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Resumo. Aos trinta e três anos do golpe de estado sofrido em Chile, pode-se ad- vertir que uma de suas maiores conseqü- ências foi a desarticulação das institui- ções, organizações populares e as cren- ças nas funções do estado como protetor e promotor da cidadania. O Estado cons- tituiu-se, paradoxalmente, no aniquilador destes mesmos, pelo que não se está fren- te a um trauma psíquico de índole indi- vidual senão que sua origem está anco- rada em sua estrutura social. O presente artigo explora a relação entre memória enquistada, a que se entenderá como um construto cognitivo, afetivo e social que se vai desenvolvendo e definindo a par- tir do contexto sociopolítico e como esta vai-se constituindo e transmitindo transgeneracionalmente. Esta análise está baseada em dois estudos que exploram tanto os processos de memória como transgeracionalidade do trauma desde um olhar psicossocial. Palavras Chave: Chile, Ditadura, Trauma e Memória. A Memória enquistada: uma aproximação ao trauma transgeracional Cecilia Rodríguez * e Adriana Espinoza ** 8 * Psicóloga clínica e membro da equipe clínica do Programa de Reparação e Atendi- mento Integral em Saúde e Direitos Humanos (PRAIS) ** Ph.D. em Counselling Psychology University of British Colúmbia, Canadá, membro da equipe clínica do Programa de Reparação e Atendimento Integral em Saúde e Direitos Humanos (PRAIS) Abstract. Approaching thirty-three years of the coup d’ etat that affected Chile, it can be observed that at the social level one of the consequences was the dismantling of the institutions, organizations, and the beliefs in the functions of the State as protector and provider of the citizens. Instead it became the destructor of its citizens, therefore we are not only facing a psychic individual trauma, but rather its origins are anchored in its social structure. It is only now, due to the recognition of the truth of the repressive situations, the impunity, and the recurrent retraumatizations, when it is possible to grasp the impact, the consequences and how these patterns are a part of our society. Keywords: Chile, Dictatorchip, Trauma end memory. Versão em Português: Sócrates Jacobo Moquete Guzmán e Paulo Cesar Pontes Fraga

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Resumo. Aos trinta e três anos do golpede estado sofrido em Chile, pode-se ad-vertir que uma de suas maiores conseqü-ências foi a desarticulação das institui-ções, organizações populares e as cren-ças nas funções do estado como protetore promotor da cidadania. O Estado cons-tituiu-se, paradoxalmente, no aniquiladordestes mesmos, pelo que não se está fren-te a um trauma psíquico de índole indi-vidual senão que sua origem está anco-rada em sua estrutura social. O presenteartigo explora a relação entre memóriaenquistada, a que se entenderá como umconstruto cognitivo, afetivo e social quese vai desenvolvendo e definindo a par-tir do contexto sociopolítico e como estavai-se constituindo e transmitindotransgeneracionalmente. Esta análise estábaseada em dois estudos que exploramtanto os processos de memória comotransgeracionalidade do trauma desdeum olhar psicossocial.

Palavras Chave: Chile, Ditadura, Traumae Memória.

A Memória enquistada: umaaproximação ao trauma transgeracional

Cecilia Rodríguez* e Adriana Espinoza**

8

*Psicóloga clínica e membro da equipe clínica do Programa de Reparação e Atendi-mento Integral em Saúde e Direitos Humanos (PRAIS)

**Ph.D. em Counselling Psychology University of British Colúmbia, Canadá, membroda equipe clínica do Programa de Reparação e Atendimento Integral em Saúde e

Direitos Humanos (PRAIS)

Abstract. Approaching thirty-three yearsof the coup d’ etat that affected Chile, itcan be observed that at the social level oneof the consequences was the dismantlingof the institutions, organizations, and thebeliefs in the functions of the State asprotector and provider of the citizens.Instead it became the destructor of itscitizens, therefore we are not only facinga psychic individual trauma, but ratherits origins are anchored in its socialstructure. It is only now, due to therecognition of the truth of the repressivesituations, the impunity, and the recurrentretraumatizations, when it is possible tograsp the impact, the consequences andhow these patterns are a part of oursociety.

Keywords: Chile, Dictatorchip, Traumaend memory.

Versão em Português: Sócrates Jacobo MoqueteGuzmán e Paulo Cesar Pontes Fraga

RODRÍGUEZ, Cecilia; ESPINOZA, Adriana

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CONTEXTO HISTÓRICO

No ano de 1973, o Chile foi vítima de um golpe de estado queinstaurou uma ditadura militar, que se perpetrou no poder por 17 lon-gos anos. Segundo relatórios oficiais chilenos, de instituições interna-cionais e de organizações não governamentais, estima-se que a popu-lação diretamente afetada por algum tipo de violação aos seus direi-tos, durante este período, atingiu cerca de 10% da população. Destamaneira, os diretamente atingidos são aqueles grupos familiares emque um ou vários de seus membros foram objeto de desaparecimentoforçado, de execução política, tortura, exílio, exclusão ou outras açõesrepressivas, ficando expostos de maneira recorrente e acumulativa aum processo de traumatização extrema com graves compromissos nasaúde física, psicológica e social (MINOLETTI, 2002).

