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UNIVERISDADE FEDERAL DO PARANÁ FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ESTRANGEIRAS MODERNAS

A NEGAÇÃO DE DEUS EM OS CANTOS DE

MALDOROR DE LAUTRÉAMONT

CURITIBA 2008

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FLORESVAL NUNES MOREIRA JUNIOR

A NEGAÇÃO DE DEUS EM OS CANTOS DE MALDOROR DE LAUTRÉAMONT

Trabalho apresentado à disciplina de Orientação Monográfica II do curso de Letras – Francês, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Letras com ênfase em Estudos Literários. Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Peixoto Cherem

Curitiba 2008

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Sumário Resumo .................................................................................................. 4 1. Introdução: biografia de Lautréamont ................................................. 5

2. Maldoror, o diabo e deus ................................................................... 16

2.1. Negar a existência de deus, usando deus como argumento: Deus é imperfeito, logo não é deus ............................................... 16

2.2 Blasfêmias e irreverência a deus ............................................ 26

3. Maldoror a favor do ser humano e Maldoror contra o ser humano ..... 34 4. Lautréamont, Dante, Baudelaire e Rimbaud ...................................... 36

5. Considerações finais ......................................................................... 42 6. Referências bibliográficas .................................................................. 44

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Resumo O objetivo deste trabalho é analisar o ateísmo expresso no livro “Os Cantos

de Maldoror”, escrito pelo Conde de Lautréamont. Considerando que o escritor

viveu inserido em uma cultura cristã, analisar o tratamento dispensado, sobretudo,

ao deus desta religião. Verificar também os paralelos possíveis entre a obra e a

biografia do escritor, demonstrando, assim, a incompatibilidade entre a postura

que parece ser a dele, e a crença em deus. Além disso, considerar também sua

obra em relação às possíveis influências de dois escritores: Dante e Baudelaire.

Assim como investigar algumas semelhanças entre as obras e biografias de dois

escritores franceses que pertenceram a um mesmo período literário: Lautréamont

e Rimbaud.

PALAVRAS CHAVE: Ateísmo. Lautréamont. Literatura francesa.

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1. Introdução: biografia de Lautréamont Mas quem é então este escritor, autor de uma obra que exerce tão forte

impacto, sobretudo em pessoas ligadas ao surrealismo, a ponto de André Breton

declarar “Excetuado tão-somente Lautréamont, não conheço nenhum [homem]

que não tenha deixado algum vestígio equívoco da própria passagem”1 e que

apesar da escassez de dados biográficos concretos, atrai a atenção de tantos

quantos tomem contato com esta obra?

Nascido em quatro de abril de mil oitocentos e quarenta e seis2, em Montevidéu,

capital do Uruguai, filho de um alto funcionário do consulado francês. No ano

seguinte, antes de completar dois anos de idade, sua mãe se suicida. Sabe-se

que ele chegou na França em outubro de mil oitocentos e cinqüenta e nove,

contando, então, treze anos, para estudar como interno em um colégio da cidade

de Tarbes, sudoeste da França. Nesta sua estadia Ducasse tem como tutor Jean

Dazet, pai de Georges Dazet. Este último terá grande importância na obra de

Ducasse, sendo citado nomeadamente na primeira redação do primeiro dos

Cantos de Maldoror. No ano letivo que inicia em outubro de mil oitocentos e

sessenta e três, Isidore estuda retórica no Liceu Imperial de Pau. Em maio de mil

oitocentos e sessenta e sete Ducasse volta ao Uruguai, onde fica até o fim deste

ano, quando retorna então à França, se instalando, desta vez, em Paris. No ano

seguinte, mil oitocentos e sessenta e oito, Ducasse publica pela primeira vez, em

agosto, o Canto primeiro, assinando apenas (***), optando, desta forma, por

manter-se no anonimato. Entre agosto e dezembro de mil oitocentos e sessenta e

oito, o primeiro dos Cantos de Maldoror participa de um concurso poético, tendo

sido publicado na coletânea dos textos concorrentes, intitulada Parfums de l’âme.

Nesta publicação o nome de Georges Dazet é abreviado pela letra “D...”. Desde

outubro, Ducasse estava em contato com Lacroix, importante editor que publicou,

entre outros Vitor Hugo, para conseguir publicar seus Cantos de Maldoror, que

1 BRETON, André. Segundo manifesto do surrealismo. Tradução: Sergio Pachá. Nau Editora. Rio de Janeiro, 2001, p. 157. 2 Estes dados biográficos têm como base a cronologia apresentada por Jean-Luc Steinmetz nas páginas 457-464 da edição dos Chants de Maldoror, utilizada para este trabalho.

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finalmente são impressos durante o verão deste ano (1869), agora assinados por

Conde de Lautréamont3, e a abreviatura “D...” é excluída, substituída pelos nomes

de animais variados, além de outras alterações textuais. O teor agressivo da obra

faz com que Lacroix se recuse em colocar a obra à venda (conforme carta do

próprio Ducasse ao banqueiro Darasse4). Em uma carta de vinte e um de fevereiro

de mil oitocentos e setenta, endereçada a Poulet-Malassis, antigo editor de

Baudelaire e de Zola, entre outros, Ducasse participa sua intenção de mudar seu

método5. Em abril, ele publica o primeiro fascículo de Poésies e em junho o

segundo 6 , assinados por Isidore Ducasse. Na manhã de vinte e quatro de

novembro de mil oitocentos e setenta, Ducasse é encontrado morto em seu

apartamento. Seu atestado de óbito, ironicamente, lhe concede um título há muito

tempo desejado: “homem de letras”.

A obra de Lautréamont, em seguida à sua morte, foi acessível a um círculo

restrito de leitores. Entre os escritores simbolistas que tiveram contato com esta

obra, a idéia geral era de que era produzida por um louco. Esta idéia predominou

até, mais ou menos, a Primeira Guerra Mundial, quando, a partir daí, um novo

olhar foi lançado sobre esta obra, sob a iniciativa do poeta André Breton. Se até

então a importância dada a Lautréamont não tinha ultrapassado o âmbito da

3 Existem pelo menos duas hipóteses para a origem deste pseudônimo, levantadas pelo escritor Cláudio Willer em seu prefácio à sua tradução dos Cantos (ver referências): A primeira é que este nome possa ter sido tirado, a partir de uma deformação, de um personagem de Eugène Sue chamado Latréaumont, publicado em 1838. E esta deformação pode ter sido deliberada ou produto de erro tipográfico. Outra possibilidade é a homofonia entre este nome e a frase “l’autre à Mont”, ou seja, “o outro de Monte[vidéu]”, destacando assim o fato de ser um estrangeiro na França e a sua condição de ser à parte, que se recusa a fazer parte de um todo. 4 Carta de Ducasse a Jean Darasse de 12 de março de 1870. Darasse era um banqueiro incumbido por François Ducasse, pai do escritor, de repassar o dinheiro ao filho enquanto este estivesse na França. Nesta carta Ducasse explica ao banqueiro que precisa de dinheiro para pagar a edição de sua obra. Nesta mesma carta Ducasse fala sobre sua intenção de escrever uma outra obra mudando completamente seu método, passando agora a “... cantar exclusivamente a esperança, a calma, a alegria, o dever.” Esta carta, bem como todas as que se conhece de Ducasse foram traduzidas e publicadas por Cláudio Willer na edição mencionada nas referências bibliográficas. Todas as citações de cartas de Ducasse que seguem se referem a esta mesma publicação. 5 Nesta carta Ducasse participa ao editor Poulet-Malassis que renegaria seu passado, mas para isso, teria que “atacar a dúvida deste século (melancolias, tristezas, dores, desesperos, relinchos lúgubres, maldades

artificiais, orgulhos pueris, maldições que fazem rir, etc.)”. Isto significa que mesmo que Ducasse tenha escolhido um novo caminho, seu desejo de atacar permanece com a mesma energia. 6 Depois de ter publicado Os Cantos de Maldoror e ter decidido mudar sua “tática de ação”, Ducasse publica dois textos, intitulados Poesias I e Poesias II. Nestes textos o autor “corrige”, altera, corrompe alguns escritores anteriores a ele, adaptando as idéias destes escritores às suas próprias. De tal procedimento resulta um trabalho muito diferente de sua obra anterior, mas onde é possível ainda identificar o estilo da escrita do autor dos Cantos e a mesma tenacidade em dar a conhecer suas idéias.

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curiosidade, a revolução proposta pelo surrealismo concede a este autor um lugar

de destaque entre os escritores revolucionários e o interesse por esta obra é no

sentido de considerá-la como influenciador da literatura moderna e expoente em

termos de revolta. Só depois desta revalorização, sob a ótica surrealista, é que o

prestígio de Lautréamont começa a aumentar. No século XX, os estudos feitos

sobre este autor e sua obra são praticamente infindáveis7. Sua influência e o

interesse despertado por esta obra dá ensejo, por exemplo, à Associação dos

Amigos Passados, Presentes e Futuros de Isidore Ducasse (AAPPFID), que existe

atualmente, na França.

Evidentemente o ambiente em que viveu Lautréamont o influenciou na

produção de sua obra. Nos anos em que o escritor viveu na França havia já um

desencanto com o ideário romântico e também em relação ao poder que a

burguesia havia conquistado. Apesar dos avanços tecnológicos e científicos,

muitos autores demonstravam pessimismo em relação aos rumos que a

humanidade poderia seguir. Politicamente, os franceses já haviam experimentado

os principais regimes organizados pelo ocidente: já havia sido monarquia,

república e império. A experiência da Comuna estava prestes a acontecer.

Contudo ela não se manteve senão por algumas semanas, e junto com ela,

algumas esperanças seriam destruídas também no plano político.

Por outro lado, o predomínio da crença em deus já não se sustentava

logicamente: Darwin havia publicado o livro A origem das espécies, em 1859,

onde o criacionismo era refutado. E logo Nietzsche anunciaria a morte de deus em

sua obra A gaia ciência, de 1882 confirmando que o homem já não precisava mais

acreditar em um criador e muito menos se submeter à autoridade de um ser

imaginário que nem sequer se mostrava benevolente para com o homem.

É neste clima de desilusão que surgem os Cantos. As conquistas do

conhecimento pareciam ter servido não para o bem da humanidade, mas para seu

dano.

7 Uma grande lista de trabalhos publicados sobre Lautréamont e sua obra pode ser encontrada no site: http://www.cavi.univ-paris3.fr/phalese/maldororhtml/documents/bibliographie.htm Consultado em 11/12/08

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No entanto, o dogma da crença em deus não havia sido extinto. Entre os

conservadores a crença predominava, seja nos meios políticos ou artísticos.

