) o estilo humorístico singular dos dois autores na
formulação de seus quadrinhos.
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Procedimentos teórico-metodológicos
Uma das maiores dificuldades para analisar textos que pretendem fazer rir é a
identificação das especificidades do funcionamento da linguagem do humor, diferindo de
outros universos textuais. Muitos estudos não definem a esfera do domínio humorístico
como prática social de interação discursiva, reduzindo as análises a aspectos sociológicos
ou lingüísticos, de maneira isolada. Por conseqüência, questões relevantes que abordam os
dispositivos enunciativos, destinados à produção de efeitos humorísticos, são
desconsideradas.
No que tange à análise do objeto tiras em quadrinhos, as investigações mais recentes
se remetem a diferentes facetas de sua constituição. Alguns pesquisadores dão maior ênfase
aos fatores composicionais no plano figurativo. Ressalta-se a função dos vários tipos de
balões, o uso de vinhetas e legendas, as cores, os recursos onomatopaicos, o modo como os
personagens são desenhados e como os quadros estão organizados. Outros pesquisadores
dão destaque ao plano temático: são observados os assuntos tratados nas tiras, a forma de
representação e a posição ideológica dos personagens, conferidas nos episódios impressos.
No plano lingüístico, muitas pesquisas ressaltam os aspectos fonológicos, morfológicos,
sintáticos, bem como recursos de figura de linguagem geradores de expressão cômico-
humorística.
Em nossa pesquisa, propomos um olhar interativo sobre os aspectos enunciativos
relacionados à produção do efeito cômico-humorístico nas tiras em quadrinhos. Tal olhar
apóia-se na perspectiva de gênero discursivo, concebida por Bakhtin, e na noção de
domínio discursivo (esfera em que se encontra o discurso do humor e se realiza o gênero
tira de humor) proposta por Marcuschi (2002). O enfoque discursivo destes dois autores
reserva algumas diferenças que explicitaremos no decorrer deste trabalho.
As tiras, de uma maneira geral, utilizam muitos recursos icônicos que remetem ao
plano das ações de uma forma distinta das narrativas que utilizam somente a linguagem
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verbal. Nelas não há um narrador explícito que conduz o leitor a construir uma imagem dos
personagens e do cenário por meio de palavras. No lugar de textos regulados por signos
verbais, temos a projeção de enunciados constituídos pela associação de dizeres com a
representação icônica do contexto de sua enunciação.
Diferente da narrativa tradicional, promovida pela alternância dos enunciados
verbais assumidos pelo narrador e pelos personagens, as tiras em quadrinhos são
organizadas pelo discurso direto em que os personagens assumem a palavra sob o apoio das
imagens que procuram traduzir o cenário e as circunstâncias enunciativas. Nesse sentido, os
enunciados reservam em sua configuração aspectos formais que os distinguem dos textos
puramente verbais. Sua estrutura é compacta e condensada, as expressões dos personagens
são focalizadas para que o leitor se detenha em pontos específicos para os quais o autor
sugere um olhar crítico. Além destas diferenças, do ponto de vista estrutural e funcional, a
escolha temática sobre os assuntos abordados, em consonância com peculiaridades sócio -
culturais dos interlocutores, vão determinar o efeito risível. De acordo com Mendonça, as
tiras podem ser caracterizadas da seguinte forma:
As tiras são um subtipo de HQ; mais curtas (até 4 quadrinhos) e, portanto, de caráter sintético, podem ser seqüenciais (“capítulos” de narrativas maiores) ou fechadas (um episódio por dia). Quanto às temáticas, algumas tiras também satirizam aspectos econômicos e políticos do país, embora não sejam tão “datadas” como a charge. Dividimos as tiras fechadas em dois subtipos: a) tiras-piadas , em que o humor é obtido por meio das estratégias discursivas utilizadas nas piadas de um modo geral, como a possibilidade de dupla interpretação, sendo selecionada pelo autor a menos provável; b) tiras-episódio, nas quais o humor é baseado especificamente no desenvolvimento da temática numa determinada situação, de modo a realçar as características das personagens (...). Podemos, então, caracterizar provisoriamente a HQ como um gênero icônico ou icônico-verbal narrativo cuja progressão temporal se organiza quadro a quadro. Como elementos típicos, a HQ apresenta os desenhos, os quadros e os balões e/ou legendas, onde é inserido o texto verbal (MENDONÇA, 2002, p.199).
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Diferentemente das piadas, que descrevem o espaço enunciativo onde se realiza a
fala por meio de uma descrição verbal, as tiras descrevem o contexto com ilustrações
que representam cenários, gestos e expressões dos personagens. Além de informações
ditas nos balões e ilustradas nos quadrinhos, existe um espaço do não-dito e do não-visto
que configuram implícitos responsáveis pela produção do humor. Insere-se no âmbito
deste gênero um conjunto de elementos responsável pela evolução e graça da narrativa.
Se de um lado, o leitor ri das atitudes e da fala produzidas pelos personagens, de outro
lado, o leitor identifica um trabalho de arregimentação de vozes que o quadrinhista
articula para produzir ironias, paradoxo e nonsense. Junto com a análise das falas e do
comportamento dos personagens, existe a apreciação da orientação argumentativa
incongruente propulsora do riso.
O modo como o autor seleciona e distribui as ações enquadradas funciona como
sistema de referência cronológica e, por que não dizer, um sistema ideológico, já que a
narração é contada a partir de uma determinada perspectiva. Em muitos casos, o
quadrinhista expõe proposições e atitudes defendidas pelos personagens em uma
perspectiva ridicularizante ou contraditória, do ponto de vista da enunciação. Cabe ao
analista observar os contrastes e as pistas projetadas na representação construída pela
linguagem icônica e pelos enunciados verbais.
O gênero tira de humor faz parte da linguagem gráfica publicada nas colunas
jornalísticas. Sua linguagem apresenta semelhanças e diferenças com as charge e os cartuns
na maneira de abordar assuntos polêmicos da vida social. Enquanto a charge tem como
alvo as mazelas sociais de expressão datada, representando de forma crítica as celebridades
do mundo da política, dos esportes e do cenário artístico, o cartum trata de temas mais
universais atacando problemas relacionados aos valores e atitudes dos seres humanos,
diante de determinadas situações no cotidiano. A abordagem dos temas tratados pelos
cartuns ultrapassa o seu tempo; ele pode ser lido em uma época mais distante do seu
contexto de produção, visto que sua formulação estabelece críticas de teor mais genérico
que se estendem a diferentes grupos. Observamos que as tiras abordam os fatos sociais de
uma forma bem próxima à dos cartuns, não deixando, contudo, em muitos momentos de
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focalizar acontecimentos situados em uma dada época. É o caso de Quino, que no período
da ditadura militar na Argentina, lançou uma série de tiras que tinha uma relação intrínseca
com os fatos ocorridos naquele momento histórico.
Para caracterizar o gênero quadrinhos em seu aspecto risível, faremos uma revisão
bibliográfica com o objetivo de discutir a fronteira entre humor e cômico, e como seus
elementos se projetam nas tiras. Para nossa pesquisa, o cômico e o humor são duas formas
discursivas convertidas para efeito risível dotadas de princípios distintos. Enquanto o
primeiro trabalha traços críticos manifestados na atividade representada (que leva o
interlocutor a rir imediatamente), no segundo ocorre a utilização de formulações implícitas
que exigem um grau inferencial superior para chegar ao conteúdo risível. Dessa maneira, o
riso cômico é explosivo e provém da exposição de transgressões sócio-culturais localizadas,
de forma imediata, na exposição de ações representadas; já o riso do humor é contido,
proveniente de atitudes mais analíticas sobre as atividades lingüísticas. Enquanto o universo
cômico ganha expressão por meio da carnavalização, subversão da ordem estabelecida, o
humor se realiza por meio de chistes3 e de ironias. Essas relações serão extremamente
importantes para compreendemos a constituição do discurso cômico-humorístico no gênero
tira em quadrinhos. Apesar de trabalharmos as relações entre o cômico e o humor em todo
o estudo, daremos destaque às questões relativas ao segundo item, sobretudo aos
procedimentos lingüístico-visuais que exploram o não-dito e o não-configurado
cenicamente para obter o conteúdo risível.
Diante desta breve caracterização das tiras, dois procedimentos deverão ser
desenvolvidos em nosso estudo: a) retomaremos os estudos que investigam o uso dos
3 Os chistes são ditos espirituosos que obedecem a formulações lingüísticas geradoras de ambigüidades e implícitos em seu ato enunciativo. Sua função essencial, do ponto de vista da psicanálise, é descarregar o impulso agressivo de forma lúdica, provocando o riso como efeito.
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recursos da linguagem verbal e visual na constituição dos quadrinhos; b) especificaremos
os elementos discursivos que promovem o efeito risível no gênero tiras de humor no plano
enunciativo. Quanto ao primeiro item, propomos uma revisão histórica sobre dados
relevantes de como se consolidou a associação do discurso verbal com o icônico nas tiras
em quadrinhos.
Para refletirmos sobre os procedimentos enunciativos que geram efeito risível, no
interior do gênero tiras, partimos do pressuposto de que os dispositivos humorísticos
derivam de formulações implícitas apresentadas em diversos níveis da linguagem. Neste
contexto, identifica-se que não há uma teoria específica ligada ao discurso do humor. De
acordo com Possenti (1998, p.21), não há uma lingüística do humor, pelo menos, por três
razões:
a) não há uma lingüística que tenha tomado por base textos humorísticos para
tentar descobrir o que faz com que um texto seja humorístico, do ponto de vista
dos ingredientes lingüísticos;
b) no caso de se concluir que o humor não tem origem lingüística, que ele não é
da ordem da língua, não há uma lingüística que explicite ou organize os
ingredientes lingüísticos que são acionados para que o humor se produza;
c) não há uma lingüística que se ocupe de decidir se os mecanismos explorados
para a função humorística têm exclusivamente essa função ou se se trata do
agenciamento circunstancial de um conjunto de fatores, cada um deles podendo
ser responsável pela produção de outro tipo de efeito em outras circunstâncias ou
em outros gêneros textuais.
Estas constatações levam-nos a reafirmar uma abordagem enunciativa para
compreender a linguagem humorística das tiras. Além disso, levaremos em conta a
contribuição de estudos específicos sobre o humor e as discussões realizadas no campo das
ciências da linguagem. A exposição desses pressupostos teóricos nos ajudará a refletir
sobre o modo de produção dos enunciados de humor encontrados nas tiras. Sendo assim,
esta pesquisa tem o objetivo de estudar o modo de orga nização e funcionamento da
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linguagem do humor presente no gênero tira em quadrinhos e a repercussão das novas
teorias das ciências da linguagem no modo de analisar seu discurso. Neste contexto,
procuraremos comprovar a seguinte tese: a) as formas enunciat ivas relativamente estáveis
geradoras de humor encontradas nas tiras em quadrinhos vão além de estruturas narrativas
que objetivam contar uma história; seu processo de construção humorística obedece a
formulações argumentativas expostas pelo jogo de vozes apresentadas pelo quadrinhista. b)
Os estudos da Semântica Argumentativa e da Pragmática dão visibilidade ao
funcionamento discursivo do humor por meio de suas categorias de descrição enunciativas,
ampliando, assim, o olhar de gênero do discurso proposto por Bakhtin.
Do ponto de vista da organização da pesquisa, investigaremos as especificidades do
discurso do humor e sua relação com as tiras em quadrinhos, levando em conta as seguintes
noções: domínio discursivo do humor; gênero do discurso e gênero textual; tipologia
textual. Neste enfoque, configuraremos a noção de domínio discursivo cômico-humorístico
a partir de pesquisas sobre a comicidade em Bakhtin (1996), Bergson (1987) e Propp
(1992) e a noção de humor proposta por Freud (1977). As definições destes autores nos
ajudarão a esclarecer os limites formais do humor e do cômico que conformam as práticas
sociais humorísticas. A partir da exposição das teorias mencionadas, iremos demonstrar
como os dispositivos teórico-analíticos eleitos dão visibilidade ao funcionamento do
discurso do humor no gênero tiras em quadrinhos. Não pretendemos estabelecer aqui uma
fórmula para ler tiras em quadrinhos, mas refletir sobre o estilo da língua nos enunciados
das tiras e o modo enunciativo com que os quadrinhistas organizam as tiras para provocar
humor.
Acreditamos que este trabalho contribuirá com os estudos enunciativos voltados
para a leitura do gênero tira de humor. Tal proposta poderá estimular uma ampla reflexão
sobre os processos estilísticos do gênero na dimensão bakhtiniana, rompendo com
paradigmas da estilística tradicional. Neste processo de renovação de estudos estilísticos,
incluiremos as categorias advindas da Semântica e da Pragmática para uma nova forma de
abordar os enunciados definidos na esfera humorística. Deduzo que estas reflexões poderão
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impulsionar as práticas de interpretação sugeridas pelos materiais didáticos, e
conseqüentemente o trabalho desenvolvido pelos professores de Língua Portuguesa.
A CONSTITUIÇÃO DAS TIRAS EM QUADRINHOS CÔMICAS E
HUMORÍSTICAS
As tiras em quadrinhos são narrativas que se expressam por meio da articulação da
linguagem verbal com a linguagem visual. Apesar da grande influência dos Estados Unidos
na sedimentação das convenções do gênero tiras em quadrinhos, o modo de constituição e
denominação das tiras em diferentes países se deu de forma distinta. Nos Estados Unidos
elas são conhecidas como comics, pois as primeiras tiras tinham como princípio a
comicidade. Em Portugal e na França, “banda desenhada”, na Itália, “fumacinha”, no Japão,
“mangás”, na Espanha “tebeos” (nome derivado de uma revista chamada TBO), na
Argentina, historieta e no Brasil, tiras em quadrinhos.
Os estudos sobre a origem das tiras em quadrinhos apresentam muitas controvérsias,
no entanto podemos traçar uma breve trajetória de sua constituição. Diremos que o embrião
de sua formulação encontra-se na pré-história, quando o homem imprimia imagens de
animais nas paredes das cavernas como forma de representação gráfica. Por serem pintadas
em áreas muito escuras, que só podiam ser vistas à luz do fogo, arqueólogos acreditam que
esses desenhos estavam relacionados a rituais mágicos para dar sorte às caçadas e proteção
diante das intempéries.
Na Antigüidade, os desenhos ganharam arranjos singulares, visto que a arte de
narrar história por meio de seqüências de imagens comparecia em diversas civilizações,
como a dos sumérios, dos egípcios e gregos. Dependendo do tipo de sociedade e da esfera
de comunicação, tais registros eram produzidos em diferentes suportes (pedras, papiro,
tapeçarias, vasos), com finalidades diversas. De acordo com Feijó (1997), as narrativas
produzidas por imagens, além da função decorativa, reforçavam crenças religiosas e
ajudavam a produzir uma memória sobre os fatos históricos. Esta forma de representação
45
da realidade era bastante eficaz, visto que alcançava toda a comunidade que não sabia ler o
código escrito. Por meio dos mesmos recursos, a Igreja, na Idade Média, produziu vitrais
que ilustravam os episódios narrados na Bíblia para converter os indivíduos ao
Cristianismo.
O movimento pioneiro das tiras em quadrinhos Com a invenção dos tipos móveis por Gutemberg, a reprodução de textos impressos
multiplicou-se, possibilitando a publicação de livros, jornais e propagandas. De acordo com
Santos (2002), os primeiros jornais que noticiavam os fatos, com certa periodicidade,
ocorreram no século XVI, na Europa, no entanto sua consolidação se deu a partir da
Revolução Industrial, no século XVIII, com a ascensão da burguesia e disseminação dos
ideais liberais.
Neste contexto, o jornal impresso passou a adquirir funções relevantes, difundindo idéias e transformando fatos em notícias, que se tornavam conhecidas rapidamente. A literatura também se utilizou desse veículo de comunicação: diversos escritores publicaram suas histórias em capítulos nas páginas dos jornais, popularizando, dessa maneira, suas obras. Além disso, para atrair atenção dos leitores, os veículos impressos começaram a publicar ilustrações, histórias ilustradas e charges humorísticas (que geralmente, satirizavam figuras públicas da época). Este é o embrião do que seria chamado no futuro de História em quadrinhos (SANTOS, 2002, p.50).
O aperfeiçoamento de recursos gráficos e o aumento do número de pessoas
alfabetizadas estimularam a criação de novos gêneros discursivos para entreter a população
letrada. No campo humorístico, além das caricaturas, as narrativas ilustradas ganham
repercussão na imprensa. Um dos pioneiros deste movimento foi o pintor e caricaturista,
inglês, William Hogarth (1697-1764). Ele satirizava a moral da sociedade inglesa por meio
de seqüências de imagens que retratavam os fatos cotidianos. Para McCloud (2005), este
artista contribuiu para a formulação do gênero quadrinhos de maneira ocasional. Tudo
começou, quando Hogarth expôs um conjunto de imagens que deviam ser apreciadas lado a
lado, formando uma seqüência narrativa. Em seguida, suas pinturas foram reproduzidas e
distribuídas como um pequeno portifólio para venda comercial. O sucesso de uma das suas
histórias chamada “O progresso de uma prostituta” foi tão grande que resolveram publicá-la
46
em um jornal britânico, no ano de 1731. A partir de então, muitas sátiras, no formato de
quadrinhos, são difundidas nos jornais da época de maneira mais constante.
Outro precursor da história em quadrinhos foi um professor da Universidade de
Genebra chamado Rodolphe Töpffer (1799-1846). Suas histórias desenhadas,
acompanhadas de legendas, inicialmente, tinham a finalidade de divertir os seus alunos,
mas a repercussão foi tão grande que ele acabou lançando, entre os anos de 1833 e 1846
diversos álbuns cômicos, aliando a imagem à linguagem verbal de forma interdependente.
Goethe, um de seus maiores admiradores, dizia que suas histórias correspondiam a uma
espécie de “romance caricaturado” que devia ser lido aos poucos, por tamanha
profundidade. O enredo era composto de histórias fantásticas e humorísticas, recheadas de
situações absurdas. Os protagonistas de suas narrativas sempre almejavam coisas
relativamente simples, todavia as ações para obter o objeto do desejo desencadeavam uma
série de desastres. Esta fórmula encontra-se presente nos desenhos animados até os dias de
hoje. Para Moya (1993, p.10), o autor “reduz os personagens a nada mais do que bonecos
na vida cotid iana diante dos problemas comuns”. Um dos seus álbuns mais famosos “Les
Amours de Monsieur Vieux-Bois (1827) narra a vida de um homem que deseja viver uma
história de amor, no entanto sofre uma série de recusas. Desiludido, tenta se matar, mas
suas tentativas são vãs. Durante toda a história, o personagem se envolve em uma série de
confusões, não conseguindo realizar nenhum de seus objetivos. Vejamos, então um
pequeno trecho desta narrativa traduzido por Moya (1993):
Les Amours de Monsieur Vieux-Bois
47
(MOYA, 1993, p.7).
Rodolphe Töpffer preocupa-se, não somente, com a produção de histórias
legendadas, mas desenvolve, também, reflexões teóricas sobre a atividade de aliar texto e
imagem na formação de um novo tipo de literatura. Sobre este assunto o autor redige em
1845 Essai de Physiognomie. Neste estudo, o autor cogita a fundação de uma literatura
icônica com princípios narrativos regidos pela ilustração.
Outra contribuição significativa para o surgimento das tiras cômicas, destinada ao
público infantil, foi a produção de álbuns ilustrados com título de Max e Moritz4. Eles
eram desenhados e escritos em versos pelo alemão Wilhelm Busch (1832-1908). Os
protagonistas dessas histórias eram dois garotos travessos que aprontavam confusões para
se divertir. Muitas de suas narrativas foram condenadas pelos pedagogos, visto que os
garotos apresentavam comportamentos transgressores do ponto de vista ético. Apesar disto,
houve uma grande aceitação do público infantil na Europa e no Brasil, sendo acolhidas pelo
mercado editorial.
4 Os versos de Max e Moritz de Wilhelm Busch foram traduzidos por Olavo Bilac no Brasil e publicados em 1901 com o título de Juca e Chico.
48
As histórias de Max e Moritz não tinham, propriamente, uma estrutura de texto em
quadrinhos, pois eram acompanhadas de pequenos versos legendados que traduziam as
imagens. Podemos caracterizar as histórias de Busch como um livro de literatura infantil
que valorizou acima de tudo as ilustrações que falam por si mesmas. Observemos, a seguir,
como as ilustrações de Max e Moritz, mesmo com a ausência dos versos que constituem a
versão original, contam uma seqüência cômica.
MAX E MORITZ
1
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4
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9
(BUSCH, 2006, p.1-3). O marco fundador das tiras em quadrinhos e a presença cômica
Em meados do século XIX, há publicações constantes de histórias ilustradas e
legendadas em jornais, por toda a Europa, e também no Brasil. Contudo, considera-se como
49
primeiro personagem do gênero tiras cômicas um menino oriental orelhudo apelidado de
Yellow Kid (menino amarelo). Seu criador, Richard Outcault, publicou-o pela primeira vez
no jornal New York Word, em forma de charge, no dia 5 de maio de 1895. Com o objetivo
de satirizar a vida dos imigrantes que viviam nos cortiços da capital dos Estados Unidos,
ele desenhou um grupo de imigrantes com faixas na mão, cujo destaque era a figura
engraçada de um garoto feio que se encontrava no centro da lâmina. O sucesso da imagem
foi tão grande que o garoto se tornou personagem de pequenas histórias editadas
semanalmente. Geralmente, vinha escrito em seu camisolão enunciados com jogos de
palavras que remetiam a dizeres do personagem. Aos poucos, Richard Outcault introduziu
balões no interior dos quadrinhos que correspondiam à fala dos personagens. Essa criação o
projetou e o consagrou como fundador do gênero das tiras em quadrinhos. Por se tratar de
histórias engraçadas, esses textos foram denominados de comics nos Estados Unidos.
Vejamos uma de suas primeiras narrativas.
50
Além de personagens fixos e uso de balões implementados por Outcault, a arte
seqüencial publicada nos jornais foi aprimorada com a inclusão de outros recursos icônicos
que tornaram as narrativas mais dinâmicas. Destacamos duas contribuições significativas
que repercutiram na feitura das histórias em quadrinhos. Primeiramente, o alemão Rudolph
Dirks (1877-1968) publica em 1897, nos Estados Unidos, as tiras cômicas Os sobrinhos do
capitão. Ele insere em suas gags cômicas as primeiras onomatopéias e sinais gráficos que
passaram a corresponder a sons e idéias, configurando novos recursos semióticos para
projetar a narração5. Dirks também foi responsável pelo uso de molduras que contornavam
as seqüências. Sobre a criação de convenções, Gubern (1980) explica:
[...] os fonemas onomatopaicos ingleses integraram-se no código internacional do comics, tal como aconteceu com as metáforas visualizadas. Estas metáforas foram criadas para exprimir o estado psíquico dos personagens através de sinais icônicos de caráter metafórico e metonímico. Figuram entre estas convenções: o ponto de interrogação em cima da cabeça de um personagem, para indicar perplexidade; a lâmpada para exprimir a idéia < luminosa>; as <estrelas>, quando se recebe uma pancada (...) Muitos destes sinais são, à puridade, metonímias, provenientes da linguagem verbal (GUBERN, 1980, p.63).
A transposição das metáforas e das metonímias, presentes no repertório verbal,
materializa-se literalmente no discurso gráfico. Para expressar um dito censurado,
projetam-se no interior dos balões ícones como caveiras, cobras e lagartos, correspondentes
a símbolos culturais negativos. Juntamente com as metáforas visualizadas, análogas ao
discurso verbal, surgem as convenções gráficas sinestésicas que expressam o movimento
das ações decorrentes de sua natureza icônica. Por meio de pequenos traços descontínuos, é
possível representar a trajetória de uma bala de revólver na busca de um alvo. Com isso, a
linguagem dos quadrinhos rompe com a natureza estática dos desenhos, imprimindo o
5 Observamos que houve pouca preocupação com a tradução das onomatopéias nas tiras em quadrinhos. Geralmente, as formulações onomatopéicas da língua inglesa eram traduzidas sem nenhuma relação com os sons da língua em que os textos foram reeditados.
51
efeito de deslocamento e velocidade. Muitos artistas daquela época chamavam este recurso
de “fotografia mexida”6.
Diante de uma série de publicações que procuram seguir a padronização dos
quadrinhos incutida pelos pioneiros, George Herriman, com a criação de Krazy Kat, em
1910, explora a metalinguagem, construindo ilustrações nas quais os próprios protagonistas
pegam o lápis para desenhar o cenário, promovendo, assim, referências sobre a produção da
ficcionalidade gerada pelos personagens. Com isso, Herriman expressa graça, não somente
pelos indicadores do enredo, mas também, pela exposição lúdica do código narrativo
responsável pela feitura do gênero no interior do enunciado. Este mesmo quadrinhista cria
cenas em que os personagens ultrapassam os limites da moldura das tiras, transgredindo o
código já instituído no gênero tira.
Os sobrinhos do capitão
Rudol
ph Dirks
Krazy Kat
George Herriman,
Observamos que as convenções da linguagem das tiras em quadrinhos foram se
fixando de maneira gradativa com a contribuição de diversos artistas na produção dos
argumentos e no modo de projeção das imagens. Tal processo fez com que houvesse uma
preocupação maior com a padronização das tiras e o controle de sua comercialização nos
jornais. Todavia, a formalização destas convenções se consolidou quando as tiras saíram da
6 Neste mesmo período, as vanguardas européias, sobretudo o Cubismo, redimensionavam a idéia de movimento nas artes plásticas, exprimindo a idéia de perspectiva tridimensional o que muito contribui para a linguagem dos quadrinhos.
52
tutela das redações dos jornais para agências responsáveis pelos direitos autorais dos
artistas gráficos, denominadas de syndicate. A primeira agência foi fundada em 1912, nos
Estados Unidos, por Hearst, Syndicate International News Service, dando origem à King
Features, em 1914. A partir daí, uma série de sindicatos entraram em concorrência,
impondo um modelo de qualidade a ser seguido neste tipo de arte gráfica. De acordo com
Furlan, os sindicatos tiveram um papel fundamental na normatização dos quadrinhos.
Os “Sindicates”, além de possuir direitos sobre os trabalhos dos desenhistas (direitos sobre a venda e a distribuição), funcionam como agência de veiculação das histórias, preparando e emitindo milhares de matrizes a serem vendidas não só nos EUA como também em outros países. São responsáveis por alguns cuidados, ou seja, devem seguir um código de ética: as histórias não devem ofender nenhum leitor; não devem conter palavrões explícitos, que poderão ser substituídos por sinais convencionais; não devem conter sugestões de imoralidade; devem evitar controvérsias quanto à religião, raça ou política; devem evitar cenas de violência com mulheres, crianças e animais; não devem incentivar o crime, que será sempre punido (FURLAN, 1989, p.29).
Como vemos, a evolução do gênero tira em quadrinhos se deu sob o efeito de vários
fatores reguladores. Outro fator que determinou a forma constitutiva das tiras foi a demanda
do público leitor. É possível observar que nas duas primeiras décadas do século XX, havia
um predomínio das tiras cômicas difundidas nos suplementos dominicais. De acordo com
Feijó, os temas tratados nos quadrinhos vão se alterando gradativamente, das travessuras de
crianças perversas, as tiras cômicas passam a tratar de temas familiares7, visto que, além
das crianças, os adultos também eram leitores assíduos deste gênero.
A fórmula para fazer sucesso foi inventar coisas absurdas e
engraçadas, a partir de situações típicas do cotidiano das famílias.
A história começava e acabava na mesma tira (ou página
dominical). Prevalecia o desenho caricatural, não havendo nenhum
7 “Pioneira e modelo arquetípico desta tendência foi a ‘sátira familiar’, prolongação de uma vertente da ‘comédia de costumes’ e que em forma de narração desenhada, teve como fundador o desenhista francês Christophe (Georges Colomb), autor da aplaudida Famille Fenouillard (1989), série protagonizada por um casal com duas filhas, Artémise e Cunégonde, família provinciana e vaidosa que no primeiro episódio, visita a Exposição Universal de Paris” (GUBERN, 1980, p.33).
53
realismo estético, ou seja, os personagens nunca pareciam seres
humanos ou animais reais, na melhor das hipóteses eram apenas
desproporcionais (FEIJÓ, 200, p.19).
A fisionomia dos quadrinhos foi bastante modificada com inclusão das histórias de
aventuras e a migração dos desenhos animados (O Gato Félix, de Pat Sullivan, e Mickey
Mouse, de Walt Disney). O mercado editorial passou a valorizar o desenho artístico na
comercialização das tiras em quadrinhos, sobretudo, as histórias de aventura. As tiras
ganharam cenários mais detalhados e desenhos procuravam reproduzir o enquadramento
explorado pelo cinema.
Os diversos gêneros nas tiras em quadrinhos
Em 1929, ano do crack da bolsa de Nova Iorque, é lançada nas páginas diárias dos
jornais norte-americanos a série Tarzan, produzida por Hal Foster. O argumento da
narrativa se apoiou no romance Tarzan, o rei da selva (1912) de Edgar Rice Burroughs. A
edição em quadrinhos fez um grande sucesso, estimulando a produção de novos heróis com
o mesmo protótipo. Paralelas às aventuras do homem-macaco, surgem em 1929, as tiras de
Buck Rogers, adaptação da novela Armageddon 24198 de Phil Nowlan. Com esta série foi
inaugurado, então, o gênero ficção científica em quadrinhos. As histórias de Tarzan e Buck
Rogers rompem com o desenho caricatural dos personagens cômicos. As gravuras ganham
representações mais realísticas e os protagonistas assumem formas anatômicas mais
próximas do homem. Os heróis, em sua grande maioria, são adultos, inteligentes e têm
corpos musculosos.
A partir da década de 30 do século XX, há uma expansão do mercado editorial
devido à grande aceitação das histórias de aventuras. Neste contexto, uma legião de heróis
ganha espaço nas folhas suplementares dos jornais diários. Diferentes das tiras cômicas,
que se constituíam de pequenas piadas ou sátiras apresentadas em poucos quadros, as tiras
8 Esta ficção tem como protagonista o piloto Buck Rogers que, ao sofrer um acidente, desperta quinhentos anos depois da Primeira Guerra Mundial para defender a terra.
54
de aventuras demandavam um espaço gráfico maior, pois os enredos comportavam séries
mais longas. Tais episódios, então, eram apresentados em pequenos capítulos diariamente.
A fragmentação das narrativas nas tiras de jornal exigiu a criação de um novo suporte: as
revistas em quadrinhos (Comics Books). No interior deste formato, novas temáticas e novos
gêneros são incorporados à linguagem dos quadrinhos. De acordo com Viana, vários tipos
de heróis surgem para dialogar com as questões sociais daquele período.
O herói que combate a criminalidade é um bom exemplo. Nos EUA, a emergência do “crime organizado” e o crescimento da criminalidade a partir da crise de 1929, bem como o surgimento do FBI, promove o aparecimento de toda uma safra de heróis detetives, policiais e coisas do gênero, tal como Dick Tracy (1931); Agente X-9 (1934), Rip Kirby (1946), entre outros. As aventuras policiais marcam o nascimento de um subgênero no interior do gênero aventura, fazendo emergir a figura do “herói policial”, segundo expressão de Marny, sem ter o brilho que os demais possuem por suas limitações devido a sua ligação com a figura real do policial, inclusive aparência física, que, segundo alguns, encaixaria muito bem nos vilões (Marny, 1970). Outros subgêneros, expressando outros tipos de heróis, como o herói das selvas (Tarzan, Jim das Selvas, Ka-Zar, Tantor), o herói cômico (Popeye, Lucky Luke), o herói fantástico (Mandrake, Tabu – O Feiticeiro da Floresta), o herói de ficção científica (Buck Rogers, Brick Bradford, Flash Gordon), o herói-cowboy (Red Ryder, Bronco Bill – ex-Bufallo Bill Jr., Lone Ranger – O Zorro Cowboy, como ficou conhecido no Brasil) entre outros, manifestam, sob formas diferentes, as características básicas do gênero aventura. O herói cômico era uma tentativa de juntar dois gêneros, no qual a comicidade e o desenho caricatural se uniam com a narrativa seqüencial e longa na qual o herói buscava cumprir a sua missão justiceira (VIANA, 2004, p.3).
Ao final da Segunda Guerra Mundial, reflexões sobre valo res expressos nas tiras em
quadrinhos são intensificadas. Muitas histórias em quadrinhos produzidas pelos Estados
Unidos foram criticadas por servirem de instrumento de propaganda ideológica, sendo
proibidas em diversos países. Prevalece nas histórias de aventura a visão maniqueísta em
que se minimizam as contradições do capitalismo. Sociólogos e psicólogos afirmam que as
questões sociais são esvaziadas e os problemas do mundo são resolvidos por meio de
superpoderes. Em 1954, o psiquiatra Fredric Wertham escreve Seduction of the Innocent, e
55
rebaixa o valor das tiras, ainda mais, afirmando que os heróis das histórias de aventuras
estimulam a delinqüência juvenil com a alta exposição de violência e cenas de apelo
sensual. Tais críticas afetaram diretamente a hegemonia do parque industrial norte-
americano. Diante da censura aos quadrinhos por intelectuais e entidades religiosas, os
syndicates investem nas tiras cômico-humorísticas de cunho reflexivo.
A renovação do humor nas tiras em quadrinhos
Em 1950, destacam-se, na linha dos quadrinhos cômico-pensantes, as tiras de
Charles Schulz (1922- 2000) com a série Peanuts (conhecido no Brasil como Minduim ou a
turma de Charlie Brown). Em suas histórias, o cachorro Snoopy e as crianças reproduzem
os conflitos do universo psicológico infantil e as contradições do mundo adulto. Observa-se
que os aspectos cômicos e humorísticos ganham contornos distintos das tiras anteriores. De
acordo com Luyen (1990), os quadrinhos de formulação reflexiva sobre a linguagem dão
maior relevo aos ditos espirituosos expressos nos balõezinhos. O risível encontra-se mais
marcado no que é dito pelos personagens do que no enredo da narrativa. No lugar do
enquadramento cinematográfico das histórias de aventura, com cenários grandiosos e
mudanças de plano de expressão realística, as novas tiras humorísticas obedecem ao
enquadramento teatral em que o personagem entra e sai de cena como se estivesse atuando
em um palco com fundo branco. As tiras irão apresentar comportamento similar ao dos
esquetes que tratam de temas cotidianos de forma breve, porém de maneira crítica.
