algumas considerações sobre o paradigma indiciário de ginzburg

Upload: narizinho-josiane

Post on 08-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/6/2019 Algumas Consideraes sobre O Paradigma Indicirio de Ginzburg

    1/4

    ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE

    O PARADIGMA INDICIRIO DE GINZBURG

    No texto Sinais: razes de um paradigma indicirio (1989), o historiadoritaliano Carlo Ginzburg discorre sobre a construo de um paradigma, no

    mbito das Cincias Humanas, a partir do sculo XIX, que pode sugerir novas

    possibilidades tericas e metodolgicas diante da polarizao entre

    racionalismo e irracionalismo, ou seja, mimeses e anti-mimeses nas cincias

    humanas.

    A partir de artigos de Ivan Lermolieff (pseudnimo do crtico italiano de

    arte Giovanni Morelli) publicados em uma revista alem, por volta de 1874 a1876, Ginzburg atenta para as propostas metodolgicas de analise das

    pinturas aconselhadas por Morelli, que despertaram vrios debates e

    estabeleceram critrios seguros para se distinguir entre uma obra original e

    uma cpia falsificada dos quadros dos mestres da pintura italiana.

    O mtodo de Morelli para se distinguir originais e cpias, partia do

    pressuposto de que preciso no se basear, como normalmente se faz, em

    caractersticas mais vistosas, portanto mais facilmente imitveis dos quadros

    (p. 144), mas atentar para indcios, os pormenores mais negligenciveis e

    menos influenciados pelas caractersticas da escola a que o pintor pertencia

    (p. 144). Na poca, O mtodo de Morelli auxiliou a nomear vrias obras de

    mestres da pintura europia no assinadas e a uma catalogao mais precisa

    dessas obras, porm, foi, posteriormente, bastante criticado nos crculos de

    arte pela forma determinista que aparentava para alguns. Ginzburg, apesar de

    tambm ver que o mtodo de Morelli traduz uma postura moderna em relao

    arte, busca por implicaes mais profundas, de ordem filolgica, encontradas

    no mtodo morelliano.

    Nesse sentido, partindo das consideraes de Wind sobre as

    semelhanas entre o mtodo indicirio de Morelli e a postura detetivesca do

    personagem de romances policiais Sherlock Holmes, criado pelo ingls Arthur

    Conan Doyle, Ginzburg considera que o conhecedor de arte comparvel ao

    detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indcios

    imperceptveis para a maioria (p. 145). Ainda seguindo os rastros do raciocnio

    de Wind, Ginzburg chega ao terceiro autor que completaria a trade

  • 8/6/2019 Algumas Consideraes sobre O Paradigma Indicirio de Ginzburg

    2/4

    2

    responsvel por uma sofisticao intelectual de um paradigma que encontra

    suas origens em perodos mais remotos que a do fim do sculo XIX: trata-se do

    pai da psicanlise Freud.

    Para Ginzburg, Freud foi influenciado numa fase muito anterior a

    descoberta da psicanlise (p. 148) pelo mtodo morelliano, atravs da leiturade seus textos sobre arte italiana, se apropriando desse mtodo para

    desenvolver o gosto pela analise interpretativa de resduos, aspectos

    perifricos, porm reveladores das personalidades. Desse modo, pormenores

    normalmente considerados sem importncia, ou at triviais baixos, forneciam

    a chave para aceder aos produtos mais elevados do esprito (p. 150).

    Nesse caso, o eixo que interliga a trade Morelli, Holmes e Freud a

    assertiva de que as possibilidades de elucidao em torno de umaproblemtica so ampliadas na medida em que o investigador seja da arte, da

    criminologia ou psique, esteja atento para sinais ou pistas que so deixadas

    pelo seu objeto: pistas: mais precisamente sintomas (no caso de Freud),

    indcios (no caso de Holmes) e signos pictricos (no caso de Morelli) (p. 150).

    Dentro desse prisma, existia uma relao mais reveladora da afinidade entre

    trs intelectuais que atuaram em esferas do saber diferentes: apesar de se

    destacarem no mbito da histria da arte (Morelli), da psicanlise (Freud) e

    literatura (Conan Doyle), os trs autores tiveram em comum a graduao em

    cursos de Medicina. Nesse sentido, o paradigma indicirio nada mais que

    uma extenso do modelo da semitica mdica: a disciplina que permite

    diagnosticar as doenas inacessveis observao direta na base de sintomas

    superficiais, s vezes irrelevantes aos olhos do leigo (p. 151).

    Porm, para Ginzburg, apesar do paradigma indicirio nas cincias

    humanas ter sido gestado a partir do mtodo semitico aplicada nos pacientes

    pelos mdicos, que buscam preciso no veredicto sobre a sade do paciente a

    partir dos sintomas apresentados pelo mesmo, o mtodo indicirio acompanha

    os homens desde os tempos mais imemoriais da histria, ou seja, desde

    quando o homem aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas

    invisveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos

    de plos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar,

    registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais (p. 151).

