a medida socioeducativa de internamento: análise
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2º CICLO DE ESTUDOS
CRIMINOLOGIA
A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO:
análise qualitativa acerca da experiência de privação de liberdade do
adolescente em conflito com a lei
Cecilia Roxo Bruno
M 2020
M.FDUP 2020
Cecilia Roxo Bruno
A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO:
análise qualitativa acerca da experiência de privação de liberdade do
adolescente em conflito com a lei
Trabalho realizado sob a orientação da Professora Doutora
Maria Alexandra Gomes Machado Leandro
FACULDADE DE DIREITO
RESUMO
A presente dissertação consiste num estudo exploratório e qualitativo, no campo da
delinquência juvenil, pelo qual buscámos refletir sobre o contexto social do adolescente
até a chegada no internamento socioeducativo, a experiência de internamento do
adolescente em conflito com a lei numa unidade socioeducativa do Rio de Janeiro, bem
como conhecer os seus objetivos de vida após o internamento. Para este objetivo,
utilizamos os métodos da observação participante e da entrevista semiestruturada, que
contou com a participação de 8 adolescentes internos no Departamento Geral de Ações
Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE). A entrevista foi dividida
conforme 4 grupos temáticos, a saber, A: conhecendo o adolescente, B: experiência de
internamento, C: experiência delinquencial e D: objetivos futuros, pelos quais
analisamos o sentido que os adolescentes dão às suas experiências e, por seu turno, as
maneiras pelas quais o contexto social mais amplo condiciona tais significados. Os
resultados obtidos confrontam os aspetos repressivos e socioeducativos da experiência
de internamento, bem como demonstram as relações de poder, que se estabelecem
socialmente e que são transportadas para o âmbito da instituição. A pesquisa abre
caminho para uma compreensão acerca dos conflitos vivenciados pelos adolescentes,
antes e durante o internamento, de modo que se possa refletir sobre os mecanismos de
exclusão do indivíduo, visando o desenvolvimento das práticas de socioeducação.
Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei; socioeducação; medida
socioeducativa; internamento.
ABSTRACT
The present dissertation consists of an exploratory and qualitative study, in the field of
juvenile delinquency, through which we sought to reflect on the social context of the
adolescent until arrival at the socio-educational internment, the experience of
internment of the adolescent in conflict with the law in a socio-educational unit in Rio
de Janeiro, as well as knowing your life goals after the internment. For this purpose, we
used the methods of participant observation and semi-structured interview, which
included the participation of 8 in-house teenagers in the General Department of Socio-
Educational Actions of the State of Rio de Janeiro (DEGASE). The interview was
divided according to 4 thematic groups, namely, A: knowing the adolescent, B:
internment experience, C: delinquent experience and D: future objectives, by which we
analyze the meaning that adolescents give to their experiences and, in turn, the ways in
which the broader social context conditions these meanings. The results obtained
confront the repressive and socio-educational aspects of the internment experience, as
well as demonstrate the power relationships, which are socially established and are
transported to the institution. The research opens the way for an understanding about the
conflicts experienced by adolescents, before and during internment, so that one can
reflect on the individual's exclusion mechanisms, aiming at the development of socio-
educational practices.
Keywords: teenager in conflict with the law; socio-education; socio-educational
measure; internment.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Alexandra
Leandro, pelos conhecimentos transmitidos, pelo excelente trabalho de orientação, por
toda a dedicação e pela paciência ao longo deste percurso, que sucedeu à distância. As
correções detalhadas, as instruções, indicações bibliográficas e sugestões foram
essenciais para a construção deste trabalho. Cada resposta por e-mail significou um
marco de força e encorajamento para continuar. Desde um dia após a aula, no qual
conversamos sobre sermos humanos e não máquinas, admiro a Profa. pela imensa
sensibilidade. Muito obrigada, a Profa. é uma referência, uma inspiração.
Às professoras e professores da Escola de Criminologia da FDUP, que
contribuíram tanto para a minha formação acadêmica e humana. Tive o privilégio de
assistir a aulas que me inspiraram, aguçaram o senso crítico, trouxeram novas
compreensões de mundo e, por vezes, até me emocionaram, pela qualidade dos
conhecimentos e pelas reflexões tão profundas no campo das humanidades.
À Escola de Gestão do DEGASE e aos profissionais da instituição de
internamento, por me terem recebido e concedido a oportunidade de realizar esta
pesquisa. Aos adolescentes participantes, muito obrigada pelas conversas, pela relação
de confiança, pela troca durante as entrevistas. Vocês me olharam nos olhos, confiaram-
me questões tão sensíveis, viram-me como igual, mesmo num contexto de sofrimento e
de saudade. Vocês me ensinaram muito.
À minha mãe, Maria do Rosário, por ser um exemplo de coragem, pelas suas
palavras de fé e de incentivo. Sua força é a minha força. Obrigada por estar sempre ao
meu lado, me apoiando com o seu amor em todas as etapas deste percurso. Ao meu pai,
Sebastião Bruno, por todo o suporte emocional e financeiro, pelas conversas que me
tranquilizaram, pelo cuidado, pela proteção e amorosidade em cada gesto. Somos
verdadeiros amigos. À minha irmã, Raquel Roxo. Sá, como é bom ter uma melhor
amiga e irmã. Nossa conexão não é deste mundo. Obrigada pela sua doçura, por ser
exatamente a menina espontânea, cheia de energia e de ideias que sempre foi. Seremos
sempre nós.
Aos amigos, em Portugal e no Brasil, que fizeram parte desta caminhada. Aos
mais antigos e aos que chegaram nos últimos 3 anos: eu amo compartilhar a minha vida
e tantas experiências incríveis com vocês, as “minhas” pessoas.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………..7
CAPÍTULO I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO: PERSPETIVAS SOBRE OS
EFEITOS DO ENCARCERAMENTO………………………………………………...10
1.1 Teoria da Associação Diferencial e Teoria da Aprendizagem Social (Differential
Association Theory & Social Learning Theory)……………………………………….12
1.2 Teoria da Tensão Geral e Teoria da Coerção (General Strain Theory & Coercion
Theory)…………………………………………………………………………………13
1.3 Teoria da Etiquetagem (Labeling Theory)……………………………………...17
CAPÍTULO II – A JUSTIÇA JUVENIL NO BRASIL………………………………..19
2.1 O dever ser: o Paradigma da Proteção Integral…………………………………19
2.2 O ato infracional e a responsabilidade penal do adolescente…………………...22
2.3 DEGASE: o sistema socioeducativo na cidade do Rio de Janeiro……………..25
CAPÍTULO III – DESENHO DA PESQUISA E PROCESSO METODOLÓGICO….28
3.1 Objetivos e questões de pesquisa……………………………………………….28
3.2 Abordagem e processo metodológicos…………………………………………30
3.2.1 Método de Observação Participante……………………………………………30
3.2.2 Método de Entrevista Semiestruturada…………………………………………31
3.2.3 Acesso ao terreno e desenvolvimento da recolha de dados…………………….33
3.2.4 Amostra………………………………………………………………………...34
3.2.5 Instrumentos de recolha de dados: grelha de observação e guião de entrevista.36
3.2.6 Procedimentos de análise dos dados: criação de um sistema de categorias…...38
CAPÍTULO IV – RESULTADOS……………………………………………………..41
4.1 Conhecendo o adolescente: contextos de vida antes do internamento…………41
4.2 A experiência de internamento segundo o olhar do adolescente……………….48
4.3 Experiência delinquencial………………………………………………………70
4.4 Objetivos futuros………………………………………………………………..84
CAPÍTULO V — DISCUSSÃO DOS RESULTADOS……………………………….89
CONCLUSÕES………………………………………………………………………...94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………96
ANEXOS……………………………………………………………………………...101
7
INTRODUÇÃO
“Muita gente o tinha odiado. E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria
quando o surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos
guardas. Se o levarem, o homem rirá de novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares,
mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas
não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri
com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os
braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.”
Jorge Amado, Capitães da Areia
A presente dissertação, elaborada no âmbito do Mestrado em Criminologia da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto, inscreve-se na temática de delinquência
juvenil, procurando analisar a experiência de privação de liberdade dos adolescentes que
cumprem medida socioeducativa de internamento na cidade do Rio de Janeiro, a sua
experiência social e as práticas delinquenciais, bem como os seus objetivos futuros,
após o internamento. A escolha deste objeto de pesquisa parte do interesse da
pesquisadora em compreender as circunstâncias que envolvem a delinquência juvenil no
Rio de Janeiro, considerando-se o cenário brasileiro de extrema desigualdade social, no
qual vigora uma política de criminalização das camadas mais pobres e mais vulneráveis
da sociedade. Este interesse tem início na graduação da pesquisadora, no curso de
direito da Universidade Federal Fluminense, a partir do estudo das disciplinas de
criminologia e de direito penal, pelas quais muito discutia-se, em sala de aula, os
processos de itensa seletividade do sistema de justiça, segundo a pobreza e segundo
características que conferem ao indivíduo o estereótipo de “criminoso”. Neste sentido, a
escolha do tema se justifica pela tentativa de compreender as relações que perpessam
pela delinquência juvenil, segundo o olhar dos adolescentes, que residem nas
comunidades pobres da cidade, sendo estes os principais alvos do sistema de justiça.
Para tanto, apresentamos, no primeiro capítulo, as teorias criminológicas
relativas aos efeitos do encarceramento, com base nas quais buscámos refletir sobre os
possíveis desdobramentos da privação de liberdade e do contacto com o sistema de
justiça sobre os indivíduos. Neste sentido, abordamos duas principais vertentes
criminológicas, quais sejam, aquela que entende o encarceramento como forma de
8
dissuasão e, em seguida, as teorias que procuram pensar o encarceramento como uma
experiência criminógena.
No segundo capítulo, apresentamos o tratamento jurídico que é conferido ao
adolescente pela legislação especial brasileira, com o intuito de fornecer uma melhor
compreensão acerca do funcionamento do sistema socioeducativo e do discurso
normativo, no qual se fundamenta a implementação da medida de internamento. Apesar
de se tratar de uma medida privativa de liberdade, a resposta punitiva voltada para os
adolescentes se dá no âmbito de um sistema próprio e envolve aspetos pedagógicos
previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diferindo da pena destinada
aos adultos.
No terceiro capítulo, tratamos da metodologia escolhida para a realização dos
objetivos desta pesquisa, que contou com os métodos da observação participante e da
entrevista semiestruturada. Através da observação participante, foi possível acessar o
ambiente de internamento, e compreender o quotidiano de atividades e as relações que
se estabelecem na unidade onde sucedeu a investigação. À medida que íamos
desenvolvendo uma melhor percepção acerca da rotina institucional, realizámos as
entrevistas com oito adolescentes. A elaboração do guião de entrevista se deu a partir
dos aspetos apresentados pelas teorias, somando-se a isto as particularidades que se
verificaram no internamento socioeducativo durante a observação. As entrevistas
constituíram-se como longas conversas, pelas quais conhecemos a perspetiva e a
realidade social dos adolescentes, quanto à trajetória nas práticas delinquenciais e
quanto à experiência de internamento, para além de suas expectativas para o futuro,
após a privação de liberdade.
No quarto capítulo, organizamos os dados desta investigação, conforme quatro
grupos temáticos, a saber, A - conhecendo o adolescente, B - experiência de
internamento, C - experiência infracional e D - objetivos futuros, dos quais constam as
categorias extraídas das entrevistas. Assim, realizamos um procedimento de análise
temática, sendo este um método contextualista, que nos permitiu compreender as
maneiras pelas quais os adolescentes dão sentido às suas experiências e, por seu turno,
as maneiras pelas quais o contexto social mais amplo condiciona tais significados
(Braun & Clarke, 2006).
No quinto capítulo, passámos à discussão dos resultados, relacionando e
comparando os aspetos verificados a partir dos dados, e cruzando com as
9
concetualizações teóricas. As análises realizadas neste estudo nos conduzem a refletir
sobre a condição de vulnerabilidade dos adolescentes em conflito com a lei, os conflitos
sociais e individuais que perpassam pela prática delinquencial destes jovens, até a
chegada ao internamento, relativamente ao qual, também, identificamos relações de
tensão, bem como contradições entre as iniciativas socioeducativas e as estratégias
coercitivas que se reúnem nesta experiência.
Por fim, espera-se, com este trabalho, contribuir para uma melhor compreensão
acerca da realidade no Rio de Janeiro e das relações de conflito social no seu entorno,
com vistas a reconhecer possíveis aspetos criminógenos e, possivelmente, pensar sobre
novas formas de intervenção social, em favor daqueles mais vulneráveis. Relativamente
à experiência de internamento, esperamos que, com os relatos dos adolescentes,
destinatários da medida, possamos contribuir para o fortalecimento das práticas
socioeducativas e, por conseguinte, para a erradicação de aspetos repressivos,
degradantes da pessoa humana, que ainda vigoram no contexto institucional. Sobretudo,
esperamos trazer à luz as complexidades das relações de poder que interferem e violam
o desenvolvimento de uma juventude autónoma nas comunidades mais pobres, poder
este que “sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do
outro; (que) não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”
(Foucault, 1979, p. 75).
10
CAPÍTULO I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO: PERSPETIVAS SOBRE OS
EFEITOS DO ENCARCERAMENTO
Neste capítulo, trabalharemos com as teorias criminológicas relativas aos efeitos
do encarceramento, com vista a enquadrar o nosso questionamento em torno das
experiências dos adolescentes em conflito com a lei, que cumprem medida de
internamento no Brasil. As teorias consultadas permitem perceber que existe uma
questão à qual diferentes investigadores têm procurado responder: O encarceramento
funciona como forma de dissuasão e prevenção da reincidência ou como experiência
criminógena?
A primeira perspetiva acerca dos efeitos do encarceramento – o encarceramento
como forma de dissuasão – baseia-se no pensamento da Escola Clássica de
Criminologia, segundo o qual os indivíduos buscam situações que lhes proporcionam
prazer e utilidade, ao passo que evitam a dor e o desprazer (Beccaria, [1775], 1983, cit.
em Jonson, 2013, p. 675). Argumenta-se, deste modo, que o delito é resultado de uma
decisão racional, pela qual o indivíduo calcula os custos e os benefícios associados ao
comportamento delinquente (Jonson, 2013). De acordo com esta teoria, a prisão não é
concebida como uma experiência social vivenciada pelos encarcerados, mas reduzida à
ideia de fator, de custo, a ser ponderado pelo indivíduo, diante da escolha racional do
comportamento delinquente. Assim, se a dor ou o custo associados ao cometimento do
delito forem calculados como sendo mais severos do que o prazer ou os benefícios que
dele decorrem, o indivíduo será dissuadido de realizar esse comportamento (Jonson,
2013, p. 675). A prisão resultaria, portanto, na diminuição do comportamento
delinquente.
Becker (1995) filia-se a este pensamento e afirma que o indivíduo escolhe o
delito racionalmente, tendo em conta os custos e os benefícios éticos, físicos e
económicos (Becker, 1995, p. 5). Neste sentido, para este autor, a certeza da punição é
um custo a ser ponderado e um fator dissuasivo do comportamento delinquente e da
reincidência. No que diz respeito aos adolescentes, Becker (1995) compreende que o
aumento deste comportamento pode estar associado aos baixos ganhos económicos, ou
seja, à carência de recursos e à falta de oportunidades nas camadas mais pobres da
sociedade. Além disso, o custo da punição pelo delito é visto pelos adolescentes como
11
uma consequência futura e longínqua, motivo pelo qual a possibilidade de punição não
surte efeitos tão dissuasivos entre os jovens (Becker, 1995, p. 5).
A política criminal baseada na ideia de dissuasão implica um processo de
endurecimento da punição, que deverá ser severa o suficiente para que o indivíduo seja
desencorajado a cometer um delito em função do custo a sofrer. Isto é, políticas públicas
pautadas pela dissuasão especial procuram maximizar o custo do ato infracional, através
do aumento do uso da prisão como resposta punitiva e do prolongamento do tempo de
pena (Jonson, 2013, p. 675). Entretanto, este movimento de endurecimento, que
fundamentou a política criminal nos Estados Unidos e em outros países nos últimos 40
anos, não encontrou base empírica para demonstrar que as penas de prisão, sejam elas
em condições mais severas ou duradouras, produzem o efeito de dissuasão do
comportamento delinquente (Clear Rose, Waring & Scully, 2003; Garland 2013;
Cullen & Jonson, 2012).
Ao analisar estudos empíricos sobre o possível efeito dissuasivo do
encarceramento, Jonson (2013) aponta que a prisão não possui a habilidade de dissuadir
o indivíduo quanto à prática de delitos, e que, inversamente, o encarceramento está
associado ao aumento da reincidência, quando comparado às penas não prisionais. Um
estudo publicado por Jonson, em 2010, indica que as penas prisionais mais longas não
produzem efeitos dissuasivos na reincidência e que as penas prisionais em condições
mais severas estão, na realidade, associadas ao aumento do comportamento delinquente
após o emprisionamento (Jonson, 2013, p. 681).
A linha teórica que reflete sobre o encarceramento como experiência
criminógena filia-se na ideia de que a prisão altera substancialmente as relações sociais
do indivíduo ao inseri-lo num ambiente institucionalizado, na medida em que expõe o
indivíduo a uma série de fatores criminógenos, que levam ao aumento do
comportamento delinquente, tais como subculturas opositivas, associação com outros
ofensores, e a perda dos laços familiares, sociais, de trabalho ou quaisquer outros
pertencentes à vida civil. Há que considerar, ainda, o facto de que, ao sair da prisão, o
indivíduo encontrará dificuldades de reinserção social, em razão do estigma de
criminoso, que cria mais um obstáculo para a obtenção de emprego e para a construção
de novas relações em sociedade (Jonson, 2013).
O efeito danoso da experiência prisional é, deste modo, discutido pelos teóricos
da criminologia mediante a análise de diferentes fatores de risco aos quais o indivíduo é
12
exposto durante o encarceramento. Apresentaremos, de seguida, as principais teorias
que entendem a prisão como uma experiência criminógena, e, portanto, capaz de
aumentar o caminho para a delinquência quando o indivíduo é posto em liberdade.
1.1 Teoria da Associação Diferencial e Teoria da Aprendizagem Social
(Differential Association Theory & Social Learning Theory)
As teorias da Associação Diferencial, desenvolvida por Sutherland, e da
Aprendizagem Social (Akers, 1977) fundamentam-se na ideia de que o comportamento
delinquente é resultado de um processo de aprendizagem, que decorre das relações
sociais, tal como qualquer outro comportamento.
De acordo com a Teoria da Associação Diferencial, os indivíduos que convivem
com pessoas mais favoráveis ao comportamento delinquente terão maiores
probabilidades de desenvolver atitudes igualmente mais favoráveis à delinquência. O
processo de aprendizagem não ocorre apenas em relação às habilidades consideradas
necessárias ao cometimento de uma ofensa, mas, principalmente, com a incorporação de
atitudes e valores morais que validam o comportamento desviante.
Sob o mesmo raciocínio, Akers, Krohn, Lanza-Kaduce & Radosevich (1979)
desenvolvem a Teoria da Aprendizagem Social, segundo a qual o comportamento social
é adquirido por condicionamento direto, por imitação ou modelagem do comportamento
de outros. Para Akers et. al (1979), o indivíduo aprende a classificar como certo ou
errado um determinado comportamento, através da interação com grupos significativos
na sua vida, e com base em normas e atitudes. Além disso, na conceção destes autores, o
comportamento é fortalecido pela recompensa — reforço positivo — e pelo evitar da
punição — reforço negativo —, ou enfraquecido por estímulos aversivos — punição
positiva — e pela perda de recompensa — punição negativa. Este processo é
denominado por Akers et. al (1979) como “reforço diferencial”. Para estes autores, a
permanência de um comportamento na vida do indivíduo depende, desta forma, das
recompensas e punições que lhe estão associadas, além das recompensas e punições
associadas ao comportamento considerado como alternativo. Assim, quantas mais
pessoas definirem um comportamento como positivo — definição positiva — ou
justificado — definição neutralizante —, maior a probabilidade de se envolverem neste
comportamento (Akers et al., 1979, p. 638).
13
Os principais efeitos sobre o comportamento decorrem, de facto, das interações
sociais com certos grupos, que controlam as principais fontes de reforço e punição na
vida do indivíduo, expondo-o a determinados modelos comportamentais. Tais grupos
são, principalmente, os amigos e a família, bem como a escola, a comunidade religiosa e
outras fontes de autoridade. A escolha do comportamento, seja ele desviante ou
conforme, resulta de um equilíbrio entre os reforços positivos, neutralizantes e
negativos, por meio das relações sociais (Akers et. al, 1979, p. 638).
A partir das teorias da Associação Diferencial e da Aprendizagem Social alguns
autores procuraram perceber em que medida o ambiente prisional é propício para a
aprendizagem e reforço do comportamento criminoso, em função das interações sociais
que se estabelecem entre os indivíduos encarcerados. A prisão seria, portanto, uma
instituição onde tendências, valores e comportamentos são aprendidos, fortalecidos e
solidificados pelo processo de aprendizagem, conduzindo o indivíduo à manutenção do
comportamento antissocial após a liberdade (Bayer, Hjalmarsson & Pozen, 2009).
1.2 Teoria da Tensão Geral e Teoria da Coerção (General Strain Theory &
Coercion Theory)
O efeito criminógeno da prisão também é delineado pela General Strain Theory
(Agnew, 1992) e pela Coertion Theory (Colvin, Cullen & Ven, 2002). Agnew (1992)
desenvolve a General Strain Theory, a partir do modelo da anomia de Merton (1938),
segundo o qual o comportamento desviante resulta de uma desproporção entre os
objetivos de bem-estar e de capacidade económica, e as possibilidades que o indivíduo
possui de alcançar tais fins, conforme a sua posição na estrutura social. Para Merton
(1938), numa perspetiva macro, o comportamento desviante advém de uma crise
estrutural entre os fins culturais e os meios institucionais.
Agnew (1992) amplia esta teorização ao focalizar no indivíduo e no seu
ambiente social imediato, propondo uma análise da delinquência pautada pelas relações
negativas, nas quais o indivíduo não é tratado do modo como gostaria, e que, em larga
medida, o impedem de alcançar positivamente os seus objetivos (Agnew, 1992, p. 48-
49). Assim, segundo este autor, existem tensões nas relações com o meio social, que
podem ocorrer quando outras pessoas (i) impedem que o indivíduo alcance objetivos
positivamente valorizados, (ii) removem ou ameaçam remover estímulos positivamente
14
valorizados que o indivíduo possua ou (iii) apresentam ou ameaçam apresentar ao
indivíduo estímulos nocivos ou negativamente valorados (Agnew, 1992, p. 50). Esta
tipologia consiste numa síntese de categorias ideais que visam abarcar, empiricamente,
todos os eventos sociais aptos a produzir a tensão (“strain”) na vida do indivíduo. Cada
espécie de tensão faz com que o indivíduo experimente um estado de emoções
negativas, que pode ser caracterizado por frustração, depressão, medo, mas,
principalmente, pelo sentimento de raiva. Em síntese, a experiência de frustração e raiva
gerada por contínuas relações sociais negativas faz com que o indivíduo se sinta
injustiçado, podendo aumentar a tendência para o comportamento agressivo e
delinquente (Agnew, 1992, p. 61).
Por seu turno, Colvin, Cullen & Ven (2002) desenvolvem a Teoria da Coerção,
analisando os efeitos da coerção e do suporte social sobre o indivíduo. Os autores
relacionam a teorização de Agnew, em torno dos estímulos nocivos das relações sociais
negativas, com as instâncias que podem ser caracterizadas como coercitivas. Colvin et
al. apontam algumas situações geradoras de tensão e também de coerção, a saber,
adolescentes “colocados em situações aversivas, das quais eles não podem escapar
legalmente” e “rejeição parental, disciplina injusta ou inconsistente, conflito parental,
experiências escolares adversas ou negativas e relações insatisfatórias com os pares”
(Colvin et al., 2002, p. 21-22).
Para Colvin et. al (2002), as relações interpessoais coercitivas constituem-se
como forças que podem ser particularmente negativas sobre a vida dos indivíduos, pois
são relações capazes de gerar um forte sentimento de raiva, principalmente quando o
tratamento de coerção é considerado injusto ou arbitrário. Em vez de produzir
conformidade, o tratamento coercitivo pode criar maiores possibilidades de desafio à
autoridade (Sherman, 1993).
Colvin et al. (2002) teorizam que a coerção possui duas dimensões: a coerção
poderá ser (i) errática, relativamente ao peso da força coercitiva exercida, desde nula a
muito forte, ou, ainda, (ii) consistente, de acordo com a frequência com que é aplicada e
experimentada. Estas duas dimensões são fundamentais para a compreensão dos efeitos
sociais e psicológicos gerados pela relação de coerção. Uma prática errática de coerção
ensina aos indivíduos que não é possível controlar as consequências das suas ações,
porque os estímulos negativos parecem ocorrer arbitrariamente, de uma forma ou de
outra, e não como resultados previsíveis do seu comportamento (Colvin et al., 2002, p.
15
22). A resposta coercitiva errática, desproporcional, deixa de ser justificável como
consequência da ação perpetrada pelo indivíduo, produzindo sobre ele um sentimento de
raiva e de injustiça, perante o agente que atua coercitivamente.
Outro aspeto relevante da teorização de Colvin et al. é que a experiência
negativa de coerção, nas relações interpessoais e impessoais, pode afastar o indivíduo
das possibilidades de suporte social. A coerção interpessoal surge nas relações entre os
indivíduos, e envolve, por exemplo, o uso de ameaça, força física e intimidação para
criar conformidade. Já a coerção impessoal é caracterizada pelas pressões exercidas
pelas estruturas sociais, tais como a pobreza ou o desemprego, por exemplo (Colvin et
al., 2002, p. 23). Por outro lado, a ideia de suporte social tem por base os trabalhos da
Escola de Chicago, que demonstraram que redes organizadas de relações sociais podem
atender as pessoas nas suas necessidades expressivas e instrumentais e, desse modo,
prevenir o envolvimento em atividades ilícitas (Colvin et al., 2002, p. 24).
Este tema é desenvolvido por Cullen (1994, 1999), que define o suporte social
como sendo qualquer espécie de provisão de recursos, sejam estes afetivos ou materiais.
É o processo de transmissão de capital social, material, cultural e humano, que pode
ocorrer em vários níveis da vida em sociedade, desde os relacionamentos imediatos,
como a família e os amigos, até às relações formais — escolas, local de trabalho,
agências governamentais, entre outros —, envolvendo redes amplas, como bairros,
comunidades e nações (Cullen, 1999, p. 190). Assim, para Cullen, o suporte social,
tanto no que se refere às relações pessoais quanto às unidades macrossociais, reduz o
impacto das tensões e fornece recursos aos indivíduos para que possam lidar com as
adversidades através de meios não criminais. Além disso, o suporte social cria contextos
nos quais laços fortes e duradouros em sociedade podem emergir, já que a relação de
assistência exige a confiança mútua entre os indivíduos (Cullen, 1994, p. 541).
Cabe ressaltar, contudo, que o suporte social pode vir, não apenas de fontes
cumpridoras da lei, cuja assistência promove conformidade, mas, também, de fontes
ilegítimas, que fomentam o comportamento criminoso e podem encorajar a participação
persistente e organizada em práticas delinquenciais (Colvin et al., 2002). Quando não há
suporte social legítimo, os indivíduos podem buscar apoio nas redes ilícitas, obtendo
auxílio para o desenvolvimento de habilidades, conexões, modelos, status social e
sensação de pertencimento voltados para a prática delinquencial (Colvin et al., 2002, p.
25).
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Conforme teorizam Colvin et al., coerção e suporte social são variáveis distintas,
que costumam estar inversamente relacionadas com o comportamento delinquente; o
suporte social pode reduzir a experiência de coerção, enquanto que a coerção pode
minar o suporte social. De modo geral, o suporte social de fontes legítimas tende a ter
um efeito oposto à delinquência, enquanto que a coerção promove (Colvin et al., 2002,
p. 26). Neste sentido, os autores propõem uma política voltada para o reforço das fontes
legítimas de suporte social, com programas de prevenção da delinquência e de
reabilitação dos ofensores, bem como para a redução da abordagem excessivamente
coercitiva no sistema de justiça (Colvin et al., 2002, p. 33-34).
Unnever, Colvin & Cullen (2004) testaram empiricamente a Teoria da Coerção,
proposta por Colvin et al. (2002), para averiguar se os efeitos sociopsicológicos do
ambiente coercitivo sobre os indivíduos aumentam a probabilidade do envolvimento em
comportamentos delinquentes. O estudo contou com uma amostra de 2472 estudantes
do ensino fundamental e partiu da seguinte premissa: quanto mais prolongada a
experiência do jovem com o ambiente coercitivo, maior a probabilidade de
envolvimento em práticas delinquenciais. Foram analisados diferentes contextos sociais
que produzem relações coercitivas, a saber, o contexto dos pais, dos amigos, da escola e
da vizinhança, para medir déficits considerados sociopsicológicos associados à ideação
coercitiva. Os resultados do estudo dão suporte à teoria proposta por Colvin et al.