A simplicidade dos cenários e a valorização da palavra em uma esfera contingente
serão a base para pequenas narrativas que irão explorar trocadilhos, lapsos e atos falhos
como mote para provocar o riso no leitor. Seguindo esta trilha, Charles Schulz,
considerado o “Freud do comics”, traz para tiras em quadrinhos temáticas que evidenciam a
complexidade do universo infantil, explorando o discurso verbal como principal elemento
do efe ito risível. Em muitas de suas tiras destaca-se o tropeço lingüístico, isto é, atividades
verbais geradoras de equívocos ou ambivalências sob a esfera do contexto social. Por meio
de pequenas encenações, as crianças reproduzem o universo adulto denunciando as
contradições existentes nas relações sociais. Como vemos a seguir:
56
PEANUTS
( SCHULZ, 2006, p.3).
Charles Schulz foi um dos principais inovadores da argumentação humorística dos
quadrinhos na década de 1950, visto que explorou o balão do pensamento como recurso de
exposição de monólogos dos personagens. Dessa forma, o leitor passou a ter acesso à
esfera mais íntima dos personagens em seus aspectos inusitados. Neste novo terreno, é
fortalecida a convenção de os bichos expressarem suas idéias por meio do balão do
pensamento. O principal destaque é o cachorro Snoopy que apresenta raciocínios
filosóficos e lingüísticos que normalmente se atribui aos humanos. Com isto, o argumento
das narrativas reside em pequenos comentários irônicos, que ganham graça quando ditos
sob a perspectiva de um cachorro.
PEANUTS
( SCHULZ, 2006, p.3).
Seguindo a trilha das tiras cômico-humorísticas, sob o viés da carnavalização, é
publicada na França, em 1959, a série Asterix, produzida pelo roteirista René Goscinny
(1926-1977) e pelo desenhista Albert Uderzo. As histórias destes artistas denunciam a
invasão cultural norte-americana de forma alegórica e parodística, na medida em que a
maioria dos episódios tem como base a tentativa de invasão do Império Romano a uma
pequena aldeia gaulesa defendida pelos heróis Asterix e Obelix . A graça da série consiste
57
nas referências a grandes personalidades e na emissão de ditos absurdos em conjunção com
o período da Antigüidade. O jogo de intertextualidade remete a diversas questões político-
sociais vinculadas a acontecimentos históricos do mundo ocidental, exigindo do leitor
informações enciclopédicas para captar as relações críticas que produzem o efeito risível.
Albert Uderzo
Na década de 1960, os super-heróis das histórias de aventuras ganham nova
roupagem se aproximando do perfil do homem comum que tem suas fraquezas e conflitos
existenciais. Aparecem neste período as primeiras heroínas que rompem com o protótipo da
mulher frágil, dependente de um protetor, como Olívia Palito na série Popeye. Dentre as
personagens femininas do humor pensante de maior destaque, encontra-se a personagem
Mafalda, idealizada pelo argentino Joaquin Salvador Lavado (pseudônimo Quino). A
personagem foi criada para uma campanha publicitária de eletrodomésticos Mansfiel, em
1962, mas acabou sendo engavetada, pois a propaganda não foi veiculada na mídia. Em
1964, Quino reaproveita a personagem, publicando-a na revista Primera Plana até a época
de sua falência, em março de 1965. Neste mesmo ano, as tiras de Mafalda passam a ser
publicadas no jornal El Mundo, período em que Argentina vive a tensão do golpe militar.
As tiras da Mafalda tinham como princípio o diálogo com os acontecimentos da
época, funcionando como pequenas crônicas humorísticas. Diferente de Charles Brown,
que reflete sobre as questões existenciais, os temas tratados nas tiras da Mafalda têm como
foco predominante o dogmatismo expresso nas diferentes instituições sociais e o processo
de alienação e marginalização gerado pelo sistema capitalista. Para ironizar as diversas
58
instituições sociais, inclusive a família, o quadrinhista expõe atitudes incongruentes dos
personagens, denunciando suas falhas e defeitos por meio do discurso que os mesmos
produzem. Ao contrário dos textos críticos que procuram apresentar fatos para denunciar os
equívocos sociais, as tiras de Quino evidenciam as próprias ações para que o leitor perceba
as mazelas sociais. A criticidade de Mafalda efetua-se a todo instante por meio de
insinuações em que prevalecem os pressupostos e os subentendidos que devem ser
interpretados pelo leitor.
(QUINO, 2000, p.8).
Na década de 1970, as tiras cômico-humorísticas assumem a hegemonia nos
suplementos jornalísticos voltados para o público adulto. Na esteira dos quadrinhos de
formulação reflexiva sobre a linguagem, estréiam em 1973 as tiras do viking “Hagar, o
horrível”, produzidas pelo norte-americano Richard Arthur Allan Browne (1917-1989),
conhecido como Dick Browne. Esta série teve como referência as lendas nórdicas
protagonizadas por guerreiros vikings, que o autor contava para seus filhos quando eram
crianças. No lugar de personagens com características míticas, o quadrinhista cria um anti-
herói cheio de vícios e defeitos (mente, bebe, come muito, não toma banho, rouba e não
paga impostos) que vão de encontro aos padrões de conduta aceitos socialmente. Desta
forma, o autor ataca as relações e os papéis sociais que o personagem desempenha no seu
dia-a-dia de forma ambivalente. Se em um dado momento Hagar é aquele que detém o
poder, em outro assume um papel subserviente, chegando a ser ridicularizado por sua
esposa Helga. Se por um lado, o personagem incorpora a imagem de saqueador valente,
vivendo uma série de situações desafiadoras, por outro, Hagar se projeta como um
59
bonachão, sem credibilidade diante das coisas que diz para sua família, inclusive para seu
cachorro. Para superar as frustrações mais imediatas, os diversos personagens que
compõem a série sempre emitem, nos diálogos ditos espirituosos, cheios de jogos de
palavras e subentendidos. Com a morte de Dick Browne, em 1989, as tiras Hagar, o
horrível passam a ser escritas por seu filho, Chris Browne 9, apresentando estilo de
produção humorística similar, com ligeiras modificações.
Observamos que a tendência dos quadrinhos humorísticos se consolidou em uma
vertente crítica, do ponto de vista do uso da linguagem, assumindo uma perspectiva
hegemônica em nossa contemporaneidade nos jornais. Além desta proposta humorística,
destacam-se na virada do século os quadrinhos underground10 que se apresentam em uma
perspectiva mais transgressora, trazendo temas mais polêmicos como drogas, prostituição,
homossexualismo etc. Tal proposta significa um movimento de abertura temática, que até
meados dos anos 60 eram abolidas pela sociedade. A existência de uma variedade de
gêneros que se apropria da linguagem dos quadrinhos convida-nos a refletir sobre
procedimentos específicos de análises que nos permitem identificar diferenças entre os
tipos de textos que circulam socialmente, configurando um olhar mais voltado para o
gênero tira de humor, como faremos no capítulo seguinte.
9 Neste trabalho apresentaremos as tiras Hagar, o horrível criadas por Dik e Browne e a de seu filho Chris Browne que dá continuidade a trabalho de seu pai, mudando ligeiramente o estilo da linguagem da série original. 10 O movimento underground foi deflagrado no período da guerra do Vietnã e do movimento hippie quando parte da sociedade demonstrava um olhar cético em relação ao destino da humanidade. No campo das histórias em quadrinhos iniciou-se um movimento de profundas críticas aos Syndicates que buscavam uniformizar o processo criativo das tiras em uma perspectiva moralizante. De acordo com Furlan (1989), em 1966 foi fundado o Underground Press Syndicate com o intuito de ditar regras das tiras marginais, assumindo uma postura contraditória à proposta do movimento inicial. Segundo Paixão Junior (2006, p.10) “Robert Crumb foi o mais importante autor underground, responsável pelo primeiro gibi independente da história, a Zap Comix (com “x”, para se diferenciar dos comics correntes). Antológico entre suas várias criações é o gato Fritz, possuidor tanto de um visual que remete ao infantil universo Disney, quanto de uma trajetória emblemática: de universitário boçal passou a hippie decadente para, em seguida, tornar-se um abjeto astro da mídia.” No Brasil, o principal representante da literatura underground é o cartunista Angeli, criador na década de 80 da revista da contra-cultura Chiclete com Banana com as histórias de Bob-Cuspe e da Rê. Esta revista divulgou o trabalho de diversos artistas que seguiam a mesma linha de seu fundador, como Laerte, Luiz Gê, Cláudio Paiva e Glauco.
60
A NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO E AS TIRAS EM
QUADRINHOS
Em meio à diversidade de projeções enunciativas, uma das maneiras de observar a
identidade de um texto são os traços semelhantes que ele apresenta, em seu aspecto formal
e funcional, na relação com outros textos. Ao qualificar os textos em gêneros,
desenvolvem-se classificações idealizadas por um conjunto de critérios que não são
organizados por princípios lógicos, mas por abstrações condicionadas a fatores sócio -
históricos. As primeiras conceituações de gênero do discurso derivaram dos estudos
literários, vigorando, somente no século XX, as contribuições da lingüística, reconhecida
como ciência. Em muitos momentos, a noção de gênero ainda é confundida com a noção de
tipologia, como veremos no decorrer de nossa discussão. Podemos afirmar que a concepção
de gênero ou de tipo textual determina a relação que os sujeitos estabelecem com os textos.
Por isso desenvolveremos uma reflexão sobre a construção de critérios para identificar
regularidades e formas de funcionamento da linguagem que indicam a formação de um
gênero. A partir desse parâmetro, iremos esclarecer princípios que ajudam a caracterizar e
compreender o gênero tira de humor.
A palavra gênero vem do latim genus-eris que significava origem, família, espécie,
agrupamento de indivíduos dotados das mesmas características. Platão e Aristóteles
desenvolveram essa noção para categorizar os textos artísticos que circulavam na
Antigüidade, a fim de classificá- los, do ponto de vista estético e literário. Estes primeiros
estudos tinham como pressuposto a existência de: imutabilidade, fixidez das formas e
unidade de emoção em cada gênero identificado. Se por um lado, houve a percepção de
regularidades existentes nos textos, por outro, prescreviam-se formas providas de valor
literário a partir de um padrão preestabelecido. Desta maneira, as pessoas que escreviam em
um dado gênero, procuravam seguir as convenções ditadas nas grandes poéticas escritas por
Aristóteles e Horácio entre outras. Algumas classificações, produzidas na Antigüidade,
61
atravessaram a História, apresentando princípios modelares de “boa literatura”
considerados até os dias de hoje.
A organização dos critérios para classificação dos gêneros literários obedeceu,
essencialmente, a domínios formais e funcionais no âmbito artístico. Havia a distinção entre
o discurso sério e o cômico, dividindo os textos teatrais em tragédias e comédias. A noção
de prosa e de poesia era determinada pela rima e o ritmo das palavras no discurso.
Obedecendo à perspectiva de Platão, no livro III de A República, esboçou-se uma visão
tripartida de Literatura que distingue os gêneros em: épico, lírico e dramático. Neste
contexto, o gênero lírico manifesta-se como expressão subjetiva da realidade, sob a
angulação e a voz do eu- lírico; o gênero dramático seria aquele que se organiza pelo
discurso direto em que os personagens assumem a palavra (expressa nas tragédias e nas
comédias); já no gênero épico, os textos são resultantes da combinação do ponto de vista do
narrador com o dos personagens, podendo ser exemplificado com as epopéias e textos
similares. Este tripé abriu brecha para o diálogo de Aristóteles com Platão sobre os textos
mais próximos da mímese (imitação e representação da realidade), instigando, na
contemporaneidade, o debate sobre a construção de perspectiva discursiva.
Além dos gêneros literários, foram estudados por Aristóteles (1999) os gêneros
retóricos produzidos na modalidade oral. Seu livro a Arte Retórica, além de expor as regras
fixas que ordenam um discurso (exórdido, narração, provas e perolação), reflete sobre os
recursos que promovem a persuasão de uma platéia. Para ele, nenhum discurso pode ser
pensado somente em termos de sua estrutura verbal. Para persuadir um auditório é preciso
levar em conta o caráter moral do orador (ethos), o apelo emocional que atinge o ouvinte e
gera simpatia (pathos) e o modo de organização do discurso (lógos). A forma de
interpelação do orador e sua relação com a platéia sofrem variação de acordo com os
objetivos do ato verbal. Sendo assim, Aristóteles classifica os gêneros de acordo com
relações no espaço público em três formas discursivas: deliberativo, epidítico e judiciário11,
como vemos no seguinte quadro de Reboul (1998):
11 O discurso epidítico é demonstrativo e tem o objetivo de revitalizar valores de uma determinada comunidade, manifestados no presente (com valor atemporal), servindo de base para toda argumentação. O discurso judiciário visa determinar o justo e o injusto sobre uma ação passada, por meio de silogismo que
62
CATEGORIAS DE GÊNEROS DISCURSIVOS OU ORATÓRIOS ANÁLISE JUDICIÁRIO DELIBERATIVO EPIDÍTICO
AUDITÓRIO Juízes Membros de uma Assembléia
Espectadores/ Público
ATO ou FINALIDADE
Acusar/ Defender
Aconselhar/ Desaconselhar
Louvar/ Censurar
OBJETO ou VALORES Justo/ Injusto
Útil/ Prejudicial
Belo-nobre/ Feio-vil
TEMPOS Passado Futuro Presente RACIOCÍNIO ou
ARGUMENTO-TIPO Entimema (dedutivo)
Exemplo (indutivo)
Comparação/ Amplificação
LUGARES COMUNS
Real/ Não-real
Possível/ Impossível
Mais/ Menos
( REBOUL, 1998, p. 47).
Um dos pontos de destaque da visão de Aristóteles foi a valorização da platéia para
quem o discurso é dirigido. De acordo com a sua perspectiva, toda expressão de
convencimento está ligada às circunstâncias e à finalidade. Ele afirma que o bom discurso
deve contar com silogismos parciais que permitam ao interlocutor deduzir e chegar às suas
conclusões. Uma das principais estratégias de adesão a um ponto de vista são os
entimemas, isto é, silogismos que contam com a participação do interlocutor para completar
o raciocínio. Esta será uma das estratégias preferidas de quem deseja acusar ou estabelecer
uma ironia. Com este procedimento, o orador valoriza as inferências que a platéia
estabelece, tornando seu discurso mais eficaz. O entimema é um recurso, também, bastante
utilizado nos enunciados irônicos dos personagens das tiras em quadrinhos para produzir
humor.
HAGAR – Dik Browne
conta com inferência do jurado. Já o discurso deliberativo aponta caminhos favoráveis a uma comunidade diante do futuro.
63
(BROWNE, 2005, p.14).
Observamos no quadrinho de Browne uma cena de muita alegria, como se fosse de
uma grande festa. Um personagem indaga o motivo da alegria. O segundo comunica que
Hagar está tomando banho. Diante deste fato, o leitor pode deduzir: se os festejos ocorrem
somente em momentos especiais, e se a razão do festejo é o banho de Hagar, então significa
que Hagar raramente toma banho. O entimema convida o leitor a deduzir pelos elementos
demonstrados e afirmados no discurso que Hagar não tem hábitos de higiene; sua sanção é
o riso com função corretiva. A produção de discurso, baseada em silogismos, valoriza o
ouvinte, tornando mais fácil a adesão da platéia ao que se quer afirmar. Tal procedimento
dedutivo é bastante utilizado na publicidade para convencer o seu destinatário sobre a
qualidade do produto anunciado.
O estilo do autor, a sociedade e o texto na constituição do gênero
De acordo com Brandão (2000), a tradição de classificar os textos perdurou por toda
a história da cultura ocidental. Na Idade Média cultivou-se a teoria dos três estilos,
denominados de elevado, médio e humilde. Estes três gêneros eram exemplificados por
meio de três obras de Virgílio: “a Eneida, representando o estilo elevado, as Geógicas, o
estilo médio, e as Bucólicas, o estilo humilde”(2000, p.18/19). Na opinião da autora, essa
distinção era ao mesmo tempo literária (baseada na escolha lingüística e no tipo de
vocabulário utilizado) e sociológica, na medida em que cada obra retratava grupos sociais
distintos: guerreiros, camponeses e pastores. Nessa mesma época, eclodem na Europa
cantigas, baladas, trovas e novelas de cavalaria, ampliando a diversidade textual que se
multiplicará ainda mais com o advento da imprensa.
Com a circulação de uma variedade de formas textuais no Renascimento, a
referência de obra literária recai sobre os modelos de tradição greco-latina defendida,
principalmente, pela poética de Boileau (1636-1711). Concebida sob o viés racionalista, a
concepção de gênero prevê a imitação dos grandes clássicos da Antigüidade como motivo
64
inspirador das novas obras. Essa forma dominante exercerá alta influência sobre o modo de
produção dos gêneros literários até o Romantismo.
Moisés (1989) afirma que no século XVIII ocorre um movimento de ruptura à
concepção de gênero ditada por regras seculares. O Romantismo difundido na Alemanha e
na Inglaterra fez cair por terra a discriminação do gênero impuro, valorizando os “gêneros
mistos e comunicantes”. A fusão dos gêneros tragédia e comédia como elemento derivante
do gênero drama passa a ser vista como um fator enriquecedor nas artes. Difundem-se
maior liberdade de criação e aceitação das formas que rompem com padrões fixos do
cânone literário. É defendida, nesse período, a idéia de originalidade e de autor como gênio,
capaz de imprimir uma forma singular de expressão, inovando, assim, os gêneros
existentes.
Com a visão cientificista, a questão do gênero volta a ser discutida sob outros
moldes. De acordo com Moisés (1989), o crítico literário Ferdinand Brunetière, baseado na
teoria evolucionista de Hebert Spencer, publica um estudo sobre a evolução dos gêneros em
L’ Évolution de Genres dans l’Histoire Littéraire (1890). Este autor defendia a idéia de que
os gêneros literários são como seres biológicos: eles nascem, desenvolvem-se e morrem.
Em conseqüência disto, os gêneros eram vistos como entidades que desaparecem em
decorrência das novas demandas sociais. Tais estudos assumem uma perspectiva
sociológica determinista, justificando a formação e a permanência dos gêneros por fatores
externos ao texto. A partir deste ponto de vista, algumas correntes sociológicas procuram
explicar a origem do gênero em decorrência da superestrutura (condicionamentos políticos
e econômicos). Teóricos desta vertente justificavam, por exemplo, o surgimento do
romance pelo nascimento da burguesia, vendo a literatura como mero reflexo dos
acontecimentos históricos. Tal perspectiva toma a linguagem literária como instrumento de
comunicação, sem atentar para o processo de produção de realidade que ocorre a partir da
elaboração artística12.
12 A análise pode ser reducionista quando se absorve o texto como reflexo dos condicionamentos sociais. A abordagem sociológica identificava a obra como reflexo do que acontecia no sistema social, e não como um construto que cria realidades. Este tipo de análise não vê a obra literária em si, não observa a sua linguagem e o estilo do autor como fator fundamental na produção dos enunciados. Para a sociologia da
65
Correntes textualistas como o Formalismo Russo, na União Soviética e o New-
Criticism13, nos Estados Unidos, estabeleceram no início do século XX novas indagações
sobre a formação dos gêneros e o que gera um texto literário. Contrapondo-se à
supervalorização do elemento extratextual para analisar os gêneros literários, sob seu
aspecto temático, as duas vertentes mencionadas valorizaram o texto enquanto construto
mediado por sua estética. A significação de um texto não decorre somente de seu conteúdo,
mas também dos elementos estéticos que desempenham uma função na projeção da forma.
Os Formalistas Russos, grupo de autores vinculados à Teoria da Literatura na União
Soviética, contestaram a visão de estétic a da linguagem em uma perspectiva historicista ou
subjetivista; os gêneros literários não têm um fim em si, ocorrem processos criativos de
transmutação e retorno de formas artísticas. Ao invés de estudar os elementos
extraliterários (vinculados à História Geral da Literatura) para refletir sobre os gêneros,
preferem identificar procedimentos geradores de literariedade como a escolha lexical, as
associações semânticas e a disposição dos enunciados na forma de comunicação. Para
determinar os princípios geradores de literariedade, Chklosvsky (1978) vê a Literatura
como expressão artística capaz de abalar os princípios de automatização da linguagem
verbal encontrados na vida cotidiana. Ele observa que as atividades artísticas provocam
desvios de linguagem promotores de percepções singulares dos objetos ou fenômenos
contemplados.
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o reconhecimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do
literatura a linguagem é meramente instrumental. Sabemo s que a linguagem não é um instrumento de comunicação simplesmente, as mudanças que ocorrem no plano da linguagem têm a capacidade de alterar a relação do homem com o mundo, por isso todas atividades artísticas, que atuam sobre o modo de expressão, desempenham um papel revolucionário. 13 Corrente de estudos literários norte-americana que surgiu nos anos 1930 com o intuito de analisar os textos enquanto objeto estético. Seu método de estudo fundamentava-se no close reanding (leitura fechada no próprio text o) se opondo ao reducionismo sociológico e a falácia da intencionalidade do autor.
66
objeto, o que é já “passado” não importa para a arte (Chklosvsky, 1978, p.45).
Chklosvsky afirma que a estética literária produz um efeito de “estranhamento”
que gera um olhar diferenciado sobre a própria linguagem. Um dos principais
procedimentos para garantir esse efeito é a repetição e a formulação de imagens verbais e
visuais que rompem com a percepção automatizada encontrada na esfera de comunicação
cotidiana. Em seu estudo, evidencia-se a contraposição da linguagem cotidiana à linguagem
artística para identificar traços de literariedade em um texto. Para ele, a obra de arte é
resultado da exposição de uma percepção singular sobre a realidade, provocando um
sentimento de contemplação (ou uma espécie de “estranhamento”). Observamos que o
posicionamento deste autor é bastante discutível, visto que a construção da categoria
“estranhamento” para refletir sobre o modo de projeção dos enunciados na produção de
efeito de sentido não corresponde a um fator exclusivo dos textos literários. Apresentamos
dois exemplos de expressão que exploram os recursos da linguagem verbal de forma
singular, a seguir:
HAGAR - Dik Browne
(Folha de São Paulo,13/12/04).
Na linguagem corrente o falante utiliza a estrutura congelada da língua “bens de
consumo”. Para contrapor com o uso trivial desta expressão, o quadrinhista cria o sintagma
“males de consumo”. A contraposição dos dois termos coloca em xeque a própria noção de
“bens de consumo” ao expor a existência de algo a ser vendido com a denominação “mal de
consumo”. Além disso, a venda dos males de consumo é colocada como um bem mais
barato, gerando aí o efeito risível. Na prosa cotidiana ocorre também o mesmo fenômeno
67
estilístico por meio da sintaxe e do jogo de palavras. Quino procura retratar essa situação
em um diálogo de Mafada com Felipe:
(QUINO, 2000, p.33).
Como vemos, o “uso especial da linguagem” não se constitui como recurso
exclusivo da literatura; as adivinhas, as parlendas e as piadas também fazem uso deste
procedimento. Quino propõe a repetição da palavra “barbaridade”, enquanto expressão
idiomática, usada no cotidiano com sentido de ser custoso ou no sentido de ser
ultrapassado, “pouco civilizado”. A mesma expressão “barbaridade” é repetida diversas
vezes, levando o leitor a perceber a convergência de sentidos que o uso do vocábulo é
capaz de estabelecer na esfera comunicativa. Com isso, observamos que o estatuto da
literatura ou de qualquer outro domínio discursivo é decorrente de outros fatores que
ultrapassam os limites da linguagem por si só.
Percebemos que o emprego singular da linguagem não tem a ver especificamente
com valores intrínsecos à linguagem poética, mas está diretamente vinculado aos usos
sociais da língua nas esferas sociais. A forma verbal da carta de Pero Vaz de Caminha, em
1500, correspondia a um uso da língua na esfera cotidiana, já no século XX as mesmas
sentenças produzem um efeito diferenciado no âmbito da comunicação. Nesse sentido, o
que pode causar estranhamento no plano da linguagem, em dado momento histórico, pode
ser naturalizado e constituir-se em um clichê em outra época. Sendo assim, os princípios de
desautomatização da linguagem é um trabalho que ocorre tanto no discurso literário como
na prosa cotidiana, sendo bastante freqüente nos textos de humor.
68
Dois pensadores do formalismo russo, Tynianov e Jakobson, ampliam a discussão
sobre literariedade, afirmando que todo estudo literário só pode ser investigado em seu
território cultural. Para eliminar a visão subjetivista, os formalistas tomam a obra literária
como sistema constituído de elementos internos interdependentes que dialogam com um
conjunto de outras séries literárias e não- literárias. Tynianov (1978) no artigo Da Evolução
da Literatura desenvolve a noção de sistema para se livrar do psicologismo personalista e
da visão historicista dos estudos literários evolucionistas fechados na tradição. O sistema
literário seria constituído por meio da linguagem verbal com um uso específico que só pode
ser compreendido na relação com a linguagem de outras esferas sociais. Nesse sentido, todo
gênero literário só poderia ser estudado a partir da função que desempenha no âmbito de
um sistema maior. “A existência de um fato como fato literário depende de sua qualidade
diferencial (isto é, de sua correlação seja com a série literária, seja com uma série
extraliterária), em outros termos, de sua função” (Tynianov 1978, p.109). Com esta
premissa, toda tentativa de definição de gênero se encontra vinculada à função dos
elementos que constituem um texto sob a determinação de um conjunto de séries com as
quais dialoga.
Jakobson (1978) reafirma os mesmo postulados, demonstrando que os textos
devem ser pensados como um sistema dinâmico e dialético. Tal perspectiva prevê formas
“dominantes”14 que orientam o modo de produção de escrita, sem descartar outras
manifestações de linguagem que se encontram à margem. Desta maneira, em cada período
histórico existe uma dominante que atua como instância reguladora do processo discursivo
dos textos literários que circulam socialmente.
14 Jakobson, no texto “O dominante”, afirma que em cada período literário uma forma de trabalho poético instala-se como parâmetro do fazer artístico. Na Renascença, o critério estético dominante era guiado pelas artes visuais, já no Romantismo a poesia direcionava seus olhos para a música; a estrutura dos poemas obedecia a uma estrutura melódica. Já na estética realista, o dominante na poesia foi a arte verbal, fazendo com que os valores poéticos se voltassem para a articulação da palavra em diversos níveis do discurso. Podemos notar que houve uma variação do dominante, também, nas tiras em quadrinhos, visto que no início do século XX vigoraram as sátiras e o pastelão. Já nos anos 1930 a 1950 prevaleceram as tiras de aventura, e a partir dos anos 1960, a valorização do humor reflexivo com enfoque nas atividades enunciativas de efeito risível.
69
O redimensionamento da noção de gênero e estilo na esfera cotidiana
A noção de gênero ganha uma nova configuração com os estudos de Mikhail
Bakhtin, quando este conclui que as diferentes manifestações da linguagem nas interações
sociais assumem formas enunciativas relativamente estáveis. Ou seja, em toda situação
comunicativa, oral ou escrita, existe um modo de organização verbal, socialmente
constituído, que consagra um repertório de estruturas enunciativas que orienta o falante no
uso da língua. Nesse sentido, a definição de gênero não se restringe, somente, às atividades
literárias, mas corresponde a todo sistema regulador de produção discursiva, sedimentado
em uma sociedade, com a finalidade de produzir um determinado efeito sobre o
interlocutor. Bakhtin, então, faz uma série de críticas aos antigos estudos em torno da
diversidade textual:
Estudaram-se, mais do que tudo, os gêneros literários. Mas estes, tanto na Antiguidade como na época contemporânea, sempre foram estudados pelo ângulo artístico- literário de sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da literatura), e não enquanto tipos particulares de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais, contudo têm em comum a natureza verbal (lingüística). O problema de lingüística geral colocado pelo enunciado, e também pelos diferentes tipos de enunciados, quase nunca foi levado em conta. Estudaram-se também – a começar pelos da Antigüidade – os gêneros retóricos (e as épocas posteriores não acrescentaram nada de relevante à teoria antiga). Então dava-se pelo menos maior atenção à natureza verbal do enunciado, a seus princípios constitutivos tais como: a relação com o ouvinte e a influência deste sobre o enunciado, a conclusão verbal peculiar ao enunciado (diferente da conclusão do pensamento), etc. A especificidade dos gêneros retóricos (jurídicos, políticos) encobria a natureza lingüística do enunciado (BAKHTIN, 1992 p.280).
70
Bakhtin ainda critica os estudos sobre o gênero do discurso cotidiano com base na
escola saussuriana, promovidos pela vertente Behaviorista, presa a estruturas verbais fora
do contexto de uso da língua. Para ele, tais pesquisas não apresentavam uma definição
satisfatória sobre a natureza lingüística dos enunciados. Sendo assim, Bakhtin investiga os
processos comunicacionais e conclui que a natureza dos enunciados se encontra nas
interações sociais e na relação entre os gêneros primários e gêneros secundários 15. A
natureza dos gêneros primários decorre da produção de enunciados concretos em dada
situação de comunicação, seguida de escolha lexical, composição de enunciados e projeção
de individualidade do locutor com traços regulares. Nesse sentido, todo falante pode agir
criativamente ou assumir um estilo mais controlado de acordo com a situação discursiva.
Nesta perspectiva, a noção de gênero está vinculada à noção de estilo lingüístico, visto que
toda variação do gênero envolve a circunstância, posição social do falante e o tipo de
relacionamento entre os interlocutores, ocasionando assim um discurso (com um estilo)
mais espontâneo ou mais padronizado. Bakhtin então difere o estudo estilístico de sua
abordagem com o da visão tradicional.
O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado. Isso não equivale a dizer, claro, que o estilo lingüístico não pode ser objeto de um estudo específico, especializado. Porém, para ser mais correto e produtivo, este estudo sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio em sua diversidade (BAKHTIN, 1992, p.284).
O estudo do estilo dos enunciados deve levar em conta as diferenças e a inter-
relação entre o gênero primário e o gênero secundário no qual os enunciados estão
incorporados. Enquanto os gêneros primários se expressam de forma espontânea tanto no
universo íntimo (cartas, diários) como nas interações sociais imediatas, constituídas pela
“linguagem das reuniões sociais, dos círculos de linguagem familiar cotidiana, linguagem
sociopolítica, filosófica, etc.”, (Bakhtin, 1992, p.285) os gêneros secundários aparecem em
circunstâncias comunicativas mais complexas, sob a mediação, principalmente, do discurso
15 “A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários de outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado e, acima de tudo, o difícil problema entre língua, ideologias e visões de mundo” (BAKHTIN, 1992, p.282).
71
escrito (da literatura, da ciência, da filosofia e da política). Além disso, há gêneros
marcados por maior subjetividade do autor na produção dos enunciados, enquanto outros
devem obedecer a um construto mais padronizado como é o caso dos formulários e dos
documentos oficiais.
Verificamos que as piadas, os ditados populares e as adivinhas que se encontram no
gênero primário ganham uma nova configuração nos gêneros secundários (o teatro, o
romance, o discurso científico, os quadrinhos). Dessa forma, um chiste realizado em uma
conversa cotidiana, ao ser incorporado em um gênero secundário como o das tiras em
quadrinhos, extrai e acrescenta novos elementos responsáveis por sua composição
estilística. Agora o chiste recebe tratamento focalizado, em que um conjunto de estratégias
elaboradas pelo autor, instância situada fora da produção material do texto, tem o objetivo
de tornar engraçada uma fala ou a ação de um personagem.
Enquanto o chiste na oralidade é executado de maneira espontânea em determinado
momento da conversa, nas tiras o autor estabelece um recorte, considerando-o como um
enunciado em si, na relação com outros enunciados16. Tal perspectiva modifica, assim, a
relação dos enunciados recebidos na esfera comunicativa oral e na dimensão dos
quadrinhos (gênero secundário). Existe aí um trabalho do quadrinhista apropriar-se de
segmentos do gênero primário para projetar diálogos risíveis. Nesse sentido, as
formulações chistosas deixam de se instalar em uma es fera privada para desempenhar outro
papel na instância pública. Estamos abordando, então, a encenação do chiste e não mais a
consumação do chiste sob a esfera íntima de comunicação. Cabe aqui entender os
condicionantes de sua formulação e o papel do autor no processo de arregimentação e
promoção de um estilo.
16 Se no dia-dia o chiste é realizado entre os agentes que interagem em uma situação concreta de comunicação na esfera íntima, correndo o risco de se tornar um recalque, caso não seja bem sucedido, os chistes nas tiras em quadrinhos, por sua vez, são configurados em outro nível de comunicação, ocupando uma função interacional distinta. O insucesso de uma encenação de um chiste não pode ser conferido pelos agentes que os produz, visto que são seres ficcionais, portanto na relação chiste encenado-leitor a questão do recalque se encontra fora de cogitação.
72
De acordo com Bakhtin (1992), podemos observar que os gêneros, da mesma forma
que a língua, são determinados por duas forças opostas: centrípeta e centrífuga. A primeira
voltada para a regulação, unidade e permanência de formas enunciativas de acordo com os
propósitos interacionais. Seus princípios atuam sobre os usos regulares dos signos,
fornecendo parâmetros de comunicação, mais ou menos estabilizados. Já a força centrífuga
diz respeito aos condicionamentos histórico- ideológicos que mobilizam e reconfiguram o
modo de produção de significação de um dado gênero. Muitos gêneros podem passar por
profundas transformações, ganhando novas configurações e uma nova identidade. Neste
sentido, existem princípios heterogêneos que regem a forma de organização e renovação
dos gêneros. Uma das formas marcantes de transformação de um gênero é o estilo que um
determinado autor pode imprimir no processo de composição de um texto. Por isso,
consideramos, como Bakhtin, que uma das maneiras de compreender os gêneros
discursivos é nos remetermos ao estudo da dinâmica concreta dos enunciados, levando em
conta os seguintes princípios na esfera do estilo, resumidos por Souza (1999 p. 113):
a) estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas
e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de
estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e
os outros parceiros da comunicação verbal;
b) estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado;
c) o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo objeto do
sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação valorativa que o
locutor estabelece com o enunciado;
d) uma análise estilística que queira englobar todos os aspectos do estilo
deve obrigatoriamente analisar o todo do enunciado e, obrigatoriamente,
analisá- la dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é
apenas um elo inalienável ( 1997, p.113).
73
Gênero do discurso, tipologia e gênero textual
O que nos parece interessante discutir nesta secção é a dificuldade de enquadrar as
tiras de humor em uma tipologia narrativa, em que se observam, simplesmente, as
transformações ocorridas na passagem de um quadrinho para outro. O estudo do gênero tira
humor apresenta uma série de aspectos, em sua forma de funcionamento discursivo, que
torna difícil submetê-lo a descrições tipológicas que apreciem somente a organização dos
acontecimentos. Pretendemos reconsiderar alguns aspectos relacionados ao estudo das tiras
em quadrinhos para além das tipologias, retomando as questões enunciativas que ajudem a
caracterizar a noção de gênero do discurso proposta por Bakhtin. Sendo assim, retomamos
as questões relacionadas aos efeitos que os enunciados produzem em uma instância
discursiva. Para alcançarmos esse objetivo, pretendemos fazer algumas distinções entre a
noção de gênero textual filiado à noção de tipologia textual e a idéia de gênero do discurso
apoiada na teoria da enunciação. Nesse sentido, faremos uma breve retrospectiva dos
estudos de gênero textual, observando avanços que eles propiciaram na caracterização do
gênero do discurso, como também, pontos críticos no que se refere ao modo de analisar as
tiras em quadrinhos.