Atualmente, ainda não é possível dimensionar precisamente apopulação diretamente afetada. Organismos não governamentais,que trabalham na defesa dos direitos humanos, estimam que apro-ximadamente dois milhões de pessoas foram vítimas da repressãodo Estado. É importante assinalar que estes dados são difíceis deserem comprovados com precisão devido à gravidade destas situa-ções e ao acobertamento que foi produzido durante a ditadura. Asinformações conhecidas estão descritas no Relatório Rettig, docu-mento produzido a partir dos resultados da Comisión de Verdad yReconciliación e pelo Informe de Prisión Política y Tortura, conhecidocomo o Relatório Valech, os quais registraram casos de parte dapopulação que foi presa, está desaparecida, foi executada sumaria-mente ou foi vitimada pela tortura. Não foram incluídas, nestescasos, pessoas que não cumpriram com requisitos de documenta-ção, crianças, pessoas falecidas, as que sofreram exílio, exclusão eoutras formas de violação.

No contexto latino-americano, diferentes países viveram ter-rorismos de Estado similares à ditadura chilena. As ações perpetra-das pelos governos que se seguiram nestes países, de um modo

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geral, se caracterizaram por resolver os problemas relacionados comas vítimas diretas dos regimes ditatoriais através de leis de repara-ção, indenizações econômicas, mesas de diálogo, leis de ponto finale leis de anistia, entre outros. Somado a este quadro de ações, pode-se ainda apontar a desclassificação dos arquivos secretos da CIA; aabertura de processos judiciais relacionados com a ação das políci-as secretas dos países do cone sul (Brasil, Paraguai, Uruguai, Ar-gentina e Chile), que operavam em conivência, na chamada Opera-ção Condor como exemplos da magnitude da repressão políticalatino-americana, transcendendo as culturas e as gerações.

A transição das ditaduras militares levou consigo o surgimentoda memória como um conceito que permite definir e emoldurar oshorrores vividos e as lições que devem ser aprendidas do passado.Estas discussões estão centradas, ademais, nas novas representa-ções sociais que surgem a partir destes processos de transição, en-tre as quais se encontram: novas formas de cidadania, construçõesde sujeitos coletivos, problemas de identidade, a globalização eoutros processos sociais. No entanto, muitos destes novos gover-nos democráticos, em nome da reconciliação social, parece que op-taram por uma política de esquecimento institucionalizado do pas-sado histórico.

O caso chileno oferece um exemplo das enormes contradiçõesque surgem ao tratar de estabelecer um processo de reconciliação ereparação baseado na ausência de justiça real, verdade e fortemen-te marcada pela impunidade.

Durante a campanha eleitoral do Acordo (1989), uma coliga-ção de partidos de centro- esquerda, que se uniram para derrotar ogoverno de Pinochet, no plebiscito de 1988, foi enfatizada a ques-tão dos crimes da ditadura como parte fundamental de seu discur-so eleitoral. No entanto, uma vez no poder, houve uma mudançasignificativa de postura e o primeiro presidente democrático,Patricio Aylwin, anuncia que a restituição da justiça se fará “na me-dida do possível”, decretando assim o que será a política oficial

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dos governos do Acordo, que ainda regem o Chile.Em concordância com este procedimento, o Relatório de Pri-

são Política e Tortura, desenvolvido durante a presidência deRicardo Lagos, reconhece publicamente a existência de tortura noChile; ainda que a intenção parecesse ser reparatória, através deuma aceitação publica do fato, o governo decidiu que não seriampublicados os nomes dos torturadores envolvidos pelos próximos50 anos. Tal postura criou uma situação inusitada: reconhecia-se aprática disseminada de tortura no país, mas não existiam tortura-dores. Desta maneira, o governo retira de si as responsabilidades,obscurecendo o caráter reparatório de seu discurso e levando a so-ciedade chilena a um fracasso na elaboração de ações visando àprevenção das situações de violação aos direitos humanos, trans-formando-se, desta forma, num mandato caracterizado pela impu-nidade e pela retraumatização.

TRAUMA, TRAUMATIZAÇÃO EXTREMAE TRAUMA PSICOSSOCIAL

Para compreender todas as conseqüências geradas após o re-gime ditatorial, é necessário recorrer ao conceito de trauma e comoeste foi se desenvolvendo. Inicialmente, a análise centrou-se emconcepções intrapsíquicas. Desta maneira, o primeiro enfoque quese deteve em esclarecer o conceito de trauma foi dado pela teoriapsicanalítica. Freud (1980), em conjunto com Breuer, estabelece umarelação entre ambos os estados, pontuando o trauma psíquico eenfatizando que “qualquer acontecimento que provoque os efeitospenosos do medo, da angústia, da vergonha ou dor psíquica, podeatuar como trauma” (1980, p. 12).