(2002), no sentido de que diferentes tipos de experiências coercitivas estão
positivamente relacionados com o comportamento delinquente e que os efeitos da
coerção são mediados, pelo menos em parte, por déficits sociopsicológicos (Unnever,
Colvin & Cullen, 2004, p. 256-261).
Embora a análise da prisão, como experiência coercitiva, não tenha sido
realizada no referido estudo, esta discussão é relevante para a presente dissertação. A
prisão expõe os reclusos a um ambiente stressante, onde se desenvolvem relações de
tensão e coerção que, tal como demonstrado por Agnew (1992) e Colvin et al. (2002),
proporcionam emoções negativas e favorecem a associação do indivíduo a trajetórias
delinquentes. Mais do que isso, a prisão retira os indivíduos do convívio social e
comunitário, para inseri-los, por vezes, por longos períodos, num local de controlo
autoritário, onde experiências de violência, vitimação e apagamento da individualidade
são comuns (Jonson, 2013). O encarceramento também interrompe o estabelecimento de
17
laços positivos em sociedade, capazes de proporcionar ao indivíduo o suporte social
necessário para uma vida normativa.
1.3 Teoria da Etiquetagem (Labeling Theory)
A Teoria da Etiquetagem apresenta uma outra abordagem acerca do efeito
criminógeno do aprisionamento. De acordo com esta teoria, a intervenção do sistema de
justiça sobre o indivíduo pode resultar num processo de internalização da identidade de
criminoso e provocar o aumento do comportamento delinquente, principalmente quando
esta intervenção se dá de modo estigmatizante (Jonson, 2013, p. 678), causando impacto
sobre o status social do indivíduo e motivando a construção de um padrão estável do
comportamento ilícito (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1288).
Segundo Klein (1986), a Teoria da Etiquetagem sugere que a perpetuação do
comportamento delinquente depende significativamente da reação social. É a reação
social, perante determinadas condutas criminais, que identifica e sanciona tais condutas,
num processo no qual o indivíduo é conduzido a experimentar uma série de eventos,
percepções e identificações associados ao ato, que estimulam ainda mais o vínculo ao
rótulo de delinquente. Trata-se de um processo cíclico, onde o indivíduo desenvolve
uma visão sobre si mesmo como criminoso e passa a agir conforme a identidade que lhe
é atribuída pelos outros (Klein, 1986, 48-49).
Bernburg & Krohn (2003) abordam a etiquetagem segundo a perspetiva voltada
para os aspetos materiais da estrutura social. Nesta vertente, o desvio estabiliza-se
através da exclusão social de certos grupos mais vulneráveis, que não conseguem aceder
a determinados recursos e oportunidades convencionais. O estigma criado pelo rótulo de
delinquente isola o indivíduo e funciona como um bloqueio às atividades e
relacionamentos pró-sociais. O aprisionamento pode comprometer as oportunidades
educacionais, que, por sua vez, moldam as oportunidades de emprego na vida adulta.
Igualmente, o rótulo de delinquente impede a obtenção de emprego, já que
empregadores podem evitar a contratação de pessoas cujo comportamento desviante é
conhecido, além de que a própria pessoa pode temer ser rejeitada nos meios sociais
convencionais, o que inclui o receio de se candidatar a um emprego. Os resultados deste
estudo sugerem uma relação entre a intervenção oficial durante a adolescência e o
envolvimento delinquencial até ao início da idade adulta, quando os indivíduos já se
18
encontram consideravelmente afetados por oportunidades de vida bloqueadas. Com o
tempo, a marginalização, causada pelo estigma do rótulo de desviante, aumenta as
possibilidades de envolvimento em atividades delinquentes de maneira ainda mais
estável (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1290).
Estes autores ressaltam, ainda, dois aspetos teóricos relevantes para estudos
futuros sobre o processo de etiquetagem na perspetiva estrutural. Sugerem que a
localização do indivíduo numa posição mais elevada na estrutura social é capaz de
fornecer os recursos e o comprometimento necessários às atividades convencionais,
podendo o indivíduo resistir à rotulagem desviante quando confrontado com a
intervenção oficial (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1290). Além disso, o rótulo de
desviante pode ser mais facilmente desencadeado quando jovens empobrecidos e
afrodescendentes são alvo da intervenção da polícia e do sistema de justiça juvenil, uma
vez que estes grupos, e os indivíduos que os integram, já estão associados a estereótipos
negativos na cultura dominante (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1314).
A Teoria da Etiquetagem permite-nos avaliar se a intervenção oficial do sistema
de justiça socioeducativo reforça o rótulo de delinquente na identidade do adolescente.
Ao experimentar o contacto com o internamento, ou mesmo com outros atos
procedimentais da justiça juvenil (encaminhamento à delegacia, audiência e
interrogatório, por exemplo), o adolescente poderá visualizar-se sob a ótica do
tratamento que lhe é conferido institucionalmente, isto é, de criminoso. Conforme
observado na teorização de Bernburg & Krohn (2003), o estigma da delinquência pode
recair sobre o adolescente antes mesmo do contacto com o sistema de justiça, em função
de suas características pessoais, étnicas ou de status social e, neste sentido, a
intervenção oficial pode atuar como um reforço do rótulo pré-existente.
Por último, uma controvérsia importante para o presente trabalho é pontuada por
Klein (1986) e reside no facto de que, mesmo quando a abordagem do sistema de justiça
é mais terapêutica do que punitiva, a intervenção oficial pode oferecer um conjunto
alternativo de rótulos relacionados com deficiências psicológicas e pessoais. Klein
questiona se o encaminhamento de adolescentes para as agências de aconselhamento,
nos EUA, contribui para a rotulagem de delinquência ou, simplesmente, para a ideia de
que o jovem “precisa de terapia” (Klein, 1986, p. 50).
19
CAPÍTULO II – A JUSTIÇA JUVENIL NO BRASIL
Neste capítulo, abordaremos como o sistema jurídico brasileiro determina,
através das leis e da doutrina, o tratamento que deve ser conferido pelo Estado ao
adolescente, bem como os princípios e perspetivas do discurso que fundamenta o
modelo socioeducativo atual, com vista a melhor enquadrar o objeto da pesquisa.
2.1 O dever ser: o Paradigma da Proteção Integral
O tratamento dado à criança e ao adolescente no Brasil é regulado pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/1990) e pela Lei 12.594/2012, conhecida como lei do SINASE1.
Em seu artigo 227, a Constituição estabelece o princípio da proteção integral, segundo o
qual é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, bem como protegê-los de toda a forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão2.
O princípio da proteção integral norteia o ordenamento jurídico brasileiro,
reconhecendo crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, em fase de
desenvolvimento, cuja proteção deve ser maximizada com absoluta prioridade em
relação aos adultos (Nucci, 2014). Do mesmo modo, decorre do artigo 227 da
Constituição o princípio do melhor interesse ou da absoluta prioridade da criança e do
adolescente, que determina que o Estado, em todas as esferas de poder, deve priorizar o
amparo dos mais jovens, que são naturalmente mais frágeis e desprotegidos,
privilegiando-os no atendimento, na alocação de recursos e na elaboração de políticas
públicas.
O paradigma da proteção integral surge no ordenamento jurídico interno em
conformidade com os direitos humanos, como manifestação da própria dignidade
humana, que é o princípio base do Estado Democrático de Direito brasileiro (Sposato,
1 A Lei 12.594 de 2012 institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e
regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem ato
infracional (Lei 12.594, 2012, artigo 1º). 2 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 227.
20
2013). A introdução de um novo direito da criança e do adolescente no Brasil
acompanhou um movimento, no plano internacional, de valorização dos direitos
humanos, sob o qual foram inaugurados novos instrumentos de proteção das liberdades
jus-fundamentais, para conferir maior proteção às pessoas e grupos mais vulneráveis
(Queiroz, 2013).
Neste processo de mudança de paradigma, a ONU adotou, em 1959, a
Declaração dos Direitos da Criança, e, posteriormente, em 1989, a Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, estabelecendo igualdade jurídica entre
todas as crianças e adolescentes, que, a partir deste instrumento, passaram a ter os seus
direitos fundamentais reconhecidos, independentemente da posição social que ocupam.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 reiterou
orientações da declaração internacional anterior e inovou, ao apresentar mecanismos de
efetivação da cidadania infanto-juvenil, consolidando um corpo de diplomas legislativos
internacionais3, que, articulados, constituem a “Doutrina das Nações Unidas de Proteção
Integral da Infância” (Sposato, 2013).
O Brasil adequou a legislação nacional aos referidos tratados internacionais,
elegendo os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança como base
do tratamento jurídico instituído a todas as pessoas menores de 18 anos de idade,
conforme a previsão expressa do artigo 227 da Constituição.
No âmbito nacional, a incorporação do paradigma da proteção integral está
associada ao processo de redemocratização do Brasil, que culminou na promulgação da
Constituição de 1988. Com participação intensa da sociedade civil, a Constituição
democrática foi elaborada segundo preceitos garantistas acerca da responsabilização
penal dos menores de idade, a fim de zelar pelas garantias fundamentais nos
procedimentos e execuções de medidas judiciais ou administrativas. A Constituição
brasileira de 1988 seguiu o modelo dirigista de Constituição-social4, voltado para o
3 A “Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral da Infância” é composta pela Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), pelas Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes das Nações Unidas
para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riard) (Sposato, 2013). 4 O constitucionalismo social é um movimento no direito constitucional que propõe a valorização de
direitos ligados à promoção de igualdade material e, por conseguinte, a ampliação das tarefas a serem
desempenhadas pelo Estado nos planos económico e social. A noção de dirigismo constitucional, ou de
Constituição dirigente, reafirma esta tendência, com a “pretensão de impor ao legislador e ao
administrador certos deveres de atuação positiva, com a consequente redução do campo reservado à
deliberação política majoritária” (Barroso, 2011, p. 107-108).
21
bem-estar da sociedade, que estabelece obrigações positivas, no sentido de reduzir as
desigualdades materiais presentes, historicamente, na sociedade brasileira (Sposato,
2013).
Segundo Sposato (2013), a Constituição de 1988 possibilitou a elevação dos
direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes ao patamar constitucional,
exigindo a adequação da legislação infraconstitucional à própria Constituição e aos
tratados internacionais de direitos humanos. Sob este compromisso com a reformulação
de suas normas, o Brasil instrumentalizou a proteção integral ao implementar o Estatuto
da Criança e do Adolescente em 1990 (Lei 8.069, 1990), regulamentando os direitos das
crianças e dos adolescentes em prol do melhor interesse e desenvolvimento da pessoa
em fase de formação.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge em substituição do antigo
Código de Menores de 1979, que, por seu turno, propunha o modelo da “situação
irregular”, baseado no binómio carência-delinquência, onde as crianças e os
adolescentes abandonados, vítimas de violência familiar, privados de saúde e de
educação ou que cometiam atos ilícitos eram vistos como objeto de tutela do Estado e
não necessariamente como sujeitos de direitos (Zapata, Frasseto e Gomes, 2016, p. 18-
19). Isto significava que o Estado devia proteger os menores de idade, ainda que, para
tanto, fosse necessário suprimir as suas garantias individuais (Amin, 2010, p. 6, cit. em
Zapata, Frasseto e Gomes, 2016). Com a sistemática da proteção integral proposta pelo
ECA, a responsabilidade pela situação irregular passou a recair sobre os pais ou outros
responsáveis legais, caso não cumpram os deveres educativos decorrentes, e sobre o
Estado, quando este não oferece políticas públicas capazes de materializar os direitos
infanto-juvenis garantidos na Constituição (Sposato, 2013).
O antigo código pautava-se pela vigilância, e tolerava a supressão de direitos
fundamentais em nome da tutela da menoridade (Zapata, Frasseto e Gomes, 2016). A
constitucionalização do direito da criança e do adolescente permitiu que as garantias
processuais e os princípios constitucionais5, voltados para a proteção da liberdade
5 São exemplos os incisos III, XXXIX, LIV, LV e LVII do artigo 5º da Constituição de 1988: “III -
ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XXXIX - não há crime
sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; LIV - ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes; LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LVII -
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
22
individual, fossem transportados para as ações direcionadas à infância e juventude,
impondo limites legais ao poder punitivo do Estado sobre adolescentes autores de
infração penal (Sposato, 2013). O próprio termo “menor” passou a ser objeto de
resistência no novo modelo da proteção integral, em função da sua carga estigmatizante
e depreciativa, a remeter para a ideia de criminalização da infância pobre (Nucci, 2014;
Sposato, 2013; Amin, 2010, cit. em Zapata, Frasseto e Gomes, 2016). A substituição,
em 1990, do Código de Menores de 1979, pelo ECA, representou, deste modo, uma
revolução paradigmática no plano jurídico, que alterou a Justiça da Infância e
Juventude, a começar pela superação da ideia de menoridade como subcategoria da
cidadania (Sposato, 2013).
A proteção integral deve ser, deste modo, entendida como a doutrina jurídica
base do modelo de justiça destinado à criança e ao adolescente, com o objetivo máximo
de resguardar as suas necessidades específicas, que decorrem da condição peculiar de
pessoa em fase de desenvolvimento.
2.2 O ato infracional e a responsabilidade penal do adolescente
O modelo proposto pelo ECA trouxe repercussões normativas significativas no
tocante à responsabilização penal, a começar pela regra do artigo 2º, que classifica como
criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18
anos de idade (Lei 8.069, 1990, artigo 2º), delimitando os efeitos da responsabilidade
penal juvenil, já que os menores de 18 anos de idade são inimputáveis perante a lei
penal (Lei 8.069, 1990, artigo 104; Decreto-Lei 2.848, 1940, artigo 27) e as crianças,
menores de 12 anos, são absolutamente isentas de responsabilidade.
A prática de ato infracional é regulada pelos artigos 103 e seguintes do ECA e a
sua definição corresponde à tipificação penal comum, destinada aos adultos. Nos termos
do artigo 103, considera-se ato infracional qualquer conduta descrita como crime ou
contravenção penal, quando praticada por menores de 18 anos de idade (Lei 8.069,
1990, artigo 103). Segundo Sposato (2013, p. 62), o ECA filia-se ao modelo da
responsabilidade para os adolescentes, a partir do pressuposto de que possuem
capacidade valorativa para discernir o que é ilícito ou não, e, portanto, devem responder
por seus atos na medida da sua culpabilidade (dolo e culpa). Isto é, enquanto às crianças
se destinam apenas medidas de proteção, já que não possuem maturidade suficiente para
23
discernir os seus próprios atos, aos adolescentes será possível aplicar, outrossim,
medidas de socioeducação, pois entende-se que o adolescente possui responsabilidade
individual sobre as suas ações. Assim, a inimputabilidade penal etária dos adolescentes
não afasta a atribuição da autoria de atos infracionais e a consequente responsabilização
por meio das medidas socioeducativas, mas implica um Modelo de Responsabilidade
especial dos adolescentes com base na legislação específica, o ECA (Sposato, 2015, p.
7).
Diante do cometimento de um ato infracional, o Estado poderá responder à
conduta com a aplicação de medidas protetivas ou de medidas socioeducativas.
Independentemente da natureza do ato infracional, às crianças admite-se apenas a
aplicação de medidas protetivas, previstas no rol do artigo 101 do ECA, em razão de
não possuírem maturidade mental e emocional suficientes para discernir os próprios
atos6. As medidas protetivas7 (Lei 8.069, 1990, artigo 101), deverão ser aplicadas
quando houver violação dos direitos da criança e do adolescente, por parte do Estado, da
sociedade, da família, ou, igualmente, em função de sua própria conduta (Lei 8.069,
1990, artigo 98). A implementação da medida protetiva pretende romper com a
sistemática anterior da “situação irregular”. Isto significa que as situações de risco
pessoal ou social não recaem mais sobre a pessoa da criança ou do adolescente, mas sim
sobre a família e as autoridades públicas no cumprimento das suas obrigações.
Já no que se refere aos adolescentes, o entendimento acerca da responsabilização
pelo ato infracional é diverso, dado que, para além do rol de medidas protetivas, estes
estão sujeitos às medidas socioeducativas, elencadas no artigo 112 do ECA, a saber,
advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade
assistida, inserção em regime de semiliberdade e internamento em estabelecimento
educacional (Lei 8.069, 1990, artigo 112).
6 Este entendimento filia-se às Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da
Infância e da Juventude (Regras de Beijing). Ao tratar da responsabilidade penal, o protocolo orienta que:
“Nos sistemas jurídicos que reconheçam o conceito de responsabilidade penal para jovens, seu começo
não deverá fixar-se numa idade demasiado precoce, levando-se em conta as circunstâncias que
acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual” (UNICEF, 2012). 7 Art. 101 da Lei 8.069 de 1990: Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade
competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou
responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão
em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e
do adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar
ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a
alcoólatras e toxicómanos; VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento
familiar; IX - colocação em família substituta.
24
As medidas socioeducativas diferenciam-se das demais medidas devido ao seu
caráter sancionatório, cuja condição de existência deriva da prática anterior de uma
conduta definida como ato infracional. Conforme define Sposato (2013), as medidas
socioeducativas possuem natureza penal e representam o exercício do poder coercitivo
do Estado sobre os adolescentes, originando, necessariamente, uma restrição de direitos
ou liberdades (Sposato, 2013, p. 66).
Tal como as penas destinadas aos adultos, as medidas socioeducativas baseiam-
se na ideia de dissuasão da prática de novos atos infracionais. Contudo, ao contrário das
penas, e no que respeita ao princípio da condição peculiar da pessoa em
desenvolvimento, as medidas socioeducativas possuem um aspeto educativo e
pedagógico, com o objetivo de atender às necessidades pessoais, familiares e
comunitárias de cada adolescente. Este propósito deve ser alcançado pelo Estado por
meio de programas socioeducativos, pautados por um conjunto de serviços e políticas
sociais, que devem oferecer ao adolescente alternativas de reinserção social, afastando-o
da possibilidade de reincidência (Sposato, 2013).
Considerando-se este viés pedagógico, as medidas de internamento em
estabelecimento educacional e a de semiliberdade8 seguem o princípio da
excepcionalidade e possuem critérios mais rigorosos de aplicação, devendo ser
atribuídas em última hipótese, por se tratarem de medidas de caráter privativo de
liberdade. Na medida de semiliberdade9 o adolescente permanece na unidade de
internamento durante os dias de semana, sendo-lhe permitido passar os finais de semana
junto da família e da comunidade. A semiliberdade poderá ser aplicada desde o início da
execução da medida ou como forma de transição entre o internamento e o meio aberto.
Já a medida de internamento10, por ser a mais severa, só poderá ser imposta quando
houver uma das seguintes condições objetivas: (i) ato infracional cometido com grave
ameaça ou violência à pessoa; (ii) reiteração no cometimento de mais de 3 infrações
graves; (iii) por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente
imposta, circunstância na qual o internamento terá a duração máxima de 90 dias11.
A medida de internamento segue o princípio da brevidade, não podendo exceder
o prazo de três anos. Apesar do limite máximo estabelecido, o internamento não
8 Lei 8.069 de 1990, artigo 120. 9 Lei 8.069, 1990, artigo 120. 10 Lei 8.069, 1990, artigo 121. 11 Lei 8.069, 1990, artigo 122.
25
comporta prazo previamente determinado e o seu tempo de cumprimento dependerá da
reavaliação periódica do comportamento do adolescente, a ser realizada, a cada seis
meses, pelo setor técnico da unidade prisional. Para Sposato (2013), a indeterminação
do prazo para o cumprimento do internamento está alinhada com o princípio da
brevidade, posto que o tempo de execução da medida dependerá do desenvolvimento de
cada adolescente dentro da unidade, o que, para a autora, favorece o propósito de
ressocialização (p. 120). Se o adolescente recuperar de acordo com os critérios
definidos, deverá ser libertado o quanto antes, por forma a que a medida não se converta
em mero castigo.
De acordo com a lei brasileira, as medidas socioeducativas visam responsabilizar
e, ao mesmo tempo, recuperar o adolescente em conflito com a lei. Contudo, para
Sposato (2013) as medidas socioeducativas privativas de liberdade (regime de
semiliberdade e internamento) correspondem, efetivamente, a penas de prisão, devido
ao caráter de instituição total das unidades socioeducativas. Segundo Goffman (1957),
as instituições totais caracterizam-se, essencialmente, por reunirem, num único lugar,
todas as esferas de atividade da vida humana. Estas atividades são conduzidas por uma
mesma autoridade, em prol do objetivo oficial da instituição, sendo cada fase das
atividades diárias de um indivíduo realizada na companhia de um grande número de
outros indivíduos, todos tratados de maneira uniforme (p. 45). Além disso, as
características físicas do edificado, tais como muros altos, arames e grades, funcionam
como barreiras de contacto entre o institucionalizado e as relações sociais exteriores,
favorecendo esta orgânica. Ao concentrarem tais características, será possível refletir se
as unidades de internamento socioeducativo estão mais próximas de uma instituição
total, como a prisão, do que de um “estabelecimento educacional”, conforme orienta a
lei brasileira.
2.3 DEGASE: o sistema socioeducativo na cidade do Rio de Janeiro
O órgão responsável pela execução das medidas socioeducativas no estado do
Rio de Janeiro é o Departamento Geral de Ações Socioeducativas — DEGASE,
vinculado à Secretaria de Estado e Educação (Poder Executivo). O DEGASE é fruto de
um processo de descentralização político-administrativa, que ocorreu após a entrada em
vigor do ECA. A aplicação das medidas socioeducativas, cuja responsabilidade era do
26
governo federal, por meio do Centro Brasileiro para Infância e Adolescência – CBIA,
passou a ser integralmente gerenciada por cada estado federativo e suas respetivas
entidades competentes, em consonância com as diretrizes político-governamentais da
proteção integral12.
O objetivo do DEGASE é promover a socioeducação no estado do Rio de
Janeiro, mediante a função que lhe é atribuída: gerir e executar as medidas
socioeducativas determinadas pelo Poder Judiciário ao adolescente em conflito com a
lei, em conformidade com os princípios do ECA e do SINASE, que regem,
nacionalmente, o sistema socioeducativo.
No ano de 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)13 realizou o “Programa
Justiça ao Jovem”, com o objetivo de fiscalizar, a nível nacional, a execução da medida
socioeducativa de internamento nas unidades de atendimento. De acordo com o relatório
final do programa, a maioria das unidades de internamento possuem instalações antigas,
que não seguem as normas arquitetónicas estabelecidas pelo Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE)14 e assemelham-se à estrutura carcerária das
prisões. Esta problemática estrutural dificulta a abordagem pedagógica da medida
socioeducativa e, por conseguinte, a efetiva proteção integral do adolescente que o ECA
visa alcançar (CNJ, 2011, p. 3). O relatório aponta, no entanto, que o serviço prestado
pelo DEGASE melhorou a execução da medida socioeducativa, ao dar ênfase a
atividades de educação formal e profissionalizante, além do atendimento à saúde física e
psíquica dos jovens nas unidades.
Apesar de se ter verificado algum progresso quanto à adequação do atendimento
socioeducativo aos critérios do ECA, o relatório do CNJ também ressaltou a
necessidade de aprimorar a capacitação dos agentes socioeducativos15 nas unidades,
tendo em conta os inúmeros relatos de uso de força física ou psíquica sobre os
12 http://www.degase.rj.gov.br, recuperado em 11 de setembro, 2019. 13 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um órgão de fiscalização do Poder Judiciário brasileiro, que
visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário, principalmente no que concerne ao controlo e à
transparência administrativa e processual (https://www.cnj.jus.br, recuperado em 11 de setembro, 2019). 14 O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) estabelece uma série de
condições que devem ser observadas pelas entidades e programas de atendimento, no que diz respeito à
estrutura física das unidades socioeducativas de internamento, em cumprimento ao projeto pedagógico
proposto pela lei do SINASE, tais como: condições adequadas de higiene e limpeza, espaços para a
realização de refeições, dormitórios adequados, salas para estudo e atividades coletivas, espaços para
visita íntima e familiar, salas de aula, espaços para a prática de lazer e desporto, entre outras.
(CONANDA, 2006, p. 50).
15 Os agentes socioeducativos são os profissionais responsáveis pela gestão e segurança das unidades de
atendimento.
27
adolescentes. Numa das maiores unidades socioeducativas do estado, a violência foi
apontada como método de trabalho entre os agentes, com a utilização, inclusive, de gás-
pimenta. Para além da violência institucional, esta unidade apresentou um quadro
preocupante de sobrelotação (271 adolescentes internados no ano de 2011 para 120
vagas na unidade), com camas insuficientes para todos os internos, e más condições de
alimentação. Nesta unidade socioeducativa, as atividades educacionais e
profissionalizantes, bem como as práticas de lazer ou desporto não foram
implementadas e, segundo o relatório, os adolescentes passam a maior parte do tempo
na ociosidade. As demais unidades, de acordo com o relatório, proporcionam condições
mínimas de dignidade para os jovens (CNJ, 2011, p. 6).
Outra questão considerada alarmante pelo CNJ é que, no Rio de Janeiro, a
distribuição dos adolescentes pelas unidades socioeducativas não se dá conforme a
idade, ou a gravidade do ato infracional praticado, mas sim em resultado da fação
criminosa ou da comunidade à qual o jovem pertence. Esta divisão conforme a fação
visa evitar confrontos entre grupos rivais, preservando-se a integridade física dos
adolescentes, mas, ao mesmo tempo, proporciona o aprofundamento das conexões entre
os membros da fação dentro das unidades socioeducativas, o que acaba por fortalecer o
vínculo dos adolescentes com as organizações criminosas (CNJ, 2011, p. 8). A
distribuição conforme a fação criminosa é mais uma reprodução do modelo
penitenciário destinado aos adultos, e, deste modo, sustenta a conceção teórica de que as
unidades socioeducativas em nada diferem dos estabelecimentos prisionais senão pelo
rótulo externo (Acosta, 1996, cit. em Sposato, 2013, p. 120).
Ainda assim, o CNJ concluiu, em seu relatório, que as unidades socioeducativas
têm uma preocupação com a legalidade do atendimento prestado, para conferir ao
jovem condições mínimas de desenvolvimento, principalmente no que concerne à
educação e à profissionalização. Esta característica indica que, a despeito dos relatos de
agressão perpetrados por agentes nas unidades, o sistema tem vindo a caminhar de uma
visão de contenção prisional para o modelo da socioeducação na forma do ECA e do
SINASE (CNJ, 2011, p. 10).
28
CAPÍTULO III – DESENHO DA PESQUISA E PROCESSO METODOLÓGICO
Neste capítulo serão apresentados os objetivos do trabalho e as opções
metodológicas com as quais a presente pesquisa foi sendo construída.
3.1 Objetivos e questões de pesquisa
Esta dissertação insere-se na temática mais abrangente da delinquência juvenil e
pretende compreender a experiência de internamento numa unidade socioeducativa do
Rio de Janeiro, segundo o olhar do adolescente. Procura-se, igualmente, conhecer o
contexto social e a trajetória do adolescente até a chegada no internamento, bem como
as suas expectativas após o internamento, considerando o objetivo de ressocialização da
instituição.
Buscámos analisar a relação entre o cumprimento da medida e a transformação
da identidade social do adolescente, conforme as teorias apresentadas anteriormente,
que apontam para o encarceramento como um fator de risco estigmatizante e
criminógeno. Por outro lado, observaremos se as atividades educacionais,
profissionalizantes e terapêuticas, oferecidas pelo sistema socioeducativo durante o
internamento, se constituem como abordagens preventivas e reparadoras, capazes de
fornecer ao adolescente novas perspetivas de vida.
Pretendemos realizar um estudo criminológico, que leve em conta a
complexidade das situações sociais, do contexto histórico e das diferentes visões de
mundo que permeiam a sociedade pós-moderna ou pós-colonial. Buscámos construir
conhecimento, procurando imergir na realidade do adolescente submetido à medida de
internamento e integrando diferentes perspetivas teóricas que possam cooperar para uma
melhor compreensão da questão estudada.
Conforme afirma Moita Lopes (2004) “as teorias por meio das quais
construímos o mundo mudaram e, portanto, devem mudar nossas abordagens de
compreendê-lo teórica e metodologicamente, ao nos localizarmos nas fronteiras onde
várias áreas de investigação se encontram” (Lopes, 2004, p. 165).
Assim, esta dissertação procura contribuir para a elaboração de um pensamento
criminológico preocupado em dar voz ao próprio adolescente que se encontra numa
conjuntura social, via de regra, de extrema marginalização e estigmatização, mesmo
29
antes da experiência de internamento no sistema socioeducativo, de modo que possamos
compreender os efeitos da medida socioeducativa sob o olhar daqueles que estão
submetidos a ela.
Os debates no Brasil acerca do tratamento penal conferido ao adolescente, da
ineficiência do sistema socioeducativo, ao tentar conter a delinquência juvenil, além do
clamor, por parte da opinião pública, pela redução da maioridade penal, levam a crer
que a preocupação em punir e encarcerar se sobrepõe à tentativa de compreender as
necessidades do outro, de repensar a estrutura social e de apresentar novas propostas,
que atendam às demandas dos adolescentes em condição de vulnerabilidade.
