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A EXPERIÊNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE COMO FUNDAMENTO DASUBJETIVIDADE: A CONTRIBUIÇÃO DE GABRIEL MARCEL NO PROCESSO DE
ENSINO APRENDIZAGEM
Manoel Messias de Oliveira13
Docente da Unidade Acadêmica Especial de Educação – UFG/RC
Resumo: Compreendemos que o relacionamento interpessoal é de suma importância para queo processo de ensino aprendizagem. Ao longo dos séculos, renomados autores abordaram oreferido tema, entre os quais, G. Marcel, M. Buber, E. Mounier, J. P. Sartre e os demaisexistencialistas. Apresentamos o resultado parcial de nossa investigação, inserida em nossoprojeto de pesquisa “O Existencialismo Judaico-cristão e a Educação”. Investigamos opensamento de Gabriel Marcel a respeito do relacionamento interpessoal, com o objetivo deaveriguar de que modo o mesmo pode colaborar autênticas experiências intersubjetivas noambiente acadêmico. Investigamos alguns aspectos do relacionamento humano entreprofessores e alunos, e demais agentes envolvidos no processo cognitivo. Em nosso trabalho,utilizamos basicamente a pesquisa bibliográfica: selecionamos as obras do autor, entre asquais merece destaque o livro “os homens contra o homem”, a seguir, analisamos obrascomplementares, do autor e de comentadores. Em relação aos desafios e problemas oriundosdas relações interpessoais, fizemos uso de artigos e livros que versam sobre o tema. Oresultado de nossa investigação, mesmo que parcial, nos leva a afirmar que Marcel, podecontribuir para melhorar o relacionamento interpessoal e cooperar para o desenvolvimento depessoas, com pensamento autônomo e capacidade de convivência real. Apresentamos afundamentação filosófica, abordando o conceito de fenomenologia, pois ela precede e lança asbases sob as quais se ergue o existencialismo. Relatamos o pensamento de Gabriel Marcel,levantamos as principais questões relacionadas ao ambiente escolar: relação interpessoal entreprofessores, alunos e demais agentes. Concluímos que sem relações intersubjetivas éimpossível desenvolver a subjetividade e que a proposta pedagógica de matriz existencialistavisa educar para a liberdade e para a autonomia, combatendo a alienação e o aviltamento.
Palavras-chave: educação, intersubjetividade, subjetividade, liberdade e aviltamento.
13 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU; Especialista emFilosofia Moderna e Contemporânea e em Ciências da Religião, ambas pela UFU. Licenciadoem Filosofia e Bacharel em Teologia.
Endereço eletrônico: messiasfilo@yahoo.com.br
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1. Introdução
O presente texto resulta da investigação a respeito da contribuição do existencialismo
judaico-cristão para o processo de ensino aprendizagem do homem contemporâneo. Apresenta
os resultados parciais do projeto de pesquisa que desenvolvemos ao longo dos últimos anos.
Nossa investigação aborda, de modo especial, as propostas filosóficas do judeu Martin Buber,
dos cristãos Emmanuel Mounier e Gabriel Marcel. Nosso objetivo é refletir sobre a condição
do homem, ser existente, itinerante, chamado a fazer-se ao longo de sua vida, construindo a si
e o mundo a sua volta, a partir de escolhas constantes, procurando desenvolver um projeto de
vida que possibilite a sua realização pessoal e a convivência com os outros homens, com os
quais é responsável para edificar um mundo com significado. Nesse sentido, refletimos sobre
a influencia do existencialismo judaico-cristão para a educação dos existentes do século XXI.
Na esfera da educação, é imperativo refletir sobre o relacionamento interpessoal entre
todos que direta ou indiretamente estão vinculados ao processo de ensino aprendizagem, em
especial educandos e educadores, averiguando como se dá a relação entre professores e alunos
e entre os seus respectivos pares.
O tema do relacionamento humano perpassa a história da educação, e por sua
relevância, foi e é objeto de reflexão de pensadores das mais diferentes áreas das denominadas
ciências que investigam o ser humano.