Atacar este dogma era (assim como é, também hoje) uma atitude subversiva, e

mesmo anti-social. Apesar da evolução secular dos conhecimentos nas áreas

científicas, da retórica e da lógica, tal crendice era (assim como é, também hoje)

amplamente aceita no mundo ocidental, entenda-se em países descendentes da

cultura judaico-cristã, a ponto de existirem tanto cientistas quanto religiosos que

crêem que possam ser solidárias religião e ciência, e que se beneficiam, tanto os

primeiros quanto os outros, dos avanços da ciência e da retórica, aproveitando-se

deles em seu discurso de conciliação entre estas duas formas de conhecimento

que partem de princípios diferentes. Por exemplo, Descartes que, em sua obra

Discurso do método, tenta provar, através de argumentos, a existência de deus.

Ou ainda, atualmente, o cientista Francis Collins que apesar de ter feito

descobertas na área da genética, escreveu um livro (A linguagem de deus) onde

atesta sua posição deísta.

Argumentar a favor da existência ou da não existência de deus é tarefa

difícil e tanto quanto desgastante, já que os argumentos tanto de um lado quanto

de outro, estão muito desenvolvidos. Crentes evocam a fé como princípio de tudo,

ateus, a lógica, e a partir daí a discussão é praticamente interminável. E também

não é nova. Como não poderia deixar de ser, ela também está presente na

literatura, de maneira mais ou menos explícita, de acordo com a intenção do autor.

E as diferentes formas como ela é aí tratada, nos permite, seguindo a via inversa,

descobrir ou perscrutar algumas das intenções do autor. Ao se estudar um artista,

que viveu em uma época diferente daquela em que ele está sendo estudado,

como é o caso deste trabalho, é preciso se levar em conta a impossibilidade de se

reproduzir a “sua” época, e como devemos contar sempre com esta desvantagem,

as hipóteses levantadas neste trabalho serão mais ou menos especulativas,

porém baseados em estudos críticos sérios sobre o autor.

Se há escritores que, em vida, fazem questão de deixar bem claras suas

posições, ao passo que outros, por não lhes ser possível ou por não estar no rol

de seus desejos o tornar público seus anseios, suas preocupações gerais, estes

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acabam por legar à posteridade mais lacunas do que indicações explícitas,

fazendo com que aqueles que venham a se interessar postumamente pela sua

obra, bem como pelas suas implicações na biografia do escritor ou vice-e-versa,

vejam-se obrigados a recorrer a interpretações de fontes indiretas. Isidore

Ducasse é um escritor que se enquadra no grupo destes últimos. Deixando

disponíveis, como fontes para reconstrução de sua biografia, apenas sua própria

obra, seu atestado de óbito, seu passaporte, algumas cartas, o depoimento de

alguns de seus contemporâneos. Não obstante, estes raros documentos

suscitaram uma vasta bibliografia de pesquisadores que, apoiados pela exegese

da obra de Ducasse, puderam retraçar, ou até mesmo reconstituir alguns aspectos

da personalidade do escritor, para, a partir daí, fazer uma leitura de sua obra

destacando os pontos que cada um julga mais interessante. E é apostando na

validade deste estratagema que este trabalho vai buscar analisar como Ducasse

procede à negação sistemática da idéia de deus dentro de sua primeira obra, Os

Cantos de Maldoror e de como isso pode ser ou não reflexo de uma posição

ateísta de seu autor. A escolha deste ou daquele aspecto, evidentemente, indica

as preocupações do exegeta.

Ao escolher investigar o possível ateísmo de um homem que não deixou

nenhum relato onde, explicitamente, aponte sua posição sobre esta questão, eu

estava ciente de que iria me deparar logo de início com o seguinte problema: onde

procurar dados que comprovem, ou mesmo indícios relevantes que apontem para

uma direção que demonstre seu posicionamento? A resposta a esta pergunta não

pode ser outra: teriam que ser retirados, necessariamente, de sua própria obra, ou

ainda dos trabalhos daqueles que foram os primeiros entusiastas e comentadores

desta obra. A partir dos dados biográficos disponíveis de Ducasse não se podem,

evidentemente, comprovar nem sua devoção a deus, nem a satanás, nem mesmo

seu ateísmo; porém, ao se analisar o conjunto da obra de Isidore Ducasse, o

conde de Lautréamont, percebe-se que as opiniões aí manifestas não podem ser

a de um crente. Ao contrário, estão mais próximas das de alguém que, através do

escárnio (para com deus e as religiões), do exagero (em suas representações do

grotesco que seria a figura de deus), da blasfêmia deseja, a todo custo, explicitar a

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nulidade desta entidade (deus), e mais do que isto, o quanto pode ser perniciosa

esta crença.

É certo que nem a crença nem a descrença exigem, a princípio, um

engajamento em alguma seita, igreja, ou outra via semelhante de manifestação de

suas idéias. Por outro lado, aquele que admite a existência de deus, impõe-se

muito mais severamente a não-concessão a seu oposto.

Em Isidore Ducasse a perturbadora escassez de dados biográficos propõe

uma interrogação desafiadora, pois o radicalismo, a agressividade, a revolta

explícita em seus textos nos leva a acreditar que Lautréamont possuía um caráter

que se recusava a compartilhar dos valores de sua época, ao mesmo tempo em

que nos instiga o desejo de preenchimento destes espaços vazios. Procurar

descobrir quem foi o homem por trás do mito8, conjeturar (e buscar justificativas

para tais conjecturas) quais tenham sido suas opções, suas posições perante a

vida e perante a literatura e a arte, se o que pode ter motivado a agressividade de

sua obra foi um tremendo desgosto pela vida ou um ardente desejo de mudança,

de melhoria, de revolução, ou uma mistura destes dois sentimentos, contraditórios

apenas em aparência, fato que pode ser verificado também em outros autores

cronologicamente próximos a Lautréamont9, são as motivações que irão animar

este trabalho. E mesmo que se admita que a obra do escritor como fonte possa

ser insuficiente, é a ela que iremos recorrer, por inexistência de outros dados,

analisando uma possível relação entre idéias expostas no texto e opiniões do seu

autor.

Isidore Ducasse é o nome de nascimento do autor, o que ele não pode

escolher, o que ele herdou da família, instituição que ele abominava (fiz um pacto

com a prostituição, a fim de semear a desordem entre as famílias. C1, E7), e que,

apesar disso, era ele. Conde de Lautréamont, nome inventado por ele, é quem ele

desejava ser, o criador de Maldoror e alter ego de Ducasse, aquele que poderia

8 A mitificação de Lautréamont começou no ano de 1890, quando o editor Léon Genonceaux publicou, como prefácio a uma reedição dos Cantos, uma biografia de Lautréamont onde ele misturava informações colhidas junto a Lacroix e Poulet-Malassis (antigos editores de Ducasse) com outras que ele mesmo inventou. O texto traça o perfil de um Isidore Ducasse taciturno, que só trabalhava à noite, de hábitos pouco convencionais, além disso, sustenta a idéia (falsa) de que Ducasse teria combatido na Comuna. 9 Esta aproximação será vista com mais detalhes entre Lautréamont e Baudelaire e entre Lautréamont e Rimbaud.

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realizar seus anseios, aquele que renegou o passado e criou sua própria

identidade, podendo, desta forma, não só se desvencilhar de todas as convenções

como também combatê-las. E Maldoror, porta-voz deste homem cheio de idéias e

com apetite voraz de transmiti-las. Portanto, irei considerar que algumas das

opiniões expressas por Maldoror, ou pelo Conde de Lautréamont possam ser

atribuídas a Isidore Ducasse. O que significa, no desenvolvimento deste trabalho,

admitir uma fusão das vozes do personagem e de seu criador, assim como

enxergar no personagem alguns traços que podem ser do próprio autor, ao passo

que a identificação entre Ducasse e Lautréamont é direta10. Em primeiro lugar,

pelo motivo de que a obra de Ducasse não é em nenhum momento neutra, e a

pessoa que a escreveu, se não partilha integralmente das opiniões ali expostas,

pelo menos não é contrária a elas, pois são opiniões incisivas, veementes,

impossíveis de serem veiculadas por alguém para quem elas são indiferentes, e

inimagináveis para quem não as professa. Em segundo lugar, pelas intervenções,

ao longo do texto (uma voz que não é a do seu narrador habitual), porém é

alguém que partilha de certos dados biográficos de Ducasse (“O final do século

dezenove verá o seu poeta...ele nasceu em litorais americanos, na embocadura

do Prata...” (C1, E14). Essa frase pode ser entendida como a expressão do anseio

de Ducasse de se fazer escritor conhecido, relatado por seus editores, e que traz

também uma menção à sua região natal; “Quanto a mim, faço que meu gênio...” e

“Minha poesia não consistirá em outra coisa...” (C1,E4), onde o autor do texto

parece querer ocupar o lugar do narrador; “Não faz muito tempo que revi o mar e

calquei o passadiço dos navios, e minhas lembranças estão vivas como se os

houvesse deixado ontem...” (C1, E9). Aqui o narrador relata uma viagem de navio,

justamente em uma época em que Ducasse acabara de voltar à França de navio,

vindo do Uruguai; sem falar nas citações, no texto, de pessoas do convívio de

Ducasse), o que pode ser considerado como um desejo de relacionar ficção e

realidade.

10 Este trabalho não pretende explorar a diferenciação entre Ducasse e Lautréamont. Se porventura algum destes nomes for empregado por contraposição ao outro, a diferença relevada será explicitada.

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Sua derradeira obra, intitulada Poésies, foi publicada sob a assinatura de

Isidore Ducasse, ao passo que seu primeiro texto completo, Les Chants de

Maldoror, foi assinado por Conde de Lautréamont. A diferença entre o teor destes

dois textos pode fazer parecer que cada uma das assinaturas corresponde a uma

pessoa com preocupações diferentes. Porém, uma leitura mais atenta, nos revela

uma mesma pessoa que segue por caminhos diferentes para expor preocupações

semelhantes. A diferença de feição entre este dois textos é notória: Se em

Poésies o discurso é “... no sentido da esperança...”11 nos Cantos é o mal que é

cantado. Mas se há contradições na obra ducassiana, elas não são desta ordem.

Este tipo de viragem é fruto de uma negação absoluta, cúmulo do inconformismo,

que não se contenta em desprezar tudo, em um primeiro momento, já que em

seguida ele despreza até mesmo este desprezo. Portanto não temos uma

“mudança de lado”, um arrependimento da virulência anterior, uma conversão de

qualquer espécie, o que temos é uma hipérbole da recusa, a revolta elevada ao

seu limite.

Este trabalho irá acompanhar como Lautréamont procede a esta negação

ao longo dos Cantos, entendendo que o narrador, Maldoror, como já foi dito, por

vezes cede seu lugar a Lautréamont e torna-se arauto de suas próprias idéias.

Desta forma, Isidore Ducasse torna-se Lautréamont para, através dele, execrar

aquilo que acredita dever ser execrado, e Lautréamont cria Maldoror, um ser

dotado de possibilidades que ultrapassam as dos seres humanos, sejam elas

físicas (metamorfoses, propriedades animais, etc...) ou sobrenaturais.