Se o desenvolvimento do conceito se deu a partir do enfoquecentrado no indivíduo como agente principal, outras abordagenspassaram a considerar o contexto social e outros fatores que o inte-

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gram como elemento produtor de traumas. Bettelheim (1981) pro-põe o conceito de traumatização extrema, enfatizando o trauma , eagregando o termo “extremo” para destacar a sua natureza especifi-ca, que nem em sua maneira de ocorrer, suas conseqüências a curto ea longo prazo, sua sintomatologia, e suas implicações sociopolíticas,pode ser comparado com outros eventos traumáticos. O autor des-taca, ainda, o caráter de intencionalidade política, que está marcadapela forma de exercer o poder na sociedade. Visa, então, adesestruturação do sujeito devido a suas posições ideológicas e suapratica política, o qual é produzido por outro ser humano.

Keilson (1992) propõe uma traumatização seqüencial, conceitono qual o período pós-ditatorial ou pós-guerra não somente evi-dencia as conseqüências prolongadas das experiências traumáti-cas, sendo parte integrante do próprio processo traumático. Apli-cando o referencial de Keilson ao caso chileno, é possível observaras seguintes seqüências:

Primeira seqüência Traumática: Tem seu início com o golpemilitar e culmina no momento em que ocorre a situação repressivaespecífica.

Segunda seqüência Traumática: Começa no momento em queuma situação repressiva afeta diretamente a um sujeito ou à famí-lia e se fecha com o processo de termo do regime militar.

Terceira seqüência Traumática: Inicia-se ao terminar a ditadu-ra, não estando claro quando se produzirá seu termo. É a seqüên-cia mais importante e complexa, já que o caráter traumático depen-derá das características do processo (DO SOLAR; PIPER, 1995).

As autoras deste artigo concebem o trauma gerado pelo terro-rismo de Estado, segundo a concepção teórica de Martín-Baró (1992),que define o fenômeno como um processo psicossocial, produto deuma vivência prolongada de violência que mudou a maneira deser e de agir dos indivíduos. Enfatiza que suas origens são encon-tradas no conjunto das relações sociais, mantendo-se por diversasmediações institucionais, grupais e individuais. O autor reconhe-

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ce, ainda, que o entendimento e a solução não só requerem o aten-dimento terapêutico do problema individual, mas, também, apon-tam a necessidade de se abordar as estruturas e as condições soci-ais traumatógenas.

Nesse processo histórico, o processo dialético do indivíduo étanto ativo quanto passivo, o que permite assumir que seu desen-lace não é irreversível. Assim, quando a experiência traumática estávinculada a um fator estressante e a um meio traumatizanteimplementado a partir de uma ordem política, a sua prolongadamanutenção é o componente que alimenta e produz uma gravedeterioração no rendimento ocupacional, nas relações sociais e noprojeto histórico de vida.

O proposto anteriormente se contrapõe ao conceito de Trans-torno por Estresse Pós-traumático (PTSD), freqüentemente utiliza-do no âmbito médico e cuja definição diagnóstica está expressa noManual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-4),e o Código Internacional de Doenças (CID-10). Esses códigos fa-zem referência à aparição de sintomas identificáveis em relação aum fato traumático, neste se homologam os elicitadores de desas-tres naturais com elicitadores que provenham de outros seres hu-manos, ambos como agentes causadores do transtorno.

Tal fenômeno é ainda mais complexo quando advindo de açõespremeditadas, como é o caso da repressão política exercida peloEstado e aplicada por seus agentes. A visão dos modelos médicostradicionais e dominantes percebeu o trauma a partir de seu cará-ter individual, prescindindo de sua perspectiva histórica: sua di-mensão social, cultural e suas conseqüências a longo prazo.

RETRAUMATIZAÇÃO

O trauma psicossocial tem um caráter recorrente e episódico,evoluindo no tempo com exacerbações geradas por situações polí-

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ticas e sociais que têm uma relação de significância com essas expe-riências traumáticas.

Pastrana e Venegas (2001) assinalam que a retraumatização, aoter sua origem no social, se expressa numa agressão constante ecotidiana, já que o contexto sóciopolítico é o que afeta de maneiradireta o estado de animo e a qualidade de vida da pessoa. O indiví-duo afetado re-experimenta os sintomas quase com a mesma in-tensidade do evento traumático original, o que se expressa numdevir de afetos, emoções e pensamentos derivados da experiênciatraumática do passado. Corroborando o proposto por Bastias, Mery,Rodríguez e Soto (2001), que sustentam que com cada episódioretraumatizante se acentuam sentimentos de raiva, injustiça e im-potência, abandono, perda e frustração por expectativas não cum-pridas por parte do Estado. Da mesma forma, acentuam-se o usode estratégias cognitivas e comportamentais, como a tendência adesqualificar, racionalizar e reagir, evadindo a dor, agudizando asintomatologia, a evolução dos diagnósticos e transtornos, reque-rendo por sua vez períodos mais prolongados de intervenção.

