adverse, uma república para os modernos. artendt, a secularização e o republicanismo

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Adverse, Uma República Para Os Modernos. Artendt, A Secularização e o Republicanismo

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  • Filosofia Unisinos13(1):39-56, jan/apr 2012 2012 by Unisinos doi: 10.4013/fsu.2012.131.04

    ResumoO objetivo deste trabalho examinar alguns aspectos da relao entre a reflexo poltica de Hannah Arendt e a tradio republicana. No se trata de salientar possveis pontos de contato entre elas, mas de investigar a peculiaridade da concepo arendtiana de repblica presente em seu livro sobre as revolues. Mais especificamente, o artigo visa elucidar qual a natureza do lao que Arendt estabelece entre repblica e secularizao. Para levar a termo esse objetivo, imprescindvel deter-se sobre os conceitos de lei, poder, autoridade e Constituio.

    Palavras-chave: Arendt, repblica, poder, autoridade, Constituio.

    AbstractThis papers aim is to examine some aspects of the relation between Hannah Arendts political thought and the Republican tradition. To achieve this, I will not investigate the numerous points of convergence between them, but rather analyze Arendts concept of republic as it is found in her book On revolution. More specifically, in this article I try to elucidate the nature of the bond that ties republic and secularization in Arendts thought. For this purpose, it will be necessary to examine the following concepts: law, power, authority and Constitution.

    Key words: Arendt, republic, power, authority, Constitution.

    1 Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antnio Carlos, 6627, Cidade Universitria, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: [email protected].

    Uma repblica para os modernos. Arendt,

    a secularizao e o republicanismo

    A republic for the moderns. Arendt, secularization and republicanism

    Helton Adverse1

    Universidade Federal de Minas Gerais

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    Poucos anos antes de morrer, Arendt afirmou, por duas vezes, que sua re-flexo poltica no poderia ser facilmente encaixada em nenhuma corrente poltica tradicional. Em 1973, em uma entrevista a Roger Errera, disse que no professava uma filosofia poltica que pudesse ser resumida com um termo como ismo. Em 1972, por ocasio do congresso realizado em Toronto sobre sua obra, ela havia demonstrado a mesma relutncia em ser enquadrada em qualquer corrente poltica (Arendt, 1979, p. 333-334). Tendo isso em vista, acredito que qualquer tentativa de inscrever o pensamento poltico de Arendt em uma corrente filosfica trairia seu esprito e letra. O objetivo deste trabalho , assim, fazer uma aproximao entre esse pensamento e o republicanismo a partir do exame da concepo arendtiana de repblica presente em seu livro Sobre a revoluo. Vale a pena tambm fazer uma observao preliminar: nos ltimos anos, tm ganhado mais destaque as leituras que enfatizam o aspecto institucional da reflexo poltica de Arendt (Wal-dron, 2000; Kalyvas, 2006), o que est na contracorrente das leituras, orientadas por uma concepo radical de democracia, que ressaltam seja o agonismo, seja o carter performtico da teoria da ao (Honig, 1993; Connolly, 1997; Villa, 1999). Acredito que a realizao de meu intento me obriga a me posicionar na primeira linhagem interpretativa.

    I

    primeira vista, Arendt apresenta uma definio de repblica bastante con-vencional, recorrendo clssica oposio entre governo monrquico no qual a concentrao do poder coloca o soberano acima das leis e governo republicano que pode ser tambm caracterizado como o governo das leis2. Este ltimo trao implica, como facilmente dedutvel, a igualdade entre os cidados, e, por isso, a repblica pode ser considerada como a forma de organizao poltica na qual os cidados convivem em situao de no-domnio (no-rule), sem diviso entre governantes e governados (Arendt, 1990, p. 25)3. A esta definio basicamente constitucional (com isso me refiro ao fato de ser uma definio que tem em seu ncleo a forma pela qual o poder exercido em um Estado), Arendt ir acrescentar outros elementos que podem ser facilmente reconhecidos na tradio republicana: a repblica ( semelhana da plis) coincide com o espao onde a liberdade se realiza; ela requer a participao constante dos cidados nos afazeres polticos, exigindo para tanto o desenvolvimento de virtudes propriamente polticas; ela oferece aos cidados a possibilidade de conhecer uma felicidade pblica (expresso que Arendt utiliza por diversas vezes, sobretudo no livro sobre a revoluo), de natureza muito diversa daquela encontrada no interior do domnio privado e proveniente da satisfao de seus interesses; a repblica, por fim, como espao da ao pol-tica, permite que os cidados deem vazo a seu desejo de distino e adquiram a glria. Todos esses fatores podem nos levar a decidir pela inscrio de Arendt no grupo dos republicanos convictos4, o que no seria, rigorosamente, errneo, mas deixaria escapar algo de essencial. H algo, a meu ver, na compreenso arendtiana

    2 Assim, desde a primeira apario do termo, Arendt explora esse contraste.3 Gostaria de fazer notar aqui a traduo forada que Miguel Vatter faz da expresso no-rule, vertendo-a por ausncia de lei (Vatter, 1999, p. 11). Dessa forma, Vatter poder dar suporte sua interpretao no fundacionista de Arendt. Chamo a ateno para este autor porque representa o tipo de leitura a que este artigo visa se opor.4 Como faz, por exemplo, Carlos Kohn, ao considerar Arendt a filsofa contempornea mais significativa do que poderamos chamar de republicanismo cvico (Kohn, 2005, p. 138-148). Para um bom cotejamento entre o pensamento poltico de Arendt e a tradio republicana, vale a pena consultar Canovan (1992, p. 201-252).

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    de repblica que no contemplado por nenhuma das categorizaes usuais no interior da tradio republicana, embora no lhe seja de modo algum oposta. Para iniciar a investigao dessa diferena especfica gostaria de reproduzir uma pas-sagem do livro Sobre a revoluo:

    A secularizao, a separao entre a religio e a poltica e o surgimento de um domnio secular com dignidade prpria, certamente um fator crucial no fenmeno da revoluo. De fato, bem possvel que o que chamamos de revoluo seja precisamente essa fase transitria que resulta no nascimento de um domnio novo, secular (Arendt, 1990, p. 26).

    Essa passagem me parece importante porque indica o caminho que vai nos levar a entender a peculiaridade da concepo arendtiana de repblica. Com efeito, o objetivo do movimento revolucionrio a fundao da liberdade apenas pode se concretizar com a constituio de uma repblica. Isso significa que a repblica aparece, aos olhos de Arendt, como a forma poltica prpria de uma poca secu-larizada. A compreenso dessa proposio exige, inicialmente, o esclarecimento daquilo que Arendt entende por secularizao.

    O fenmeno da secularizao objeto de interesse recorrente na obra de Arendt. De modo geral, ela se mantm fiel sucinta definio de secularizao presente na citao acima, isto , trata-se da separao entre Igreja e Estado, entre o domnio religioso e o domnio poltico, a partir da qual o poder poltico perdeu a sano da autoridade teolgica que o legitimava durante o perodo medieval. O carter muito esquemtico desta definio encobre, porm, um sentido mais profundo; para traz-lo luz, acredito ser necessrio recorrer ao texto de Arendt sobre o conceito de histria, que constitui o segundo captulo de Entre o passado e o futuro. Ao examinar o conceito moderno de histria, Arendt expe no somente de modo claro (o que faz, via de regra, nas diversas passagens em que se refere secularizao), mas de modo mais minucioso o que est em jogo na secularizao.