Procurar-se-á fazer dialogar os pressupostos teóricos identificados nos capítulos
anteriores com as experiências quotidianas de internamento, de maneira que as
teorizações acerca dos efeitos do aprisionamento “dialoguem com o mundo
contemporâneo, com as práticas sociais que as pessoas vivem” e “considerem
diretamente os interesses daqueles que trabalham, agem etc. no contexto de aplicação”
(Lopes, 2006, p. 23).
Outro ponto levantado por Moita Lopes (2004), que merece destaque neste
trabalho, concerne à ideia ilusória da neutralidade do pesquisador. Segundo o autor, a
pesquisa científica deve considerar que o pesquisador está “sempre posicionado no
mundo e imbricado no conhecimento que produz” (Lopes, 2004, p. 166). Neste sentido,
devemo-nos atentar para o facto de que não existe uma verdade científica universal ou
descontextualizada, e que o pesquisador é um agente social ativo, implicado no
conhecimento que visa produzir.
Tendo por base os preceitos éticos do processo científico, este trabalho constrói-
se a partir de uma troca entre a pesquisadora, os adolescentes e os agentes que atuam no
sistema socioeducativo, buscando-se conhecer esta realidade social a partir da
perspetiva do outro, mas também do olhar, da interpretação e da sensibilidade de quem
conduz a pesquisa.
3.2 Abordagem e processo metodológicos
Compreendendo o campo de pesquisa da delinquência juvenil como uma área
complexa, passível de problematizações, que envolve a vivência concreta de pessoas,
bem como a perspetiva destas pessoas sobre a sistemática em que estão inseridas,
30
optou-se pela abordagem exploratória e qualitativa, com o intuito de conhecer,
interpretar e dar visibilidade aos que vivenciam a experiência do internamento no
sistema socioeducativo do Rio de Janeiro.
Para Denzin e Lincoln (2006), a pesquisa qualitativa constitui-se como “uma
atividade situada que localiza o observador no mundo”, e que envolve explorar os
fenómenos “em seus cenários naturais, tentando entender, ou interpretar, os fenômenos
em termos dos significados que as pessoas a eles conferem” (Denzin e Lincoln, 2006, p.
17). Ao definirem uma pesquisa qualitativa, Denzin e Lincoln (2006, p. 17) apontam
para a diversidade e complementariedade de métodos e materiais empíricos.
Considerando esta noção, a presente dissertação cruzou os métodos da observação
participante e da entrevista semiestruturada, tendo em vista as potencialidades desta
combinação, que fez confluir o olhar dos entrevistados e o olhar da pesquisadora. A
observação participante permitiu a imersão da pesquisadora no ambiente institucional,
para a observação do dia a dia do internamento, enquanto através das entrevistas foi
possível conhecer o adolescente, o seu contexto de vida anterior à privação de liberdade
e a sua interpretação acerca da experiência de internamento.
3.2.1 Método de Observação Participante
Entre as possibilidades de métodos existentes na pesquisa qualitativa, a
observação participante constituiu-se como uma técnica indispensável para uma melhor
compreensão do fenómeno em pauta neste trabalho. Trata-se de um método que se
inscreve na abordagem etnográfica, pelo qual o pesquisador imerge num ambiente
social, por um período de tempo mais ou menos prolongado, observando
comportamentos, ouvindo o que é dito e colocando perguntas (Bryman, 2001, p. 714).
A observação participante exige que o pesquisador participe ativamente da
recolha de dados e que possua a capacidade de se adaptar às situações, para atribuir
significado às práticas e vivências humanas. Ou seja, “o investigador procura descobrir
e tornar acessíveis (no sentido de revelar) realidades e significados, que as pessoas
utilizam para nortear ou atribuir sentido às suas vidas” (Mónico, Alferes, Castro e
Parreira, 2017, p. 727).
Embora o tempo disponível para a realização da observação participante fosse
curto, considerou-se a relevância deste método para os propósitos da presente
31
dissertação, já que, por meio dele, a pesquisadora conheceu o ambiente socioeducativo
no qual os adolescentes estão inseridos, o quotidiano da experiência de internamento, as
práticas e hábitos vivenciados, as atividades realizadas, para além da possibilidade de
presenciar situações, de ouvir e dialogar com os professores e os funcionários, ou
mesmo com os próprios adolescentes fora do momento de entrevista.
O pesquisador, ao partilhar o contexto do grupo observado, encontra-se em
condições mais favoráveis para aceder a situações, factos e comportamentos comuns à
rotina do cenário de pesquisa. Foi, então, necessário, inicialmente, adentrarmo-nos no
contexto social para que pudéssemos obter um melhor conhecimento dos aspetos a
explorar no decorrer das entrevistas.
3.2.2 Método de Entrevista Semiestruturada
Através da entrevista semiestruturada, foi possível compreender a percepção dos
adolescentes acerca da medida socioeducativa de internamento, da experiência de
privação de liberdade e da prática delinquencial em seus diversos aspetos.
A entrevista semiestruturada é guiada por um roteiro de perguntas flexíveis, e o
entrevistador pode decidir pela melhor forma de procurar as respostas (Mattos, 2005, p.
824). Para Mattos (2005), a entrevista semiestruturada caracteriza-se por ser uma forma
especial de conversação, na qual “há sempre um significado de ação para além do
significado temático da conversação” (Mattos, 2005, p. 826). Trata-se de uma interação
linguística marcada por sinais e expressões, pela troca entre entrevistador e entrevistado,
que vai para além das perguntas e respostas.
Segundo Bryman (2001), é necessário que a entrevista seja conduzida com
flexibilidade e que permita avaliar a maneira como os entrevistados percebem o seu
mundo social (Bryman, 2001, p. 473). Ao refletir sobre o guião de entrevista, Bryman
(2001) explica que o investigador deve elaborar uma lista de questões ou tópicos
razoavelmente explicitados a serem cobertos, mas que estas questões podem não seguir
exatamente a sequência pré-definida, havendo margem para que o entrevistador solicite
novas perguntas, conforme capta o que é dito pelos entrevistados. Porém, de um modo
geral, todas as questões serão perguntadas e uma redação semelhante será utilizada em
cada entrevistado (Bryman, 2001, p. 514).
32
Mais ainda, Boni e Quaresma (2005) apontam a importância da entrevista
semiestruturada para a recolha de dados, tendo em vista que o método auxilia a análise
de aspetos afetivos e valorativos dos entrevistados, que estão associados aos
significados pessoais que aqueles atribuem aos seus comportamentos e às suas
experiências. De acordo com as autoras, a entrevista semiestruturada possibilita
respostas espontâneas e confere liberdade aos entrevistados, mediante uma conversa
detalhada, o que pode, inclusive, fazer com que surjam questões inesperadas (Boni e
Quaresma, 2005, p. 75).
Boni e Quaresma (2005) ressaltam que o pesquisador deve utilizar perguntas
abertas e fechadas, conduzindo a entrevista de maneira descontraída, sem, contudo, se
afastar do objetivo de pesquisa. Neste sentido, o entrevistador deve direcionar a
discussão para o assunto que o interessa, fazendo perguntas adicionais, a fim de elucidar
questões que não ficaram claras ou ajudar a recompor o contexto da entrevista, caso o
informante tenha dificuldades com o tema (Boni e Quaresma, 2005, p. 75).
Para os objetivos da presente dissertação, o método da entrevista semiestruturada
foi de extrema relevância, já que buscámos conhecer os significados que os
adolescentes atribuem à experiência de internamento no sistema socioeducativo do Rio
de Janeiro, observando possíveis efeitos desta experiência sobre as suas potencialidades
de vida.
Por se tratar de um tema complexo e delicado, a pesquisadora preocupou-se em
conduzir a entrevista sob um olhar de interesse, empatia e sensibilidade, de maneira que
fosse estabelecida uma relação de confiança, na qual o entrevistado se sentisse seguro
para responder. Neste sentido, Boni e Quaresma (2005) explicam a importância de se
estabelecer uma familiaridade entre o entrevistador e o entrevistado, proporcionando
melhores condições para que a entrevista flua como uma conversa amigável. Isto não
representa uma falta de rigor técnico na condução da entrevista, mas sim uma
preocupação em proporcionar ao entrevistado uma situação de bem-estar, onde ele seja
ouvido, apresente a sua experiência e construa o seu próprio ponto de vista sobre si
mesmo e sobre o mundo (Bourdieu, 1999).
Deve-se considerar que o discurso do entrevistado pode ser complexo e sensível
para si, mas, por outro lado, pode proporcionar uma sensação de alívio, já que o
indivíduo tem a possibilidade de se expressar e de refletir sobre assuntos melindrosos.
Além disso, durante as entrevistas, foi preciso considerar a linguagem utilizada e o
33
conhecimento acerca de determinadas questões sociais e culturais inerentes ao contexto
dos adolescentes, para que fosse estabelecida uma maior identificação e aproximação
entre entrevistadora e entrevistado. Igualmente, durante a entrevista foram reproduzidos
sinais de entendimento e de estímulo, gestos, olhares, incentivos, além da verbalização
de agradecimentos, de maneira que o entrevistado se sentisse escutado em sua narrativa.
3.2.3 Acesso ao terreno e desenvolvimento da recolha de dados
O acesso ao terreno institucional exigiu um primeiro contacto com a Diretora da
Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire (ESGSE), que é o núcleo do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE, responsável pela produção
de trabalhos técnicos e científicos no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Este
contacto inicial foi realizado através de e-mail, pelo qual a ESGSE informou o rol de
documentos necessários para que fosse autorizada a pesquisa na unidade de
internamento. Como este trabalho utiliza o método de entrevista com os adolescentes,
menores de 18 anos, foi necessário, igualmente, obter uma autorização judicial, que foi
apresentada à direção da unidade de internamento antes de dar início à pesquisa.
Uma vez apresentados os documentos, e autorizada a investigação, acedemos à
unidade de internamento, onde os adolescentes cumprem a medida socioeducativa
definitiva, cabendo a escolha da unidade à Escola de Gestão (ESGSE) do DEGASE. A
utilização de aparelho gravador, para a recolha de dados durante a entrevista, não foi
autorizada pela instituição e, por este motivo, as respostas dos adolescentes foram
transcritas à mão, de forma mais fidedigna possível ao discurso e à expressividade do
participante. Devido a esta circunstância de registo escrito, foram necessários dois
encontros com cada adolescente para a realização da entrevista por completo, sendo
cada encontro com a duração média de quatro horas.
Assim, o percurso da recolha de dados se deu da seguinte maneira: iniciámos a
observação participante no primeiro dia, com a chegada da pesquisadora para conhecer
a unidade, e duas vezes na semana, no turno da manhã, durante as nove semanas
subsequentes. As entrevistas foram realizadas nestes mesmos dias, no turno da tarde,
conforme a disponibilidade de cada adolescente participante, numa sala onde estavam
presentes apenas a pesquisadora e o entrevistado.
34
A anuência dos adolescentes, no que concerne à participação e aos objetivos de
pesquisa, foi formalizada mediante a apresentação do Termo de Consentimento
Informado (Anexo III), cujo teor era lido pelo adolescente, bem como explicado pela
pesquisadora a cada entrevistado, antes de dar início à entrevista.
3.2.4. Amostra
A amostra desta investigação é composta por 8 adolescentes entrevistados, num
universo, à data de início da pesquisa, de 324 internos. Os participantes foram
selecionados pela direção da unidade, havendo, contudo, uma preocupação em escolher,
pelo menos, um adolescente de cada alojamento.
Na tabela abaixo (Tabela 1), apresentamos o quadro global de entrevistas,
contendo informações gerais sobre os sujeitos da amostra: idade, grau de escolaridade,
ato infracional praticado, o tempo de internamento cumprido, à data da entrevista dos
participantes na unidade onde foi realizada a pesquisa e o alojamento.
Tabela 1: Quadro global de entrevistas
Entrevistados Idade Grau de
Escolaridade
Ato
Infracional
praticado
Tempo de
internamento
na unidade
Alojamento
E1 15 7º ano EF tráfico de
drogas e
porte de
arma
1 ano e 4
meses
Módulo 1
E2 16 (não
mencionado)
Roubo 2 anos e 2
meses
Módulo
sem fação
E3 17 9º ano EF tráfico de
drogas
1 mês Módulo 1
E4 17 7º ano EF homicídio
doloso
1 ano e 9
meses
Módulo 2
E5 16 8º ano EF Roubo 8 meses Módulo 1
35
E6 18 5º ano EF Roubo 2 anos Módulo 1
E7 18 3º ano EM Roubo 2 meses e 12
dias
Módulo 1
E8 16 9º ano EF Roubo 23 dias Módulo
sem fação
Nota. EF: ensino fundamental. EM: ensino médio.
Conforme se depreende da Tabela 1, os adolescentes entrevistados têm idades
compreendidas entre os 15 e os 18 anos e, com exceção do E7, possuem grau de
escolaridade que não corresponde à respetiva faixa etária. Estes dados enunciam, já,
uma relação entre as práticas delinquenciais e o abandono escolar ou a não frequência
escolar.
As apreensões pelo sistema de justiça decorrem, majoritariamente, em razão da
prática de roubo (E2, E5, E6, E7 e E8), sendo esta uma atividade de maior risco para o
encontro do adolescente com a polícia, uma vez que é realizada fora do contexto das
comunidades, o que leva a uma maior exposição social. As apreensões por tráfico,
muitas vezes, exigem a incursão policial nos territórios dominados pelas fações, como é
o caso do E1 e do E3. Neste sentido, note-se que o E2, o E5 e o E6 também exerciam
funções no tráfico de drogas, mas foram apreendidos pela prática de roubo, enquanto o
E4 participou do tráfico por um período de 6 a 7 meses, mas foi apreendido em razão de
um homicídio, que não tinha relação com a primeira atividade.
O tempo de internamento dos entrevistados, à época da pesquisa, variou entre 23
dias (E8) e 2 anos e 2 meses (E2), sendo o período máximo de internamento previsto na
lei equivalente a 3 anos, a depender de avaliações de desempenho feitas pela equipa
técnica e, igualmente, de decisão judicial.
A divisão dos alojamentos na unidade (Tabela 2, Anexo IV) se dá conforme a
identificação ou não do adolescente com uma das fações criminosas que atuam no
tráfico de drogas no Estado do Rio de Janeiro, de maneira a evitar confrontos entre
grupos rivais dentro do internamento. Como as fações exercem domínio territorial nas
comunidades do Rio de Janeiro, a alocação dos adolescentes nos alojamentos pode se
36
estabelecer tanto segundo a participação nas práticas delinquenciais da fação, quanto
territorialmente, em função de o adolescente residir numa das comunidades.
Neste sentido, os alojamentos do Módulo 1 são designados para os adolescentes
que se identificam com uma das três fações atuantes no estado, sendo maioritário o
número de internos que residem nas áreas de domínio de uma destas fações. Os
alojamentos do Módulo 2 são destinados aos adolescentes que se identificam com uma
das outras duas fações, ou àqueles que residem em áreas dominadas pelas milícias16. Há,
ainda, o Módulo sem fação, alojamento destinado aos adolescentes que possuem bom
comportamento e que manifestam interesse em se desvincular da fação criminosa.
3.2.5. Instrumentos de recolha de dados: grelha de observação e guião de
entrevista
Para a persecução dos objetivos deste trabalho, utilizámos uma grelha de
observação de fim semiaberto (Anexo I), com a identificação de dimensões a serem
observadas durante a permanência da pesquisadora na unidade. Estas dimensões
serviram como norte no processo de observação participante, que teve como
componente fundamental a utilização de um diário de campo, contendo anotações e
descrições qualitativas, de tipo narrativo. Sobre as anotações, Mónico et al. (2017)
explica que “o observador participante vai recolher, ao mesmo tempo, dados objetivos e
sentimentos subjetivos”, sendo que este registo pode ser feito no momento da
observação ou, como acontece frequentemente, depois do investigador deixar o campo
de observação. (Mónico et al., 2017, p. 729).
Nesta perspetiva, ao mesmo tempo que pretendíamos focar a nossa atenção nas
percepções dos adolescentes sobre a experiência de internamento, foi preciso
compreender a dinâmica de grupo, em seu meio natural, desenvolvendo uma visão
holística sobre o ambiente social da unidade (Mónico et al., 2017), com observações
16 Segundo Zaluar e Conceição: “Atualmente, no Brasil, o termo milícia refere-se a policiais e ex-policiais
(principalmente militares), uns poucos bombeiros e uns poucos agentes penitenciários, todos com
treinamento militar e pertencentes a instituições do Estado, que tomam para si a função de proteger e dar
“segurança” em vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes predadores.” (Zaluar e Conceição,
2007, p. 90). Em nome de uma suposta venda de segurança, as milícias exercem cada vez mais controlo
territorial nos bairros e comunidades do Rio de Janeiro, impondo serviços e exigências aos moradores,
tais como a compra de mercadorias mais caras, a compra de sinal ilegal de TV por cabo, o pagamento de
taxas por cooperativas de transporte alternativo que circulam em seu território, o pagamento de altos
porcentuais para a compra, venda e aluguel de imóveis (Zaluar e Conceição, 2007, p. 91).
37
instrumentalizadas e registadas através do diário de campo. Assim, a pesquisadora
utilizou um caderno, no qual fazia anotações acerca dos diálogos testemunhados, das
características observadas, bem como dos sentimentos vivenciados durante a
permanência na unidade de internamento, e, ao final de cada dia, as anotações eram
transcritas e reformuladas num segundo momento de reflexão e memorização do que
fora escutado e observado.
Para a realização das entrevistas, utilizámos um guião de entrevista (Anexo II),
cuja elaboração se deu a partir das diferentes teorias revistas neste trabalho. Além disso,
com base na primeira etapa da observação participante, adaptámos e incorporámos
questões no guião, tendo-se em conta os aspetos verificados em sede de pesquisa de
campo, principalmente no que diz respeito aos aspetos socioeducativos do
internamento, já que estes elementos não são necessariamente abarcados pelas teorias.
Como a unidade de internamento, para além de ser um local de privação de
liberdade, conta com atividades e abordagens socioeducativas, foi preciso identificar
estes elementos, o que ocorreu mediante a permanência da pesquisadora na unidade.
Assim, para o melhor desenvolvimento das perguntas, foi necessário compreender
aspetos como, por exemplo, a divisão dos alojamentos, a organização do espaço físico e
das dependências internas da unidade, o funcionamento da escola e as modalidades de
atividades socioeducativas que são oferecidas pela instituição aos adolescentes. No final
deste processo, as perguntas do guião de entrevista (Anexo II) foram divididas e
agrupadas conforme os seguintes grupos temáticos: A: Conhecendo o adolescente, B:
Experiência de internamento, C: Experiência infracional e D: Objetivos futuros.
Cabe salientar que este trabalho se realiza sob a égide de princípios éticos,
segundo os quais o exercício da pesquisa deve valorizar a pessoa humana. De acordo
com Moita Lopes (2004), a ética que conduz a pesquisa científica deve excluir
abordagens que causem sofrimento humano e mal aos outros (Lopes, 2004, p. 168). O
exercício da pesquisa exige a responsabilidade ética perante os indivíduos envolvidos
no processo científico. À vista disso, nos preocupamos em transmitir sinais de empatia
durante as entrevistas, ouvir atentamente as falas dos adolescentes e estabelecer uma
relação de confiança, respeitando-se, de igual modo, o anonimato e a confidencialidade.
38
3.2.6. Procedimentos de análise dos dados: criação de um sistema de categorias
Após a recolha dos dados, iniciámos o processo de análise temática das
entrevistas. Segundo Braun & Clarke (2006), a análise temática consiste num método
para identificar, analisar e reportar padrões nos dados (p. 79). Igualmente, para estas
autoras, a análise temática pode funcionar como um método contextualista, que busca
compreender as maneiras pelas quais os indivíduos dão sentido à sua experiência e, por
seu turno, as maneiras pelas quais o contexto social mais amplo condiciona tais
significados (Braun & Clarke, 2006, p. 81). Assim, à medida que focámos nas
teorizações acerca dos efeitos da experiência de encarceramento para os indivíduos,
também foi possível realizar outras interpretações a partir dos dados. Vejamos o
caminho que percorremos para esta análise.
Realizadas todas as entrevistas, passámos à leitura reiterada do material
recolhido, comparando as respostas dos entrevistados relativamente a cada pergunta.
Em seguida, tendo as respostas organizadas comparativamente, procedemos à
codificação, com a criação de um sistema de categorias, que decorre dos temas
abordados no guião de entrevista. Braun & Clarke (2006) explicam que o processo de
codificação envolve um trabalho sistemático em todo o conjunto de dados, dando total e
igual atenção a cada item e identificando aspetos interessantes nos itens, que podem
formar a base de padrões repetidos (temas) dentro dos dados (p. 89).
A partir disso, buscámos refletir sobre os padrões e significados acerca dos
temas abordados nas entrevistas, bem como outros padrões que poderiam surgir da
narrativa dos adolescentes e que, numa interpretação mais ampla, seriam passíveis de
serem integrados. Este procedimento ocorreu manualmente, destacando-se os excertos
que seriam relevantes ou que ensejaram reflexões, sendo estas anotadas, conforme a
leitura e releitura dos dados.
A análise dos dados foi tanto no sentido de elucidar aspetos desenvolvidos nas
teorias, quanto de permitir o desencadear de outras interpretações. Logo, por exemplo,
as teorias da Associação Diferencial e da Aprendizagem Social (Akers, 1977) se voltam
para a análise do processo de aprendizagem do comportamento delinquente a partir da
interação entre os indivíduos, nos conduzindo à inclusão da pergunta número 10 do
guião de entrevista (Anexo II), a saber: “Como é a sua relação com os outros meninos?
Possui amigos aqui?”. Por meio desta pergunta, analisámos as narrativas dos
39
adolescentes acerca da relação com os seus pares no internamento, que, por
conseguinte, levou à construção da categoria “convívio entre os adolescentes” (Tabela
3, Anexo V).
Uma vez construídas as categorias, voltamos à leitura extensiva e intensiva das
entrevistas, procurando, em todo o conjunto de dados, os excertos associados a cada
categoria. Nesta etapa, há de se considerar que, algumas vezes, uma mesma fala de um
entrevistado pode conter elementos associados a categorias distintas ou, ainda, ensejar
mais de uma interpretação acerca de uma única categoria. Por este motivo, cabe frisar
que todo este percurso de imersão nos dados foi acompanhado pela anotação das
interpretações, reflexões e possíveis perspetivas acerca dos significados contidos nas
narrativas, para que estes fossem melhor articulados na análise e discussão dos
resultados.
Nesta última fase, continuámos a refletir sobre os aspetos verificados nas
categorias, fazendo novas relações entre cada categoria e o respetivo tema abrangente.
Isto significa que, para além dos significados contidos nos códigos, passámos a
questionar, por exemplo, o que o “convívio entre os adolescentes” (categoria) nos diz
sobre a “experiência de internamento” (tema abrangente), ou como o “lugar onde vivia
antes de ingressar na unidade” (categoria) nos permite “conhecer o adolescente” (tema
abrangente) antes do internamento.
Passemos à apresentação dos temas, dentro dos quais serão analisadas as
categorias (Tabela 3, Anexo V) neste estudo. Já a descrição das referidas categorias está
contida nas Tabelas 4, 5, 6 e 7 (Anexos VI, VII, VIII, IX) deste trabalho.
Tema A - Conhecendo o adolescente: do Tema A constam as categorias
relativas ao contexto de vida do adolescente, anterior ao internamento. Quem é o
adolescente, a despeito do internamento, em sua rotina comum? A elaboração deste
bloco de categorias decorre do momento inicial das entrevistas, no qual buscámos nos
familiarizar com o entrevistado, conhecendo a sua realidade e o seu dia a dia no lugar
onde vivia. Estas categorias são: Perspetiva sobre o lugar onde vivia antes do
internamento, Relação com a família, Relação com os amigos e Relação com a Escola.
Tema B - Experiência de internamento: do Tema B constam as categorias
relacionadas com a experiência de internamento do adolescente, como Quotidiano de
internamento, Atividades socioeducativas, Convívio entre os adolescentes, Relação com
a escola e Relação com os funcionários. Ressalta-se que a alusão dos adolescentes aos
40
“funcionários” diz respeito aos profissionais cujo cargo é o de agente socioeducativo.
No decorrer das entrevistas, as perguntas relativas aos “funcionários” ensejaram
respostas densas acerca da relação com os agentes, especificamente. Por este motivo, a
relação dos adolescentes com a equipa técnica e com os professores não está contida na
categoria “Relação com os agentes socioeducativos”. A relação entre os adolescentes e
os professores foi narrada no momento em que os entrevistados foram perguntados
acerca da escola e do decorrer das aulas durante o internamento. Já a relação com a
equipa técnica, basicamente composta por psicólogos, não foi desenvolvida o bastante
pelos entrevistados, de modo que pudéssemos categorizar as respostas.
Tema C - Experiência delinquencial: em relação ao Tema C, verificámos as
categorias concernentes à experiência de delinquência dos entrevistados, a saber
Motivações, Quotidiano na prática delinquencial, Experiência com a polícia,
Expectativa de apreensão policial e punição, Balanço da experiência delinquencial e
Perspetiva do adolescente sobre si próprio após a experiência delinquencial.
Tema D - Objetivos futuros: neste tema apresentamos as categorias relativas
às perspetivas de vida dos adolescentes, os sonhos e expectativas, após a experiência de
internamento. Estas categorias são: Continuidade na prática delinquencial,
Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização e Futuro almejado.
41
CAPÍTULO IV – RESULTADOS
4.1 Conhecendo o adolescente: contextos de vida antes do internamento
Quem são os adolescentes em conflito com a lei? Por meio das entrevistas
realizadas, procurámos compreender a realidade do adolescente antes do internamento,
conhecer o seu dia a dia no lugar onde vivia, bem como a sua percepção acerca da
relação com a família, com os amigos e com a escola. Os adolescentes entrevistados são
oriundos de comunidades, ou favelas, e regiões mais pobres do estado do Rio de
Janeiro, zonas que carregam as mazelas da falta de recursos e da estigmatização social
(Bernburg & Krohn, 2003).
Os dados recolhidos parecem corroborar o que afirma Malvasi (2011), no que
diz respeito ao adolescente a quem se destina a medida socioeducativa: “Os
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas costumam viver em
territórios estigmatizados, onde há ostensiva presença policial. O aprisionamento dos
jovens moradores de zonas urbanas de baixa renda constitui política do Estado
brasileiro. É uma ação afirmativa carcerária (…) que compõe um amplo processo de
criminalização da pobreza (Malvasi, 2011, p. 161).
Vejamos, a este propósito, a fala de E1, indicativa de uma política de
encarceramento estigmatizante cujo alvo é o jovem que reside nas zonas urbanas mais
pobres: “Piraí/RJ… numa comunidade. (…). Teve muitas [abordagens policiais], onde
que eles me vê eles já queriam me abordar… até na frente da minha namorada já me
abordaram… tive que sair correndo” (E1, 15 anos).
Esta política se justifica pelo discurso difundido na sociedade de combate ao
tráfico de drogas, que exerce poder nestas regiões. Neste contexto, os adolescentes
incorporam os valores e as performances de um “estilo bandido” (Malvasi, 2011, p.
169), uma resposta de não submissão à lógica segregativa do Estado brasileiro, que
também se reproduz dentro do sistema socioeducativo: “(…) aqui é cada um por si e eu
sou um menor puro, mas aqui não dá pra ser tão puro assim. Se mostrar medo, os
menor (adolescentes) cresce em cima… (…). aí vira brinquedo na mão dos outros. (…)
Os da outra fação vão lá pra minha “chapa” (grade do alojamento) ficar rendendo pra
mim, falando pra eu fechar (me juntar) com eles (risos)… tem uns que se enquadra na
deles de bandido (adolescentes que mantêm a postura de “bandido”), dão o papo reto
42
na gente… (…). Qualquer coisa que precisar, se for um menor tranquilo, eles fortalece
a gente… aí fala: “não conta pra ninguém não, hein menor”… outros gostam de ficar
na instigação…(…) falando que vai me pegar, me atravessar (matar, bater) (…)” (E5,
16 anos)17.
Perspetiva sobre o lugar onde vivia antes do internamento
Compreendendo este contexto de insegurança social e económica, no qual os
adolescentes estão inseridos, encontramos narrativas indicativas de uma realidade
distinta, revestida pelas dificuldades estruturais.
Relativamente à categoria “Perspetiva sobre o lugar onde vivia”, reunimos
trechos dos relatos dos entrevistados sobre o dia a dia em suas respetivas comunidades.
Os adolescentes rememoram o quotidiano de suas experiências comuns à juventude:
lazer, desportos, festas, atividades recreativas. O sorriso acompanha a lembrança dos
“bons tempos”, como na fala do E1: “Era bom po… jogava futebol, tinha escolinha (…).
Tocava instrumento também… na escola de samba, tocava tamborim. Jogava bola
direto com os menor lá…” (E1, 15 anos).