Ao entender como o trauma vai se enraizando pelasretraumatizações, podemos conceber o período de pós-ditaduracomo parte integrante do processo de traumatização global e detransgeneracionalidade do dano.

TRANSGERACIONALIDADE

O conceito de transgeracionalidade surge nos anos de 1950,quando o governo Alemão decide indenizar as vítimas doholocausto e, por necessidade, resolve estabelecer os critérios paraefetuar a reparação. Os elementos que foram levados em conta noprocesso de reparação se associavam aos danos produzidos na saú-de física, excluindo sintomatologia e transtornos de origem psico-lógica. Na efetivação da associação entre ambos os fatores, dão-se

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conta de uma sintomatologia específica dos sobreviventes, assimcomo de seus filhos, expressa nas manifestações de ordem psicoló-gica como psicopatológica, propondo-se a hipótese de que os so-breviventes foram afetados em diversos graus por sua experiênciatraumática.

Estudos concluem que estas manifestações representam umasíndrome relacionada com processos de adaptação pré e pós-guer-ra. Eitinger (1980) assinala o fenômeno como um fator específicodos sobreviventes e que estaria em relação direta com o grau deseveridade das torturas e as vivências aí experimentadas. Estudosposteriores corroboram o fator transmissão de geração do impactodo dano que assume na segunda geração e que compromete áreasvinculadas com a construção do mundo, com as característicasintrapsíquicas (ansiedade, depressão, somatizações, culpa etc.), comas relações familiares, a vulnerabilidade e o modo de conciliar osconflitos (SOLOMON, 1997).

No Chile, as investigações a esse respeito, levadas a cabo comvítimas de perseguição política, indicam que o processo social incidena construção e reconstrução transgeracional das dinâmicasintrafamiliares do processo traumático. Os filhos de famílias afeta-das foram e seguem sendo confrontados com uma série de manda-tos, expectativas e legados que incidem diretamente na construçãoe realização ou não de seus projetos de vida. Isto se confirma e seobserva no genocídio que sofreu o povo. Armenio em 1915, já quedepois de oito décadas ainda se percebe os efeitos na segunda eterceira geração com uma alta presença de psicopatologia, nesteúltimo segmento da população estudada (KUPELIAN;KALAYJIAN; KASSANIAN, 1997), compartilhando conclusões jáencontradas nos estudos mencionados referentes ao Holocausto.Os estudos reforçariam o proposto por Pugent-Rene (1991), queassinala que:

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Quando não há elaboração nem representação da violênciasofrida se produz, por uma parte, uma ruptura e perda datransmissão da história familiar e social e por outra, o horrorse inscreve como um excesso inominável no psiquismo dospais, o que forçará sua inscrição no corpo e psiquismo dageração seguinte e atuará como uma linha de força, comoeixo que orienta um destino (p. 111).

Por sua vez, Tisseron (1997) propõe que o funcionamento psí-quico individual não só se relaciona com os conflitos próprios epelas experiências particulares de cada um, mas também pelasvivências comuns e os acidentes singulares que marcaram a vidados pais, avôs, parentes e amigos. Pelo que, compreender o trau-ma, tanto na primeira como nas gerações seguintes, atinge sua es-sência ou ápice quando apreendemos a totalidade de suas relaçõeshistóricas.

As investigações tiveram um desenvolvimento histórico, quese prolonga há décadas de trabalho nesta temática, o que incidiuna ampliação e no aprofundamento do conceito. Apesar disso, nãose realizaram estudos em partes significativas da população, ad-quirindo, atualmente, grande relevância tanto no aprofundamentodas conseqüências, como na definição do conceito, dado que aênfase na abordagem se baseou na consangüinidade e descendên-cia. Ao propor que o homem e suas gerações são provenientes demúltiplos processos, desenvolvidos em diferentes momentos e con-textos sociopolíticos, que vão em nosso país desde o golpe de Es-tado, ditadura e governos de transição, é que resgatamos o pro-posto por Barudy (1979). Segundo esse autor, os padrõescomportamentais são pautas relacionais, que não são efeito dacausalidade, mas sim de uma produção humana contextual,biopsicosocial e interdependente, numa rede de interações recí-procas que se afetam constantemente. Portanto, entenderemos portransgeneracionalidade o assinalado por Bastias, Mery, Rodrígueze Soto (2001):

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Como a tendência a repetir rigidamente pautas relacionais,que se desenvolveriam posteriorimente ao fato repressivoentre as vítimas e aquela pessoa com as quais possuem umvínculo, seja por consangüinidade ou por laços afetivos,quem repetiriam ditas pautas. Isto se reflete na modalidadede suas relações interpessoais, perpetuando, assim, a funci-onalidade do sistema individual, familiar e social (p. 59).