A partir dos anos 1970 a noção de gênero de discurso desenvolvida por Bakhtin
ganhou novas abordagens, enfocando outros critérios e finalidades para a sua determinação.
Novas terminologias surgem para caracterizar os textos que circulam socialmente: unidades
seqüenciais, tipologia textual e gênero textual. Nesse novo período prevalecem os estudos
apoiados na Lingüística Textual, na Psicolingüística e posteriormente na visão
sociointeracionista com organização de tipologias voltadas para o processo ensino -
aprendizagem.
74
A dificuldade de delimitar as fronteiras móveis dos gêneros do discurso, devido à
sua heterogeneidade e ao número infinito de gêneros, abre campo para novas discussões
sobre a identidade dos textos regidos por parâmetros (cognitivo, lingüístico e
sociointeracionista). Partindo do princípio de que os textos se constituem de estruturas
relativamente estáveis, surge um grupo de investigações que procura caracterizar a
identidade dos textos partindo da análise dos segmentos lingüísticos (produto da
linguagem) que os compõem. Adam (1985, 1987) e Werlich (1975) procuram identificar
estruturas homogêneas de seqüencialidades que estão presentes no diversos gêneros de
discurso. Werlich (1973, apud Marcuschi 2002) identifica-as em segmentos como “Os
passageiros aterrisaram em Nova York no meio da noite”. Nesta seqüência haveria uma
base narrativa justificada pelo verbo no pretérito, indicações circunstanciais de tempo e
lugar com realização de uma ação. Tais estruturas verbais determinariam um conjunto
mínimo de tipologias no qual os textos se enquadrariam. Coutinho (2003), assinalando a
retrospectiva dos estudos tipológicos de Petitjean, apresenta o seguinte quadro:
Classificação proposta em Werlich 1975 (segundo Petitjean, 1989:97)
Tipo Marcas lingüísticas de superfície Descritivo Ligado à percepção no espaço Acumulação de imperfeitos Narrativo Ligado à percepção no tempo Ocorrência de passé simple Expositivo Ligado à análise e síntese de representações
conceituais. Acumulação de conectores lógicos.
Argumentativo Ligado ao ato de julgar e à tomada de posição. Acumulação de conectores lógicos.
Instrutivo Ligado à previsão de comportamento(s) futuro(s).
Densidade de imperfeitos e de verbos de ação no infinitivo.
Classificação proposta em ADAM 1985, 1987 (segundo PETITJAN 1998:98) Estruturas seqüenciais de base
Seqüencialidade narrativa Romance, novela, fait divers, publicidade, narrativa... Seqüencialidade injuntiva-instrucional Guia de montagem, instruções, regulamentos, guia de
itinerário, boletim metereológico... Seqüencialidade descritiva Descrição (no interior da narrativa), publicidade, guia
turístico... Seqüencialidade argumentativa Editorial, publicidade, texto de tese...
Seqüencialidade explicativa –exposit iva Página de um manual, artigo de vulgarização, artigo de informação...
Seqüencialidade dialogal-conversacional Conversa telefônica, entrevista, diálogo de vulgarização, artigo de informação...
Seqüencialidade poética-autotélica Poema, prosa poética, slogans publicitários ou políticos...
(COUTINHO 2003, p.61).
75
Os estudos de Jean Michel Adam (1985) deram contribuições significativas sobre as
formas lingüísticas recorrentes responsáveis pela caracterização dos textos empíricos. Para
ele, os textos são compostos por unidades seqüenciais que apresentam autonomia relativa
diante de sua estrutura global, definindo, assim, a sua identidade. Os tipos textuais
correspondem a uma espécie de protótipo, modelos abstratos, que o usuário de uma língua
opera para organizar proposições, preservando uma estrutura hierárquica dos enunciados.
Dos sete tipos textuais, apresentados em sua pesquisa inicial, ele reduz o número para
cinco: narrativo, descritivo, argumentativo, explicativo e dialogal. Adam (1992) vai
redefinindo, aos poucos, a noção de tipologia textual como uma estrutura composta de
seqüências, que podem se configurar em uma base homogênea, ou se articular com outras
bases, constituindo-se de forma heterogênea. Nesse sentido, observa-se que em um texto
narrativo, pode haver seqüências descritivas ou argumentativas no interior de sua
formulação.
Compartilhando de princípios semelhantes, Marcuschi defende a noção de tipo textual
como modalidades discursivas ou seqüências textuais de natureza lingüística, determinada
por aspectos sintáticos, lexicais, verbais e estilísticos que atuam no âmbito estrutural do texto.
Tais seqüências correspondem a um conjunto finito de fo rmas cristalizadas responsáveis pela
composição do texto. Marcuschi (2002) enfatiza a importância do critério lingüístico de
seqüenciação para melhor compreensão dos gêneros textuais, tomando como motivo, as
questões didáticas que aí estão envolvidas.
Não é difícil tomar os gêneros textuais e analisá-los com esses critérios, identificando-lhes as seqüências. Para o caso do ensino, pode-se chamar a atenção da dificuldade que existe na organização das seqüências tipológicas de base, já que elas não podem ser justapostas. Os alunos apresentam dificuldades precisamente nesses pontos e não conseguem realizar as relações entre as seqüências. E os diversos gêneros seqüenciam bases tipológicas diversas. (MARCUSCHI, 2002, p.29).
Se por um lado, os estudos das tipologias de Adam esclarecem recorrências
lingüísticas responsáveis pela feição textual e pela formação das macroproposições, por
outro lado, as investigações sobre as unidades seqüenciais não dão conta de outras
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questões condizentes com a natureza social da linguagem no processo interativo. Bastos
(1998), ao retomar os estudos sociolingüísticos de Labov e Waletzky, sintetiza como as
questões formais e funcionais interagem na formação da narrativa oral na pesquisa destes
dois autores. Do ponto de vista estrutural, as narrativas são organizadas por seis funções
responsáveis pela ordem, progressão e unidade do enunciado: resumo, orientação,
complicação, resolução, avaliação e coda17. Além dos condicionamentos formais, existem
no ato de contar histórias processos interlocutivos, com funções comunicativas, que
medeiam a relação do narrador com o ouvinte no discurso narrativo oral.
Ao estudarem narrativas orais, Labov e Waletzky definiram esse tipo de texto, informalmente, como um “método de recapitular a experiência passada, através da correspondência de uma seqüência verbal de cláusulas a uma seqüência de eventos que realmente ocorreram”. Essa recapitulação deve respeitar a ordem de acontecimentos originais’. Segundo Labov e Waletzky, ‘a narrativa se define como entidade formal e funcional. Formal, na medida em que se identifica como discurso constituído à base de padrões recorrentes, característicos, discriminados desde o nível da oração, passando por unidades maiores, até o nível da narrativa simples completa. Funcional, na medida em que esses padrões são identificados a partir das funções que o discurso narrativo cumpre na situação de comunicação: uma ‘função referencial’, uma vez que uma de suas finalidades é recapitular experiências passadas, com a particularidade de que a seqüência das orações narrativas se organiza de maneira semelhante (mimética) à seqüência temporal dos acontecimentos vividos pelo personagem-narrador, e uma ‘função avaliativa’, desde que, normalmente, o relato da experiência passada reve la o empenho pessoal do narrador no sentido de valorizar os fatos narrados de forma a acentuar o seu caráter ‘narratável’. (Explicando melhor: a função avaliativa da narrativa tem a ver com o interesse pessoal do narrador em justificar, implicitamente, a própria ocorrência de seu discurso narrativo, de corresponder, enfim, à expectativa que ele próprio criou ou supõe ter criado em seu interlocutor de que ocorreria um relato de uma experiência interessante. Para tanto procura realçar determinados aspectos dos narrados, lançando mão de recursos variados.) (BAST0S, 1998 p.23/24).
17 Para os pesquisadores, na estrutura das narrativas pode ocorrer a eliminação de uma das funções, sendo indispensável a efetivação da complicação, e da resolução( responsável pelo desenlace dos acontecimentos, constituindo uma sanção e um estado final). Já a coda constitui-se de um comentário sobre os acontecimentos transpostos para o tempo presente.
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Notamos neste estudo a descrição de um narrador que projeta efeitos sobre o seu
interlocutor a partir da seleção de alguns recursos (exposição de ações e enunciados
atraentes). Desta maneira, Bastos, ao retomar a pesquisa de Labov e Waletzky, abre uma
perspectiva para compreender o funcionamento discursivo da narrativa em seu aspecto
formal e funcional sob um viés sociocomunicativo. Contudo, tal perspectiva não se voltou
para a diversidade textual e as formas de interação de textos entre si na formulação de
discursos. Visando a um estudo que integre a composição relacionada aos usos sociais,
Bronckart (1999) afirma que os textos são produtos das atividades humanas articulados a
partir das necessidades dos sujeitos sociais, determinados pelas condições de seu contexto
histórico. Nesse sentido, as formas textuais estão imbricadas com formas discursivas. Tal
constatação leva Bronckart18 a estabelecer a relação entre texto e gênero da seguinte forma:
Chamamos de texto toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação). Na medida em que todo texto se inscreve, necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero, adotamos a expressão gênero de texto em vez de gênero de discurso.(...) Enquanto, devido à sua relação de interdependência com as atividades humanas, os gêneros são múltiplos, e até mesmo em número infinito, os segmentos que entram em sua composição (segmentos de relato, de argumentação, de diálogo, etc.) são em número finito, podendo, ao menos parcialmente, ser identificados por suas características lingüísticas específicas (BRONCKART, 1999, p. 75).
Partindo da premissa de que os textos se inscrevem em uma relação com outros textos
que exercem realização similar nas atividades humanas, os gêneros podem ser agrupados de
acordo com as funções que eles exercem no meio social. Essa perspectiva é adotada pelo
grupo de pesquisadores de Genebra, ISD (interacionismo sócio-discursivo)19, que tem como
18 Bronckart prefere designar os tipos textuais como tipos de discurso, visto que os diferentes segmentos que entram na composição de um gênero são produto de um trabalho de “semiotização ou colocação em forma discursiva”, o que leva os recursos da língua a se atualizarem. 19 “No interacionismo sócio-discursivo (ISD) tal como é proposto por Bronckart parte-se, primeiramente, do exame das relações que as ações de linguagem mantêm com os parâmetros do contexto social em que se inscrevem, a seguir das capacidades que as ações colocam em funcionamento e, sobretudo, das condições de construção dessas capacidades. Em relação às ações de linguagem e aos textos que concretizam o ISD propõe que primeiro se faça análise das ações semiotizadas (ações de linguagem) na sua relação com o mundo social e com a intertextualidade. A seguir, a análise da arquitetura interna dos textos e do papel que aí desempenham os
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principais colaboradores Jean-Paul Bronckart, Joaquim Dolz, Bernard Schneuwly. Estes
pesquisadores defendem os princípios epistemológicos defendidos por Vygotsky sobre os
processos de ensino -aprendizagem pela via das interações sociais. Segundo Schneuwly
(2005), os gêneros textuais correspondem a uma espécie de ferramenta psicológica que
permite as interações sociais. Os gêneros seriam o organizador global do tratamento do
conteúdo e das operações comunicativa e lingüística. A composição e o estilo dos textos
devem ser adaptados de acordo com o destinatário e a finalidade de seu uso. Tal ferramenta
corresponde a um artefato material ou simbólico que possibilita a ação do sujeito em
determinadas situações comunicativas. Schneuwly (2005) concebe o gênero, além de
ferramenta cognitiva, como um mega-instrumento:
Poderíamos aqui construir uma outra metáfora: considerar o gênero como um “mega- instrumento”, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos (sobretudo lingüísticos, mas também paralingüísticos), permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação. Pode-se assim compará-lo ao mega- instrumento em que se constitui uma fábrica: conjunto articulado de instrumentos de produção que contribuem à produção de objetos de um certo tipo; este mega-instrumento está inserido num sistema complexo de mega-instrumentos que contribuem para a sobrevivência da sociedade (SCHNEUWLY, 2005, p.5).
Ao nosso ver a concepção de gênero defendida por Schneuwly (2005) retorna à
velha concepção de linguagem como instrumento semiótico de comunicação. Nesta
perspectiva prevalece a idéia de um agente que opera sobre a linguagem, escolhendo os
recursos mais adequados para efetivar uma ação discursiva no mundo social: narrar, expor,
descrever, argumentar e descrever. Os gêneros são vistos como grandes blocos, divididos
em graus de complexidade no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades de
linguagem voltadas para o uso dos textos como ferramentas sociais. O que está em jogo,
nesta abordagem, é o domínio de estruturas recorrentes nos diversos gêneros, deixando de
lado questões estilísticas presentes no funcionamento da linguagem no âmbito da
enunciação. Adotamos procedimentos similares aos de Bezerra (2005 p.39): “Assim,
elementos da língua. Enfim, que se analise a gênese e o funcionamento das operações (psicológicas e comportamentais) implicadas na produção dos textos e na apropriação dos gêneros textuais”. (Cristóvão e Nascimento, 2006 p.39).
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falarmos em tipos e gêneros textuais implica considerarmos a sua estrutura e uso; falarmos
em gênero discursivo implica considerarmos a interação entre interlocutores e a
enunciação”. Observamos que o termo gênero textual se encontra comprometido com
aspectos cognitivos, voltados para questões relativas ao processo de ensino-aprendizagem
em uma esfera instrumental, por isso em nosso estudo, retornamos à categoria de gênero
do discurso ou gênero discursivo.
Humor em quadros para além de uma tipologia narrativa
Na perspectiva de Bakhtin (1992) a questão do estilo ocupa papel de destaque no
estudo dos gêneros. Para tanto, este só pode ser observado a partir da materialização dos
enunciados em um horizonte enunciativo. O autor alerta para o fato de a unidade do gênero
não ser a frase nem a oração ou o parágrafo, mas sim o enunciado. Sendo assim, as
estruturas formais descontextualizadas não são as unidades que promovem a realização de
um gênero discursivo. Para refletir sobre o gênero ele propõe que se avalie o processo de
estilização tanto da língua quanto do modo de projeção dos enunciados por parte de quem o
produz, em conjunto com as condições de sua produção. Na busca de compreensão dos
fenômenos envolvidos na projeção dos enunciados, pelo menos, duas perspectivas apontam
para procedimentos de análise distintos: a dos gêneros do discurso e a dos gêneros textuais.
Como vimos, a proposta do gênero textual vê as questões estruturais como eixo
central na caracterização da identidade dos textos. Prevalece nos estudos de gêneros
textuais um enfoque tipológico que se detém à estrutura global do texto, ao
reconhecimento de traços lingüísticos e à vinculação instrumental que direciona a ação
cognitiva em um ato de interação social. Em uma perspectiva tipológica, o reconhecimento
de estruturas regulares na formatação e no modo de composição permite a identificação de
um gênero, como por exemplo: “Você conhece aquela do português?...”. Imediatamente, o
destinatário identifica a seqüência apresentada como início de uma piada com um
propósito humorístico.
80
Já os estudos de gênero do discurso recorrem às questões de estilo voltadas para o
sujeito da enunciação e as condições em que um enunciado é formulado. Nesta última
perspectiva aprecia-se o funcionamento da linguagem voltado para a produção de efeitos
de sentidos entre interlocutores. Existe neste âmbito, uma base determinada pelas condições
históricas e intertextuais que apóiam a configuração dos textos.
Veremos que o aspecto dominante na linguagem das tiras de humor não é processo
narrativo como no gênero aventura. Observamos que as tiras de humor, de formulação
chistosa, desenvolvem aspectos enunciativos que rompem com o propósito narrativo. Nesse
sentido, não podemos rotula r as tiras de humor como um gênero correspondente à ordem do
narrar em decorrência da estrutura típica encontrada nas tiras de aventura, que têm o objetivo
de contar uma história. Em grande parte das tiras de humor não há preocupação em narrar
uma história, mas sim de estabelecer uma visão crítica sobre um fato, prevalecendo aí
aspectos críticos sem uma sucessão de fatos com transformação de um evento na vida dos
personagens. Será que podemos situar a tira de Quino, a seguir, no interior de uma tipologia
narrativa? Que traços me permitem classificá- la como uma narrativa?
CLUBE DA MAFALDA
(QUINO, 20/12/06).
Diremos que do ponto de vista formal não há nenhuma indicação para afirmarmos
que tira apresentada se trata de uma narrativa. A seqüência lingüística expressa pela
personagem Mafalda gera graça por se tratar de uma comparação inusitada entre sopa e
comunismo. Tal discurso é composto, não só pela estrutura do enunciado verbal, mas
também, pela própria imagem como a personagem faz a comparação. O olhar voltado para
81
o horizonte e a postura de intelectual, em defesa de um postulado, faz com que Mafalda
ocupe uma posição discursiva distinta daquela que se espera de uma criança de seis anos.
Não se espera que um enunciador criança faça comparações entre sopa e comunismo.
Desse modo, as tiras de humor de caráter chistoso obedecem a princípios argumentativos
em que vigoram comentários irônicos20 ou posições discutíveis no plano da enunciação. Tal
modo enunciativo acaba por produzir ditos absurdos ou insustentáveis no plano
argumentativo, caso haja observação das condições em que é projetado determinado
enunciado.
HAGAR – Dik Browne
(BROWNE, 2005, p.26).
Nosso olhar sobre a tira que acabamos de ler não está atrelado a uma estrutura
narrativa, mas a exposição argumentativa de um personagem que não sustenta seu discurso,
gerando um efeito risível. A defesa do ponto de vista de Hagar, organizado pelo
quadrinhista, contrapõem-se ao conhecimento enciclopédico que afirma que o mundo é
redondo e com a própria maneira do personagem estabelecer o desfecho de sua defesa de
maneira duvidosa. O que prevalece neste discurso não é então o desenvolvimento de uma
narrativa, mas a constatação de um jogo argumentativo falho que provoca riso.
Acreditamos que para estudar os gêneros de humor de reflexão sobre a linguagem
torna-se necessário ir mais a fundo nas questões discursivas, levando em conta a esfera de
enunciação humorística e modo de organização dos enunciados no interior deste gênero
20 Ironia, nesta perspectiva, não se refere ao conceito tradicional de figura de linguagem que corresponde um dito contrário ao que se pretende afirmar em um enunciado. Ironia corresponde a um jogo de vozes, em que uma perspectiva enunciativa é colocada de maneira insustentável no discurso, repercutindo no assentamento de uma orientação argumentativa diferente daquela que o locutor profere no enunciado.
82
específico. Para tanto, dividiremos nosso trabalho em duas partes. A primeira cuidará do
modo de funcionamento do discurso do humor em uma dimensão genérica, observando os
princípios semiótico-discursivos que levam os diversos gêneros humorísticos (piada,
parlenda, publicidade, tiras em quadrinhos) a provocar o riso. A essa esfera
denominaremos, como Marcuschi (2003), de domínio discursivo.
Entende-se aqui como domínio discursivo uma esfera de atividade humana, como lembrou Bakhtin (1979). Não é um princípio de classificação de textos e indica instâncias discursivas, tais como: discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, discurso militar, discurso acadêmico etc. Não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo práticas discursivas dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que às vezes lhe são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relações de poder etc. (MARCUSCHI, 2003, p. 4/5).
Vale a pena ressaltar aqui, que a noção de domínio discursivo humorístico não
corresponde a uma função tipológica, mas a uma esfera de interação definida por um
conjunto de práticas sociais voltadas para um efeito risível. O domínio discursivo
corresponde ao campo em que determinados modos de formulações enunciativas são
recorrentes na produção de efeitos de sentidos no processo interacional. Percebemos, por
exemplo, no domínio discursivo religioso, a prevalência da ordem do sagrado com
exaltação a Deus, em busca de um efeito de purificação da alma; no domínio discursivo
político ocorre a defesa de direitos e deveres pela via de argumentos em favor de uma
comunidade, em um processo de disputa. Diferente dos dois arcabouços mencionados, no
domínio discursivo humorístico ocorre a ridicularização das condutas humanas por meio de
formulações enunciativas, dotadas de jogos de linguagens, configuradas por ambigüidades,
deformações, exageros e nonsense que promovem o efeito risível.
É na compreensão do trajeto do efeito risível que investigaremos os enunciados
irônicos, enunciados irreverentes, enunciados satíricos. Nosso caminho então, passa,
primeiramente, por maiores esclarecimentos sobre o domínio discursivo do humor, fazendo
algumas distinções entre as fronteiras do cômico e do humorístico, a verificar no próximo
capítulo. Já na última parte, cuidaremos dos processos enunciativos e os implícitos nas
83
tiras, desenvolvendo investigações sobre as formulações risíveis presentes nas tiras de
Mafalda e Hagar sob a perspectiva teórica da Semântica Argumentativa e da Pragmática.
O DOMÍNIO DISCURSIVO DO HUMOR
O fato de haver enunciados verbais ambivalentes vinculados à linguagem dos
quadrinhos não garante que os mesmos se constituam como uma atividade humorística.
Existe um trabalho estilístico de expor os enunciados de forma ambígua e teatral, em
conjunto com uma série de formulações de representação da conduta humana,
responsável por um efeito risível. Dizemos que o efeito de sentido produzido pelos
textos tem a ver com aspectos peculiares de articulação dos enunciados em conjunção
com as circunstâncias enunciativas. Ratificamos, assim, a afirmação de que cada gênero
do discurso detém um estilo próprio de projeção dos enunciados, como defendia
Bakhtin. Tal projeção, entretanto, está vinculada à esfera de produção do discurso,
remetendo-se ao propósito comunicativo, à maneira como os temas são abordados e ao
tipo de relação que os interlocutores exercem no processo interativo. Apesar de os
discursos serem heterogêneos, é possível perceber formas recorrentes que configuram
sua composição. O domínio discursivo 1, enquanto esfera responsável pelo modo de
elaboração do gênero, estabelece mecanismos que condicionam determinados efeitos de
sentidos em uma esfera de comunicação. Se no domínio discursivo acadêmico prevalece
o rigor formal para expor e defender uma idéia, no domínio religioso prevalece a
evocação do sagrado com a finalidade de se ligar a Deus, no domínio humorístico
prevalecem a ambigüidade e a subversão da ordem para gerar o riso.
O domínio discursivo em que as tiras de Hagar e Mafalda se encontram é o
humorístico. Existem, nesses textos, procedimentos específicos no manejo da
linguagem atribuído aos personagens cômicos que não correspondem propriamente a
outros domínios, como o religioso, o político, o jurídico, o acadêmico etc.
Eventualmente, a forma cômico-humorística pode se encontrar no interior do discurso
religioso, em pequenas adaptações de histórias bíblicas; no discurso político, panfletos
irônicos sobre os benefícios que um determinado candidato realizou para uma
comunidade; ou mesmo no discurso didático, com a demonstração de fatos sobre um
fenômeno físico-social por uma via espirituosa. Contudo, certificamos de que não é
suficiente determinar a noção de domínio discursivo a partir de comunidades
1 Marcuschi (2002) afirma que existe uma esfera em que não se encontram presentes nem o texto nem o discurso, mas aquilo que possibilita o surgimento dos gêneros, denominado por domínio discursivo.
discursivas, visto que os princípios geradores dos textos de humor remetem a um
trabalho específico que promove efeitos risíveis no processo de interação com leitor,
ouvinte ou platéia. Este fator será determinante na identidade dos gêneros piada,
parlenda, propaganda publicitária, programa humorístico, cartum, charge, provérbio,
ditado popular, adivinha, tira em quadrinhos etc.
Para compreender o domínio discursivo em que as tiras de Quino e Browne se
encontram inscritas é preciso ir além da estrutura formal dos quadrinhos, visto que tais
elementos não são suficientes para depreender uma análise deste gênero. Isto, porque no
interior da linguagem dos quadrinhos encontramos as histórias de aventuras, as
narrativas de suspense, e até as séries pornográficas. Cabe então, refletir sobre que
fenômenos enunciativos fornecem um estatuto específico de tira de humor a um grupo
de quadrinhos. Por isso indagaremos sobre as condições que levam um determinado
gênero a se filiar ao domínio discursivo do humor. Que marcas textuais ou que forma de
composição podem certificar que um determinado texto é pertencente ao domínio do
humor? O que caracteriza um texto de humor? Qual o papel da comicidade na atividade
humorística?
Para respondermos a essas perguntas torna-se necessário aprofundarmos a noção
de humor e investigarmos que atividades são responsáveis pelo efeito risível no
discurso. Identificamos, em nosso estudo, dois processos que geram o efeito risível de
maneiras distintas. Trata-se do riso proveniente das atividades cômicas que explora
atitudes de subversão da ordem, promovendo a gargalhada da audiência, e do riso
decorrente das atividades humorísticas expressas de maneira mais introspectiva, em
vista de uma postura mais reflexiva sobre formulações implícitas no plano da linguagem
verbal e não-verbal. Em muitos momentos, os dois processos se combinam, erigindo a
prevalência de um dos dois sobre a produção do efeito risível. Parece importante, então,
detalharmos as especificidades do cômico e do humor como forma constitutiva do
domínio discursivo humorístico.
O cômico e a carnavalização
O riso e o cômico são literalmente indispensáveis para o conhecimento do mundo e para apreensão da realidade plena. Sua positivação é clara: o nada ao qual o riso nos dá acesso encerra uma verdade infinita e profunda, em oposição ao mundo racional e finito da ordem estabelecida (ALBERTI,1999, p.26).
Segundo Bakhtin, a força das narrativas cômicas tem forte ligação com as
tradições vivenciadas na Antigüidade por meio da carnavalização2. A carnavalização
seria uma cosmovisão revitalizadora que tem como princípio o redimensionamento das
relações do homem com o mundo. Bakhtin buscou nos documentos e registros do
mundo ocidental, momentos de afrouxamento das fronteiras entre o sério e o cômico, o
oficial e o extra-oficial, o sublime e o escatológico em eventos culturais vivenciados no
período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Em sua perspectiva, este
período engendrou novas formas de realização do riso, possibilitando a fecundação de
novos gêneros discursivos, inclusive do romance.
De acordo com Bakhtin, o elo entre o sério e o cômico já existia desde os
primórdios da humanidade. Por meio de investigações do folclore de povos primitivos,
ele observou que os rituais sérios se coadunavam com os rituais que parodiavam os
mitos, os acontecimentos e os heróis que as comunidades cultuavam. O divino e o
profano conviviam sem maiores problemas, atuando de maneira íntegra na vida social
desses povos. Os romanos primitivos, por exemplo, tinham como hábito chorar e
ridicularizar o defunto em seus funerais, simultaneamente.
A prática do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimônias oficiais das
comunidades antigas. Todavia, o sério e o cômico passaram a ser dicotomizados com o
surgimento do regime de classes e de Estado. Com a divisão de classes se estabeleceu a
diferença de direitos entre os indivíduos na sociedade. Determinadas formas cômicas
deixam de ser autorizadas, só podendo ser executadas em situações extraordinárias. A
partir daí, se consolidou uma cultura oficial, delimitando as condições de realização do
2
riso. O espaço da subversão, da gargalhada, da chacota tende a restringir-se aos
momentos festivos. A divisão do riso e do sério, da cultura popular e da cultura erudita
se intensificou através dos tempos, fazendo com que a comicidade fosse vista como
uma expressão menor, inclusive no campo da cultura letrada.
Foi na excentricidade das festas populares que o sagrado e o profano se
consubstanciaram na Antigüidade. Neste espaço, ocorreu o desbotamento da fronteira
entre o sério e o cômico, o fantástico e o real, projetando o mundo carnavalizado em
que tudo se manifestava de forma ambivalente. Na praça pública, havia a proclamação
da liberdade e a quebra da hierarquia de classes. A inversão de papéis era um jogo em
que se permitia fazer críticas de maneira lúdica e mordaz. O sujeito deixava de ser
alienado, ganhando voz para dizer o que pensava, por meio de gestos e de um
vocabulário que lhe convinha. Não se fazia distinção entre atores e platéia, sobretudo
porque todos ocupavam os dois papéis. Mesmo os espectadores mais passivos não
assistem ao carnaval impunemente, vivem as situações que são colocadas em jogo.
Diferente das narrativas épicas, difusoras da saga dos deuses e dos heróis
mitificados, o carnaval é uma festa profano-religiosa que proclama a visão de mundo e a
linguagem cotidiana do homem do povo. Muitas das celebrações são agradecimentos
aos deuses que proporcionaram boa colheita e fertilidade às terras cultivadas. Nos dias
de carnaval, homens e mulheres se embriagam, imitam bichos e fazem gestos obscenos
na praça pública. Dentre as festas mais importantes, Macedo (2000) ressalta:
As Saturnálias, como o próprio nome indica, eram oferecidas a Saturno, deus da fertilidade ao qual estava associado um reino de abundância. Na Antigüidade, por ocasião dos festejos, os escravos tornavam-se momentaneamente senhores dos seus amos, sendo-lhes permitido ser servidos por aqueles e dirigir-lhes as mais contundentes críticas, em meio a muita comida e muita bebida (Finley, 1989, p.112-116). Em fevereiro, comemorava-se ainda as Spurcalia (dia do porco, Spurcus) e as Lupercalia , dedicadas ao deus Faunus ou Lupercus, protetor dos rebanhos, em cujo ritual eram sacrificadas cabras, seguindo o cortejo propiciatório de jovens “sacerdotes lobos” visando à fecundidade das mulheres (MACEDO, 2000, p.229).
Nestas festas, os lugares sociais eram dessacralizados. Quem era rei assumia o
papel de escravo e vice-versa. A inversão de papéis sociais permitia que muitas
verdades fossem ditas em tom de brincadeira. Nesse contexto, não há um único alvo de
escarnecimento; todos os atores sociais são objetos de chacotas quando se encontram no
cenário carnavalesco. Por isto, dizemos que o carnaval assume uma perspectiva
dialógica e polifônica, sua forma de expressão não visa emocionar, mas provocar o riso,
representando ações ridículas do homem. As festas profanas na Idade Média, toleradas
pela Igreja, tiveram um papel preponderante na formação de novos textos
correspondentes ao espírito da carnavalização.
[...] o papel da paródia na Idade Média foi vital, pois ela preparou a nova consciência lingüística e literária, preparou o grande romance da Renascença. (...) A Idade Média, com maiores ou menores restrições, respeitava a liberdade do gorro burlesco e concedia ao riso e à palavra cômica direitos bastante amplos. Esta liberdade limitava-se às festas e às recreações escolares. O riso medieval era um riso de festa. Eram famosas a “festa dos bobos” e a “festa do burro”, de caráter paródico-travestizante, que eram celebradas pelo baixo clero nas próprias igrejas. Muito característico era o risus paschalis, o riso de Páscoa. Durante o tempo de Páscoa, a tradição permitia o riso nos santuários... (BAKHTIN, 1993, p. 387).
Investigações sobre a realização das formas cômicas também foram revisitadas
por Bergson sob um outro enfoque. Para este autor, o riso, além de ser um fenômeno
social, é um fenômeno psicológico. O sujeito ri de situações constrangedoras com as
quais não se envolve afetivamente. O cômico é provocado pela observação das falhas
humanas em uma perspectiva corretiva, diante dos olhos do observador. O cômico
estaria ligado à capacidade de explicitar e identificar o ridículo humano projetado no
exagero caricaturado, na encenação do automatismo extremado, nos gestos de
transgressões e nos clichês desgastados. Seguindo os postulados de Aristóteles, Bergson
acredita que a comédia pinta os homens piores dos que eles são, ressaltando, assim, os
seus defeitos físicos e morais. A título de exemplificação, vejamos uma caricatura de
Dercy Gonçalves:
Caricatura de Darcy Gonçalves realizada por Marcos Quinho de Souza (24º Salão Internacional de Humor de Piracicaba, 1977).
Vemos que o cômico explora o exagero para explicitar o ridículo expresso na
figura humana. Assumindo a mesma perspectiva, Propp (1992) afirma que existem três
formas de exagero que produzem o efeito cômico: a caricatura, a hipérbole e o
grotesco. a) A caricatura teria a função de captar a falha imperceptível e ressaltar um
pormenor que demarca um alvo de crítica. Apesar disto, alguns pontos positivos sobre a
imagem construída são resguardados. b) A hipérbole é uma variedade da caricatura que
ressalta exageradamente os aspectos negativos, não aproveitando nenhum aspecto
positivo. Geralmente, ela é utilizada como pilhéria com objetivos satíricos. c) O
grotesco consiste na forma mais extremada de exagero; ele aumenta o alvo do relato em
uma proporção monstruosa. O grotesco explora construções artificiais e fantásticas,
ocultando os princípios espirituais para produzir o distanciamento da realidade imediata.
Tal elaboração é a forma preferida de comicidade manifestada pela cultura popular.
Um ponto essencial para caracterizar um personagem cômico é a maneira como
o quadrinhista retrata fisicamente o personagem. Geralmente, o corpo é desproporcional
e com traços fisionômicos pouco detalhados. O ilustrador Michael Paulus costuma
brincar com celebridades ficcionais do mundo dos quadrinhos. Suas imagens
demonstram como seria, hipoteticamente, a estrutura óssea dos personagens, se eles
fossem seres de carne e osso. Dessa maneira, é possível perceber como os personagens
obedecem, do ponto de vista físico, a uma estrutura antianatômica.
(PAULUS, 01/ 05/2006).
Elementos de comicidade
De acordo com Propp, os caracteres cômicos não existem por si só, eles têm
relação com as atividades do homem no mundo social. Mesmo quando estamos rindo de
um macaco em um zoológico, na verdade, não rimos do próprio animal, mas dos gestos
que conotam determinados significados na coletividade humana. Em toda sociedade há
um conjunto de estereótipos discriminados pela evidência de automatismos e vícios na
maneira de proceder, como vemos na tira a seguir.
(QUINO, 2000, p.154).