    A recente pesquisa histrica, diz Arendt, lanou nova luz sobre o perodo de transio entre a Idade Mdia e os tempos modernos, com o resultado de que a idade moderna, que anteriormente se supunha ter comeado com o Renascimento, foi recuada at o corao da Idade Mdia (Arendt, 1993, p. 69). Com esse expe-diente, fica reforada a tese de que h uma forte continuidade entre a modernidade secular e a Idade Mdia religiosa. O problema com essa tese, embora Arendt no deixe de reconhecer seu valor, que ela no soluciona verdadeiramente o problema da passagem de uma cultura religiosa para um mundo secular, apenas contornando-o. O grande enigma do advento do secular continua requerendo uma explicao. Arendt prefere, ento, colocar a questo da seguinte maneira:

    Se por secularizao queremos dizer apenas o advento do secular e o concomitante eclipse de um mundo transcendente, ento inegvel que a conscincia histrica mo-derna est intimamente conectada a ela. Isto, contudo, no implica de modo algum a duvidosa transformao das categorias religiosas e transcendentes em objetivos e padres terrenos imanentes sobre os que os historiadores das ideias insistiram recen-temente. A secularizao significa em primeiro lugar simplesmente a separao entre a religio e a poltica, e isso afetou ambos os lados to fundamentalmente que nada menos provvel de ter acontecido do que a transformao gradual das categorias religiosas em conceitos seculares que os defensores da continuidade integral tentaram estabelecer (Arendt, 1993, p. 69).

    Dois pontos me parecem dignos de nota aqui. O primeiro a convico de Arendt de que a modernidade implica uma ruptura, correlata ao que, em diversas

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    passagens, ela chama de perda da tradio. O fenmeno moderno da seculariza-o instaura uma nova conscincia histrica e uma nova relao com o passado. A irredutibilidade dessa novidade no pode ser compreendida se tomamos a histria em uma chave determinista (ver Duarte, 2000) e continusta, mas tem de ser referida a eventos histricos que, de maneira imprevisvel, alteraram o curso dos aconteci-mentos (como a inveno do telescpio, a descoberta do novo mundo ou a Reforma protestante). O segundo ponto, sobre o qual irei me deter mais longamente, consiste na recusa de Arendt em aceitar a tese da teologia poltica, que necessariamente termina por arruinar a autonomia e legitimidade da modernidade ao afirmar que os conceitos polticos modernos extraem seus significados de conceitos teolgicos ou, mais simplesmente, so conceitos teolgicos secularizados. Antecipando a leitura de Hans Blumenberg (Blumenberg, 1983; ver tambm Brient, 2000, p. 513-530, e Dubiel, 1995, p. 11-28), Arendt acredita que o processo de secularizao no pode ser esvaziado de seu sentido prprio; logo, ela aposta na autossuficincia de suas categorias. Cito mais uma passagem:

    Contudo, se ns entendermos por secularizao um evento que pode ser datado em um tempo histrico ao invs de uma troca de ideias, ento a questo no se a astcia da razo de Hegel foi uma secularizao da providncia divina ou se a sociedade sem classes de Marx representa uma secularizao da idade messinica. O fato que a separao entre a Igreja e o Estado ocorreu, eliminando a religio da vida pblica, removendo todas as sanes religiosas da poltica e fazendo a religio perder aquele elemento poltico que adquiriu nos sculos em que a Igreja Catlica Romana agiu como a herdeira do Imprio Romano (Arendt, 1993, p. 69-70).

    No difcil ver nesse trecho uma crtica direta a Karl Lwith, que defende a secularizao exatamente nos termos em que Arendt critica. A tese central de Meaning in history a de que as filosofias da histria podem ser todas reduzidas a uma verso secularizada da concepo crist de histria. Em outros termos, embora os resultados a que chegam as filosofias da histria sejam at mesmo anticristos, sua origem crist5 e sua chave de compreenso dos acontecimentos histricos teolgica.

    O que motiva a crtica de Arendt no a necessidade de defesa de uma filo-sofia da histria, frente qual sempre manifestou abertamente sua desconfiana, mas a convico de que esta exegese da histria tem a dupla desvantagem de errar do ponto de vista metodolgico6 e impor de modo arbitrrio uma chantagem modernidade: ou ela reconhece o fracasso de seu projeto ou se dobra diante das exigncias de uma viso de histria que no mais a sua. Em ambos os casos, ela seria despojada de sua legitimidade, como diria Blumenberg. Arendt repele essa chantagem no por uma admirao inconteste pela modernidade (pouco compatvel, diga-se de passagem, com o que vemos em suas obras, especialmente em Origens

    5 Com efeito, afirma Lwith: The fundamental premise of the Communist Manifesto is not the antagonism between bourgeoisie and proletariat as two opposite facts; for what makes them antagonistic is that the one class is the children of darkness and the other the children of light [...] It is only in Marxs ideological consciousness that all history is a history of class struggles, while the real driving force behind this conception is a transparent messianism which has its unconscious root in Marxs own being, even in his race [...] It is the old Jewish messianism and prophetism unaltered by two thousand years of economic history from handicraft to large-scale industry and Jewish insistence on absolute righteousness which explain the idealistic basis of Marxs materialism (1949, p. 44).6 O erro consiste no seguinte: os historiadores que postulam a secularizao nessas bases so vtimas de uma iluso, causada pela generalidade das ideias. precisamente esse carter geral (o fato de uma ideia poder ser associada a qualquer outra, isto , sua logicidade) que leva a negligenciar o fato de que elas correspondem s experincias e extraem delas sua pertinncia. Arendt denuncia, portanto, a tentativa de explicar o mundo pelas ideias, quando precisamente o contrrio que devemos fazer.

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    do totalitarismo e A condio humana), mas por sua conscincia de que o evento j ocorreu, uma nova realidade histrico-poltica j se instaurou, diante da qual inteiramente fora de propsito ajuizar sobre sua legitimidade ou ilegitimidade. E o que aconteceu, como vimos pela citao acima, a separao entre o domnio religioso e o domnio poltico.

    preciso dar a devida ateno a essa separao e tom-la em sua radicalidade. As relaes entre o poltico e o teolgico se alteraram profundamente na moderni-dade, sendo a religio conduzida, como bem havia mostrado Weber, esfera pri-vada. Se a poltica ainda fala a linguagem da teologia, as experincias polticas iro evidenciar a necessidade seja de ressignificar alguns conceitos, seja de abandonar outros. O conceito de soberania, por exemplo, no dispe mais de fora semntica para revelar o sentido de nossas experincias polticas na modernidade. Por outro lado, o conceito de autoridade pode ainda desempenhar uma funo importante. Gostaria de me deter sobre um e outro conceito, tendo em vista a explicitao de meu argumento.

    II

    No me parece imprescindvel retomar integralmente as crticas que Arendt faz ao conceito de soberania (para isso, remeto o leitor a Amiel, 2002 e Forti, 2006). Delas gostaria de reter apenas um aspecto: a natureza teolgica do conceito. por essa via que se torna possvel compreender sua funo no quadro conceitual que emoldurou o pensamento poltico no final da Idade Mdia e no comeo da moder-nidade. De acordo com essa perspectiva, a soberania interessa a Arendt por ser o ponto de apoio da teologia poltica. O conceito de soberania denuncia a tentativa de pensar os acontecimentos polticos modernos com categorias pertencentes a um tempo passado. Para deixar este ponto mais claro, vale a pena reconstituir a genealogia deste conceito que encontramos na obra de Arendt.

    Como estamos habituados a ver nas histrias da filosofia poltica, o termo soberania recebe uma nova significao poltica a partir de Bodin, tese que Arendt endossa no sem fazer, contudo, uma leitura muito idiossincrtica. Cito uma ano-tao do curso que ela ministrou na Universidade de Cornell em 1965:

    Soberania ento novo termo, aparentemente traduo do latim majestas (assim traduzido quando o livro [Les six livres de la rpublique] foi publicado em latim). A palavra majestade deriva de Maius, deus latino do Crescimento (maior), significando a dignidade, a autoridade e a sublimidade do cargo pblico na medida em que aparece. (A noo de crescimento a partir do escuro e de apario luz do sol. Nosso ms de maio ms do crescimento)7.