PESQUISA

Esta investigação proporciona uma análise sistêmica no pro-cesso de entendimento de como estes padrões transcendem a esfe-ra individual, socializando-se coletivamente. O desenhometodológico desenvolvido na pesquisa foi a Grounded Theory e aamostra esteve constituída por 23 mulheres e 10 homens, com ida-des que variam entre os 12 e os 70 anos. Os níveis socioeconômicosaos quais pertenciam variam dos estratos médios altos até os estra-tos baixos. Alguns dos entrevistados eram beneficiários de açõesde organizações não governamentais, Programa de Reparação eAtendimento Integral em Saúde e Direitos Humanos (PRAIS) eoutras pessoas não eram beneficiárias de programa algum.

A população estudada possui alguns antecedentes comuns,como o fato de ter tido um familiar ou amigo próximo que vivencioualgum tipo de repressão política, tal como prisão política, exclusão,exílio, execução política, detenção e desaparecimento.

Nesta investigação, aparece em evidência atransgeneracionalidade do dano. A presença atual do dano é per-cebida, de forma geral, em todos os entrevistados, no referente àpermanência de sentimentos de injustiça, na raiva e no sentimentode impotência. Existe, entre os entrevistados, a necessidade de se-guir desenvolvendo estratégias para mitigá-los. Em nível mais es-pecífico, isto é, não na totalidade da mostra, observou-se que exis-tem diferentes graus de elaboração a respeito do sucedido; a

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radicalização se observa como uma das conseqüências mais influ-entes na qualidade de vida atual destas pessoas; existem diferentesníveis de obstaculização dos projetos pessoais e é freqüente quepercebam o contexto sociopolítico atual como um palco, onde aimpunidade se faz apresente sendo um agente retraumatizante.Alguns sentem ainda medo pela possibilidade de um novo golpede Estado e de envolver-se politicamente.

Distinguiu-se as variáveis que, notadamente, incidem no fenô-meno: o nível de informação manejada é fundamental nacronificação do dano; a psicoterapia incide na elaboração do suce-dido; a maneira que tem a família para enfrentá-lo influi na manu-tenção do dano; a característica de personalidade tendente a focali-zar-se no passado influi em como as pessoas elaboram e cronificamem maior ou menor medida o sucedido.

Assim mesmo, observou-se uma série de estratégias que todostiveram que desenvolver ao longo destes anos, principalmente,evitar a dor, o medo e a utilização de redes de apoio, manutençãoda memória histórica e do acontecido pela vítima.

Em síntese, as repercussões assinaladas se relacionam com osefeitos da transgeracionalidade do dano, transcendendo aconsangüinidade das pessoas comprometidas com as ditas experi-ências, perpetuando, assim, o sistema, já que estas seretroalimentariam cotidianamente. Os danos se expressam nas per-cepções, afetos, cognições e nas condutas, gerando estratégias deação e interação e conseqüências, tanto gerais como específicas, quepoderiam mostrar a ação da sociedade.

MEMÓRIA

Conceitualmente, a noção de “memória” foi se desenvolvendoa partir do aporte de diversas disciplinas das ciências sociais. Osociólogo francês Maurice Halbwachs (1992), assinala que a me-

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mória coletiva se constitui através da integração de memórias in-dividuais, as quais estão sempre emolduradas socialmente. Estesmarcos são portadores da representação geral da sociedade ou deum grupo social, de suas necessidades e valores. Este processo, decompartilhar e criar narrativas comuns, é fundamental na recorda-ção de eventos coletivos, os quais, com freqüência, são reforçadospor rituais e comemorações grupais.

Estes conceitos serviram de base para compreender como seutiliza a memória, e para recuperar e entender importantes even-tos históricos. Bem como a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto,a Guerra de Coréia, do Vietnã, as ditaduras na América Latina eoutros eventos traumáticos são os que impulsionam especialistas eacadêmicos de diferentes disciplinas a desenvolver teorias que per-mitam compreender as sutilezas e complexidades dos processossociais de construção de memória em relação ao trauma(VÁZQUEZ, 2001).

A memória histórica é uma recordação coletiva, uma evocaçãovoltada para o presente que tenta resgatar o valor simbólico dasações coletivas vividas por um povo no passado. De tal forma quese transforma numa ação destinada à preservação da identidade eà continuidade de um grupo social, tendo em vista não esquecer oaprendido.

Por outro lado, a memória social pode ser entendida como umaconstrução sócio-histórica que incorpora ao mesmo tempo umaestrutura de sentimentos. Isto é, as memórias sociais são produzi-das como um grupo de simbolizações a partir de textos, imagens,canções, monumentos, rituais e as conseguintes emoções associa-das (SIMON; ROSENBERG; EPPERT, 2000), impulsionando o de-senvolvimento de movimentos e a construção de novas represen-tações sociais que permitem a re-significação e elaboração dos trau-mas passados (MÉNDEZ, 2005).

Jean-Louis Dèotte (1998) propõe a existência de dois tipos deesquecimento: o esquecimento passivo e o esquecimento ativo.

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Ambos cumprem funções diversas, dependendo de como são in-terpretados e utilizados tanto individual como coletivamente. Oesquecimento passivo se caracteriza pela implantação de estratégi-as de evitação, de negação e de imposição do silêncio opressivo enegador.