Se Lautréamont faz questão de, a cada momento, mostrar que o homem

tem, necessariamente, a maldade entre os seus atributos, ele o faz com o intuito

de realçar a impossibilidade deste ser ter sido criado à semelhança de um deus de

quem se diz ser bom:

Minha poesia não consistirá em outra coisa senão atacar, por todos os meios, o

homem, essa besta-fera, e o criador, que não deveria ter engendrado semelhante

inseto. Volumes se amontoarão sobre volumes, até o fim da minha vida, e, no

11 Conforme suas próprias palavras, em carta de 21 de fevereiro de 1870 ao editor Poulet-Malassis.

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entanto, nada mais encontrarão neles, a não ser esta idéia única, sempre presente

em minha consciência! (C2, E4)

Dito em outras palavras, a criação do homem por deus excluiria a maldade

do primeiro, por ser ele feito à semelhança do outro, e a maldade do homem

impossibilita que ele seja resultado de uma inteligência isenta de maldade, e uma

vez que deus é o todo, o homem como parte deste todo e a maldade como parte

do homem seriam parte de deus, e um deus que tem uma parte de maldade, não

pode ser perfeito. Assim, é o Conde de Lautréamont que nos dá, explicitamente, a

medida de seu desprezo por uma idéia, da qual, o mínimo que se pode dizer, é

que não se sustenta quando contraposta à lógica mais prosaica. Esta negação,

este desprezo não se dá passivamente, conforme a expressão de Bachelard, “le

vouloir-vivre est ici un vouloir-attaquer”12.

A apologia do mal é uma constante nos Cantos, mas de forma nenhuma ela

é gratuita. Ele tem um objetivo preciso. Ele quer mostrar que não há bem absoluto,

portanto não pode haver um deus. Como ele está lidando com uma idéia, da qual

ele pretende mostrar a nulidade, Maldoror / Lautréamont não se priva de colocar

em cena, alegoricamente, a própria figura a ser negada. Nesta obra, o fato de

deus ser, por vezes, invocado, não significa a afirmação de sua existência, pois as

situações em que esta figura é colocada servem justamente para demonstrar a

impossibilidade de sua existência. O caminho percorrido por Lautréamont não é,

no entanto, o da negação direta da existência de deus, mas o objetivo a se

alcançar é, invariavelmente, a destruição do mito do criador.

Se a mitologia judaico-cristã associa seu deus à bondade pura e concede a

ele poderes absolutos, tais quais onipotência, onipresença e onisciência, mostrá-lo

sob uma perspectiva diferente do que esta, ou seja, destituí-lo destas

prerrogativas, negar sua submissão a ele ou insultá-lo, esses são atos que só

podem ser praticados por quem não reconhece neste ser a capacidade de julgar

os atos dos humanos, e se este deus não possui ao menos estes predicados, ele

não é o deus apregoado por aqueles que nele crêem. Admitir a existência de deus

12 BACHELARD, Gaston. Lautréamont. Paris: Librairie José Corti, 1939.

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simplesmente para atacá-lo, e, logo depois, negá-la não é um expediente coerente

com a conduta que se imagina a de um crente e que ele mesmo se obriga a

adotar. Quem, admitindo sua existência, insultaria um ser capaz de condenar a um

castigo eterno aquele que se recusa a aceitá-lo como ser supremo?

A posteridade, por vezes, emite julgamentos, adequando a posição de

alguns escritores às conveniências da época. Esta adequação obedece

necessariamente às ambições de quem a propõe, sejam elas as de atenuar o

conteúdo da obra, e por extensão eliminar posturas polêmicas que possam ter

sido as de seu autor, ou sejam no sentido de introduzi-la em algum meio no qual,

até então, ela não pôde figurar. Maldoror combate deus, literalmente inclusive.

Este personagem de Lautréamont é também uma voz, através da qual

Lautréamont se exprime. Lautréamont, portanto, é o escritor que não aceita

submeter-se à autoridade deste deus, e ao fazer isso, ao renegá-lo, afirma sua

não-crença. Interpretar a obra de Lautréamont de maneira a atribuir-lhe tal crença

é falsear a intenção explicitamente colocada em sua obra. Este trabalho pretende

mostrar que, no caso da obra de Lautréamont, associá-la à fé em deus é

corromper-lhe o sentido 13 . Na busca deste objetivo, o trabalho abandona

deliberadamente qualquer pretensão de imparcialidade para assumir uma

coloração interpretativa. Isto significa que este trabalho não tem a intenção de

anular seu posicionamento sobre o tema. Ao contrário, é não fazer ilusão quanto

ao fato de que este posicionamento não é neutro, e é ele quem vai determinar e

pautar as interpretações emitidas, porém procurando sustentar tais interpretações

com a contribuição de outros pensadores.

A estrutura dos Cantos de Maldoror não é regular, nem em sua forma, nem

em seu conteúdo. Entre as “irregularidades” formais da obra está a mudança

constante do foco narrativo, que pode ser ora em primeira pessoa, ora em terceira.

Além das incorreções gramaticais (das quais não se sabe com certeza se são

introduzidas intencionalmente ou não) e das infiltrações do idioma espanhol da

infância de Ducasse na sua escritura em francês. Subversões que refletem um

13 Uma dos objetivos deste trabalho é refutar uma (im)possível futura associação entre Lautréamont e a fé em deus. Desconheço se já existem trabalhos que façam tal associação.

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caráter inconformista, ávido de transformações, desejoso de adaptar as regras às

necessidades de suas posições. O texto é dividido em seis cantos. Cada qual, por

sua vez, é dividido em um número variável de estrofes. Para as citações que

aparecerão neste trabalho, adotarei o mesmo sistema de referências utilizado por

Cláudio Willer em sua tradução dos Cantos de Maldoror 14 : os cantos serão

abreviados por “C” seguido do número do canto em questão, assim como as

referências às estrofes serão abreviadas por “E”. Desta forma, uma referência à

segunda estrofe do canto primeiro, será identificada como C1, E2. As citações de

Poesias I e Poesias II aparecerão como P1 para a primeira e P2 para a outra.

14 LAUTRÉAMONT, Isidore Ducasse, Conde de. Os Cantos de Maldoror. Poesias. Cartas. São Paulo: Iluminuras, 2005.

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2. Maldoror, o diabo e deus 2.1 Negar a existência de deus, usando o próprio deus como argumento: Deus é imperfeito, logo não é deus

O poeta emprega palavras, utiliza-se de expressões ou de imagens, com

um sentido próprio. Desvendar-lhe os segredos de seu dicionário é tarefa

indispensável para a compreensão de sua obra. Como nos Cantos de Maldoror as

cenas não se sucedem linearmente, não há propriamente um enredo; porém a

recorrência de algumas imagens pode nos servir como chave para o entendimento

de seu mundo. Sua lógica é da maldade, da destruição, da negação, da

metamorfose. É evidente que não podemos ler, por exemplo, a cópula com a

fêmea do tubarão de maneira literal. No entanto, a cena em que deus, caído à

beira de uma estrada, é insultado, chutado e cuspido não deixa dúvidas de qual

símbolo é que está sendo aviltado. Lautréamont, ao mencionar deus, trata este

personagem com ironia, sarcasmo, desprezo. Mesmo quando ele é nomeado

como “criador”, “todo-poderoso”, estes epítetos são empregados ironicamente.

Basta compararmos o significado literal destas expressões com o tratamento que

o autor dá àquele que recebe estas designações: torna-se evidente o desejo de

rebaixamento e de ridicularização desta figura.

A primeira estrofe do primeiro Canto é um alerta direto ao leitor. O autor

avisa, em tom de ameaça, que os Cantos que seguem, para serem suportados,

exigem daquele que aí vai adentrar “... uma lógica rigorosa, e uma tensão de

espírito pelo menos igual à sua desconfiança...” (C1, E1)15 , para logo em seguida

proclamar: “Por conseguinte, alma tímida, antes de penetrar mais longe em tais

extensões inexploradas de terra, dirige teus calcanhares para trás e não para

frente” (C1, E1).

Apesar de não termos nos Cantos uma sucessão de eventos a ponto de

formar uma história coesa, podemos perceber que, à medida que avançamos na

15 Todas as citações dos Cantos de Maldoror em português serão da tradução de Cláudio Willer, edição citada na nota 14.

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leitura, o autor se distancia progressivamente da esfera do possível, da realidade

concreta e, acompanhando este distanciamento, aumenta também sua ânsia de

profanação. Esta recusa deliberada do controle da razão, que o coloca entre os

precursores do surrealismo, permite a Lautréamont criar um mundo próprio,

povoado de seus monstros interiores, cuja originalidade é inquestionável. Cenas

como aquela em que Maldoror esmaga um vaga-lume, representante de deus (C1,

E7), ou aquela em que ele copula com a fêmea do piolho (C2, E9) ou com a do

tubarão (C2, E13), a cena em que Maldoror, como voyeur, espiona o cabelo de

deus lamentando sua sorte (C3, E5) ou ainda quando Maldoror é descrito

fisicamente (C4, E4), atestam sua recusa do que é real, do que é possível, em prol

de um universo onírico, inconsciente. Bem como as comparações insólitas dos

“belos como...”, entre as quais, a mais famosa é: “...belo como..., ... o encontro

fortuito sobre uma mesa de dissecção de uma máquina de costura e um guarda-

chuva” (C6, E3). Esta postura, que seria mais tarde sistematizada pelo

surrealismo, denota desejo de destruição das contingências a que os homens

estão submetidos, uma revolta contra a condição espiritual em que o homem se

encontra (crença em um deus malvado e submissão a ele). Sentir esta revolta e,

em seguida, exteriorizá-la são passos em um caminho que leva Lautréamont a

vislumbrar uma condição menos constrangedora para o homem. Esta melhoria só

pode se dar com a conquista de uma liberdade plena, de onde a idéia de deus

está completamente banida. Como deus é a barreira mais eficazmente construída

contra esta busca, é contra ele que Lautréamont se lança com mais ímpeto.

Desde a primeira vez que deus é mencionado, sua consciência é

amaldiçoada. Porém, o primeiro momento em que Lautréamont desenvolve um

pouco mais a relação de seu personagem com deus, está na sexta estrofe do

canto primeiro. Depois de nos passar um roteiro, explicando uma maneira de

como sentir prazer ao assassinar um adolescente, lamber seu sangue e beber

suas lágrimas (pura efusão lírica tendendo a desequilibrar a noção de realidade),

ele nos fala sobre o arrependimento que tal ato deve nos inspirar. Deve-se lembrar

aqui, o quanto o conceito de arrependimento está ligado às doutrinas religiosas,

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sobretudo à cristã, alvo mais direto de Lautréamont16. Se, como acreditam os

crentes, o arrependimento é uma via de acesso a deus, Lautréamont diz que ele é

“...uma faísca divina que existe em nós, e raramente aparece...” (C1, E6), e

mesmo quando aparece, já é muito tarde. Visto que o arrependimento, parcela do

divino em nós, aparece tarde demais, e o ato maldoso é irreversível, temos um

deus que chega atrasado e o fato de não conseguir evitar semelhante crime,

atribui-lhe um fracasso incompatível com a idéia de um ser todo-poderoso. Assim,

o deus que é apresentado, é impotente, ou seja, destituído da onipotência que o

torna o criador.

