alcances e limitações dos instrumentos urbanísticos - joão sette whitaker
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7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker
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cidades para que(m)?
POLTICA, URBANISMO E HABITAO
textos acadmicos
Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos na
construo de cidades democrticas e socialmente justas
December 23, 2003/Joo Sette Whitaker
Antecedentes histricos da desigualdade urbana
bastante comum pensarmos que a dramtica situao em
que esto as cidades brasileiras uma decorrncia natural do
fato de o pas ter hoje cerca de 80% de sua populao morando
nas cidades. como se o caos urbano, as favelas, o transporte
precrio, a falta de saneamento, a violncia, fossem
caractersticas intrnsecas s cidades grandes, justificando a
enorme dificuldade do Poder Pblico em resolver esses problemase gerir a dinmica de produo urbana.
Essa , entretanto, uma viso equivocada. Ao contrrio dos
pases industrializados, o grave desequilbrio
social que assola as cidades brasileiras
assim como outras metrpoles da periferia do capitalismo
mundial so resultantes no da natureza da aglomerao urbana
por si s, mas sim da nossa condio de subdesenvolvimento. Em
outras palavras, as cidades brasileiras refletem, espacial
mente e territorialmente, os graves desajustes histricos e
estruturais da nossa sociedade. Como muitos autores j
ressaltaram, o fenmeno de urbanizao desigual observado em
grande parte dos pases subdesenvolvidos se deve matriz de
industrializao tardia da periferia.
De fato, a atratividade exercida pelos plos industriais sobre a
massa de mo-de-obra disponvel no campo provocou [1], a partir
da dcada de 60, a exploso de grandes plos
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urbanos no Terceiro- Mundo. Entretanto,
esse crescimento industrial -- baseado na aliana dos
interesses das burguesias nacionais e do capital internacional -
- tinha como condio a manuteno do baixo valor da mo-de-obra
abundante, o que restringia por
princpio a possibilidade de se oferecer habitaes, infra-
estrutura e equipamentos
urbanos que garantissem qualidade de vida aos trabalhador
es. A cidade industrial perifrica surge, desde ento,
promovendo estruturalmente a desigualdade social. Ao contrrio
do Estado keynesiano que se consolidou na Europa do Ps-Guerra,
em que o crescimento do capitalismo fordista implicava um
aumento generalizado dos nveis de vida e de consumo dos
trabalhadores gerando habitaes e salrios dignos , at para
garantir a completude do ciclo produo-consumo , aqui a
associao das burguesias
nacionais com os interesses do capitalismo internacional
construiu um capitalismo
canhestro, voltado exportao e explorador da massa de
mo-de-obra disponvel, processo que Florestan Fernandes e
outros pensadores chamaram de desenvolvimento desigual
em relao ao desenvolvimento do capitalismo hegemnico
dos pases industrializados e combinado pois dispunha
novas estruturas econmicas industriais trazidas do centro sobre
estruturas internas arcaicas herdadas do Brasil colonial.
Pois esse processo de industrializao, que gerou o que Maricato
(1996 e 2000) chamou de urbanizao com baixos salrios,
estabeleceu-se por sobre uma estrutura social que nunca havia
resolvido as contradies oriundas da sociedade colonial. Um
sculo antes, no mbito do trabalho, a substituio dos escravos
por trabalhadores livres implicou na instaurao de um sistema
marcado pela dominao pessoal e a troca de favores, e no na
generalizao do trabalho assalariado nos moldes do capitalismo
central. Em relao
posse da terra, com o fim do trfico negreiro em 1850
a Lei de Terras institui a propriedade das terras devolutas
apenas mediante compra e venda, dando-lhes um valor que no
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tinham at ento, e afastando a possibilidade de tornar
proprietrios de terra imigrantes e escravos.
Essa foi a base arcaica sobre a qual se assentou, cem anos
depois, a industrializao brasileira. Um novo modelo de
produo, segundo Francisco de Oliveira simultaneamente
industrial e urbano, que aprofundava a diviso social do
trabalho herdada do modelo agro- exportador anterior. Com o
forte crescimento industrial, ao qual no correspondia um
desenvolvimento urbano socialmente digno, estava coloc
ada a situao para o surgimento de uma dinmica urbana
conflituosa, parametrizada pela luta de classe.
Ermnia Maricato (1996) j mostrou como, nesse contexto,enquanto as periferias urbanas expandiam seus limites -- sempre
desprovidas dos servios urbanos essenciais -- para receber o
enorme contingente populacional de migrantes rurais ao longo dos
anos 60 e 70, o mercado formal urbano se restringia a uma
parcela das cidades que atendia as classes mais favorecidas,
deixando em seu interior grande quantidade de terrenos vazios,
na especulao por uma futura valorizao imobiliri
a. Paradoxalmente, esse espraiamento perifrico da cidadeindustrial brasileira se dava pela ao deliberada do Estado,
que estimulava em especial no perodo militar solues
habitacionais de baixo custo nas periferias, por serem adequadas
ao modelo do capitalismo brasileiro, mantendo baixos os valores
de reproduo da fora de trabalho.
Como resultado desse processo historicamente excludente o
quadro atual visto nas grandes metrpoles brasileiras
invariavelmente de absoluta pobreza, corroborando um quadro
generalizado pelo continente [2]. Nessas cidades, estima-se que
cerca de 50% da populao, em mdia, se encontre na
informalidade [3]. Os moradores de favelas so cerca de 20% da
populao de So Paulo, assim como de Porto Alegre, Belo
Horizonte ou do Rio de Janeiro, chegando a 46% em Recife (Bueno,
apud Clichevsky, 2000).