Contudo, relativamente ao E2 e ao E6, verificamos os primeiros recortes de uma
adolescência abafada pelas responsabilidades inerentes às práticas delinquenciais. O E2
começou a praticar roubos aos 12 anos de idade e se mudou para uma das comunidades
do Rio de Janeiro, onde era responsável pela segurança do tráfico de drogas. Aos 14
anos de idade, já era pai de uma criança recém-nascida, morava com a sua esposa e
lidava com as adversidades de uma vida adulta: a relação de trabalho na condução das
práticas delinquenciais e o desafio de sustentar, emocionalmente, o relacionamento e a
paternidade, e, financeiramente, o lar. Neste cenário, observamos, nas narrativas do E2
que, paralelamente ao trabalho desempenhado no tráfico de drogas, os roubos e
“arrastões” na praia de Copacabana integram parte do seu divertimento e de seus
amigos: “Aí depois nós dava uma ‘marolada’ (curtir, descansar) lá na praia… e quando
17 O E5 explica que, no alojamento, é necessário manter uma postura de seriedade perante os demais
adolescentes, para, apesar das brincadeiras, não ceder às provocações. Conta que os adolescentes da outra
fação vão até a grade do alojamento dele para implicar, caçoar, ameaçar, mas que, alguns, aqueles que
mantém a postura de “bandido”, dão o “papo reto”, isto é, comunicam-se diretamente, com seriedade,
respeito, sem brincadeiras. Relata, ainda, que, quando precisa de algum utensílio emprestado, certos
adolescentes da fação rival lhe emprestam, ou lhe ajudam, mas sob o compromisso de não contar a
ninguém. Assim, não demonstram fraquejar na rivalidade entre as fações distintas, o que significaria
perder a “postura de bandido” diante dos outros.
43
dava umas 17h assim, que é o horário que as criança saía da praia, a gente ia roubar…
metia a porrada, fugia dos polícia. Tipo, depois nós dividia o roubo… vendia tudo e
dividia o produto do roubo. Era maneiro, eu gostava, adrenalina (risos)…” (E2, 16
anos).
Por seu turno, o E6, que também tem uma filha, decidiu se mudar da
comunidade onde vivia, e onde cresceu, em função das incumbências desempenhadas
no tráfico de drogas. Em seu discurso, o entrevistado se queixa do stress na relação com
o tráfico, motivo pelo qual passou a residir com a mãe de sua filha numa outra
comunidade. De lá, mudou-se pela segunda vez, devido às constantes guerras entre
fações naquela localidade. Aos 18 anos, à data da pesquisa, o E6 desenvolve uma
narrativa consciente acerca de suas responsabilidades perante o tráfico de drogas e a sua
família. Durante a entrevista, relatou que, apesar da idade, se considerava um
adolescente mais maduro, em função das experiências “sérias” que já havia vivenciado
a partir das práticas delinquenciais: “Imagina… um menor de 15 anos morando
sozinho? Com todo o respeito, a Sra. já viu isso já? Um menor de 15 anos já morar
sozinho? (…). (…) Aprendi muita coisa nessa vida… coisa certa, coisa errada, o certo e
o errado… vários “reflexo” também pra gente abrir o olho, pra ver quem tá do nosso
lado no dia a dia… não pode sair confiando em qualquer um. Mudou muita coisa no
jeito de eu ser, jeito de agir também.” (E6, 18 anos).
Os relatos recolhidos apontam para uma experiência de ambivalência vivenciada
pelos adolescentes em conflito com a lei: por um lado, reconhecemos a rotina que é
característica do “ser adolescente” (jogar bola, tocar instrumentos, ir às festas, brincar
com os amigos); por outro lado, percebemos que, com as práticas delinquenciais, alguns
adolescentes encontram a possibilidade de se afirmarem como indivíduos, ao
anteciparem o que consideram ser uma vida adulta, voltada para as responsabilidades
vivenciadas no tráfico e para as necessidades da família, deixando para trás a inocência
de menino.
Relação com a família
Nesta categoria verificamos os relatos dos adolescentes acerca da interação com
suas famílias. Em suas narrativas, os adolescentes descrevem a relação com os seus
familiares – mães, avós, irmãos, tias – que, segundo eles, é quase sempre “tranquila”.
44
Os relatos são carinhosos, saudosos, mas acompanhados por um sentimento de culpa
pela situação de internamento. A exemplo deste primeiro aspeto, vejamos a fala do E4,
que, mesmo demonstrando sentir falta da mãe e dos irmãos, afirma preferir que eles não
venham visita-lo: “(…) ainda bem que minha mãe não vem me visitar… eu até queria,
mas pelo menos, assim, ela não passa essa vergonha. (…) A técnica perguntou pra
mim: “por que tua mãe, teu pai, tua tia não vêm te visitar?”. Porque já fiz muita merda,
já fiz muito mal pra minha família. Então não quer vir e eu também não quero que eles
passe por isso aqui. Eu sou orgulhoso e minha mãe gosta de jogar na cara… qual mãe
não gosta né? Ninguém da minha família vem. Fala comigo? Só duas tias. Meus
irmãos, não vejo mais… minha mãe só veio me visitar mermo na minha primeira
passagem, mas não quero que venha não. O único ovelha negra da família sou eu, não
quero que meus irmãos fiquem igual a mim. Meus irmãos nunca conheceram uma
cadeia, só eu que tô preso. Acha que eu quero que eles conheça agora?” (E4, 17 anos).
A narrativa do E4 evidencia o sofrimento do adolescente por conta da falta de
visitação parental, bem como o sentimento de vergonha, a autodepreciação, em razão
das práticas delinquenciais que o conduziram ao internamento. Este entrevistado (E4)
justifica o esquecimento por parte de sua família, a partir da percepção sobre si mesmo
como não merecedor das visitas ou do afeto familiar. Também na narrativa do E5
percebemos esta manifestação de um “eu” envergonhado. Neste caso, mesmo recebendo
as visitas e a atenção da família no período do internamento, o adolescente não se sente
digno do esforço de sua mãe: “Ela [a mãe] vem sempre me visitar. Meu irmão fala que
ela não tem que vim, mas mermo assim ela fala: “eu vou andando, posso estar sem
dinheiro, mas eu vou, nem que seja andando”. Aí meu irmão menor fica falando: “vai
não, deixa ele aprender lá dentro”… e minha mãe: “quando tu ir pra lá, também não
vou te visitar, vou deixar você mofar pra você ver se é bom” (risos). Mas meu irmão
gosta muito de mim… é que ele sente falta. Aí eu falo pra minha mãe: “fala pra ele lá
que eu amo ele” (risos). (…) Aí toda vez que minha mãe vem me visitar ela pergunta:
“vai mudar de vida?”. Eu falo que vou pensar… tá maluco… só vergonha pra minha
“coroa” (mãe)… eu falo pra ela que não precisa vim não… mas ela vem.” (E5, 16
anos).
Percebemos, igualmente, que os entrevistados têm pouca ou nenhuma
convivência com a figura paterna, e, ao mesmo tempo, sustentam a ideia de que, por
serem homens, também são responsáveis pelo cuidado e pela proteção de seus
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familiares. Assim, desde cedo os adolescentes buscam contribuir financeiramente com a
renda do lar, encontrando esta possibilidade através das práticas delinquenciais.
Vejamos as narrativas do E3 e do E5: “(…) tenho que ajudar minha família, já ‘de
maior’, homem, não dá pra depender de mamãe” (E3, 18 anos); “(…) eu sou o homem
da casa, sou o mais velho dos meus irmãos… tenho que proteger eles. (…) quero ter só
filho homem, pra ajudar a mãe deles.” (E5, 16 anos).
Relação com os amigos
No que diz respeito à “Relação com os amigos”, percebemos, no discurso dos
entrevistados, a construção de um pensamento sobre amizade pautado por uma postura
de desconfiança em relação aos outros, em função do papel desempenhado nas práticas
delinquenciais. As perguntas acerca dos amigos ensejaram, logo de início, uma espécie
de correção por parte dos adolescentes: amigos, não, no máximo, “parceiros”.
Na visão dos adolescentes, as práticas delinquenciais exigem uma postura de
frieza e perspicácia, perante todos, inclusive aqueles colegas mais próximos, com quem
o adolescente convive. O cuidado e a desconfiança perante os outros devem ser
redobrados, diante do alto risco das práticas delinquenciais (Mendonça, 1981, p. 109). O
adolescente tem o discernimento de que, caso confie erroneamente em alguém, poderá
ser traído e enfrentar situações cujo desfecho será danoso à própria vida. Vejamos a
questão levantada pelo E4: “Uma coisa que você tem que aprender… você não tem
amigo, tem parceiro… meu melhor amigo é Deus. Se um cara oferecer um milhão pra
te matar, você acha que teu amigo não vai aceitar?” (E4, 17 anos). A retórica do E4
evidencia o sentimento de desconfiança e o cuidado para não ser traído por aqueles que
se dizem próximos. Numa outra fala, o E4 relata a sua experiência de apreensão pela
polícia, resultante da denúncia de um colega: “O cara que andava comigo, que levou a
polícia lá em casa… falou pra todo mundo lá no (…) [comunidade] que eu que matei…
até a milícia ficou sabendo. E pra você ver… andava comigo, se dizia amigo” (E4, 17
anos).
Sob o mesmo ponto de vista, o E3 refere o seguinte: “Que amigo? (risos).
Ninguém tem amigo não… você acha que tem amigo? (…). Na vida que nós tava não
dava pra ter amigo não po… coração de vagabundo bate na sola do pé. Amigo é meu
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pai e minha mãe, lá tinha só colega… mas amigo? Não tem amigo não. Dá pra confiar
não, na vida que nós vive.” (E3, 18 anos).
A desconfiança e o calculismo são características que, para além de serem
valorizadas nas narrativas dos adolescentes, constituem-se como estratégias emocionais
necessárias, diante do quotidiano de risco das práticas delinquenciais. Amigo, “apenas
Deus” ou “apenas a família”, pois, na relação com as práticas delinquenciais e com os
riscos inerentes, não há espaço para a ingenuidade.
Relação com a escola
A frequência escolar não é reconhecida pelos entrevistados como uma prática
capaz de viabilizar as suas expectativas de futuro ou de suprir as suas necessidades
imediatas. Na conceção dos adolescentes, este “futuro” é próximo, improrrogável, tendo
em vista que as suas necessidades e aspirações integram uma condição socioeconómica
de urgência. O E5 e o E7 são os entrevistados que frequentavam a escola ao tempo de
serem apreendidos pela polícia, porquanto interromperam os estudos em resultado das
passagens pelo sistema socioeducativo. O E5 relata que frequentava a escola por gosto,
ainda que o atrapalhasse na realização de outras atividades: “Eu tava indo pra escola,
sou um menor muito estudioso, mas é muito complicado, porque, às vezes, eu quero
fazer umas coisa e a escola me atrapalha. Mas eu ia na escola, era tranquilão (…) só ia
arrumado pra escola” (E5, 16 anos). Por sua vez, o E7 é o único entrevistado que
cursava o ano escolar respetivo à sua faixa etária até o momento da primeira apreensão:
“Ia, nunca deixei de ir. Quando eu fui preso a primeira vez, eu tava cursando o 3º ano
do ensino médio. Eu ia fazer o vestibular, tava fazendo curso preparatório…” (E7, 18
anos). Percebemos no discurso do E7 que o estudo representa a sua atividade principal,
enquanto os roubos praticados seriam atividades secundárias, não constitutivas do
projeto de vida que traçava.
Ao contrário dos demais entrevistados, o E7 constrói uma narrativa na qual a
escola é a sua prioridade, enquanto o ato infracional pode atrapalhar o seu percurso e as
suas aspirações: “E eu já tinha meus planos lá fora… sabia que eu corria o risco
fazendo essas coisas, mas sempre tive meus pensamentos do que eu queria fazer. Tinha
até medo do crime atrapalhar quando, sei lá… eu estivesse cursando faculdade, ser
pego, sei lá… aqui é meio que uma pausa só, pra eu parar de vez com as coisas erradas
47
que eu tava fazendo. (…) Quero pagar aqui o que eu devo, quero terminar o ensino
médio, fazer uma faculdade ou um curso técnico… (…) Se fosse faculdade, eu ia querer
fazer administração ou então engenharia mecânica…” (E7, 18 anos).
Vale ressaltar que, em sua narrativa, o E7 se distancia do “pessoal” (as pessoas)
do tráfico, demonstrando que não estabelecia um vínculo de atividades ou uma rotina
perante a fação dominante em sua comunidade. O adolescente precisava da autorização
da fação para a prática dos roubos, mas afirma que: “Mas eu mantinha a minha vida
normal… eu estudava, trabalhava. Era mais naquele horário que eu parava na rua até
tarde com a galera que já fazia isso… aí me chamavam e eu ia. (…). Mas nunca faltei
escola, nunca deixei de fazer minhas coisas normais. (…) Eu sabia separar as coisas…
(…).” (E7, 18 anos).
Já para os demais entrevistados, a escola é a atividade que, num dado momento,
começa a “atrapalhar” o percurso de dedicação ao trabalho ou às práticas
delinquenciais, tornando-se incompatível. Os adolescentes relatam as suas experiências
de abandono escolar, seja em razão do deslocamento (E8), do trabalho (E4) ou das
funções desempenhadas nas práticas delinquenciais, perante as quais o adolescente
também estabelece um vínculo de prioridade e responsabilidade, característico de uma
relação de trabalho (E1, E2, E3 e E6).
No contexto socioeconómico dos entrevistados, as necessidades são imediatas e,
por conseguinte, o trabalho é mais valorizado, em detrimento dos estudos. Nesta lógica,
as atividades associadas ao tráfico de drogas se apresentam como uma possibilidade de
trabalho bem remunerado, pelo qual o adolescente poderá ajudar a sua família, aceder a
bens de consumo, para além de ser reconhecido e respeitado em sua comunidade,
alicerçando-se como sujeito. Sobre este aspeto, destacamos as narrativas do E3: “(risos)
Fazer o que na escola? Nem aqui nós estuda, quanto mais na “pista” (na rua). (…)
Ficar dependendo dos outro é muito ruim. Tem que ir pra nossa luta, trabalhar… ainda
mais homem. Escola longe, eu querendo ter dinheiro, trabalhar, mas nunca tive
oportunidade… fui parar cedo no tráfico. Mas o que tiver que trabalhar eu trabalho, só
não gosto de vender bala, vender bala no sinal18, essas coisas assim… mas tem vários
trabalho” (E3, 18 anos).
18 A prática de vender balas, doces, água, etc. para os motoristas nos semáforos é muito comum no Rio de
Janeiro e noutros centros urbanos brasileiros. Igualmente, existem outras atividades informais junto aos
semáforos, como, por exemplo, realizar alguma performance circense ou a limpeza dos para-brisas dos
carros. Para o E3, “vender bala no sinal” pode representar uma prática desprestigiante, ou mesmo
48
O mesmo pensamento se depreende da narrativa do E6: “Depois que eu entrei
nessa vida, não dava pra ficar estudando e na boca (de fumo)19 … tinha que escolher
um destino. (…) Impedir não impedia não, mas eu também não tava adaptando muito
na escola… tava chato pra mim já. E no trato com a boca eu tinha que ter
responsabilidade.” (E6, 18 anos).
Verificamos que as práticas escolares não são valorizadas pelos adolescentes,
não porque desconsideram o estudo como algo relevante, mas porque, diante das
dificuldades estruturais e económicas, o trabalho se apresenta como um caminho
necessário, cuja retribuição financeira é imediata (Mendonça, 1981, p. 111). Deste
modo, a prática delinquencial é percebida como uma oportunidade de trabalho, capaz de
proporcionar prestígio e remuneração elevada, considerando-se que, na adolescência, o
indivíduo está nos primeiros passos do seu processo de formação educacional e,
portanto, as suas possibilidades de trabalho formal, muito provavelmente, terão baixa
remuneração.
Se o trabalho se constitui como um caminho necessário, as práticas
delinquenciais seriam uma espécie de “trabalho”, cujo caminho é mais curto e atrativo,
por meio do qual o adolescente poderá obter suporte para melhorar rapidamente as suas
circunstâncias de vida, além de adquirir respeito, apesar de todos os percalços de um
contexto de risco.
4.2 A experiência de internamento segundo o olhar do adolescente
Nas categorias do Tema B, discutiremos a experiência de internamento, segundo
a perspetiva dos adolescentes, bem como a execução da medida socioeducativa, na
persecução do objetivo de promover a cidadania e a educação, através de uma
pedagogia emancipatória, para que, sobretudo, o adolescente não reincida no ato
infracional (Malvasi, 2011, p. 160).
Aqui, refletimos no seguinte questionamento: O que prepondera na unidade de
internamento: o viés socioeducativo ou as práticas prisionais? A fala do E2 demonstra o
que parece ser o entendimento de todos os entrevistados a esse respeito: “Eles fala que
humilhante, se considerarmos que também é comum que os motoristas se sintam inseguros, intimidados,
desprezem ou não abram os vidros. 19 “Boca de fumo” é o nome do local onde é realizado o tráfico de drogas, a venda de drogas para o
público.
49
isso aqui é escola… mas é massacre. De manhã é escola, de noite é só amasso… a hora
que eles tem pra se divertir com nós.” (E2, 16 anos). As narrativas de perplexidade em
relação ao emprego do termo “escola” para identificar a unidade de internamento se
aferem em mais de uma entrevista neste estudo. Para os adolescentes, destinatários da
medida de internamento, a unidade não é escola, é cadeia: “Por que o nome disso aqui é
escola? Isso aqui não é escola… ‘bagulho doido’20” (E4, 17 anos); “Aqui o nome é
escola? Que engraçado… (risos). Imagina se alguém passa aqui na frente e fala “quero
matricular meu filho nessa escola” (risos). Vai ter que ficar aqui pelo menos 6 meses
trancado (risos)” (E8, 16 anos).
O que verificamos, a partir da imersão na unidade de internamento, no decorrer
da pesquisa de campo, é que, apesar da implementação de atividades que estão contidas
no modelo socioeducativo, a medida de internamento se constitui, essencialmente, como
uma medida prisional. A unidade de internamento concentra as características e as
práticas de uma instituição prisional, de modo que os aspetos punitivos da experiência
de internamento sobrepõem-se aos aspetos pedagógicos.
Quotidiano de internamento
Na categoria “Quotidiano de internamento”, reunimos as narrativas dos
adolescentes que descrevem o dia a dia habitual na unidade. O quotidiano se desenvolve
com atividades típicas de um contexto de privação de liberdade: ver televisão, ouvir
música, conversar com os colegas, orar pela família. Como não há espaço físico
adequado para refeitório, que comporte o número de internos presentes na unidade, os
adolescentes também realizam as refeições dentro dos alojamentos: “Eu acordo, tomo
café, fico conversando com os garotos do alojamento, até a hora de “pagar”21 o
almoço. Aí, depois do almoço, eu tomo um banho e fico só esperando chamar pra
escola. Aí volto e fico conversando, vejo televisão… assistir novela, lavar a roupa, a
manta que a gente deita. Essas coisas só… nada demais.” (E7, 18 anos).
A rotina monótona, inerente ao modelo prisional, é reproduzida no sistema
socioeducativo. Os adolescentes permanecem reclusos em seus alojamentos, até o
20 A expressão do E4 significa “que coisa doida”. 21 Hora de “pagar o almoço” significa o momento em que os agentes socioeducativos entregam o almoço
de cada adolescente dentro dos alojamentos. O termo “pagar”, neste caso, significa “entregar”,
“conceder”.
50
momento em que são encaminhados, pelos agentes, para a escola ou para as atividades
socioeducativas nas quais participam (cursos profissionalizantes, cursos educativos e
atividades recreativas).
Ainda assim, nem todos os adolescentes participam nestas atividades. À data de
início da pesquisa, a unidade, que possui capacidade para alojar 133 internos, contava
com mais de 300 adolescentes reclusos e apenas 12 agentes socioeducativos, para gerir
a segurança e administrar o ir e vir das atividades. Para além da sobrelotação e do défice
de funcionários, aspetos que, por si só, já comprometem a execução do modelo da
proteção integral, os alojamentos nos quais os adolescentes permanecem alocados são
sujos e degradados, o que evidencia a precariedade e o abandono do sistema
socioeducativo pelo estado do Rio de Janeiro, conforme verificado durante a pesquisa
de campo.
Outra questão preocupante diz respeito à falta do “banho de sol”22, período no
qual os internos são encaminhados para alguma dependência ao ar livre. O “banho de
sol” não é oferecido diariamente ou, sequer, semanalmente aos adolescentes na rotina da
unidade, direito este que deveria ser observado em qualquer espécie de estabelecimento
prisional, quanto mais no sistema socioeducativo, conforme determina a própria
Constituição brasileira23. A título de exemplo, apresentamos os relatos de E3 e E5: “O
certo era ter banho de sol todo domingo… nem banho de sol nós tem (…)” (E3, 17
anos); “Tô querendo participar na horta, pra tomar um banho de sol. Onde eu tô, não
tem banho de sol… lá no Módulo 2 tem. Quando tinha (banho de sol) na outra unidade,
eu ficava na moral lá…” (E5, 16 anos).
A permanência nos alojamentos fechados, húmidos, sem a luz solar, com
número excessivo de pessoas24, compromete a saúde física e o sistema imunológico dos
adolescentes, expondo-os à proliferação de doenças. À vista das más condições de
22 “Banho de sol” é o termo utilizado em referência ao período em que os presos são encaminhados para
alguma dependência ao ar livre nas unidades prisionais. A Lei de Execução Penal brasileira (Lei 7.210 de
1984, artigos 40, 41 e 52, inciso IV) determina que este período deve ser de, no mínimo, 2 horas por dia,
sendo este também o entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 172.136/SP, julgado em 01 de
julho de 2019), tendo em vista a própria Constituição brasileira, que proíbe, genericamente, os
tratamentos desumanos ou degradantes e penas cruéis (Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, artigo 5º, incisos III e XLVII, alínea e), e, ainda, por regras internacionais que visam a garantir que
todos os países signatários se empenham em promover a execução penal dentro de condições mínimas de
dignidade humana (Cunha, 2019). 23 Art. 5º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: ninguém será submetido
a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. 24 Em média, são 9 adolescentes dentro de cada alojamento com 4 camas. Os adolescentes dividem as
camas de solteiro.
51
encarceramento, verificamos, durante a pesquisa de campo, que, com frequência, os
adolescentes organizam rebeliões nas unidades de internamento, o que se exemplifica na
fala de E3: “(…) tá vendo que lá no (…) eles tem banho de sol, por quê? Porque nós
botou fogo em tudo, reivindicou… e falamo na cara da juíza que botamo fogo por isso
mesmo” (E3, 17 anos).
Os adolescentes têm o discernimento de que o contexto de privação de liberdade
não autoriza a supressão de suas garantias individuais durante o cumprimento da
medida socioeducativa. Assim, é preciso considerar que, na prática, a medida de
internamento impõe, não apenas a restrição da liberdade, como também outras
penalidades ilegais sobre o corpo e sobre o psicológico dos adolescentes. Ao ser
entrevistado, E8 estendeu seus braços à mesa para mostrar à pesquisadora as suas
manchas e cicatrizes na pele: “Lá [noutra unidade socioeducativa] não tinha banho de
sol… essas marcas aqui25 (apontou para os braços) peguei tudo lá, porque você sabe
que se ficar sem pegar sol o corpo fica desidratado… lá o sol nem batia, lugar
fechado… pior que na de maior” (E8, 16 anos). Perceba-se que, com tais condições,
este entrevistado considera a unidade de internamento pior do que uma unidade
prisional de adultos, porque sabe que, em regra, os presos têm direito ao período de
banho de sol, sendo este um direito humano básico e essencial.
Relação com a escola e frequência escolar durante o internamento
A frequência escolar é obrigatória no sistema socioeducativo, porém, na prática,
verificamos que, tal como ocorre com as demais atividades, não há controlo por parte da
instituição quanto à assiduidade dos internos nas atividades escolares26.
Existem dois aspetos que comprometem a participação dos adolescentes nas
atividades escolares: em primeiro lugar, o conflito entre internos de fações distintas e a
tensão que decorre desta rivalidade na convivência entre os adolescentes, que obsta
tanto ao comparecimento na escola quanto ao próprio andamento das aulas, para aqueles
que cumprem a frequência escolar; em segundo lugar, para além da falta de controlo por
parte da instituição, no que diz respeito ao não comparecimento na escola por escolha
do próprio adolescente, percebemos que, por vezes, os agentes socioeducativos não
25 Manchas hipocrómicas nos membros superiores, de provável etiologia fúngica. 26 Na Tabela 9 (Anexo XI) apresentamos a relação de frequência escolar dos entrevistados.
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encaminham os internos dos alojamentos para as atividades escolares. A exemplo disso,
vejamos as falas do E2 e do E4: “Eu vou em todas as aulas na escola, só que tava um
tempo sem me chamar…” (E2, 16 anos); “Quando chama… vou quando chama. Mais
ou menos umas quatro vezes por semana. Mas só vai quem quer… a maioria vai só pra
poder sair do alojamento.” (E4, 17 anos).
Estas duas problemáticas comprometem a função socioeducativa da escola na
unidade e, por conseguinte, o objetivo de que o adolescente desenvolva seus interesses e
aptidões através da educação, encontrando suporte para caminhos de vida alheios às
práticas delinquenciais.
Paralelamente a estes aspetos, no discurso do E6, temos exemplificado o
abandono escolar associado à descrença na instituição como fonte de suporte social
(Cullen, 1994, 1999; Colvin et al., 2002). O E6, que já cumpria a medida de
internamento há quase dois anos, e sabendo da proximidade da sua libertação,
expressava o sentimento de cansaço do contexto prisional, e, igualmente, o desgaste
quanto às práticas socioeducativas, que, para ele, são formas de manter as aparências e
ocultar outros aspetos de uma experiência de encarceramento: “Agora tô só esperando
minha resposta. Aqui, eu tava fazendo o 9º ano, fiz uma prova de aceleração. Mas
agora só tô dormindo mermo. Eles fala que é obrigado a descer, mas é “lorota”
(mentira) só pra fazer nós descer mermo. Mas agora só continuo na rua… aqui não vou
mais continuar descendo” (E6, 18 anos). O abandono escolar do E6 reflete o
esgotamento de suas forças, no sentido de se adequar às expectativas institucionais,
dentre as quais está a participação na escola. A escolha por aguardar simplesmente o
passar do tempo, somada à percepção do modelo socioeducativo como um modelo de
fachada, nos leva a crer que o adolescente não concebe o viés socioeducativo como
sendo capaz de possibilitar um caminho para a reconstrução de sua vida em sociedade.
O comparecimento dos adolescentes na escola também tem como principal
motivação a saída momentânea dos alojamentos, com o intuito de distração, somado ao
esforço de adequação, semelhantemente ao que ocorre com os cursos
profissionalizantes. A exemplo, vejamos a fala do E4: “Tem algumas [aulas] que eu não
gosto, mas me sacrifico a ficar… é igual a gente aqui… se tá tomando meu tempo?
Melhor ainda.” (E4, 17 anos).
Isto não significa que o adolescente não absorva conhecimento durante as aulas
ou que o facto de não gostar de uma determinada aula seja um aspeto determinante no
53
seu processo de aprendizado e de formação como cidadão. Contudo, ainda que subsista
a escola a operar dentro da unidade, as características prisionais da instituição, as
práticas repressivas e o conflito entre fações, que remetem à lógica da delinquência, são
aspetos dominantes na experiência de internamento do adolescente, refreando a função
pedagógica, tanto no que diz respeito ao aproveitamento escolar, quanto das demais
atividades socioeducativas (cursos profissionalizantes e atividades recreativas),
conforme refletiremos nas categorias seguintes.
Neste sentido, por mais que alguns entrevistados participem das aulas, num
esforço de corresponder à expectativa institucional de “reabilitação”, o discurso dos
adolescentes remete-nos para o sentimento de descrença na escola do internamento, bem
como ao baixo aproveitamento das aulas nas quais participam.
Torna-se problemática a tentativa de agenciar a transformação do sujeito através
da educação, num ambiente altamente coercitivo, no qual predomina o ideal punitivo.
Isto porque a realização de práticas excessivamente coercitivas na experiência de
internamento tem o condão de esvaziar o sentido e a efetividade das atividades escolares
e socioeducativas que são implementadas. Por esta razão, percebemos na análise destes
relatos, uma visão clara acerca do que, elementarmente, constitui a experiência na
unidade para os adolescentes entrevistados: trata-se de uma prisão onde está a funcionar
uma escola e não de uma escola sob um regime de internamento, o que sinaliza a
prevalência das práticas punitivas sobre as práticas socioeducativas.
Atividades socioeducativas
Na categoria “Atividades socioeducativas realizadas durante o internamento”
analisamos as narrativas dos adolescentes sobre o aproveitamento dos cursos
profissionalizantes, dos cursos educativos e das atividades recreativas (ida à piscina, à
quadra de futebol, à horta, à sala de ping-pong e matraquilhos, às aulas de artesanato, a
sessões de filmes, etc.).