    Convm observar que Arendt destaca no a origem jurdica do termo, mas seu matiz teolgico. No comeo da modernidade, como exemplifica a figura maior de Bodin, a traduo do poder poltico nesses termos deixa transparecer o pano de fundo teolgico em que a poltica ainda concebida. Na origem da filosofia polti-ca moderna possvel identificar um prolongamento da teologizao do poltico,

    7 Reproduzo o texto original: Sovereignty then new term, seemingly translation of Latin majestas (thus translated when the book [Les livres de la rpublique] appeared in Latin). The word majesty derives from Maius, Latin God of Growth (maior), meaning the dignity, authority, sublimity of public office insofar as it appears. (The notion of growing out of the dark and appearing in the light of the sun. Our month of May month of growth) (Arendt, 1965, folha 023459). Os manuscritos do curso esto disponveis no site da Biblioteca do Congresso Nacional Americano.

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    apesar dos esforos dos tericos da soberania (especialmente os contratualistas) de fundamentar o poltico seja no direito, seja na vontade humana. Mas ela reconhece que a permanncia do teolgico convive, neste perodo, com o incio do processo de secularizao que podemos observar, para alm do espao terico, no prprio domnio da histria poltica. Com efeito, o regime monrquico absolutista repre-senta a etapa inicial da separao entre Estado e Igreja8. Neste primeiro momento se opera uma substituio: o monarca absolutista vem ocupar o lugar de Deus (ou de seu representante). Arendt, ento, endossa a tese de E. Kantorowicz, para quem a nao moderna tomou o lugar do Prncipe, mas no antes do prprio Prncipe ter ocupado o lugar pontifical do Papa e do Bispo (Kantorowicz, 1955, p. 67). Contudo, ela no pode acompanhar Kantorowicz quando ele (por sua vez seguindo F.W. Maitland) estende esse mecanismo at o limiar do sculo XIX. Se essa substituio, que de fato encontramos nas origens do regime absolutista monrquico, sinaliza o desmoronamento da estrutura poltica medieval, ela no capaz, porm, de resolver as aporias que resultam desse processo, ou, para dizer com Arendt, suas perplexidades. A concepo de secularizao de Kantorowicz , at certo ponto, interessante para Arendt, uma vez que ele deseja mostrar a presena, na formao do Estado absolutista moderno, de um conceito cujos fun-damentos vamos encontrar na Idade Mdia (o conceito de Mistrios de Estado). Desse modo, ele refora a tese (defendida mais detalhadamente em Os dois corpos do rei, publicado em 1957) de que h mais elementos de continuidade entre Esta-do Moderno e Idade Mdia do que estamos habituados a acreditar. Kantorowicz entende a secularizao menos como um processo de ruptura (Estado/Igreja) e mais como um fenmeno de comunicao, de passagem de elementos teolgicos para a esfera secular. verdade que essa passagem foi antecedida pelo movimento contrrio, em que conceitos e prticas polticas seculares integraram a estrutura da Igreja9 e, desde ento, os emprstimos mtuos entre as duas rbitas no cessaram (Kantorowicz, 1955, p. 66). Contudo, o objetivo primeiro de Kantorowi-cz mostrar que no podemos compreender um trao distintivo do pensamento poltico moderno (a noo de Mistrio de Estado, associada aos arcana imperii e s doutrinas de Razo de Estado) sem a remisso teologia medieval.

    No necessariamente se contrapondo a essa perspectiva, Arendt acredita que essa somente uma parte da histria. Isso porque o processo de secularizao causou um impacto muito mais forte sobre a realidade poltica moderna, a ponto de nos obrigar a repensar os conceitos de poder e autoridade com os quais est-vamos habituados (Arendt, 1990, p. 155). O que Arendt quer dizer o seguinte: a substituio a que se refere Kantorowicz (acompanhada pela migrao de conceitos) , na verdade, uma tentativa frustrada de sanar a irremedivel crise que decorre da perda da autoridade religiosa: o Prncipe, ao vestir as roupas do Papa ou do Bispo, no foi capaz de trazer consigo sua dignidade e sua aura; logo, seu poder estar sempre marcado pela ilegitimidade e a soberania absoluta s pode degenerar em tirania e despotismo (Arendt, 1990, p. 166). Caber aos processos revolucionrios desmascarar esta tentativa fracassada de suprir, com a inveno da figura do soberano, a lacuna deixada pelo desaparecimento da autoridade religiosa.

    As revolues do sculo XVIII encontram sua condio de possibilidade no desaparecimento dessa autoridade, o que coloca os homens que as realizaram

    8 O primeiro estgio desta secularizao foi o advento do absolutismo e no a Reforma; pois a revoluo que, de acordo com Lutero, abala o mundo quando a palavra de Deus liberada da autoridade tradicional da Igreja constante e se aplica a todas as formas de governo secular; ela no estabelece uma nova ordem secular, mas constante e permanentemente abala as fundaes de todo estabelecimento mundano (Arendt, 1990, p. 26).9 Fenmeno ao qual, diga-se de passagem, a prpria Arendt faz referncia em Whats authority? (Arendt, 1993, p. 91-141).

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    diante da tarefa de encontrar um novo fundamento para o poder poltico. Arendt vislumbra duas opes: a primeira, seguida pelos revolucionrios franceses, era dar continuidade ao processo de substituio, conservando a noo de soberania e colocando no lugar do rei deposto o povo. A vontade do povo transformou-se no elemento central na nova configurao poltica que havia se livrado do rei, mas no do soberano. A segunda opo, adotada pelos americanos, descartava por completo a noo de soberania e enfrentava o desafio de conceber em novas bases o poder poltico, encarando as perplexidades que decorriam do fato do domnio secular ter adquirido dignidade e esplendor prprios (Arendt, 1990, p. 159). Em suma, a Revoluo Francesa, na perspectiva de Arendt, foi mais conservadora do que a Revoluo Americana porque deu novo alento estrutura poltica que a precedera, ao passo que os americanos, rompendo com a forma de dominao poltica que vigorava na Europa, foram capazes de criar uma nova ordem secular. Nesse senti-do, somente eles puderam retirar do processo revolucionrio moderno todo o seu potencial emancipatrio e completar efetivamente o processo de secularizao10.

    Como podemos ver, os revolucionrios franceses mantiveram-se presos ao es-quema da secularizao tal como encontramos descrito por Kantorowicz. Na Frana, a Vontade Geral, princpio poltico que unificava as vontades individuais colocando-se acima de todas elas como um absoluto, substitua a Vontade do monarca absoluto. E da mesma forma que o rei absoluto representava a vida potencialmente eterna da nao e encarnava na terra uma origem divina (Arendt, 1990, p. 156) na qual poder e lei coincidiam, o povo, no contexto revolucionrio francs, ir representar a nao e ser reconhecido como a fonte que legitima todo poder e que potencializa toda lei. Em outras palavras, os franceses no foram capazes de se liberar de uma representao do poder em que a origem do prprio poder, da lei e da autoridade se confundiam em uma nica fonte (a figura do soberano) e que apelava a uma instncia transcendente, a prpria Vontade Geral. Esta concepo de soberania parece, portanto, selar o destino da Revoluo Francesa (assim como os destinos das revolues que nela se inspiraram).