Bergson afirma que o riso é sempre grupal, sendo determinado por um conjunto
de atitudes que são execradas e colocadas como desvios de acordo com os padrões
sociais. A identificação de uma atitude cômica ou humorística aponta para o
reconhecimento de gestos sociais que rompem com uma conduta ideal. Esse desvio é
manifestado pelo comportamento dos seres que agem de maneira involuntária, sem se
darem conta das ações que cometem. Na maioria das vezes, a sua ridicularização
decorre de uma parte do corpo enrijecida, de um tropeço em algum obstáculo ou
realização de um quiproquó 3. Bergson explica que o cômico é provocado pela
inadaptação dos sujeitos a determinadas regras sociais, sendo o riso uma medida 3 De acordo com Kupstas (1992, p.61), qüiproquó refere-se ao humor de objeto e de engano. Geralmente o teatro cômico utiliza-se de um conjunto de ações que giram em torno de um objeto que todos desejam. Para conquistar esse objeto, alguns personagens mentem, gerando, assim, uma série de peripécias. “... a origem da palavra ‘qüiproquó’ confirma sua antigüidade: quid pro quo é latim, significando ‘isto por aquilo, uma coisa pela outra’. É a situação cômica baseada em equívoco, em troca”.
corretiva. Compartilhando dos mesmos pressupostos, Saliba (2002) apresenta o
posicionamento do autor de teatro Pirandello sobre o cômico em proximidade com a
atividade humorística.
Para Pirandello o cômico nasce de uma percepção do contrário, como no famoso exemplo, de uma velha já decrépita que se cobre de maquiagem, veste-se como uma moça e pinta os cabelos. Ao perceber que aquela senhora velha é o oposto do que uma respeitável velha senhora deveria ser, produz-se o riso, que nasce da ruptura das expectativas, mas, sobretudo do sentimento de superioridade. A percepção do contrário, porém, pode transformar-se num “sentimento do contrário” – quando aquele que ri procura entender as razões pelas quais a velha se mascara na ilusão de reconquistar a juventude perdida. Neste passo, a velha da anedota não está mais distante do sujeito que percebe, porque este último pensa que também poderia estar no lugar da velha – seu riso se mistura com a compreensão piedosa e se transforma num sorriso. É aqui que Pirandello começa a diferenciar o cômico do humorístico. Para passar da atitude cômica para a atitude humorística é preciso renunciar ao distanciamento e à superioridade (SALIBA, 2002, p.24).
No cômico não se pode levar em conta o estado de alma de quem estamos rindo,
já no humor há um processo de reconhecimento do ridículo em nós mesmos. Enquanto
no cômico, a estratégia discursiva recorre ao apagamento daquilo que nos solidariza
com o outro, enfocando o ridículo humano, no humor há um processo de renúncia ao
sentimento de superioridade em relação ao sujeito de quem rimos. Aquele que ri
percebe que as falhas localizadas no outro estão presentes também em seu próprio
comportamento. Neste sentido, cômico e humor estabelecem um paradoxo em que se
evidencia uma perspectiva corretiva que isola a sensibilidade e exalta a criticidade ao
mesmo tempo em que gera uma auto-reflexão sobre as atitudes humanas.
Sobre o cômico, especificamente, o caráter humano é configurado de maneira
estereotipada, criando assim: o pão-duro, o amante, a submissa, o deslumbrado, o
obsessivo etc. O modo como estes personagens reagem às situações desencadeia uma
série de atitudes extremadas, em defesa de um temperamento. Neste sentido, o cômico
gera uma visão ridicularizante que não encontra lastro de identificação afetiva com o
público, visto que os personagens não expressam as complexidades humanas, no que se
refere à gama de sentimentos voltados para os conflitos existenciais. Kupstas (1992), ao
descrever o personagem que nos leva a rir, distingue duas formas de manifestação
cômica: o “tipo” e a “caricatura”:
Tipo é o personagem com características definidas, que representa um grupo social – o avarento, a viúva. O exagero do tipo é o estereótipo, um personagem simples, mas sempre associado a algum comportamento ou imagem. Por exemplo, um desenho de homem com cartola nos induz a defini-lo como industrial ou capitalista. Já caricatura é o personagem com poucas e negativas características, que são realçadas para provocar o grotesco e o riso. Quando Chico Anísio, por exemplo, cria um jogador de futebol de pernas tortas, dentes falhos e falando errado, ele está caricaturizando uma espécie de jogador (KUPSTAS, 1992, p.46).
A distinção de tipo e caricatura nos ajuda a entender os elementos que permitem
acentuar defeitos dos sujeitos sociais. O leitor ri do tipo social, encarnado pelo
personagem, identifica falhas provenientes dos vícios gerados pelas exigências
institucionais, podendo se aproximar da atividade humorística. Seguindo este raciocínio,
o sujeito ri, indiretamente, daquilo que as instituições cobram dos homens. A imposição
de determinados padrões de comportamento acaba por fazer o ser humano deixar
sucumbir a sua individualidade. Exemplo marcante sobre o que acabamos de comentar
é o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Uma das cenas mais interessante do
filme é a experiência de uma máquina que reduz o tempo de almoço em quinze minutos.
A graça decorre da inadequação do movimento da máquina ao ritmo natural de quem
faz a refeição.
(Imagem do filme Tempos Modernos)
No decorrer do filme, Carlitos, personagem central da trama, acaba por
apresentar comportamentos estranhos dentro e fora da indústria. Com movimentos
automatizados e tiques nervosos, o personagem repete o movimento de apertar parafuso
na esteira em outras circunstâncias não cabíveis, como o de apertar a chave de rosca nos
botões do vestido de uma mulher. Chaplin estabelece, assim, uma crítica social a partir
das evidências do automatismo corporal e dos equívocos cometidos pelo operário
estressado pelo excesso de trabalho. Dessa forma, o aspecto humorístico atua em
fronteira com o cômico para refletir sobre as conseqüências das exigências do mundo
capitalista.
A composição da cena cômica
Já dissemos que o cômico explora aspectos ridicularizantes que ajudam a
configurar personagens a fim de provocar um efeito risível. Paralelamente a isto, é
possível perceber que a própria estrutura de um evento cômico decorre de uma situação
ambivalente que provoca a disjunção de dois fatos. Neste exercício, o texto rompe com
um determinado tópico discursivo que seguia uma dada direção argumentativa para
enfatizar outro aspecto, provocando uma sensação de fato absurdo. Em um artigo sobre
a realização do cômico em historietas publicadas no France-soir, Morin (1973) observa
este procedimento uniforme em uma seqüência de 180 piadas. Ela afirma que na
estrutura da narrativa cômica há três funções que se organizam na seguinte ordem:
a) função de normalização: no primeiro momento ocorre a apresentação dos
personagens e as circunstâncias em uma situação regular.
b) função de deflagração: apresentação de um problema a ser solucionado.
c) função interlocutora de disjunção: resolução do problema de forma cômica,
por meio da inversão de expectativa no plano discursivo.
Desta maneira, Morin (1973) demonstra que as piadas obedeceriam à sucessão
de funções a seguir:
FUNÇÃO NORMALIZADORA
FUNÇÃO LOCUTORA DE DEFLAGRAÇÃO
FUNÇÃO INTERLOCUTORA DE
DISJUNÇÃO Mulher dirige o carro com o marido ao lado.
Mulher: Ah, esses pedestres!
O marido: De acordo querida, mas desça da calçada.
O guarda do Zôo chora o elefante morto.
O dono: Console-se, será substituído.
O guarda: Vê-se bem que não é o senhor que vai enterrá- lo.
Seguindo o mesmo esquema de organização de procedimentos cômicos proposto
por Morin, as funções se repetem também nas tiras em quadrinhos.
(QUINO, 2000, p.298).
(a) normatização: Brincando de boneca, Susanita idealiza uma vida familiar
centrada no filho (até a terceira vinheta).
(b) – deflagração: O filho, depois de formado, apresenta uma nova namorada pela
qual está apaixonado.
(c) – função interlocutora de disjunção: Susanita descarrega a sua raiva em um
boneco que representa seu filho, por motivo de uma suposta decepção na vida futura.
HAGAR – Dik Browne
(BROWNE, 1996, p.38).
(a) normatização: Helga sonha com um castelo em que, previsivelmente, deve ser
uma princesa ou rainha.
(b) deflagração: Helga se vê no interior do castelo limpando uma imensa escadaria.
(c) função interlocutora de disjunção: Helga manipula seu sonho e projeta uma
casinha bem pequena onde terá menos trabalho e será mais feliz.
TIRAS DE HAGAR
(BROWNE, 20/12/06).
(a) normatização: venda de um cão de guarda com aspecto amedrontador por um
bom preço.
(b) deflagração: questionamento sobre o motivo do preço barato.
(c) função interlocutora de disjunção: o cachorro mia no lugar de latir.
Além dos eventos que promovem a quebra de expectativa por meio de atitudes
inusitadas dos sujeitos cômicos, o discurso verbal também pode exprimir comicidade.
Ele pode se configurar apoiado nos palavrões, na imitação de um jeito de falar
(regional) ou em pequenos equívocos no ato de expressar uma idéia por meio de
palavras.
Bergson, aproximando-se das propriedades do humor, investiga a razão de a
própria linguagem se tornar cômica, produzindo uma maneira espirituosa de lidar com o
discurso. Diz o autor: “Captamos uma metáfora, uma frase, um raciocínio, e os
voltamos contra quem os faz ou poderia fazê-los, de maneira que tenha dito o que não
queria dizer e que venha cair na própria armadilha da linguagem” (Bergson, 1987,
p.59). Podemos dizer que o modo de exprimir um pensamento, por meio de um dito
espirituoso, denota um estado psicológico, uma predisposição para rir de um terceiro ou
de nós mesmos, assim como do próprio discurso. O uso de dois sistemas de idéias
divergentes, em referência a uma expressão, e/ou a utilização de inversões e
transformações de proposições agem como elementos determinantes na produção do
humor espirituoso.
Dizíamos que o espirituoso consiste muitas vezes em prolongar a idéia de um interlocutor até o ponto em que exprime o contrário do seu pensamento e no qual venha a cair, por assim dizer, em uma armadilha do seu discurso. Acrescentamos agora que essa armadilha é também quase sempre uma metáfora ou uma comparação cuja materialidade jogamos contra ele. É conhecido o seguinte diálogo entre a mãe e o filho em Les Faux Bonshommes: “Meu amigo, a Bolsa é um jogo perigoso. Ganha-se um dia e perde-se no seguinte. – Pois bem só jogarei de dois em dois dias” (BERGSON, 1987, p. 63).
O filho, fazendo-se de inocente, promove a réplica do enunciado, “ganha-se um
dia e perde-se outro”, levando em conta a ambigüidade que este apresenta. Ao
considerar as palavras da mãe ao pé da letra, afirma que jogará somente de dois em dois
dias, evitando assim a situação de azar. A formulação do enunciado de maneira
espirituosa se distancia dos procedimentos cômicos para atuar sobre a esfera do discurso
verbal de maneira lúdica. Tal procedimento humorístico será aprofundado no próximo
capítulo.
Até aqui, compreendemos que as pesquisas sobre o riso de Bergson, de Propp e de
Bakhtin identificam, predominantemente, procedimentos envolvidos na produção do
texto cômico-humorístico no plano do conteúdo representado. Tais elementos são
fundamentais para se desenvolver uma análise sociológica dos hábitos culturais. A
partir desta perspectiva teórica, é possível confrontar aspectos temáticos relevantes que
geram o efeito risível em uma dada comunidade discursiva. Nós brasileiros, por
exemplo, criamos uma imagem típica do português e, constantemente, fazemos piadas
sobre algumas de suas atitudes que nos causam estranhamento ou sentimento de
superioridade. Nesse sentido, o riso ganha uma dimensão social, rimos daquilo que
achamos ser diferente de nós mesmos.
TIRAS DE HAGAR
(BROWNE, 20/12/2006).
Concluímos nesta seção, que os efeitos risíveis do cômico podem decorrer de uma
figura típica com falhas comportamentais e/ou desvios morais, de uma situação
constrangedora do ponto de vista das convenções sociais, das imposições institucionais
que deformam o caráter humano ou da própria maneira como o discurso é organizado e
proferido. Desta maneira, compartilhamos com Bergson que as fontes de comicidade
essenciais se encontram em: o cômico de gestos e formas (que exploram o automatismo,
o enrijecimento e deformações do corpo físico); o cômico de caráter (relativo à fraqueza
moral ou ao temperamento contundente dos personagens); o cômico de situação
(confusões e equívocos ocorrido em uma dada situação) e o cômico de palavras
(organizado, predominantemente, em forma de jogo de palavras).
O Humor
O significado da palavra humor, em sua trajetória semântica, aponta para um
conjunto de acepções que no decorrer da história apresentou uma série de
deslocamentos, em um contínuo processo metafórico. Podemos dizer que o
reconhecimento do termo humor, do latim humore, aparece no século III a.C. através da
distinção que o médico Hipócrates faz de quatro tipos de líquidos (a bílis amarela, a
bílis negra, o sangue, a fleuma) que circulam no organismo humano e atuam como
secreções reguladoras do seu funcionamento e conseqüentemente do temperamento dos
indivíduos. A partir dessa denominação, outro médico chamado Galeno (séc. II a.C.)
lança a tese de que a causa das doenças estava vinculada à predominância de um destes
fluidos, provocando, assim, o desequilíbrio do organismo de maneira geral. Seguindo
este raciocínio, Pinto (1970) esclarece a vinculação do temperamento humano com a
distribuição de fluidos que os sujeitos apresentam:
a) os sujeitos que tinham humores mais agradáveis eram menos malignos e portanto
seriam pessoas de bom-humor;
b) os sujeitos que tinham humores coléricos de forma predominante poderiam ser
considerados pessoas de mau-humor;
c) os sujeitos quem tinham humores bem equilibrados eram os indivíduos bem
humorados;
d) aqueles que apresentassem desequilíbrios (tanto físico como mental) eram tidos
como mal-humorados;
e) e aqueles que tinham o domínio sobre as sensações, assim como a capacidade de
lidar com elas eram considerados indivíduos detentores do senso de humor.
Fazendo uma analogia similar dos humores (fluídos) com o temperamento
excêntrico dos personagens teatrais, Ben Jonson (1572-1637), comediógrafo inglês
contemporâneo de Shakespeare, aproximou o conceito da palavra humor com o de
cômico. De acordo com Almeida (2000, p.42), Ben Jonson “utiliza a teoria humoral
para caracterizar personagens teatrais: o colérico, o atrabiliário, o impetuoso, o
fleumático, e todas as combinações intermediárias, que definem sua concepção de
comédia”. O termo humor passa a ser associado, na tradição literária inglesa, à
excentricidade dos personagens. Tal concepção de humor, no entanto, foi sendo
modificada a partir do século XX com estudos sobre o riso.
A fronteira entre o humor e o cômico
O humor, diferentemente do cômico, se manifesta nos ditos espirituosos como
um grande jogo discursivo que proporciona prazer e auto-reflexão. O motivo do riso
não está ligado exatamente ao que se diz, mas à maneira como um discurso é expresso
em uma dada situação enunciativa. Segundo Alberti (1999 p. 20):
[...] na tradição teórica alemã, o objeto do riso freqüentemente divide-se em cômico (das Komische) e chistes (Witz)... Das Komische em geral referem-se ações, gestos ou expressões corporais, como os que se observam no teatro ou nas ruas, enquanto Witz diz respeito aos chistes e piadas (ALBERTI, 1999, p. 20).
O reconhecimento dos caracteres cômicos, isolados das formulações
humorísticas no plano verbal, reduz as possibilidades de análise dos textos cômico-
humorísticos. Esta constatação abre brechas para refletirmos, mais detidamente, sobre
as implicações da relação entre o cômico e o humor na configuração do domínio
humorístico. Um cartum que ilustra bem a diferença das duas facetas do discurso,
voltadas para o riso, pode ser lido a seguir.
(EL FARO de Vigo – 10.04.2001).
A noção de humor descrita no cartum indica a existência de um conjunto de
atividades que antecede ao riso. Apesar de o cartunista delimitar a diferença entre o
cômico e o humor, colocando como ponto chave o pensamento, sua definição ainda é
restrita, visto que o processamento do humor envolve outros elementos que medeiam
essa relação. Entre o pensamento e o riso há formulações discursivas que desencadeiam
um conjunto de atitudes. Além de uma reflexão sobre o conteúdo expresso nas
atividades humorísticas, é preciso refletir sobre a linguagem que a constitui e no tipo de
interação que os sujeitos desenvolvem em uma troca verbal. Nesse sentido,
caracterizamos o humor, provisoriamente, como uma atividade verbal que explora a
condensação de idéias de maneira lúdica e ambivalente, provocando o efeito risível.
Freud, em seu livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, publicado em
1905, fez uma profunda revisão bibliográfica de pesquisas que investigavam o
funcionamento do discurso do humor. Ele retoma os estudos de diversos intelectuais
(Lipps, Fischer, Kraepelin, Kant) que procuravam caracterizar as anedotas e os ditos
engraçados proferidos na vida cotidiana como chiste4. Para Freud (1977), o conceito de
chiste se confundia com os processo relacionados ao cômico, impedindo de observar
uma série de mecanismos que convergiam para a linguagem do inconsciente
manifestada no sonho. Para tanto, o psicanalista desenvolveu um projeto voltado para a
compreensão da linguagem do humor, recapitulando as diversas noções de chistes,
apresentadas por seus contemporâneos.
a) Para Lipps (1898), um chiste é algo cômico do ponto de vista subjetivo.
b) Fischer (1889) relaciona chiste com cômico, ressaltando a caricatura. Seu
interesse é a questão do feio à luz da comicidade. O chiste manifesta-se como um juízo
lúdico em contraste com a comicidade.
c) Para Jean Paul, o chiste consiste em um jogo de idéias formuladas a partir da
liberdade de expressão. O chiste teria a propriedade de fundir diversas idéias de maneira
surpreendente e rápida.
d) Para Kraeplin, o chiste consiste na conexão de duas idéias que se contrastam
por meio de uma ligação arbitrária.
e) Para Kant, uma das características do cômico é a propriedade de enganar
apenas por um instante; propriedade que, sob a visão de Heymans (1896), também
pertence ao chiste.
4 De acordo com Corominas (1967), o significado da palavra chiste no séc. XVI, em castelhano, se referia a um dito gracioso ligeiro manifestado em um tom chiado: “Chiste 1534, ‘dicho agudo y gracioso’. Tuvo especialmente el significado de ‘chiste obsceno’, S. XVI (y chista con ese sentido ya s. XIII), que parece haber sido el originario, pues se trata de un derivado de chistar ‘hablar en voz baja’, 1587, ‘hacer ademán de hablar’, ‘sisear, llamar siseando’, debido a que esta clase de chistes se dicen en voz baja o al oído; en cuanto a chistar, proviene de la voz ssst, onomatopeya del cuchicheo y empleada también para llamar a personas” (COROMINAS, 1967, p. 197).
Freud não discorda inteiramente do posicionamento daqueles que descreveram
as propriedades do chiste de forma similar ao cômico. Mas recusa-se a reduzir os
procedimentos do chiste a fenômenos mecânicos que geram o riso. Sendo assim, ele
propõe uma revisão do conceito de chiste, a partir de uma combinação em que se
considere “um todo orgânico” mediado pelo inconsciente. Por isso, indaga: o que a
brevidade de um chiste tem a ver com a produção de um juízo lúdico? Será que chiste e
cômico geram satisfação aos indivíduos da mesma forma? Existem diferenças na forma
como eles se organizam e a quem se dirigem? Os chistes são todos do mesmo tipo? Que
diferenças há entre eles? Desta forma, Freud aponta para uma série de questões que, ao
final deste capítulo, devem nos ajudar a esclarecer diferenças entre processos cômicos e
humorísticos, já que caracterizaremos chiste e humor como formulações dotadas de
propriedades similares calcadas na economia mental.
O CHISTE E O DISCURSO DO HUMOR
Freud (1977) compara o domínio do chiste com o domínio dos sonhos, na
medida em que se pode observar um conteúdo expresso e um conteúdo latente no modo
de formulação dos dois fenômenos discursivos. Por meio da análise dos mecanismos
expressivos da linguagem dos sonhos e dos chistes, é possível se chegar ao
inconsciente, ou pelo menos, compreender o seu funcionamento de maneira geral. De
acordo com a sua perspectiva, o sonho e o chiste reservam processos psíquicos
similares.
O trabalho de condensação nos sonhos produz, não estruturas compostas, mas quadros que nos recordam com exatidão uma coisa ou uma pessoa, exceto por um acréscimo ou uma alteração derivada de alguma fonte: modificação precisamente do mesmo tipo encontrado nos chistes (...). Não podemos pôr em dúvida que em ambos os casos somos confrontados com o mesmo processo psíquico, ao qual podemos reconhecer devido a seus resultados idênticos. Uma analogia tão abrangente entre a técnica do chiste e a elaboração onírica sem dúvida aumentará nosso interesse na primeira e suscitará em nós uma expectativa de que uma comparação dos chistes com os sonhos ajudará a lançar luz sobre os chistes (FREUD, 1977, p. 43).
Freud confirma que a elaboração onírica revela conteúdos do inconsciente, por
meio de uma linguagem condensada e substitutiva, enquanto o chiste organiza seus
códigos de expressão por uma via substitutiva e indireta, encobrindo desejos ou
expondo verdades que se opõem às pressões sociais e aos mecanismos de inibições
internas. “Entre as técnicas do chiste propriamente ditas, são particularmente o
deslocamento e a representação por algo absurdo que, além de suas outras qualificações,
suscitam também a distração da atenção desejável para o curso automático do processo
chistoso” (FREUD, 1977, p.176). O objetivo do chiste é resgatar fontes do prazer por
uma via econômica de energia.5
Observemos, na tira a seguir, o relato de Susanita sobre um sonho com um
amigo pouco inteligente chamado Manolito. Talvez ele nos ajude a esclarecer a
comparação que Freud faz entre a elaboração onírica e o funcionamento discursivo do
chiste.
(QUINO, 2000, p.190).
Podemos observar no sonho de Susanita a expressão de uma idéia condensada a
respeito do personagem Manolito. Na maioria das tiras, o personagem apresenta-se
como um sujeito cabeça dura e com pouca compreensão das coisas que giram ao seu
redor. O trabalho de associação desenvolvido por Susanita substituiu o sujeito por outro
objeto, estabelecendo uma representação simbólica produzida por um deslocamento
metafórico, ou seja, Manolito passa a ser visto como uma pedra impenetrável.
O autor da tira explora a visão psicanalítica e traz para a cena elementos que nos
fazem pensar no conceito de inconsciente proposto por Freud. A associação pode ser
conduzida por outra manobra. Do ponto de vista do significante, ‘Manolito’ tem a
mesma quantidade de letras e a mesma terminação da palavra ‘Monolito’ (pedra de
5 Freud adota a hipótese de que o chiste é elaborado na primeira pessoa, nesse sentido: “um pensamento pré-consciente é abandonado por um momento à revisão inconsciente e o resultado disso é imediatamente capturado pela percepção consciente” (FREUD 1977, p. 190).
grandes dimensões; obra ou monumento feito de um só bloco). Dessa forma, há um
deslizamento sonoro implícito dos termos ‘Manolito’ e ‘Monolito’. O jogo entre a
semelhança de significantes ‘Manolito’ e ‘Monolito’ gera uma comparação inusitada,
expressando o pensamento latente (ou implícito) de Susanita.
O funcionamento do chiste tendencioso e do chiste inocente
(QUINO, 2000, p.95).
Os chistes são desencadeados a partir de situações que envolvem desejos
reprimidos. Diferente do recalque, que inibe e repreende toda energia psíquica
propulsora de prazer, o chiste é um ato verbal em que o sujeito deixa escapar algo de
que, aparentemente, não tinha consciência ou não desejava demonstrar por meio de
palavras ou atitudes. O chiste, como ocorrência involuntária, tem a possibilidade de
revelar pensamentos livres das repressões sociais. De acordo com a teoria de Freud,
podemos observar dois tipos de chiste: o tendencioso e o inocente. O funcionamento
dos dois tipos de chistes pode ser identificado como Rosas (2002) apresenta:
No chiste tendencioso sempre está em vigor uma finalidade substitutiva da ação – a realização de um desejo recalcado, seja agressivo, seja sexual – que opera no sentido de acrescentar ao prazer da técnica do chiste o prazer de fugir a um recalque. Porém, ao lado do chiste tendencioso (ou “carregado”, por assim dizer), Freud reconhece a existência do que denominou ‘chiste inocente’: aquele que, não visando substituir a ação, contém em si mesmo seu fim, ou seja, não tem que ocultar um conteúdo recalcado, um tabu ou interdito (ROSAS, 2002, p. 28).
O chiste, em sua grande maioria, corresponde a uma agressão bem empacotada,
constituindo uma ação substitutiva pela via da expressão verbal. Nos estudos do chiste
tendencioso, observa-se o ato de promover a descarga de uma excitação mental voltada
para a produção do prazer e alívio de tensões. Freud nos explica que esse tipo de chiste
é organizado por dois procedimentos: a) o jogo lúdico com a linguagem e com o
pensamento; e b) a manifestação de mecanismos de defesa para melhor lidar com as
frustrações, exorcizando os medos, as ansiedades e o sentimento de hostilidade. Sendo
assim, Freud considerou o chiste como uma atividade de juízo lúdica e engenhosa,
realizada por meio de alusões, ironias, fusões de idéias, omissões, expressões
ambivalentes ou esvaziadas de seu sentido usual.
Em seus estudos, Freud demonstra que os chistes tendenciosos têm alvos de
ataque distintos, o que o leva a categorizá- los, especificando suas particularidades.
Apresentamos a seguir os dois tipos de chistes tendenciosos que visam à descarga de
energia. O primeiro diz respeito aos impulsos agressivos e o segundo aos impulsos
sexuais.
O chiste tendencioso como descarga do impulso agressivo
HAGAR – Dik Browne
(BROWNE,1996, p. 39).
Talvez, no chiste, esteja o segredo dos relacionamentos humanos e a maneira
adequada de lidar com a vida. Se atribuirmos ao personagem, projetado pelo
quadrinhista Browne, a capacidade de representar formulações chistosas, veremos que
Hagar pede algo gelado para beber; entretanto, sua mulher que está muito ocupada
retruca- lhe com um olhar incisivo. Hagar poderia se sentir extremamente desconcertado
com essa situação, recalcando e produzindo uma sensação de mal estar imediata, mas o
personagem responde com senso de humor e faz uma alusão ao olhar da esposa de
forma espirituosa. Sua resposta demonstra que deseja algo gelado, mas não tão gelado
quanto o olhar da esposa. Dessa maneira, cria-se uma ambivalência com o termo
‘gelado’. Isto possibilita que o personagem expresse o seu desapontamento,
estabelecendo uma saída discursiva que evita o constrangimento e produz prazer. “O
ego se recusa a ser afligido pelas provocações, a permitir que seja compelido a sofrer.
Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo...” (FREUD, 1996,
p.166).
O chiste tendencioso em forma de smut
(O GLOBO, 5/10/04)
Alguns chistes têm uma conotação estritamente sexual; eles funcionam como um
cortejo verbal cheio de insinuações. Seu propósito é a sedução ou desnudamento do
alvo que se quer atacar. Quem produz esse tipo de chiste utiliza palavras ambíguas que
tendem a levar o interlocutor a associá- las a um sentido sexual. Nesta perspectiva, o
ouvinte é inspirado a imaginar partes do corpo ou situações que sugerem obscenidades,
provocando, em muitos casos, excitação e satisfação voltadas para os instintos
primários. Podemos encontrar nas camisas de universitários do curso de Direito o
seguinte enunciado: Se o seu namorado não faz direito, eu faço. Tal enunciado utiliza-
se de um trocadilho com a expressão ‘fazer direito’ que indica dois sentidos: o primeiro
é o de freqüentar a faculdade de Direito; o segundo corresponde à afirmação de dar
prazer sexual ao parceiro. Para tanto, o locutor utiliza o item lexical ‘direito’ associado
à palavra ‘namorado’ como propulsor da ambigüidade. Por conseguinte, o mesmo
enunciado pode ser lido como uma declaração de orgulho por cursar a faculdade de
Direito, ou a capacidade do dono da camisa fazer sexo “direito”.
Freud denomina esse tipo de chiste de smut6. “Uma pessoa que ri de um smut
que escuta, está rindo como se fora espectador de um ato de agressão sexual” (FREUD,
1977, p. 117). Geralmente, esse tipo de chiste produz prazer ao locutor, entretanto, ele
pode provocar constrangimento à pessoa que escuta. O smut é um tipo de chiste
tendencioso extremamente perigoso, visto que o receptor pode se sentir ofendido,
revidando de uma forma agressiva e constrangedora.
O chiste ingênuo ou inocente
É muito comum a criança brincar com as palavras, rompendo com qualquer
lógica estabelecida, já que ainda não há consciência dos limites das coerções sociais. As
crianças investem constantemente em brincadeiras voltadas para a segmentação das
palavras, mudando a sua significação acidentalmente. Também são recorrentes a
produção de neologismos e a elaboração de hipóteses equivocadas sobre o sentido de
uma palavra no âmbito do discurso.7 Observemos um exemplo narrado por Freud:
6 1 A palavra smut em inglês tem dois significados: fuligem em sentido concreto e pornografia no sentido figurado. 7 “O período em que uma criança adquire o vocabulário da língua materna, proporciona-lhe um óbvio prazer de ‘experimentá-lo brincando com ele’, segundo as palavras de Gross. Reúne as palavras, sem respeitar a condição de que elas façam sentido, a fim de obter um gratificante efeito de ritmo e rima. Pouco a pouco esse prazer vai lhe sendo proibido até que só restam permitidas as combinações significativas de palavras. Quando mais velho, tenta ainda emergir ao desrespeito das restrições que aprendera sobre o uso das palavras. Estas são desfiguradas por pequenos acréscimos particulares que lhes faz, suas formas sendo alteradas por certas manipulações. (...) Tais tentativas são reencontradas entre certas categorias de doentes mentais” (FREUD, 1977, p. 148).
Uma menina de três anos e meio avisa o seu irmão: Olha, não como pudim, senão vai ficar doente e tomar um ‘Bubizin’. ‘Bubizin’? pergunta a mãe, ‘O que é isso’? ‘quando fico doente’, disse a menina autojustificando-se, ‘tenho que tomar Medizin.’ A criança pensava que aquilo que o médico lhe prescrevia chamava-se Mädi-zin’ quando era para uma Mädi [garotinha]’e concluíra que, quando era para ‘Bubi [garotinho]’, devia chamar ‘Bubi-zin’(Freud, 1977, p. 209).
Apesar do efeito chistoso ter sido provocado pela técnica verbal (trocadilho), o
chiste inocente não contém a característica do chiste genuíno na visão de Freud, visto
que o locutor não tem a intenção de gerar um jogo de múltiplos sentidos e nem liberar
uma energia diante de uma situação que o oprimia. Este tipo de expressão oscila entre o
cômico e o chiste tendencioso, sendo intitulado de ‘ingênuo’ ou ‘abstrato’. “O
ingênuo deve se originar, sem que tomemos parte nisso, nos comentários e atitudes de
outras pessoas, que assumem a posição de segunda pessoa no cômico e nos chistes”
(Freud, 1907, p. 208). Mais próximo do cômico, o chiste inocente é descoberto
(constatado), enquanto o chiste tendencioso é elaborado com a finalidade de produzir
um determinado efeito pelo sujeito que o produz. A graça do chiste inocente decorre de
equívocos cometidos, em termos conceituais ou lingüísticos, por parte de seu produtor,
sem que este tenha consciência do ato realizado.
Freud exemplifica outro chiste inocente com o relato de uma representação
teatral organizada por dois irmãos: uma menina de doze anos e um menino de onze. As
duas crianças resolveram inventar uma história e dramatizá- la para seus tios. O drama
contava a história de um pobre pescador obrigado a se separar de sua mulher para
ganhar dinheiro em outra cidade. Depois de muitos anos, o pescador retorna rico e
mostra à honesta esposa uma mala cheia de dinheiro. A mulher, em um gesto de
retribuição e gratidão, diz ao marido: “Também eu não fiquei ociosa”. Abre a porta de
sua cabana, mostrando doze bonecas correspondentes aos bebês que havia feito durante
a sua viagem. Os adultos que assistiam a esta dramatização caíram na gargalhada, visto
que os jovens atores ignoravam como os bebês nasciam.
A execução do chiste ingênuo tem como protagonista, na maioria das vezes, uma
criança ou uma pessoa de pouca instrução, sem consciência do valor de sua
argumentação. O sujeito que comete um equívoco, via de regra, não percebe
ambigüidades ou equívocos postulados em seu discurso, agindo de forma inocente.
Vejamos como isso acontece na tira da Mafalda.
CLUBE DA MAFALDA
(QUINO, 20/12/06).
Podemos afirmar que enquanto o chiste tendencioso deseja extravasar sua
hostilidade por meio de ditos maliciosos, utilizando-se de um tom mais agressivo, o
chiste inocente assume uma perspectiva lúdica, sem que o sujeito tenha noção do
trabalho discursivo ambivalente por ele realizado.
Sobre o chiste de palavras e o chiste de pensamento
O que torna um dito espirituoso é o trabalho sobre o seu modo de organização
(conceitual e/ou lingüística) no interior de um contexto discursivo. Nesse sentido, a
preocupação imediata não é com a transmissão da informação, mas com a produção de
um efeito risível, assentado sobre o princípio da economia. Nos diálogos cotidianos, os
chistes são concebidos de forma automática e inconsciente, mas alguns se organizam no
plano de elaborações pré-consciente pela via de um imaginário já estruturado. Freud
(1977) exemplifica tal processo, com a seguinte história: Conta-se que um homem
conhecido por sua falta de escrúpulo e suas mentiras, querendo se vangloriar de seu
êxito profissional, perguntou a um amigo “Você sabe quanto eu ganhei no ano
passado?”. O amigo responde: “A metade”. Nota-se, na resposta, a expressão de um
pensamento abreviado elaborado previamente. Isto ocorre porque o efeito de uma fala
sintetizada torna-se mais eficaz do que a produção de um enunciado do tipo: “sei que
você vai exagerar com suas histórias, por isso sei que o que dirá corresponde à metade”
(FREUD, 1977, p.69).
Freud estabelece, então, a distinção entre os chistes que se expressam,
predominantemente, em forma de jogos de pensamento daqueles que se constituem por
jogos de palavras, explorando formas de representação verbais e/ou conceituais
imprevisíveis. Para aprofundarmos esta noção, examinaremos as diversas formas de
realização dos chistes de pensamento.