Na Tabela 8 (Anexo X), apresentamos a participação dos adolescentes nos
cursos profissionalizantes27 e educativos28, de acordo com o tempo de internamento,
27 Os cursos profissionalizantes e educativos são oferecidos mediante parceria entre o DEGASE e
entidades privadas de iniciativa social, que submetem à instituição um projeto a ser implementado nas
unidades, em prol do desenvolvimento do modelo socioeducativo. São cursos de capacitação profissional,
que ocorrem 2 vezes na semana e têm duração de 10 a 12 meses, pelos quais o adolescente poderá retirar
54
segundo foi relatado nas entrevistas. Sobre este aspeto, é importante destacar que a
participação nos cursos profissionalizantes ou educativos não é uma garantia vinculada
à entrada do adolescente na unidade de internamento, diferentemente do que ocorre com
a escola. Ao chegar na unidade, o adolescente será matriculado e alocado numa das
classes da escola no internamento, conforme o ano em que está a cursar, tendo em vista
que a frequência escolar é obrigatória. Já a participação nos cursos dependerá do
número de vagas e das modalidades disponíveis, sendo que o adolescente deverá esperar
a possibilidade de ser chamado e manifestar o interesse em realizar. Além disso, deve
considerar-se o contexto de sobrelotação da unidade, que dificulta a implementação de
tais atividades, tendo em conta que não existe oferta de vagas para todos os internos.
Com as entrevistas, verificamos que os cursos educativos e profissionalizantes
são percebidos pelos adolescentes, sobretudo, como possibilidades de distração, de
alívio mental e movimentação, com a saída momentânea dos alojamentos nos horários
de cada curso. Como não há regularidade na realização das práticas socioeducativas, os
adolescentes manifestam interesse e mesmo suplicam pela participação em quaisquer
atividades externas, buscando preencher, de algum modo, o tempo vago, a mente e a
rotina prisional na unidade. É o que observamos através da fala do E5, por exemplo:
“Tipo assim, eu faço só atividade mesmo que me solta… mas os cara (funcionários) não
solta, quadra e piscina só de vez em quando… eu tô interessado em fazer qualquer
coisa aqui pra ficar melhor, pra ficar tranquilo. Se fizesse alguma correria, fizesse as
coisa, ia ficar mais tranquilo ainda. Tem menor que ajuda a entregar as quentinha
(embalagem do almoço) e suco nos alojamentos, que vão na horta… lá na outra
unidade eu ajudava a fazer faxina no alojamento. Qualquer coisa que ajude a mente”
(E5, 16 anos).
Além disso, o prazo de cumprimento da medida de internamento está
condicionado ao “bom comportamento” dos adolescentes, sendo a participação nas
atividades escolares e socioeducativas um dos meios de demonstrá-lo. Os adolescentes
têm o discernimento de que precisam ajustar-se às expectativas institucionais e
performar o comportamento de submissão às normas (Malvasi, 2011, p. 166), pois que,
a sua carteira de trabalho e receber uma quantia remuneratória ao final do internamento. Os entrevistados
que participaram do programa apontaram os seguintes cursos: lancheiro, pizzaiolo, técnico de vendas,
instalação de ar-condicionado e mecânica de automóveis. 28 Os cursos educativos são realizados através de uma ONG, que atua dentro da unidade de internamento.
São cursos de reforço escolar, ministrados por professores voluntários.
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apenas através deste comportamento padrão, serão tidos como “ressocializados” e
prontos para retornar ao convívio social.
O E7, que cumpria a medida de internamento na unidade há 2 meses e 12 dias, à
data da pesquisa, não havia ainda sido integrado num dos cursos profissionalizantes ou
educativos. Durante a entrevista, este adolescente relatava um plano traçado para o seu
futuro, no sentido de dar continuidade à formação nos estudos após o internamento.
Contava que, com o apoio de seus pais, pretendia iniciar o ensino superior noutro país e
afirmava, seguramente, que as aulas na escola e as atividades socioeducativas do
internamento não lhe eram úteis à realização deste sonho. Mesmo assim, o entrevistado
(E7) almejava participar de quaisquer atividades, visando ocupar o tempo ocioso, mas,
acima de tudo, por entender que, ao cumprir o programa socioeducativo, estaria
correspondendo às expectativas institucionais, para que fosse considerado apto a
retornar à vida em sociedade o quanto antes. Em sua narrativa, o E7 afirma: “Não, ainda
não participei [cursos profissionalizantes ou educativos] (…). Qualquer um que tiver
aqui eu vou fazer, até pra ocupar um pouco a mente… mas até agora não me
chamaram.” (E7, 18 anos).
As narrativas do E7 demonstram uma verdadeira intenção de participação nas
atividades socioeducativas e de cumprimento das normas gerais do internamento, no
intuito de reduzir a experiência de reclusão ao mínimo. Isto porque, na perspetiva do
adolescente, o programa socioeducativo não é capaz de proporcionar o suporte social
(Cullen, 1994; Colvin et al., 2002, p. 24) necessário para reinseri-lo na sociedade com
novos recursos profissionais ou educacionais, mas, por outro lado, todo o esforço de
adequação às normas lhe será vantajoso, já que o período de institucionalização
significa a interrupção de seus sonhos, projetos pessoais e laços afetivos.
Assim, verificamos que a participação nos cursos educativos e
profissionalizantes é, de imediato, um modo de ocupação e distração, no sentido de ter
um escape à permanência nos alojamentos e ao modelo prisional na unidade. Em
segundo lugar, a participação nos cursos integra parte dos comportamentos
reproduzidos pelos adolescentes porque lhes são esperados, em correspondência às
regras veiculadas no internamento, o que evidencia uma relação de conformação dos
objetivos pessoais do adolescente aos objetivos institucionais.
De tal forma, durante as entrevistas, quando indagados acerca da possibilidade
de aproveitamento destas atividades numa trajetória profissional, as respostas dos
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entrevistados eram precedidas por um instante de pausa e hesitação, revelando-nos uma
certa dificuldade de avaliar esta possibilidade. Contudo, alguns entrevistados (E2, E4,
E5 e E6) reconhecem o próprio aproveitamento nos cursos educativos e
profissionalizantes realizados, o que se manifesta a partir de uma reflexão do
adolescente, na qual este reforça os seus aprendizados com a experiência de
internamento como um todo, absorvendo e valorando os aspetos positivos deste período,
apesar das dificuldades. Quando, ao refletir na questão, o adolescente reconhece a
identificação e o aprendizado na atividade da qual participou, ele é capaz de visualizar
esta atividade como um recurso que pode ser empreendido para novas possibilidades de
atuação profissional ou, simplesmente, se orgulha por ter adquirido uma nova
habilidade, dando ênfase aos seus ganhos por entre os contrastes da experiência de
internamento. Neste sentido, consideremos os casos do E5 e do E4: o E5 tem interesse
por carros e percebe no curso de técnico de vendas uma oportunidade inicial de
trabalho, como vendedor de automóveis, enquanto o E4 relata que gostava de cozinhar,
que sua mãe o considera um bom cozinheiro, e que, portanto, tirou proveito do curso de
lancheiro, onde aprendeu técnicas de cozinha.
Em contrapartida, quando o adolescente não reconhece o aproveitamento dos
cursos, funcionando apenas como uma possibilidade de ocupação do tempo ocioso, a
reflexão sugere o sentimento oposto, de descrédito, desânimo quanto às possibilidades
profissionais e estudantis e a avaliação do período de internamento como um tempo
perdido. Sobre isto, vejamos a fala do E1: “Que nada, po… aprendi nada. (…) Já
perguntaram se eu queria aprender a montar e desmontar ar-condicionado… quero
nada. (…) Não. Não aprendo nada aqui. Essa escola aqui não ensina nada. –
(perguntei sobre os cursos profissionalizantes) – Tô há “mó” (um) tempão aqui e só fiz
um. Mesmo assim não ensina nada também.” (E1, 15 anos).
Atividades recreativas
Quanto às atividades recreativas ― ida à piscina, à quadra de futebol, à horta, à
sala de ping-pong e matraquilhos, às aulas de artesanato, às sessões de filmes, etc. ―
verificamos, por meio das entrevistas e da observação participante, que estas atividades
também não são uma prerrogativa da experiência de internamento, à vista do princípio
da proteção integral. Ao contrário, percebemos que a participação nestas atividades está
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condicionada ao merecimento dos adolescentes ou, ainda, ao arbítrio dos funcionários.
Segundo relatado pelos entrevistados, o encaminhamento para as atividades recreativas
depende da boa vontade e da disponibilidade dos agentes em plantão na unidade,
considerando-se, ainda, o número reduzido de agentes socioeducativos em cada plantão
de segurança (12 agentes). Sobre este aspeto, vejamos as falas do E3, E6 e E7:
“Isso é tudo “facha”! É tudo “facha” (fachada, aparência), ô Cecilia… não tem
nada disso não. Piscina? Só vai aqueles “bundalelê”29 lá do Módulo 2, porque é grupo
pequeno… tira um, dois, de cada alojamento pra jogar bola na quadra… mas quando
eles querem, tudo quando eles querem, quem eles querem. O certo era ter banho de sol
todo domingo… nem banho de sol nós tem… aquela piscina lá é de enfeite po…” (E3,
17 anos).
“Futebol, só futebol, só. Campeonato já participei, já, na quadra. Mas é
raridade, muito difícil… horta é só pra quem fechar30 com eles [funcionários] mermo…
porque os cara [os internos] querem fugir de qualquer jeito, então não dá pra levar
qualquer um não” (E6, 18 anos).
“A não ser a escola… (pausa) não tem atividade. Às vezes domingo eles
chamam… três de cada alojamento pra jogar bola na quadra, ou dois de cada
alojamento pra ir na piscina. Só que, até agora, não me chamaram pra participar de
nenhuma não” (E7, 18 anos).
Na fala do E3 verificamos o sentimento de injustiça em relação aos internos das
fações rivais, pertencentes ao Módulo 2, que têm acesso à piscina, porque estão num
grupo menor e, assim, os funcionários exercem melhor controlo desta atividade. Já na
fala do E6, percebemos a relação de oposição entre os agentes socioeducativos,
representantes da instituição, e os adolescentes. Segundo o entrevistado, a participação
na horta é destinada apenas aos internos do Módulo sem fação, que, em sua perspetiva,
são aqueles que se aliaram aos funcionários e, por escolha, se afastaram dos colegas da
29 Adolescentes das fações 2 e 3, que ocupam os alojamentos do Módulo 2 na unidade de internamento. 30 O E6 quis dizer que a participação na horta é uma exclusividade dos adolescentes que são “amigos” dos
agentes socioeducativos, isto é, os adolescentes do Módulo sem fação.
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fação. Além disso, o entrevistado (E6) ressalta a possibilidade de fuga no espaço
externo destinado à horta, porquanto exige-se uma relação de confiança mútua entre os
adolescentes participantes e os funcionários que supervisionam esta atividade.
Esta desigualdade na implementação das atividades recreativas é um fator que
acentua os conflitos preexistentes na experiência de internamento. Em primeiro lugar, o
conflito entre os próprios adolescentes, que pertencem a alojamentos e, por conseguinte,
fações diferentes, e se sentem preteridos uns em relação aos outros, fazendo aumentar o
sentimento de raiva, injustiça e a rivalidade entre as fações criminosas, que permeiam o
ambiente do internamento em toda a sua conjuntura. Em segundo lugar, o conflito entre
os adolescentes e os agentes socioeducativos, que assumem uma posição de
antagonismo em relação às fações e cuja relação com os internos já se estabelece com
desconfiança e hostilidade nas práticas prisionais.
Neste sentido, percebemos, no decorrer da investigação, que as atividades
recreativas são priorizadas para os adolescentes que compõem o Módulo sem fação, isto
é, os 9 adolescentes, à época, que estabeleceram um compromisso de bom
comportamento perante a instituição e manifestaram a intenção de abandonar o vínculo
com as suas respetivas fações criminosas. Enquanto os internos do Módulo sem fação
participam de atividades recreativas com frequência semanal, os demais adolescentes
(pertencentes ao Módulo 2 e ao Módulo 1) permanecem confinados dentro dos
alojamentos na maior parte do tempo, não havendo regularidade na prática destas
atividades.
Vale dizer que o compromisso assumido pelos adolescentes do Módulo sem
fação se dá, essencialmente, em função desta relação de troca: o adolescente abandona o
convívio junto aos colegas da mesma fação, renunciando aos valores compartilhados
por seus membros durante o internamento; como recompensa, terá maior liberdade na
rotina da unidade, com a participação frequente nas atividades recreativas. Contudo, isto
não significa que o adolescente queira, em seu íntimo, se desvincular da fação
criminosa, interromper as práticas delinquenciais ou que tenha renunciado aos valores
compartilhados pelos integrantes da fação. O que parece motivar o adolescente são os
benefícios concedidos durante o internamento, que reduzem o sofrimento na experiência
prisional, ainda que, para tanto, precise ceder ao interesse institucional, “traindo” as
regras e a relação de solidariedade entre os membros da fação no período de reclusão. A
exemplo disso, vejamos a narrativa do E2, que, à data da pesquisa, pertencia Módulo
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sem fação: “Aí saí [do Módulo 1], tô lá no “sem fação”, eles fala que eu tô errado, que
tô traindo o movimento, bah… mas eu que falo pra eles: eu como na mesa, eles comem
trancado no alojamento… eu fico solto, eu vou na piscina…e eles lá? Ficam tudo
trancado, brigando. Eu sei que, quando eu voltar pra favela, eu vou ter que explicar
pro dono de lá… porquê que eu abandonei o convívio (com os internos da mesma
fação) (…)” (E2, 16 anos).
Igualmente, vejamos a fala do E8, também do Módulo sem fação, que corrobora
esta análise: “Aqui, se você tá aqui em cima, Fação 1, você é maluco. Aqui em cima se
você sai uma vez na semana é muito. No Módulo sem fação sai muito mais, muito
melhor… sai pra horta, vê filme, tem colchão novo, faz artesanato, aprendi vários
artesanato. Pra mim, todo mundo aqui de cima tinha que ir pro Módulo sem fação, mas
se bem que não cabe todo mundo né… e é só pra quem quer mudar de vida. Módulo
sem fação é limpo… aqui em cima é tudo sujo, nojento” (E8, 16 anos).
Nesta reflexão, percebemos que a maneira com que as atividades recreativas são
implementadas — isto é, segundo o comportamento de submissão às regras da
instituição, bem como o abandono do convívio junto aos colegas da mesma fação —
termina por reforçar a tensão no meio social imediato do internamento (Agnew, 1992;
Colvin et al., 2002): entre os internos, acentuando a rivalidade entre fações distintas e
produzindo o rótulo de “traidor” quanto àqueles que aderem ao módulo; entre os
adolescentes e a própria instituição, que, por seu turno, assume um papel de oposição às
fações das quais os adolescentes fazem parte, o que tem o condão de fortalecer ainda
mais o vínculo entre os adolescentes e suas respetivas fações. Se o adolescente sabe que
a participação nas atividades recreativas é uma prerrogativa do internamento, mas que
estas atividades, na prática, estão condicionadas à renúncia de um vínculo preexistente
com a sua fação criminosa, então a manutenção do vínculo e da união entre os membros
da fação passa a constituir uma forma de resistência à experiência prisional.
Desta forma, tendo como base a Teoria Geral da Anomia (Agnew, 1992) e a
Teoria da Coerção (Colvin, Cullen & Ven, 2002), encontramos, na execução das
atividades recreativas, outra relação de tensão, caracterizada por um tratamento
excessivamente coercitivo por parte da instituição. Tal como apontam estas teorias, os
recortes das entrevistas demonstram que a privação arbitrária das atividades recreativas
— estímulos positivamente valorizados na experiência de internamento — produz, nos
adolescentes, o sentimento de raiva e injustiça perante si mesmos, os demais internos e
60
a própria instituição, na figura de seus representantes (Agnew, 1992; Colvin et al.,
2002).
Em síntese, no que diz respeito aos cursos educativos e profissionalizantes,
temos uma relação de tensão entre os objetivos institucionais e os objetivos pessoais do
adolescente, enquanto nas atividades recreativas subsiste uma relação de tensão, que
decorre da coerção injusta, do tratamento distinto entre os adolescentes de diferentes
alojamentos e fações.
Convívio entre os adolescentes
Na categoria “Convívio entre os adolescentes” analisamos a relação entre os
adolescentes dentro da unidade, considerando-se a divisão dos alojamentos, segundo a
fação criminosa, bem como as regras impostas por estas fações, que são reproduzidas
pelos internos na experiência de internamento. Um aspeto particularmente relevante, já
anteriormente analisado a propósito da frequência escolar e da participação nas
atividades socioeducativas e recreativas, diz respeito ao conflito entre os internos de
fações rivais, que perpassa por toda a experiência de internamento e demarca a relação
entre os adolescentes. Sobre isto, vejamos as falas do E3 e do E5:
“(…) escola fui uns 2 dia, 3 dia… mas fazer o que na escola? Ouvir desaforo do
professor? Vagabundo só fica lá brigando, fazendo “fanfarronagem”… aí gera
problema, briga… pra gerar problema eu prefiro ficar no alojamento, tranquilo.
Mistura a aula com o pessoal do Módulo 2, que é outra fação… aí, pra ficar em
confusão, prefiro recuar” (E3, 17 anos).
“(…) na educação física nunca fui, por causa que a fação rival pode arrumar
briga e por causa que a minha fação não permite jogar com os menor de outra fação…
só se for contra, não pode ser do mesmo time não” (E5, 16 anos).
Com a imersão no dia a dia da unidade, percebemos que a convivência entre os
adolescentes é marcada pela iminência de conflito entre os que se identificam com
61
fações distintas, ou contra aqueles que ocupam o alojamento “sem fação”31, cuja decisão
de afastamento do convívio junto aos demais representa uma espécie de traição ao
“movimento”32. Isto se verifica no ir e vir dos adolescentes dentro da unidade e nas
práticas escolares e socioeducativas, sendo que a permanência no mesmo espaço físico
ou o simples esbarrar pelos corredores oportuniza situações de tensão entre os internos:
trocas de olhares, ameaças, intimidações. Esta relação de tensão constante entre os
grupos rivais é, por si só, um fator que reduz as possibilidades de aproveitamento do
programa socioeducativo, já que os adolescentes precisam de estar em contínuo estado
de alerta uns diante dos outros e, em razão disso, evitam frequentar as mesmas
atividades.
O conflito entre fações rivais é uma realidade da experiência social dos
adolescentes, no que concerne às práticas delinquenciais, sendo este conflito
transportado para dentro da unidade. A disputa territorial entre as fações e os valores
compartilhados por seus membros estão presentes no ambiente de internamento, de
modo que os adolescentes inimigos do lado de fora permanecem sendo inimigos no
período de internamento. Vejamos as narrativas do E7 e do E1: “Os da outra fação são
eles na dele e a gente na nossa. Não se mistura, não se fala… não é regra da cadeia em
si, mas regra de quem frequenta a cadeia” (E7, 18 anos); “(…) os menor lá debaixo são
tudo vacilão. Quando eu passo e vejo, falo: “vai morrer, menor, vai morrer”. Na aula
sai briga direto, direto… já “quebramo” cadeira… – (perguntei ao entrevistado se não
se falam durante as aulas) – Nada… falo nada” (E1, 15 anos).
Com efeito, a manutenção deste conflito no ambiente institucional revela-nos,
num plano maior, a força do próprio conflito social entre fações mas, igualmente, uma
normatividade internalizada pelos adolescentes, que decorre da interação com o grupo
nas práticas delinquenciais (Akers, 1979). Isto é, na relação com as fações, no meio
exterior, compartilham-se diversas definições da conduta a ser desempenhada por seus
correlatos, nomeadamente aquelas relativas aos comportamentos que devem ser
performados durante o período de reclusão, tais como não se relacionar com membros
de fações rivais, não cumprimentar com aperto de mão os agentes socioeducativos e
permanecer na convivência junto aos seus pares, ainda que as condições de
aprisionamento sejam adversas.
31 Termo empregue pelos adolescentes e pelos funcionários da unidade em referência ao Módulo sem
fação. 32 Termo utilizado pelos adolescentes em referência à fação.
62
Paralelamente às normas e às expectativas institucionais, o adolescente também
está submetido à normatividade e à coerção da fação no internamento. A fação exerce
poder sobre o comportamento dos adolescentes no ambiente institucional, mediante a
reprodução de uma orientação moral partilhada, que, apesar de construída no meio
social, se mantém no internamento através da própria convivência entre os internos. O
risco de ser preso, além de previsto, e mais do que simplesmente aceite, constitui-se
como uma etapa da “vida no crime” (Neri, 2011, p. 290), de modo que poder-se-ia dizer
que a instituição de internamento passa a ser parte inerente das práticas delinquenciais,
um período de adversidade no qual se espera do adolescente uma lealdade
inquestionável, que será valorada por seus pares como uma forma de resistência.
Também por esta razão, embora subsista a relação de companheirismo entre os
internos, há, em contrapartida, uma interação marcada pela vigilância mútua em torno
dos valores compartilhados coletivamente. Assim, num primeiro plano, temos, por um
lado, a relação de união e solidariedade entre os internos da mesma fação, que se dá a
partir da identificação que possuem uns com os outros, pois, para além de partilharem o
sentimento de pertença ao mesmo grupo, os adolescentes possuem trajetórias de vida e
origens similares, e, por outro lado, os adolescentes conservam o discurso da
desconfiança sobre as relações de amizade no ambiente da prisão (Almeida, 2013, p.
155), tal como ocorre no meio social, pré-existente ao internamento. Vejamos as
narrativas do E3 e do E6, que ilustram a manutenção desta relação de suspeita e
insegurança entre os adolescentes:
“Que amigos? Já falei que não existe isso de amigo, po… (risos). No
alojamento, onde eu tô, é tudo da mesma fação, então é tranquilo. Nós, aqui dentro da
cadeia, nós acorda junto, dorme junto, faz tudo junto… então vira irmão, dá a mão pra
quem tá caído no chão. A nossa é mais ajudar mermo, os caído, que fica triste, não
recebe visita” (E3, 17 anos).
“Relação tranquila [com os colegas da mesma fação] troco um papo… às vezes
dá briguinha (risos), mas nada de um encostar no outro não… é uma discussão. Falar
pra tu… amigo, amigo de verdade nós não tem não… mas tem amizade de parceiro
mesmo, de cadeia. Nem na pista (na rua) eu tava com negócio de amizade, amigo…
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você não sabe em quem confia, quem tá do nosso lado, quem pode fazer uma maldade
pelas costas… ou até na sua frente, uma covardia” (E6, 18 anos).
Se, por um lado, a convivência junto aos membros da fação é fonte de uma
espécie de suporte social (Colvin et al., 2002, p. 25) no período de internamento, por
outro lado, esta convivência implica uma relação de controlo mútuo entre os
adolescentes, no que concerne aos valores comuns, às normas da fação e, por
conseguinte, à atitude a ser performada por cada um durante o internamento. Esta
vigilância não é necessariamente declarada ou consciente, mas consiste, inegavelmente,
num aspeto gerador de tensão, tendo em vista o risco de uma resposta coercitiva por
parte da liderança da fação, após a saída do adolescente do internamento. Recortemos a
fala do E2 acerca disso: “(…) porque se souberem que aqui na cadeia eu saí do …
[Fação 1] … eles me “passam” (fez um gesto de cortar o pescoço), mas eu sou bom no
desenrolo… vou chegar lá e vou falar, vou desenrolar. – (perguntei como isso
funcionava) – Ah, se eu chegar e falar que eu quero sair pra cuidar da minha filha, tá
tranquilo. Mas que eu saí do convívio aqui… eles me “passam”, po. Outra vez, lá no
alojamento, eram 4 pegando de porrada um menor do [Fação 2] … menor
pequenininho, covardia… não bati nele não, peguei eles de porrada também. Segui
minha mente, porque sou sujeito homem, sei que fiz certo. Mas quando eu voltar lá [na
comunidade], vou ter que explicar tudo… eles vão falar: “mas os cara [da fação rival]
vem aqui, mete bala, mata nossos irmão...”; “tem que matar”; (…) mas eu vou
desenrolar com eles” (E2, 16 anos).
Cabe ressaltar que, em regra, quaisquer práticas delinquenciais ocorrem segundo
a anuência da fação dominante numa respetiva comunidade, bastando que o indivíduo
resida na área de domínio da fação, para estar submetido à estrutura de poder
hierárquico exercido pela organização naquela localidade. É o que demonstra a narrativa
do E7, que, mesmo não sendo propriamente vinculado à fação, demonstra temeridade à
sistemática delinquencial, relativamente à escolha do alojamento: “Eu não honro
bandeira de fação nenhuma não, mas, como eu moro na área dessa fação, eu fico no
alojamento dessa fação. Até porque, se eu fosse pra outra, quando eu saísse eles iam
saber e iam me punir… sei lá, alguma coisa iam fazer” (E7, 18 anos).
Em conclusão, trazendo para a análise desenvolvida as teorias da Associação
Diferencial e da Aprendizagem Social (Akers, 1977), segundo as quais o processo de
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aprendizagem do comportamento delinquente deriva das relações sociais, percebemos
que, tal como discutem estes autores, a convivência entre os adolescentes durante o
internamento reflete a incorporação de atitudes e valores morais compartilhados no dia a
dia das práticas delinquenciais, nas quais a fação é um forte referencial de autoridade.
Assim, o conflito entre as fações e os valores compartilhados na relação com o grupo
são transportados para o ambiente do internamento, de maneira que o sistema prisional
se insere na lógica do sistema criminal, tal como uma extensão ou, mais precisamente,
como um intervalo dificultoso na vida dos adolescentes, mas que é inerente às próprias
práticas delinquenciais.
Com base nos dados recolhidos, seria prematuro afirmar que o ambiente do
internamento reforça o processo de aprendizagem do comportamento delinquente, a
partir das interações entre os indivíduos encarcerados (Akers, 1977). Contudo, o que
podemos perceber é que a prisão é um espaço revelador de valores e comportamentos
que são previamente internalizados pelos adolescentes no meio social, em decorrência
da lógica delinquencial. Sobretudo, a prisão funciona como um espelho destes valores,
já estabelecidos socialmente, em torno das práticas delinquenciais e do conflito social,
tanto entre as fações, quanto entre as fações e o próprio Estado e as suas instituições.
Relação com os agentes socioeducativos
A questão que se repete ao longo deste trabalho — sobre o confronto entre
aspetos prisionais e pedagógicos no sistema socioeducativo (refletido a partir da
experiência e da visão de mundo dos adolescentes) — surge na análise desta categoria,
tendo como suporte o padrão de uma narrativa que é comum aos 8 adolescentes
entrevistados.
No que concerne à relação com os agentes socioeducativos, as entrevistas
revelam-nos o uso de práticas de violência para o controlo e punição dos internos, o que
corrobora a discussão desenvolvida neste estudo, segundo a qual as práticas penais
preponderam sobre as práticas pedagógicas e protetivas no sistema socioeducativo.
A temática da relação com os agentes carcerários suscitou diversos relatos sobre
experiências de vitimação dentro da unidade. Todos os entrevistados já sofreram ou
presenciaram formas de violência física, verbal e psicológica, que podem ser
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classificadas como práticas de tortura33, utilizadas clandestinamente no sistema
socioeducativo para controlar e castigar os adolescentes, que, uma vez subjugados ao
aparato repressivo do ambiente institucional, também estão em condição de
vulnerabilidade perante as práticas ilegais intramuros. Muito além da privação de
liberdade, a prisão sujeita os internos a inúmeras táticas de violência e maus tratos, que
são produzidas e reproduzidas pelos agentes para a dominação dos corpos tutelados.
Estas constituem táticas que fogem aos olhos da sociedade e que, mesmo dentro do
contexto institucional, são ocultadas das autoridades diretivas, apesar de serem
frequentes no dia a dia da unidade.
A narrativa do E7 reúne diferentes aspetos a serem discutidos acerca da relação
entre os adolescentes e os agentes socioeducativos e será capaz de nos conduzir, numa
análise mais profunda, aos possíveis efeitos da experiência de internamento como um
todo, arrematando aspetos anteriormente referidos. Em primeiro lugar, verificamos, na
primeira parte da fala, a construção de um discurso que remete para a necessidade de
atenção redobrada, no sentido do interno se adequar às expectativas institucionais: “Eu
vejo, muitas vezes, o adolescente querendo impor coisas pra não obedecer aos
funcionários e isso só causa coisa pra funcionário mudar o jeito de agir com a gente,
agredir a gente, ou botar no alojamento de castigo, num lugar separado, isolado. Aí,
pra que isso não aconteça comigo, eu sigo as regras da casa, respeito os funcionários.
Não faço nada sem pedir, ando sempre com a mão pra trás, que é o que me
orientaram… que são as regras da casa, pra que não haja essas coisas todas que eles
fazem. Eu nunca vi funcionário agredir um garoto sem motivo… é sempre um
adolescente que faz algo que não é certo… aí o funcionário primeiro fala com voz alta,
até ofende, chama de bandido, ladrão… tenta repreender. Aí, se o adolescente
continua, aí vem a agressão” (E7, 18 anos).
33 O Brasil é signatário da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes da ONU, que estabelece em seu art. 1º: Para os fins da presente Convenção, o
termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são
infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou
confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário
público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu
consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam
consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram
(Decreto n. 40, 1991).