Cremos que os diversos modos de viver ou experienciar o relacionamento interpessoal
possa ser sintetizado em dois grandes grupos, um no qual o relacionamento é fictício,
pseudorrelacionamento, o outro denominado de autêntico ou real14. O primeiro grupo
congrega as pessoas marcadas pelo egocentrismo, de tal modo que um sujeito não reconhece
no interlocutor um tu. Se a educação for pautada nessa proposta, ela inviabilizará o
desenvolvimento da subjetividade, e irá colaborar para o fortalecimento da alienação e do
aviltamento. O segundo, pautado no encontro verdadeiro, supõe uma adequada experiência
14 A divisão que apresentamos é fundamentada na proposta filosófica de G. Marcel, M. Bubere E. Mounier.
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intersubjetiva. Uma pedagogia, alicerçada nesse princípio promoverá a autonomia de
pensamento e ação: vai gerar pessoas e não meros fantoches.
Como o pensamento pedagógico existencialista pode cooperar para que, nas diversas
esferas nas quais se processa o ensino aprendizagem, se faça verdadeiras experiências
interpessoais? De que modo estas experiências podem contribuir para o processo cognitivo?
Nesse trabalho, iremos apresentar o principio do existencialismo, a seguir, expor a
contribuição de Gabriel Marcel, no que se refere a alteridade, a liberdade e ao aviltamento, a
seguir, destacaremos algumas questões ou desafios na esfera da educação, em especial as
dificuldades relativas as relações interpessoais entre professores e alunos e finalmente
refletiremos sobre as propostas de Marcel para melhorar estas questões.
2. O existencialismo
O existencialismo é um desdobramento da fenomenologia, por este motivo, antes de
abordarmos ao pensamento de Marcel, cremos ser necessário descrevermos sinteticamente o
conceito e os princípios da fenomenologia. Ela acredita que a consciência é sempre
consciência de alguma coisa. Esta consciência, na perspectiva de Heidegger, não é
desencarnada: separada do mundo, mas é uma consciência encarnada: ela está numa situação
dada. O “Ser-ai”, o Dasein, toma conhecimento do mundo que, a princípio, ele próprio não
criou e ao qual se acha submetido. Em outras palavras, o “ser-aí”, lançado no mundo, um
mundo que não escolheu, mas nele é chamado a transcender a facticidade: é convocado a
assumir o seu próprio destino, a edificar o seu ser, enfim a assumir a sua existência.
Conforme Heidegger, o homem pode viver o seu ser de um modo autentico ou recusar
o seu ser, e viver de uma maneira inautêntica. Aquele que não assume a edificação consciente
de seu ser, recusa a autenticidade, e vive a inautenticidade. O indivíduo inautêntico abdica de
assumir o seu destino, de escolher o seu ser: nega a si mesmo. Ele se degrada, se anula, perde,
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ou recusa assumir a sua identidade, se despersonaliza. Abdica de sua subjetividade, faz o que
todos fazem, é um elemento sem identidade: perdido na massa.
Por sua vez, o individuo que assume as rédeas de seu destino, vive a autenticidade, se
projeta, se lança para frente – para o futuro, transcende a facticidade. Supera as situações não
escolhidas, escolhe o seu ser, dentro das possibilidades reais, enfim, fazendo a experiência da
liberdade, edifica a si mesmo no mundo concreto no qual se encontra situado. É possível
afirmar, pois, que aqueles que assumem os destinos de sua existência, tornam-se sujeitos e
experimentam a liberdade, mesmo que situada.
Diante do exposto, aparece uma grande que são: como o individuo toma consciência
de seu Ser no mundo? Em outras palavras, o que faz com que o indivíduo se torne impar em
relação aos demais membros da sociedade na qual esta inserido?
Esta questão é objeto de investigação dos pensadores existencialistas, que acreditam
ser necessário ter consciência de si mesmo, para poder compreender o mundo e o sentido da
vida. Isso nos remete a cidade de Delfos, mais precisamente para o templo dedicado a Apolo,
em cuja entrada estava escrito o preceito, assumido e difundido por Sócrates15: “conhece-te a
ti mesmo”. O conhecer a si mesmo é a base para um agir consciente, cuja ação seja pautada na
verdade, na liberdade e na coexistência. O indivíduo necessita compreender a si e aos outros
com quem constrói a História, daí a importância de responder à questão capital: quem é o
homem?