Por outro lado, o esquecimento ativo é complementar à me-mória, e é aquele processo que opera depois que se produziu umregistro do acontecimento traumático. Isto é, quando teve um reco-nhecimento publico dos abusos vividos de tal forma que só atravésde um processo de elaboração coletiva destas vivências traumáti-cas é possível aceitar, simbolizar e integrar o acontecido a partir dotrabalho da recordação e da memória.

Tzvetan Todorov (2000) propõe uma análise dos usos da me-mória a partir de dois conceitos: memória literal e memória exem-plar. A memória literal nos permite manter o evento traumático emseu sentido textual. Esta visão estática nos permite estabelecer cau-sas e efeitos; explicar as conseqüências desse evento tanto no indi-víduo quanto no grupo social. Permite-nos também estabelecer certacontinuidade entre o ser que foi e quem é no presente, como tam-bém o passado e presente de um povo ou comunidade.

A memória exemplar, por outro lado, é potencialmentelibertadora, já que nos permite utilizar o passado com vistas aopresente, quando conseguimos processar as lições vivenciadas, as-sumidas num presente e projetadas ao futuro. Isto não necessaria-mente implica negar nem esquecer o traumático do evento já quese pode inscrever como uma manifestação de uma categoria maisgeral, como um modelo para compreender situações novas, comagentes diferentes. Este processo também implica um trabalho deduelo que neutralize a dor causada pela recordação, controlando-ae colocando-a em posição marginal, o que permite que a recorda-ção se abra à analogia, à generalização para poder extrair uma li-ção que nos permita separar-nos do “eu” e assim conseguir enten-der o “outro”.

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As autoras concebem a memória como um construtocognitivo, afetivo e social que nos permite estabelecer e elaborarquem somos e como nos desenvolvemos como indivíduos atra-vés do tempo; portanto, a memória está estreitamente vinculadaà maneira como conformamos nossa identidade. Por outro lado, amemória se emoldura num contexto social que é o que alimenta enutre as memórias individuais através das memórias coletivas,entendendo-se estas memórias individuais como uma sorte dedescendência ou produto das experiências grupais, isto é, um re-flexo e parte do social, pelo que nossa memória é transmitida intere transgeneracionalmente.

MEMÓRIA ENQUISTADA

É assim que propomos o conceito de memória enquistada, ba-seado no proposto por Tisseron (1997). O autor explica que quandoos eventos traumáticos ultrapassam a capacidade de o indivíduoelaborá-los via psiquismo, o impacto destes acontecimentos ficainstalado como um corpo estranho, silenciando, desta forma, aque-las vivências que não são processadas.

A memória enquistada refere-se a esta memória literal e passi-va que se tem ancorada em nosso ser, que criamos a partir da expe-riência individual de eventos traumáticos, o que se sustenta nasrelações dialéticas nas quais co-existimos. Portanto, os efeitos soci-ais dos traumas extremos vão sendo incorporados lentamente, as-similando-se lentamente, chegando a ser encarnado no corpo indi-vidual como um nodo interno que por sua vez se transmite emforma de recordações e narrativas a outros, através de mecanismosde repetição e manutenção de padrões sociais e culturais deriva-dos dos efeitos do trauma psicossocial. Esses traumas são transfe-ridos às gerações e a seu meio social conformando nossa identida-de e intersubjetividade de maneira rígida no tempo.

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Desde uma perspectiva social, a memória enquistada nos aju-da a entender a ação político do grupo FILHOS, constituídos porfilhos(as), sobrinhas(os), netos(as) de mortos e desaparecidos polí-ticos. Este grupo se forma a partir da necessidade de ter um lugarde pertencimento e de contenção emocional, no qual pudessemexplorar suas próprias temáticas com relação ao desaparecimentoe à morte de seus familiares. O processo de geração de práticaspolíticas que experimentou este grupo está sendo pesquisado numestudo narrativo que explora o significado da construção de práti-cas de memória e resistência, seus efeitos curadores, bem como asconseqüências transgeracionais do trauma neste grupo de jovens(ESPINOZA, 2006).

Os resultados destas investigações (BASTIAS; MERY;RODRÍGUEZ; SOTO, 2001; ESPINOZA, 2006) sugerem que, entreos efeitos dos danos transgeneracionais se encontra a falta de infor-mação com respeito ao contexto em que se produz o desapareci-mento ou a morte e a conseqüente vivência imperfeita de elabora-ção do duelo; bem como, o desconhecimento das histórias pessoaisde seus familiares. Tais fatos, unidos ao silêncio familiar e social,são elementos fundamentais que atuam no processo de construçãode uma memória política e pública de seus seres queridos. Estafalta de informação pode também ser entendida como vazios namemória que impedem a elaboração dos processos traumáticos,favorecendo o enraizamento das poucas vivências e recordaçõesque têm de seus próximos.