66
Muito mais do que a adequação do comportamento do adolescente à proposta
socioeducativa (com a participação na escola e nas atividades socioeducativas) — que
lhe permitirá uma possível antecipação do retorno à vida em sociedade — estamos a falar
de uma necessidade de adequação voltada para a sobrevivência no ambiente
institucional. A correspondência às expectativas institucionais (o cumprimento das
“regras da casa”) reflete o esforço do adolescente para sobreviver e para, sobretudo,
escapar dos métodos de castigo físico e de outras respostas punitivas. Não cumprir as
regras do internamento, reivindicar, e resistir, de algum modo, ao comportamento
submisso que é esperado significa se expor às práticas de violência implementadas no
quotidiano da unidade: “Eles agridem, mas não vejo como uma forma de ajudar…
nunca é uma agressão que precise, sempre agride covardemente… manda botar a mão
pra trás, aí dá tapa na cara, tapa no peito, tapa nas costas. Não acho que seja algo que
vá ajudar… só gera ódio no adolescente, que volta pro alojamento e fica pensando
naquilo, querendo se vingar de funcionário… não ressocializa nada. Se houvesse um
diálogo ou soubesse só explicar pra eles que não pode… porque, por exemplo, quando
eu cheguei aqui, eu não sabia que aqui era diferente o tratamento. Aqui eles veem o
adolescente como criança que faz malcriação e então tem que ser castigado, agredido.
Tipo, em … [presídio para adultos] não havia esse abuso de poder… funcionário só
fazia o trabalho dele normal… revista, alimentação… não implicava e nem batia nos
presos não. É a maioria dos funcionários, não são todos, mas a maioria é dessa forma”
(E7, 18 anos).
Percebemos que estas práticas de violência, ainda que não oficiais, consistem em
estratégias naturalizadas de controlo no contexto do internamento, tanto pelos agentes
quanto pelos adolescentes, o que conduz o próprio entrevistado (E7) a atribuir alguma
responsabilidade aos internos mais “rebeldes”, por darem causa às formas de agressão,
mesmo que reafirme discordar das respostas excessivamente coercitivas por parte dos
funcionários.
Contudo, ainda que as práticas de violências sejam naturalizadas, porque os
agentes socioeducativos figuram como autoridade no contexto prisional, e porque estas
práticas estão integradas na rotina da unidade, isto não significa que sejam aceites com
docilidade pelos internos. Os adolescentes têm a consciência de que a pena cuja
imposição lhes cabe é a de privação de liberdade e que as práticas de violência, maus
tratos e humilhações estão para além do que devem suportar no período de reclusão.
67
Neste sentido, os adolescentes encontram formas organizadas de sobreviver e resistir à
realidade do sistema prisional, ao se valerem de estratégias coletivas em função de um
propósito comum (instauração de rebeliões, por exemplo), bem como ao se fortalecerem
segundo o vínculo das fações, estreitando-se ainda mais, nesta filiação, como uma
forma de se protegerem dos agentes de punição. Vejamos a fala do E3 a esse respeito:
“Não pode apertar a mão deles, não pode dar “coé”34 pra eles… só o necessário…
respeitar eles, pra eles respeitar nós. Se eles der respeito pra nós, nós vai dar respeito
pra eles… mas nós não pode abaixar a cabeça pra eles… eles é homem igual nós e nós
tá aqui pra cumprir nossa cadeia e pronto. São covarde, eles… você olha o rosto e
pensa que é tranquilo… Hum. Tranquilo é nós… até certo ponto” (E3, 18 anos).
Tais práticas coercitivas de violência refletem o conflito social entre os
adolescentes e os agentes de autoridade (agentes em nome da lei), que, numa posição de
poder oficial, terminam por reforçar a identidade que o adolescente tem em relação à
fação. Através da fação, o adolescente encontra um referencial de poder, pelo qual
poderá se autoafirmar como indivíduo, como “homem”, encontrando um modo de
escapar da coerção marcada por diferentes níveis de violência. Assim, no contexto do
internamento, e fazendo um paralelo com o contexto social exterior à instituição, a
figura dos agentes socioeducativos se equipara à figura da polícia, tanto no que diz
respeito aos métodos de violência implementados, como na percepção dos adolescentes
sobre o policial como inimigo e seu perseguidor.
Na relação com os agentes socioeducativos não resta dúvida quanto ao efeito
criminógeno das práticas de violência que vigoram na experiência de internamento. As
agressões perpetradas pelos agentes socioeducativos não apenas fortalecem a
identificação do adolescente com a fação durante o internamento, mas também suscitam
no adolescente a revolta e o desejo de vingança após o período de reclusão, por se
configurarem como práticas injustas, arbitrárias e humilhantes, injustificáveis a partir
dos atos infracionais cometidos. Tratam-se de exemplos de coerções erráticas (Agnew,
1992; Colvin et al., 2002, p. 22), cuja vingança, sobre si e sobre os outros, só poderá ser
levada a cabo caso o adolescente retorne para as práticas delinquenciais. Vejamos, a
este propósito, a narrativa do E2: “Aqui os cara amassam mermo… não tem pena não.
Dão tapa na cara, chinelada na cara, spray de pimenta, madeirada, soco na costela…
34 Cumprimento, tal como “oi” ou “olá”.
68
depois, na maior cara de pau, vem pedir desculpa, quer apertar a mão… aí não chama
nós pra ir pra aula na escola, deixa trancado no alojamento até melhorar, pra ninguém
ver que apanhou. Eles fala que isso aqui é escola… mas é massacre. De manhã é
escola, de noite é só amasso… a hora que eles tem pra se divertir com nós. (…) Prefiro
esses, que dão tapa na cara (por comparação com os agentes socioeducativos que não
praticam agressões), porque aí posso pegar eles de porrada lá fora” (E2, 16 anos).
Ademais, as práticas de violência anulam o efeito potencial das práticas
efetivamente socioeducativas, desenvolvidas durante a experiência de internamento,
fazendo com que a instituição assuma um papel essencialmente repressivo (Cullen,
1994; Colvin et al., 2002). Os agentes atuam na condição de representantes do Estado e
da instituição e, desta forma, ambos são igualmente responsáveis pelos atos perpetrados
contra a vida, os interesses e a integridade física e psíquica dos adolescentes. Por mais
que a escola e outras práticas socioeducativas subsistam na experiência de internamento,
não há como conceber a medida socioeducativa como sendo capaz de agenciar a
transformação do sujeito — promovendo atitudes e conhecimentos para que,
principalmente, o adolescente não reincida no ato infracional (Malvasi, 2011, p. 160) —,
se as práticas punitivas, que se realizam mediante diferentes táticas de violência,
coexistirem e não forem abolidas desta mesma experiência.
Por último, compreendendo a experiência de internamento como uma
experiência criminógena, trazemos à reflexão a Teoria da Etiquetagem, segundo a qual a
intervenção do sistema de justiça sobre o indivíduo pode resultar num processo de
internalização da identidade de criminoso e provocar o aumento do comportamento
delinquente (Klein, 1986; Bernburg & Krohn, 2003). Conforme referido anteriormente,
os adolescentes em conflito com a lei são, em regra, excluídos socialmente. São, deste
modo, jovens inseridos num contexto de desvantagem estrutural, e cujas características
étnicas e origem pobre já estão associadas a estereótipos negativos que os tornam mais
vulneráveis ao sistema de justiça criminal (Bernburg & Krohn, 2003). Os adolescentes
já encontram dificuldades para aceder às oportunidades convencionais disponíveis no
meio social, além de que precisam empenhar muito mais esforços no processo de uma
formação de identidade não vinculada ao rótulo de “bandido”, que é o esperado pelos
outros. Contudo, para além do reforço da etiqueta de delinquente, que decorre do
próprio processo de institucionalização (Bernburg & Krohn, 2003), o adolescente
encontra, na experiência de internamento, uma conjuntura de violência quotidiana, pela
69
qual os rótulos de “bandido”, “ladrão” ou “traficante” são reforçados e até verbalizados
diariamente, através da relação com os agentes socioeducativos. Recordemos, a este
propósito, a narrativa do E7: “aí o funcionário primeiro fala com voz alta, até ofende,
chama de bandido, ladrão… tenta repreender. Aí, se o adolescente continua, aí vem a
agressão” (E7, 18 anos).
Numa rotina prisional marcada pela exposição a práticas de violência física e
psíquica constantes, o adolescente precisa esforçar-se muito para desvincular a
conceção que tem sobre si mesmo da etiqueta de delinquente, de jovem problemático ou
sem futuro, que lhe é imposta e lembrada a todo o tempo. Isto, somado ao sofrimento
que deriva da própria privação de liberdade, conduz o adolescente a duas possibilidades
de enfrentamento da experiência como um todo: a submissão completa, acompanhada
por um processo de desistência, que se aproxima de uma condição depressiva, e que
podemos perceber na narrativa de E2: “Tomo oito remédios pra dormir (…) não dá pra
ficar pensando muito não. Uma vez fui parar no hospital, porque tomei 30 [remédios]
de uma vez… eu tava muito “baleado”, com muita saudade da minha filha” (E2, 16
anos); a postura combativa de enfrentamento, que está associada à incorporação da
identidade delinquente, e pela qual o adolescente poderá se reafirmar como indivíduo,
encontrando amparo na lógica estabelecida pelas fações.
Na segunda hipótese, percebemos claramente, no discurso de alguns
entrevistados, o efeito criminógeno das práticas de violência realizadas pelos agentes
socioeducativos, bem como do ambiente altamente repressivo, que favorecem o retorno
de uma parte significativa dos adolescentes ao caminho da delinquência após o
internamento, sendo a escolha deste caminho uma expressão de revolta contra si
próprios, contra as pessoas que os maltrataram e contra as amarras de uma estrutura
social que não lhes permite mobilizarem-se socialmente. O apostar no caminho das
práticas delinquenciais é resultado de um processo intenso de etiquetagem, que faz com
que o adolescente não se perceba capaz de traçar uma vida voltada para outras
possibilidades.
Vejamos, a este propósito, a fala do E6, que ilustra um intenso sentimento de
conflito interno: o seu desejo de mudança de vida e a narrativa que remete para o
esforço de nutrir um pensamento de autoestima e otimismo sobre o seu próprio futuro.
A construção da narrativa é sucedida por um instante de pausa, quando o adolescente
refere que tenciona retornar às práticas delinquenciais, caminho este que se vislumbra
70
em função da revolta, mas que, ao mesmo tempo, significa a desistência de si mesmo:
“Tentar mudar, tentar fazer diferente… mudar meu jeito de ser também (…) pensando
em melhoria pro meu futuro, pro futuro da minha filha também. Sou novo, quero até ter
mais um [filho]. Tenho muito projeto na minha mente, quero mudar de vida… (pausou)
mas não dá não, já estou acostumado, se eu ficar aqui mais tempo… não vai dar não…
(hesitou) …fico revoltado (…). Destino certo eu já tenho35… lá na … [comunidade],
chegando lá vou ver o que vai dar né. O que eu quero fazer eu já tenho na mente… eu
quero tentar, vou tentar, só não sei se vou conseguir” (E6, 18 anos).
4.3 Experiência delinquencial
No Tema C, passámos à análise das categorias relativas à experiência dos
adolescentes nas práticas delinquenciais. A elaboração destas categorias decorre dos
relatos dos adolescentes acerca do dia a dia e das relações com as fações, as
experiências mais marcantes, sentimentos e percepções, quanto ao sistema criminal. Há
de se considerar que a experiência delinquencial de todos os entrevistados se desenvolve
a partir da relação com as fações, seja em maior ou menor grau, e que, tais
organizações, apesar de atuarem a partir de uma ampla rede, que perpassa por diferentes
atores e origens sociais, são detentoras de poder bélico, exercendo o monopólio da
violência nas comunidades onde os adolescentes residem (Zaluar e Barcellos, 2013).
Neste sentido, buscámos conhecer a realidade do adolescente acerca da sua
experiência em torno das práticas delinquenciais, cuja complexidade, seguindo o
pensamento de Zaluar (2012), possui: “pontes e passagens múltiplas, trocas contínuas e
redes entrecortadas que articulam e que tornam, por exemplo a fronteira entre o legal e o
ilegal, o público e o privado, sempre tão frágil num país como o Brasil em que a re-
pública nunca se instaurou de fato” (p. 7).
Motivações
Na categoria “Motivações” refletimos sobre os motivos pelos quais os
adolescentes iniciaram as práticas delinquenciais, considerando-se que tais práticas se
35 Ao relatar “Destino certo eu já tenho”, o E6 quis dizer que a prática delinquencial já é um caminho
garantido ao retornar para a sua comunidade. Uma oportunidade certa.
71
realizam a partir do agenciamento das fações e que, por conseguinte, as razões
apontadas pelos entrevistados ultrapassam a ideia de possíveis ganhos decorrentes do
ato infracional em si, mas tratam-se de fatores que também se depreendem da própria
relação estabelecida com as fações ou da integração dos adolescentes nas fações.
Seguindo a conceptualização de Sánchez-Jankowsk sobre a formação de
gangues urbanas, as fações consistem num fenômeno social de agenciamento humano
nas comunidades mais pobres, que é caracterizado pela (i) organização permanente, (ii)
pelo objetivo de dominação local e (iii) pelo papel multidimensional e institucionalizado
nas comunidades mais vulneráveis (Sánchez-Jankowsk, 2003). Partindo deste
pressuposto teórico, vejamos a narrativa do E2, que exemplifica como as fações, ao
exercerem o domínio das comunidades pobres, atraem os adolescentes para a
participação na fação: “É o que eles fazem [os traficantes] … eles pegam esses menor,
menorzão mesmo (muito pequenos), e fala: “coé menor, hoje você vai ser meu
segurança”; “pega esse fuzil aqui”. Aí dá fuzil pro menor no baile, bota ele do lado,
chama as meninas, dá dinheiro pros menor… aí fala: “quer ganhar mais menor, quer
entrar, quer entrar?” Aí apresenta até a família deles. Os menor se sente importante,
chama os amigos pra entrar… aí acaba que faz tudo mesmo.” (E2, 16 anos).
Em regra, o início das práticas delinquenciais está vinculado ao início de uma
relação com o tráfico de drogas; percebemos, com as entrevistas, um padrão nas
respostas dos entrevistados, acerca dos motivos que os conduziram para as práticas
delinquenciais e, junto a isto, para o envolvimento com as respetivas fações, a saber, a
possibilidade de obtenção de “dinheiro fácil” nas redes da organização, o retorno
financeiro alto e imediato, com o qual o adolescente poderá, mais rapidamente, aceder a
determinados bens de consumo, bem como ajudar a sua família. A exemplo disso,
vejamos as narrativas do E1, do E4, do E8 e do E5: “Ah… dinheiro. Dinheiro muito
fácil, né. Eu queria uma moto, em um mês eu comprava. Celular, roupa… ganhava
muito, muito mesmo. Até dava uma parte minha pro D. [amigo do entrevistado], porque
ele tem filho” (E1, 15 anos); “(…) era ganhar dinheiro com o mais fácil. Cada pessoa
que eu ‘picotava’ era 5 mil… onde que você ganha isso?” (E4, 17 anos); “(…) nem eu
sei, sabe… mas acho que o dinheiro fácil, sei lá… moto, carro, ter tudo que eu tinha…”
(E8, 16 anos); “(…) [o tráfico] dava dinheiro, minha ‘coroa’ (mãe) precisava de
dinheiro, já me pedia dinheiro, aí pensei: “vou logo arrumar dinheiro fácil”. Os menor
tudo de dinheiro no bolso, bem trajado, celular novo… aí falei: “ah, vou entrar pra
72
essa vida também”. Eu ganhava 250 por semana, dava 100 real pra minha mãe e, pra
mim, comprava uma roupa, um cordãozinho…” (E5, 16 anos).
Contudo, a facilidade para a obtenção de recursos ou, ainda, a condição
socioeconómica dos adolescentes não são aspetos que, por si só, expliquem a
participação nas práticas delinquenciais e, diante disso, também nos distanciamos de
perspetivas que associam a pobreza à criminalidade com base numa relação necessária.
Conforme teorizam Zaluar e Barcellos (2013), há de se ter em conta o fator
socioeconómico que, somado às falhas do Estado, dificultam a possibilidade de
ascensão social pelos meios convencionais. Todavia, a análise deve incluir outros
fatores relacionados com o espaço urbano e as “práticas sociais interiorizadas (etos) que
permitem a articulação entre o subjetivo e o objetivo” (Zaluar e Barcellos, 2013, p.
248). Assim, verificamos, igualmente, outras duas motivações no discurso dos
entrevistados: o status, com a possibilidade de “ostentação” dos frutos das práticas
delinquenciais no meio social; a sensação de poder, em razão do pertencimento de
grupo, uma vez que a fação detém a força e o monopólio das armas nas respetivas
comunidades.
O alto fluxo de recursos — dinheiro, armas e drogas — das práticas delinquenciais
possibilita que o adolescente obtenha e manifeste capacidade material, mediante a
exibição de bens de consumo e de armas, no contexto da comunidade, ou perante os
colegas, o que se configura como uma afirmação de status. Acerca disso, vejamos as
falas do E3, do E6 e do E8: “(…) via os cara (os amigos) portando fuzil, uma Glock
(arma), cordãozinho de ouro… vários “rolê” (passeios) de moto pela favela… pensava
que era maneiro” (E3, 17 anos); “Agora, nessa vida aí eu tinha tudo… tipo, roupa,
cordão de ouro, carro, moto… e nem sabia dirigir, tá ligado? Era mais pelo sucesso
mermo” (E6, 18 anos); “Acho que foi mais pela ostentação (…) queria comprar arma,
roupa… se quisesse ficava com a moto, com carro, era meu, ninguém podia meter a
mão… comprava uma Glock, uma carga…” (E8, 16 anos).
Além disso, há a sensação de poder, a capacidade de manifestação de poder e o
prestígio no meio social, que decorre deste poder, em função do porte de armas e do
pertencimento à fação, conforme se depreende das falas do E2 e do E6: “Ah, tinha uma
sensação de portar arma, fuzil, (…) revólver… eu gostava de portar… (…)” (E2, 16
anos); “As pessoa vê nós desse tamanho assim e desacredita… mas, lá na favela, se vê
73
nós portando pistola, fuzil, na “atividade”, já é outra cara, já é outro jeito da pessoa
tratar nós… já quer falar, apertar a mão, puxar saco36 …” (E6, 18 anos).
Seja através do dinheiro, do status ou do poder, percebemos que, por trás de cada
um destes aspetos, o adolescente busca, subjetivamente, a possibilidade de ser
respeitado, aceite e inserido socialmente, tal como qualquer indivíduo, segundo uma
noção de sucesso capitalista, que não é exclusivo do sistema criminal. A proposta do
sistema criminal, ainda que paralela e marginalizada, reproduz, de maneira acentuada,
porquanto sem o controlo do Estado, os valores convencionais de um paradigma
capitalista, apesar de se valer de outros meios de dominação e de práticas ilícitas. Para
os adolescentes, que estão em fase de desenvolvimento e numa condição de maior
vulnerabilidade, as práticas delinquenciais, ao estarem associadas às fações,
apresentam-se como um caminho tentador, desobstruído, para uma possível realização
individual pautada pelo desejo de pertencimento, de aceitação e de prestígio no meio
social. Vejamos a narrativa do E7, que corrobora esta reflexão: “Foi mais pelo sucesso
mesmo… lá onde eu moro é assim… tanto que eu não ligava muito pro dinheiro… claro
que usufruía do dinheiro, mas era mais pelo nome ser falado entre as pessoas, pelo
respeito… pessoal te olha diferente, era aceitado em outros grupos sociais de pessoas…
todo mundo queria parar contigo, sair contigo, andar do lado…” (E7, 18 anos).
Quotidiano na atividade delinquencial
Na categoria “Quotidiano na atividade delinquencial”, analisamos o dia a dia do
adolescente no contexto das práticas delinquenciais e, consequentemente, a interrelação
com as fações. Apesar de transcender amplamente os limites do contexto
socioeconómico dos adolescentes, o tráfico de drogas se estabelece no território das
comunidades, seguindo a lógica de um empreendimento, que é estruturado para as
vendas, o recebimento de cargas, a contagem de valores e os pagamentos ao final de
cada dia de comercialização, a segurança armada do local e todo o mais que for
necessário para o fluxo de capital e o controlo da localidade. Conforme teoriza Rafael
(2001), o tráfico de drogas no Rio de Janeiro opera a partir de uma forma-Estado, com
as suas leis, disciplina, vigilância e hierarquia, bem como por meio de um arranjo que se
assemelha às “organizações mundiais” capitalistas, naquilo que ultrapassa todo território
36 “puxar saco” significa bajular.
74
em nome do mercado ou dos “negócios”; e, por fim, “seus bandos - seus fenômenos de
multidão” (p. 174), havendo uma estrutura de funcionamento de grupos locais nas
comunidades, com ajustes segmentares entre estes grupos.
A rivalidade entre os comandos do tráfico, que disputam o mercado de drogas e
os territórios das favelas, resultou numa corrida a armamento, de forma a inibir
possíveis invasões das fações adversárias e também da polícia (Zaluar e Barcellos,
2013). Com o domínio armado do território, as fações exercem poder sobre as
comunidades e dirigem as atividades do tráfico, bem como outros atos infracionais
adjacentes, consoante a própria lei hierárquica, que é imposta a todos - membros da
organização e moradores.
As fações possuem uma moral própria, que se estabelece com a imposição de
regras, legitimando as práticas de determinados atos infracionais e da violência, quando
empregados de acordo com o senso de justiça da liderança. Os roubos, por exemplo,
mediante acordo com os líderes da fação, são permitidos, desde que sejam realizados
em outras localidades e não tragam problemas para dentro da comunidade. Do mesmo
modo, não é permitido roubar na presença de crianças ou de pessoas com deficiência
física, conforme relatam o E2, o E7 e o E8: “(…) aí, quando tem criança, nós não pode
fazer nada… não pode assaltar… é ordem lá de cima.” (E2, 16 anos); “(…) aí vimo que
tinha criança, pedimo desculpa, entramo no carro de volta e fomo embora” (E7, 18
anos); “É igual não roubar carro com criança ou deficiente físico… é regra, se fizer tá
arriscado tomar até um pau (sofrer agressão física). Lá na comunidade não pode matar
em assalto… só se for, assim, a sua vida ou a dele… apontar arma pra você… é regra.”
(E8, 16 anos).
Assim, no sistema “crime-negócio”, o quotidiano é organizado, com base em
regras e hierarquias, envolvendo, também, a atribuição de responsabilidades e funções a
serem desempenhadas, o que faz com que o adolescente permaneça vinculado às
atividades em torno do mercado do tráfico de drogas e das suas complexas articulações
de poder. Dito isto, vejamos as narrativas do E2 e do E5, acerca da rotina de trabalho
como integrantes das fações:
“Eu fazia a segurança da boca (de fumo) e os assaltos que o frente (líder) lá
pedia… eu fazia tudo. Se tivesse que cobrar eu cobrava, vagabundo que queria roubar,
75
ficava na frente da boca, cobrindo o “vapor” (vendedor)… ver quem podia e quem não
podia subir (na favela), se tivesse que matar eu matava, fazia tudo…” (E2, 16 anos).
“(…) aí pensei que eu ia ficar de “vapor”, vendendo droga, na atividade, mas o
mano (o líder) me botou de segurança da boca (de fumo), de “bico” (armado)… me deu
duas pistola, ele. (…) já fui “vapor”, que faz as vendas… já fui segurança da boca e já
fui segurança do mano (líder)… aí ele já deixava abusado, tranquilo, de fuzil. Aí já
comecei a ganhar mais… (…) várias pessoa querendo matar o mano (dono), aí se o
mano morrer, a culpa é do segurança dele. Os cara, se não me “desse um pau”
(espancassem), me passava (matava). Se ele rodasse (fosse preso) por culpa de alguém,
a gente morria também.” (E5, 16 anos).
Através destas narrativas, percebemos que o quotidiano nas práticas
delinquenciais é pautado pela relação de exploração do trabalho dos adolescentes, que
são atraídos pela ideia de sucesso e de respeito, e pela facilidade de se ganhar muito
dinheiro no tráfico de drogas. Contudo, os adolescentes não compreendem, de facto, a
realidade que os aguarda no sistema criminal. O discurso dos entrevistados demonstra a
surpresa, acerca do que pensava ser a participação no tráfico, frente à realidade da
situação de opressão, na qual o adolescente “faz tudo”, isto é, desempenha todo o tipo
de função e precisa estar à disposição para quaisquer serviços, até os mais cruéis, para
além do risco de ter que enfrentar conflitos armados com a polícia ou com outras fações.
Soma-se à exploração do trabalho e à exposição aos riscos de conflito armado, o
abuso psíquico dos adolescentes, no que concerne às práticas de violência. Na condição
de iniciantes e de soldados ao serviço do tráfico, os adolescentes obedecem, fielmente,
às ordens e aos interesses dos líderes do comando, para os quais a violência é
naturalizada como instrumento de poder. Nesta relação de dominação, a execução das
práticas de violência é imposta ao adolescente, em violação à sua dignidade humana,
degenerando a percepção que o sujeito tem sobre si mesmo. A exemplo disso, vejamos
o relato do E5:
“(…) uma vez pediram pra eu “passar” (matar) um menor que roubou uma
bicicleta de um morador [da comunidade]. Aí falei: “coé, cara, vi esse menor crescer”,
aí o cara (interlocutor): “coé, tá de piedade?”. Aí dei um pau (bati) nele, mostrei que
76
eu tava cheio de ódio, pra convencer… mas o cara falou: “coé, vai dar pau e não vai
matar?”. Aí matei, mas fiquei muito triste… tinha crescido com o menor, já tinha
parado do lado dele, já tinha fumado com ele… e o T. ainda falou pra todo mundo,
falou pro mano (líder) de mim: “ele quer ficar andando armado e não quer matar!”. Eu
não gostava de dar pau, não gosto de fazer mal a ninguém. Quando eu fazia, fazia
cheio de pena… bagulho foda, ficar matando as pessoa atoa. Mas aí, depois que viram
que eu matei mermo, me chamaram pra passar mais… já matei uns 5, mas nunca fui
pego na infração não. Aí já pensei: “não vou pro céu mermo, vou pro inferno”. Já fiz
tudo que o diabo gosta… matei, roubei, trafiquei. Já matava uma pessoa e ficava com
aquilo na mente… depois eu esquecia. Mas os caras ficava explanando (espalhando,
comentando) “ele que matou”… “ ‘pitbull’ é “bala”.” (E5, 16 anos).
A narrativa do E5 revela que a violência, instrumentalizada pelas fações, molda
a construção da identidade dos adolescentes, a partir de uma estreita associação entre
masculinidade e violência, ao serviço das práticas delinquenciais. A violência patente
no ato de matar um jovem, por um motivo fútil, é naturalizada pelos líderes da
organização, por forma a exercer o controlo da comunidade, e dos próprios
adolescentes, mas não é naturalizada pelo entrevistado. O ato de matar um amigo e,
ainda, a fama que o entrevistado adquire após ser coagido a matar representam ataques à
subjetividade do próprio agente, que, a partir do trauma, se percebe como sendo capaz
de cometer quaisquer outras práticas de violência, em prol da organização.
O E5 narra a sua tristeza, a sua vergonha, o que evidencia o conflito interno e a
desesperança do adolescente. Porém, neste processo de transformação da identidade, há
a subversão do olhar do entrevistado sobre si mesmo, para se amoldar à masculinidade
violenta que lhe é imposta no meio social. O aprendizado desta nova identidade
violenta, que se dá sob teste e ameaça, funciona como um mecanismo de controlo dos
adolescentes, levando-os ao conformismo de cometer novos atos brutais e,
paralelamente, impedindo-os de se projetar para o desenvolvimento de outros sonhos e
de outras capacidades.
Vejamos a narrativa do E4, que exemplifica, também, a transformação do
sujeito, a partir das práticas de violência nas práticas delinquenciais: “Entrei no tráfico
e, depois de duas semanas, o mano (líder) falou que eu tinha que passar no teste… aí
me mandou entregar um dinheiro numa casinha lá no alto da favela, que era a casa
77
onde ficava o “picotador”37. Cheguei lá, pra entregar o dinheiro pra um velho, cara de
cachaceiro… o velho era sinistro, você não dava nada por ele… nem andava armado,
mas andava escoltado. Quando cheguei tinha um cara morto, sem os dois braços e sem
as duas pernas. Aí quase vomitei, passei mal mermo (mesmo) e saí da casa. Quando
voltei pra falar com ele, já tinha uma mulher morta também! Tomei um susto…” (E4,17
anos). Ao responder à pergunta acerca do quotidiano no tráfico, o E4 narra a relação de
exploração no trabalho: “Era bom, tinha dias bom e dias ruim… minha função era
quase tudo, sério. O mano mandava eu entregar, eu entregava… já fui rádio, cruzeiro,
que é quem entrega tubo (bateria do rádio), tá ligado? Abastecedor… (…). Eu recebia
a carga do mano e abastecia a boca… depois fui pro picote e dessa não saí mais… era
ganhar dinheiro com o mais fácil. (…) eu era tipo o faxineiro, limpava a sujeira.