Alm disso, o atual quadro urbano continua mostrando um
exagerado ritmo de
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crescimento das periferias pobres em relao aos c
entros urbanizados, que paradoxalmente esto geralmente
esvaziando-se. Enquanto a taxa mdia de crescimento anual das
cidades brasileiras de 1,93%, o crescimento na periferia de
So Paulo, por exemplo, chega em algumas regies a taxas
superiores a 6% ao ano. Em compensao, o centro da cidade
apresenta taxas de crescimento negativo, em torno de 1,2%.
Entretanto, as polticas pblicas, na maioria das cidades do
pas, continuam a favorecer em seus investimentos urbanos apenas
as regies mais favorecidas. Flvio Villaa (2000) mostrou como,
na maior parte das capitais do pas, verifica-se recorrentemente
um eixo de desenvolvimento produzido pelas elites em seus
deslocamentos em busca das reas mais privilegiadas para se
viver. Em uma clara inverso de prioridades, os governos
municipais investem quase que exclusivamente nessas pores
privilegiadas da cidade, em detrimento das demandas urgentes da
periferia. Em pesquisa recente (Ferreira, 2003), mostramos como,
em So Paulo, foram investidos em apenas trs anos, entre 1993 e
1995, cerca de R$ 4 bilhes [4] de dinheiro pblico em apenas 6
grandes obras virias, destinadas geralmente ao trfego de
veculos individuais, em um quadrante de cerca de 50 km,
justamente aquele em que se concentram os investimentos
imobilirios de elite.
Nas grandes cidades, sob a frgil justificativa de se c
riar centralidades tercirias conectadas economia global
[5], estabelecem-se ilhas de primeiro-mundo em meio ao
mar de pobreza e excluso, sofisticados centros de negc
ios que exacerbam a segregao social urbana e se apropriam
de grande parte dos investimentos pblicos.
Tal cenrio evidencia a necessidade premente de se reverter um
quadro de excluso e segregao scio-espacial que apenas
reflete espacialmente a inquietante fratura social do pas.
Nesse sentido, o papel do Poder Pblico, em especial dos
executivos municipais, torna-se fundamental na medida em que
consiga romper com sua histrica tendncia a
favorecer apenas os interesses dominantes. Os Planos Dire
tores e os instrumentos
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urbansticos do Estatuto da Cidade podem vir a ser ferr
amentas importantes nesse processo, embora no sejam por si s
garantia de mudanas. Antes de discut-los, porm, importante
entender a dinmica pela qual se consolidam no pas esses
instrumentos, sem o que a compreenso de seu papel ficaria
prejudicada.
O papel dos movimentos populares na reforma urbana
Face ao inquietante quadro exposto at aqui, fcil entender
que as desigualdades
geradas pelo processo de industrializao e de urbaniza
o geraram rapidamente insatisfaes sociais significativas. J
em 1963, o Seminrio Nacional de Habitao eReforma Urbanatentou refletir parmetros para balizar o crescimento das
cidades que comeava a se delinear. A ditadura militar desmontou
a mobilizao da sociedade civil em
torno das grandes reformas
sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um
planejamento urbano centralizador e tecnocrtico. No campo da
habitao, embora o regime tenha produzido, atravs do SFH/BNH,
mais de 4 milhes de moradias, o recorte capitalista dessaproduo tambm marcada pelo clientelismo e a troca de favores
visava mais resultados quantitativos que rendessem frutos
polticos do que qualitativos, e era voltado ao esforo do
milagre econmico, favorecendo as grandes empreiteiras. Pelo
custo que estas conseguiam praticar, as polticas habitacionais
no conseguiram atingir a
populao mais pobre, abaixo de 5 SM, que ia aumentando
cada vez mais, em decorrncia de um modelo econmico deintensa concentrao da renda. Isso aprofundou cada vez mais o
fosso entre o mercado imobilirio legal e os que no tinham
acesso a ele.
Nos anos 70, os excludos do milagre brasileiro comeam a
mobilizar-se em torno da
questo urbana, reivindicando a regularizao dos lo
teamentos clandestinos, a construo de equipamentos de
educao e sade, a implantao de infra-estrutura nas
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favelas, etc. Uma primeira vitria ocorre em 1979, com
a aprovao da Lei 6766, regulando o parcelamento do solo e
criminalizando o loteador irregular. Na Constituinte de 1988,
130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de
Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguem
inserir na Constituio os artigos 181 e 182, que introduzem o
princpio da funo social da propriedade urbana. Porm, a
regulamentao desses artigos s viria a ocorrer 11 anos depois,
com a aprovao definitiva do captulo da reforma urbana da
nossa constituio, em uma tramitao que contou com a presso
constante do Frum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou
com a aprovao do Estatuto da Cidade.
O que so instrumentos urbansticos?
Para se entender a funo dos instrumentos urbansticos, que
iremos tratar neste texto,
preciso voltar um pouco questo da formao do estado
keynesiano das sociais- democracias europias do ps-guerra.
Os esforos para a construo de uma sociedade industria
l que promovesse certa distribuio das riquezas para o
conjunto dos trabalhadores para garantir um patamar aquisitivo
compatvel com a necessidade do prprio sistema em gerar consumo
deu ao Estado keynesiano um papel central na mediao entre os
interesses do capital e do trabalho, garantindo direitos
fundamentais e universais como o acesso educao,
sade, e a garantia dos direitos trabalhistas. Esse pape
l do Estado se reproduzia naturalmente no mbito
habitacional e urbano, visando garantir o direito moradia ao
conjunto da populao [6]
e controlando as aes do capital imobilirio, por natur
eza especulativo e privatista [7].