Logo em seguida, Lautréamont confronta as noções de Bem e de Mal,

concluindo com a equiparação destes dois conceitos. Ora, nada mais distinto, para

aquele que crê em deus, do que estes dois conceitos. E sabendo que deus deseja

que o homem faça o bem17, o crente, ao decidir agradar a seu deus, opta sempre

pelo Bem. Lautréamont, ao anular esta distinção, recusa o maniqueísmo, resíduo

obrigatório das religiões ocidentais. Na seqüência destas afirmações, Lautréamont

diz, ironicamente, que espera que sejam, o Bem e o Mal, uma mesma coisa, pois

“senão, – pergunta-se ele – o que seria de mim no dia do julgamento final?” (C1,

E6). Em outras palavras, admitindo-se a hipótese da chegada deste dia, portanto

da existência de deus, ainda assim sua posição é oposta a isso, e sua

condenação seria inevitável: Mais uma manifestação do espírito de

insubordinação de Ducasse, que é a mais consistente matéria prima com a qual

forja sua negação a deus.

A estrofe seguinte inicia-se com a famosa declaração: “Fiz um pacto com a

prostituição a fim de semear a discórdia entre as famílias” (C1, E7), e como se dá

16 É compreensível que Lautréamont, tendo vivido sempre inserido em uma cultura cristã, dedique a maioria de seus ataques ao deus desta religião. O que não significa que ele demonstre simpatia por outras crenças: tem desdém tanto pelo catolicismo quanto pelo islamismo ao confundir intencionalmente uma mesquita e uma igreja (C2, E11), faz ironia com a forma hebraica de chamar deus: “Elohim é feito à imagem do homem” (P2), ou apresenta caracteres hebraicos à entrada de um prostíbulo (C3, E5), e mesmo o desrespeito com os pagodes, templos religiosos orientais (P1) são alguns exemplos de que Lautréamont não se posicionava apenas contra o deus predominante na cultura em que ele vivia. Outra passagem que sustenta esta extensão a todas as crenças que ele pudesse conhecer: “O pastor das religiões...” (C5, E6), colocando religiões no plural, Lautréamont, evidentemente, quer estender a todas o seu desprezo. 17 Na bíblia: 3 João 1 : 11

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este pacto? Um vaga-lume gigante, mensageiro de deus, anuncia que recebeu

ordem suprema para iluminar o caminho de Maldoror. Neste momento chega uma

prostituta nua e deita-se ao pé de Maldoror, a cena é plasticamente o oposto

diametral da Pietà, onde, Maria tem Jesus morto aos seus pés. Aqui, Maldoror não

estende uma mão piedosa, mas sim “uma mão com a qual o fratricida degola sua

irmã” (C1, E7), e ele não está inconsolável como Maria. A partir daí, Maldoror

deliberadamente esmaga o vaga-lume enviado por deus, declara à prostituta

preferi-la ao outro, e acrescenta ainda uma frase emblemática: “Não é tua culpa se

a justiça eterna te criou” (C1, E7). Ora, é o fato da doutrina religiosa judaico-cristã

condenar a condição da prostituta que tornou tal condição marginal 18 . A

prostituição em si não teria esta carga negativa se não existisse uma idéia que a

condenasse. Maldoror inverte a noção tradicional de culpa: ela deve recair não

sobre a prostituta, mas sim sobre aqueles que a condenam: diz então que a partir

deste dia abandona completamente a virtude.

Maldoror professa abertamente seu ateísmo, seja em forma de desrespeito

à crença e a seus preceitos: “sabes que não te amo [deus], e que, ao contrário, te

odeio” (C2, E2), seja por demonstrar a impossibilidade da existência de deus:

“minha subjetividade e o criador, isto é demais para um cérebro” (C5, E3). Como a

idéia existe, está bastante disseminada e quase que universalmente aceita, é

preciso lutar contra ela, e mesmo figurá-la para combatê-la.

A estrofe número onze do canto primeiro traz uma cena cuja primeira

versão trazia indicações exatamente como em uma peça de teatro (rubricas entre

parênteses, nomes de cada um dos personagens antes de suas falas, etc...) e que

foram trocadas, na versão definitiva, apenas por diálogos. Temos aí uma família,

composta pelo pai, pela mãe e por uma criança, em sua casa. Maldoror, ao

contemplá-los, de fora da casa, conclui que se trata de um lar feliz e devoto. A

felicidade desta família é tida por Maldoror como uma injustiça, já que “há muita

gente menos feliz que esses aí” (C1, E11). Maldoror, em nome da justiça, da sua

justiça, precisa destruir a felicidade desta casa, pois ela é ilusória já que se origina

na crença, na submissão e na gratidão a um ser ilusório. Maldoror, que é um ser

18 Na bíblia: Ezequiel 16 : 26; 1 Tessalonicenses 4 : 3; Gálatas 5 : 19; Apocalipse 2 : 21, entre outros.

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que às vezes é humano, outras vezes animal, outras, meio homem, meio animal, é

dotado da capacidade de metamorfoses extraordinárias e de poderes

sobrenaturais19: Aqui conjuga estes poderes para fazer com que a criança sofra.

Depois de infringir-lhe dor, passa a tentar seduzir o menino. É notável que a

primeira promessa feita de Maldoror é que, caso o escute, o menino não precisará

mais trabalhar (seria uma mostra sutil de descontentamento com a obrigação do

trabalho? Descontentamento este também presente em Baudelaire, e em

Rimbaud e que será comentado adiante). A criança, apavorada, relata ao pai suas

visões. Este, ao dirigir suas preces a deus, demonstra mais interesse em sua

própria salvação do que em consolar seu filho. A hipocrisia do pai, o medo, são

demonstrações típicas de um enfraquecimento da fé, satirizadas aqui por

Lautréamont, que já havia dito na estrofe precedente que em sua última hora ele

não será visto rodeado de padres, negação absoluta desta fé que, motivada pelo

medo, aparece, sobretudo nos momentos de pavor (risco de morte, alucinações

terríveis, etc...).

Outro aspecto, sutilmente ironizado nesta estrofe, é a do sacrifício. Bastante

recorrente nas mitologias pagãs (podemos encontrar exemplos, entre outros

lugares, na Ilíada), é gradualmente esquecido na ritualística cristã. Lautréamont

faz o pai da família, cristão, oferecer em sacrifício ao seu deus o próprio ser que

os atormenta (Maldoror) com objetivo de abrandar o sofrimento que recai sobre

sua família. Aí estão alguns elementos importantes que, para um crente, de

qualquer religião, seriam requisitos para se ganhar as graças de um deus: a

submissão, a fé, a prece, o sacrifício, o reconhecimento, a gratidão. Todavia, a

“lição” que a cena transmite, é que toda esperança nestes expedientes é inútil, já

que, no final, mãe e filho morrem vítimas de Maldoror. Este acaba, ainda outra vez,

sendo mais poderoso do que deus. O fracasso da submissão reforça a idéia de

que Ducasse mantinha uma postura não-conformista, corroborada não só pela sua

obra, como por sua correspondência epistolar e pelo depoimento de um antigo

colega de liceu de Ducasse, Paul Lespès20. Ao identificar seu personagem com

19 Mais um exemplo da recusa do “real”, do concreto, por parte de Lautréamont. 20 Depoimento incluído na tradução dos Cantos pelo poeta Cláudio Willer.

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Lúcifer, símbolo de revolta, e fazê-lo portador do mal a uma família que vive sob

as insígnias de deus, Lautréamont reproduz a revolta contra deus. A tática de seu

personagem é muito semelhante à do personagem bíblico: a tentação, com o

intuito de fazer seu alvo, no caso, a criança, compreender os inconvenientes da

religião. Livrar-se da fé, transpor os limites estabelecidos por ela, é o primeiro

passo rumo ao prazer, à satisfação, enfim, à liberdade.

MALDOROR – Anjo radioso, vem a mim; passearás nos campos, do amanhecer

até a noite; não trabalharás! Meu palácio magnífico foi construído com muralhas

de prata, colunas de ouro e portas de diamante. Irás dormir quando quiseres, ao

som de uma música celestial, sem fazer tuas orações. Quando, pela manhã, o sol

mostrar seus raios resplandecentes, e a alegre cotovia carregar consigo seu grito

a perder de vista, pelos ares, tu poderás continuar na cama, até que isso te canse.

Caminharás sobre os tapetes os mais preciosos; estarás constantemente envolto

em uma atmosfera composta por essências perfumadas e das flores as mais

aromáticas.

...

- tu te banharás com jovens que te enlaçarão com seus braços. Uma vez saídos

do banho, tecerão coroas de rosas e cravos. Terão asas transparentes de

borboleta e cabelos de um comprimento ondulado, flutuando ao redor da

delicadeza de seus rostos.

...

- Já que te recusas, eu te farei chorar e ranger os dentes como um enforcado. (C1,

E11)

Um dos procedimentos empregados por Lautréamont para fazer

desacreditar a idéia de deus é a demonstração da falibilidade ou da relatividade

das decisões tomadas por um ser supostamente infalível. Maldoror põe em dúvida

a possibilidade de existência da perfeição e se pergunta: “Para quê a injustiça nos

decretos supremos? Como é insensato, o Criador” (C1, E13). Ao admitir

questionamentos nos “decretos divinos”, a própria idéia de perfeição se desintegra.

Ducasse admite que deus é o mais forte, e, logo em seguida, diz que ele está

coberto de uma glória única. A idéia de deus não pode e nunca pôde deixar de

assustar, impor a devoção pelo medo. Acreditar em seu poder de criador, e em

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seu poder de juiz supremo são apenas dois dos requisitos exigidos pela fé, pois

que o deus perfeito é aquele que criou todas as coisas e aquele que vai decidir o

destino de todas as coisas, e demonstrar a inverdade, ou até mesmo a

possibilidade de erro no cumprimento de uma destas duas tarefas, que só podem

ser atribuídas a um deus perfeito é ainda mostrar que a fé não resiste à lógica.

Neste caso, o criador foi superado por algo que ele mesmo criou? Se deus é

perfeito, isto é impossível, se não é perfeito, então ele não é deus!