    Historicizando essa prtica do saber cognoscitivo, Ginzburg chega at o

    contexto em que a escrita foi inventada, na Mesopotmia, quando a

  • 8/6/2019 Algumas Consideraes sobre O Paradigma Indicirio de Ginzburg

    3/4

    3

    necessidade de se transmitirem saberes ganhou dimenses materiais. nesse

    sentido que existe uma ponte entre o pensamento antigo e o moderno, na

    medida em que detectado em contextos sociais e histricos to distantes

    uma atitude orientada para a analise de casos individuais, reconstruveis

    somente atravs de pistas, sintomas, indcios (p. 154).Discutindo tambm a arte indiciria no contexto da Grcia antiga, o autor

    atenta para a transformao significativa, que desembocar em uma maior

    sofisticao, dessa forma de pensamento, na medida em que, na Grcia, o

    corpo, a linguagem e a histria dos homens foram submetidos pela primeira

    vez a uma investigao sem preconceitos, que por principio exclua a

    interveno divina (p. 155).

    O saber conjetural, exercido por vrios segmentos sociais, que oaplicavam para solucionar os problemas cotidianos e exercerem ofcios

    especficos, levam Ginzburg a discutir o lugar ocupado pelo historiador no

    mbito da cincia moderna, a partir de Galileu. Para o autor, a atitude

    cognoscitiva do historiador individualizante, diferente do mtodo

    epistemolgico generalizante, das cincias naturais, apresentando

    semelhanas com a postura do mdico diante do paciente que utiliza os

    quadros nosogrficos para analisar o mal especifico de cada doente. E, como o

    do mdico, o conhecimento histrico indireto, indicirio, conjetural (p.157).

    As tentativas de se equiparar s cincias humanas as naturais, so

    palco para diversas crises de ordem filolgicas. Ginzburg tambm atenta para a

    questo de que o saber individualizante foi quase sempre aplicado de forma

    antropocntrica e etnocntrica quando destinado a sistematizar o controle

    social na aurora das sociedades tecnocrticas. nesse contexto, a partir do

    sculo XVIII, que ocorre uma apropriao dos saberes populares por parte da

    burguesia, desembocando em um processo de aculturao, cujo maior smbolo

    a Enciclopdia de Diderot e DAlembert.

    Comparando a forma que o paradigma indicirio adquire na

    modernidade com a forma de um tapete, cujos fios epistemolgicos

    entrecruzam-se formando figuras interligando o antigo e o moderno que

    constroem essa aparncia mrfica para o saber indicirio, Ginzburg comea a

    desfiar esse tapete, pois uma coisa analisar pegadas, astros, fezes (...),

    catarros, crneas, pulsaes, campos de neve ou cinzas de cigarro. Outra

    analisar escritas, pinturas ou discursos (p. 171). A partir da, Ginzburg recorre

  • 8/6/2019 Algumas Consideraes sobre O Paradigma Indicirio de Ginzburg

    4/4

    4

    a diversos conceitos cunhados por Marx para pensar os modos que o saber

    individualizante foram usados pela ordem dominante, durante a consolidao

    do capitalismo industrial, para dar inicio a criminalizao da luta de classes,

    colocando em prtica um projeto geral, mais ou menos consciente, de controle

    generalizado e sutil sobre a sociedade (p. 173).Assim, nesse contexto, surgem os mtodos policiais dedutivos como a

    elaborao dos retratos falados, e os de identificao individualizante, como a

    analise das impresses digitais que sintetizam o intuito coercitivo desse projeto,

    justificado por um discurso cientfico, pois, durante o colonialismo, nas

    colnias britnicas, e no somente na ndia: os nativos eram analfabetos,

    litigiosos, astutos, mentirosos e, aos olhos de um europeu, todos iguais entre

    si (p. 176). Ginzburg procura assim, partindo de exemplos histricos,evidenciar o carter etnocntrico com que o saber indicirio foi

    institucionalizado e exercido pela ordem burguesa.

    Finalizando suas reflexes com uma indagao sobre a flexibilidade do

    paradigma indicirio, Ginzburg considera que o saber indicirio volvel, tendo

    de adaptar-se a cada circunstncia em que aplicado, seja na analise

    morelliana da arte, nas elucidaes detetivescas de Holmes, na interpretao

    analtica da psique de Freud, durante a consolidao da ordem burguesa ou no

    gesto do caador que quer encontrar sua presa seguindo suas pegadas em

    uma floresta. Assim, a intuio indiciria une estreitamente o animal homem

    as outras espcies animais (p. 179).

    Referncia Bibliogrfica:

    GINZBURG, Carlo. Sinais: razes de um paradigma indicirio. In: Mitos,

    Emblemas, Sinais: morfologia e histria. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1989. (p. 143-80).

    Postado por Joachin s 09:32 , em 23 de novembro de 2007.

    Fonte:http://bardassequelas.blogspot.com/2007/11/algumas-consideraes-

    sobre-o-paradigma.html