O funcionamento do chiste de pensamento
Nos chistes de pensamento, podemos encontrar raciocínios falhos, representação
pelo oposto, nonsense e pensamentos céticos. Para Freud, a elaboração do chiste de
pensamento consiste no desvio de uma rota conceitual que adota um discurso
silogístico. Sua construção rompe com premissas anteriormente proferidas no discurso,
sendo normalmente reticente. Quando alguém faz um chiste intelectual é como se
estivesse afirmando: “Enganei você com uma lógica que você nem imaginava. Te
peguei, hein...!”. A base do chiste de pensamento se apóia no deslocamento e no
absurdo encontrado em sua forma chistosa, tal como exemplifica Jolles (1986):
Um grego sonha ter passado a noite com uma célebre cortesã e vai contar seu sonho em praça pública. A cortesã ouve-o e exige ser paga. O caso chega à justiça. O juiz ordena ao homem que coloque o dinheiro sobre uma mesa, manda vir um espelho e autoriza a cortesã a apanhar o reflexo do dinheiro em pagamento dos prazeres imaginados em sonho (JOLLES, 1986, p. 207).
Podemos notar que este chiste não se constitui por meio de jogos de palavras,
mas sim pelo estabelecimento de representações que rompem com o quadro de
expectativas previsíveis. O argumento absurdo de a cortesã cobrar honorários pelo
serviço realizado em um sonho é combatido por outro mais incongruente, produzindo,
assim, um desfecho surpreendente. Ou seja, se o grego deve pagar honorários pelo
sonho, sem de fato ter tido contato físico com a cortesã, é justo que o pagamento seja
feito com o reflexo do dinheiro. O jogo de lógicas disparatadas permite ao ouvinte se
divertir e tomar como engraçado o paradoxo expresso na situação narrada.
a) nonsense
Em nota de rodapé, Freud (1977, p.161) afirma que somente os chistes de
pensamento carregam consigo a condição de produção do nonsense, visto que sua forma
trabalha a ruptura dos sentidos preestabelecidos nas representações conceituais. Seu
objetivo principal é produzir a sensação de desconcerto no interlocutor, provocando
uma explosão de riso involuntário.
Na realização de um chiste nonsense não se busca um sentido oculto sob as
palavras, pois sua lógica não se sustenta em parâmetros pré-concebidos. O humor neste
tipo de chiste reside, justamente, neste poço sem fundo, em que os referentes e as
intenções presentes no discurso não apresentam um ponto de determinação. Vejamos
um exemplo dado por Freud: “A vida é uma ponte suspensa’ disse um homem. ‘Por que?’,
perguntou o outro. ‘Como posso saber?’, diz o primeiro” (FREUD, 1977, p. 162).
Observa-se que o dito do primeiro locutor corresponde a uma trapaça, na medida
em que seu proferimento não se sustenta em um contexto enunciativo concreto. Tal
comportamento leva seu interlocutor a indagar sobre os motivos da declaração. Por não
encontrar resposta para a questão, em parâmetros concebidos na esfera concreta, o outro
responde: “Como posso saber?”. Alguns chistes nonsense têm em seu modo de
constituição a duplicação de dizeres absurdos pelos dois locutores. Esta técnica consiste
em um dito absurdo expresso por um locutor, seguido de um contra-ataque que adota as
mesmas premissas absurdas.
(QUINO, 1992, p.131).
A grosso modo, para uma pergunta desconcertante dá-se uma resposta mais
audaciosa. Ou seja, a réplica vem em forma de resposta pronta, agindo cinicamente
como se a premissa lançada pudesse ser efetivada nas circunstâncias concretas de
enunciação. Sendo assim, o opositor paga na mesma moeda com outro dito chistoso.
b) raciocínio falho
Um outro tipo de chiste de pensamento, que Freud situa em uma região
fronteiriça com o cômico, é a exploração de um sofisma no qual se identifica a
ocorrência de um raciocínio falho. Essa técnica consiste na defesa de um argumento
aparentemente lógico por meio de um raciocínio silogístico, em que uma (ou mais de
uma) das premissas é inválida. Para garantir a sustentação do discurso calcado no
raciocínio falho é preciso dar relevo à fantasia em comparação à realidade
circunstancial. Neste sentido, o discurso enganoso tem como principal estratégia o
apagamento dos defeitos de suas premissas, consolidando uma enunciação absurda.
Vejamos como o agente matrimonial (Schadchen) transforma defeitos em qualidades
para convencer o cliente a se casar com uma moça por ele selecionada.
O Schadchen defendia a jovem por ele proposta, dos protestos do rapaz. ‘Não gosto da sogra’, dizia o último. ‘Ela é uma pessoa desagradável e estúpida.’ – ‘Mas afinal você não vai se casar com a sogra. Quem você quer é a filha dela.’ ‘Sim, mas esta não é jovem, nem se pode dizer que seja bonita.’ – ‘Não importa. Se ela não é jovem nem bonita, será por tudo isso mais fiel a você.’ – Nem tem muito dinheiro.’ – Quem está falando em dinheiro? Você vai casar-se com o dinheiro? Afinal é uma esposa que você quer.’ – ‘Mas ela também tem uma corcunda nas costas’. ‘Bom, e o que você quer mais? Não terá ela o direito de ter um único defeito?’. (FREUD, 1977, p.79)
De acordo com o pretendente, a noiva tem diversos defeitos: a mãe da noiva é
desagradável, a família é pobre e a noiva é feia. Além destes defeitos, a candidata
possui uma corcunda. A graça da piada reside na forma como o Schadchen constrói um
raciocínio, aparentemente lógico, buscando invalidar cada afirmação do rapaz. Ele
transforma todo atributo negativo em uma vantagem para a felicidade matrimonial. A
percepção da não sustentação de seu discurso e a constatação de que não existe um
“único defeito” tornam a defesa de sua proposição absurda, comprovando, assim, a
presença de um raciocínio falho.
Outra técnica do chiste de pensamento, baseada no raciocínio falho, é elaborada
a partir do desnudamento de uma proposição por meio de um gesto automático que
contradiz o que havia sido dito. É o caso de algumas piadas organizadas a partir da fala
de um personagem que rompe com um conjunto de expectativas que seguem uma lógica
cartesiana, inserindo no discurso uma resposta automática que não condiz com a linha
de argumentação defendida.8 Vejamos como um agente matrimonial, ajudado por seu
assistente, tenta convencer seu cliente a casar com uma mulher corcunda.
Um Schadchen devendo propor a alguém uma noiva levou consigo um auxiliar, que confirmasse tudo o que ele tinha a dizer. ‘Ela é esbelta como um pinheiro’, disse o Schadchen. – ‘Como um
8 Freud alega que o automatismo tem um aspecto mais voltado para o cômico, o que coloca em dúvida o teor chistoso desta técnica “O desvelamento de automatismo psíquico é uma das técnicas do cômico, exatamente como qualquer tipo de revelação ou auto-traição. Repentinamente somos defrontados a esse ponto pelo problema da relação do chiste com o cômico, relação que pretendíamos evitar” (FREUD, 1977, p. 83).
pinheiro’, repetia o eco. – ‘E tem uns olhos que merecem ser vistos!’- ‘Que olhos ela tem!’ confirmava o eco. – ‘Melhor educada que qualquer outra!’ – ‘Que educação!’, ‘ela tem uma corcunda.’ – ‘E que corcunda!’ o eco confirmou mais uma vez (FREUD, 1977, p.82).
A reafirmação descuidada9 da última qualificação com a explosão do eco: “E
que corcunda!”, invalida a possibilidade de levar a sério a fala do Schadchen. A
manifestação de elogio a uma corcunda desestrutura a fachada lógica, invalidando o
reforço do eco nas proposições anteriores. Tal chiste demonstra um teor crítico, na
medida em que desmascara a fachada estabelecida pelos agentes matrimonias,
colocando em dúvida a reputação dos mesmos.
c) representação pelo oposto
Uma das técnicas do chiste, provocadora de efeito humorístico, é a representação
dita ao avesso do que se desejava dizer, chamada por Freud de representação pelo
oposto. O locutor produz um enunciado que vai em uma direção inversa ao conteúdo
informativo de sua declaração. Para tanto, o locutor demonstra uma atitude ou há
elementos ostensivos na circunstância enunciativa que comprovam o contrário da
premissa defendida. Para ilustrar esta técnica, Freud (1905, p.90-91) conta a anedota de
um judeu que tenta demonstrar seu hábito de limpeza com o seguinte enunciado: “Dois
judeus discutiam sobre banhos. ‘Tomo banho anualmente’, disse um deles, ‘quer precise ou
não’.”.
Identificamos a mesma proposta de chiste, com representação pelo oposto na tira
elaborada por Quino a seguir: 9 Na fala do assistente matrimonial observa-se um acidente de percurso de raciocínio devido ao automatismo do discurso por ele produzido. Tal mecanismo apresenta a característica do “cômico acidental” discutido nos estudos de Bergson (1987).
(QUINO, 2000, p.185).
Sobre as técnicas do chiste de palavras
Freud comprovou a existência de uma variedade de técnicas de uso do verbal
que determinam a forma de organização dos chistes de palavras. Por meio de uma
análise atenta sobre o modo do funcionamento lingüístico das piadas, ele detectou um
conjunto de propriedades que lhe permitiu categorizar os chistes verbais em três
modalidades: a condensação de palavras; o múltiplo uso de uma mesma palavra e o
duplo sentido. Essas propriedades são subdivididas por Freud (1977, p.57), da seguinte
forma:
I – CONDENSAÇÃO
(a) condensação com formação de palavra composta;
(b) condensação com modificação;
II – MÚLTIPLO USO DO MESMO MATERIAL
(a) como um todo e suas partes;
(b) em ordem diferente;
(c) com leve modificação;
(d) com sentido pleno e sent ido esvaziado.
III- DUPLO SENTIDO:
(a) significado como um nome e como uma coisa;
(b) significados metafórico e literal;
(c) double entente;
(d) duplo sentido com uma alusão.
84
CONDENSAÇÃO
A condensação tem como base a construção de um novo vocábulo a partir de duas
palavras que apresentam coincidências de sílabas em sua formação (homofonia), sem
necessariamente haver uma relação de parentesco semântico entre elas. Podemos dizer que
no processo de condensação, duas palavras que denotam idéias diferentes se integram,
formando um termo novo que fornece um sentido desejado na situação discursiva. Ou seja,
aquilo que era “inominável” ganha uma forma de designação expressiva, ao se
condensarem dois vocábulos de campos semânticos distintos. Sendo assim, surge uma
palavra, até então inexistente, em razão da necessidade de transmitir uma idéia difícil de ser
comunicada ou expressar um pensamento de forma singular e econômica. Tal processo é
explicado por Freud por meio de duas técnicas que demonstramos a seguir.
a) condensação com formação de palavra composta
Freud exemplifica a técnica deste tipo de chiste com a clássica história de Heine que
se encontra na peça Os Banhos de Lucca. Um pobre agente de loteria e calista, chamado
Hirsch-Hyacinth, se gaba por ter tido um contato breve com o rico Barão Rothschild,
dizendo: “É certo como Deus há de me prover todas as coisas boas, Doutor, sentei-me ao
lado de Salomon Rothschild e ele me tratou como um seu igual – bastante
familionariamente.” (FREUD, 1977, p. 29)
O chiste decorre do enunciado de Hirsch-Hyacinth abreviar a idéia de um milionário
tê-lo tratado de forma familiar com a invenção de um termo. Para redimensionar a
importância desse evento e demonstrar um alto grau de intimidade com o Barão Salomon
Rothschild, ele associa as expressões ‘familiar’ e ‘milionário’, condensando-as em um
único termo: ‘familionariamente’.
85
Dessa forma, aquilo que estava no plano do ‘inominável’ ganha um sentido por
meio da condensação de duas palavras. A articulação do chiste decorre de um trabalho de
linguagem que reflete uma apreciação positiva do enunciador de ter uma eventual
aproximação com o Barão. De acordo com Freud, tal procedimento se realiza por meio de
arranjos involuntários, ocasionando a organização de uma cadeia de significantes que
manifesta conteúdos latentes do pensamento de Hirsch-Hyacinth. Observamos a utilização
da mesma técnica chistosa elaborada pelo quadrinhista Quino a seguir:
(QUINO, 2000, p. 256).
Na tira em quadrinhos que acabamos de ver, a professora pergunta sobre antípodas1
das pessoas que se encontram em uma sala de aula. A resposta certa ser ia os japoneses.
Contudo, Miguelito inventa uma nova palavra com a justaposição do vocábulo ‘japonês’ e
o morfema ‘idos’: “japonésidos”. A resposta não é aceita como correta, levando a
professora a resgatar a mesma terminação “ido”, utilizada na resposta de Miguelito e
chamá- lo de estúp ido.
O aluno ao rebater a ofensa da professora não diz ‘antipática’, mas sim ‘antipátida’.
Se dissesse ‘antipática’ seu enunciado causaria um desconforto e seria visto como uma
atitude de desrespeito. Todavia, sua opção pela palavra condensada revela um jogo verbal
que produz um efeito humorístico. No ato de fundir o vocábulo ‘antípoda’ com ‘antipática’,
o locutor coordena as duas idéias que expressam seu pensamento a respeito da professora.
1 O significado da palavra antípoda encontrado no dicionário de Bueno (1970) é: “Antípoda, s.m. e adj. 2 gên. Habitante que, em relação a outro do globo, se encontra em lugar diametralmente oposto; o mesmo que antíctone; (fig.) o contrário, o oposto”. Observamos que os japoneses são antípodas dos brasileiros e vice-versa.
86
O conteúdo latente, expresso em seu enunciado, denota indícios de que a professora é
antipática, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma antípoda, sob a perspectiva do
aluno .
Dessa forma, o processo de condensação do chiste “familionariamente” pode ser
comparado com o chiste “antipátida”. Para isso, devemos atentar para a composição de um
novo substitutivo constituído por meio da aglutinação das sílabas coincidentes que se
atraem.
famili armente milionari o familionária mente
Antíp odas Antipáti ca
Antipáti da
101
b) condensação acompanhada de leve modificação
A técnica deste tipo de chiste reside no estabelecimento de uma ligeira
modificação na estrutura fonética de uma expressão que compõe o enunciado. Sua
qualidade está diretamente ligada à sutileza envolvida na modificação de uma expressão
verbal, condensando duas idéias na composição do enunciado. A técnica faz uso da
redução de uma expressão pela semelhança que ela tem com outra, deixando inscrita no
texto a tensão entre os dois sentidos.
Todos nós conhecemos a expressão ‘tête-a-tête’ que quer dizer estar frente a
frente como um determinado sujeito ou situação. Esta expressão foi modificada em um
chiste contado pelo Herr N., com a seguinte composição: “Viajei com ele tête-à-bête”.
A substituição do fonema ‘t’ pelo fonema ‘b’ forma a palavra ‘bête’ que significa em
francês o mesmo que ‘besta’. Nesse sentido, o locutor está querendo dizer “Viajei com
X tête-à-tete, e X é uma besta”. A mudança de um único fonema na expressão ‘tête-à-
tête’ sugere um deslocamento da expressão utilizada no senso comum. Este recurso é
muito utilizado nas propagandas publicitárias, visto que uma leve modificação na
camada acústica estabelece um deslocamento responsável pela elaboração de uma nova
proposição expressa de forma condensada.
MÚLTIPLO USO DO MESMO MATERIAL
Diferentemente da técnica baseada na condensação, o múltiplo uso de um
mesmo material lingüístico não funde palavras para constituir um substitutivo.
Aproveitando-se da sonoridade, da semelhança entre as palavras, provoca-se a repetição
de um mesmo material verbal, explorando mecanismos de alteração em sua pauta
sonora e/ou em seus arranjos frasais. Tal procedimento lida com a reaparição de um
mesmo material lingüístico, já exibido no enunciado, com um outro valor semântico.
Esta técnica tem como princípio a quebra de expectativa sobre o valor de uma
expressão ao término da leitura de um enunciado como um todo. Devido à semelhança
com o jogo de palavras, Freud prefere chamar esse fenômeno de múltiplo uso do mesmo
102
material, visto que não está atrelado somente à ambivalência das palavras, mas também
ao conjunto de proposições vinculadas à reutilização de um mesmo termo, de maneira
distinta da sua primeira ocorrência.
a) múltiplo uso como um todo e suas partes
O chiste múltiplo uso como um todo e suas partes “... consiste no fato de uma
mesma palavra – nome – aparecer usada de duas maneiras, uma vez como um todo, e
outra vez segmentada em sílabas separadas qual uma charada” (FREUD, 1977, p.45).
Ex: Um jovem de cabelos vermelhos, um pouco desajeitado, foi apresentado em uma
festa da alta sociedade parisiense como parente de Jean-Jacques Rousseau. A anfitriã
comenta, em tom de ironia, para o cavalheiro que trouxe o rapaz: “Você me fez
conhecer um jovem que é roux (ruivo) e sot (tolo), mas não um Rousseau” (FREUD,
1977, p.44).
Esse chiste ao fazer um jogo acústico com as palavras Rousseau [ruso] e roux
sot [ru] [so], permite uma representação psíquica que exterioriza uma opinião em forma
de gracejo. Segundo Freud, o bom chiste é aquele que consegue estabelecer um elo
entre um jogo de idéias (conexão interna) e um jogo sonoro de palavras (associação
externa), tal como encontramos no dito popular italiano “Traduttore, Traditore”
(Tradutor, traidor) comentado pelo autor em uma nota de rodapé:
As duas idéias discrepantes, aqui ligadas por uma associação externa, são também unidas em uma relação de significante que indica um parentesco essencial entre elas. A associação externa meramente toma o lugar da conexão interna; serve para indicá- la ou torná- la clara. Um ‘tradutor’ não é simplesmente chamado por um nome semelhante a ‘traidor’; ele de fato é uma espécie de traidor e assume, pois apropriadamente esse nome (FREUD, 1977, p. 143).
103
Mais do que um chiste fônico, esta técnica restaura o prazer do jogo sonoro das
palavras que convergem para o mesmo sentido, isto é, o tradutor ao mesmo tempo em
que traduz o texto de um autor, adiciona novas informações que não havia no texto
original, assumindo a postura de traidor. Desta maneira, as palavras ‘tradutor’ e ‘traidor’
convergem para o mesmo campo semântico.
b) múltiplo uso do mesmo material em ordem diferente
Este tipo de chiste decorre da realização de dois valores semânticos em expressões
que aparecem mais de uma vez em um enunciado: “A distinção entre professores
ordinários e extraordinários é que os ordinários nada fazem de extraordinário enquanto os
extraordinários nada fazem ordinariamente” (FREUD, 1977, p.55). A engenhosidade
deste chiste decorre da correlação entre as palavras ‘ordinário’ e ‘extraordinário’ com
múltiplos sentidos, em decorrência da função sintática das palavras no interior do
enunciado.
(QUINO, 2000, p.274).
A recorrência do mesmo vocábulo em dois segmentos do mesmo enunciado
promove nesta tira a técnica do múltiplo uso. A primeira ocorrência “... peço que o
senhor melhore o estado em que está a situação” refere-se às dificuldades que a família
de Mafalda vem passando pelo atraso do pagamento de seu pai. No segundo momento,
seu questionamento se volta para a situação crítica em que se encontra o Estado.
104
Observa-se um forte deslocamento da temática, duplicando o sentido da enunciação “o
estado em que está a situação” de sua família e “a situação do Estado”.
c) múltiplo uso com leve modificação
A técnica do chiste múltiplo uso com leve modificação guarda semelhança com o chiste
por condensação com leve modificação (Viajei com ele tête-à-bête), na medida em que
ambas trabalham com o jogo sonoro das palavras. Entretanto, no múltiplo uso não há
condensação de palavras, isto é, tudo o que se tem a dizer encontra-se expresso no
próprio chiste, não depende do recurso alusivo a um outro termo oculto para sobrepor
uma significação. Para exemplificar, Freud conta que um homem, ao ouvir um
comentário malévolo sobre os judeus, por um descendente chamado Herr Hofrat, lança a
seguinte observação: “seu ante-semitismo me é bem conhecido; o que é novo para mim é
seu anti-semitismo”. Apoiando-se na atribuição dos predicados ‘ante-semitismo’ e ‘anti-
semitismo’ de Herr Hofrat, confronta-se com a idéia de um judeu que fala mal de seus
antepassados. Observa-se que a modificação de um único fonema provoca um
deslocamento de sentido, reforçando uma visão crítica do preconceito de um semita a
seus antepassados. Por meio da similaridade acústica das duas expressões, o locutor
expõe um ponto de vista em forma de trocadilho.
d) múltiplo uso com sentido pleno e sentido esvaziado
Fazendo alusão aos judeus da Galícia, que não gostam de tomar banho, Freud
relata a piada de um judeu que perguntou ao amigo: “Você tomou um banho?” O amigo
respondeu prontamente: “Por quê? Está faltando um?”. Analisando a técnica do chiste,
Freud constata que a palavra ‘tomar’ tem duplo sentido. O efeito bem-sucedido do chiste
105
consiste na escolha da expressão ‘tomou banho’, se fosse utilizado o termo ‘banhou-se’
não produziria o mesmo efeito de ambigüidade gerador do efeito risível.
Nesta perspectiva, instala-se o nonsense, visto que o sintagma ‘tomar banho’ não
pode amparar a palavra ‘tomar’ com o sentido de ‘roubar’ um banho. Marca-se aí o termo
pivô que provoca a fuga temática da conversa estabelecida. O deslocamento do tema tem
como sustentação um novo enquadramento sobre o que estava sendo dito. Neste caso, o
foco volta-se para os próprios aspectos expressivos dos enunciados, retomados com outra
possibilidade de sentido. “Se substituímos a expressão ‘tomou banho’ pela equivalente
mais simples, ‘banhou-se’, o chiste se esvai” (FREUD, 1977, p.66). Este tipo de chiste se
realiza porque ataca alguém que não gosta de tomar banho, ao mesmo tempo em que
esvazia o sentido convencional da expressão ‘tomar banho’. Vejamos um chiste
produzido por Mafalda que utiliza os mesmos dispositivos.
(QUINO, 2000, p.156).
A formulação do chiste da tira apresentada tem em sua base a ruptura com sentido
convencional da expressão ‘levar uma vida decente’ (viver com dignidade), para fazer
vigorar o sentido ‘levar um objeto para um determinado lugar’. A expressão ‘vida
decente’ passa a ser tratada como um objeto concreto, capaz de ser transportado para uma
106
localidade. O absurdo deste enunciado é a confirmação de que o termo ‘vida’ só pode ser
referido na instância da linguagem verbal, visto que não há referência no plano de
existência material. O jogo de linguagem aí estabelecido explora os limites da literalidade
para desenvolver um trocadilho.
DUPLO SENTIDO
Diferentemente da técnica do múltiplo uso em que um significante aparece duas
vezes com significados diferentes, o duplo sentido decorre do uso de uma determinada
expressão ambivalente que não se repete na estrutura do enunciado, mas sustenta duas
interpretações. Isto é, no enunciado é possível captar um estado de tensão que não deixa
negar a possibilidade de duas representações diferentes, organizadas por meio de uma
única unidade lingüística. Apoiando-se no contexto e na identificação de item lexical
com dupla significação, o ouvinte é atraído pelo sentido mais malicioso da enunciação,
sem, no entanto, negar a segunda possibilidade de interpretação. É aí que reside a graça
desta técnica.
a) duplo sentido: significado como um nome e como uma coisa
Esse tipo de técnica se realiza por meio da coincidência de um nome designador
de dois referentes. Tal procedimento revela a construção de uma representação baseada
na identidade de um nome que expressa dois referentes, sem que um recuse o outro.
Percebemos o duplo sentido do nome ‘Banko’, personagem da peça Macbeth de
Sheskepeare: “O vil Macbeth não reina aqui em Hamburgo: o rei aqui é Banko [dinheiro
bancário]”. Evidencia-se o mesmo procedimento, quando Hagar enuncia a palavra
‘escocês’ com dupla referência.
107
HAGAR – Dik Browne
(Folha de São Paulo, 13/09/04).
O quadrinhista Browne, de forma bem humorada, expõe a mesma formulação
chistosa a partir do nome ‘escoceses’ com dupla significação: cidadão da Escócia e
bebida alcoólica. A afinidade de Hagar com os escoceses decorre da bebida que eles
produzem, daí a adoração por eles.
b) significado metafórico e literal
As noções de sentido literal e metafórico das palavras vêm sendo bastante
contestadas pelos lingüistas na atualidade. A própria visão de metáfora como linguagem
figurada é questionável na medida em que nos comunicamos por meio de expressões
que, com o passar do tempo, conquistaram um valor de literalidade no uso corrente da
língua. Tradicionalmente, o sentido literal diz respeito à permanência de significação
de uma frase ou expressão, independente do contexto em que ela é apresentada. Tal
perspectiva deixa uma série de brechas para compreendermos a fronteira entre sentido
metafórico e sentido literal. Podemos, no entanto, estabelecer o confronto entre sentido
metafórico e literal voltado para os estudos do chiste em Freud de outra maneira. A
relação metáfora- literalidade se estabelece no confronto de dois termos categóricos que
assumem maior/menor grau de concretude no plano de representação estipulada por
convenções. A tentativa de estabelecer relações diretas entre os dois termos acaba por
revelar não coincidências, podendo provocar a quebra das evidências ou a produção de
108
discursos absurdos. A literalidade neste contexto é vista na relação entre dois termos
que se encontram em níveis de significação distintos, no interior de um enunciado.
Um médico, meu amigo afamado por seus chistes, disse certa vez a Arthur Schnitzler, o dramaturgo: 'Não me surpreendo que você tenha se tornado um grande escritor. Afinal seu pai susteve um espelho para seus contemporâneos'. O espelho sustido pelo pai do dramaturgo, o famoso Dr. Schnitzler, era o laringoscópio. Um famoso dito de Hamlet fala -nos que o objetivo de uma peça, tanto quanto do dramaturgo que a cria é suster, como se fora um espelho à natureza; mostrar à virtude sua feição própria, ao escárnio sua própria imagem, ao torso e à longa idade do tempo sua forma e premência (FREUD, 1977, p. 52).
O chiste retratado explora a noção de espelho que instrumentaliza duas
profissões. Tanto o pai, Schintler, inventor do laringoscópio, quanto o filho,
dramaturgo, desenvolveram modos de projetar imagens. A diferença observada é que as
contribuições do pai e do filho ocorreram em campos díspares de conhecimento.
Enquanto o pai situa-se no campo da medicina, trabalhando com um espelho encontrado
no mundo material, o filho estabelece reflexões sobre o homem por meio da produção
de peças teatrais. Neste contexto, a comparação entre as duas profissões gera um
estranhamento sutil, na medida em que o objeto inventado pelo pai visualiza órgãos do
corpo humano (espelho no sentido literal), enquanto o espelho produzido pelo
dramaturgo refere-se à reprodução da imagem da alma humana (espelho em um sentido
metafórico). Ao dizer que “o dramaturgo reflete sobre a alma humana” não teríamos
uma linguagem figurada, mas sim uma linguagem desgastada com o tempo que o
aproxima do sentido literal.
Sobre este chiste, Freud anuncia o efeito do humor por justaposição de dois
elementos concebidos em esferas de existências distintas. Exaltando-se o lado
espirituoso deste enunciado, o quadrinhista pode projetar situações em que um
enunciado pode ter significados distintos em dois planos de existência, produzindo a
ambigüidade que desencadeia o riso. O emprego de um termo que atua sobre duas
esferas representacionais pode ser notado na seguinte tira:
109
(O Globo, 02/04/03).
Observamos duas significações para o termo ‘iluminar’ nas duas vinhetas: na
primeira, iluminar significa trazer conhecimento e sabedoria ao homem; na segunda
vinheta, iluminar diz respeito a um homem capaz de fornecer claridade a um espaço
físico por meio de luz artificial, no caso, velas. A multiplicidade de sentidos de uma
palavra em planos de significação distintos, em muitos casos, pode gerar incompreensão
por um ouvinte mais distraído, gerando mal-entendidos e incompreensão. É justamente
este aspecto que o quadrinhista utiliza para provocar humor. A incompreensão da
expressão ‘iluminar’, por parte de Eddie, acabou por conduzi- lo a um equívoco que gera
um efeito risível. Nesta tira, observamos de forma mais nítida um chiste inocente, visto
que Eddie não tem noção do jogo que faz com os dois níveis de significação do termo
‘iluminar’. Contudo é possível perceber a predominância de um sentido mais literal e
outro mais metafórico na enunciação projetada pelo quadrinhista.
c) duplo sentido propriamente dito (ou jogo de palavras)
O duplo sentido com jogo de palavras é um “caso ideal de múltiplo uso” de uma
mesma palavra com dois sentidos diversos, sem que haja um trabalho de mudança em
110
sua estrutura sintática, morfológica ou fonética. Uma tirada bastante significativa desta
técnica, que Freud buscou nos estudos de Fischer, foi a seguinte: Quando Napoleão III
foi assumir o poder da Casa de Orleans, disseram: “C’est le premier vol de l’aigle”. [Eis
o primeiro vol da águia] (FREUD, 1977, p.52). A palavra ‘vol’ em francês pode
significar tanto ‘roubo’ como ‘vôo’. Para Freud, o jogo de palavras é uma condensação
sem formação de substitutivo: “O duplo sentido da palavra ‘vol’ torna tal substituição
desnecessária; seria igualmente verdadeiro dizer que a palavra ‘vol’ contém um
substitutivo do pensamento suprimido sem que se faça qualquer acréscimo ou mudança
no primeiro” (FREUD, 1977, p.59).
Em alguns chistes, a ambigüidade do duplo sentido é produzida no plano da
enunciação. Vejamos em Freud (1977, p.53): “Um médico afastando-se do leito de uma
dama enferma, diz a seu marido: ‘Não gosto da aparência dela’. ‘Também não gosto há
muito tempo’, apressou-se o marido a concordar”. Para produzir este chiste, identifica-
se no primeiro momento o comentário do médico sobre a aparência física, do ponto de
vista da saúde da paciente. O marido, aproveitando a deixa, desloca o tópico da
discussão para aparência estética da esposa e sua insatisfação com o casamento. Em
diversos textos inscritos no domínio humorístico, aproveitam-se estas coincidências
enunciativas para provocar um efeito risível.
d) double entente
(O Globo, 17/01/03).
111
O double entente está ligado ao chiste de conotação sexual. O procedimento mais
utilizado é o apelo a alusões que indicam a realização dos instintos voltados para o
prazer do corpo (smut) e ao canibalismo. Nessa tira em quadrinhos, podemos observar o
duplo sentido da palavra ‘cebolinha’. Isto é, o termo é dotado de duas significações
distintas: nome do personagem e hortaliça que serve para comer em saladas. A
formulação do chiste consiste em colocar na primeira vinheta uma menina que afirma
ser vegetariana para o personagem Cebolinha sem revelar o motivo da declaração. O
questionamento de Cebolinha faz a garota formular uma cantada de forma ambígua, já
que o nome ‘cebolinha’ determina dois referentes distintos no contexto.
e) duplo sentido com uma alusão
O duplo sentido por alusão decorre da comparação de dois universos discursivos
distintos que apresentam algo em comum. Freud toma como exemplo a tirada
espirituosa de Heine: “Esta dama se assemelha em muitos aspectos à Vênus de Milo: ela
é também extraordinariamente velha, não tem dentes e há manchas na superfície
amarelada de seu corpo” (FREUD, 1977, p.88). A menção feita à Vênus de Milo para se
referir a uma determinada dama, não se atém aos traços físicos da deusa da beleza, mas
ao aspecto da estatueta carcomida pelo tempo. Quando o produtor do chiste dá
prosseguimento à descrição da Venus de Milo, especificando os atributos negativos a
serem destacados, ele cancela a alusão à beleza, comparando o desgaste da dama com o
desgaste da estatueta. Aqui percebemos que o deslocamento no plano lingüístico não é
determinado, somente, pela alusão e comparação a um objeto, mas por um jogo
argumentativo em que um determinado pressuposto é cancelado para fazer vigorar um
outro sentido diferente à proposta de elogio.
As alusões com tons maliciosos também podem ser feitas de forma auto- irônica,
ou seja, o próprio sujeito pode fazer alusões que depreciam a si mesmo. Freud narra a
história de um professor universitário que tinha mania de apresentar a matéria por meio
de chistes. Certo dia, na ocasião do nascimento de seu filho mais novo, recebe
112
congratulações de seus alunos. O professor que já tinha uma idade avançada, responde:
“Bem... é notável o que podem fazer as mãos humanas” (FREUD, 1977, p.76).
Pode-se inferir que a alusão às mãos, em substituição aos órgãos sexuais, acaba
por estabelecer uma declaração absurda; a de que o filho não foi concebido pela
copulação, mas pela atuação das mãos. Com este chiste seu produtor zomba de si
mesmo, provocando em seus interlocutores um riso instantâneo.
Ponderações e encaminhamentos
Podemos observar, nos estudos de Freud (1977), a apresentação de um conjunto
de técnicas voltadas para a produção do chiste. Identificamos a manifestação dos
mesmos procedimentos estruturantes em boa parte das tiras em quadrinhos de Hagar, o
Horrível e Mafalda. Os ditos espirituosos dos pequenos diálogos decorrem de um
comentário ou de uma réplica que rompe com o curso de uma linha de raciocínio
esperada pelo interlocutor, provocando, assim, um efeito risível.
Na maioria dos exemplos ressaltados neste trabalho, identificam-se inversões,
substituições e mecanismos que rompem com um sistema de representações previstas.
Em boa parte dos chistes prevalece o jogo de pensamento e o jogo de palavras
trabalhados de forma integrada. Em muitos chistes há combinação e integração das
técnicas exploradas nos estudos de Freud, tais como: uso múltiplo de palavras, duplo
sentido e condensação.
Para compreender a formulação de um texto humorístico o destinatário, em
muitos momentos, precisará estabelecer inferências semânticas e pragmáticas. Além
disso, o leitor das tiras deverá se ater à combinação dos elementos cômicos
(automatismos, exageros, absurdos, caricaturas) que contribuem para a intensificação do
efeito risível. Sendo assim, apresentamos um quadro que esclarece a diferença entre
humor e cômico em nosso trabalho.
113
Cômico (carnavalização)
Humor (chiste)
Jogo de representações e ações que subvertem a ordem preestabelecida. Utiliza-se do equívoco, da zombaria, do estereótipo, do grotesco, do nonsense para fazer rir. Vê e ri. O prazer decorre do rebaixamento do homem e dos valores promovidos pelos conteúdos representados. Conteúdo determinado pelo reconhecimento de subversões da ordem preestabelecida ou de paródias de textos.
Jogo discursivo espirituoso realizado por meio de incongruências exploradas no uso da língua e nas representações proposicionais. Vê, pensa e ri. O prazer decorre do modo de organização do discurso marcado por implícitos em sua formulação. Conteúdo determinado por inferências no âmbito da situação enunciativa.
Observamos que o cômico está relacionado às transgressões sociais no plano das
atitudes gestuais e verbais, de forma mais explícita no conteúdo representado, enquanto
o humor vincula-se ao discurso verbal marcado por implícitos e ambivalências
enunciativas no plano de sua formulação.