Para responderem a essa questão, os existencialistas se voltam para a realidade
concreta, para o homem encarnado, situado e em permanente construção. Compreendem que
o homem, o existente, é um ser a caminho, entendem que a existência é o modo de ser
específico do homem no mundo, no qual, em sua liberdade, deverá edificar o seu ser. Ao
refletir sobre o homem itinerante, jogado no mundo, compreendem que ele não está só, daí
15 Emmanuel Mounier, ao descrever o Existencialismo como uma árvore, coloca como duasde suas raízes os estóicos e Sócrates. Cf. Mounier (1963). Marcel, no prefácio da obraintitulada Mistério do ser, classifica a sua reflexão filosófica como neo-socratismo ousocrático cristão.
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elevarem a questão da alteridade ao centro de sua reflexão, conforme nos diz Mounier: “[...] a
relação com outrem, pelo menos no mesmo plano dos [temas] restantes. Foi o existencialismo
quem a promoveu sùbitamente ao seu lugar central” (MOUNIER, 1963, p. 137).
Sabe-se que não é uma tarefa fácil definir o que se entende por existencialismo, pois,
conforme Jolivet, existem “[...] várias formas de existencialismo que, à primeira vista,
parecem contradizer-se, [...]” (JOLIVET, 1961, p. 3). Mas Sartre, apesar de reconhecer que
existem diferentes maneiras de se compreender o termo existencialismo, propõe um ponto em
comum: a existência precede a essência.
Jean-Paul Sartre, no texto O Existencialismo é um Humanismo, alega que o termo
existencialismo estava sendo utilizado de tal modo que já não significava rigorosamente mais
nada. Era aplicado sem critérios e isso, certamente, gerava confusão no conceito: parece que
se vivia a “moda” existencialista. O termo provocava medo, talvez por muitos ignorarem o
seu sentido, a ponto de Sartre indagar: “Será que, no fundo, o que amedronta na doutrina que
tentarei expor não é o fato de que ela deixa uma possibilidade de escolha para o homem? Para
sabê-lo, precisamos recolocar a questão no plano estritamente filosófico. O que é o
Existencialismo?” (SARTRE, 1987, p. 4). Tentando esclarecer a noção, Sartre disse que seria
fácil fazê-lo, embora o fato de haver dois tipos de existencialista (o cristão e o ateu) tornasse
essa tarefa um pouco mais complicada. Nas palavras do Próprio Sartre:
O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialista: porum lado, os cristãos16 – entre os quais colocarei Jaspers e Gabriel Marcel, deconfissão católica – e, por outro, os ateus – entre os quais há que situar Heidegger,assim como os existencialistas franceses e eu mesmo. O que eles têm em comum ésimplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou,se preferir, que é necessário partir da subjetividade. [...] (SARTRE, 1987, p. 4-5).
16 Não sabemos o motivo de Sartre não mencionar Martin Buber, um “existencialista” àmoda de Marcel, mas ligado ao judaísmo e não ao cristianismo. Talvez fosse preferívelseparar existencialismo de caráter religioso do existencialismo ateu.
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O principal objeto da reflexão dos pensadores existencialistas é a condição do
homem enquanto um ser que está no mundo. Um ser existente que é chamado a fazer-se ao
longo de sua vida, construindo a si e o mundo a sua volta, a partir de escolhas constantes,
procurando desenvolver um projeto de vida que possibilite a sua realização pessoal e a
convivência com os outros homens, com os quais é responsável para edificar um mundo com
significado. Dessa forma, o vínculo com o outro pode ser mantido para que todos vivam com
dignidade humana. Nesse contexto, surgiu a indagação sobre o papel da Educação: qual a
influência que recebe da Filosofia Existencialista? Como contribui para a liberdade ou para o
aviltamento do homem contemporâneo?
3. Fundamentos filosóficos: Gabriel Marcel – liberdade e aviltamento
O mundo contemporâneo propicia a retomada da reflexão sobre a existência humana
em seu cotidiano. O ser humano é um ser itinerante, um ser inacabado, chamado a edificar a si
e o mundo no qual está inserido. Para cumprir essa missão, o homem necessita do outro: deve
fazer a experiência do encontro, da partilha da vida e dos projetos. Parte-se do principio da
proposta filosófica de Gabriel Marcel, segundo a qual o homem como um ser itinerante é
chamado a responder aos desafios da existência, vivendo a liberdade e superando os possíveis
aviltamentos que tentam sufocá-lo. Nesse contexto, refletiremos sobre o papel fundamental da
Educação.