Nesse sentido, fortaleceu-se desde ento na Europa, e
posteriormente tambm at na Amrica do Norte, uma tradio
intervencionista do Estado na regulamentao e no
controle do desenvolvimento urbano, para garantir uma mn
ima variedade social na
produo urbana, buscando prover habitao de interesse s
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ocial integrada malha urbana, para proteger antigos
moradores mais pobres dos processos decorrentes da valorizao
imobiliria, que os expulsam e substituem por moradores de maior
renda (a chamada gentrificao), para permitir a preservao dos
espaos pblicos como espaos de uso democrtico, protegendo-
os da ao invasiva da iniciativa privada, e para
promover usos habitacionais sociais no mercado imobilirio
privado atravs de aes de induo e incentivo. Vale notar que
essa tradio no conseguiu impedir, nem naqueles pases,
processos marcantes de excluso social e de gentrificao,
capitaneados pelas foras do mercado. Mas o que se pretende
discutir aqui que, de maneira geral, e apesar dos percalos,
h hoje uma certa cultura poltica naqueles pases de respeito
ao papel importante do Estado no controle urbano.
Para dar ao Estado a capacidade de exercer tal funo, uma
variedade de instrumentos jurdicos e financeiros foram criados.
Por um lado, deu-se ao Estado um poder regulador significativo
sobre o uso e a ocupao do solo, estabelecendo-se restries de
uso,
parmetros de adensamento, limites verticalizao, taxas
de ocupao, punies efetivas para o descumprimento das
leis urbansticas, etc. Por outro lado, criou-se uma estrutura
financeira evidentemente apoiada na incomparvel
disponibilidade de recursos que aqueles pases dispunham e
dispem e uma gama de isenes para incentivar, atravs de
linhas de crdito e renncias tributrias especficas,
determinadas aes dos agentes privados, como por exemplo a
recuperao e manuteno de edifcios antigos nas reas
centrais, sua reconverso para locao social privada, ou ainda
a fixao da populao mais pobre em seus locais de residncia,
graas a auxlios financeiros diretos. Entre os incontveis
instrumentos urbansticos, poderamos citar, por exemplo, as
Znes dAmnagement Concert (ZAC) francesas, depois recuperadas
e distorcidas no Brasil, espcies de intervenes do Estado
sobre a propriedade fundiria, a partir das quais o
Poder Pblico define novos usos e promove a construo
e urbanizao de reas urbanas degradadas segundo novas
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diretrizes, vendendo-as em seguida para promover sua
requalificao. H tambm naquele pas a experincia antiga, da
dcada de 70, da outorga onerosa, l chamada de Plafond Legal
de Densit, tambm experimentada nos EUA na mesma poca, e que
estabelece a cobrana pelo direito de construir acima dos
limites determinados pelo Poder Pblico para determinada rea da
cidade.
Alm dos instrumentos de urbanizao e de regulao do uso e
ocupao, como os dois acima citados, h tambm instrumentos de
carter tributrio e financeiro. Continuando
com os exemplos franceses, h por exemplo naquele pas
uma linha de crdito extremamente vantajosa, oferecida pelo
banco pblico de fomento habitacional, para proprietrios que
queiram renovar para fins habitacionais edifcios degradados em
reas centrais e aceitem alugar parte dos apartamentos, por
determinado tempo, por preos tabelados pelo governo e
considerados "sociais". Outra ao muito comum a iseno de
impostos municipais para incentivar determinadas reformas ou
usos que interessem ao Poder Pblico. Mas sem dvida nenhuma, a
Lei da solidariedade urbana, aprovada na Frana em 2000, o
exemplo mais significativo de at onde o Poder Pblico pode ir
no controle da produo do espao urbano: por essa lei, todo
municpio francs deve garantir que no mnimo 20% de seu estoque
de habitaes tanto pblicas como privadas seja de interesse
social, sem o que o municpio se v obrigado a pagar
significativa multa ao Ministrio da Habitao.
Os chamados instrumentos urbansticos criados na
Europa do Ps-Guerra visavam portanto garantir ao Estadoferramentas jurdico-institucionais que lhe permitissem exercer
um controle efetivo sobre as dinmicas de produo e uso do
espao urbano, buscando
promover o interesse pblico acima do privado, e tentand
o mediar os conflitos naturalmente decorrentes dessas
dinmicas.
Pois bem, nessa mesma lgica que, no Brasil, os defensores da
Reforma Urbana se mobilizaram para garantir a aprovao, na
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Constituio e posteriormente no Estatuto da Cidade, de
instrumentos que permitissem dar s prefeituras um instrumental
para exercer algum controle sobre as dinmicas de produo da
cidade. Esse o princpio, em suma, dos chamados instrumentos
urbansticos apresentados no Estatuto da Cidade.