Apesar de Freud não utilizar a metalinguagem adotada pela teoria da
enunciação, seu trabalho problematiza muitas questões que os estudos de análise do
discurso, atualmente, abordam. Dentre os vários aspectos ressaltados, destacaremos
aqueles que envolvem a compreensão de atos de fala, as implicaturas, a polifonia e a
explicatura. Nossa tarefa a partir de agora é analisar os recursos que geram humor sob
uma perspectiva enunciativa, dando visibilidade a alguns procedimentos inscritos nos
enunciados geradores de humor.
Confirmamos a hipótese de que as tiras em quadrinhos assumem em sua
dinâmica um comportamento similar ao dos chistes analisados por Freud. Propomos,
doravante, ampliar a discussão sobre as propriedades da linguagem. Para tanto,
pretendemos fazer, no próximo capítulo, uma análise da contribuição dos estudos
desenvolvidos por Bakhtin, Benveniste, Austin, Grice, Ducrot e Sperber & Wilson, a
fim de compreender melhor o funcionamento do discurso do humor. Tais pesquisas,
apesar de não se debruçarem sobre os aspectos do humor especificamente,
desenvolveram modelos de análise que ajudam a compreender o uso da linguagem e
114
seus efeitos em uma situação comunicativa. Com base nesses estudos,
desenvolveremos, paralelamente, uma proposta de análise de tiras em quadrinhos que
contribua para uma reflexão sobre o gênero discursivo tira em quadrinhos de humor.
IV - PROCESSOS ENUNCIATIVOS E OS IMPLÍCITOS NAS TIRAS EM QUADRINHOS DE HUMOR
(QUINO, 2000, p.172).
Nesta seção pretendemos explorar as possibilidades de compreensão dos
enunciados de efeito humorístico nas tiras em quadrinhos em uma perspectiva
enunciativa. Para tanto, faremos uma retrospectiva dos estudos que embasam esta
tendência. Este quadro teórico pretende tornar mais visíveis procedimentos utilizados
pelo quadrinhista na produção de enunciados que promovem o efeito risível. Nossa
principal tese é a de que há diversas formas enunciativas de mobilizar formulações
implícitas e ambivalentes no plano do discurso que geram procedimentos humorísticos.
Para que isso aconteça é preciso que o leitor das tiras leve em conta quem, onde, porque
e para quem o locutor dirige a palavra, tal como a personagem Susanita sugere em seu
discurso na tira acima. O trabalho do quadrinhista consiste, justamente, na atividade de
colocar em tensão o sistema de referência que sustenta o discurso, abalando a
possibilidade de interpretação somente com o que se encontra escrito nos balões.
Distanciando-se de uma tendência tipológica que analisa a tira sob uma perspectiva
narrativa, a proposta enunciativa deste trabalho tem como principal objetivo demonstrar
as marcas de subjetividade e intersubjetividade na linguagem em que os locutores
apóiam seu discurso para produzir enunciados ambíguos e chistosos. Além disso,
pretendemos observar como se dá a interação do discurso verbal e não-verbal diante de
um conjunto de convenções fixadas nos quadrinhos.
115
A própria linguagem dos quadrinhos dispõe de uma organização que impõe
atividades dedutivas. Em muitas tiras, o implícito não se encontra no plano verbal, mas
na passagem de uma vinheta para outra, isto é, entre uma atividade exercida pelo
personagem e um novo acontecimento. Sendo assim, há um conjunto de ações omitidas
que são deduzidas em decorrência da própria linguagem dos quadrinhos que é dotada de
formulações implícitas responsáveis pela progressão da seqüência.
Ação omitida
HAGAR – Dik Browne
(BROWNE, 2002, p.21).
Podemos observar a omissão de fatos na passagem de uma vinheta para outra na
tira apresentada. Na mudança de vinheta ocorre a omissão do momento em que Helga
deixa de limpar o chão de sua casa para limpar o chão do barco de Hagar. É justamente
esta mudança abrupta e abreviada que nos permite compreender que a fala de Hagar foi
mais uma trapaça do que um gesto de preocupação com sua esposa.
Para Cagnin (1975), o modo de disposição dos quadrinhos determina uma sintaxe
que confere uma seqüência linear constitutiva de uma unidade de significação. “... ao se
juntarem duas ou mais imagens, se estabelece uma comparação entre as formas
percebidas (identificação, qualificação, função) na leitura de cada uma” (p.156). Neste
sentido, a sucessão de projeção de imagens é responsável por uma noção de causa e
efeito percebida pela variação entre uma imagem e outra. Tal mecanismo se comporta
116
como um sintagma, visto que qualquer inversão ou troca de posição das imagens
significa mudança de significação do enunciado como um todo.
[...] assim como o discurso verbal, as palavras em sintagmas por
regras sintáticas de coordenação e subordinação, produzindo
mensagens lingüísticas, também as imagens podem vir a
significar em força das relações hierárquicas que se estabelecem
entre elas (CAGNIN, 1975, p.163).
A linguagem dos quadrinhos é responsável pelo ritmo de expressão dos
enunciados e pela organização temporal e espacial em que se passam os eventos
discursivos. Toda seleção de imagens corresponde a um recorte em que o quadrinhista
direciona o olhar para determinados aspectos da cena. Neste contexto ocorre a passagem
de tempo e/ou de mudança de cenário que contribuem com a significação dos enunciados
inscritos nos balões. Cagnin descreve três modos de configurar as imagens que ajudam a
compreender o funcionamento da linguagem dos quadrinhos.
a) redução: consiste na apresentação de uma única imagem que sintetiza o enredo
da história. A passagem temporal é deduzida pela disposição dos elementos que
compõem a cena;
b) expansão: uma ação apresentada de forma detalhada como se estivesse em
câmera lenta. Pode ocorrer uma superposição de movimentos para demonstrar um
movimento, produzindo a sensação de lentidão ou tempo prolongado;
c) elipse: entre um quadrinho e outro há um fato subentendido que é preenchido
por inferências produzidas a partir do conhecimento de mundo. Um som pode substituir
a própria ação em um processo metonímico.
Processos enunciativos inscritos nas tiras em quadrinhos
Para pensar sobre os processos envolvidos na interação verbal, retomaremos
algumas reflexões apresentadas no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem escrito por
Bakhtin (1995). Esta obra investigou os fenômenos lingüísticos, levando em conta os
117
aspectos históricos e ideológicos no processo de sua constituição. Fazendo uma ampla
revisão dos estudos da linguagem organizados, sinaliza duas tendências que reduzem a
língua a uma substância de ordem subjetiva, orientada por um prisma individual
(subjetivismo idealista) e uma segunda vertente dominada pela descrição sistemática de
formas gramaticais (objetivismo abstrato).
Considerando que o signo se constitui no processo de comunicação verbal,
Bakhtin (1995) questionou a possibilidade de se estudar os mecanismos de significação
de forma neutra e descontextualizada do universo social. Ele propôs o método marxista,
como meio de chegar às questões problemáticas da linguagem e concluiu que todo signo
é ideológico e de natureza interindividual, portanto, nenhum enunciado pode ser
analisado como estrutura estática e abstrata.
Bakhtin observa que a substância da língua ultrapassa os limites de um sistema de
códigos; em sua visão os estudos lingüísticos devem incluir a fala e o contexto de
realização dos discursos. Sendo assim, procura desenvolver uma teoria da enunciação
atenta ao processo de significação das palavras, frases e enunciados no contexto de sua
projeção.
As propriedades da enunciação
Bakhtin (1995) toma a enunciação como uma atividade em que a língua atua de
forma dinâmica em uma extensão concreta de interação. De acordo com esta orientação,
a enunciação se constitui de elementos verbais e não verbais que interagem em um
processo catalisador de construção de sentido diante dos objetos simbólicos (palavras,
gestos, imagens) envolvidos em uma situação de comunicação. Segundo Bakhtin, é no
espaço da enunciação que a palavra ganha ancoragem para a produção de sentidos. Esta
posição fica mais clara, quando este autor faz a distinção de duas propriedades da
enunciação: tema e significação.
O tema é “uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo”, seu
sentido é sempre único, indissolúvel, completo, individual e não reiterável.
Apresentando-se em um contexto histórico concreto (sujeitos e circunstâncias
118
localizáveis) fornece uma orientação espaço-temporal aos enunciados. O tema configura
as condições que possibilitam o surgimento de enunciados em um dado momento,
orientando-se para uma dada interpretação. Sendo irredutível a análise, visto que sua
constituição não se cristaliza, o tema só pode ser tomado em sua totalidade no momento
da enunciação. Sua natureza se expressa na ordem do acontecimento, em que um
conjunto de fatores (psicológicos, históricos, lingüísticos, ideológicos, etc.) se articula
em função de uma formulação de sentido.
Isto pode ser exemplificado, se pensarmos na exclamação de um sujeito: “Como
está frio aqui!”. A repetição do mesmo enunciado dois minutos depois, no mesmo local,
com os mesmos sujeitos, poderá provocar um novo efeito e conseqüentemente um novo
tema se consagrará a partir da dinâmica instaurada. O tema seria o ponto de sustentação
contextual no processo do funcionamento lingüístico (discurso). Apesar disto, a
realização do tema só se torna possível no plano lingüístico diante dos mecanismos de
significação (frase).
A significação é o “aparato técnico” que fornece instruções lingüísticas,
permitindo a realização do tema. A esta propriedade da enunciação, Bakhtin chama de
significação. Seus elementos são reiteráveis, idênticos, cada vez que são repetidos. Em
termos estruturais, ocupam as mesmas funções em diferentes enunciados. Os
componentes constitutivos da significação se organizam a partir de convenções que
fixam sentidos ao signo verbal, podendo ser analisados através de um conjunto de
saberes lingüísticos constituídos de uma forma abstrata (domínios morfológicos,
sintáticos, fonéticos e lexicais). Neste sentido, a significação corresponde a um conjunto
de elementos arbitrários que possibilitam a produção dos enunciados. Para Bakhtin
“tema” e “significação” são propriedades interdependentes da enunciação. Não existe
tema sem significação, nem significação sem tema. Vejamos um exemplo de
manifestação do tema e da significação na tira produzida por Quino.
119
(QUINO, 2000: 295).
Observamos pela fala em coro, na segunda vinheta, dos três personagens –
“...Quando cheguei no cruzamento vi aparecer aquele animal correndo feito doido,
porque só mesmo louco para cruzar...” - que se trata de uma descrição de um acidente
narrado pelo pai de Mafalda em momento anterior. A história foi contada tantas vezes
que Mafalda e sua mãe já decoraram todo o enunciado e o repetem em coro. Apesar de
expor a mesma estrutura sintática e a escolha lexical ser idêntica, a retomada do
enunciado diante dos mesmos sujeitos produz um efeito diverso da primeira vez em que
ele ocorreu. Com isso, observamos que a mudança de tema e o recorte dos enunciados
não estão nos limites da oração, mas no processo de interação verbal.
Os dêiticos e a não-coincidência referencial no discurso
(QUINO, 2000, p. 278)
A noção de enunciação é enriquecida com os estudos de Benveniste (1989)
sobre a inscrição da subjetividade na própria língua. Este lingüista se opõe à noção de
natureza do signo lingüístico proposta por Saussure no texto Semiologia da linguagem.
Para Benveniste (1989) a relação do significante/significado não é arbitrária, ela é
120
necessária. Para explicar melhor seu postulado, Benveniste distingue dois níveis de
significância da língua, o semiótico e o semântico. No primeiro nível, ele descreve a
língua como sistema, tal como é apresentado por Saussure. Já no nível semântico, os
fatos lingüísticos resultam de relações referenciais organizadas pelo sujeito da
enunciação. Todo enunciado tem como centro de determinação do espaço e do tempo o
sujeito que enuncia para um tu inscrito na enunciação.
Em O aparelho formal da enunciação, Benveniste (1989) afirma que o ato de
colocar a linguagem em funcionamento implica um sujeito tomar a palavra em direção a
um Tu imediato (seja individual ou coletivo). O sujeito ao se apropriar da língua a atualiza
para efetuar uma atividade discursiva. Nesta instância, o sujeito da enunciação constrói um
conjunto de referências sustentadas lingüisticamente pelos dêiticos (indicadores de pessoa,
tempo e espaço). É a partir deste sistema de coordenadas que um sistema de referência se
constitui. Sendo assim, a enunciação seria o ato, o elo que promoveria a mediação entre a
língua e o discurso. O enunciador, diante de determinadas circunstâncias enunciativas,
produz um sistema de referências particular, marcando de uma maneira singular o uso da
língua, deixando, assim, marcas de subjetividade naquilo que enuncia.
Esta propriedade subjetiva da linguagem pode gerar uma série de ambivalência
sobre o enunciado, já que o sistema de referência de uma língua não é determinado
somente por uma instância exterior, mas depende, também, do sistema de referência
instituído por quem enuncia quando toma a palavra. Em diversas situações o uso de
dêiticos não coincide com o sistema de referência do destinatário, provocando assim uma
série de equívocos. O quadrinhista, aproveitando-se desta propriedade ambivalente da
linguagem, explora esse fato para provocar humor nas tiras em quadrinhos. Vejamos um
destes casos estabelecido na tira de Chris Browne.
Chris Browne
(O Globo, 12/07/06).
121
A exploração de equívocos decorrentes da ambivalência de dêiticos inscritos nos
enunciados é uma das formas de promover o efeito risível arquitetado pelo quadrinhista.
Na tira que acabamos de ler, a pergunta – ‘Será que ainda vou estar aqui em duas
semanas?’ – é constituída pelo dêitico ‘aqui’ se referindo a existência do próprio Hagar na
terra em um momento futuro. Contudo, a resposta de Eddie revela que interpretou o dêitico
‘aqui’ como o lugar em que estavam naquele momento: “Aqui fecha às onze da noite,
lembra?”. A incompreensão de Eddie sobre o sistema de referência proposto no enunciado
de Hagar acaba por gerar um equívoco que provoca um efeito risível. A mesma estrutura
é repetida de modo similar na tira a seguir.
TIRAS DO HAGAR
(BROWNE, 20/12/06).
A constatação e o ato de fala
A reflexão sobre os efeitos que um enunciado pode causar no âmbito discursivo
ganha uma nova dimensão nos estudos da linguagem com o surgimento da noção de
performativo. O inglês John Langshaw Austin (1911-1960), um dos principais
representantes da Pragmática2, explorou a interpretação do enunciado, trazendo a
exterioridade como elemento constitutivo da linguagem. Durante muitos séculos, o
estudo dos enunciados se fundamentou em princípios de descrição e constatação da
verdade encontrada nos proferimentos. Os enunciados eram lidos como uma declaração
que poderia ser identificada como falsa ou verdadeira. Em uma série de conferências
proferidas em 1955 e publicadas, depois de sua morte, no livro How to do things with
2 “... a Pragmática analisa, de um lado, o uso concreto da linguagem, com vistas em seus usuários e usuárias, na prática lingüística; e, de outro lado, estuda as condições que governam essa prática. Assim, em primeiro lugar, a Pragmática pode ser apontada como ciência do uso lingüístico. As pessoas que a estudam esperam explicar antes a linguagem do que a língua” (PINTO, 2001, p.48).
122
words (1962), Austin afirma que a palavra nem sempre está representando coisas no
mundo, mas promovendo ações. Ao dizer “eu te batizo” ou “eu aposto duzentos reais”,
o falante não está fazendo uma declaração sobre um estado de coisas existente, mas
executando uma ação. Neste caso, o que está em jogo não é o valor de verdade de uma
sentença, e sim o tipo de atividade exercida no ato de proferir um enunciado.
Austin, durante a exposição de sua teoria sobre os atos de fala, vai reformulando
seu posicionamento diante dos impasses que ele próprio apresenta. Inicialmente, tenta
contrapor os enunciados constatativos e perfomativos. Para ele, os enunciados
constatativos têm como princípio a condição de serem falsos ou verdadeiros. Já os
enunciados performativos estão sujeitos a critérios de felicidade ou infelicidade, isto é,
se o ato de fala for bem sucedido do ponto de vista da ação realizada pelo falante,
diremos que o ato de fala foi feliz.
Para identificar as condições de felicidade de um enunciado performativo,
Austin afirma que a noção de ato de fala está ancorada em duas premissas básicas: a
idéia de comunicação como ato social concreto, mediado por convenções produzidas
por uma comunidade discursiva, e a visão de linguagem como forma de ação capaz de
gerar efeitos de sentidos sobre o outro no ato de dizer. Com isso, ele desloca o estudo
dos enunciados centrados na frase para o estudo dos atos de fala. Para que um ato
performativo seja bem-sucedido, é preciso que um conjunto de condições atue,
concomitantemente, como argumenta Austin (1990 p.31):
(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito, que apresente um determinado efeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que (A.2) as pessoas e as circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento específico invocado. (B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos os participantes, de modo correto e (B.2) completo. (Γ.1) Nos casos em que, como ocorre com freqüência, o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta correspondente por parte de alguns dos participantes, então aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato
123
ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além disso, (Γ.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subseqüentemente.
A investigação dos enunciados performativos se fundamenta na noção de papéis
sociais determinados por convenções estabelecidas em um ritual de fala. Determinados
atos de fala só têm valor efetivo se forem proferidos por alguém autorizado em uma
comunidade discursiva. Só poderá dizer: “Eu os declaro marido e mulher”, um
representante da Igreja que assuma o papel de padre em uma cerimônia de casamento.
Se este mesmo proferimento for dito por um convidado, o casamento não se efetivará.
Se o noivo disser ‘sim’ e já for casado com outra mulher, tal ato não efetivará o
casamento. Ou seja, a performance pode ser nula, se o falante e os participantes não
estiverem investidos de condições para a realização de tal ato. Austin esclarece que o
fato de um ato ser nulo, não significa que ele deixou de ser realizado. Contudo, o ato
pode ser cometido de forma infeliz. Desta forma, Austin (1990, p.33) descreve seis
casos de infelicidade no esquema a seguir, por nós adaptado:
INFELICIDADES
AB Insucessos
Ato intencionado nulo
Γ Abusos
Atos vazios
A Apelos indevidos
Ato rejeitado
B Falhas na execução do ato (defeituoso o incompleto)
Γ1 Insinceridade (pensamentos, sentimentos e
intenções)
Γ2 ?
(A1) (A2) (B1) (B2) Procedimento
não-convencional não-atuação
Má formulação de acordo
com as circunstâncias Má-atuação
Desempenho inadequado
dos participantes
para execução do
ato. Má
execução.
Ação correspon-dente abortiva por parte do
ouvinte. Não execução.
Dissimulação
?
Exemplos de atos de fala infelizes em tiras, piadas e situações do cotidiano:
124
(A1) – Mafalda vai até o chaveiro e se expressa por meio de uma metáfora:
“Bom dia, moço, quero que faça a chave da felicidade”. O homem responde: “Com
muito prazer, trouxe o modelo?”. No lugar do pedido de uma chave comum, Mafalda
solicita a chave da felicidade. O ato lingüístico de Mafalda produz uma fórmula
lingüística não-convencional e a não-execução de seu pedido.
(A2) – Felipe, ao lado de Mafalda, lê um cartaz em que está escrito: “Não deixes
para amanhã o que podes fazer hoje”. Felipe diz: “Amanhã mesmo começo”. Felipe
não assume as palavras inscritas no cartaz, dizendo o contrário do que está sendo
preconizado.
(B1) – Neste caso, tanto as pessoas quanto as circunstâncias são adequadas, mas
é executado de forma incorreta. Um falante diz: “Aposto que a corrida não se realizará
hoje”, quando mais de uma corrida está marcada naquela localidade. O falante não
explicita que corrida não acontecerá.
(B2) – A tentativa de uma cantada, como Hagar tenta realizar, dirigindo-se a
uma moça em um bar: “Às vezes canso de minha mulher!”. A moça aborta a cantada
como a seguinte resposta: “Sorte dela se você de vez e sumir!”.
(Γ1) – O homem diz para a esposa “prometo voltar à noite”, sabendo que tem
um encontro com a amante, sem retorno. O ato da promessa é realizado, mas é vazio de
intenção.
(Γ2) – O juiz estabelece a sentença: “Eu julgo o réu inocente das acusações de
corrupção”. O réu de fato é uma pessoa corrupta, mas o juiz não tem consciência de tal
fato (ou não deseja demonstrar). Neste caso, o ato de fala não é nulo, mas é infeliz, visto
que o falante executa o ato pretendido, mas os interlocutores identificam argumentos
insatisfatórios. Apesar de os interlocutores não terem condições de invalidar o ato do
julgamento, sua performance pode ser considerada abusiva.
A infelicidade de um ato de fala decorre da violação das condições que
possibilitam a sua efetivação de maneira satisfatória. Nos casos (A) e (B) os atos são
considerados nulos, enquanto que nos casos (Γ1) e (Γ2) são tidos, apenas, como infelizes,
125
visto a ação ser executada de forma abusiva ou vazia de intenção. Apesar de o estudo
sobre os enunciados performativos de Austin não levar em consideração atos de fala de
entidades ficcionais, podemos reconhecer no desempenho dos personagens das tiras de
humor a execução de atos de fala infelizes como fator de produção do efeito cômico. Da
mesma forma que o tropeço do palhaço nos leva a rir, o trabalho de linguagem em
muitos chistes consiste na realização de um ato de fala por um personagem de maneira
inadequada à situação enunciativa.
(Folha de São Paulo, 08/1/03).
Apesar de Eddie Sortudo utilizar a fórmula lingüística correta para fazer um
pedido de uma bebida refinada, o contexto no qual é realizado o proferimento não
permite o sucesso de seu ato de fala. Eddie se encontra em um bar de terceira categoria
e não em um restaurante fino. Neste local, não há muita escolha de bebida, portanto seu
esforço para pedir um vinho importado, bem envelhecido, delicado ao paladar foi em
vão. Podemos dizer que o humor deste tipo de tira consiste em atos de fala que
exprimem inadequação e conseqüentemente a não-concretização de um propósito. Para
tanto, os personagens executam atos que são mal-sucedidos ou anulados. Nesse sentido,
para interpretar um ato de fala é preciso estar atento aos papéis sociais desempenhados
pelos locutores, às escolhas lingüísticas, às condições de produção dos enunciados.
126
O verbo performativo e a força ilocucional CLUBE DA MAFALDA
(QUINO, 20/12/06).
Austin, no decorrer de suas conferências, desenvolve critérios gramaticais para
explicitar a ordem dos performativos. Em um primeiro momento, ele assume que a
realização do performativo é gerada por meio de enunciados inscritos na primeira
pessoa do singular do presente do indicativo. A produção do enunciado de Mafalda -
“Quero te avisar que o Manolito está aprendendo a jogar bilboquê, e é um desastre!” -
foi proferido em primeira pessoa, explicitando o desejo de avisar sua amiga do perigo
que corria com o bilboquê de Manolito, produzindo assim uma ação com
conseqüências. Neste caso, o verbo performativo aparece de maneira explícita, cabendo
ao destinatário, diante da força ilocucional, reconhecer a ação inscrita no enunciado.
Contudo, o ato de avisar, realizado por Mafalda, não se caracterizou como uma
antecipação de um perigo eminente, visto que Susanita já havia sido atingida pelo
bilboquê. Sob essa perspectiva, o ato de fala de Mafalda foi insatisfatório devido ao
conjunto de acontecimentos que antecederam situação discursiva.
A felicidade de um ato de fala um enunciado depende da situação de interação
entre os interlocutores. Vejamos como o enunciado de Eddie foi organizado pelo
quadrinhista para provocar humor sob a perspectiva aqui abordada.
127
(Folha de São Paulo, 08/1/03).
119
A força de um ato de fala é determinada pelo contexto em que um enunciado é
projetado. Hagar, ao ver Eddie correndo e gritando: “Corra!”, imediatamente obedeceu
a voz do amigo. A força do enunciado proferido por Eddie promove uma ordem de
fuga, devido a um suposto perigo iminente. Este ato de fala, no primeiro momento,
manifesta-se como uma forma bem-sucedida, visto que a ordem de Eddie foi levada em
consideração por Hagar. É somente nas duas últimas vinhetas que Hagar descobre que a
razão da ordem não se trata de um aviso de perigo, mas de recomendações médicas que
afirmam que correr faz bem à saúde. Tal constatação faz com que a força do enunciado
de Eddie se esvazie e a ação deixe de ser executada.
Com este exemplo, percebemos que a força ilocucional não está ligada, somente,
à intenção do falante, mas às condições favoráveis para a realização de um ato.
Cavalcanti (1989, p.64) retoma os estudos de Van Dijk (1980), para apresentar
condições mínimas para atribuir força ilocucionária a um ato de fala. O ouvinte, ou o
leitor, em uma situação de interação, deverá levar em conta os seguintes tópicos:
A. Propriedades da estrutura do enunciado (atribuídas com base nas regras
gramaticais); B. Propriedades paralingüísticas, tais como acento, entoação, etc., de um lado,
gestos, expressão facial, movimentos corporais, etc., de outro; C. Observação/percepção do contexto comunicativo (presença e propriedade
de objetos, freqüentemente pessoas, etc.); D. Conhecimento/crenças na memória sobre o falante e suas propriedades, ou
sobre as propriedades da situação em questão; E. Mais em particular: conhecimento/crenças com respeito ao tipo de interação
em progresso, e às estruturas dos contextos anteriores à interação; F. Conhecimento/crenças derivadas de atos de fala anteriores referentes a
partes anteriores do discurso, ambos no nível micro (ou local) e no nível macro (ou global);
G. Semântica geral, em particular o conhecimento convencional sobre (inter-) ação, regras, etc., especialmente aquelas da pragmática;
H. Outras espécies de conhecimento geral de mundo.
É possível perceber, nas tiras em quadrinhos, mal-entendidos decorrentes da
discrepância entre valores ilocucionais, atribuídos pelos personagens a um determinado
enunciado. Um ato infeliz decorre, assim, de equívocos e atitudes de resistência a um
determinado posicionamento em uma interação verbal. Sendo assim, os atos de fala não
devem ser analisados isoladamente, visto que o sentido se constitui em uma cadeia de
sentidos entre os participantes em um processo de negociação. Quando um falante
profere um enunciado, seu dizer é confrontado com um estado de coisas existente e com
120
um conjunto de crenças e expectativas. Desta maneira, um ato de fala pode inspirar um
efeito contrário ao intencionado pelo locutor.1 Em muitos episódios retratados nas tiras
em quadrinhos, observamos que as falas atribuídas aos personagens têm um intuito de
projetar um determinado efeito sobre seu destinatário, no entanto seus resultados
divergem do que foi inicialmente calculado pelo sujeito responsável pelo ato de fala.
Tal procedimento é um dos recursos explorados para a produção do discurso do humor,
como no exemplo a seguir:
(Jornal O Globo, 07/8/06).
Vemos na tira organizada por Browne uma encenação cômico-humorística por
meio de um tropeço lingüístico cometido por Eddie. O ato de fala de Eddie - “Você
percebeu que este é Hagar, o horrível?” - imprime uma força ilocucional de intimidar o
garçom a oferecer uma mesa, imediatamente, devido à fama de mal que seu amigo
Hagar possui. Todavia o efeito do enunciado gera conseqüências contrárias àquelas
esperadas por Eddie, visto que o garçom não se deixa intimidar. Consolida-se assim,
mais um ato infeliz que não realiza um intento diante das divergências de um outro
participante.
Prosseguindo com suas indagações teóricas, Austin constata que não há um
critério absoluto, gramatical ou lexical, para se chegar ao performativo, cabendo
investigar mais a fundo as fórmulas verbais que geram um ato de fala. Ele conclui que
na produção de muitos enunciados não há um verbo na primeira pessoa do presente do
indicativo que explicite a ação que está sendo realizada. Por isso, Austin chama atenção
1 “Devemos considerar de modo global a situação que fez o proferimento – isto é, o ato de fala em sua totalidade – para que se possa perceber o paralelismo que há entre a declaração e o proferimento performativo, e como um e outro podem dar errado. Em casos especiais, a importância do ato de fala total, na totalidade da situação de fala emerge progressivamente da lógica; e assim podemos ir assimilando o proferimento supostamente constatativo ao performativo”. (AUSTIN, 1990, p.56).
121
para dois tipos de performativos: a) performativo explícito: ‘Prometo que estarei lá’. ; b)
performativo primário 2: ‘eu estarei lá’. No primeiro tipo de performativo o ouvinte
poderá identificar que o ato de fala corresponde a uma promessa, evidentemente,
inscrita no enunciado. O mesmo não acontecerá com o performativo primário, visto que
não há nenhuma indicação verbal que anuncie a intenção do locutor. A força ilocucional
do enunciado ‘eu estarei lá’ pode corresponder uma ameaça, uma promessa ou a
confirmação da presença em um dado lugar. Nesse sentido, todo enunciado em que há
um performativo primário pode haver mal-entendidos ou brechas que intervenha sobre o
seu valor ilocucional, de maneira espirituosa, como vemos a seguir.
HAGAR – Dik Browne
(BROWNE, 23/07/02)
Na tira que acabamos de ler, o perfomativo primário “Café?”, produzido por
Helga, configura o ato de oferecer sem a explicitação do verbo no enunciado. Isto
possibilita que o quadrinhista Browne possa atribuir ao personagem Hagar um
contraponto sobre o valor ilocucional do enunciado “Café?”, diferente daquele que foi
colocado como propósito de Helga. Observa-se que é justamente a propriedade
ambivalente dos performativos primários um dos principais recursos para promover o
efeito risível. Por meio deste procedimento, o quadrinhista pode colocar em confronto
dois valores ilocutórios que assumem perspectivas diferentes. Desta forma, o
oferecimento do café, feito por Helga, é tomado por Hagar como uma pergunta que visa
à constatação de que aquilo que ela tem na mão é de fato café. Acompanhando esse
trajeto, a resposta de Hagar - “Sim... acho que é!” - leva a concluir que a própria
2 Do ponto de vista da origem dos tipos de proferimentos, Austin afirma que os performativos explícitos são posteriores aos performativos primários. Ele justifica este postulado pelo fato de o homem, nos primórdios, ainda não ter clareza para distinguir os diversos tipos de atos exercidos em uma interação verbal. Sob esta perspectiva, as formas primitivas dotam os enunciados de maior ambigüidade e vagueza. O proferimento “touro”, nos primórdios, por exemplo, poderia ser uma advertência, uma informação ou uma predicação.
122
aparência do que há no bule inspira dúvida. Tal postura leva a crer que o café de Helga
é muito ruim.
A expressão dos atos de fala
Austin, depois de estabelecer uma lista de verbos performativos e descrever
critérios gramaticais de seu uso, observou que a oposição entre enunciados
performativos e enunciados constatativos demonstrava impasses epistemológicos. Ele
conclui que, de alguma forma, todo enunciado constatativo compreende um valor
ilocutório. Sendo assim, começa a se indagar em que medida o ato de dizer, de fato,
corresponde a fazer algo.
Austin reformula sua teoria e afirma que o simples fato de abrir a boca e emitir
um enunciado corresponde a uma ação que mobiliza um estado de coisas. Em sua nova
investida, ele assume que o enunciado comporta três atos simultâneos: ato locucional,
ato ilocucional e ato perlocucional. O ato locucional resulta da produção de sons de uma
dada língua com um sentido e uma referência. Podemos dizer que a própria formulação
lingüística terá diversos valores, dependendo da circunstância de sua enunciação. O ato
ilocucional é o ato de proferir um enunciado atribuindo- lhe um dado valor e
restringindo o seu campo semântico de significação. Tal ato aponta para um conjunto de
expectativas vinculadas ao locutor no ato de realização de seu proferimento. O ato
perlocucional é o efeito que o proferimento gera no momento de sua enunciação aos
interlocutores. Vejamos como o humor é explorado quando se trabalha com essas três
instâncias do ato de fala.
(QUINO, 2000, p.162).
123
O enunciado “Você vai ver” se repete nas cinco vinhetas. Nas quatro primeiras
vinhetas, Susanita antecipa uma parte do filme para Mafalda, utilizando o enunciado
‘Você vai ver’ como recurso para chamar a atenção dos momentos mais emocionantes
do filme. O ato ilocucional equivale a uma ordem (Eu ordeno que você veja agora).
Contudo, o sentido e o efeito da expressão, retomada em cada quadro, apresentam
gradações. A cada ato de fala de Susanita, a expressão facial de Mafalda demonstra
mais irritabilidade. Ao final, a menina tagarela é colocada para fora da sala e ameaça
Mafalda: “Você vai ver”. A força de seu ato é um juramento de vingança: “Eu juro que
você vai ver”.
Percebemos que muitas expressões produzem efeitos distintos, dependendo da
situação de comunicação. No processo enunciativo de Susanita, o ato perlocucional
expressa a rejeição de Mafalda aos comentários da locutora. O cômico deste quadrinho
é, justamente, o uso do mesmo material lingüístico “Você vai ver” com uma força
ilocucional divergente das investidas anteriores, produzidas por Susanita. Se nas quatro
primeiras vinhetas Susanita encontra prazer em contar a história para sua amiga, no
último quadrinho há um juramento de vingança com a mesma formulação verbal -
“Você vai ver!!” - dito com raiva.
O trabalho de Austin é uma excelente ferramenta teórica para explicar o
funcionamento discursivo humorístico de atos de fala mal sucedidos ou anulados, em
decorrência de convenções transgredidas ou formulações interpretativas equivocadas.
Da mesma forma que o cômico explora tropeços para provocar o riso, pode-se
evidenciar atos de fala infelizes que assumem um papel importante nas análises do
ponto de vista discursivo. Além de regras sociais envolvidas no ato lingüístico, a
própria conversa é determinada por um conjunto de regras.
124
A infração de uma lei conversacional e a produção de implicaturas
Durante muitos séculos, a lógica formal, através de sua concepção de linguagem,
impôs um dispositivo de interpretação fundamentado no uso de uma língua ideal. O
objetivo era controlar o domínio de informações contidas em uma sentença por meio de
categorias generalizantes. Desta forma, as sentenças eram reduzidas a um conjunto de
fórmulas com a finalidade de estabelecer paráfrases dedutivas do conteúdo inscrito em
seu interior.
Grice (1992), em seu artigo “Lógica e Conversação”, inspirado em análises
opostas ao formalismo sentencial, busca o desenvolvimento de uma teoria que explique
a lógica do intercâmbio verbal, investigando as leis que governam a comunicação das
conversas. Ele revê a noção de implicação, pressuposto e acarretamento diante da
incorporação do contexto situacional. Com isso, ele investiga as condições de realização
das deduções sobre os enunciados em uma atividade comunicativa. Grice constata a
ocorrência de princípios que coordenam a negociação de sentido entre interlocutores no
uso da linguagem natural. Tais princípios permitiram a explicação de fenômenos
implícitos atuantes no processo de significação na interação verbal.