Gabriel Marcel nasceu na cidade de Paris, no dia 7 de dezembro de 1889, e faleceu no
dia 8 de outubro de 197317. Ele é um homem itinerante, cuja reflexão se afasta do idealismo e
enraíza-se no concreto, na experiência vivida. Segundo Zilles (1995), Marcel “procura
elucidar os conflitos que existem concretamente na vida” e, ainda, “a filosofia da existência
de Marcel situa historicidade e finitude no próprio Ser. Formula a questão do Ser numa
situação histórica concreta [...]” (ZILLES, 1995, p. 32); enfim, busca refletir sobre o mundo
concreto do homem.
17 Gabriel Marcel faleceu em função de uma deficiência cardíaca.
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Em Os homens contra o homem, cujo título deveria ser “O universal contra as
multidões”, Marcel confirma a necessidade da experiência histórica para compreender o real.
Isso pode ser comprovado em várias passagens do referido livro, especialmente no início da
primeira parte, que tem por título Que é um homem livre? Marcel diz que esta questão não
pode ser respondida abstratamente, sem referências a situações históricas. Responder a
referida questão implica dizer quem é o homem, real e concreto. O que não é possível fora da
história. A liberdade, a vivência da subjetividade é construída ou negada ao longo da vida. Daí
surgiu o nosso interesse na investigação a respeito do papel da educação no processo de
promoção da liberdade ou do aviltamento, cujo resultado é o texto ora apresentado.
Para Marcel, o homem é um ser em construção, é um vivente que caminha
constantemente e no caminho se faz, é um homem itinerante, o que não permite uma
ontologia abstrata, mas sim concreta. A ontologia brota da vida, pois somente a experiência
existencial possibilita vislumbrar o sentido da existência e perceber que o existente é uma
obra inacabada. Daí, a necessidade de caminhar, de buscar constantemente criar e recriar a
vida, uma vez que “[...] cada ser concreto, em situação concreta que deve defrontar, é único e
incomensurável com qualquer outro ser e qualquer outra situação” (MARCEL, s.d, p. 25).
A experiência do existente não é isolada; não obstante ser única, ela se dá com a
convivência com outros existentes, por isso, para que o sujeito tenha consciência de sua
subjetividade, necessita do encontro com o outro: com o olhar do outro.
Marcel admite que o único caminho para o conhecimento de si mesmo e para a
descoberta do sentido da vida é o encontro com o olhar do outro. Ele crê que a alteridade é
condição sine qua non para a ipseidade. Assim sendo, nenhum homem poderá ter uma
consciência real de si se não for capaz de fazer a experiência da alteridade: é o olhar do outro
que revela ao existente o seu ser. O que nos leva a atestar, que conforme Marcel, não é
possível a subjetividade sem a experiência do encontro entre sujeitos: intersubjetivos.
Para Marcel, a experiência intersubjetiva, na qual as pessoas se encontram realmente,
se doam reciprocamente, é a fonte da qual emana a vida, criada e recriada constantemente, ao
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longo da existência, o que impede que a pessoa humana possa ser definida de uma vez por
todas, que ela seja encarcerada em sistemas filosóficos que reduzam a experiência vivida em
conhecimento objetivado e fechado.
Um homem livre não pode ser conhecido abstratamente, mas pode ser conhecido,
mesmo que parcialmente, por ser um mistério, ao longo de sua existência. Assim, diante da
pergunta “Que é um homem livre?” Marcel, responde de maneira precisa: na experiência
vivida, somente nela, o sujeito pode chegar ao conhecimento, mesmo que temporário18. Eis o
desafio da investigação filosófica: propiciar uma reflexão gestada na experiência existencial e,
a partir dela, tentar compreender o homem, com seus acertos e erros, na incerteza da
caminhada, eis o que se denomina filosofia concreta.
O ser encarnado, o existente, é um ser em construção e se edifica ao longo do
caminho, na convivência com seus semelhantes. Marcel realça a importância da alteridade,
pois crê que somente na experiência intersubjetiva, no encontro verdadeiro, é possível uma
autêntica reflexão ontológica.