Qual a razão para deus dotar de inteligência, ou de tanto poder o Mal, ou

aquilo que vá contra os seus desígnios? Lautréamont criou um ser, Maldoror, que

encerra em si a maldade da humanidade (pelo quê, Lautréamont, ironicamente

atribui a deus a culpa), capaz de até mesmo bater-se diretamente contra deus

(veremos mais detalhadamente como), e vencê-lo. No entanto, se admitimos a

existência de deus, seria ele próprio quem teria engendrado tal força, que, mesmo

tendo origem divina, segue o caminho oposto àquele para o qual foi criado, e mais

do que isso: combate e vence seu próprio criador.

Para percebermos a intensidade com que deus é negado, é particularmente

interessante notar que Lautréamont procede à diminuição da figura de deus. Por

vezes tornando-o inferior aos homens. Deus enquanto protegido por sua

“majestade sideral” (C2, E3) pouco pode ser atacado ou sem resultado, mas se

descesse para falar com os homens, seria coberto de vergonha. Em outras

palavras, o que garante sua autenticidade, é justamente o fato de ele se manter

envolto em uma aura de mistério: ao invés de ser compreendido, deve

simplesmente ser aceito. Se submetido à razão, a existência deste deus, fica

impossível de ser comprovada. Um argumento bastante invocado pelos crentes é

o de que deus é uma inteligência superior, a qual nós, seres humanos, somos

incapazes de compreender21. No entanto, o deus que Lautréamont nos apresenta

é humanizado ou animalizado. Maldoror, ao dizer que conhece a aparência de

deus, atribui-lhe uma forma e profana a idéia da essência divina.

Em uma das menções à aparência física de Maldoror, ele aparece descrito

com uma cicatriz sulfurosa no rosto (C2, E2). Esta cicatriz, ele mesmo se apressa

21 Na bíblia: Jó 36:26; Jó 37:5; Eclesiastes 8:17; 1 Coríntios 2:14

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em explicar, é produto de um golpe de deus. Deus castigou a insubordinação do

personagem dos Cantos apenas por este não reconhecer nele o todo-poderoso. O

herói lautréamontiano aproveita a ocasião para dirigir-se diretamente ao deus

“com figura de víbora”, e bradar novamente seu ódio contra ele. Maldoror revolta-

se, pois, deus, além de fazer com que sua alma esteja constantemente entre a

loucura e o furor, ainda o culpa por isso. Se ele, Maldoror, é criado por este deus,

a verdadeira culpa deveria recair sobre quem o criou assim, e não sobre ele, a

quem caberia o papel de vítima. Nesta passagem, Lautréamont desenvolve

algumas inversões. Já de início, deus é associado a uma cobra. Na bíblia, a

serpente é uma representação do mal, do diabo, o inimigo de deus. Ao qualificar

deus com o signo associado a satanás, Lautréamont junta o positivo ao negativo,

e o resultado desta operação é zero, nada. Em seguida, deus é destituído de

qualquer traço de misericórdia, pois ele pune severamente uma criatura que não

pode ser culpada de sua situação. Deus passa, assim, de juiz a réu. Enfim, ele

nos participa seu ódio contra deus, o contrário da adoração, do respeito. Vemos

então que deus pode ser nulo ou pode ser imperfeito, e, em qualquer um dos

casos, deixa de ser o deus, merecedor de culto.

Por mais paradoxal que possa parecer a argumentação contra a existência

de um ser que figura na narrativa, a frase: “Não é ele quem me fornece as

acusações contra si mesmo?” (C2, E3) justifica a opção de Lautréamont de atacar

diretamente sua imagem, mesmo que isso custe ao escritor a colocação em cena

de um ser a quem ele procura negar a existência. Em outras palavras: se para um

ateu, deus simplesmente não existe, seria de se supor que ele se utilizasse de

outros meios para expor sua descrença, diferentes de citar deus nomeadamente,

atribuindo-lhe qualidades reprováveis, porém nos Cantos de Maldoror, este é um

dos caminhos pelos quais segue Lautréamont.

Maldoror não se contenta em proclamar seu ateísmo, ele questiona a

humanidade e mesmo a conclama a abandonar o culto ao deus que pratica e

permite praticar a maldade. Ao demonstrar que ela só pode ser imputada a deus -

enquanto criador de tudo - Lautréamont explicita a falta de sentido que pode haver

na submissão a ele. Além disso, Lautréamont chama a atenção para o fato de que

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este deus é insensível às preces humanas, o que causa ira em seu personagem,

pois que sendo um ser perfeito nada lhe custaria, nem esforço, pois ele é

onipotente, nem tempo, pois ele é eterno, para tornar mais agradável a vida de

suas criaturas. São todos exemplos que demonstram que este deus não se mostra

agradecido nem pelo culto, nem pelas ofertas dirigidos a ele. E se este deus não

merece a reverência por parte de suas criaturas, então ele não pode ser o deus

criador e supremo, pois este teria de ser adorado incontestavelmente, já que é

atributo do caráter divino não admitir contestações. Como a humanidade é capaz

de exprimi-las, a pretensa divindade deixa transparecer sua imperfeição, deixando,

portanto, de ser deus. Só que quanto mais ele se mostra indiferente, mais o ser

humano se dispõe a adorá-lo: Lautréamont diagnostica que o fato de deus ter um

poder extremo, ao mesmo tempo em que vota um desprezo extremo a seus fiéis,

constitui a própria comprovação de sua divindade. E ao fazer tal diagnóstico, o

autor opta por recusar-se a se submeter a esta divindade, negando sua existência.

Com a aquisição de conhecimento, o homem poderia revestir-se de

coragem a ponto de fazer nascerem dúvidas em relação à existência de deus. Por

isso, aqueles que defendem uma crença teísta têm o cuidado de negar ou, às

vezes, restringir o conhecimento aos seus súditos. Se só através do conhecimento

é que o homem poderia adquirir a capacidade de se questionar sobre a existência

ou não de deus e, por outro lado, a aceitação cega (sem que nada se interrogue) é

que faz com que se instaure a crença em deus. Lautréamont critica, então, o

sentimentalismo e faz o elogio da lógica, da razão. Um exemplo disso é seu hino

às “matemáticas severas” (C2, E10) onde ele nos diz que são através delas que o

todo-poderoso se revelou completamente. Lautréamont não deixa claro se este

todo-poderoso a que ele se refere corresponde exatamente ao mesmo todo-

poderoso do crente. É possível pensar que este poder é atribuído à própria lógica,

simbolizada pela “trindade grandiosa”: aritmética, álgebra e geometria, que

Lautréamont parece contrapor à trindade constitutiva do deus cristão. Deste

“triângulo luminoso” ele diz ter recebido a lógica e faz dela como uma arma contra

deus:

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“Vós me destes a lógica, que é como a própria alma de vossos ensinamentos,

cheia de sabedoria; com seus silogismos, cujo labirinto complicado nem por isso

deixa de ser compreensível para mim, minha inteligência sentiu duplicarem suas

forças audaciosas. Com a ajuda deste auxiliar terrível descobri na humanidade, ao

nadar rumo às profundezas, diante do arrecife do ódio, a maldade negra e

horripilante que vegetava em meio a miasmas deletérios, admirando seu umbigo.

Fui o primeiro a descobrir, nas trevas de suas entranhas, esse vício nefasto, o mal!

Superior nela ao bem. Com essa arma envenenada que me concedestes fiz

descer de seu pedestal construído pela covardia do homem, o próprio criador!” (C2,

E10)

Nesta última frase transparece a postura de alguém que deseja combater

uma idéia: com a “arma” que é a lógica, Lautréamont combate o criador que só

ocupa esta posição porque falta ao homem a coragem para afrontá-lo.

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2.2 Blasfêmias e irreverência a deus

Entre as audácias do protagonista dos Cantos contra deus, estão as

ameaças. Do encontro entre ele e deus só podem resultar desavenças. O

personagem lautréamontiano alerta que deus, para seu próprio benefício, deve

evitar cruzar o caminho de Maldoror, pois este dispõe de uma arma: sua língua.

Para se provar a existência de deus, não bastam apenas palavras; porém para

argumentar contra sua existência elas são suficientes. Ao fazer seu personagem

se expressar, Lautréamont crê poder dar cabo de deus “...manejando sarcasmos

terríveis, com mão firme e fria...”, advertindo-o de que seu coração “...conterá o

bastante deles [os sarcasmos] para atacar-te [a deus] até o fim de minha

existência” (C2, E3).

Um tema recorrente na obra de Lautréamont é a referência à infância, à

adolescência ou à juventude em geral. Os cenários em que elas aparecem estão

relacionados à violência, ao sexo (quando não os dois conjuntamente) ou desvios

das normas sociais. Para Maldoror, a criança é fonte de atração, mas ao mesmo

tempo é fonte de esperança, mesmo que a esperança nos Cantos só apareça de

forma fragmentária e fugaz. Se há neste personagem uma porção de afeto em

relação à humanidade, ela é dirigida à infância. É nas crianças que Maldoror

busca a satisfação de seus instintos sexuais ou de seu sadismo e, neste caso, sua

intenção é apenas esta satisfação, diferentemente de quando violenta um adulto,

quando sua intenção é, de maneira geral, extirpar um mal. Porém, a esperança de

Maldoror em relação aos jovens é mais evidentemente perceptível nas passagens

em que ele procura transmitir-lhes conhecimento, procura mostrar-lhes uma outra

visão de mundo. E a iniciativa fundamental é a rebelião: rebelião contra a ordem

estabelecida e contra deus. O esforço do herói dos Cantos é no sentido de

mostrar às crianças que os valores, em geral transmitidos por seus educadores,

são falhos, e a partir daí, Maldoror explora sua filosofia da maldade, demonstrando

que, se a imperfeição do mundo é causada pelo seguimento destes valores,

somente cultivando outros, diferentes destes, é que se pode mudar tal situação.

Quando ele encontra uma criança nos jardins das Tullherias (C2, E6), ele se

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27

aproxima dela com o objetivo de convencê-la a se iniciar na via do crime22. O

primeiro argumento de que faz uso Maldoror é com o intuito de dissuadir o menino

a parar de pensar em deus:

- Em que estavas pensando, menino?

- Eu pensava no céu.

- Não é necessário que penses no céu; já é bastante pensar na terra, estás

cansado de viver, tu que mal acaba de nascer?

- Não, mas qualquer um prefere o céu à terra.

- Pois bem, eu não. Pois já que o céu foi criado por deus, assim como a terra,

podes estar certo de que lá encontres os mesmos males que aqui embaixo.

Depois da tua morte, não serás recompensado de acordo com teus méritos; pois,

se cometem injustiças nesta terra (como tu o perceberás, por experiência própria,

mais tarde), não há motivo para que, na outra vida, não se cometam outras tantas.

O melhor que tens a fazer é não pensar em deus, e praticar a justiça por tuas

próprias mãos, já que esta te é recusada... Desejas riquezas, belos palácios e a

glória? Ou me enganaste quando afirmaste essas nobres pretensões?

- Não, não, eu não o enganava. Mas queria alcançar o que desejo por outros

meios.