Note-
se, entretanto, a profunda diferena estrutural entre as
realidades dos pases industrializados e a brasileira, j
tratada no incio deste texto. Enquanto l os instrumentos
urbansticos surgem no ps-
guerra, concomitantemente estruturao do Estado do bem-
estar social, como ferramentas necessrias para que o Poder
Pblico possa desde o incio, no mbito urbanstico, promover
esse modelo poltico-econmico e social e mediar
os interesses do capital face ao bem pblico urbano, no
Brasil os instrumentos urbansticos surgem como uma
tentativa de reao face a um modelo de sociedade e de
cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente
desigual, o que muda
completamente seu potencial e seu possvel alcance. Aqui,
trata-se de reverter a posteriori um processo histrico-
estrutural de segregao espacial, o que significaria, em
essncia, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilgios
urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua
hegemnica atuao histrica de 500 anos. No se trata, pois, de
tarefa simples. E desde j percebe-se que tais instrumentos s
podero ter alguma eficcia se houver, ao mesmo tempo em que so
criados, uma vontade poltica muito determinada no sentido de
promover a reverso do quadro de desigualdade urbana em que
vivemos, enfrentando portanto os poderosos interesses que
hegemonizam hoje a produo do espao urbano. Sem essa vontade
poltica, que implica em polticas de
governo claramente dispostas a enfrentar os privilgios d
as classes dominantes, os instrumentos urbansticos podem
servir apenas como uma maquiagem demaggica sem muito poder para
mudar o quadro urbano brasileiro. Vale notar que a briga
longa, e at agora, tem sido difcil.
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O Plano Diretor como um pacto social
justamente nesse sentido, o de garantir a execuo de uma
vontade poltica coletiva de recuperao democrtica das
cidades, que os Planos Diretores, embora fragilizados por
dcadas de burocratismo e ineficcia, podem passar a ter um
papel importante, ao abrir novas possibilidades, graas ao
Estatuto da Cidade, de dinmicas participativas que aumentem
o controle social sobre os processos de produo da cidade.
Como se sabe, a Constituio de 1988 obrigou todo municpio com
mais de 20.000 habitantes a ter um plano diretor. Embora fosse
um instrumento urbanstico antigo, tal fato o reinseriu na
agenda poltica urbana, ainda mais quando o Estatuto da Cidade,aprovado em 2001, determinou que as cidades que ainda no tm
plano o produzam em 5 anos.
Alm disso, o Estatuto d uma importncia significativa
aos Planos Diretores, ao determinar que seja neles que se
faa a regulamentao dos instrumentos urbansticos propostos.
Esse fato tem conseqncias positivas e negativas. Positivas
porque joga para a esfera municipal a mediao do conflito entre
o direito privado e o interesse pblico, eisso bom pois permite as necessrias diferenciaes en
tre realidade municipais completamente diversas no pas. Alm
disso, garante que a discusso da questo urbana no nvel
municipal torne-se mais prxima do cidado, podendo ser mais
eficientemente
participativa. Porm, o aspecto negativo que, ao jogar
a regulamentao dos instrumentos para uma negociao
posterior no mbito dos Planos Diretores, estabelece- se umanova disputa essencialmente poltica no nvel municipal, e
conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser
mais ou menos efetivados. Em alguns casos, at, j ocorreu que o
prprio texto do Plano Diretor, ao propor os novos instrumentos
do
Estatuto, relegue sua regulamentao local para mais uma
etapa ainda ulterior, estendendo alm do razovel seu prazo
de efetivao.
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O plano diretor um conjunto de diretrizes urbansticas
destinadas a organizar e induzir formas desejveis do ponto de
vista do Poder Pblico, diga-se de ocupao e uso do solo.
Define as polticas pblicas urbanas, como os transportes, o
zoneamento, a proviso de habitaes de interesse social, etc.
Aparentemente, sua obrigatoriedade foi um avano
na direo de cidades mais democrticas e justas. Mas, como
qualquer instrumento de poltica pblica, o plano diretor pode
ter inmeras feies. Por exemplo, como j mostrou
Villaa (1999) ele vem sendo usado h tempos nas grande
s cidades como um instrumento dos interesses das classes
dominantes, com pouca efetividade na soluo
dos problemas reais das reas perifricas. Nesse sentido,
no h dvidas que os instrumentos propostos no Estatuto
da Cidade do um novo flego aos Planos Diretores, conforme
veremos adiante.
A tradio urbanstica brasileira, como visto calcada em um
Estado estruturado para ratificar a hegemonia das classes
dominantes, sempre tratou os planos diretores por um vis
tecnicista que os tornavam hermticos compreenso do cidadocomum, mas eficientes em seu objetivo poltico de engessar as
cidades nos moldes que interessavam
s elites, muito embora grande nmero de urbanistas tenham se
esforado, na dcada de
70 e apesar do regime vigente, em torn-los
mais eficientes. Mas por exemplo nas
grandes capitais, infelizmente marcaram histria os
calhamaos tcnicos nada
democrticos, que serviram mais para fins eleitorais, par
a estabelecer uma rgida regulamentao nos bairros ricos, ou
ainda para priorizar a construo de mais e mais
avenidas (em detrimento dos transportes pblicos), enchend
o os bolsos de polticos inescrupulosos e dos especuladores
imobilirios. Em compensao, os Planos Diretores pouco fizeram
para a enorme parte da populao excluda da chamada cidade
formal. Na prtica, os planos se distanciaram da realidade
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urbana perifrica, e no impediram a fragmentao das polticas
pblicas urbanas. por isso, alis, que hoje vm sendo
pesquisadas novas metodologias de planejamento, mais
prximas da realidade e da gesto locais, mais abertas
participao dos agentes sociais dos bairros, e promotoras
de uma reintegrao transversal das polticas setoriais,
como os Planos de Ao
Habitacionais e Urbanos propostos recentemente pelo Labora
trio de Habitao e Assentamentos Humanos (LabHab) da
FAUUSP.
Mas isso no impede, obviamente, que hoje os planos dir
etores possam ser um instrumento eficaz para inverter a
injusta lgica das nossas cidades, em especial nas cidades de
mdio porte, ainda no to atingidas pela fratura social urbana.