De acordo com Grice (1992), o ato comunicativo não se restringe somente ao
que é dito pelo enunciador, mas inclui o conjunto de deduções que o receptor estabelece
para interpretar os enunciados de forma cooperativa. Tal constatação leva o autor a
investigar princípios cooperativos que regem a significação de um proferimento. De
acordo com a sua visão, existem certas regras utilizadas pelos falantes para estabelecer
trocas cognitivas e intencionais. Para ele, toda conversação depende de um esforço
cooperativo entre os participantes que tornam os enunciados expressivos em uma
situação comunicativa. Observamos que uma das estratégias do quadrinhista para
produzir humor é a organização de situações em que um dos personagens não age de
forma cooperativa para a progressão da conversa.
125
(QUINO, 2000, p.74) Podemos dizer que uma conversação é uma sucessão de turnos de fala,
realizadas por falantes que obedecem a regras de ordem semântica, sintática e
pragmática. A menina, ao lado de Mafalda, se recusa à manutenção da conversa,
utilizando a fórmula lingüística “não” para impedir a comunicação. Contudo,
observamos uma discrepância entre o ato de dizer “não” e o gesto de apanhar a bolacha
diante da oferta de Mafalda. O contexto da enunciação foi determinante para que se
depreendesse o conjunto de implicações responsáveis pelo sentido do enunciado. O
verbal por si só não esclarece a cena. No entanto, o contexto enunciativo evidencia as
condições de realização do enunciado. Constatamos que apesar de não atuar de forma
cooperativa na conversa, a menina aceitou a oferta de Mafalda. Com isso, o
quadrinhista Quino problematiza o próprio ato de comunicar no dia-a-dia.
Para refletir sobre as leis que regulam uma conversa, Grice estabelece máximas
conversacionais que os falantes devem seguir para tornar a interação verbal cooperativa.
a) Máxima da quantidade: os participantes de uma conversa devem fornecer
somente as informações requisitadas e necessárias na interação verbal. b) Máxima da qualidade: os participantes devem dizer somente o que acreditam ser
verdadeiro e que tenha elementos de comprovação. c) Máxima da pertinência (relação): os falantes devem emitir considerações
relevantes sobre o assunto tratado. d) Máxima de modo: os falantes devem produzir enunciados claros, ordenados,
evitando ambigüidades.
Quando um falante não obedece às máximas conversacionais, ele pode estar
querendo dizer algo de forma implícita, ou então, evitar a entrada em um assunto não
desejado. Neste caso, ele estará dizendo algo a mais por meio de implícitos. Vejamos a
quebra de uma máxima da pertinência encontrada na piada a seguir:
126
O mordomo fala para seu patrão - Perdão patrão, o meu salário está baixo.
- Pois não, está desculpado.
Neste diálogo observamos o rompimento do princípio cooperativo com a quebra
da máxima da pertinência. Por uma questão de conveniência, o patrão descarta a
informação relevante transmitida pelo mordomo: a existência de seu salário baixo. O
patrão se detém na primeira parte do enunciado do mordomo “perdão, senhor...”. Com
isso, o patrão se desobriga de comentar sobre o salário do mordomo, deixando implícito
que não dará aumento a seu empregado. Esta formulação implícita, deduzida pela
quebra de uma das máximas dos princípios cooperativos, em um contexto enunciativo,
Grice denomina de implicatura.
Quando uma máxima é violada pelo falante, o interlocutor busca compreender
os motivos que o levaram a infringir uma das regras. O falante transgride uma máxima
para significar algo que não é dito de forma explícita no enunciado, mas demonstra uma
intenção comunicativa. Tal procedimento acaba por produzir uma implicatura, ou seja,
uma informação que deve ser presumida pelo ouvinte. Nos textos de humor é bastante
recorrente o uso de implicaturas que exigem o estabelecimento de inferências a partir de
dados contextuais para compreensão dos enunciados. Vejamos a ocorrência de uma
implicatura na tira a seguir:
HAGAR – Dik Browne
(Jornal O Globo, 09/2/02).
127
Hagar quebra a máxima de modo, pois não fornece informações
solicitadas na pergunta de Helga de forma direta e clara. Sua resposta elogia a
preocupação de Helga e cogita uma mudança repentina da casa onde moram. Tal
raciocínio leva a crer que Hagar perdeu no jogo de pôquer e deve pagar a dívida com a
venda do imóvel. O quadrinhista encena a quebra da máxima de modo realizada pelo
personagem para produzir uma implicatura, ou seja, a perda da casa.
Como vimos, as implicaturas são inferências pragmáticas não
correspondentes aos rigores da lógica standard. Elas se realizam dentro de um
intercâmbio conversacional, considerando o conhecimento compartilhado nas trocas
realizadas pelos sujeitos em uma atitude comunicativa. O termo implicatura, proposto
por Grice, busca uma abrangência maior sobre os processos inferenciais, diante das
circunstâncias de comunicação. Tal implicatura pode ocorrer de três formas: (a)
nenhuma máxima é violada explicitamente; (b) uma máxima é violada para que outra
não seja violada; (c) uma máxima é abandonada para produzir uma implicatura
conversacional.
A implicatura é um recurso de que o comunicante dispõe sobre o uso da
linguagem para dizer “p” e implicar “q”. Diferente do pressuposto que explora o
implícito em uma relação lógica no nível da frase, independente dos elementos extra-
verbais, a implicatura apóia-se no contexto enunciativo para tornar mais significativa a
manifestação verbal.
Para deduzir que uma implicatura conversacional determinada se faz presente, o ouvinte operará com os seguintes dados: (1) o significado convencional das palavras usadas, juntamente com a identidade de quaisquer referentes pertinentes; (2) o princípio da cooperação e suas máximas; (3) o contexto, lingüístico ou extralingüístico, da enunciação; (4) outros itens de seu conhecimento anterior; e (5) o fato (ou fato suposto) de que todos os itens relevantes cobertos por (1) – (4) são acessíveis a ambos os participantes e ambos sabem ou supõem que isto ocorra (GRICE, 1992, p. 93).
A produção de uma implicatura é gerada por dados extraídos do co-texto, isto é,
dos elementos que se encontram no interior do enunciado ou do contexto efetivo de uma
realização enunciativa. As implicaturas instituídas por inferências derivadas dos
128
elementos lingüísticos são chamadas de implicaturas convencionais, isto é, por meio de
operadores lógicos encontrados no enunciado, o interlocutor identifica o propósito
comunicativo. De outro lado, os enunciados vinculados a um conjunto de
conhecimentos prévios, acionados pelo ouvinte, são chamados implicaturas
conversacionais. Elas podem ser de dois tipos: generalizadas ou particulares. As
implicaturas generalizadas são produzidas por implícitos relacionados ao conjunto de
conhecimentos compartilhados entre os interlocutores. Para inferir informações deste
tipo de implicatura o interlocutor não precisa se apoiar em elementos extralingüísticos
que constituem a troca verbal.
TIRAS DO HAGAR
(BROWNE, 20 /12/2006).
No caso do “diálogo” de Helga e Hagar temos como implicatura conversacional
generalizada a evidência de que o casal realmente não dialoga. A conclusão deste fato
se deve à própria demonstração de não entrosamento em um ato comunicativo. Já as
implicaturas particularizadas estão apoiadas nos elementos concretos de realização da
enunciação. As inferências estão submetidas às circunstâncias em que um determinado
enunciado foi efetivamente proferido. Para refletirmos sobre as implicaturas
particularizadas, tentaremos ler o enunciado no quadro a seguir, sem o apoio do
contexto em que se realiza a conversa.
129
Helga- Eu não acredito nisso!
Hagar- Slurp! Slurp! Slurp!
Hagar- É claro que não… Eu não falei nada
ainda!
Hagar- Slurp! Slurp! Slurp!
A dificuldade de compreensão do enunciado – “Eu não acredito nisso!” – deve-
se ao apagamento do contexto particular em que a fala foi realizada. Observa-se que só
se pode deduzir o que Helga não acredita, por meio do contexto em que a sua fala foi
dita. Por isso o estabelecimento desse tipo de implicatura ocorre em um universo
particularizado, apoiado em dados expressivos no contexto constitutivo do dizer. Como
pode ser notado na tira a ser demonstrada.
TIRAS DO HAGAR
(BROWNE, 20/12/2006).
130
As implicaturas conversacionais canceláveis
Segundo Grice (1992), as implicaturas conversacionais compartilham de alguns
procedimentos: elas são dedutíveis, podem ser canceláveis, apresentam um grau de
indeterminação, e a atribuição de sentido de um enunciado pode depender de fatores
externos ao lingüístico. Apesar de as implicaturas conversacionais apresentarem um
grau de dedução, elas são perfeitamente canceláveis. As implicaturas deste tipo podem
ser anuladas, se houver o acréscimo de uma nova informação que desfaça o conjunto de
suposições estabelecidas no primeiro momento da conversa. É possível identificar, em
uma série de tiras em quadrinhos, o cancelamento de implicaturas para provocar o efeito
humorístico.
(Jornal O Globo, 01/05/03). O enunciado da primeira vinheta leva a supor que o funcionário real não aceita
suborno. Somente na segunda vinheta há indicações sobre os motivos de contestação do
funcionário real. O enunciado - “Não acredito que você esteja tentando subornar um
membro do conselho real com algumas moedas de ouro!” - acompanhado do segmento
– “vai precisar de muito mais” - cancela a leitura de indignação diante da tentativa de
suborno, visto que a insatisfação do funcionário real se refere à quantia irrisória para se
deixar subornar e não ao próprio ato Hagar tentar suborná- lo.
Observamos que a significação dos enunciados decorre da relação em seu
conjunto, e não, dos enunciados isolados. As suposições são reconfiguradas em
decorrência de um novo dizer. Neste sentido, as implicaturas são canceláveis. Outra
131
manifestação de cancelamento da implicatura encontra-se no enunciado de Hagar, a
seguir.
HAGAR – Dik Browne
(Folha de São Paulo, 6/7/03).
A declaração “Não quero que você pense que o dinheiro é tudo”, realizada por
Hagar, leva a deduzir que seu argumento se direciona para a necessidade de se
considerar outras coisas importantes na vida, além da riqueza material. Contudo, o
segmento conclusivo, exposto na segunda vinheta, fortalece ainda mais a idéia de que a
riqueza é o mais importante, e por isso Hagar descreve outra forma para se ganhar
dinheiro: “Ações da bolsa também são importantes!”. O cancelamento de implicaturas
nas tiras em quadrinhos é uma das formas preferenciais de produzir o efeito risível,
visto que quebra um conjunto de expectativas do leitor. A teoria proposta por Grice
(1992) apresenta-se como um excelente instrumento para dar visibilidade aos
mecanismos discursivos que promovem um desvio argumentativo. O cancelamento de
implicatura demonstra como um conjunto de regras é burlado, ou supostamente burlado,
para provocar um efeito inesperado. Tomando como referência o trabalho de linguagem
aí realizado, podemos nos aproximar mais um pouco das regras de funcionamento
lingüístico no discurso do humor. Para estreitarmos este estudo, refletiremos sobre o
fenômeno da quebra de expectativa por um outro viés; pelo enfoque argumentativo
proposto por Ducrot (1977).
132
Posto, pressupostos e subentendidos na produção do humor
Observamos no trabalho dos quadrinhistas um jogo com os pressupostos
inscritos nos enunciados dos personagens ou no conhecimento de mundo do leitor.
Muitas situações provocadoras de risos, nas tiras em quadrinhos, decorrem de um
embate velado entre os pressupostos que cada personagem defende em seu enunciado.
As relações de discordância entre os personagens, ou de um conjunto de crenças que
não coincidem com as do leitor, são determinadas pelo modo como os argumentos são
apresentados em cena. Para refletirmos um pouco mais sobre o assunto, revemos como
a noção de pressuposto, posto e subentendido pode ganhar um enfoque enunciativo,
ajudando na análise do efeito humorístico produzido nas tiras.
De acordo com Koch (1996), os estudos de posto e pressuposto ganharam
destaque quando Frege (1982) examinou a referência das proposições de frases como:
Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu na miséria3. Nesta
frase, haveria um conteúdo pressuposto, de que alguém descobriu a órbita dos planetas,
em substituição a Kepler, e um conteúdo posto que afirma a morte deste alguém na
miséria. Tal enunciado poderia ser considerado falso, se a descoberta da órbita dos
planetas não tivesse ocorrido, invalidando, assim, o conteúdo posto. Frege, então,
desenvolveu procedimentos, do ponto de vista técnico, para comprovar a presença de
pressuposições, observando a permanência de um conteúdo informativo, a partir da
transformação de uma frase assertiva em uma frase interrogativa e uma frase negativa,
como se apresenta em:
a) Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica não morreu na
miséria. b) Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu na miséria?
De acordo com Koch (1996), a existência da descoberta da órbita dos planetas
permanece irrefutável, diante das duas frases, levando Frege a concluir que a
pressuposição pode ser comprovada por meio da operação demonstrada. Ducrot (1977)
se opõe aos critérios clássicos para se chegar ao conteúdo pressuposicional, visto que
3 Apesar da sentença não ter referência, ela apresenta um sentido. Dessa forma, para os lógicos, a sentença não é nem falsa e nem verdadeira em termos de proposição.
133
são tratados de forma atemporal, sem considerar a situação particular em que os
enunciados são proferidos. Desta forma, os encaminhamentos propostos pela lógica são
insuficientes para explicar o funcionamento dos pressupostos em uma situação de
interação verbal. Sob a perspectiva enunciativa, a proposta de Frege (1982) deixou de
lado questões semântico-pragmáticas que, ao ver de Ducrot, são essenciais para se
desenvolver a noção de pressuposição.
Para dar início ao seu projeto, Ducrot (1977) critica a noção de língua como
código, instrumento de comunicação, defendida por Saussure (1974). Para ele as línguas
não são meros códigos, visto que os conteúdos expressos pela língua não são explícitos.
Não há uma relação biunívoca de um dizer com um estado de coisas ou um pensamento
em uma atividade comunicativa. Toda frase está relacionada com um locutor que a
pronuncia em determinadas circunstâncias. Nessa perspectiva, Ducrot propõe que se
inclua nos estudos da língua a fala, observando, assim, como se organizam os
enunciados em um discurso.
Ducrot (1977) defende que língua é essencialmente argumentativa, visto que as
palavras e as estruturas frasais determinam os encadeamentos argumentativos,
delimitando as possibilidades de sentidos dos enunciados, manifestados implicitamente.
Podemos observar incompatibilidades de dizeres do ponto de vista argumentativo, pela
própria escolha das palavras colocadas pelo locutor para defender determinada idéia.
Quando um locutor uma seqüência de enunciados com orientação argumentativa oposta,
imediatamente sua fala é refutada ou se torna objeto de riso. Tal falha é bastante
explorada pelos quadrinhistas ao expor um personagem defendendo uma idéia
acompanhada de asserções incompatíveis.
(QUINO, 2000, p.312).
134
Susanita, jamais, poderia escolher as palavras “negros sujos” para negar a
afirmação de que era preconceituosa. Dessa maneira, a própria forma de nomear
pressupõe uma visão que direciona sua argumentação para um lado contrário ao que
deseja afirmar. Tal dimensão da linguagem é mais percebida se a análise não recai
somente sobre as frases do ponto de vista formal, mas das circunstâncias em que estes
enunciados são pronunciados. A partir, daí não se trata apenas da significação das
frases, mas dos encadeamentos entre os enunciados e seus possíveis efeitos em uma
situação discursiva. Por conta disto, Ducrot (1987) desenvolve, inicialmente, um projeto
de estudo de descrição semântica das línguas naturais com base na descrição dos
componentes semânticos observados na frase (significação) e dos componentes
retóricos relacionados à enunciação (sentido4, decorrente da produção de um enunciado
produzido por um locutor). Ducrot propõe a integração da semântica à pragmática na
análise dos enunciados.
É a partir das palavras que a enunciação e seu contexto devem ser caracterizados, porque a escolha das palavras cria uma imagem da fala e essa imagem é pertinente para a compreensão do discurso. Semântica e pragmática não se separam, já que o estudo do contexto e da representação da enunciação são integrados ao sentido do enunciado. A articulação semântica/pragmática tem sua origem na relação língua/fala (BARBISAN, 2006, p.4).
O processo argumentativo nas tiras de humor
No interior do enfoque semântico-argumentativo, Ducrot (1987) distancia-se da
noção de pressuposição desenvolvida por Frege, apoiada sobre a questão da verdade e
da falsidade das proposições, diante dos conteúdos informativos embutidos em uma
sentença. Ducrot constata que a questão essencial para refletir sobre a linguagem é a
distinção entre aquilo que é pressuposto e posto em um enunciado, para assim
compreender os processos argumentativos. No exemplo “Pedro parou de fumar”, temos
dois conteúdos informativos: a) Pedro fumava (pressuposto) e b) Pedro não fuma
atualmente (posto). De acordo com a sua perspectiva, essas duas conclusões não devem
ser colocadas no mesmo plano do discurso. Para dar continuidade ao enunciado, o
4 “... o sentido do enunciado constitui assim uma representação parcial da enunciação pelo enunciador. O sentido de um enunciado é o que o enunciador afirma X, ordena Y, pressupõe Z, etc. Esta concepção não exige que o enunciado tenha um único sentido”.(DUCROT, 1987, p.90).
135
locutor se apóia no pressuposto que se mantém irrefutável, permitindo concluir que
“por isso está mais atento à sua saúde”. O pressuposto, e não o posto, é responsável pelo
quadro geral da enunciação, enquanto o posto corresponde às novas informações
acrescidas. Toda fala é desencadeada a partir de determinados pressupostos que
direcionam a argumentação para determinadas conclusões. A não aceitação do
pressuposto em uma conversa, por exemplo, implica discordar do que havia sido dito
antes, criando uma indisponibilidade com as premissas do locutor. Dessa forma, o ato
de pressupor corresponde a um ato ilocucional que fornece limites de sentidos sobre os
enunciados, criando obrigações e atribuições de papéis em defesa de um argumento.
(QUINO, 2000, p.156). O recurso humorístico reside justamente na pressuposição pouco polida de
Mafalda, ao negar que a mãe viva por meio do pressuposto inscrito na frase “Mamãe o
que você gostaria de ser se você vivesse?”. Em sua pergunta está embutida a afirmativa
de que a mãe só poderia ser alguma coisa se vivesse. Nesse sentido, a pressuposição
corresponde a um tipo de enunciado implícito em que o locutor não tem como negar o
que disse, posto que seu conteúdo informativo está marcado na frase. Podemos dizer
que a pressuposição promove, ao mesmo tempo, um ato ilocucional que transforma a
relação entre falantes-personagens. Com este procedimento, inscrito no enunciado de
Mafalda, foi colocado em jogo um conjunto de crenças e verdades que direcionam a
argumentação para uma dada conclusão.
No caso do quadrinho apresentado, o destinatário, a mãe de Mafalda, pode
aceitar o pressuposto, dando continuidade ao tema da conversa e assumindo o
encadeamento argumentativo com o gesto de lamentação sobre a vida vazia que tem, ou
agir contrariamente ao pressuposto, comprovando que de fato vive, rompendo, desta
136
maneira, com a cadeia argumentativa proposta por sua filha. Observa-se, entretanto, que
o autor da tira em quadrinhos prefere deixar em suspenso a reação da mãe, expondo
somente a afirmação da filha, em forma de pressuposto, com a exposição dos serviços
domésticos que a impedem de aproveitar a vida. Desta maneira, a fala de Mafalda,
organizada pelo quadrinhista, realiza-se como um chiste em que delega o riso a um
terceiro que observa o encaminhamento do dito de forma implícita, deixando em
silêncio a voz da mãe de Mafalda. Contudo, existem outras estratégias discursivas que
rompem com o jogo cooperativo entre os enunciadores para provocar humor. Vejamos
como os pressupostos inscritos nos enunciados de Hérnia são tratados por Hamlet.
(Jornal o Globo, 5/6/05).
Diferente da mãe de Mafalda que não demonstra nem adesão nem recusa ao
ponto de vista apresentado por sua filha, o personagem de Browne, Hamlet, refuta todos
os pressupostos inscritos nos enunciados pronunciados por Hérnia, a partir de outros
pressupostos que invalidam a imposição de compromisso matrimonial no futuro. O
quadrinhista Browne projeta a recusa de pressupostos inscritos nos enunciados,
demonstrando a disputa argumentativa entre os personagens.
Hérnia, ao perguntar: “Hamlet, quando você quer casar?” e “Então onde nós
vamos morar?”, força a existência da pressuposição de que eles se casarão e irão morar
em um determinado lugar. Todavia, Hamlet justifica a impossibilidade de se pensar em
137
tal assunto, visto que são crianças e não sabe como vai se sustentar quando for adulto.
Hamlet recusa todas as premissas levantadas por Hérnia, mas a personagem para
sustentar os pressupostos, por ela postulados, prefere não levar a sério os argumentos
de Hamlet e considerar que o mesmo só estava brincando. Desta forma, o quadrinhista,
não só demonstra a disputa argumentativa entre os personagens, como também acaba
por produzir a imagem de uma garota egocêntrica que não considera a vontade de seu
amigo, atrapalhando-o em sua leitura. Outra forma de organização discursiva é o
subentendido. De acordo com Ducrot (1987), podemos distingui- lo do pressuposto, da
seguinte forma:
Dizer que pressuponho X, é dizer que pretendo obrigar o destinatário, por minha fala, a admitir X, sem por isso dar- lhe o direito de prosseguir o diálogo a propósito de X. O subentendido, ao contrário, diz respeito à maneira pela qual esse sentido é manifestado, o processo, ao término do qual deve-se descobrir a imagem que pretendo lhe dar de minha fala (DUCROT, 1987, p.42).
Para refletir sobre o papel do subentendido no discurso, sob uma perspectiva
argumentativa, Ducrot avalia em que bases se encontram a sua formulação. Enquanto na
pressuposição há um locutor responsável pelo conteúdo semântico inscrito no
enunciado proferido, no subentendido o locutor não se responsabiliza pelo enunciado,
visto que não deixa marcas que o acusem de ter feito uma determinada afirmação. A
produção de subentendidos em um enunciado decorre de duas ou mais possibilidades de
sentido, em acordo com as circunstâncias em que o mesmo foi projetado, de modo que o
destinatário seja obrigado a considerar o valor do ato de fala. Tal fato faz com que toda
interpretação sobre o enunciado seja de responsabilidade do destinatário e não do
locutor. É importante salientar que todo subentendido está apoiado em uma situação
discursiva em que se avalia a razão de X dizer Y em determinado contexto.
TIRAS DE HAGAR
(BROWNE, 20/12/2006).
138
O noivo de Honi pergunta que música ela deseja ouvir. Sua resposta se organiza
em forma de chiste, fornecendo duas possibilidades de interpretação ao seu ato de fala.
A primeira descrição semântica corresponderia ao sentido literal de ouvir a música
marcha nupcial. Tal possibilidade, entretanto, seria menos viável, visto que a música
mencionada costuma ser tocada em rituais de casamento e pouco ouvida em situações
mais informais. O fato de a jovem Honi pedir ao namorado que toque a marcha nupcial
deixa subentendido o seu real desejo, expresso em diversos episódios da série Hagar: o
sonho de se casar. É razoável que seu namorado entenda que ela está sugerindo a
definição da data do casamento. No entanto, Honi, para se preservar de uma resposta
negativa, manifesta sua vontade de casar por meio do subentendido, deixando que outro
o interprete em seu favor.
Ducrot (1987) conclui no desenvolvimento de sua teoria que é difícil separar
subentendido de pressuposto, visto que em uma situação discursiva eles estão
correlacionados a todo instante. Em toda atividade verbal, o pressuposto pode gerar um
subentendido, assim como um subentendido pode promover um pressuposto. Ducrot
(1987, p.37) afirma “...a noção de subentendido não designa um ato de fala particular.
Ela envia a um processo particular de codificação e decodificação, no fim do qual
aparecem todas as formas de atos ilocutórios, notadamente a pressuposição”. Vejamos
como esses procedimentos discursivos comparecem na tira a seguir.
HAGAR – Dik Browne
( BROWNE, 2002, p.33).
Observamos nesta tira que o quadrinhista articula um jogo de pressupostos e
subentendidos que surpreende o leitor. O enunciado “O marido da Irma parou de beber”
traz um conteúdo subentendido que vai além da informação pressuposta do marido de
Irma ter bebido em um período de sua vida. Ou seja, há um conjunto de saberes
139
compartilhados entre os interlocutores que ultrapassa o nível do posto e do pressuposto.
Tal fato faz com que as duas amigas não desencadeiem a conversa sobre o pressuposto,
mas sobre implicações inferidas pelo subentendido. Desta forma, o encadeamento não
recai sobre motivos que levaram o marido de Irma a parar de beber, mas a
impossibilidade de tal fato acontecer, a não ser depois de morto. Sendo assim, é no
contexto de enunciação que a amiga de Helga vai além das informações inscritas no
enunciado, deduzindo que o marido de Irma só deixaria de beber se estivesse morto. Tal
fato é evidenciado quando a amiga pergunta pela realização do enterro, deixando como
pressuposto a morte do marido de Irma. Com isto podemos afirmar que a relação entre
pressuposto e subentendido ocorre constantemente na oralidade a todo o momento, sem
que haja uma fronteira nítida entre a passagem de um mecanismo para o outro.
135
O discurso citado e a heterogeneidade
Sobre o recorte das enunciações, retomamos os estudos de Bakhtin (1995) que
chamam atenção para o fenômeno do discurso citado1. Uma parte de uma enunciação
pode ser retomada fora de seu contexto de origem, sendo assimilada por uma outra
enunciação. Isto pode acontecer, graças à mobilidade das fronteiras e à autonomia
relativa das enunciações, permitindo, assim, a inclusão de parte de uma situação
enunciativa em outro discurso. Essa elaboração, entretanto, exige que o falante, ao
retomar a enunciação de um outro, venha a fazer reformulações no plano de sua
composição sintática e estilística, de modo que a palavra e os sentidos de uma
determinada situação enunciativa sejam resgatados em seu discurso.
A partir da configuração enunciativa proposta por Bakhtin, foi possível constatar
que todo discurso é heterogêneo, isto é, toda enunciação carrega referências e células de
sentidos de outros discursos. Não é possível significar sem retomar significações da
palavra de outrem. Este processo dialógico pode ser notado através da heterogeneidade
de nossa fala. Todas as vezes que nos referimos a algo, trazemos de alguma forma o
discurso de outrem. Na maior parte das vezes, quando isto acontece, deixamos marcas na
superfície do texto que podem ser identificadas em um processo de análise.
Este mecanismo foi investigado por Jaqueline Authier-Revuz (1990) que se
fundamentou na abordagem psicanalítica lacaniana. Para ela, todo discurso é
determinado por um já dito de forma inconsciente. O produtor de um discurso não tem
total controle sobre o seu dizer. Ao formular um enunciado, os sentidos das palavras e
das expressões são tomados por uma significação pré-construída. A esse fenômeno
Authier denomina heterogeneidade constitutiva. Observa-se que todo discurso é produto
de uma memória do dizer (interdiscurso). O discurso do Outro comparece nas
formulações enunciativas do sujeito, sem que este tenha consciência. Sendo assim, não
1 “O processo de citação de um enunciado dentro de outro, conforme as relações estabelecidas entre discurso citante e discurso citado, pode se dar através da realização de três estratégias diferentes: como discurso direto (DD) que preserva a independência do discurso citado em relação ao citante; como discurso indireto (DI) que subordina o discurso citado ao ato de enunciação do discurso citante e, finalmente, como discurso indireto livre (DIL) que é mais restrito ao campo literário e vale-se dos dois anteriores para um tipo de enunciação específico (...) Segundo Maingueneau, enquanto no DD tem-se a crença de que há repetição das palavras de um outro ato de enunciação, dissociando, portanto, dois atos de enunciação, no DI só há citação do sentido, constituindo-se, assim, em tradução de uma enunciação citada” (FLORES, 1999, p. 144/145).
136
podemos localizar e demonstrar na superfície do texto a fonte que determina seu dizer. A
razão de seu dizer está vinculada ao processo de identificação com discursos produzidos
no universo social. Vejamos no exemplo a seguir:
(QUINO, 2000, p. 118).
A heterogeneidade no discurso de Susanita não se encontra marcada de forma
nítida. Podemos identificá-la pelo modo como ela se filia a um discurso que vê a mulher
voltada para as funções domésticas na sociedade. Susanita, ao se dirigir à personagem
Mafalda que está ausente nas vinhetas, de forma agressiva, realiza um protesto.
Reparamos que ela não cita palavras exatas de nenhum discurso, contudo é possível
observar uma linha de argumentação que condiz com o discurso machista. Desta forma
Susanita defende a idéia de que a mulher não deve ocupar os cargos de engenheira,
arquiteta, advogada e médica, pois estes descaracterizam a identidade da mulher. A graça
do enunciado reside na atitude de Susanita se exprimir como uma militante que adere a
um posicionamento político desfavorável à sua condição de mulher, reproduzindo um
posicionamento tipicamente machista.
Além da heterogeneidade constitutiva, Authier observou outra forma de
heterogeneidade capaz de ser demonstrada na superfície textual, trata-se da
heterogeneidade mostrada. De acordo com a síntese de Mussalim (2001, p.128) esta
heterogeneidade pode se manifestar de três formas:
a) aquela em que o locutor ou usa de suas próprias palavras para traduzir o discurso de um Outro (discurso relatado) ou então recorta as palavras do Outro e as cita (discurso direto);
137
b) aquela em que o locutor assinala as palavras do Outro em seu discurso, por meio, por exemplo, de aspas, de itálico, de uma remissão a outro discurso, sem que o fio do discurso seja interrompido; c) aquela em que a presença do Outro não é explicitamente mostrada na frase, mas é mostrada no espaço do implícito, do sugerido, como nos casos do discurso indireto livre, da antífrase, da ironia, da imitação, da alusão.
Para Authier (1990), a heterogeneidade mostrada revela uma não-coincidência do
discurso fonte com o discurso derivado. Todo dizer, ao retomar um discurso, produz
deslocamentos, favorecendo rupturas de sentidos. Desta maneira, a heterogeneidade
mostrada pode se manifestar de duas formas, organizadas no quadro a seguir:
HETEROGENEIDADE MOSTRADA
MARCADA NÃO-MARCADA
Discurso direto, discurso indireto, itálico, negação, paráfrase, negrito.
Discurso indireto livre, ironia, paródia, provérbio, imitação, slogan, pastiche.
Para exemplificarmos um caso de heterogeneidade marcada, tomaremos a leitura
de uma tira em quadrinhos.
(QUINO, 2000, p.406).
Identificamos, nesta tira, trechos de uma oração católica O pai nosso. Evidencia-
se aí a heterogeneidade marcada no discurso em que se observa uma fronteira entre o
discurso religioso e o discurso da personagem Susanita. O discurso religioso é repetido
por dois personagens tal como ele é apresentado na bíblia. O mesmo discurso bíblico,
138
apropriado pela personagem Susanita, assume uma panorâmica diversa de sua fonte, ou
seja, o locutor produz uma novo sentido, convertendo a prece em uma fofoca. Com isso,
observamos um deslocamento na formulação do discurso religioso com enunciados
advindos do Pai nosso, assinalando marcas de heterogeneidade mostrada no discurso. A
produtividade das relações constatadas está, exatamente, na tensão entre dois discursos
que a rigor não se combinam, ou seja, ao mesmo tempo em que Susanita se dirige a Deus
por meio de uma oração reconhecida no espaço católico, incorpora ao texto comentários
sobre a vida alheia. Desta forma, o quadrinhista encena situações em que o falante não
tem controle sobre a linguagem, projetando de alguma forma formulações que advém de
dois campos discursivos distintos.
Authier (1998) aponta para um sujeito cindido, disperso e dividido em que a
exterioridade da linguagem tem relação, justamente, com o inconsciente. Com isso, o
olhar dos mecanismos enunciativos de Authier dá visibilidade aos lapsos, atos falhos e
chistes que estão constantemente sendo enfocados nas tiras de humor. Ao contrário desta
pesquisadora, o lingüista Ducrot trará uma outra perspectiva para retratar o sujeito da
enunciação por meio do desdobramento de entidades enunciativas. No lugar de pensar o
sujeito cindido, reflete sobre a multiplicidade e o desdobramento do ato de dizer realizado
por locutores e enunciadores.
Da polifonia na literatura à polifonia no enunciado
A consolidação de uma proposta de estudo polifônico no enunciado é apresentada
por Ducrot (1987) em seu artigo “Esboço de uma teoria polifônica da Enunciação”.
Nesse texto, recusa os postulados de unicidade e de homogeneidade do sujeito falante,
isto é, a presença de uma única voz como fonte e origem do sentido, sustentando uma
concepção referencial de significação restrita. Ducrot esclarece que esta crença se
encontra presente na lingüística moderna e também nos estudos literários.
Para romper com esta tradição, Ducrot propõe uma discussão lingüística, a partir
da visão polifônica elaborada por Bakhtin nos estudos literários. Sob o viés do
139
funcionamento da língua, ele reflete sobre a relação entre o autor empírico, o narrador
(construção ficcional) e os personagens no enunciado. Ducrot transfere as categorias
estudadas na Literatura para explicitar a heterogeneidade inscrita nos enunciados
produzidos pelos falantes. Sua hipótese é de que, em cada enunciado, existe a presença de
três entidades discursivas, com funções distintas na projeção de um dizer. Estas instâncias
permitem analisar semanticamente um segmento discursivo, organizado da seguinte
forma: o sujeito empírico (instância externa, não expressa no enunciado, correspondendo
ao autor de uma narrativa), o locutor (entidade responsável pelo que foi dito) e o
enunciador (correspondente ao ponto de vista dos acontecimentos desenvolvidos na
narrativa). Desta forma, Ducrot contestará a unicidade do sujeito falante, quando produz
um enunciado. O falante, ao produzir um enunciado, coloca em cena argumentos que
assumem desdobramentos.
Em torno das marcas lingüísticas mostradas no enunciado, Ducrot (1987)
investiga a presença de ecos nos dizeres retomados a partir da fala de outrem. Ele
conclui que toda fala tem em seu bojo uma relação com dizeres, afirmações, negações de
outros sujeitos em uma cadeia de sentidos. Isto direciona o olhar de Ducrot para as
formas de representação do sujeito no enunciado. De acordo com este autor, a
manifestação de três entidades discursivas – a do produtor empírico, a do locutor e a do
enunciador – possibilita compreender o modo de funcionamento discursivo de um
enunciado.