- Então, nada alcançarás. Os meios virtuosos e bem intencionados não levam a

nada. É preciso por em ação alavancas mais enérgicas e tramas mais sábias.

Antes que te tornes célebre pela virtude, e assim alcances tua meta, uma centena

de outros terá tido tempo de saltar sobre tuas costas, e chegar ao fim da corrida

antes de ti, de forma que não haverá mais lugar para suas idéias estreitas.(C2, E6)

Maldoror não admite a possibilidade de recompensa divina, desta forma,

nega a existência do paraíso e, em decorrência disto, seria vão crer em um deus

que não é capaz de fazer justiça, nem mesmo a uma criança, visto que até ela é

presa de pensamentos malignos. Ao se plantar estas dúvidas na mente de uma

criança, espera-se que elas suscitem reflexões. E são elas que podem levar uma

pessoa – e esta é a intenção de Maldoror – a não aceitar a educação tradicional e

22 A história da literatura conta com alguns autores que aproximaram arte e delinqüência. Entre eles: Pierre–François Lacenaire (1800-1836) poeta, ladrão e assassino passou sua vida a “meditar sinistros projetos contra a sociedade”, segundo suas próprias palavras, e Thomas de Quincey (1784-1859), autor de um texto chamado “Do assassinato considerado como uma das belas-artes”, dois exemplos de combinação entre crime e poesia, que teriam possivelmente agradado a Isidore Ducasse. E mesmo após Ducasse podemos encontrar outros escritores que optaram por seguir pela via do crime, como, por exemplo, o escritor francês Jean Genet.

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os dogmas religiosos. Neste caso, entender este desvio de comportamento,

propagado por Lautréamont, como apologia do crime, da violência, e rotular sua

obra como inconseqüente é considerar simplesmente seu conteúdo literal. Sua

intenção ao incitar a insubordinação contra todas as regras, mesmo as mais

elementares, de conduta social é a de denúncia da hipocrisia presente nas

relações humanas, é a de explicitar a maldade intrínseca ao ser humano, e

hostilizar estas condições é o mesmo que se declarar contrário ou insatisfeito com

elas.

Quando Maldoror invade uma igreja - que Lautréamont nomeia nesta

estrofe de mesquita e depois de pagode, blasfemando, desta forma, estes templos

sagrados - reconhece em uma lâmpada a representação de deus e se sente

ultrajado por essa presença (C2, E11). Apesar de reconhecer a impossibilidade

disso, deseja que ela se corporifique e se torne realmente deus, para assim poder

confrontá-lo diretamente. Porém, o que acontece é que a lâmpada se torna um

anjo e luta com Maldoror. Este, ao encostar a língua na face do anjo, derrota-o

transmitindo-lhe uma “vasta chaga imunda” (C2, E11) que assusta até mesmo a

ele, pois não sabia que seu próprio veneno continha tal força. Nesta cena, mais

uma vez, é com a língua, instrumento da retórica, da argumentação, que Maldoror

aniquila um representante de deus, ou seja, através do raciocínio lógico se pode

destruir a idéia da existência de deus. O anjo, que é um representante de deus, ao

voltar, derrotado, lança a Maldoror um olhar que contém “tudo o que a

humanidade pensou durante sessenta séculos” que os liga por uma “amizade

eterna”. Aqui é possível encontrar uma semelhança com a filosofia de

complementaridade do Yin Yang, para a qual há sempre um pouco de maldade no

bem e vice-versa.

O anjo hesita entre retornar ao céu e seguir Maldoror, mas acaba

retornando junto àquele que o enviou, levando consigo a gangrena transmitida por

Maldoror, ao mesmo tempo em que este fica com a lembrança de um ser que,

mesmo sendo missionário de alguém ou algo que ele considera seu inimigo,

possui uma alma nobre. Deslocando repentinamente o foco narrativo do plano em

que se passou esta cena, – artifício recorrente nos cantos – o discurso volta à sua

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tentativa de mostrar quão ilusórias são as bases da crença: uma lâmpada (luz)

que havia sido jogada no rio Sena e na qual as pessoas pensam ver a presença

de deus, ainda que ela se mostre apenas para alguns, é na verdade a luz que vem

dos barcos, portanto, coisa humana. A mistificação fica, portanto, a cargo das

pessoas que preferem acreditar naquilo que gostariam que fosse verdade do que

naquilo que realmente é, e a partir daí “...a lâmpada do bico de prata reaparece à

superfície, e prossegue sua marcha...” (C2, E11): a fé se prolonga e com o passar

do tempo, se fortifica.

Na estrofe doze do segundo canto, Maldoror faz revelações sobre alguns

pensamentos que povoaram sua infância. É possível que, para a construção desta

estrofe, Ducasse tenha recorrido a sua própria vida, trazendo para o relato alguns

traços autobiográficos, o que demonstra que, na obra de Lautréamont, a ficção e a

realidade apresentam paralelos. Nessa estrofe, temos o primeiro indício desta

infiltração da vida do escritor na sua obra: as descrições das obrigações impostas

pelos pais do personagem, que se assemelham bastante com as preces, louvores,

em geral exigidos pelos pais que dão a seus filhos uma educação com base

religiosa, e a subseqüente dúvida, suscitada na criança pela falta de naturalidade

nestas ações, e que, por sua vez, é seguida de perguntas sem respostas.

Um segundo indício da presença da biografia de Ducasse nos Cantos é a

menção ao condor dos Andes, provável lembrança de sua própria infância

passada na América do Sul. Estas recordações, que começam como uma prece,

acabam por se tornar uma verdadeira anti-oração23 de recusa a este deus, um

inquérito contra as decisões divinas: ele destaca, com ironia, o paradoxo das

promessas de liberdade pela religião, e a eminência de, aderindo a ela, tornar-se

um escravo deste todo-poderoso, já que ele goza desta prerrogativa; o

personagem de Lautréamont denuncia que, em nome deste criador, já se fizeram

iniqüidades, injustiças, por isso, admitir a existência de deus até poderia ser uma

idéia burlesca, se não fosse lamentável; Maldoror proclama seu desejo de

subtrair-se à influência de deus, mas reconhece que, sendo ela tão determinante

23 Conforme Steinmetz, em nota da edição preparada por ele (ver referências), a fonte para esta estrofe é o poema “Hymne de l’enfant à son réveil” do poeta romântico Alphonse de Lamartine, do qual Ducasse inverte os termos transformando o poema original religiosa nesta prece às avessas.

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30

na humanidade, isso não é possível. Porém, enquanto lhe for permitido,

continuará “... a exalar, como um fôlego artificial, a torrente de mentiras que tua

vaidade [de deus] exige severamente de cada ser humano” (C2, E12). Como

Maldoror enxerga maldade em deus, procura a bondade. E é nesta busca,

excitado por este amor ao bem, que acaba por praticar, também ele, a maldade.

Quando reconhece a bondade em deus, opta por praticar a maldade: esta é a

expressão do bom senso para Lautréamont.

O escárnio contra deus chega a seu ápice nas duas últimas estrofes do

terceiro canto (C3, E4 e C3, E5). O autor coloca, nestas duas estrofes, deus em

situações reprováveis ou ridículas, o que possibilita que ele seja insultado e

hostilizado não só pelos humanos, a “obra-prima da criação” (C1, E12), mas

também por animais cuja inteligência poderia parecer insignificante perante deus.

Na primeira destas cenas o todo-poderoso é retratado como um bêbado, caído à

beira da estrada sem forças para manter-se em pé. Alguns animais passam,

batem nele e o insultam seu comportamento. Ao golpeá-lo, cada um dos animais

repete a frase: “Isto é para você!”. Esta frase, repetida como um refrão nesta

estrofe, reproduz uma das maiores blasfêmias imaginadas por Dante na “Divina

Comédia”24 . Porém, se o escritor italiano descreve esta cena com o intuito de

reprovar o ato de um proscrito, de acrescentar ainda mais infâmia à situação de

condenado deste ladrão, Lautréamont faz com que o réprobo seja deus. E o

insulto é pronunciado por aqueles que o censuram, justamente quando ele é quem

deveria dar o exemplo de integridade nos aspectos mencionados (gula,

embriaguez, preguiça e indolência). Cada ser que encontra deus tem algo para

atirar-lhe à face, demonstrando seu descontentamento com a ordem estabelecida

por ele, exceto o leão. Este animal, que é agraciado com uma posição privilegiada

entre os animais, representa a elite que se beneficia com a situação consolidada.

É por isso que ele demonstra seu respeito para com deus, embora reconheça que

“seu esplendor [de deus] nos pareça momentaneamente eclipsado” (C3, E4). Ele

repreende a atitude dos outros animais, como um vassalo que releva uma conduta

24 No início do Canto XXV do Inferno da Divina Comédia (ver referências bibliográficas), um ladrão, Vanni Fucci, do inferno, dirige a deus as mãos em forma de figa (sinal fortemente ofensivo à época de Dante) e diz: “Toma deus, que isto é para você!”.

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31

reprovável de seu soberano, já que este o concedeu certa posição de destaque

entre os súditos. Porém, entre todas as injúrias sofridas por deus, a mais

desrespeitosa é a que lhe inflige o homem: ao passar e vê-lo caído, o homem

defeca por três dias em sua cabeça. É uma franca demonstração da hostilidade

que Lautréamont dedica àquele que as religiões tem como soberano, e, por outro

lado, uma forma ofensiva de lhe destituir esta posição, pois para o autor, nenhum

ser está indene de recair no vício, e isso exclui completamente a possibilidade de

existência de uma essência divina, perfeita. Desta forma, Maldoror não lhe reprova

esta incursão pelo “pecado”, mas nos chama a atenção para a impossibilidade de

se passar incólume por ele.

Ainda no âmbito do que é censurável para a religião: deus é mostrado como

cliente em um prostíbulo que tenta ocultar seu ato para preservar sua integridade

moral (C3, E5). Além da reprovação social, a bíblia condena a prostituição em

diversos versículos25. Deus se utilizou dos serviços de um lugar de aparência

imunda, onde nem mesmo Maldoror se sentiu motivado a entrar, preferindo

conservar-se à espreita, por curiosidade.

O rebaixamento de deus ao nível de um “pecador” é uma inversão que

Lautréamont faz e que nos atesta sua intenção de, em um primeiro momento,

retirar de deus sua glória, e logo em seguida, equipará-lo ao imperfeito, e enfim

evidenciar que destituído desta glória, este ser não pode ser deus.

Antes de chegar ao lugar, Maldoror atravessou uma ponte com um letreiro

que dizia: “Vós, que passais por esta ponte, não ide adiante” (C3, E5). Vemos

outra referência à Divina Comédia: se compararmos esta placa com a inscrição

“Deixai, o vós, que entrais, toda a esperança!”26 fixada na entrada do inferno de

Dante. Portanto, deus, para aí se dirigindo, está como que adentrando o inferno,

mas não em uma missão sagrada, mas sim buscando satisfação de seus prazeres.