    Entre os americanos a situao era inteiramente diferente. Eles no apenas se encontravam livres do embarao da pobreza11 e tinham uma grande experincia com as prticas de autogoverno, mas tambm enfrentaram (em sua guerra de inde-pendncia) uma nao que j tinha ela mesma institudo uma monarquia limitada:

    No governo do rei e Parlamento, com o qual as colnias romperam, no havia po-testas legibus soluta, nenhum poder no sujeito s leis. Por isso, os elaboradores das constituies americanas, embora soubessem que tinham de estabelecer uma nova fonte da lei e conceber um novo sistema de poder, jamais estiveram tentados a derivar lei e poder da mesma origem. A sede do poder, para eles, era o povo, mas a fonte da lei iria se tornar a Constituio, um documento escrito, uma coisa objetiva durvel, a qual, certamente, poderia ser abordada por muitos ngulos diferentes e

    10 Dentre os comentadores de Arendt, Samuel Moyn parece corroborar esta leitura que coloca a secularizao no centro de suas anlises das revolues modernas. Com efeito, ele afirma que it would not be too much to say that Arendt placed secularization at the very center of her analysis of the revolutionary phenomenon and secularism at the core of her political hopes. Put simply, Arendt thought that what was at stake in modernity was leaving religion behind, at least as the foundation of public coexistence. Conversely, modernity took its most politically defective forms when (among other things) it had failed to make its necessary break with the religious civilization that preceded it (Moyn, 2008, p. 71).11 Refiro-me aqui clebre questo social. Como sabido, Arendt identifica como uma das causas do fracasso da Revoluo Francesa o fato de ter se despolitizado ao permitir a entrada de elementos pertencentes esfera privada (as necessidade vitais) no espao poltico. O livro de Arendt foi alvo de duras crticas por conta dessa separao rigorosa entre o poltico e o social no contexto das revolues modernas, as quais no preciso retomar para meus propsitos.

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    qual possvel impor muitas interpretaes diferentes, que poderia ser mudada e emendada de acordo com as circunstncias, mas que, no entanto, jamais era um es-tado de esprito subjetivo, como a vontade. Ela permaneceu uma realidade mundana tangvel de maior durabilidade dos que as eleies ou as consultas opinio pblica (Arendt, 1990, p. 157).

    Pelo fato de no ser a Constituio americana a fonte do poder, mas da lei (e, como veremos, da autoridade12), ela extrai sua fora vinculativa do consentimento que a engendra e por causa dessa mesma origem ser ela o expediente com o qual os americanos respondero ao desafio que toda revoluo tem de enfrentar: o problema do absoluto, associado ao da perda da autoridade. Em outros termos, trata-se da necessidade de encontrar um fundamento para o poltico, livrando-o da instabilidade que o acomete devido ausncia de um elemento transcendente, o que era anteriormente assegurado pela sano da autoridade religiosa.

    III

    Em suas anlises dos eventos revolucionrios francs e americano, Arendt confere forte nfase ao processo de elaborao da Constituio. Enquanto os fran-ceses respondem ao desafio do absoluto com o prolongamento do absolutismo, os americanos partem para a elaborao de uma Constituio13. Enquanto os franceses so incapazes de eliminar o mal da instabilidade do corpo poltico recm-fundado (porque recorrem a uma noo extrapoltica a Vontade Geral para fundamentar o poltico14), os americanos recorrem sua experincia poltica para instaurar uma nova ordem poltica, dispensando o auxlio pernicioso de qualquer elemento transcendente. Para entender melhor este ponto, preciso lembrar que os americanos foram benefi-ciados com um legado poltico graas ao qual puderam fazer a distino entre fonte do poder e autoridade, o que para os franceses era impossvel. Mais precisamente, os americanos tinham uma dupla vantagem frente aos franceses: em primeiro lugar, uma herana poltica no autocrtica, no absolutista; em segundo lugar, uma prtica poltica de autogoverno. Da resultam ao menos duas consequncias de grande relevncia: a primeira delas que os americanos no tinham (como os franceses) de se livrar de um dspota e, portanto, o princpio do absolutismo j estava quebrado;

    12 Tenho a impresso de que Arendt nem sempre muito clara a respeito da distino entre fonte da lei e fonte da autoridade. Em outras passagens, ela deixa entender que a fonte da lei o poder. Por exemplo, referindo-se aos corpos constitudos pelos colonos americanos, ela afirma que eles estavam cientes de que as leis deviam sua existncia fatual ao poder do povo e seus representantes legislativos (Arendt, 1990, p. 182). Essa declarao banal, afinal de contas a atividade legislativa sempre foi concebida como um poder, desestabiliza, a meu ver, a separao entre poder e lei. A fonte da lei, portanto, o poder. Uma tentativa de soluo do problema diferenciar a lei positiva da lei superior (higher law). Neste caso, a autoridade a fonte mesma da lei. O esquema ficaria assim: o poder a fonte da lei positiva. O princpio de validade da lei positiva a lei superior que, por sua vez, tem sua fonte na autoridade. Arendt parece endossar essa sugesto ao dizer que o crculo vicioso na legislao est presente no na elaborao ordinria das leis, mas ao estabelecer a lei fundamental, a lei do pas ou a Constituio que, da em diante, supostamente encarna a lei suprema da qual todas as leis, em ltima instncia, derivam sua autoridade (Arendt, 1990, p. 184). Contudo, a prpria Arendt, como veremos, desconstri esse esquema ao descolar a autoridade da lei. 13 Arendt minimiza, portanto, a contribuio francesa para a formulao de uma nova teoria da Constituio na modernidade, retendo dos escritos de Sieys somente o fato de instituir o povo (e a nao) no lugar antes ocupado pelo soberano e mostrando como ele foi incapaz de escapar aos crculos viciosos inerentes ao trabalho de elaborao das leis e de fundao do corpo poltico. Por outro lado, Arendt parece acertar em sua leitura da histria das constituies francesa e americanas. Como demonstrou Grald Stourzh, a Constituio americana ir estabelecer (a exemplo da inglesa) uma ntida distino ente a autoridade poltica soberana e a legislativa, ao passo que a francesa tender a confundir ambas (Stourzh, 1979, p. 347-67).14 A instabilidade, nesse caso, decorre da prpria Vontade Geral. Como vontade ela inconstante e incompatvel com qualquer estrutura poltica duradoura.

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    Uma repblica para os modernos. Arendt, a secularizao e o republicanismo

    a segunda consequncia, estreitamente associada primeira, que os americanos puderam trazer para o novo corpo poltico as mesmas prticas polticas com as quais j estavam acostumados, sem terem sido lanados, como os franceses, em um Estado de natureza. Arendt chega mesmo a dizer que, ao fazerem sua revoluo, eles estavam expandindo e consolidando uma forma de vida poltica que conheciam h sculos, como atestam os inmeros townships das colnias. Estes eram centros de atividade legislativa, exercida tendo por referncia um prvio conjunto de leis. A independncia dos Estados Unidos exigia que essas mesmas prticas fossem agora transpostas para um novo registro (o nacional), sem que fosse preciso fundar um Estado baseado na ideia de nao (a estratgia francesa). Com efeito, os homens encarregados de formular a nova Constituio americana no concebiam sua tarefa em termos de uma fico e de um absoluto, a nao acima de toda autoridade e acima de todas as leis, mas em termos de uma realidade efetiva, a multido organizada cujo poder era exercido de acordo com leis e limitado por elas (Arendt, 1990, p. 166). Por isso, Arendt pode concluir que a insistncia revolucionria americana na distino entre repblica e democracia (ou governo da maioria)15 se funda na separao radical entre lei e poder, com origens claramente diferentes, legitimaes diferentes e diferentes esferas de aplicao (Arendt, 1990, p. 166).

    O conhecimento prvio da separao entre lei e poder habilitou os americanos a compreender sua tarefa de fundao de sua repblica em termos constitucionais: fundar os Estados Unidos implicava assegurar ao novo corpo poltico um conjunto de leis que assegurasse, por meio de instituies, a conservao da liberdade que j conheciam no exerccio do poder antes mesmo da independncia. Nesse sentido, a Revoluo Americana tambm aparece como conservadora, mas com a diferena de que est em questo conservar uma liberdade poltica que apenas recentemente havia sido redescoberta. A Revoluo Americana no inaugura um outro tipo de poder; antes, ela deve proteger, por meio de uma Constituio16, um poder e um modo de associao poltica que estavam em vigor desde o pacto do Mayflower.