O produtor empírico (falante que tem propriedades psico-fisiológicas) é o sujeito
formulador do dizer que constrói o enunciado a partir de um jogo de intenções e
elaboração intelectual. Corresponde ao ser no mundo, instância fora do discurso (de carne
e osso). É este que possibilita a construção material do discurso. Atua como se fosse um
140
encenador de uma representação; não aparece, mas produz as condições materiais de sua
viabilização como faz o quadrinhista na produção das tiras em quadrinhos.
Para Ducrot (1987) a origem do sentido não está no sujeito empírico, mas no jogo
de vozes confrontado no discurso. Quando se projeta um enunciado, colocam-se em cena
figuras (personagens) enunciativas que são denominadas de locutores e enunciadores. O
locutor é a pessoa que se marca no enunciado através da designação de primeira pessoa. É
aquele que abre a boca para se referir como o “eu” do discurso, se responsabilizando pelo
que é declarado. Diferente do produtor empírico (autor efetivo), o locutor é uma ficção
discursiva manifestada na linguagem. Dito de outra forma, um locutor pode assimilar a
visão do autor empírico, quando há uma coincidência das duas entidades comunicantes.
Observemos como estas entidades se distinguem através do exemplo a seguir. Se um
locutor A diz: “Eu fui à aula do professor Fernando”, marcando-se como aquele que
estabeleceu a articulação psico-fisiológica do dizer (instância externa organizadora do
discurso), ao mesmo tempo em que é a pessoa responsável pelo dito no enunciado,
podemos dizer que houve coincidência de papéis: locutor e sujeito empírico são
correspondentes na enunciação.
O mesmo não acontece quando um pai deve assinar uma circular para seu filho
participar de um passeio organizado pela escola. Vejamos o enunciado:
ESCOLA X
Eu, _____________, autorizo meu filho_________________ a visitar o Parque da
Gávea no dia 17 de abril no turno da manhã, com a turma 501.
______________________
Assinatura
141
Quem produziu o texto foi um funcionário da escola (sujeito empírico), todavia
quem assina, responsabilizando-se pelas declarações e utilizando marcas de primeira
pessoa, é o pai da criança. Nesta situação, o produtor empírico do bilhete e a pessoa que
assume a responsabilidade do discurso inscrito no enunciado são sujeitos distintos.
Ducrot (1987) demonstra a heterogeneidade do locutor por meio das marcas
lingüísticas e posições discursivas deixadas no enunciado. Desta forma, o sujeito
enunciativo não pode ser concebido como entidade homogênea, visto que um enunciado
pode refletir a presença de mais de uma instância enunciativa. Digamos que Pedro profira
o seguinte segmento: “João me disse: eu virei”. Encontramos aí, marcas de primeira
pessoa assimiladas por dois seres do discurso, ou seja, por dois locutores em um mesmo
enunciado. O primeiro segmento assimilado por Pedro e o segundo, por João. Revela-se o
mecanismo denominado de “dupla enunciação”2, posto que não existe um único sujeito
responsável pelas afirmações do enunciado.
O pronome ‘eu’ e outras marcas de primeira pessoa não são suficientes para
determinarmos se as declarações são de responsabilidade do locutor que as pronunciou.
Em alguns casos, o locutor toma a palavra para mencionar um enunciado de um outro.
Quando este diz: “Pedro disse: eu venho”, na verdade o locutor (L1) está citando uma
fala de outro locutor (L2), portanto não pode se responsabilizar pela afirmação de Pedro.
O discurso citado seria uma forma de dupla enunciação, no qual se pode
identificar a presença de dois locutores em um proferimento. Um locutor (L1),
responsável pelo enunciado global que traz para a cena a afirmação de Pedro, e um outro
locutor (L2), no caso Pedro, responsável pela segunda parte do enunciado “eu venho”.
2 De acordo com Ducrot (1987) este fenômeno pode se manifestar no enunciado através de ecos, diálogos internos, monólogos e apagamento do porta-voz em relação à pessoa que ele faz falar.
142
Constataríamos a presença de dois locutores, também, no discurso indireto
“Pedro disse que vem”. Neste caso, o L1 não reproduz exatamente as palavras de L2, mas
o conteúdo semântico expresso na fala de L2. Ao contrário do discurso direto, que
supostamente preserva a materialidade das palavras do locutor citado, tal como elas
teriam sido ditas; no discurso indireto, o locutor insere em seu discurso a palavra alheia
por meio de uma reconstituição lingüístico-semântica, apagando marcas de primeira
pessoa. Além da dupla enunciação aqui demonstrada, Ducrot salienta outras formas de
manifestações polifônicas.
No enunciado “Ah! Eu sou um imbecil; você não perde por esperar!”,
encontramos um novo caso de dupla enunciação.O locutor (L), produtor das palavras,
designado com marcas de primeira pessoa no enunciado, na verdade não está dizendo que
é um imbecil, mas sim, retomando a fala de seu alocutário (AL). A responsabilidade do
ato ilocutório de afirmação de (L) ser imbecil é do (AL). Diremos que o enunciado de (L)
é um eco imitativo da fala do (AL). É a partir do resgate da produção enunciativa do (AL)
que (L) organiza uma encenação e estabelece comentários sobre a fala retomada.
Além do locutor que se constitui no nível do dizer, Ducrot apresenta outra
entidade discursiva que poucos percebem na interpretação de um enunciado. Trata-se do
enunciador (E), ou seja, o lugar de onde se diz um determinado enunciado. O enunciador
corresponde ao ser da enunciação não marcado pelo material lingüístico, mas pela
exposição de pontos de vista na cena discursiva. Estes pontos de vista revelam posições
enunciativas, presentes nas formulações proferidas pelo locutor.
As posições manifestadas nas representações enunciativas podem ser assimiladas
pelo locutor ou não. Ou seja, o locutor pode expor um ponto de vista do qual discorda,
contrastando com outra perspectiva para a qual dirige a sua argumentação. Em analogia à
construção de um romance, podemos pensar no caso do autor, criador de uma
143
personagem, com cujas atitudes e posicionamento não se identifica. Retomando a teoria
da narrativa de Genette, voltado para o estudo semântico-pragmático dos enunciados,
Ducrot nos esclarece o papel do enunciador:
Ao enunciador igualmente posso fazer corresponder um dos papéis propostos por Genette. Vou colocá-lo em paralelo com o que Genette denomina às vezes “centro de perspectiva” ( o “sujeito de consciência” dos autores americanos), ou seja, a pessoa de cujo ponto de vista são apresentados os acontecimentos. Para distingui-lo do narrador, Genette diz que o narrador é “quem fala”, enquanto que o centro de perspectiva é “quem vê”. (...) O locutor fala no sentido em que o narrador relata, ou seja, ele é dado como fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia – como os pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos de consciência estranhos ao narrador (DUCROT, 1987, p.195/196).
Compreendemos melhor o papel do enunciador quando nos deparamos com um
acontecimento, em que o locutor, em um diálogo, se contrapõe a uma determinada
situação, produzindo uma declaração do tipo: “Lula não é um bom presidente”. Quando
o locutor (L2) faz esta contestação, coloca em cena dois enunciadores, visto que ao negar,
deixa como pressuposto a existência de um outro que sustenta a afirmativa “Lula é um
bom presidente”. L2 se identifica com a perspectiva negativa (E2), deixando o ponto de
vista que admite Lula ser um bom presidente para (E1). Manifesta-se, aí, a recusa do
enunciador E1 por L2 que assimila o ponto de vista aderido por E2.
Na maioria das vezes, o fenômeno lingüístico da negação3 manifesta-se como uma
atividade que expõe perspectivas antagônicas, produzindo, assim, uma dupla enunciação
no âmbito dos enunciadores. Para Ducrot (1987), o fenômeno de oposição a uma
determinada perspectiva não se manifesta, somente, através da negação explícita com a
expressão ‘não’, mas por mecanismos implícitos formulados no discurso. Na língua não
3 Não abordaremos, neste texto, as negações do tipo descritiva e metalingüística da teoria de Ducrot. A negação descritiva é fenômeno de negação que não tem a pretensão de refutar ou julgar um ponto de vista, mas descrever um estado de coisas que ocorre no mundo. Já a negação metalingüística contradiz os próprios termos da fala efetiva do locutor, da qual só uma parte é atribuída à sua responsabilidade, a outra parte do enunciado refere-se à retomada da fala de um outro em uma perspectiva oposta.
144
se faz distinção entre enunciador e locutor e nem se percebe, em muitos casos, a presença
de um enunciador distinto do locutor. Essa distinção é feita no processo enunciativo,
existindo vários efeitos da negação na fala, sem que se demonstre através de marcas
lingüísticas precisas. Na ironia, o processo de negação não se dá de forma explícita. As
marcas lingüísticas de refutação não são localizadas em um ponto restrito, mas no
contexto da enunciação.
O movimento polifônico da ironia
(QUINO, 2000, p. 278)
Podemos dizer que Quino, por meio da cena de Mafalda escrevendo um diário,
retrata o próprio movimento de produção de enunciado no qual o seu autor empírico não
compartilha das opiniões que inscreve no texto. Identificamos a representação de uma
produção polifônica composta de três instâncias enunciativas: Mafalda, autor empírico; o
locutor-diarista que diz as coisas que a mãe deseja ouvir (e com o qual Mafalda não se
identifica) e a voz da direção do diário que estabelece a observação de que a autora não é
responsável pelo que é dito. Com isso Mafalda demonstra que foi coagida a escrever
daquela maneira e que a responsabilidade sobre o que foi dito não é dela.
Na ironia, o locutor faz afirmações na superfície do texto pelas quais não se
identifica e nem se responsabiliza, visto que estas são posições absurdas e insustentáveis
145
dentro do contexto em que são apresentadas. Para que isto aconteça, em um diálogo, é
necessário o apagamento de marcas de relato do locutor, fazendo com que o discurso seja
sustentado na enunciação.
Diferente das declarações negativas, a ironia refuta a posição de um enunciador,
sem utilizar morfemas de negação. É possível examinar na ironia gestos de interpretação
que denotam repugnância a um determinado ponto de vista, sem entrar em conflito com a
perspectiva discordante. O locutor retoma um enunciado ou os pressupostos do mesmo,
sem compartilhar das opiniões do discurso citado. Diante deste fato, ocorre a
desqualificação da perspectiva enunciativa alheia, sem que o locutor se responsabilize
pela defesa do proferimento. Vejamos como isso acontece na tira de Quino.
(QUINO, 2000, p. 301).
O pai de Mafalda (L2) poderia refutar a posição da personagem Liberdade (L1)
dizendo, simplesmente, que ela não cresceu com uma declaração negativa. Dessa forma,
haveria dois enunciadores, dois pontos de vista sobre o crescimento de Liberdade. L2
assimilaria a perspectiva (E2) de que Liberdade não cresceu, enquanto L1 assimilaria a
perspectiva do enunciador E1 (Liberdade cresceu). No entanto, o locutor (L2) preferiu
utilizar o recurso da ironia para se comunicar.
146
No primeiro quadro, encontramos a personagem Liberdade que é uma criança de
estatura baixa, apresentando a declaração afirmativa “... Quando eu era pequena me
levaram ao zoológico e tinha uma tartaruga”. A declaração feita por Liberdade (L1) não
apresenta grandes problemas, na medida em que este enunciado é dito sob a perspectiva
de um tempo anterior, quando era um pouco mais nova e menor do que no tempo
presente. No entanto, o fragmento da enunciação “Quando eu era pequena” é retomado
pelo pai de Mafalda (L2), em forma de eco, colocando em dúvida a declaração de L1. Ele
nega a pressuposição de que L1 deixou de ser pequena algum dia por meio de uma
pergunta: “Quando era pequena?”. Dessa forma, o enunciado de L1 é desqualificado,
assumindo uma perspectiva absurda, quando se compara o tamanho de Liberdade aos dos
outros participantes da conversa.
Liberdade (L1), percebendo o tom de ironia, apresentado por seu interlocutor,
ataca-o, quando modifica o rumo do diálogo. Ela desloca a questão do tamanho para a
questão da idade do pai de Mafalda, dessa forma, desqualifica a fala do locutor (L2).
Observa-se que não há confronto direto (oposição de idéias) dos locutores. O conflito é
manifestado, de forma implícita, por meio dos enunciadores que assumem visões
distintas.
A ironia manifestada pelo personagem/locutor e pelo autor/locutor
Por meio das representações enunciativas desenvolvidas na teoria polifônica de
Ducrot, tivemos a oportunidade de observar o modo de funcionamento discursivo da
ironia na interação verbal. A percepção da ironia, em determinados tipos de tiras, se dá
em virtude da movimentação de vozes articuladas pelo autor/enunciador que não se
manifesta concretamente na história, mas organiza pontos insustentáveis de sentido para
147
provocar efeitos de incongruências. Pensaremos no discurso dos quadrinhos como um
discurso citado, identificando o “discurso no discurso, enunciação na enunciação”, sendo
ao mesmo tempo “um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre uma
enunciação”. (BAKHTIN, 1995, p.144). Vejamos a tira a seguir:
(QUINO, 2000, p. 233).
O discurso insustentável, nesta tira, não é percebido pelos personagens envolvidos
na situação enunciativa (com exceção de Mafalda, que manifesta a percepção de
incongruência por meio da expressão facial). O autor da tira sinaliza uma perspectiva
absurda, quando os alunos respondem em inglês, em uma aula voltada para o sentimento
de nacionalidade. Somos levados a crer que Quino, criador das personagens, atua como
se estivesse contando uma história, confrontando, assim, perspectivas díspares.
Concluímos que a ironia não é dizer o contrário do que havia sido dito, mas a
exposição de um enunciado que assume uma perspectiva de confronto com o enunciado
de outro locutor, promovendo, assim, um comentário crítico sobre um determinado ato
enunciativo. A ironia pode acontecer em dois níveis nos quadrinhos. No primeiro nível,
os personagens no interior da enunciação agem de forma irônica diante de outros
personagens, instalando, assim, vozes, que a serem confrontadas com o discurso do
opositor, faz o discurso alheio se tornar absurdo. Em um segundo nível, o autor que
arregimenta discursos confronta pontos de vista incongruentes. Um dos enunciadores,
148
colocado em cena, postula uma perspectiva absurda diante da enunciação. Neste caso o
efeito risível não decorre de um locutor propriamente dito, mas das condições em que um
enunciado é proferido. As saídas para refletir sobre a ironia, em uma perspectiva
enunciativa, proposta por Ducrot, trazem uma série de contribuições na interpretação dos
textos humorísticos, dando visibilidade a procedimentos que atuam na produção de
enunciados de efeito cômico-humorístico.
A importância dos estímulos ostensivos na teoria da relevância
De acordo com Sperber e Wilson (2005), a compreensão da linguagem verbal
depende do estabelecimento de inferências, visto que o conjunto de códigos utilizados
pelo falante não é transparente; ele depende do contexto comunicativo. Esse contexto é
determinado pelas operações cognitivas voltadas para a organização das informações
provenientes dos estímulos recebidos. Se o conjunto de conhecimentos armazenados
pelo sujeito não for condizente com os estímulos oferecidos, a comunicação não se
efetivará satisfatoriamente. Sendo assim, nem todo processo inferencial pode ser
explicado por uma lógica demonstrável, como previa Grice (1992). Muitas situações de
inferências são derivadas de processos cognitivos que colocam em jogo conhecimentos
enciclopédicos ou informações compartilhadas pelos agentes envolvidos em uma
situação comunicativa.
Neste horizonte, a compreensão de um enunciado deve se fundamentar, não
apenas por procedimento de dedução lógica ou observação de quebra de uma máxima,
advinda dos postulados de Grice, mas pelo desdobramento de elementos que atuam na
formulação global de um enunciado. Tais fatores podem ser captados pela percepção
dos elementos ostensivos, pela decodificação lingüística, pela identificação do conjunto
de suposições dos interlocutores e pela dedução dos elementos envolvidos na
enunciação. Essas operações sofrem determinações da cognição humana que tendem a
dirigir a maximização da relevância das informações em uma situação comunicativa.
Sendo assim, Sperber & Wilson (2005) fazem as seguintes críticas ao modelo proposto
por Grice:
149
Grice parece não ter observado (ou ao menos não ter desenvolvido a idéia) de que o seu Princípio Cooperativo e as máximas poderiam ajudar em outros aspectos da interpretação pragmática além dos recobertos pelas implicaturas: com a desambiguação e a atribuição de referências, por exemplo, que ele viu como contribuindo não com aquilo que é implicado, mas com aquilo que é (explicitamente) dito. Em Logic and conversation, ele dá a impressão de que o significado da sentença e os fatores contextuais são suficientes para dar conta da desambiguação e da atribuição de referência, e a maioria dos pragmaticistas griceanos simplesmente o seguiu nisso. Esse descuido teve duas importantes conseqüências. Primeiro, os pragmaticistas griceanos foram lentos para reagir aos extensos trabalhos psicolingüísticos feitos sobre a desambiguação e atribuição de referência. Segundo, eles tentaram garantir que os princípios pragmáticos não contribuem para o conteúdo explícito, e que qualquer aspecto da interpretação do enunciado, nos quais os princípios pragmáticos desempenham algum papel, é automaticamente uma implicatura (SPERBER & WILSON, 2005, p.37).
Sperber e Wilson afirmam que as quatro máximas postuladas por Grice podem
ser reduzidas a um único princípio, ao da relevância. Para deduzir informações
implícitas de uma interação verbal, devemos buscar uma inferência global do
enunciado. De acordo com esse prisma, a relevância4 não é determinada, somente, pelas
marcas lingüísticas encontradas na interação verbal. O contexto enunciativo é
determinado por estímulos ostensivos que atuam junto à produção do enunciado verbal.
Na concepção destes dois autores, a interação é determinada por fatores relevantes
otimizados no processo comunicativo. Vejamos os contrapontos entre a teoria de Grice
e a de Speber e Wilson, a partir da análise da tira em quadrinhos a seguir:
4 Sperber e Wilson (2005, p.7) definem relevância como uma propriedade voltada para inputs destinados a processos cognitivos: “relevância é uma propriedade potencial não somente de enunciados e outros fenômenos observáveis, mas de pensamentos, memórias e conclusões de inferências. Nos termos da Teoria da Relevância, qualquer estímulo externo ou representação interna que fornece um input para processos cognitivos pode ser relevante para um indivíduo em algum momento”.
150
(BROWNE, 2002, p.72). Sob a perspectiva de Grice, o estabelecimento da implicatura é decorrente da
violação de uma das máximas. Quando Hagar pergunta há quanto tempo estão casados,
Helga responde, ferindo a máxima de modo. Ela declara com a precisão de dias o
período em que estão casados, e não o tempo aproximado como ocorreria em uma
situação cotidiana. Além deste fator, podemos adotar outra forma de deduzir a
informação proposta sob o viés da teoria da relevância. Sob a perspectiva de Sperber &
Wilson, outros estímulos ostensivos levam à mesma conclusão apontada pela primeira
teoria. Podemos visualizar a expressão facial de Helga triste, cortando batatas, e na
parede um conjunto de riscos, indicando os dias contados. Tais estímulos levam o leitor
a acionar outros conhecimentos armazenados em sua mente, concluindo que o
casamento de Helga é um exemplo de felicidade.
De acordo com o conhecimento de mundo, o conjunto de riscos na parede
ocorre, na maioria das vezes, quando alguém está na cadeia e não quer perder a noção
do tempo. Estar na cadeia significa deixar de viver e não ter liberdade. Como ninguém
risca a parede de sua casa para contar os dias de casado, tal como fez Helga, é possível
deduzir, por meio do tópico de discussão da conversa, que a união matrimonial é vista
como uma prisão. Tal dedução é facilitada pelos estímulos ostensivos evidenciados na
enunciação. Sendo assim, o propósito comunicativo, instaurado pelo quadrinhista,
alcança o efeito humorístico por meio de críticas à relação conjugal deteriorada de
Helga e Hagar. Seguindo os princípios interpretativos exemplificados, Silveira & Feltes
(2002) esclarecem diferenças entre o enfoque de Grice e Sperber & Wilson :
151
Diferentemente de Grice e dos pragmatistas que seguem sua linha teórica, os autores (Sperber & Wilson) não consideram que qualquer aspecto da interpretação do enunciado pragmaticamente determinado é sempre uma implicatura, com exceção da desambiguação e atribuição do referente. Para eles, a combinação de características conceituais contextualmente inferidas e lingüisticamente decodificadas constitui a explicatura, que é uma suposição explicitamente comunicada, e argumentam que todas as explicaturas podem ser inferidas do contexto, da forma proposicional do enunciado e da atitude proposicional do falante (SILVEIRA & FELTES, 2002, p.110/111).
Sobre o processo global de compreensão de um texto, Sperber e Wilson (2000a,
p.5) chamam a atenção para a articulação de procedimentos voltados para a
interpretação. Uma das formas de garantir uma comunicação efetiva é trabalhar com um
conjunto de suposições a serem confirmadas ou refutadas no percurso da leitura. Os
autores apontam três subtarefas que devem ser desempenhadas no processo da
compreensão global da ação comunicativa.
a. Construção de uma hipótese apropriada sobre o conteúdo explícito (EXPLICATURAS) por meio da decodificação, desambiguação, resolução de referência e outros processos de enriquecimento pragmáticos. b. Construção de uma hipótese apropriada sobre suposições contextuais pretendidas (PREMISSAS IMPLICADAS). c. Construção de uma hipótese apropriada sobre implicações contextuais pretendidas (CONCLUSÕES IMPLICADAS).
É a partir da eliminação dos fatores não relevantes que o leitor constrói a
intenção comunicativa do locutor. A valorização dos elementos constitutivos da tira, no
que tange à relevância, é colocada em jogo, promovendo a sustentação para uma dada
interpretação do enunciado. Para o êxito da comunicação é necessário levar em conta
estímulo intencional de quem dirige a mensagem, os estímulos dirigidos ao interlocutor
e as modificações ocorridas em determinado contexto. Desta forma, somos capazes de
identificar as informações que estão sendo marcadas ostensivamente em direção a uma
busca de uma relevância ótima. Os elementos ostensivos em uma atividade de
decodificação podem fornecer a base para a interpretação de um texto.
152
Uma das características das tiras criadas por Dik Browne é não apresentar o
contexto situacional de realização de um grupo de enunciado na primeira vinheta. Tal
fato tem o objetivo de levar o leitor a estabelecer um conjunto de suposições que não
condizem com reais condições de realização do ato de fala. Para desenvolver esta
estratégia, o quadrinhista focaliza o corpo dos personagens sem expor o cenário e a
situação de produção do enunciado. Tais informações são reveladas em uma vinheta
posterior, obrigando o leitor a refazer o percurso de interpretação que havia feito em um
momento anterior. Podemos visualizar esta estratégia no quadrinho a seguir.
TIRAS DO HAGAR
(BROWNE, 20 /12/2006).
Se analisássemos o enunciado “Não brinque com sua comida Hamlet”, de
maneira isolada, deduziríamos que a Helga deseja que seu filho não fique mexendo, o
tempo todo, na comida que está no prato, sem de fato comer. Ao ser reconfigurada a
cena com a exposição de Hagar e Hamelt brincando de ping-pong com a comida,
contata-se que o enunciado ultrapassa as suposições sobre a descrição do ato de brinca
com a comida. Os estímulos ostensivos indicam que a comida de Helga tem um aspecto
de borracha capaz de servir de bola de ping-pong. Por meio de processo hiperbólico o
quadrinista demonstra como a comida de Helga não tem uma consistência agradável.
153
CONCLUSÕES E PONDERAÇÕES
A linguagem dos quadrinhos mobiliza uma série de procedimentos discursivos
que procuramos evidenciar neste trabalho. As tiras de humor, particularmente, em
decorrência da escolha temática, da abordagem ridicularizante, da produção de
enunciados ambíguos e de formulações implícitas no plano lingüístico e no plano da
enunciação são responsáveis pela projeção do efeito risível, configurando, assim, o
gênero que estudamos.
Freud, ao desenvolver um estudo sobre o chiste, descreveu o funcionamento da
linguagem em torno do efeito risível. Além de determinar aspectos formais do chiste,
enriqueceu a sua noção ao configurar tal processo como resultado de formulações
inconscientes voltadas para a liberação de energias psíquicas diante das pressões sociais.
Sua abordagem analítica prenunciou os estudos enunciativos dos textos de humor,
levando em conta o sujeito que produz os enunciados e a atividade de recepção dos
mesmos. Apesar de sua pesquisa promover analogias entre o sonho e o chiste, suas
explicações sobre o funcionamento da linguagem se ativeram ao modo de organização
do discurso e às regularidades enunciativas. Desta forma, podemos dizer que Freud foi
um dos precursores das análises de texto de humor em uma perspectiva de gênero do
discurso.
Bakhtin, ao afirmar que todo gênero é configurado em função do estilo, da
temática e sua composição, forneceu uma nova base para se analisar os textos.
Percebemos na história dos quadrinhos que a constituição do gênero tira de humor,
subordinado ao domínio em que está inserido, é resultante de diversos fatores que se
organizam de maneira dialética. Se, por um lado, as tiras apresentam regularidades,
decorrentes de acordos sociais para promover canais de comunicação, por outro lado, o
processo de produção está vinculado à recepção e ao estilo em que cada autor mobiliza
e renova o gênero. Enfatizamos em nosso trabalho o modo como os enunciados se
estruturam no discurso do humor sob uma perspectiva enunciativa.
Quanto aos aspectos estilísticos das tiras de humor, notamos a existência de
mecanismos lingüísticos recorrentes que buscam a promoção do efeito risível. Dentre os
processos mais constantes na produção do humor foi observada a ambivalência dos
154
enunciados em diversos níveis (lingüístico, pragmático e semântico). O sentido dos
enunciados é sustentado na maioria das vezes: a) pelo tipo de comportamento que os
personagens conferem na série; b) pelo sistema de referência ostensivo que enquadra as
ações dos personagens e c) pela formulação de implícitos inscritos no discurso verbal.
Desta maneira, as combinações chistosas, organizadas pelo quadrinhista, podem ser
analisadas sob um enfoque diferente do que foi proposto no início do século XX por
Freud. Avaliamos como fator positivo a análise das tiras de humor sob a perspectiva
enunciativa que conta com a contribuição da Teoria da Enunciação (Bakthin e
Benveniste), da Semântica Argumentativa (Ducrot), da Pragmática (Austin), da Análise
da Conversação (Grice) e da Teoria da Relevância (Sperber & Wilson), como fizemos
neste trabalho.
Com a aplicação do arcabouço teórico mencionado à leitura das tiras, pudemos
colocar em evidência alguns procedimentos discursivos que ajudam a compreender o
funcionamento da linguagem do humor. Observamos que a produção do humor decorre
da exploração da ambivalência da linguagem no nível da língua e no plano da
enunciação. Sendo assim, em muitos momentos, observamos a exploração, por parte do
quadrinhista, de atos de fala infelizes, cometidos pelos personagens; da violação das
regras de cooperação comunicativa; de jogos de pressupostos e subentendidos para
criticar o interlocutor; da ironia, a partir da exposição de vozes que tornavam uma
determinada perspectiva enunciativa absurda. Além disso, a própria heterogeneidade do
discurso e a capacidade da linguagem se auto-referenciar são pontos altos para se
refletir sobre condicionamentos propulsores da linguagem humorística. Acoplamos,
ainda, os elementos ostensivos que junto aos dizeres inscritos nos balões corroboram
para produzir o efeito cômico-humorístico.
Adotando a perspectiva bakhtiniana, observamos que existem gêneros que
evidenciam maior grau de autoria do que outros. As tiras em quadrinhos de humor são
um exemplo de gênero dotado de um trabalho singular realizado por cada autor. Isto
acontece porque os quadrinhistas expressam de maneira única um conjunto de escolhas
temáticas, um modo de ilustrar e caracterizar os personagens de uma maneira peculiar.
Nas tiras de Browne e Quino é possível perceber formas distintas de realização do
humor. Enquanto o personagem protagonista, Hagar, personifica os defeitos criticados
socialmente, demonstrando-os por meio de seu comportamento extravagante; a
155
personagem Mafalda critica os defeitos da sociedade que são reproduzidos pelos outros
(pais, amigos e instituições) com pequenos comentários irônicos. O modo de
composição dos personagens de Quino nas tiras de Mafalda é bem diferente da
composição dos personagens de Dik Browne e Chris Browne nas tiras de Hagar, o
horrível.
Mafalda não se expressa como uma criança de sua faixa etária, apresentando-se
como uma menina prodígio. Todo o seu discurso apresenta um tom crítico acerca dos
problemas ético-psicológico-políticos da humanidade. Se analisarmos o comportamento
de cada um dos personagens das tiras de Quino, veremos que todos representam tipos
que se encontram presentes na sociedade burguesa. A mãe e o pai de Mafalda assumem
uma postura resignada e alienada diante das condições de vida na sociedade capitalista.
Manolito, apesar de ter uma inteligência limitada, assume a perspectiva capitalista,
reproduzindo a lógica de ganhar dinheiro a qualquer custo. Seu sonho é possuir uma
filial de supermercados. Susanita assume a visão de mulher fútil, preconceituosa e
egoísta. Seu maior sonho é se casar com um homem rico e ter filhos para conquistar
uma vida doméstica feliz. As contraposições dos personagens, em relação ao modo de
compreender as questões sociais e existenciais, permitem a projeção de disputas
argumentativas. Muitos chistes derivam dessa incompatibilidade de opiniões em forma
de ironia ou pequenos insultos.
Outro fator que contribui para o desenvolvimento da cadeia humorística nas tiras
do Quino é o processo de carnavalização decorrente, na maioria das vezes, das
inversões promovidas pelo posicionamento crítico de Mafalda no lugar dos adultos, que
assumem um posicionamento ingênuo. Em outras situações, as próprias brincadeiras das
crianças reproduzem o mundo adulto sustentado sob o viés de paródia.
Sobre o enquadramento das ações dos personagens, Quino assume um
perspectiva teatral, retratando as cenas criadas no plano médio, com um cenário
simples, pouco ilustrado. Além disso, o quadrinhista tem como proposta de trabalho a
reflexão sobre o próprio processo de produção do discurso representado, colocando em
destaque o conflito de vozes que comparecem em um evento discursivo, situado no
interior das tiras em quadrinhos.
156
Já nas tiras de Dik Browne, o protagonista é configurado como o anti-herói que
comete uma série de gafes e deslizes no convívio social. Diferentemente de Mafalda,
que assume uma postura ética diante das questões sócias que a afligem, Hagar gosta de
levar vantagem em tudo, procurando, sempre que possível, burlar as leis e as regras para
alcançar seus objetivos. Apesar de ter pouca instrução e não saber ler, Hagar tem um
poder de argumentação que o ajuda a reverter as situações desfavoráveis em seu
benefício. Tal modo de articulação, projetado pelo quadrinhista, é expresso por meio de
chistes atribuídos ao personagem para escapar de situações constrangedoras e de
cobranças sociais, por uma via bem-humorada.
As personagens femininas (Helga, Hérnia, Honi), nas tiras de Hagar, tentam
exercer uma relação de domínio, principalmente, sobre os personagens masculinos por
meio da manipulação da linguagem. Para persuadi- los, elas procuram partir de um
determinado pressuposto que force seus interlocutores a aceitarem o seu ponto de vista.
Muitas situações humorísticas decorrem, exatamente, da não aceitação da direção
argumentativa que atua como tópico inicial de uma conversa. Outra formulação
recorrente para provocar o efeito risível é a falta de raciocínio de Eddie para realização
de uma tarefa ou interpretação de um enunciado proferido por outro personagem. Por
meio dessa característica de Eddie, o quadrinhista lança mão de uma série de
estratagemas em que a comicidade e o humor confluem para projetar o discurso
humorístico. Destaca-se, ainda, o enquadramento das ações nas tiras de Hagar. Uma
estratégia singular, não encontrada nas tiras de Quino, é o uso do close na primeira
vinheta, descontextualizando a cena enunciativa. No primeiro quadro há um enunciado
que assume uma perspectiva enganosa, que só é percebido em um contexto mais amplo,
demonstrado na vinheta seguinte. Observa-se aí, um desvio de orientação argumentativa
em decorrência da explicitação do contexto em que um enunciado é dito.
Observamos que Browne e Quino retomam diversos discursos que circulam
socialmente, explorando, cada um, à sua maneira, princípios similares para produzir
tiras cômico-humorísticas. Ressalta-se, no trabalho destes dois quadrinhistas, a riqueza
de formulações enunciativas implícitas e ambivalentes que provocam riso. Tal
perspectiva exige uma apreciação especial sobre o trabalho de linguagem realizado
neste âmbito. Acreditamos que o conjunto de teorias abordadas dá maior visibilidade
não só aos recursos humorísticos, mas à compreensão de mal-entendidos e a formas de
resistência a um ponto de vista divergente por meio da realização de chistes.
157
Procuramos valorizar as marcas lingüísticas e o modo de articulação dos
enunciados, apoiados no discurso icônico, para refletir sobre os processos que atuam
sobre a interpretação. Não buscamos uma fórmula única que regulasse a linguagem dos
quadrinhos, mas apontamos possibilidades de análise do gênero tira de humor sob
diversas perspectivas teóricas, que mesmo incompatíveis em relação à natureza da
linguagem, convergem para uma perspectiva enunciativa. Acreditamos que o
aprofundamento das relações enunciativas, iniciadas neste trabalho com as tiras de
humor, pode gerar outras indagações sobre o funcionamento da linguagem em seus
aspectos: estilístico, subjetivo, intersubjetivo, performático, ostensivo e argumentativo.
A contribuição de cada abordagem teórica, sob uma filiação enunciativa, aviva os
estudos do gênero em questão, evidenciando a possibilidade de diálogo entre a
Estilística, a Pragmática, a Lógica Conversacional, a Semântica Argumentativa e a
Análise do Discurso.
Deixamos de fora outros estudos que enfocam a relação do sujeito com a
linguagem em uma situação discursiva que poderiam ampliar mais o nosso leque de
compreensão dos fenômenos relativos à projeção do humor nas tiras em quadrinhos.
Dentre outras contribuições significativas, chamamos a atenção para as investigações de
Erving Goffman e Algirdas Julien Greimas. Certamente, outras discussões teóricas
ampliariam, ainda mais, o olhar sobre o funcionamento da linguagem voltado para o
efeito humorístico. Preferimos, no entanto, enfocar teorias que são adotadas, de forma
predominante, nos cursos de graduação em Letras, nas cadeiras de Lingüística e Análise
do Discurso. Sendo assim, interessou-nos abrir um canal para analisar as tiras de humor
sob uma perspectiva de gênero do discurso de uma maneira diferente das propostas que
as reduzem a uma mera estrutura tipológica narrativa, instigando a apreciação dos
aspectos cômico-humorísticos sob uma perspectiva enunciativa.
158
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