Como se toda esta situação não bastasse para recobrir de infâmia a figura de

deus, esta história é contada por um fio de cabelo gigante caído da sua cabeça e

abandonado por ele. Este ato acrescenta ao caráter, já difamado, do ser supremo,

25 Ver nota 18. 26 ALIGHIERI, Dante. Divina comédia. São Paulo : Editora Martin Claret, 2004. In Inferno, canto III.

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32

o agravante da traição: com preocupação de impedir que seu ato fosse revelado,

deus não só o abandonou ao sair, como o trancou, impossibilitando-o de divulgar

esta aventura de seu dono.

Além disso, deus se mostra vingativo e injusto, pois em um acesso de fúria,

despertada por seu sentimento de culpa, descarrega sua ira em um rapaz trazido

de um outro quarto do lupanar, tirando-lhe a pele, ao mesmo tempo em que,

deliberadamente, poupa a prostituta. Lautréamont, ao antropomorfizar deus,

subtrai-lhe completamente o aspecto divino. Ao mesmo tempo, não deixa brechas

para aproximação entre o deus que ele retrata e uma divindade pagã: trata-se

especificamente do deus cristão, que, rebaixado à condição de pecador, deixa de

ser o todo-poderoso (mesmo que, por ironia, seja assim chamado), e não sendo o

todo-poderoso, tendo um poder apenas relativo, pode ter este poder suplantado

por outro, o do ser humano. E se a este, reconhecidamente imperfeito, é atribuída

uma supremacia, de qualquer ordem, sobre deus, já não se tem mais deus, pois

que a onipotência é uma condição para que ele exista.

Maldoror narra (C4, E7), demonstrando por ele simpatia, a história de um

ser que, por ser mais belo e inteligente do que seu próprio irmão, despertou a

inveja deste último. O irmão invejoso fez com que o outro caísse em desgraça

perante os olhos de seus pais e que fosse trancafiado por sua família por quinze

anos, tendo sido torturado pelos três durante este período, até que finalmente, foi

libertado e se refugiou no mar, longe do contato com seres humanos. O tema do

encarceramento é tratado na bíblia, sendo que, neste livro, Lúcifer é aprisionado

por ter querido igualar-se a deus e por levar o conhecimento ao homem27. A

tortura que sofre o personagem nos Cantos é aplicada pelas três pessoas (pai,

mãe e irmão), assim como a condenação do diabo pelas três pessoas da

santíssima trindade. Ao colocar em dúvida a justiça exercida pela família,

Lautréamont também põe em dúvida o decreto divino, pois que em ambos os

casos ela é empregada com o objetivo de manter uma hierarquia: em um caso,

superioridade do irmão invejoso sobre o outro, e no caso da história bíblica, de

deus sobre o diabo. Esta cena trata também de um assunto recorrente na

27 Apocalipse, capítulo 20.

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literatura ocidental: o de uma pessoa que age contra seu irmão (por exemplo,

Caim e Abel, Esaú e Jacó).

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3. Maldoror a favor do ser humano e Maldoror contra o ser humano A negação de deus tem um objetivo preciso, e está declarado na terceira

estrofe do segundo canto: demonstrar ou afirmar perante os homens a

inexistência de deus.

Tu me darias prazer, ó criador, se me deixasses expressar meus sentimentos.

Manejando sarcasmos terríveis, com mão firme e fria, advirto-te que meu

coração conterá o bastante deles para poder atacar-te até o fim de minha

existência. Golpearei tua carcaça oca 28 ; e com tamanha força, que me

encarrego de fazer saírem dela as parcelas restantes de inteligência que não

quiseste dar ao homem, pois teria ciúme de fazê-lo igual a ti, e que escondeste

em tuas tripas, bandido esperto, como se não soubesses que mais cedo ou mais

tarde eu as descobriria com meu olho sempre aberto, as roubaria, e as

compartilharia com meus semelhantes. (C2, E3)

Ao fazer isso, lhes entregar a chave de um conhecimento, livre das

contingências da fé, e que tornaria os homens iguais ao deus em que eles

acreditam, pois, livre desta fé, o homem já não tem necessidade de se submeter a

um ser superior. Crer é aceitar deliberadamente as contradições, os mistérios, as

perguntas sem resposta que as religiões têm se mostrado incapazes de resolver.

E, mais do que isso, aceitar tais proposições é recusar-se a buscar conhecimento.

É o oposto de questionar, é, em suma, reprimir a busca da verdade. Maldoror,

com o discurso prometéico desta estrofe, reprova nas religiões as interdições ao

questionamento, a imposição da aceitação de seus dogmas e, ao mesmo tempo,

demonstra que, uma vez de posse deste conhecimento, o homem já não é mais

inferior a deus, ou seja, dispõe de meios para destruir esta imagem, assim como

se destrói uma barreira que o impede de avançar. E aqui deus é a barreira que

impede o conhecimento humano de progredir. Ao exigir a submissão dos homens,

deus deixa de ser passivo, passa a atacar. Maldoror, sentindo o peso deste

ataque, sente-se motivado a revidar. Desta forma, seu ataque a deus pode ser

entendido como uma missão humanitária, um bem para a humanidade:

28 O grifo é meu. Carcaça oca: capa sem conteúdo ou um nome (deus) sem algo que corresponda a ele.

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Sim, ainda é belo dar sua vida por ser humano, e conservar assim a esperança

de que todos os homens não sejam maus, já que existe um, finalmente, que

soube atrair, com firmeza, rumo a si, as repugnâncias desafiadoras da minha

simpatia amarga!...(C2, E3)

Mas, se, nesta estrofe, Lautréamont mostra uma parcela de benevolência

em relação à humanidade, já no canto seguinte, ele nos declara que:

“Minha poesia não consistirá em outra coisa senão atacar, por todos os meios, o

homem, esta besta-fera, e o criador, que não deveria ter engendrado

semelhante inseto”. (C2, E4).

Por mais que possam parecer contraditórias as tomadas de posição contra

e a favor da humanidade por parte de Maldoror, a contradição é apenas aparente,

superficial, resultado de uma leitura literal e que não toca senão tangencialmente a

estrutura da obra. O homem atacado é a personificação da maldade, da hipocrisia,

de submissão. Defendê-lo, enquanto se ataca seus defeitos, é confessar uma

esperança em sua redenção destas falhas. Portanto, é sempre em benefício da

própria humanidade que Maldoror a coloca diante de seus erros e sua forma de

dizer que não compactua com eles é agressiva: ele potencializa estes defeitos,

praticando-os com uma intensidade exagerada para melhor poder demonstrar sua

execrabilidade.

Lautréamont expressa esta ambigüidade em relação à humanidade,

chamando-a, não sem ironia, “obra-prima” (C1, E12) da criação. A versão

criacionista da concepção do homem é parodiada quando Lautréamont atribui ao

homem, a “besta fera”, a causa dos males do mundo. Se considerarmos o homem

como a obra máxima de deus, e que, ao criá-lo, deus o dotou de uma parcela de

sua inteligência, a “falha” de deus seria evidente: um criador perfeito que

produzisse um ser imperfeito, deixaria de ser perfeito.

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4. Lautréamont, Dante, Baudelaire e Rimbaud Ao longo dos cantos é possível encontrar diversas passagens que nos

remetem a outros escritores. Por vezes estas semelhanças podem ser justificadas

pelo conhecimento de seus autores por Lautréamont, indicado em sua

correspondência ou relatado por antigos conhecidos de Ducasse. Todavia, através

do que se conhece dele hoje não há como comprovar se ele realmente teve

contato ou não com a obra de certos autores. Um destes casos é Dante, escritor

com o qual, por mais de uma vez, Lautréamont apresenta um certo paralelismo.

Na oitava estrofe do canto segundo, Ducasse descreve deus apanhando algumas

pessoas, levando-as à boca e mastigando-as. Tal cena nos remete diretamente à

imagem de Lúcifer criada pelo poeta florentino que rumina eternamente o corpo

daqueles que receberam a maior punição. A princípio, Maldoror narra a ocasião

em que recuperou sua audição, pois havia nascido surdo: “Contam que nasci

entre os braços da surdez” (C2, E8). Percebeu que podia ouvir novamente ao

escutar seu próprio grito de espanto perante a visão de deus devorando seres

humanos e justificando isto desta maneira:

“Eu vos criei; portanto, tenho direito de fazer convosco o que bem entender.

Nada me fizestes, não digo o contrário. Faço-vos sofrer, e isso é para o meu

prazer” (C2, E8).

Aceitar que o ser humano tenha sido criado por deus implica aceitar que

tudo o que ele faça para com o homem seja justificável. Portanto, tudo o que se

trata de maldade para com o homem, seja de onde venha, já que o ser humano

não tem plenos poderes sobre seu destino, é inicialmente um desígnio divino, e o

fato de deus perpetrar, ou quando muito, permitir que se façam atos de maldade

para com o homem é o bastante, para Lautréamont, para destituir-lhe o posto de

entidade divina, merecedora de adoração. Não é por isso que Lautréamont

sobrepõe a ele o ser humano, pois se deus é uma “tigresa madrasta” (C2, E8), os

homens são “..filhotes empedernidos [que] só sabem praguejar e cometer o mal”

(C2, E8).

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Entre as influências recebidas por Ducasse, um nome merece atenção

especial: Charles Baudelaire. É a partir de Baudelaire que o romantismo e os

valores burgueses passam a ser rejeitados sistematicamente na literatura francesa.

O que era considerado como o ideal pelos românticos é contaminado pelo tédio

em Baudelaire. A influência deste autor se estende a grande parte dos escritores

franceses da segunda metade do século XIX: por exemplo, autores como Villiers

de l’Isle Adams, Joris-Karl Huysmans (considerando-se apenas sua obra de antes

de sua conversão ao catolicismo), Arthur Rimbaud, Tristan Corbière e

Lautréamont. Este desgosto pela vida burguesa se mostra sobretudo através da

inversão de seus símbolos. Para Baudelaire, que buscava, acima de tudo, a

Beleza, tudo que era associado à burguesia tornava-se feio e o cristianismo,

crença predominante entre esta nova classe dominante, é recusado por ser a

religião que a representa e por ter perdido, portanto, seu potencial poético. Além

disso, os avanços da ciência já forneciam respostas para algumas lacunas que a

fé não havia conseguido preencher. Ao declarar que Bem e Mal, céu e inferno

equivalem, Baudelaire recusa o deus cristão. Como se não bastasse esta

equiparação, Baudelaire escarnece de deus e denuncia a indiferença deste ser

para com os sofrimentos experimentados pela humanidade. Esta recusa da

divindade é, entre outros, um ponto de aproximação entre Baudelaire e

Lautréamont.