    Cabe Constituio, como aparato institucional, emoldurar o espao em que o poder poltico exercido. semelhana do conceito grego de nomos (sem se identificar totalmente com ele, no entanto), a ideia de Constituio pode ser apre-endida pela metfora arquitetnica e precisamente assim que Arendt a apresenta em uma importante passagem:

    O cerne da questo, contudo, que na forma republicana de governo tais decises [as decises polticas] so tomadas e esta vida [a vida da nao] conduzida dentro do quadro constitucional e de acordo com as regulaes de uma Constituio, a qual, por sua vez, no mais a expresso de uma vontade nacional ou sujeita vontade da maioria do que um edifcio a expresso da vontade de um arquiteto ou sujeito vontade de seus moradores. O grande significado atribudo, em ambos os lados do Atlntico, s constituies como documentos escritos testemunha seu carter objetivo, mundano, talvez mais do que qualquer outra coisa (Arendt, 1990, p. 164).

    A mundaneidade (a tangibilidade) da Constituio faz, nessa passagem, contraste com a volatilidade e a inconstncia da vontade. apenas por essa qua-lidade que ela est capacitada a desenhar e impor limites para a ao poltica. Sem esses limites, a ao poltica (como exemplificado pela Revoluo Francesa,

    15 Para essa distino entre os Founding Fathers, ver o Federalista 14, de autoria de James Madison.16 Como disse Jeremy Waldron, that politics needs housing, and that the building of such housing can be equated with the framing of the constitution this is an image that recurs throughout Arendts writings (Waldron, 2000, p. 203).

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    que degenerou no terror) corre o risco de tornar-se destrutiva e o poder arrisca ceder lugar para a violncia. Sendo assim, a elaborao da Constituio define ao mesmo tempo o espao (pblico) para a ao e o modo de distribuio do poder (sua diviso) tendo em vista a conservao do corpo poltico17. ( preciso ter em mente, contudo, que a metfora espacial dos limites tem alcance limitado. No est em questo uma formulao acabada, definitiva da Constituio porque com este dispositivo o esprito revolucionrio terminaria por sucumbir como consequncia do engessamento institucional. Convm observar que Arendt retorna a esse problema no ltimo captulo do livro sobre a revoluo, quando ento, em uma manifestao de profunda admirao por Thomas Jefferson, encontra em suas cartas o reconheci-mento da necessidade de deixar a Constituio aberta a inovaes, tendo em vista garantir s geraes futuras a mesma oportunidade de realizar o ato de fundao18).

    Ora, so essas qualidades que gabaritam a Constituio a ocupar o lugar da autoridade, na medida em que ela funciona como o elemento estabilizador da vida poltica republicana. Mas como ela pode desempenhar essa funo? Como pode ela, na ausncia de qualquer elemento transcendente que a legitime, restituir ao conceito de autoridade um novo vigor? Para respondermos a essas questes, temos de analisar os conceitos de poder e de autoridade.

    IV

    No final do captulo IV do livro Sobre a revoluo, Arendt apresenta mais uma vez sua concepo de poder, e a ela irei me ater, sem me comprometer, porm, com uma exposio completa das diversas passagens de sua obra em que ela o define.

    O trao inovador desse captulo a aceitao de um aporte tradicional da filosofia poltica (a teoria contratualista) para a explicitao do poder. Retomo as linhas gerais de sua argumentao:

    O poder como os homens da Revoluo Americana o entenderam, como algo bvio, porque estava encarnado em todas as instituies de autogoverno atravs do pas no era somente anterior Revoluo, ele era, em um sentido, anterior colonizao do continente. O Pacto do Mayflower foi feito no navio e assinado no desembarque (Arendt, 1990, p. 164).

    17 No que concerne a este ltimo ponto, Arendt no poupa elogios ao princpio federativo, o qual inteiramente concorde teoria da diviso dos poderes de Montesquieu. Mas vale ressaltar que Arendt recusa a interpretao liberal dessa teoria, segundo a qual estaria em jogo a limitao do poder por meio de freios institucionais. A lio de Montesquieu, aprendida pelos americanos, a de que o poder detm o poder, de modo a gerar mais poder. Montesquieu no o precursor de Lord Acton. No se trata de afirmar que o poder corrompe e, portanto, seria imprescindvel a colocao de freios ao poltica. Muito menos Montesquieu estaria repetindo o que j encontramos em Aristteles e Polbio (as vantagens das formas mistas de governo). A descoberta de Montesquieu concernia antes natureza do poder, e esta descoberta est em contradio to flagrante com todas as noes convencionais sobre esta matria que ela quase foi esquecida, apesar do fato de que a fundao da repblica na Amrica ter sido largamente inspirada por ela (Arendt, 1990, p. 151). preciso, portanto, dar novo significado frase o poder detm o poder. Para que esta expresso de Montesquieu revele toda a sua profundidade ela deve ser complementada da seguinte forma: sem destru-lo, sem colocar a impotncia no lugar do poder, porque o poder pode, claro, ser destrudo pela violncia (Arendt, 1990, p. 151). Por outro lado, a frase indica que no possvel controlar (to check) o poder pelas leis porque o que elas limitam no o poder, mas a violncia, ou seja, a fora multiplicada de algum que monopolizou o poder de muitos (Arendt, 1990, p. 151). As leis no podem limitar o poder pela simples razo de que elas se originam do poder. Elas podem limitar a ao individual que ameaa a preservao do espao poltico, mas no a fonte a partir da qual este vem a existir. por isso que Arendt pode dizer que no conflito entre lei e poder, raramente a lei emergir como vencedora (Arendt, 1990, p. 151). O poder, nesse sentido, dissolvente da lei exatamente porque , por natureza, constituinte. 18 Por isso to importante que ela preveja, na organizao poltica interna, o sistema de conselhos, nos quais a participao constante dos cidados nos afazeres cvicos conserva a dimenso constituinte do poder.

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    A imagem bastante eloquente: por um lado, o pacto realizado no navio, isto , antes do encontro com o desconhecido e selvagem novo mundo, assegura a continuidade da civilizao; por outro lado, inaugura uma forma de associao poltica baseada exclusivamente na promessa mtua, e no na troca ou cesso de qualquer direito correlata submisso a uma autoridade comum. O Pacto do Mayflower antecipa, portanto, a revoluo na medida em que lana as bases de um novo corpo poltico, animado por um novo princpio poltico e articulado por uma concepo de poder que nada tem a ver com a soberania19. Nesse sentido, a revoluo ir repetir o Pacto, renovando-o e aumentando-o com o estabelecimento de uma nova Constituio. E ela o far somente porque liberar o poder de pactuar e de elaborar constituies j presente entre os colonos.

    precisamente nesse momento que Arendt recorda que as teorias contratu-alistas reconheceram dois tipos de contrato: o pacto que d origem sociedade e aquele que d origem ao poder poltico (em linguagem tcnica: pactum associationis e pactum subjectionis. As noes remontam a Surez e Althusius no incio do sculo XVII, mas no podemos deixar de lembrar que Locke a reformula20). Segundo ela, as duas espcies de pacto so mutuamente exclusivas. O pacto de associao resulta em uma societas, no sentido romano; est baseado na reciprocidade e tem como pressuposto a igualdade. Ora, no difcil compreender o motivo do interesse de Arendt por essa espcie de contrato: Tal aliana rene a fora isolada dos parceiros aliados e os vincula em uma nova estrutura de poder em virtude de promessas livres e sinceras (Arendt, 1990, p. 170). Em contrapartida, o pacto de sujeio caracteriza-se pela entrega, da parte dos membros de uma sociedade, do poder individual a um soberano em vista da constituio de um governo.

    Para Arendt, ento, o consentimento no quebra verdadeiramente o iso-lamento do indivduo que se encontra s diante da instncia de poder que deve proteg-lo, da mesma forma que cada pessoa individual est sozinha na Presena de Deus. Por outro lado, o ato de promessa mtua , por definio, realizado na presena uns dos outros; ele , em princpio, independente da sano religiosa (Arendt, 1990, p. 171, grifo meu). Este ponto , a meu ver, crucial para esclarecer o problema que estamos examinando. Com efeito, o contrato na forma da promessa mtua significa para Arendt a possibilidade de criao de poder, dispensando a necessidade de recorrer a qualquer instncia transcendente: na pura imanncia, na horizontalidade dos pactos que se constitui um espao poltico em que o poder pode aparecer e a liberdade ganhar visibilidade21.