Mas, para isso, no devem ser um ementrio de tecnicismos, mas
um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento,
reconhecendo e incorporando em sua elaborao todas as
disputas e conflitos que nela existem. S
assim, surgido de um amplo e demorado processo
participativo, que no fique sujeito apressada agenda
poltico-eleitoral dos governantes de turno (em que a
"governabilidade" e a busca pela reeleio passam por cima dos
fins pblicos que se deseja das polticas pblicas), o Plano
Diretor pode se tornar um ponto de partida institucional para
que se expressem todas as foras que efetivamente constroem a
cidade. Se toda a populao inclusive as classes menos
favorecidas apreender o significado transformador do plano,
cobrar sua aprovao e fiscalizar sua aplicao,
transformando-o em uma oportunidade para conhecer melhor seu
territrio e disputar legitimamente seus espaos.
Entretanto, a gesto participativa no pode se ater apenas ao
aumento das audincias pblicas ou dos fruns de discusso com
os diferentes setores da sociedade civil. Hoje a
"participao", mesmo em governos de esquerda, se d com
hora marcada, em audincias j pautadas, sobre assuntos pr-
estabelecidos. Como bem lembra o urbanista Flvio Villaa, de
se perguntar porque o tema da "participao" geralmente s se
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aplica a certos assuntos de governo, e no a todos. No Brasil,
os fruns participativos ainda se
limitam ao Oramento Participativo, ou a Planos Diretores
que nem sempre sero efetivados. Porque, por exemplo, no
h mecanismos de participao nas decises de investimentos das
empresas de saneamento, ou nas de metr? A participao deveria
incorporar de forma estrutural e definitiva a presena decisria
da populao em todas as estruturas de gesto da mquina
administrativa, da escala local escala mais geral. Nesse
sentido, o processo de discusso das Conferncias das Cidades,
implementado este ano pelo Ministrio das Cidades, uma
excelente iniciativa, ainda mais considerando tratar-
se de um processo que abarca todo o pas. Tambm so
fundamentais, por exemplo, os conselhos participativos de
habitao e de poltica urbana, implantados em
vrias cidades do pas, em decorrncia da exigncia de
processos de gesto participativos colocada pelo Estatuto da
Cidade, desde que seja dada a eles uma funo
efetivamente decisria e no apenas figurativa. Porm,
certo que o grau de participao, sobretudo com algum poder
de deciso, deve ir ainda muito mais longe para comear a ser
eficaz em seu papel politizante e pedaggico, e como um
instrumento de democratizao da gesto pblica.
Infelizmente, ainda hoje planos diretores
continuam resultando muitas vezes de uma
apressada montagem em gabinetes, visando apenas transform
-los, o mais rpido possvel, em fatos polticos. Nas
pequenas e mdias cidades brasileiras, entretanto, a
perspectiva mais animadora, pois a mobilizao da popu
lao para um processo participativo mais simples, e por
isso planos diretores democrticos podem ter enorme efeito. Mais
uma vez, foi fundamental a cultura de mobilizao e o processo
de discusso participativa alavancados pelas Conferncias das
Cidades organizadas pelo Ministrio das Cidades. A tomada de
conscincia coletiva sobre os desafios da questo urbana que as
conferncias promoveram ajudar a romper o verdadeiro mercado
de planos criado por urbanistas interessados em vender s
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prefeituras pacotes tcnicos que nem se preocupam em assimilar
as disputas sociais existentes, e cria um cenrio positivo para
a discusso participativa do Plano Diretor e dos instrumentos do
Estatuto.
Mas o que os Planos Diretores tm exatamente a ver com os
instrumentos urbansticos de que trataremos aqui? Como vimos,
eles so fundamentais pois neles que, segundo o Estatuto da
Cidade, esses instrumentos devem ser propostos e regulamentados
no nvel municipal. Nesse sentido, fica absolutamente claro que,
por princpio, os instrumentos urbansticos propostos no
Estatuto da Cidade nem esto desde j garantidos e nem so
automaticamente eficazes. Tudo depende, na verdade, da fo
rma como eles sero includos e detalhados nos Planos
Diretores.
Os Instrumentos Tributrios e de Induo do Desenvol
vimento: Direito de
Preempo, Direito de Superfcie, Urbanizao Compulsr
ia, IPTU Progressivo, Outorga Onerosa do Direito de Construir,
Operaes Urbanas Consorciadas.
Temos ento que os instrumentos tributrios e de induo do
desenvolvimento urbano tentam estabelecer, no cenrio
brasileiro, uma perspectiva de uma nova presena do Estado na
regulamentao, induo e controle dos processos de produo da
cidade. Cabe obviamente ressaltar que sua eficcia ainda
incerta, embora as previses sejam otimistas, em especial a
mdio e longo prazos. Entretanto, vale sempre repetir que seu
sucesso do ponto de vista do bem pblico e da reverso das
desigualdades urbanas depender sempre de uma forte e
determinada vontade poltica, j que os objetivos a atingir se
confrontam com interesses poderosos.
importante separar aqui o que se
chamou de instrumentos "tributrios" daqueles
considerados de "induo ao desenvolvimento urbano". Aquel
es citados no subttulo acima esto apenas na segunda
categoria (inclusive o IPTU progressivo), embora todos
eles possam at eventualmente servir para arrecadao, o
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que as vezes at acaba
desvirtuando seu sentido, como veremos adiante. Os instru
mentos de induo do desenvolvimento urbano visam, em
essncia, refrear o processo especulativo e regular o preo da
terra, ao forar o exerccio da funo social da propriedade
urbana punindo o "mau proprietrio", buscam permitir um maior
controle do Estado sobre usos e ocupaes do solo urbano, em
especial em reas que demandem uma maior democratizao.