No poema de abertura de As flores do mal, intitulado Ao leitor, Baudelaire diz que

é o mal que guia o homem, e que o homem não se esforça por vencer a atração

pelo vício:

“Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça”, “Na almofada do mal é Satã

Trimegisto / Quem docemente nosso espírito consola”, “É o Diabo que nos move

e até nos manuseia! / Em tudo o que repugna uma jóia encontramos”.29

Estes versos parecem encontrar eco nas imprecações de Maldoror contra a

humanidade, como, por exemplo, neste trecho:

29BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.

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“Eu vi, durante toda a minha vida, sem excetuar um só, os homens de ombros

estreitos praticarem atos estúpidos e numerosos, embrutecerem seus

semelhantes, enfiarem o dinheiro dos outros no bolso, e perverterem as almas

por todos os meios” (C1, E5).

ou ainda:

“Deus, que o criaste com magnificência, é a ti que invoco: mostra-me um homem

que seja bom!” (C1, E5).

A descrença em deus é a extensão da descrença na humanidade, na

impossibilidade de redenção do ser humano. Não há nenhuma esperança nos

homens, pois o Mal faz parte de sua essência, e ele não consegue livrar-se dele.

Outro ponto de intersecção entre as obras destes dois escritores é a

ridicularização de deus, exemplificada em Baudelaire nos dois últimos versos do

poema O vinho do assassino: “Mas zombo de tudo, de deus, / de satanás, da

santa ceia” que muito se aproxima das blasfêmias dos Cantos e que demonstra

que assim como Ducasse, Baudelaire se recusa a conferir a deus o apanágio de

consolador. Tanto em um escritor como no outro, deus, quando não colabora para

a desgraça entre os homens, mostra-se alheio ou diverte-se com ela, como

podemos perceber no poema de Baudelaire, A negação de São Pedro:

“Recorda-te Jesus, da cena do horto, quando / imploravam a orar os teus joelhos

escravos / ao que no céu se ria do rumor dos cravos”.30

Na obra de ambos os poetas está expressa uma visão de mundo hostil à

idéia de deus, que prescinde desta entidade e vê com maus olhos sua

perpetuação. Ao mesmo tempo, este posicionamento tende a confundir o Bem e o

Mal, presentes em tudo, principalmente no ser humano. A literatura de Baudelaire,

bem como a de Lautréamont, reflete alguns dos questionamentos pelos quais

passava o pensamento europeu do século XIX. Exprimindo a ruptura entre o ser

30 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.

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humano e a idéia de deus, estes autores concluem que, para o homem moderno,

a figura de deus, como redentor, não é suficiente, e, mais do que isso, deve ser

banida por ter se tornado inconveniente.

Várias formas de aproximação são possíveis entre as obras de Rimbaud e

de Lautréamont e é impressionante notar que nenhum dos dois teve contato com

a obra do outro escritor. Para além do espírito da época que muito influenciou na

construção de uma e de outra obra, percebemos que o anticlericalismo de

Rimbaud em muito se aproxima daquele de Lautréamont. Limitar-me-ei a

estabelecer a conexão entre estes autores apenas por este aspecto: a negação de

deus, caminho no qual foram, ambos, muito mais longe do que sua influência

comum: Charles Baudelaire, que se exprime sobre este tópico, sobretudo, na série

de poemas intitulada Revolta de As flores do mal.

Rimbaud declarava-se ateu e sua obra demonstra sua revolta contra deus,

como por exemplo, nos poemas “Les pauvres à l’église” ou “Les premières

communions”, “Le mal” ou ainda no texto em prosa “Un coeur sous une soutaine”.

Como sua obra nos fornece uma possibilidade de interpretações inesgotavelmente

abrangente, limitarei meus comentários apenas a estas obras.

É significativo que no dois autores temos a imagem do deus que se ri do

sofrimento da humanidade. Apresentar aquele de quem se esperava a consolação

como um ser debochado que se regozija ao ver o martírio sofrido pelas pessoas é

uma falta de respeito impensável para quem crê em deus. No entanto,

Lautréamont descreve “aquele que se intitula a si mesmo o criador” (C2, E8),

devorando as pessoas que, apavoradas, se perguntam o porquê desta crueldade,

ao que deus responde:

“Eu vos criei; portanto, tenho o direito de fazer convosco o que bem entender.

Nada me fizestes, não digo o contrário. Faço-vos sofrer e isto é para o meu

prazer” (C2, E8).

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O poema “O mal” de Rimbaud 31 retrata um deus rindo “nas toalhas

adamascadas dos altares” enquanto que na terra “os escarros vermelhos de

metralhadoras” “derrubam batalhões” de soldados, e enquanto “as mães reunidas”

choram implorando misericórdia a este deus, ele “dorme embalado por hosanas”.

A mesma representação, em ambos os escritores, de deus como um ser cruel e

insensível às súplicas de suas criaturas, é uma amostra da revolta partilhada pelos

dois autores contra deus e contra aquilo que ele pode representar: submissão,

culto, etc...

Ao criticar a crença em deus, tanto o poeta de “Uma temporada no inferno”

quanto o dos “Cantos de Maldoror”, não deixam de ironizar aqueles que aceitam

piamente estes dogmas da criação do mundo e do homem. Lautréamont pergunta:

“Até quando manterás o culto carcomido a esse deus, insensível a tuas preces,

e às oferendas generosas que lhe proporcionas em holocausto expiatório?” (C2,

E9).

Esta pergunta parece sintetizar o poema “Os pobres na igreja” onde

Rimbaud descreve “os pobres que ao bom deus, patrão e senhor, / elevam suas

orações risíveis e insistentes”, e que após sair da igreja, “babam sua fé

mendicante e estúpida / recitam a reclamação infinita a Jesus / que sonha no alto,

amarelado pelos lívidos vitrais / longe dos magros malvados e dos perversos

pançudos”.32

Outra coincidência notável entre estes autores está na maneira como

Rimbaud acusa Cristo de ser o “eterno ladrão das energias”, no poema “As

primeiras comunhões”, no qual o autor demonstra sua recusa à comunhão, à

aceitação de deus, datado de julho de 1871, período em que ele se encontra em

sua cidade natal e em que ele ainda mantinha acesa sua simpatia pelas idéias

socialistas e pela recém esmagada Comuna. Lautréamont, em consonância com o

31 Os versos que seguem do soneto “O mal” foram traduzidos por mim (por não ter tido acesso a uma tradução publicada) sem atenção à rima ou à métrica. 32 Para os versos traduzidos do poema “Os pobres na igreja” vale a mesma observação feita na nota 31.

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vocabulário do outro, chama deus de “ladrão dos despojos celestes” (C2, E16) e

de “celeste bandido” (C5, E3).

Para finalizar o comentário deste excerto da produção antideus de Rimbaud,

mencionarei ainda seu texto, inédito até 192533, “Um coração sob uma batina”. O

subtítulo desta obra em prosa nos revela seu conteúdo: “Intimidades de um

seminarista”. O personagem narra toda sua angústia, gerada pelas repressões a

que se vê obrigado, por sua condição de crente, o que pode ser entendido como a

revolta do próprio autor contra a educação religiosa que lhe impunha sua mãe ou

contra a submissão de uma maneira geral. Ora, este é o ponto central, que anima

a recusa inconciliável de deus por parte de Lautréamont. Ao querer mostrar aos

homens que crer em deus é uma ilusão, e mais do que isso, é um abuso contra a

liberdade, os dois escritores demonstram, para com a humanidade, um desejo de

provocação? Sim, mas com o intuito de fazê-la reagir contra uma situação que as

impede de ascender, de evoluir, moralmente e intelectualmente.

33 Publicado e prefaciado por André Breton e por Louis Aragon. Este texto havia sido impedido de ser publicado até então, por influência do político e escritor católico Paul Claudel, conforme revela Breton em suas entrevistas concedidas ao jornalista André Parinaud, da Radiofusão Francesa, em 1952.

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5. Considerações finais

Não se sabe se Isidore Ducasse procurou, em vida, convencer quem quer

que seja de aderir a suas próprias idéias. Desta forma, não se pode afirmar que

ele desejava fazer com que suas opiniões fossem partilhadas por outras pessoas.

Porém, toda a sua obra é combativa, as idéias abundam, assim como as críticas,

as tomadas de partido, os julgamentos. A todo momento irrompe um lampejo, fruto

de seu desejo de dar a entender sua opinião, sua posição diante dos diferentes

temas abordados. E ele o diz textualmente: “Fica claro, ou então não me leiam,

que me limito a colocar em cena a tímida personalidade de minha opinião” (C4,

E3). O que predomina é sua vontade de falar, a plenos pulmões, que deus não

existe. Ao menos este deus cristão, de quem se conhece a história. A cada nova

investida, ele parece dizer: como acreditar neste deus? Se ele é tão poderoso, as

preces humanas são inúteis. Se ele não é, existe uma espécie de dependência

mútua entre criador e criatura, mas então que deus é este? E onde está a

bondade deste deus que, já que ele se faz mais temível do que adorável, quando

deseja acaba com cidades inteiras sob suas garras (esta é sua história)? Se quem

o adora não se considera seu escravo, tem que admitir a possibilidade de vir a sê-

lo. Ao se comparar a este deus, Maldoror, apesar de toda sua maldade declarada,

deduz que ele tem “amor ao bem”. Esta contradição marca bem sua dúvida

essencial sobre a possibilidade de existência da bondade. Por várias vezes ele

mostra um grande desejo de que ela fosse possível, e mesmo de que existisse um

deus bondoso. Mas ele sempre acaba por concluir que a natureza humana está

corrompida e que crer em deus não melhora as coisas, pois a culpa primordial por

qualquer coisa que venha a existir, recairia sobre ele.

A negação de deus nos Cantos de Maldoror deve ser entendida como o

desejo de seu autor de aniquilamento da religião, e não como uma proposta de

religião contrária às existentes. Se há, na obra de Lautréamont, a apologia do mal,

ela não deve ser vista como uma profissão de fé, mas sim como um antídoto aos

valores religiosos, uma inversão destes valores, uma forma de desmistificação da

religião e a partir daí a anulação desta fé. Como na maior parte dos Cantos deus é

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atacado, era de se esperar que seu inimigo fosse exaltado. Contrariando esta

expectativa, podemos ver Maldoror rechaçando uma serpente (C5, E4),

representação do diabo, com a mesma desenvoltura com que ele recusa deus.

Esta estrofe mostra que Maldoror não quer “tomar o partido” de um nem do outro,

pois são dois personagens de uma mesma história, que Lautréamont pretende

fazer desacreditada. Como culturalmente prevalece a história contada sob o ponto

de vista do “bem”, este lado desta questão conta com uma maior adesão.

Lautréamont, como um escritor revolucionário, subverte nossa maneira de

entender as relações entre Mal e Bem. Na ordem que rege o mundo, o Bem goza

de um maior prestígio; proporcional a esta popularidade são os ataques de

Lautréamont àquilo que o representa de maneira hipócrita: deus.

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