A rigidez desta memória enquistada determina não só os pa-drões afetivos e comportamentais, mas também as eleições, deci-sões e a maneira através das quais nos apossamos de nosso meio.Da mesma forma, os efeitos estão subordinados aos acontecimen-tos nacionais e a seus efeitos retraumatizantes, existindo uma sortede bloqueios e negações por parte da sociedade frente aos episódi-os traumáticos. O coletivo se manifesta de forma alienada, soman-do-se a isso uma desconfiança generalizada que obstrui a capaci-

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dade empática, condicionando a vinculação e validação afetiva, li-mitando o estabelecimento e a participação em redes de apoio quepermitam ir gerando códigos adequados a sua experiência e integrá-los a uma simbologia compartilhada socialmente. As recordaçõesse voltam infrutuosas numa sorte de alienação social, evidencian-do-se na diminuição do protagonismo e participação cidadã, nomarco do exercício do poder político. Tais posturas estão em acor-do com o modelo neoliberal imperante que implanta a passividadesocial como uma forma autoritária de controle econômico e políti-co para perpetuar o sistema.

DISCUSSÃO

Um dos discursos mais comuns que se repetem em torno douso da memória é a necessidade de conhecer a verdade para que“nunca mais” voltem a acontecer as atrocidades do passado. Estafunção da memória supõe que o esquecimento coletivo levaria, ir-remediavelmente, à repetição compulsiva daqueles atos que nãosão devidamente vigiados pela memória, conformando um esque-cimento passivo que é utilizado tanto pelos indivíduos como pelocoletivo.

Em nível individual, podemos vislumbrar o uso deste esqueci-mento como uma estratégia para tentar aplacar os múltiplos efei-tos traumáticos da violência política. Os que se manifestam numanegação da realidade, um impedimento de estímulos, umaautocensura e um desejo de situar-se no presente visando ao futu-ro, mas evitando todo contato com um passado doloroso. Este pro-cedimento dificulta o resgate de aspectos presentes e futuros, fi-cando clara a maneira de agir, pensar, sentir, impondo obstáculos aseus projetos pessoais, e a sensação de ter que cumprir com lega-dos e lealdades familiares e coletivas.

De acordo com as metodologias utilizadas na população estu-

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dada, cabe destacar a manutenção da memória sócio histórica e doacontecido com a vítima, na qual se distingue um contínuo, que vaidesde uma forte ênfase em manter as recordações; o não forçarnem o acesso nem a retirada destes, até o tratar de não os abordar.Observa-se que as pessoas que utilizam estratégias centradas namanutenção ou negação da memória sócio histórica e a recordaçãodo sucedido, tendem a abordar, de maneira pouco flexível, as difi-culdades cotidianas.

É possível que haja relação com a atitude por parte das pesso-as de centrar-se, principalmente, em elementos do passado, o quepoderia fundamentar-se numa atitude familiar e de seu meio am-biente, concordante com esta manutenção, como também com anecessidade de reivindicar a memória, impossibilitando a elabora-ção do vivenciado. O dito anteriormente incide na persistência desentimentos de raiva, impotência e injustiça, os quais se agudizame se mantêm devido às expectativas criadas – e que não se resolve-ram como eles esperam - com respeito às ofertas e soluções a nívelpolítico, social e judicial, com relação ao tema das violações aosdireitos humanos em decorrência do tempo, já que num primeiromomento acreditavam que o fim da ditadura traria conseqüênciasreparatórias. É importante mencionar que as estratégias desenvol-vidas foram um elemento funcional que permitiu a coesão numcontexto sociopolítico caracterizado pela implantação daahistoricidade, sendo um elemento de resistência para eles.

Em nível coletivo, pode-se inferir que, no Chile, existe a impo-sição de um esquecimento passivo desenvolvido dentro dos mar-cos da transição, estabelecendo um padrão institucional de comovai ser assumida nossa memória. Isso impede a elaboração dos fa-tos traumáticos no nível social e instala a ocorrência de eventosrelativo a violações, que incorpora novas situações ao játraumatizado contexto, sendo a retraumatização um vetor e com-ponente fundamental da transgeracionalidade.

É assim que este processo dialético se nutre e aprofunda tanto

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no psiquismo como no imaginário social e é expulso através dasverbalizações e recordações, as quais vão ratificando uma determi-nada imagem, que impede outros tipos de elaboração. A dor queimplica é cada vez mais temível, já que ao tratar de integrar outrosaspectos tão parcializados, ocultos e privatizados, abre-se um pro-cesso de duelo, que implica uma redefinição e reorganização difícilde realizar e, portanto de assumir.

O mencionado se manifesta no funcionamento da sociedade,onde se implanta a dicotomia vista desde a idealização contra adesumanização, o qual facilitaria a justificativa de atitudes e con-dutas, permitindo desta maneira não se responsabilizar pelas situ-ações. O Estado, através de suas instituições, maquinaria e deci-sões administrativas, técnicas, políticas e judiciais omite, nega, si-lencia e encapsula a dor: “o que não se vê, não existe”. E assimimplementa uma memória literal que permite manter o evento trau-mático encravado no tempo e inalterável.