Imveis situados na chamada cidade formal geralmente se
beneficiam de infra-estrutura urbana (esgoto, gua, luz,
asfalto, etc.) custeada pelo poder pblico e, portanto, por toda
a sociedade. Mant-los vazios representa um alto custo social.
Exercer a funo social da propriedade no nada alm de dar-
lhes uso. Nos centros das nossas metrpoles, por
exemplo, o descompasso entre os proprietrios, que
mantm um mercado
sobrevalorizado irreal (edifcios ficam desocupados por an
os, sem ter quem queira compr-los ou alug-los), e a
demanda generalizada por habitao pelas faixas de renda mais
pobres tanto moradoras dos centros, geralmente em cortios,
quanto das periferias que no tm como acessar essa oferta,
gera uma situao inaceitvel. Nesses casos, os instrumentos
tributrios e de induo do desenvolvimento urbano podem ter um
papel importante, ao dar ao Poder Pblico ferramentas que lhe
possibilitem regular e controlar os terrenos vazios, os negcios
imobilirios de compra-e-venda, e assim por diante.
Como j existe farto material terico
apresentando exaustivas discusses tcnicas a respeito decada um desses instrumentos [8], iremos fazer a seguir uma
reflexo sobre eles a partir da tica discutida neste artigo at
aqui.
Instrumentos tributrios e de financiamento
Vale mencionar que trata-se aqui de instrumentos que no esto
geralmente previstos no Estatuto da Cidade, mas que os Planos
Diretores certamente devem considerar, fazendo uso de
inventividade e inovao.
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O IPTU, por exemplo, importante instrumento de arrecadao, e
que deve ser um tributo progressivo (neste caso, que no o da
progressividade no tempo, significa que os mais ricos pagam mais
e os mais pobres pagam menos ou nada), ainda pouco cobrado nas
cidades brasileiras, at mesmo porque ainda preocupante a
falta de sistemas cadastrais municipais integrados, que dem s
prefeituras uma melhor capacidade de controle, de gesto e de
arrecadao.
Mas inmeros outros benefcios fiscais e financeiros podem ser
pensados e aplicados para fomentar determinadas diretrizes
urbanas. Isenes tributrias podem ser usadas para incentivar
reformas e/ou novos usos, e linhas de financiamento podem ser
pensadas,
por exemplo para reabilitao de imveis em rea central
, para auxlio-moradia populao ameaada de expulso por
causa da valorizao fundiria/imobiliria, e assim por diante,
para incentivar o aluguel de baixo custo no mercado privado, e
assim por diante. Um instrumento interessante, que recentemente
tornou-se lei em So Paulo, est na compra pela prefeitura de
imveis devedores de IPTU com desconto do valor da dvida no
preo pago, para uso habitacional de interesse social.
Mas, evidentemente, trata-se de um conjunto de iniciativas que
ainda depende, at pelas
drsticas limitaes financeiras por que passam os munic
pios, da estruturao de polticas habitacionais e de
financiamento moradia integradas, que envolvam todas as
esferas de governo. importante frisar o novo papel que a Caixa
Econmica federal poderia exercer nesse sentido, e a importnciada criao do Ministrio das Cidades, que deve poder reger esse
processo.
IPTU Progressivo, Edificao ou Utilizao Compulsria e
Desapropriao com pagamento em ttulos da dvida pblica.
Este conjunto de instrumentos visa atingir diretamente as
propriedades urbanas que no cumprem a sua funo social. A
partir do momento em que so considerados sub- utilizados
ou vazios pelo Poder Pblico, pode ser exigida a edificao ou a
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utilizao
compulsrias, que se no atendida gerar um aumento prog
ressivo do IPTU regulamentado e com limites claramente
estabelecidos at resultar, aps 5 anos de
progressividade, na possibilidade de desapropriao do im
vel com pagamento com ttulos da dvida pblica. Trata-se
claramente de uma sano aplicvel ao proprietrio que no
respeite a funo social de seu imvel, o chamado "mau
proprietrio".
Embora seja um dos instrumentos de mais fcil compreens
o, e cujo efeito seja potencialmente promissor, difcil
dar ao IPTU progressivo (entendido como o conjunto
dos trs instrumentos acima citados) um carter de polt
ica urbana de reverso da especulao imobiliria, como
tampouco de instrumento efetivo de arrecadao. Ele deve sim ser
entendido como uma ao punitiva do Estado, que pode
eventualmente conseguir
conter tais processos especulativos. Isso porque os
procedimentos que esses instrumentos estabelecem so
longos, podem durar at sete anos, e so pontuais, tendo de ser
autuados e resolvidos caso a caso, dependendo de uma gesto
pblica eficaz, at mesmo para realizar o trabalhoso
levantamento dos casos passveis de aplicao.
Alm disso, um outro ponto desses instrumento bastante
polmico: ao determinar que seja regulamentado no Plano Diretor,
que deve identificar as reas sujeitas ao IPTU progressivo, o
Estatuto da Cidade deixa em aberto o que se entende por imveis
sub- utilizados. At que ponto, por exemplo, um amploestacionamento na rea central, cujo terreno certamente servir
um dia para alguma valorizada incorporao imobiliria, est ou
no cumprindo sua funo social? At que ponto ele uma rea
sub-utilizada? E um edifcio de dez andares em que apenas o
trreo esteja sendo utilizado? Evidentemente, a definio desses
critrios depende das disputas polticas que ocorrero nas
Cmaras
Municipais, e dependendo dos seus resultados, pode diminu
ir significativamente o impacto do IPTU Progressivo como
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instrumento de controle do exerccio da funo social da
sociedade dos imveis urbanos.