    A origem do poder, portanto, no remonta a nada alm da capacidade hu-mana de agir e discursar lembrando, com Honig (1991), que a promessa uma ao discursiva. Por meio da promessa, a capacidade humana de agir em concer-to atualizada. Mas a promessa faz mais do isso: ela ativa tambm a capacidade humana de construo do mundo:

    Vincular-se e prometer, combinar e pactuar so os meios pelos quais o poder man-tido em existncia; sempre que os homens tm xito em manter intacto o poder que nasceu entre eles durante o curso de qualquer ato ou feito particulares, eles j esto no processo de fundao, de Constituio de uma estrutura mundana estvel para abrigar, por assim dizer, seu poder combinado de ao. H um elemento da capaci-

    19 Os novos corpos polticos fundados pelos colonos, diz Arendt, no implicavam domnio e diviso do povo entre governantes e governados (Arendt, 1990, p. 168).20 No que concerne s fontes bibliogrficas de Arendt, preciso destacar o livro de Otto von Gierke sobre Althusius (1880) e que Arendt cita (na verso inglesa) em On revolution. (Gierke traduz as expresses latinas por Genossenschaftsvertrag e Herrschaftsvertrag).21 Voltarei a este ponto.

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    dade humana de construo do mundo na faculdade de fazer e manter promessas. Assim como as promessas e acordos lidam com o futuro e proveem estabilidade ao oceano de instabilidade futura onde o imprevisvel pode irromper de todos os lados, assim a capacidade humana de Constituio, de fundao e de construo do mundo concernem no tanto a ns mesmos e a nosso tempo na terra quanto a nosso suces-sor e posteridade. A gramtica da ao: a ao a nica faculdade humana que exige uma pluralidade dos homens; e a sintaxe do poder: o poder o nico atributo humano que se aplica somente ao espao mundano entre (in-between), pelo qual os homens esto mutuamente relacionados, unindo-se no ato de fundao em vir-tude do fazer e manter promessas, o que, no reino da poltica, pode ser a mais alta faculdade humana (Arendt, 1990, p. 175, grifo meu).

    Esta longa citao nos permite vislumbrar na ao de prometer o sentido que o termo Constituio vai adquirir na obra de Arendt. Longe de se reduzir a um construto tcnico, ela a criao conjunta dos homens que visa assegurar o espao de liberdade em que eles adentram ao exercer o poder. Sua origem no pode ser identificada com uma vontade coletiva, mas referida ao dever recproco que os cidados assumem de cri-la e defend-la (ver Dubiel, 1995, p. 19). A Constituio, assim, no pode ser desvencilhada da ideia de fundao nem da experincia pol-tica concreta de uma determinada comunidade poltica. Sua confeco dispensa o recurso sabedoria de um legislador que viesse de fora moldar a matria poltica imagem de um escultor trabalhando a pedra bruta. Mais uma vez, na imanncia da vida poltica desta vez referida capacidade de prometer que os homens encontram a fora capaz de estabelecer um vnculo duradouro entre eles e que mantenha o poder em existncia. Da mesma forma que a ao detm um fim em si mesma (como entelchia; ver Kampowski, 2008, p. 26-45), o corpo poltico e o conjunto de leis que o anima podem encontrar sua razo de ser no simples fato de preservarem a liberdade.

    A Constituio, portanto, no tem outro objetivo a no ser a conservao do poder. No entanto, ao remet-la a uma mesma fonte que o poder (a capacidade de agir e de fazer promessas), Arendt no terminaria por cair no mesmo crculo vicioso que apontava na obra de Sieys? No terminaria ela tambm por confundir a fonte do poder com a fonte da lei? Ora, o conceito de autoridade, acredito, vem sanar essa dificuldade.

    Antes de fazer o exame do papel que a noo de autoridade desempenha no captulo V do livro sobre a revoluo, gostaria de lembrar que para Arendt nada nos obriga a compreender o termo em uma chave teolgica. Isso porque sua origem propriamente poltica. A longa aliana entre religio e poltica, diz Arendt, no prova que o conceito de autoridade seja de natureza religiosa. Pelo contrrio, diz ela, mais provvel que a autoridade, na medida em que baseada na tradio, seja de origem poltica romana e tenha sido monopolizada pela Igreja apenas quando ela se tornou a herdeira poltica e espiritual do Imprio Romano (Arendt, 1994, p. 372). Essa monopolizao da Igreja reforou o vnculo, j presente na vida poltica romana, entre tradio, religio e autoridade, dando-lhe uma roupagem crist. A estratgia de Arendt (adotada tambm no ensaio sobre a autoridade includo em Entre o passado e o futuro), cortando os laos entre autoridade e religio, visa restituir ao conceito de autoridade sua pertinncia poltica na atualidade, o que apenas pode ser feito se ele for despojado de todo contedo teolgico.

    Arendt est consciente de que essa concepo mundana ou secular da au-toridade implicar a destituio do papel que tradicionalmente lhe foi atribudo, vale dizer, a de sano religiosa da lei. Durante sculos, a autoridade foi utilizada como instrumento poltico para conferir validade s leis humanas, seja na forma da

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    vontade divina, seja na forma moderna da lei de natureza (que, em ltima instncia, termina por remeter vontade divina). Nessas circunstncias, a autoridade vem sanar a deficincia constitutiva da lei positiva, a de no trazer consigo seu princ-pio de validade. Ela se torna, assim, uma espcie de lei mais alta, um absoluto indispensvel para manter a ordem interna em um Estado. De acordo com Arendt, essa concepo de autoridade uma herana da teologizao do poltico operada pela Igreja a partir do momento que tem de assumir um papel poltico e que foi legada, via absolutismo, aos Estados modernos.

    Os revolucionrios, franceses e americanos, se sentiram na necessidade de encontrar um absoluto que pudesse conferir ao novo domnio poltico que estavam em vias de construir a estabilidade decorrente da obedincia. E, para isso, tiveram sua disposio a experincia poltica dos antigos e a reflexo poltica de um mo-derno (Montesquieu) para forjar outro conceito de lei (Arendt, 1990, p. 186-187). Gregos e romanos no reconheciam na atividade legislativa qualquer elemento religioso. O nomos grego, por exemplo, era claramente entendido como um artif-cio cuja funo primordial era delimitar o espao em que a atividade poltica seria exercida. Os romanos, por sua vez, tinham uma compreenso poltica da atividade legislativa, o termo lex denotando sobretudo os vnculos, os laos que se estabele-ciam entre os cidados pertencentes a uma societas. Em nenhum dos dois casos, a lei era um comando. Na verdade, esta concepo de lei de natureza teolgica (mais especificamente, hebraica), e Arendt no deixa de observar que ela se torna hegemnica no mundo ocidental a partir do momento em que o cristianismo se torna a religio dominante e a Igreja se imiscui nos afazeres mundanos. No que concerne reflexo poltica, Montesquieu foi o nico escritor poltico a retomar o sentido romano de lei, isto , o de relao (rapport), abstendo-se, por causa disso, de introduzir no domnio poltico um poder desptico ou absoluto. Para ele, nem a lei divina nem a lei natural constituem uma lei mais alta: estritamente falando, as leis no so mais do que relaes que existem e preservam diferentes domnios do ser (Arendt, 1990, p. 188). Arendt esclarece essa ideia no curso que ministra em Cornell em 1965. Comentando Do esprito das leis, ela diz o seguinte:

    Se no houvesse lei divina, no haveria espao, isto , entre Deus e o universo ou entre Deus e os homens; se no houvesse lei natural, as coisas na natureza no teriam relao, etc. A lei natural se relaciona com a natureza humana na medida em que o homem pertence espcie, isto , preserva a famlia; a lei civil relaciona os homens em uma comunidade humana, mas esta no a lei natural e por isso no imutvel. Sem estas leis haveria a) confuso, um amontoado de coisas, b) um deserto. As leis sempre unem uma pluralidade de coisas em um nico corpo. A Constituio de cada pas tem leis diferentes, diferentes relaes entre os homens que a vivem como cida-dos (Arendt, 1965, folha 023483).