Aprendi com o “coroa” (idoso), com cara de cachaceiro. Nos primeiros dias fiquei com
medo, coração acelerado… depois passei a tomar uma “balinha” (ecstasy)… a pessoa
pra mim virava até um porco. – (perguntei ao entrevistado o que o levou a sair do
tráfico) – O mano (líder) morreu e entrou outro no lugar dele. Esse outro massacrava a
gente. Queria mais tempo da gente na pista (rua), tirou dia de folga, via alguém
dormindo, ao invés de conversar, queria dar porrada. Aí muitos saíram da boca (do
negócio) por causa dele. (…). (…) Nem quando eu matei agora eu fiquei com medo…
acho que já sabia que era meu destino (morrer ou ser preso).” (E4, 17 anos).
Experiência com a polícia e expectativa de punição
Nesta categoria analisámos os relatos dos entrevistados sobre as suas
experiências nas abordagens e nas apreensões policiais, bem como o sentimento diante
da possibilidade de aprisionamento.
Conforme teorizam Zaluar e Barcellos (2013, p. 20), o domínio armado do
tráfico de drogas nas comunidades não poderia se estabelecer sem estratégias eficazes
de corrupção de certos agentes da lei, que se beneficiam do jogo de poder do sistema
criminal. Assim, verificamos, com as entrevistas, que a presença da polícia nos
territórios das favelas costuma ser pautada pelo recebimento de pagamentos, em troca
da não intervenção no decurso das atividades do tráfico, ou, por exemplo, de
37 Segundo o entrevistado (E4), o “picotador” era a pessoa responsável pelo esquartejamento e descarte
dos corpos mortos pelo comando do tráfico.
78
informações, a respeito de futuras operações policiais: “(…) de vez em quando eles
“brota” (aparecem) na favela “de rolé” (à passeio), aí o “frente” (líder do tráfico)
deixa entrar, pra dar o “arrego” (pagamento). É pra pegar dinheiro que eles entra
mermo, mas vê a “boca” (local de venda de drogas) assim e não faz nada não… só faz
quando é operação [policial] explicar” (E5, 16 anos).
No conflito entre a polícia e as fações, os poderes se confrontam e, ao mesmo
tempo, se retroalimentam, numa dinâmica de tensão e de táticas de controlo mútuo,
sendo tais táticas realizadas de maneira que ambos sobrevivam e apenas interfiram um
sobre o outro na medida necessária para que a relação entre os sistemas, oficial e
criminal, mantenham os seus papéis e os seus espaços de poder. Vejamos a fala do E6, a
respeito das articulações de poder entre o tráfico e a polícia: “(…) dá pra pagar um
dinheiro pra eles, pra soltar… mas quando pega um plantão (policial) “mandado” (mal
intencionado, ruim) os cara não aceita dinheiro não… leva preso, mata… depende do
plantão da polícia. Mas nunca “rodei” (fui preso) pra eles não, nunca tive que pagar.
Eles nem entrava na favela, só quando tem operação… aí, quando é assim, o “frente”
(líder) já mandava recuar, não dar tiro. Polícia Civil e Polícia Militar não entra não,
nem tenta. Quando tinha operação, maioria das vez, a gente já sabia… os próprio
polícia do batalhão próximo da comunidade avisava pra gente… mas também ganhava
o dinheiro deles por isso. Pra pegar a gente de surpresa só quando é assim… o
Exército. Tipo, o “frente” (dono) da boca (local de venda de drogas) lá… os cara
pegaram [ele] já e pediram 25 mil pra soltar ele, só que nós não ia dar o dinheiro, aí o
parceiro (amigo) que é acima dele mandou nós dar, pra não trazer problema pra
favela… aí a gente teve que dar.” (E6, 18 anos).
Considerando esta relação de conflito e de intersecção entre os sistemas criminal
e oficial, percebemos que as experiências dos adolescentes com a polícia possuem
diversas variações, a depender do local do encontro ou do aparato policial, podendo
haver desde uma abordagem individual nas ruas, até uma incursão fortemente armada
na comunidade.
Dentre os 8 entrevistados, 5 (E1, E2, E3, E4 e E5) já haviam sido abordados pela
polícia antes da primeira apreensão. Apesar das diferenças quanto às circunstâncias das
abordagens, verificamos, no discurso dos adolescentes, a percepção do agente policial
como um perseguidor, não necessariamente em razão do ofício no cumprimento da lei,
mas como um inimigo à espreita, para prejudicar ou tirar vantagem, principalmente
79
diante da possibilidade de extorsão. Vejamos as narrativas dos entrevistados, que
corroboram esta reflexão acerca do policial como um perseguidor: “Teve muitas
[abordagens], onde que eles me vê eles já queriam me abordar…” (E1, 15 anos); “(…)
tipo se os polícia quiser me perturbar, me forjar, tipo, quiser tomar meu ouro quando
eu tiver usando na pista (rua), passeando na orla… se quiser pegar ‘arrego’
(pagamento em corrupção)… aí vou ter que dar continuidade no crime lá fora” (E2, 16
anos); “Só no tráfico mais de 10 [abordagens]… é porque o tráfico pagava os cara pra
me soltar. Já pagaram 50 mil pros polícia não me prenderem…” (E4, 17 anos); “Já fui
até parado, mas os cara me deixava passar… os polícia me via, eu falava ‘não tô com
nada não’. Sempre que os cara me enquadrava, eu não tava com nada” (E5, 16 anos);
Tudo covarde… polícia tá aqui, eu tô lá… faço o possível pra não ser abordado, mas já
fui abordado antes. Levaram minha moto, que era clonada, aí eles levaram… meu
cordão, meu dinheiro… me algemaram e me soltaram depois de ‘mó tempão’ (muito
tempo) pra eu ir pra casa (E3, 17 anos).
Nas hipóteses de apreensão do adolescente pela polícia, verificamos que é
comum o emprego da violência, seja física ou psicológica, o que manifesta o abuso da
força e da autoridade repressiva. Nestes casos, o adolescente já se encontra detido e a
violência policial é desnecessária, no sentido de oprimir e humilhar o indivíduo
capturado. No âmbito das apreensões, as práticas de violência policial são indicativas
desta disputa de poder na relação da polícia com o sistema criminal, que ultrapassa, em
muito, o estrito cumprimento do dever legal. No contexto da política de guerra contra o
tráfico de drogas, a polícia, tal como as fações, instrumentaliza a violência para
demarcar o seu espaço de poder, afastando-se do pressuposto de legalidade da
instituição como representante do Estado. Ao invés de coibir ou atuar para a interrupção
do conflito, a polícia passa a integrar-se como um dos atores do próprio conflito. Sobre
isto, vejamos as falas do E4, do E7 e do E8:
“(…) nas vezes que fui [apreendido], fui tratado tipo hotel de luxo… tomando
porrada, choque [elétrico]… na minha primeira passagem o policial pisou na minha
cara!” (E4, 17 anos)
“(…) Me tiraram do carro, me botaram no chão. Eu achei que esculacharam
(humilharam), porque eu não tentei fugir, não tentei nada e eles me algemaram,
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botaram no chão… ficaram pisando na minha cara, esfregando a minha cara no
chão… e isso, assim, várias pessoas passando e eles falando alto: “esse aqui é
ladrão!”, perguntando onde tava a arma do roubo, falando que eu que roubei… aí falei
com eles que não tinha [arma]. Aí teve gente passando na rua que até falou: “ah, já
prendeu… leva logo pra delegacia”… mas eles nem quiseram saber, continuaram” (E7,
18 anos).
“(…) Nessa primeira [apreensão] não foi nada tranquilo, tomei tapa na cara, fui
esculachado (humilhado)… apanhei, spray de pimenta, chute (pontapé) na costela…
ih… foi nada legal a primeira passagem… falaram que ia me matar… fiquei com muita
raiva… se eu pudesse agredir ele né, mas não podia, apanhei quieto né, mas tá maluco,
isso não é vida pra ninguém não, tá repreendido!” (E8, 16 anos).
Conforme percebemos nestas narrativas, na atuação policial, a coerção errática e
arbitrária integra o conflito em torno das práticas delinquenciais, bem como reforça o
estigma do adolescente de “bandido” e de inimigo social. O adolescente tem a
consciência de que a apreensão e, mais ainda, a prisão consistem em respostas legítimas
do Estado aos atos ilícitos realizados. No entanto, as práticas de violência, sendo
injustas e ilegais, geram o sentimento de humilhação e, por conseguinte, o desejo de
vingança, conduzindo o indivíduo à continuidade delitiva, num eterno ciclo de
reafirmação de poder.
Além disso, no contexto de guerra armada entre as fações e a polícia, a
possibilidade de aprisionamento é tida pelos adolescentes como o menor dos males,
como parte do jogo em torno do sistema criminal. Mesmo porque há de se ter em conta
que os adolescentes conhecem a possibilidade de corrupção, já que certos agentes
policiais se articulam com o tráfico de drogas e, sendo assim, a presença da polícia nos
territórios dominados pelo tráfico não representa, necessariamente, uma ameaça de
apreensão. Em algumas entrevistas vemos que os adolescentes são temerosos à morte,
em razão das experiências traumáticas de confrontos armados, enquanto que a prisão é
absorvida como um dos percalços da própria lógica da delinquência:
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“(…) não tinha medo não… até pensava, mas medo não tinha não. Eu já sabia
como que era o sistema… já tinha minhas passagens, então sabia que se eu fosse pego
ia ser internação” (E2, 16 anos);
“Medo, medo eu não tinha não, porque é melhor ir preso na mão deles do que
ser morto…” (E6, 18 anos);
“Eu fazia o máximo pra eles não me ver e eu não ver eles. Eles fizeram um
trabalho muito bem feito pra pegar a gente ali… mas eu não tinha medo de ser
apreendido. Tinha medo de perder minha vida… ser preso? Faz parte da vida” (E3, 17
anos);
“Não tinha medo não… eu sabia que os cara ia pagar pra mim sair. A única
coisa que me dava medo era polícia e ir pra guerra (confronto armado com a polícia ou
com outra facção criminosa). E depende dos polícia… só da CHOQUE e do BOPE…
Polícia Militar e Polícia Civil eu não tinha medo não” (E4, 17 anos).
Balanço da experiência delinquencial
Por fim, nesta análise do Tema C, passamos à categoria “Balanço da experiência
delinquencial”, pela qual buscámos conhecer o sentimento do adolescente acerca das
práticas de delinquência, confrontando os supostos benefícios e os prejuízos percebidos
pelos entrevistados. Além disso, considerando-se a complexidade dos aspetos refletidos
neste tema, buscámos conhecer como os entrevistados se veem, após as suas
experiências no sistema criminal.
Assim, em primeiro lugar, verificamos que alguns adolescentes não avaliam a
experiência delinquencial como benéfica (E1, E2, E3 e E6), e, mesmo quando
reconhecem algum benefício ou aprendizado (E4, E5, E7 e E8), estes não são vistos
como suficientes para compensar as suas experiências negativas, bem como o tempo
perdido no internamento. Os entrevistados afirmam, de maneira categórica, que as
experiências criminais lhes trouxeram muito mais prejuízos do que os possíveis
benefícios. A exemplo disso, vejamos as narrativas do E2, do E3, do E8 e do E6: “Não,
nada de bom não. Aprendizado só de crueldade mesmo, fazer maldade, mas, fora isso,
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nada não…” (E2, 16 anos); “Benefício nenhum… só sujou meu nome, só prejuízo” (E3,
17 anos); “Trouxe coisas boas? Sim, conquistei uma moto, um telefone, um carro, mas
muitas coisas ruins também. E tô aqui, muito mal com a moto e um telefone.
Aprendizado nenhum, mudança de vida também nenhuma” (E8, 16 anos); “Benefício
não trouxe muito não, só tristeza. (…) Às vezes tinha vários stress na rua também…
vários amigo morrendo, minha filha recém nascida. Na minha mente já tinha o
pensamento de que ou eu ia morrer ou ser preso… e eu quase morri e fui preso. Valeu a
pena fazer o que eu tava fazendo? Valeu, mas também depois que ‘roda’ (é preso)
perde tudo.” (E6, 18 anos).
As narrativas corroboram a reflexão desenvolvida neste tema, acerca da
desilusão do adolescente e da disparidade entre o que este pensava ser o sistema
criminal e o que, de facto, é o sistema criminal. Percebemos que os entrevistados não
possuíam, efetivamente, a consciência sobre a magnitude dos riscos inerentes às práticas
delinquenciais ou, ainda, sobre como estes riscos poderiam interferir em outras áreas de
suas vidas. Não há qualquer demonstração de orgulho em relação aos atos praticados e
até mesmo os relatos acerca de possíveis aprendizados, a partir das práticas
delinquenciais, denotam a perda de inocência e o endurecimento do indivíduo, perante
as relações de risco que se estabelecem no âmbito destas atividades. Sobre este aspeto,
vejamos as narrativas do E4, do E7, do E1 e do E3:
“No tráfico aprendi quem tu pode considerar e quem não pode. Quem é falso e
quem não é… (…)” (E4, 17 anos);
“(…) consegui entender um pouco o mundo do crime… percebi que você só
serve pras pessoas se você tiver algo a oferecer pra elas… tipo o pessoal do tráfico. Se
não tiver algo pra oferecer você é descartável” (E7, 18 anos);
“Aprendizado nenhum. Só aprende a matar, torturar, esfaquear… não aprende
nada de bom, só matemática, matemática tem muita38. Também não tem amigo nenhum.
No tráfico sempre tem um querendo o seu lugar, te derrubar, ganhar mais que você.
Tem que ter cuidado com todo mundo, ninguém é amigo” (E1, 15 anos);
38 O entrevistado (E1) referiu-se aos cálculos que fazia para fechar as contas de compra e venda de drogas
nas atividades do tráfico.
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“Antes de entrar eu era mais ‘de bobeira’… depois vi que a gente não tem
amigo. Amigo é só pai e mãe. (…) um querendo ser maior que o outro. Ali aprendi a ser
homem de verdade… não querer só brincadeira… não deixar os errado passar pela tua
vista e não falar nada, pessoa errada… mudei muito” (E3, 17 anos).
Para além de avaliarem, objetivamente, a experiência de delinquência como
prejudicial, os entrevistados reconhecem mudanças no próprio comportamento, o que
ratifica a reflexão no sentido de que a imposição de uma identidade masculina pautada
pela violência viola a subjetividade do próprio “ser” adolescente. Neste sentido,
vejamos as falas do E1, do E4 e do E5, que exemplificam a transformação do sujeito,
bem como um sentimento de desesperança dos entrevistados: “(…) antes eu era um
moleque tranquilo, falava com todo mundo, dava ‘oi’ pra todo mundo na favela…
depois fiquei como… fechadão, marrentão (mal encarado)… não falava com ninguém,
não confiava em ninguém…” (E1, 15 anos); “Antigamente, eu era um garoto doce…
depois virei um capeta (mal comportado). Minha mãe falou que eu tava mudado, que
meu jeito de olhar tava estranho, minhas mãos… falei: ‘coé, mãe, naquela vida lá eu fiz
muita coisa…” (E4, 17 anos); “Eu sou um menor tranquilo, não gosto de fazer mal pra
ninguém… aí você faz mal pra uma pessoa e já pensa: “vou fazer de novo”. Me deixou
sem coração, sem sentimento das pessoa que às vezes brigava comigo… parava de
falar com as pessoa. Hoje em dia, só tenho coração só pra minha família.” (E5, 16
anos).
Nestes trechos, os entrevistados identificam transformações na própria maneira
de ser e de agir, em decorrência das práticas delinquenciais, o que percebem como
aspetos negativos.
4.4 Objetivos futuros
No Tema D, iremos focar nas expectativas dos adolescentes quanto ao futuro,
após a experiência de internamento. Estas categorias são: Continuidade na atividade
delinquencial, Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização e
Futuro almejado.
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Continuidade na prática delinquencial
Em primeiro lugar, percebemos que a eventual continuidade na prática
delinquencial após o internamento não integra o propósito ou o objetivo de futuro dos
entrevistados. A possibilidade de retorno às práticas delinquenciais é completamente
desconsiderada (E4, E7 e E8) ou vista como a última alternativa (E1, E2, E3, E5 e E6),
caso o adolescente não encontre oportunidades de trabalho, através dos meios
convencionais. A exemplo disso, vejamos as narrativas do E4, do E8, do E3 e do E6:
“Nem me dando o melhor dinheiro do mundo eu volto. Eu descobri duas coisas… que
eu não sirvo pra ser ladrão e não sirvo pra ser bandido. É dinheiro fácil, mas não é pra
mim…” (E4, 17 anos); “Não. Na verdade nem penso mais nisso, isso aí chega, segunda
passagem já…” (E8, 16 anos); “Eu penso positivo… se eu tiver oportunidade de
trabalhar, eu não quero voltar não. Insistir pra quê? Perder minha vida? Se eu
arrumar um trabalho, não volto não… mas se não arrumar…” (E3, 17 anos); “Passa
pela mente… mas só entra na vida consciente, se tu quiser. Eles vão falar, vão
perguntar, mas vou falar que tô tranquilo. Eu não fico pensando nisso não… tipo, é a
última opção, não tenho um pensamento de sair daqui e voltar direto” (E6, 18 anos).
Ademais, verificamos que o romper com as práticas delinquenciais possui uma
conotação mais profunda de “mudança de vida” cuja decisão pode implicar o
afastamento do adolescente de suas antigas companhias, de determinados lugares e
situações sociais ou, até mesmo, da comunidade. Vejamos a fala do E8, no que diz
respeito à mudança de residência, em razão das companhias e do tráfico na localidade,
bem como as falas do E6 e do E7, acerca da necessidade de limitação na relação com os
antigos colegas:
“Meu padrinho falou que é melhor pra mim não ir mais na comunidade C. Vou
respeitar ele, porque é ele que tá lado a lado comigo sempre. Não vou mais ter contacto
com o pessoal do C.” (E8, 16 anos);
“Se eu parar com eles, é certo de eles falar, parar do lado… se ele tiver “forte”
no crime ali, ele vai querer me deixar forte… já passamo várias coisas junto… é certo
de, se parar com eles, falar: “coé, vamo ali dar uma roubada”. Mas eles não vão
forçar o que eu não quero, fazer o que eu não quero… mas eles vão perguntar se eu vou
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querer ficar na boca (venda de drogas), voltar… mas eu posso falar que vou ficar
tranquilo, vou ficar afastado, que eles vão entender. O foda é falar que vou ficar
tranquilo e ficar parando com eles em vão… não dá pra ficar só de morador parado
com eles. Tudo bandido! Aí “roda” (é preso), para com eles e morre em vão, porque tá
no meio. Não vou precisar me afastar, mas não vou ficar parando com eles toda hora”
(E6, 18 anos).
“Meus amigos antigos não me julgam pelo que eu fiz, diz que tão sempre comigo
apoiando, mesmo eu tendo feito coisa errada. Com certeza vai ser a mesma amizade.
Os outros eu quero evitar, me distanciar, pra não misturar de novo e dar chance de
fazer coisa errada. Até porque eles nem perguntam se eu tô bem… acho que não são
amigos assim.” (E7, 18 anos).
Além disso, o adolescente tem em conta que poderá deparar-se com dificuldades
estruturais ao buscar por oportunidades de trabalho convencional, considerando-se,
igualmente, a sua condição de ingresso no sistema socioeducativo, que obsta, ainda
mais, a obtenção de emprego: “O estudo que eu tive aqui pode me ajudar… o curso
Jovem Aprendiz que eu fiz também pode ajudar… tudo isso pode ajudar no futuro, mais
pra frente. Poder abrir porta, pode, mas… ham. Do jeito que a coisa tá séria lá na rua,
pra poder arrumar um trabalho… as coisa tão muito mudada. Acabei de sair da
cadeia… “os cara” (as pessoas) não dão emprego pra ex presidiário não!” (E6, 18
anos).
Enquanto a ruptura com as práticas delinquenciais representa o caminho incerto,
podendo exigir um esforço individual para a reorganização da vida dos adolescentes em
diversas áreas, a continuidade nas práticas delinquenciais, por outro lado, apresenta-se
como uma oportunidade garantida de ocupação após o internamento, sendo esta
oferecida com maiores benefícios e facilidades, por forma a recompensar o indivíduo
pelo tempo gasto na prisão. Neste cenário, ainda que as práticas delinquenciais não
correspondam à livre escolha dos entrevistados, percebemos um sentimento de conflito
e de insegurança, em relação às oportunidades de trabalho e aos meios para pôr em
prática este novo percurso de vida. Acerca disso, vejamos as narrativas do E1 e do E5,
que demonstram a aflição dos adolescentes, em relação ao desejo de mudança de vida,
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frente ao facto de que as práticas delinquenciais serão ofertadas como um caminho
assegurado após o internamento:
“É dinheiro fácil (no tráfico), mas não dá pra ficar muito tempo… muitos
morrem. E po, imagina… ser preso no “de maior” (presídio)… não dá não… uma hora
tem que sair… sempre penso nisso, todo dia, se eu volto ou mudo de vida. (…) eu tenho
moral lá. E quem roda (é apreendido) defendendo a “boca” (o local de vendas) ganha
moral lá também… recebe mais quando volta. Mas minha mãe chora muito, não quer…
e fala pra eu mudar de vida, fala: “eu quero ver é lá fora”. Ela não gosta, quer que eu
more com a minha irmã por isso… também não quero fazer ela chorar não, mas não
sei.” (E1, 15 anos)
“Não sei… eu quero tocar a vida pra frente. Se Deus quiser, eu não volto não.
Mas o “mano” (líder) da minha favela pode vim com uma oportunidade boa… me
deixar de frente, de fuzil… só anotando o dinheiro do mano, sem me esforçar muito pra
nada. Aí, se o mano vem com uma oportunidade boa, vai me influenciar. Certo de
falarem pra mim lá: “qual vai ser? Vai “meter a mão” (participar) de novo? Tá com
medo?”. Igual na minha primeira passagem… e eu “meti a mão de novo” … fiquei
roubando e traficando. Acho que uma proposta boa me faria voltar… mas só se tiver
revoltado de novo, pra viver o crime de novo. Mas tô querendo seguir minha vida… dar
uma atenção maior pra minha mãe.” (E5, 16 anos)
Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização
Quanto ao “Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização”,
percebemos que, apesar das características prisionais e das práticas de violência
contidas na experiência de internamento, a maioria dos entrevistados (E2, E4, E5, E6 e
E8) reconhece o aproveitamento socioeducativo e os ganhos na própria experiência, seja
no que diz respeito aos cursos profissionalizantes, às aulas na escola ou, de modo geral,
às reflexões que o período de afastamento das práticas delinquenciais proporciona.
Assim, vejamos a narrativa do E8: “É, tipo, quando eu tava na rua eu não tinha essa
vontade toda de ser ator… aí vim pra cá, parei de roubar e agora quero mesmo ser
ator. É isso, aqui ajudou a mudar meu pensamento também. Se eu não tivesse a
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segunda passagem eu ia tá roubando até hoje. Sei que tem pessoa aqui dentro que pode
me ajudar a achar um curso de teatro lá fora… isso aqui não é um lugar bom, mas pelo
menos voltei a sonhar né?” (E8, 16 anos).
Neste sentido, por mais que existam contradições e dificuldades na
implementação do modelo socioeducativo ou, ainda, que o caráter socioeducativo da
medida seja refreado pelas práticas coercitivas, o mínimo contacto com o viés
pedagógico no internamento permite que o indivíduo construa novos significados,
estabeleça outras relações humanas, seja desafiado a apreender novos conhecimentos,
podendo desenvolver visões de mundo diferentes, interesses e habilidades de trabalho,
para além do afastamento do contexto de guerra das fações. Vejamos a narrativa do E5,
que valoriza a participação nas práticas socioeducativas, mesmo com toda a condição de
sofrimento da privação de liberdade: “Claro! No curso eu aprendo… se Deus quiser vou
sair e vou estudar de novo, trabalhar. Tipo, meu pensamento é que tô tirando uma
etapa maneira aqui no sofrimento. Oito mês aqui, eu teria feito muita coisa lá fora.
Aprendi na escola, no alojamento… a ser um menor tranquilo, humilde. Aprendi no
curso e na escola coisa que eu não sabia, fazia errado ou tinha esquecido… mas a
professora explica, reforça a memória.” (E5, 16 anos).
Futuro almejado
Por conseguinte, relativamente à categoria “Futuro almejado”, notamos que, a
despeito do conflito do adolescente, que reside na incerteza sobre o seu futuro, sobre as
suas reais chances de criação de uma trajetória de vida distante das práticas
delinquenciais, há o desejo de construção de uma nova realidade, que pode vir a ser
orientado a partir das práticas socioeducativas realizadas durante o internamento.
Apesar da necessidade de considerarmos uma possível relação de desejabilidade social
no momento da entrevista (Paulhus, 1984), todos os relatos dos entrevistados, acerca do
futuro que esperam para si, consistem em representações de uma vida voltada para o
trabalho ou para o estudo, bem como para a constituição de uma família, num contexto
de tranquilidade, apesar das experiências difíceis e da violência experienciada.
Vejamos, a este propósito, os seguintes excertos: “Voltar a estudar, trabalhar de
‘camelô’ ou arrumar um emprego de carteira assinada. Conquistar minha casa…
minha, minha mermo. E construir uma família” (E4, 17anos); “Queria, quando eu tiver
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trabalhando, carteira assinada, ficar trabalhando pra comprar as coisa que eu quero.
(…) Não quero morar em comunidade perto do tráfico, quero morar no campo, num
sítio” (E5, 16 anos); “Quero pagar aqui o que eu devo, quero terminar o ensino médio,
fazer uma faculdade ou um curso técnico…” (E7, 18 anos); “(…) ser ator. Fazer um
filme, quem sabe… comprar um carro, com dinheiro suado! E dar tudo pro meu filho
que eu não pude ter… que é o que? Um pai presente, uma mãe, uma casa… ah! Quero
aprender a falar inglês também!” (E8, 16 anos); “(…) quero ter minha casa própria,
conquistada com suor, trabalho, ter uma moto, botar minha filha numa escola boa,
paga, dar um futuro bom pra minha família… uma coisa que eu seria é eletricista…
coisa de eletricidade. Trabalho de eletricista eu gostaria de fazer… oportunidade tem,
só correr atrás. (…). Quero ter mais um filho, morar fora de comunidade…” (E6, 18
anos); “Penso em ter filho, ter casa, casar, ser feliz. Mas penso em duas coisa: eu gosto
de lutar e de cozinhar. Penso mais em trabalhar com comida, mas não sei nem por
onde começar…” (E4, 17 anos).
O esforço no trabalho e a ideia de conquista através do trabalho são aspetos
valorizados pelos entrevistados em suas narrativas, diferentemente do que se depreende
da relação com as práticas delinquenciais. Do mesmo modo, as relações de afeto, no que
diz respeito à constituição de família, ao casamento, aos filhos, demonstrando que, tal
como qualquer indivíduo, os adolescentes têm sonhos e projeções de futuro pautados na
dignidade e na cidadania, mas carecem de recursos e de uma verdadeira rede de apoio,
para o desenvolvimento deste percurso de vida.
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CAPÍTULO V — DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A presente dissertação consistiu num estudo exploratório e qualitativo, tendo
como objetivo principal conhecer a experiência de internamento e a realidade social dos
adolescentes em conflito com a lei no estado do Rio de Janeiro, a partir dos métodos da
observação participante, pelo qual acedemos ao quotidiano da instituição onde os
adolescentes cumprem a medida socioeducativa de internamento, e da entrevista
semiestruturada, que permitiu-nos conhecer o próprio adolescente, a sua percepção
acerca da delinquência e a experiência de privação de liberdade. Para atingir este
objetivo, aplicamos uma entrevista a oito adolescentes, tendo como base os elementos
teóricos de estudos científicos que abordam o tema dos efeitos da privação de liberdade
sobre os indivíduos e o modelo socioeducativo proposto pelo ECA, que soma aspetos
pedagógicos à experiência de internamento, visando promover a cidadania para a
reinserção do adolescente no meio social.
A discussão dos resultados visa a articulação das teorias elencadas neste estudo
às temáticas desenvolvidas, a fim de refletir sobre os dados conjuntamente, tendo-se em
conta a complexidade dos aspetos analisados, bem como as suas relações.
Em primeiro lugar, os dados revelam que a realidade social dos adolescentes
escapa, em larga medida, à abordagem teórica da dissuasão especial, que se baseia num
paradigma pró-normativo acerca das noções de comportamento ilícito, de fonte de
autoridade e de poder de punição, tratando, linearmente, de uma relação entre custos e
benefícios, para a escolha do comportamento delinquente, conforme Becker refere
(1995). Para além de residirem em comunidades nas quais as fações representam o
referencial de poder e autoridade, as práticas delinquenciais se realizam a partir de um
sistema organizado e, em certa medida, articulado com o sistema oficial, tanto no que
diz respeito à relação com a polícia, quanto relativamente à ideia de que ser apreendido
e encaminhado para a instituição do internamento consiste numa etapa da carreira
delinquente. Estamos, deste modo, perante relações de poder e de coerção, que
decorrem de sistemas e atores diferentes, constantemente articulados (Foucault, 1973).