Outorga Onerosa, transferncia do direito de construir
e Operaes Urbanas Consorciadas
O princpio do solo criado, bastante simples de entendimento,
talvez seja um dos mais antigos instrumentos urbansticos de
induo do desenvolvimento, j testado em vrias
cidades brasileiras. Como j dito, ele se origina em ex
perincias internacionais, notadamente na Frana e nos EUA. No
Brasil, a primeira experincia certamente remonta dcada de 70
em So Paulo, quando o ento prefeito Olavo Setbal props, em
1976, lei nesse sentido, e esse instrumento vem desde entosendo constantemente discutido por urbanistas e demais
militantes da Reforma Urbana [9]. A idia dar ao Poder Pblico
a possibilidade de recuperar a mais-valia obtida pelo
proprietrio graas valorizao gerada por investimentos
pblicos urbanos. Ao prover infra-estrutura urbana, a ao do
Poder Pblico geralmente provoca imediata valorizao fundiria
e imobiliria da rea, gerando lucros significativos aos
proprietrios. O solo-criado, que torna o direito de construirindependente da propriedade urbana, permite que o Estado onere
construes que ultrapassem limites que ele mesmo estabelece.
Assim, a outorga onerosa possibilita regular distores de
valorizao geradas por essas intervenes, ou ainda compensar
as perdas do proprietrio relativas a processos de tombamento.
Nesses casos, o proprietrio de imvel tombado, que perde o
direito de construir naquele terreno, pode transferir esse
direito para outras propriedades na cidade, usando-se doinstrumento da Transferncia do Direito de Construir, prevista
no artigo 35 do Estatuto da Cidade.
A outorga onerosa aprovada no Estatuto da Cidade (art. 28 a 31)
responde a vrias
possibilidades j testadas em diferentes cidades brasileir
as [10]. A venda de potencial construtivo pode por exemplo
permitir uma maior verticalizao as vezes, mas nem sempre,
revertida em maior adensamento em corredores urbanos ou outras
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reas cujo desenvolvimento urbano possa ser induzido. Por outro
lado, o mesmo instrumento pode
eventualmente refrear a verticalizao em bairros residenc
iais horizontalizados, ao estabelecer uma taxao para a
construo acima de um coeficiente construtivo bsico
(geralmente 1). Trata-se tambm de um eventual mecanismo de
arrecadao, que pode ser aplicado em bairros com potencial de
verticalizao, que ser portanto devidamente onerada. Mas essa
possibilidade de arrecadao no pode transformar-se no
objetivo do instrumento, pois seno ele acabar subordinando as
necessrias decises urbansticas desenfreada corrida por
arrecadao. Nesse caso, a poltica urbana acaba tornando-se
refm de uma lgica tributria, o que resulta em pssimos
resultados para a cidade.
Essa a distoro que ocorre com as Operaes Urbanas
Consorciadas, tambm previstas no Estatuto da Cidade. Estas
so, em suma, uma variante da outorga onerosa, em que se
especifica uma rea dentro da qual os recursos arrecadados com a
venda de potencial construtivo devero ser obrigatoriamente
aplicados para a recuperao viria e urbana. O argumento
central desse instrumento o de que dessa forma possibilita-se
parcerias entre o Poder Pblico e o setor privado, atravs das
quais o capital privado, interessado na compra do solo-criado,
acaba financiando a recuperao da cidade, naquele trecho
especfico. Segundo seus defensores, esse instrumento permitiria
que renovaes urbanas saiam "de graa" para o poder executivo
municipal. Entretanto, a Operao Urbana certamente um dos
instrumentos mais polmicos do estatuto, pois pode ser utilizado
apenas para responder aos interesses dos setores
imobilirios da cidade. Isso ocorreu, por exemplo, nos casos de
Operaes Urbanas j ocorridos na cidade de So Paulo, em
especial na conhecida Operao Urbana Faria Lima.
Como pela lei os recursos arrecadados nas Operaes Urbanas com
a venda de solo-
criado devem ser exclusivamente aplicados na melhoria da
infra-estrutura viria da prpria rea da operao, tm-se
essa impresso de que as avenidas saem "de graa" para a cidade,
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financiadas pela iniciativa privada. Entretanto, se a operao
urbana se prope a "vender" solo-criado para arrecadar fundos
para a melhoria viria, estima-se que ela s possa ocorrer em
reas onde o mercado tenha interesse em comprar, sem o que a
operao torna-
se, no jargo do mercado, um "mico". Entretanto, assiste
-se uma corrida para definir reas de Operaes Urbanas,
sob o forte argumento de que assim a cidade toda estar sendo
renovada s custas do capital privado. Porm, o que ocorre de
fato que as decises de polticas de planejamento urbano
acabam subordinando-se
aos interesses do mercado e, para evitar micos, o Pod
er Pblico tem de fazer investimentos prvios para sinalizar
ao mercado que a rea valer o investimento. Esses investimentos
nunca so computados nos custos das operaes, evidentemente, e
se a operao no "colar", os prejuzos aos cofres pblicos
sero enormes. J comentamos acima como a regio da Faria Lima,
em So Paulo, recebeu milionrios recursos pblicos virios em
reas que "coincidentemente" estavam na regio da Operao
Urbana, mas que no foram computadas em seu custo. Alm disso,
as desapropriaes para abertura de novas avenidas gera
processos judiciais e precatrios, que tambm no entram no
clculo "oficial", escamoteando o real prejuzo pblico gerado
pela operao. Ainda no caso de So Paulo, estima-se que esses
precatrios superem R$ 1 bilho na Av. Faria Lima, e a Av. guas
Espraiadas, rea de uma nova Operao Urbana, j custou outro
bilho para ser feita (com a canalizao do crrego), antes
mesmo do incio da operao.