    A relao entre as coisas da natureza, entre Deus e o mundo, entre os pr-prios homens dispensa qualquer fundamento ltimo porque se trata de princpios de ordem interna, conferindo unidade e, ao mesmo tempo, assegurando uma distncia entre tudo o que existe em um espao delimitado, correspondente ao mundo. Nesse sentido, a lei o que ordena o mundo sem necessitar de qualquer fundamento transcendente, embora no seja incompatvel com ele, como o caso da lei de natureza para Montesquieu. Chamo a ateno para este ltimo aspecto apenas para proteger Arendt da acusao de espontanesmo: ao identificar uma ordem na imanncia, seu objetivo primeiro mostrar que o mundo se estrutura a partir de leis (ou regras) cuja funo primeira no impor uma ordem, mas que com ela coincidem a partir do momento em que estabelecem relaes entre as coisas.

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    (No caso das leis humanas, trata-se de fixar, por meio do pacto, as relaes que os homens estabelecem entre si e com as coisas). Assim, as leis conectam coisas diferentes.A leitura de Montesquieu tem, ento, uma dupla vantagem para Arendt: por um lado, distingue lei de comando; por outro, desvencilha lei de autoridade, mostrando a futilidade de qualquer fundamento transcendente para o mundo humano. A autoridade, portanto, nada tem a ver com o absoluto, assim como a lei secular no um comando. Este o nico meio de escaparmos do crculo vicioso que se origina quando assumimos a necessidade de um fundamento divino e abso-luto para aquilo que humano e relativo. Resta agora entender o que ela e qual o lugar que Arendt lhe concede em uma repblica, em um corpo poltico na poca moderna, marcada precisamente pela perda da sano religiosa no domnio poltico.

    Mais uma vez, a experincia dos revolucionrios americanos evocada para resolver essa questo. Na perspectiva de Arendt, o que permitiu aos americanos es-capar do erro dos franceses (isto , reintroduzir uma noo teolgica de autoridade no espao poltico) foi o ato de fundao. Convm observar que Arendt novamente ala a experincia poltica ao primeiro plano em sua explicao do destino poltico dos americanos. De maneira geral, as convices filosficas e polticas dos Founding Fathers pouco se distanciavam dos pressupostos assumidos pela tradio da filosofia poltica. Porm, sua prtica poltica os colocou na necessidade de tomar essa tradio a contrapelo e buscar na histria poltica dos antigos o auxlio para compreender o problema que enfrentavam no presente. Os antigos, especialmente os romanos, foram recuperados no maneira romntica (que para Arendt significa conservadorismo), mas como fonte de exemplos que pudessem lanar luz sobre o momento poltico em que viviam, o momento da fundao de um novo corpo poltico.

    E o que os romanos sabiam que o ato de fundao, o princpio, traz consigo uma fora vinculativa, a qual, quando devidamente orientada, capaz de ligar os cidados de forma duradoura, isto , tendo em vista o tempo futuro. Nesse sentido, Arendt no deixa de reconhecer um elemento religioso na fundao, mas somente na acepo originria da palavra: religare. No caso americano, esse sentimento de pertencimento mtuo se manifestou no culto cego Constituio, um apego a ela demonstrado pelos americanos antes mesmo que ela comeasse a operar. Para Arendt, esse sentimento foi fundamental para o sucesso da Revoluo Americana e constitui a prova definitiva de que o ato de fundao traz consigo a autoridade que assegura estabilidade a uma nova repblica (Arendt, 1990, p. 199). A funda-o apenas pode atuar dessa maneira porque no princpio de um corpo poltico coincidem fundao e conservao22. A lio aprendida dos romanos que o mo-mento da fundao introduz a novidade, mas ao mesmo tempo traz o princpio de continuidade: o corpo poltico que se funda deve se prolongar no tempo e as aes realizadas aps a fundao podem ser consideradas como um aumento do ato fundador, unindo, desse modo, passado, presente e futuro. A autoridade , ento, a capacidade de aumentar a fundao e, ao mesmo tempo, conserv-la. Esta sua fora estabilizadora.

    No entanto, cabe notar que o aumento da fundao no pode ser identificado com a ao tout court. No se trata, nessa reatualizao do comeo, de exercer o poder. Afinal de contas, a autoridade no compatvel com a horizontalidade que caracteriza o poder, instituindo necessariamente uma dessimetria nas relaes pol-ticas. Por isso, o princpio de autoridade deve ser encarnado no no corpo coletivo

    22 O prprio conceito de autoridade romana sugere que o ato de fundao inevitavelmente desenvolve sua prpria estabilidade e permanncia, e a autoridade neste contexto nada mais do que uma espcie de aumento necessrio em virtude do qual todas as inovaes e mudanas permanecem retroativamente atadas fundao que, ao mesmo tempo, aumentam e fazem crescer (Arendt, 1990, p. 202).

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    dos cidados, mas em determinadas instituies; em Roma, era essa a funo do Senado e, nos Estados Unidos, a funo da Suprema Corte. Vale a pena examinar brevemente essa diferena a fim de compreendermos melhor o papel da autoridade em uma poca secularizada.

    Entre os romanos, a funo de autoridade do Senado era essencialmente po-ltica23, cabendo aos senadores aconselhar e chancelar aquilo que haviam decidido o povo (titular do poder) e os demais magistrados, mantendo vivos os princpios que esto na origem da cidade. O que legitimava essa funo era o fato dos sena-dores continuarem a fundao romana por meio de sua ascendncia. Com efeito, eles eram os descendentes dos pais fundadores de Roma. Mas essa continuidade material requeria uma contrapartida cultural: esse era precisamente o papel da tradio. Ora, entre os americanos a situao era completamente diferente. Uma vez desfeita a trade que atava a autoridade religio e tradio, no era mais possvel conectar-se ao momento da fundao por meio dos representantes dos majores. O expediente aplicado pelos americanos consistiu em deslocar a autori-dade para a prpria Constituio, tomada em seu duplo sentido, isto , de ato de formao de um corpo poltico antecedente a todo governo (Paine) e o resultado desse ato, a Constituio como documento escrito (Arendt, 1990, p. 203). Quem ficar encarregado de interpretar a Constituio ser a sede da autoridade na nova repblica, vale dizer, a da Suprema Corte, cuja funo no legislativa, mas judi-ciria. O importante a observar que a autoridade passa a ser referida no mais a um momento mtico, mas a um evento perfeitamente identificvel no tempo e que deixou um resto material, mundano que deve preservar o esprito revolucionrio que animou o ato de fundao. A clara conscincia de que a fonte da autoridade se encontra neste ato fundador elimina por completo a busca ftil por um absoluto e quebra o crculo vicioso no qual os comeos so inevitavelmente capturados (Arendt, 1990, p. 204, 212). Sobre isso gostaria de fazer uma observao com o intuito de retornar ao problema da secularizao.

    V

    A observao concerne ao tempo da fundao. Se o ato pode ser datado, o tempo escapa determinao cronolgica. Para Arendt, o tempo da revoluo institui um hiatus no contnuo da histria, um tempo do instante entre o fim e o comeo, entre o no mais e o ainda no (Drucker, 2001, p. 196-214). Esse momento inapreensvel foi objeto, ao longo dos sculos, de especulaes e serviu de matria-prima para a mitologia poltica. Contudo, na modernidade, isto , aps a secula-rizao, este ato apareceu pela primeira vez como uma realidade atual (Arendt, 1990, p. 205). Esta declarao est muito bem coadunada com aquela formulada um pouco antes no livro:

    A fundao que agora, pela primeira vez, ocorrera em plena luz do dia, para ser tes-temunhada por todos os que estavam presentes, tinha sido, por milhares de anos, o objeto de lendas de fundao nas quais a imaginao tentava recuar a um passado e a um acontecimento que a memria no podia alcanar (Arendt, 1990, p. 204).