A experiência delinquencial é marcada por intensas relações de conflito social.
Tanto é assim que a competição entre fações subsiste dentro do internamento e que os
adolescentes devem satisfação aos líderes após o período de reclusão, podendo receber
recompensas ou respostas coercitivas em razão do comportamento desempenhado
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durante o internamento. Neste sentido, se buscarmos analisar a relação entre o ato
infracional e a punição, segundo a perspetiva dos adolescentes, percebemos que não há
a construção de um pensamento de oposição, pelo qual o ato infracional gera a punição
ou o internamento é uma consequência direta do ato infracional. A relação que se
verifica vai no sentido de que os sistemas delinquencial e oficial interferem
constantemente um com o outro, e, sob a ótica delinquencial, a prisão termina por fazer
parte da trajetória de sobrevivência do indivíduo.
Além disso, a linha teórica da dissuasão especial pressupõe uma escolha racional
do indivíduo, desconsiderando os aspetos emocionais, não necessariamente refletidos,
que estão associados à participação dos adolescentes nas práticas delinquenciais. Assim,
há de se ter em conta a busca do adolescente, em plena idade de desenvolvimento, pela
aceitação, pela sensação de pertencimento de grupo, pelo respeito e pela autonomia,
numa condição de dificuldades estruturais, que contribui para que as práticas
delinquenciais simbolizem um caminho de aparente êxito. Com o domínio das fações no
contexto das comunidades, é possível questionar se os adolescentes possuem
consciência sobre a magnitude dos riscos e das consequências de violência que integram
a experiência delinquencial, para, efetivamente, realizar uma escolha calculada.
Relativamente às teorias da Associação Diferencial e da Aprendizagem Social
(Akers, 1977), os dados parecem corroborar o que afirmam estes autores, demonstrando
que as práticas delinquenciais são aceites e, em certa medida, valoradas entre os
indivíduos neste meio social. Assim, as fações podem funcionar como um referencial de
comportamento para a juventude no contexto das comunidades, porquanto são
detentoras de poder e de autoridade para reforçar ou punir certas condutas, conforme a
moral compartilhada por seus membros. Mais precisamente, a relação de aprendizado se
verifica no que diz respeito às práticas de violência, quando os adolescentes passam a
integrar as fações. Os entrevistados não demonstram qualquer orgulho quanto aos atos
de violência que praticaram, mas aprendem e se acostumam com este modelo, segundo
o comportamento que é imposto e exigido por seus líderes, ainda que isto constitua um
abuso de poder, e possa ter consequências traumáticas para o próprio sujeito.
Ao analisarmos a experiência de internamento, a partir da convivência entre os
adolescentes, percebemos que não é necessariamente o internamento que introduz o
indivíduo ao aprendizado de novos valores e comportamentos antissociais (Bayer,
Hjalmarsson & Pozen, 2009), mas, certamente, o ambiente estruturado, tal como uma
91
prisão, não é capaz de interromper o compartilhar desta moral previamente internalizada
entre os adolescentes de uma mesma fação (Neri, 2011, p. 274), bem como a dinâmica
do conflito social entre fações que se estabelece externamente e se reproduz
internamente. À luz destas teorias, a experiência de internamento pode ser considerada
criminógena, uma vez que os adolescentes permanecem reclusos num ambiente
stressante e de constante tensão, com poucos estímulos positivos, no qual a rivalidade
entre fações e a vigilância dos comportamentos conforme às regras das fações se
mantêm inalteradas e concentradas num mesmo espaço.
Passando à Teoria da Anomia, verificamos, através dos dados, que a trajetória
dos adolescentes perpassa por diversas relações de tensão, a começar pela posição
socioeconômica na estrutura social (Merton, 1938), havendo poucas oportunidades de
trabalho e pouco suporte social para que o indivíduo estabeleça e alcance seus fins de
bem-estar, pelos meios convencionais (Mendonça, 2011; Ferreira, 2008). Neste
contexto de extrema carência, a fação apresenta-se como uma fonte de apoio (Colvin et
al., 2002), oferecendo uma rede de conexões e relações de grupo, supostamente capazes
de suprir as necessidades afetivas dos adolescentes e de lhe conferirem status social e
um sentimento de pertença, para além da necessidade imediata de aumento da
capacidade material.
Além disso, é possível analisar as relações de tensão e de coerção que resultam
da experiência de internamento dos adolescentes, segundo as teorias desenvolvidas por
Agnew (1992) e Colvin et al. (2002). Durante o internamento, o adolescente é
confrontado com as expectativas institucionais, que partem do referencial de legalidade
do ECA, exigindo-se do sujeito um esforço de adequação às normas e à proposta
socioeducativa do internamento, para que seja considerado “recuperado” e apto ao
retorno à vida em sociedade. Pelo viés socioeducativo, espera-se do adolescente a
participação na escola e nas atividades, a submissão às regras e a demonstração de um
desejo de mudança, aspetos indicativos do seu aprendizado e da sua transformação, em
correspondência com o objetivo institucional. Contudo, subsiste, no internamento, uma
força (tensão) contrária, no que diz respeito aos parâmetros de conduta que são
esperados pelas fações, sendo estes também observados pelos adolescentes,
repercutindo num estado de alerta uns sobre os outros.
Verificamos, ainda, as relações de tensão que decorrem da necessidade de
sobrevivência dos adolescentes face ao aparato repressivo e às práticas arbitrárias que
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são implementadas pelos agentes de segurança dentro da instituição. O tratamento
desigual no que concerne à proposição das atividades e, sobretudo, a instrumentalização
da violência para o controlo dos internos consistem em modalidades de coerção errática
(Colvin et al., 2002), podendo desencadear um efeito criminógeno e desvirtuando a
pretensão socioeducativa da experiência de internamento. Tais aspetos coercitivos
contribuem para o desenvolvimento de sentimentos negativos e de baixa autoestima
sobre os indivíduos, para a naturalização das respostas de violência, que já são uma
realidade no quotidiano da experiência delinquencial, bem como para o fortalecimento
da identidade dos adolescentes perante as suas fações, como forma de resistência aos
excessos e aos abusos de poder durante a privação de liberdade.
Por último, interpretando os dados a partir da abordagem da Teoria da
Etiquetagem (Klein, 1986; Bernburg & Krohn, 2003), percebemos que a trajetória dos
adolescentes, incluindo o período de internamento, é marcada por diversas experiências
de conflito e de violência na relação com atores que representam as instituições oficiais.
Enquanto a organização exerce uma autoridade imediata nas comunidades, assumindo
prerrogativas de uma forma-Estado (Rafael, 2001), as intervenções do sistema de justiça
no contexto social dos adolescentes são voltadas, majoritariamente, para a política de
combate ao tráfico de drogas, cujos procedimentos sinalizam um amplo processo de
criminalização da pobreza e, por conseguinte, o tratamento dos jovens que residem
nestas zonas como suspeitos, mesmo antes do envolvimento nas práticas delinquenciais.
As experiências dos adolescentes com a polícia são indicativas de um reforço da
etiqueta de delinquente, porquanto a política criminal que fundamenta as táticas
policiais decorre da reação social aos atos infracionais praticados por indivíduos já
estigmatizados em função da pobreza (Bernburg & Krohn, 2003). Por esta razão, as
entrevistas demonstram que as condutas policiais, por vezes, ultrapassam o
cumprimento do dever legal, convertendo-se em atos de coação, violência ou
humilhação do adolescente apreendido, que é tido como merecedor deste tratamento por
ser considerado um inimigo social (Foucault, 1973, p. 32-34). Se, de um lado, o
domínio das fações nas comunidades pode estimular as práticas delinquenciais, por ser
um referencial de poder no contexto local, por outro lado, a política de guerra
perpetrada pelo Estado brasileiro, através das suas instituições de segurança, tem o
condão de isolar e estigmatizar, ainda mais, os indivíduos que residem nestas zonas de
conflito.
93
Num segundo momento, é possível haver uma relação de reforço do rótulo de
delinquente após a apreensão do adolescente pelo sistema de justiça, pois, sob a ótica
institucional, exige-se a sua recuperação para o retorno à vida em sociedade, de modo
que a responsabilidade pela mudança de comportamento recai, essencialmente, sobre o
indivíduo, através do seu próprio esforço, e sem haver, contudo, um suporte social, ou
instrumentos que permitam que os fins de bem-estar sejam alcançados pelos meios
convencionais. O adolescente precisa de se esforçar para melhorar, e deixar de “ser” um
criminoso, pressuposto que desloca a delinquência para o plano da identidade
individual, reforçando a rotulagem. Soma-se a isto o emprego, por certos agentes
socioeducativos, de práticas de violência física, psicológica e verbal para o controlo dos
internos. Estas práticas reafirmam o rótulo de criminoso, para além de intensificarem o
estranhamento, as relações de tensão e de conflito já existentes entre os adolescentes e
as instituições oficiais.
Além disso, sob a ótica do sistema criminal, a prisão é tida como uma etapa de
sofrimento do que se entende como uma “vida de delinquência”. Portanto, o reforço do
rótulo de criminoso sobre o adolescente também pode advir das relações que se
estabelecem dentro do próprio sistema criminal, uma vez que, neste âmbito, o período
prisional será valorado pelos membros da fação e visto como um ato e sacrifício
heróicos.
A etiquetagem é, deste modo, atravessada por dois sistemas distintos, que
impõem ao adolescente o mesmo rótulo de delinquente, ainda que segundo mecanismos
de controlo opostos, convergindo numa dupla afirmação da identidade de criminoso.
94
CONCLUSÕES
Os resultados desta investigação apontam para um contexto social de extrema
vulnerabilidade dos adolescentes, em função da pobreza e da baixa escolaridade, uma
condição fértil para que estes jovens percebam, nas práticas delinquenciais, um caminho
de sucesso concebível. Mais do que isto, os dados revelam as relações de intenso
conflito social, em torno das práticas delinquenciais, nos territórios onde os
adolescentes residem, nos quais as fações funcionam como um referencial de
autoridade, enquanto o Estado tem pouca representatividade em termos de suporte
social. A formação dos adolescentes é direcionada, em certa medida, por este referencial
de poder local, em detrimento da construção de uma trajetória de estudo ou de trabalho
pelos meios convencionais, cujas oportunidades são, ainda, escassas ou de baixo retorno
material, face às necessidades imediatas dos adolescentes.
Uma vez imersos no quotidiano de serviço do sistema criminal, os adolescentes
são absorvidos, como soldados, nas disputas entre fações, no domínio do mercado de
drogas, e nos confrontos com a polícia. Há, também, o aprendizado de uma
normatividade imposta hierarquicamente, no contexto de grupo, que se utiliza da
violência como instrumento de controlo. Apesar da iniciação nas práticas
delinquenciais, o aprendizado dos métodos de violência se dá mediante situações de
coação e os adolescentes não apresentam um discurso de naturalização destas práticas.
Pelo contrário, o aprendizado ocorre dentro das relações de controlo no âmbito das
organizações, com a exploração dos mais jovens e vulneráveis, violando a subjetividade
dos próprios sujeitos. Neste sentido, as entrevistas permitiram revelar as relações de
cooptação e manipulação dos adolescentes, relativizando perspetivas focadas na
existência de uma tendência individual para o comportamento violento.
Estas relações de conflito são transportadas e reproduzidas, tanto pelos internos,
quanto pelos agentes de segurança, para dentro da instituição, pelo que a estrutura
prisional não é capaz de interromper esta dinâmica de disputa territorial, ou o
estranhamento entre grupos, já estabelecidos. Além disso, verificamos as relações de
tensão que se apresentam na experiência de internamento, no que concerne à
implementação do modelo socioeducativo, perante a prevalência de práticas prisionais,
excessivamente coercitivas. Subsiste a contradição entre estes dois modelos dentro de
uma única experiência: enquanto se espera do adolescente o esforço para a adequeção à
95
proposta socioeducativa, paralelamente, os maus tratos e os castigos físicos impostos
por certos atores da instituição têm o efeito criminógeno e contraproducente de esvaziar
o sentido das iniciativas educacionais.
Embora as estratégias de violência e as arbitrariedades tenham um impacto
extremamente negativo sobre a experiência individual de internamento, é interessante
notar, a partir dos dados, que os adolescentes são capazes de discernir as representações
simbólicas destes dois modelos dentro da unidade. De um lado, existem as relações de
tensão que decorrem das formas de repressão, voltadas para o controlo e para a punição,
além do sofrimento que advém, elementarmente, da condição de privação de liberdade,
sendo que todos estes símbolos prisionais demandam atenção e táticas de sobrevivência.
Soma-se a isto, as representações de poder e de vigilância associados às fações, o que
também repercute em relações de tensão e de coerção entre os internos. Porém, de outro
lado, existem as representações das práticas socioeducativas, nos horários das aulas
escolares, dos cursos, das atividades recreativas, que contam com uma abordagem
educacional por parte do corpo de profissionais especializados. Apesar da precariedade,
as iniciativas socioeducativas parecem ser o único contacto que os adolescentes
possuem com símbolos de autonomia e emancipação, frente às relações de violência e
coerção, que, nos dois primeiros casos, os objetificam como delinquentes, seja para
validar a punição, ou para o servir à fação. Nisto reside a potência revolucionária e
emancipatória do viés socioeducativo, que, por mais difícil de ser implementado num
contexto de internamento, possibilita ao adolescente o desenvolvimento de relações
voltadas para a cidadania, a experiência com novos aprendizados e, por conseguinte,
uma abertura para o surgimento de sonhos, capacidades, ou quaisquer experiências de
vida que rompam com os ciclos de violência e de estigmatização.
Mesmo privados de liberdade, e após uma série de experiências degradantes no
âmbito das práticas delinquenciais, os adolescentes reconhecem o valor das práticas
socioeducativas, e têm dentro de si o desejo de construção de uma nova trajetória e a
visão de um futuro que não se comunica com a delinquência. A socioeducação atua a
partir desta perspetiva de esperança do indivíduo, que, mesmo nas piores condições,
procura uma realidade diferente daquela que lhe é dada.
Este trabalho define-se por ser um feixe de possibilidades para outros percursos
investigativos em que, no lugar de soluções prontas, é necessária uma continuidade
intencional, alargando a amostra para outras instituições de internamento.
96
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101
ANEXOS
Anexo I: Grelha de observação
Nome do observador: Cecilia Roxo Bruno
Data:
Dimensões
1. Ambiente e características estruturais da Instituição39
2. Atividades educativas e profissionalizantes realizadas pelos adolescentes
3. Tempo livre dos adolescentes
4. Interação entre adolescentes e funcionários
5. Interação entre os adolescentes
6. Atendimento médico e apoio psicológico
7. Outros aspetos relevantes
39 Sobre este aspeto, pretende-se observar se as instalações da Unidade oferecem um ambiente
pedagógico, indicativo de liberdade, com, por exemplo, espaços adequados para dormitórios, refeitórios,
realização das atividades educativas e profissionalizantes, de lazer e desporto, bem como espaços de
atendimento de saúde e visita familiar (CONANDA, 2006, p. 50-51). Isto porque, segundo o modelo de
socioeducação proposto pelo ECA e pelo SINASE, o espaço da unidade de internamento deve
proporcionar um ambiente humanizado, que não remeta à naturalização do castigo e à ideia de
continuidade do sistema carcerário destinado aos adultos (CONANDA, 2006, p. 51; CNJ, 2011, p. 3).
102
Anexo II: Guião de entrevista
Data:
Idade:
Ato infracional praticado:
Tema A: Conhecendo o adolescente
1. Poderia me dizer de onde você é?
Onde vivia antes de ingressar na
Unidade?
Descrição do lugar onde nasceu/cresceu
2. Como era viver lá?
3. E com quem você vivia em sua casa?
Possui irmãos? / Outras pessoas de
convívio familiar?
4. Como era o seu dia a dia / interação
com a sua família?
5. E como era o convívio com os seus
amigos?
6. Quanto à escola, frequentava?
Que ano cursava ou até que ano
frequentou? / Se exercia alguma
outra atividade ou trabalho ao
mesmo tempo / Se faltava à escola
para exercer esta atividade /
Quais eram as motivações / O que
te levou a abandonar
Tema B: A experiência de internamento
7. Há quanto tempo você está aqui na
Unidade?
103
8. Poderia me contar sobre o seu
primeiro dia na Unidade?
Experiência pessoal / Sentimentos /
Percepções
9. E como é o seu dia a dia aqui?
O que costuma fazer / Desde a hora que
acorda até a hora de dormir
10. Como é a sua relação com os outros
meninos? Possui amigos aqui?
11. Como são as aulas na escola?
O que acha / Gosta do que
aprende / Qual a sua aula
favorita / Acha que pode tirar
proveito disso para a sua vida?
12. E quanto às outras atividades? Já
participou de alguma atividade
profissionalizante?
13. Há alguma outra atividade que você
goste ou se sinta bem ao realizar aqui?
Atividades terapêuticas / Projetos /
Esportes
14. Sobre estas atividades que você
realiza aqui, acha que pode tirar
proveito delas no futuro?
15. Poderia me contar como tem sido o
contacto com os funcionários?
Se há respeito entre os
adolescentes e os funcionários /
Se já sofreu algum tipo de
violência / Se considera que os
funcionários são pessoas capazes
de lhe ajudar ou apoiar
104
Tema C: A experiência delinquencial
16. Sei que este pode ser um tema
desagradável, mas poderia me contar
sobre a situação que lhe trouxe para esta
Unidade?
17. Como foi a sua experiência de
apreensão pela polícia?
Como aconteceu / Como se sentiu / Como
foi tratado
18. Este foi o seu primeiro contacto com
a polícia?
Já vivenciou outras abordagens? /
Se sim, poderia me contar sobre
como foram as outras
experiências?
19. Saberia me dizer o que te levou a
_____?
Motivações / Carência material /
O que percebia como vantagem
ou desvantagem?
20. Poderia me contar sobre como era a
sua vida atuando no _____?
Possibilidade de vínculo com o
tráfico de drogas / Dia a dia /
Funções a serem desempenhadas
/ Hierarquia
21. Como você se sentia realizando esta
atividade?
22. E o que pensava sobre a
possibilidade de vir a ser apreendido?
Era um medo? / Como se sentia quanto a
isso?
23. Você considera que a sua experiência
com o _____ te trouxe algum benefício?
Se sim, quais? / Algum
aprendizado? / Mudança de vida /
Suporte financeiro / Novas
amizades / Suporte emocional
105
entre os pares
24. E quanto às experiências negativas
nesta atividade? Existiram situações nas
quais você não se sentiu bem?
Experiências de violência / De
medo / De exposição / Violência
entre os pares / Confrontos
armados com a polícia
25. Acha que a experiência no _____ te
transformou como pessoa? Como?
Tema D: Objetivos futuros
26. Hoje, quais você diria que são seus
objetivos de vida?
Possui sonhos? / Projetos de vida? /
Alguma profissão que gostaria de ter? /
Sempre quis ter? / Alguma situação na
sua vida te despertou o interesse para
isso?
27. O que planeja fazer quando sair do
internamento?
28. Considera a possibilidade de voltar a
_____?
Se sim, por quais razões / Se acha
que ao retornar à comunidade
será pressionado pelos colegas a
se reintegrar nas práticas
delinquenciais / Opinião da
família quanto a isto
29. Acha que a sua experiência aqui na
Unidade pode vir a te ajudar a alcançar
estes objetivos de vida?
Se foi uma experiência
transformadora / Se alterou a sua
percepção sobre o futuro / Se
possibilitou que desenvolvesse
novas habilidades / Novos
106
aprendizados
30. Quanto à sua família, considera que
são pessoas que podem te apoiar nos
seus planos?
31. E os seus amigos? O que você espera
deles quando sair da Unidade?
32. Como que gostaria que fosse o seu
futuro?
Estudo / Trabalho / Se pensa em se
mudar / Se pensa em casar-se ou ter
filhos
33. Mais uma vez, gostaria muito de
agradecer a sua participação. Tem
alguma pergunta que gostasse de me
fazer ou algo mais que queira dizer?
107
Anexo III: Consentimento informado
TERMO DE CONSENTIMENTO PARA ADOLESCENTE
(MAIORES DE 12 ANOS E MENORES DE 18 ANOS)
Você está sendo convidado para participar da pesquisa “A MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO: análise qualitativa acerca da
experiência de privação de liberdade do adolescente em conflito com a lei”.
Conforme procedimento na coordenação da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo
Freire, Divisão de Estudo, Pesquisa e Estágio – DEPE, o DEGASE permitiu que você
participe.
Queremos saber sobre a sua experiência de internamento na [unidade de
internamento onde teve lugar a pesquisa] e conhecer seus objetivos futuros de vida.
Os adolescentes que irão participar desta pesquisa têm entre 14 e 18 anos de
idade.
A pesquisa será feita na [unidade de internamento onde teve lugar a
pesquisa], onde os adolescentes serão entrevistados. Serão utilizados papel e caneta,
para anotar as suas respostas.
A participação é voluntária e você poderá deixar de participar ou retirar o
consentimento, a qualquer momento. Não há nenhum problema se você desistir, ou se
não quiser responder a alguma pergunta. Não há penalização alguma ou prejuízo de
qualquer natureza.
Caso você se sinta constrangido ou desconfortável com alguma pergunta, você
não é obrigado a responder.
O anonimato é garantido e seu nome não será utilizado em qualquer fase da
pesquisa. A divulgação dos resultados será feita de forma a não identificar os
entrevistados.
108
Desde já, agradecemos a atenção e a sua participação.
Colocamo-nos à disposição para maiores informações.
Se você tiver alguma dúvida, você pode me perguntar.
109
CONSENTIMENTO PÓS INFORMADO
Eu ___________________________________________ aceito participar da pesquisa
“A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO: análise qualitativa
acerca da experiência de privação de liberdade do adolescente em conflito com a
lei”.
Entendi que posso dizer “sim” e participar, mas que, a qualquer momento, posso
dizer “não” e desistir.
A pesquisadora tirou as minhas dúvidas e foi autorizada pelo DEGASE.
Recebi uma cópia deste termo de consentimento. Li e concordo em participar da
pesquisa.
Rio de Janeiro, ____de ______________ 2019.
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Assinatura do adolescente
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Assinatura da pesquisadora
(CECILIA ROXO BRUNO)
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Anexo IV: Tabela 2
Tabela 2: Divisão dos alojamentos dentro da Unidade
Alojamento Descrição
Módulo 1 Alojamentos localizados no segundo andar do prédio principal,
destinado à “maioria” dos adolescentes, que corresponde à fação 1.
Módulo 2 O Módulo 2 consiste num espaço menor, de um andar, construído em
2012 segundo as normas do SINASE. Neste espaço estão os
alojamentos destinados à “minoria” dos adolescentes, que pertence às
fações 2 e 3 ou que reside em territórios dominados pelas milícias e
não possuem identificação com nenhuma fação. Além disso, há, neste
mesmo espaço, um alojamento destinado àqueles cujos atos
infracionais não são aceites pelas fações criminosas (via de regra
estupros, homicídios moralmente reprováveis, segundo as regras das
fações ou, ainda, aqueles adolescentes que, em função de alguma
desavença, estão jurados de morte pela fação da qual faziam parte).
Módulo
sem fação
Alojamento “sem fação”, destinado aos adolescentes que possuem bom
comportamento e manifestam interesse em abandonar o convívio com
a respetiva fação criminosa. No Módulo sem fação os adolescentes não
permanecem trancados dentro dos alojamentos, podem transitar pelos
corredores e comer à mesa num refeitório. Além disso, a maioria das
atividades socioeducativas (piscina, futebol, manutenção da horta,
assistir filme, etc.) é priorizada aos internos deste alojamento.
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Anexo V: Tabela 3
Tabela 3: Categorias
A: Conhecendo o
adolescente
B: Experiência de
internamento
C: Experiência
delinquencial
D: Objetivos
futuros
Perspetiva sobre o
lugar onde vivia
Quotidiano de
internamento
Motivações Continuidade na
prática
delinquencial
Relação com a
família
Atividades
socioeducativas
realizadas durante o
internamento
Quotidiano na
atividade
delinquencial
Aproveitamento do
internamento como
aparato de
ressocialização
Relação com os
amigos
Convívio entre os
adolescentes
Experiência com a
polícia e
expectativa de
punição
Futuro Almejado
Relação com a
escola
Relação com a
escola e frequência
escolar durante o
internamento
Balanço da
experiência
delinquencial
Relação com os
agentes
socioeducativos
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Anexo VI: Tabela 4
Tabela 4: Categorias relativas ao Tema A
Categoria Descrição
Perspetiva sobre o lugar onde vivia Opinião do adolescente sobre o lugar
onde vivia, o que gostava, o que
costumava fazer e como era viver na
referida localidade.
Relação com a família Percepções e sentimentos em torno da
relação com a família.
Relação com os amigos Perspetiva do adolescente sobre amizade,
sobre ter amigos e como era o quotidiano
com os amigos, o que em alguns casos
está relacionado com a atividade prática
delinquencial.
Relação com a escola Perspetiva do adolescente sobre a escola
e, no caso de abandono escolar, os
motivos que levaram o adolescente a
deixar de frequentar a escola.
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Anexo VII: Tabela 5
Tabela 5: Categorias relativas ao Tema B
Categoria Descrição
Quotidiano de internamento Dia a dia no internamento, como costuma
ser a rotina do adolescente, o que o
adolescente faz desde a hora que acorda
até a hora de dormir.
Atividades socioeducativas realizadas
durante o internamento
Descrição das atividades socioeducativas
realizadas pelo adolescente, que não a
escola. Isto inclui os cursos
profissionalizantes, cursos educativos e
as atividades recreativas, tais como, ida à
piscina, à quadra de futebol, à horta, à
sala de ping-pong e matraquilhos, às
aulas de artesanato, sessões de filmes,
etc. Também se verifica com que
frequência os adolescentes participam
destas atividades, considerando-se que, a
depender do alojamento, do
comportamento do próprio adolescente,
da disponibilidade dos funcionários e da
logística da instituição, algumas
atividades são oferecidas apenas a alguns
internos.
Convívio entre os adolescentes Relação entre os adolescentes dentro da
unidade, considerando-se a divisão dos
alojamentos, conforme a fação criminosa
e as regras destas fações, que subsistem
dentro da Unidade e permeiam a
interação entre os adolescentes.
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Relação com a escola e frequência
escolar durante o internamento
Perspetiva do adolescente sobre o
aproveitamento da escola no
internamento, sobre as aulas e o
aprendizado, bem como o
comparecimento ou não do adolescente
às aulas.
Relação com os agentes socioeducativos Relação entre os adolescentes e os
agentes socioeducativos (funcionários),
responsáveis pela gestão e segurança da
unidade.
115
Anexo VIII: Tabela 6
Tabela 6: Categorias relativas ao Tema C
Categoria Descrição
Motivações Percepção do adolescente acerca do que o
levou a iniciar as práticas delinquenciais.
Quotidiano na atividade delinquencial Dia a dia na prática delinquencial e
funções a serem desempenhadas pelo
adolescente no âmbito das fações.
Experiência com a polícia e expectativa
de punição
Experiência do adolescente nas
abordagens e nas apreensões policiais,
bem como o sentimento quanto à
possibilidade de aprisionamento.
Balanço da experiência delinquencial Sentimento do adolescente sobre a sua
experiência de delinquência. Prejuízos e
benefícios percebidos pelo adolescente
nesta experiência e como se vê o
adolescente após a experiência
delinquencial.
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Anexo IX: Tabela 7
Tabela 7: Categorias relativas ao Tema D
Categoria Descrição
Continuidade na prática delinquencial Perspetiva do adolescente sobre a
possibilidade de retorno às práticas
delinquenciais após o internamento.
Aproveitamento do internamento como
aparato de ressocialização
Opinião do adolescente sobre o
contributo da experiência de
internamento na viabilização de novos
percursos de vida, principalmente no que
diz respeito ao estudo e ao trabalho.
Futuro almejado Objetivos de vida do adolescente, sonhos
e planeamento do futuro.
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Anexo X: Tabela 8
Tabela 8: Participação dos entrevistados nos cursos profissionalizantes e
educativos
Entrevistados Tempo de
internamento
Cursos
profissionalizantes
Cursos educativos
E1 1 ano e 4 meses Não Sim. 1 vez
E2 2 anos e 2 meses Sim. Mais de 3 cursos Sim. 3 vezes
E3 1 mês Sim. 1 curso Não
E4 1 ano e 9 meses Sim. 2 cursos Sim. 1 vez
E5 8 meses Sim. 1 curso Não
E6 2 anos Sim. 1 curso Não
E7 2 meses e 12 dias Não Não
E8 23 dias Não Não
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Anexo XI: Tabela 9
Tabela 9: Frequência escolar dos entrevistados no internamento, ao tempo das
entrevistas
Entrevistados Frequenta a escola no internamento?
E1 Sim, regularmente.
E2 Sim, a depender da iniciativa dos agentes socioeducativos.
E3 Não.
E4 Sim, a depender da iniciativa dos agentes socioeducativos.
E5 Sim, a não ser na aula de educação física (em razão de haver internos
de outras fações nesta aula).
E6 Não.
E7 Sim, regularmente.
E8 Sim, regularmente.