Alguns urbanistas defendem a criao de ttulos financeiros, os
CEPACS, negociveis na bolsa, correspondendo ao estoque de rea
construda "a mais" a ser disponibilizada na operao. Assim,
lana-se no mercado papis representando os metros quadrados a
construir, que podem ser comprados por qualquer um. Dessa forma,
o Poder Pblico arrecada de uma s vez o valor necessrio
obra de urbanizao, no tendo que adiantar esses fundos.
Porm, alm do riso desse recurso (pois o CEPAC pode no Ter
sucesso na bolsa e tornar-se outro "mico"), ele subordina de vez
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a poltica urbana aos interesses e lgica do mercado, j que,
por incrvel que parea. Uma pessoa que nem sequer tenha terreno
na rea da operao pode adquirir o ttulo para negoci-lo no
mercado financeiro.
Uma das formas de evitar essas distores estaria na
possibilidade de ampliar as reas territoriais destinadas s
operaes urbanas para alm do setor de interesse do mercado,
incluindo reas com habitaes precrias. Assim, seria possvel
criar ZEIS [11] dentro da rea da Operao Urbana, e canalizar
os recursos advindos da venda de solo-criado para elas.
Direito de Superfcie e Consrcio Imobilirio
O direito de superfcie permite a transferncia do direito de
uso do solo do proprietrio para terceiros, por prazos
determinados. Um dos mais antigos instrumentos jurdicos
urbanos, embora pouco falado, esse instrumento importan
te para agilizar algumas situaes de necessria
regularizao fundiria e/ou urbanizao, e para incentivar o
exerccio da funo da propriedade urbana. Isso porque o
proprietrio que transferir o direito de superfcie no estar
abrindo mo de eventual valorizao futura de seu bem. E
em casos de terrenos ocupados, esse instrumento pode inc
entivar o proprietrio a autorizar o uso do terreno, ainda
mais se sua urbanizao e regularizao gerar uma
valorizao futura. O proprietrio pode tambm transferir
o direito de uso ao Poder Pblico inclusive em
negociaes que envolvam a aplicao do IPTU progressivo
liberando-o para realizar obras de urbanizao e regularizao,
cujo direito de uso ser depois repassado aos moradores. Nesse
caso, tambm se aplicaria o instrumento do
Consrcio Imobilirio (art. 46 do Estatuto), pelo qual o
Poder Pblico urbaniza determinada rea privada sujeita ao
IPTU Progressivo, adquirindo aps a obra parte do terreno,
deixando ao proprietrio outra parte cujo valor urbanizado seja
equivalente ao valor de toda a rea antes da urbanizao. Por
fim, o Direito de Superfcie pode ser til para terrenos
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pblicos, podendo-se transferir o direito de uso populao que
o ocupa, facilitando os procedimentos de regularizao.
Direito de Preempo
O Direito de Preempo talvez seja um dos instrumentos h maistempo utilizados nos pases europeus. Trata-se da prioridade
dada ao Poder Pblico para efetuar a compra em negociaes
imobilirias em determinadas reas definidas por ele.
Ele permite ao Poder Pblico fazer estoque de terras de
stinadas produo de habitaes de interesse social, e
regular a valorizao fundiria de determinada rea. Mais uma
vez, as reas sujeitas a esse instrumentos devem ser indicadas
no Plano Diretor, o que remete seu sucesso s negociaes
polticas na Cmara Municipal.
um instrumento importante especialmente em reas centrais, j
que o estado pode acompanhar as dinmicas imobilirias dessas
reas. Alm disso, ao segurar a venda de imveis em preos
definidos e eventualmente congelados por determinado tempo (como
ocorre, por exemplo, em Belm), o Poder Pblico consegue
regular a valorizao fundiria e imobiliria.
Entretanto, o grande limitador desse instrumento sem dvida a
crnica falta de recursos pblicos, exacerbada pelas opes
macro-econmicas e pela Lei de responsabilidade Fiscal, o que
restringe seriamente a possibilidade do Poder Executivo
Municipal efetivar os negcios a ele oferecidos pelo Direito de
Preempo.
* * *
Temos ento que os instrumentos tributrios e de induo ao
desenvolvimento urbano, especialmente aqueles propostos no
Estatuto da Cidade, podem sim promover o incio de uma novo
papel para os municpios no controle dos processos de produo
urbana, dando-lhe o necessrio sentido democrtico e de justia
social. Entretanto, as reflexes aqui apresentadas mostram como
esse ser sem dvida um caminho ainda longo, que depende de um
processo paulatino de consolidao de uma cultura poltica que
veja o Estado como o legtimo controlador da funo social das
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propriedades urbanas e indutor do crescimento das cidades
segundo o interesse pblico. Nesse processo, o papel dos grupos
organizados da sociedade civil sempre ser central e
imprescindvel para que a histria do Estatuto da Cidade
continue em seu difcil, mas at agora efetivo, caminho
para garantir a reverso da extrema desigualdade e
excluso scio-espaciais apresentadas pelas cidades
brasileiras.