O elemento perigoso desse tipo de memória é que seu uso de-semboca no assujeitamento do presente ao passado. Um exemplodisso foi a situação vivida na comemoração dos 30 anos do golpede Estado, que se caracterizou pelo contínuo bombardeio de ima-gens. O preocupante desta excessiva exposição foi a completa faltade elaboração emocional que permitisse ao cidadão começar umprocesso de integração desse passado traumático. É assim que, paraalguns, produz-se a saturação e, conseqüente, o desinteresse pelotema e, para outros, a re-traumatização, produto da impossibilida-de de elaboração de suas próprias experiências. Em ambos, estepassado se apoderava do presente.

Os níveis de informação trabalhados, tanto em qualidade comoem quantidade, resultam de grande importância para as avaliaçõesque realizam a respeito do dano que se produziu neles e em seusfamiliares. A escassez de informações se deve, principalmente, porum lado, pelo fato de que são familiares ou amigos de executadospolíticos ou detentos desaparecidos e, por outro, porque a vítima,

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apesar de encontrar-se presente, não expressa nem compartilha ovivido (BASTIAS; MERY; RODRÍGUEZ; SOTO, 2001). No estudode Espinoza (2006), observa-se a existência de um processo de frag-mentação das memórias pessoais e sociais, devido à falta de obje-tos e recordações a respeito de seus familiares, impedindo a possi-bilidade de conhecê-los, já que os cuidadores não tocavam nos te-mas com o fim principal de protegê-los da dor ou porque não seencontravam em condições de abordar o vivenciado. É como socia-lizar a informação, vista como um aprendizado. Como um elemen-to também ameaçador já que coexiste com o medo, a perda de se-gurança em planos afetivos, sociais e econômicos.

Em ambos os estudos, observou-se uma tendência àdicotomização em suas apreciações, o que os leva a não se relacio-nar com aquelas pessoas que avaliam como não pertencentes a suaideologia e, portanto, a seus valores, limitando o poder redefinir deforma mais acabada o sucedido. Desta maneira, os níveis deradicalização eram esperáveis, já que não existia outra alternativadevido ao fato de que os espaços em que tiveram que se desenvol-ver eram restringidos pelo contexto sociopolítico que a ditaduraimplantou. Portanto, estando inserido num contexto radicalizado,o mais provável é que as pessoas se localizem num dos extremos.Sendo assim, a sociedade, em seu conjunto, viu-se definida nessetipo de relações. As pessoas entrevistadas seriam um reflexo destefuncionamento, o que implicaria não se contatar com um outro di-ferente e validá-lo como tal, limitando assim as possibilidades dedesenvolvimento. Dado o contexto sociopolítico, as famílias gera-ram pautas relacionais que, como se disse anteriormente, serigidizaram incidindo na privatização do dano, tendo que viver, dealguma maneira, sem poder expressar o que sentiam, inclusive noâmbito familiar. Isto se reforçaria pela ausência de reconhecimentosocial de suas vivências e pelos reforços sistematizados por partedo Estado.

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SUGESTÕES

Para que se estabeleçam as mudanças no indivíduo e no con-junto da sociedade é prioritário gerar, reforçar e utilizar as redes deapoio, tanto de caráter informal como formal, já que o sentido decrença e pertencimento a agrupamentos ajuda a estabelecer víncu-los íntimos e satisfatórios. Isso permite redefinir os acontecimen-tos, aprender novas estratégias, elaborar e integrar a totalidade dosacontecimentos conseguindo flexibilizar as verbalizações e asinterações, tornando possível, deste modo, deixar fluir as recorda-ções e os sentimentos. Permite-se, assim, resolver seus conflitos edesembrulhar-se de uma maneira que é vivida com funcionalida-de. Através da comunidade pode-se transformar a estrutura socialpara resolver os problemas propostos, criando espaços onde se per-mita resgatar aqueles símbolos que fazem parte da memória sociale histórica, conseguindo transformar o ato de recordar num ele-mento curador ou gerador de novos significados. Fortalece-se, as-sim, as concorrências da pessoa, rompendo a estigmatização eprivatização do dano.

É importante recordar que os processos de reparação social noscontextos onde se produziu uma traumatização pela ação do Esta-do requerem, necessariamente, a vontade política para que se esta-beleça a verdade e a justiça, já que são condições indispensáveispara as elaborações traumáticas e para a prevenção dasretraumatizações. Mais ainda, requer que o Estado seja o facilitadorde um uso ativo do esquecimento, isto é, que promova as instânci-as públicas que permitam a inscrição dos eventos traumáticos nocoletivo para sua elaboração social. É importante ter uma transiçãodesde a memória literal à memória exemplar, que permita a elabo-ração dos sentimentos de raiva, injustiça e impotência, tanto nasvítimas, como nas pessoas próximas e em todas aquelas pessoasque se sentem afetadas.

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Recebido em: janeiro de 2006

Aprovado em: abril de 2006