    O tempo da fundao no mais o tempo mtico, mas aquele entre o passado e o futuro em que se abre a possibilidade para uma ao inovadora, da mesma forma

    23 Embora se estendesse a outros domnios, como o direito, a religio e a famlia. A respeito, ver DAllonnes (2006, p. 25-28).

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    que, no domnio da reflexo, o pensamento se aloja nesse hiato. Que esta criao do novo esteja ancorada na natalidade, que ela seja tambm a possibilidade para o exerccio da liberdade, parece-me fora de dvida. Entretanto, o que me interessa reter o fato de Arendt insistir em afirmar que a modernidade a nica poca em que a liberdade ganha plena visibilidade24, o que se aplica perfeitamente sua prpria compreenso da revoluo como o fenmeno poltico no qual possvel liberdade desdobrar seus encantos e se tornar uma realidade visvel, tangvel (Arendt, 1990, p. 33).

    Espero no estar forando por demais a leitura do texto de Arendt ao sugerir ento que ela entende a secularizao como a estrutura da modernidade na qual ganha plena visibilidade a capacidade humana de agir. No final das contas, no isso que acontece quando a autoridade religiosa deixou de lanar sua luz sobre o domnio poltico, o qual teve de se iluminar com seu brilho prprio? Alm disso, de modo mais geral, a visibilidade associada secularizao poderia ser compreendida no mbito da crtica arendtiana metafsica, visto que se trata precisamente de reabilitar a confiana nos sentidos e na capacidade do ser humano de participar com seus semelhantes, atravs da ao e do discurso, na construo da realidade. Em outras palavras: trata-se de refazer o lao entre verdade e mundo, rompido desde Parmnides, quem, antes mesmo de Plato, havia estabelecido como tarefa primeira para o filsofo o noein, isto , o ver com a mente aquilo que invisvel para os sentidos, uma viso que requer voltar as costas ao mundo dos sentidos e das aparncias para se tornar consciente daquela ausncia que somente a mente pode perceber. Porque se permanecer ligado ao mundo dos sentidos e dos homens pode [o filsofo] ver homens e fatos justos, mas no a justia, homens felizes, mas no a felicidade (Arendt, 1969, folha 024427; ver tambm Forti, 2006, p. 108-110). Com a secularizao, possvel restituir visibilidade sua dignidade ontolgica, assim como destruir as abstraes metafsicas que sacrificavam o singular em nome do universal e negavam o valor do mundo partilhado em favor da solido da contemplao.

    H ainda outra observao que gostaria de fazer referente ao tempo da fun-dao. A impossibilidade de captur-lo deve ser associada, por um lado, natureza do poder, que, como Arendt afirma diversas vezes, no uma realidade material, no uma essncia, no uma substncia e se desfaz to logo os homens aban-donam a companhia de seus semelhantes. Tendo isso em mente, o poder uma capacidade mais ligada partilha de um espao25, enquanto a autoridade concerne mais propriamente durao, ao tempo (DAllonnes, 2006). A autoridade liga ao passado; imprescindvel para a permanncia do espao pblico, conservando-o, portanto, para o futuro; confere estabilidade no presente. Ela pode cumprir esta funo, como j vimos, na medida em que est referida ao princpio, noo qual gostaria de retornar.

    Arendt reconhece dois sentidos para esse termo. Em primeiro lugar, trata-se do ato de fundao no qual ativada a capacidade humana de comear, idntica ao exerccio da liberdade. A Constituio, como fonte da autoridade em uma re-pblica, cumpre a funo de lembrar os cidados desta ao primeira (o princpio como beginning), fundadora, com a qual veio existncia o corpo poltico. Em

    24 Uma viso de modernidade, portanto, distinta daquela presente em A condio humana, obra na qual a secularizao estava associada alienao do mundo. Neste contexto, Arendt podia afirmar que qualquer que seja o sentido atribudo palavra secular no uso corrente, ela no pode, historicamente, ser equacionada com mundaneidade; pelo menos, o homem moderno no ganhou este mundo ao perder o outro, e ele tambm no ganhou a vida, estritamente falando (Arendt, 1958, p. 320). 25 Arendt no descreve, frequentemente, o poder por meio de metforas espaciais, a rede ou teia (web) de relacionamentos, o espao pblico, a plis, a gora, a civitas?

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    Uma repblica para os modernos. Arendt, a secularizao e o republicanismo

    segundo lugar, o princpio tambm principle26, isto , um elemento de natureza normativa que orienta e inspira as aes. Nesse caso, a Constituio pode ser justamente compreendida como a cristalizao, no tempo, do esprito que anima a ao revolucionria. Mas Arendt est ciente de que tal cristalizao, sob pena de produzir o efeito contrrio a que destinada, deve ser acompanhada de uma mobilizao poltica, isto , de uma instituio que, a exemplo do sistema distrital de Jefferson, promova a participao dos cidados nos afazeres polticos. No apenas isso. A Constituio, se quiser manter-se fiel a si mesma, ao princpio que a engendra, deve ser capaz de contemplar sua prpria deposio. O captulo final de Sobre a revoluo explicita esse paradoxo: a nica maneira de uma Constituio no trair a si prpria abrir, em seu interior, a possibilidade de sua destituio, uma vez que esse mecanismo assegura s geraes futuras a possibilidade de exercer novamente aquelas atividades que por si mesmas constituram o espao de liberdade (Arendt, 1990, p. 235). Em outras palavras, o ordinrio deve inte-grar a possibilidade de emergncia do extraordinrio, como diz Andreas Kalyvas (2006, p. 187-291).

    Como meu objetivo no explorar todas as dimenses da reflexo arendtiana acerca da Constituio, volto a chamar a ateno para sua dupla dimenso (fun-dadora e normativa). Por essa via, ela se firma como um dispositivo poltico inse-parvel da fundao da repblica moderna. A repblica, portanto, corresponde ao espao poltico adequado para que o princpio (beginning) e os princpios polticos (principles) possam ganhar visibilidade. nesse sentido, a meu ver, que devemos entender a frase de Arendt referente visibilidade da liberdade nas revolues modernas. Sem o aparato institucional, sem sua objetividade e mundaneidade, o espao do poder se esvaece sem qualquer garantia de ressurgimento, mergulhando na invisibilidade a que est destinado tudo aquilo que resulta da ao. A repblica , assim, a resposta de Arendt ao desafio poltico lanado pela secularizao27.

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    26 Mais uma vez, Montesquieu o autor fundamental para Arendt, uma vez que, recorrendo sua obra, ela articula os principais pontos de sua reflexo poltica: o conceito de lei, a teoria da separao dos poderes (o poder gera poder), os princpios para a ao poltica (a normatividade que ela comporta).27 Uma resposta, importante observar, tambm espcie de secularizao levada a cabo pelo totalitarismo, onde a perda dos absolutos d origem certeza de que tudo possvel. Convm lembrar que, no texto de 1953 (Religio e poltica), a secularizao era examinada sob o ponto de vista dos efeitos causados na esfera poltica pela perda do controle religioso assegurado pelo medo do inferno. O que Arendt havia explorado nessa ocasio como a autoridade poltica, em uma poca secular, pde instrumentalizar a doutrina metafsica da condenao da alma ao inferno para fins de controle e obedincia. O totalitarismo, na perspectiva de Arendt, tornou evidente a impossibilidade de doutrinas dessa natureza se firmarem na modernidade como dispositivos normativos polticos e morais (ver o estudo de Vaz, 2009, p. 67-91). A convico, alis, de que o medo do inferno teria impedido o totalitarismo acompanha Arendt at o fim da vida, como podemos ver em suas respostas no debate de 1972 em torno de sua obra (Arendt, 1979, p. 313-4).

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    Submitted on June 22, 2011Accepted on March 5, 2012