Pensar a partir da vida, da experiência, do encontro com [...], eis o caminho para se
refletir com propriedade sobre o Ser; eis a autêntica via de acesso ao Ser, que se revela
mediante o que se poderia chamar de atos ontológicos, como o amor, a fidelidade e a
esperança, bem como em outras autênticas experiências concretas como a amizade e a
liberdade.
A liberdade é uma característica dos sujeitos, dos homens e mulheres que pensam e
agem com autonomia, por isso, ela não deveria ser negada. Negar a liberdade é negar a
subjetividade, a autonomia, a dignidade humana, mas infelizmente, ao longo da história é fácil
encontrarmos situações nas quais a esses fatos foram verificados. Como por exemplo, no
regime fascista, que denegriu a dignidade de milhares de pessoas, fez uso de diferentes
técnicas de aviltamento, compreendidas por Marcel como “[...] processos intencionais para
18 A compreensão do homem é sempre temporária, visto que o ser existente é um mistérioinverificável, que se cria e se recria constantemente na experiência vivida, e somente nessaexperiência pode ser compreendido.
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atacar e destruir em indivíduos de categoria determinada o respeito de si mesmos,
transformando-os pouco a pouco em resíduo que se considera tal e só pode desesperar não só
intelectualmente, mas até vitalmente, de si próprio” (MARCEL, s.d., p. 39). Entre as técnicas,
podemos verificar o fomento ao ressentimento, a espionagem recíproca e a mentira. Essa
última, segundo Marcel, “[...] venha de onde vier, vai sempre favorecer a servidão”
(MARCEL, s.d., p. 32).
Vale lembrar que, em nossos dias, as técnicas de aviltamento continuam a serviço de
instituições, nas várias esferas da sociedade: propagandas, ideologias em sentido restrito,
meias verdades, disputas por poder ou prestigio, em especial nas ações das pessoas que não
enxergam em seus semelhantes um companheiro do caminho, mas sim um oponente, um
rival, que deve ser dominado, silenciado e excluído. Não é possível falar de subjetividade
autêntica em ambientes nos quais a liberdade é negada, pois negar a liberdade é negar a
condição humana.
A verdadeira reflexão sobre o ser só é possível no encontro e na vida concreta, pois, na
medida em que se pensa a partir da experiência vivida, possibilita-se a compreensão da
experiência alheia, a qual não está desvinculada da própria experiência. Nas palavras de
Marcel: “[...] na medida em que me elevo a uma percepção verdadeiramente concreta de
minha própria experiência, mais estarei em condições pela mesma medida de ascender a uma
compreensão efetiva do outro, da experiência do outro” (MARCEL, 1964, p. 10). Essa
experiência, se autêntica, possui a virtude de combater o espírito egocêntrico e viabilizar a
autêntica convivência, que sustenta ou nutre a força criadora.
Uma pessoa que, em seu cotidiano, não consegue conviver, refugia-se no egocentrismo
e se isola; não se abre ao outro, mesmo que ele esteja à sua frente, não é capaz de
autoconhecimento. Essa pessoa não consegue ver quem ela é e: apenas é capaz de criar uma
pseudo imagem de si mesma. O indivíduo, preso ao egocentrismo, deixa de saber quem ele
realmente é.
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O egocentrismo é um obstáculo para experiência autêntica, pois inviabiliza ou dificulta
o encontro; ele só se sustenta quando o indivíduo se fecha em um casulo e, senhor de si, se
torna alheio a si. Nas palavras de Marcel:
[...] enquanto permaneço sobre a influência de uma preocupação egocêntrica, estaatua como uma barreira entre eu e o outro, e por outro lado devemos entender aqui avida do outro, a experiência do outro. Entretanto o paradoxo é que da mesmamaneira em que minha experiência me encoberta na realidade ela está emcomunicação real com as outras experiências e eu não posso separar-me delas semseparar-me da minha. [...] (MARCEL, 1964, p. 11)
Se o egocêntrico não se encontra com o outro, tampouco encontra a si mesmo; não
poderá ter acesso ao Ser, torna-se cego e provoca cegueira nos que estiverem à sua volta. Não
vê, nem permite ser visto: torna-se opaco, porque apenas pensa em si mesmo; perde a
claridade e não enxerga a realidade em que vive, pois “na realidade só a partir do outro ou dos
outros podemos nos compreender” e, ainda, “a consciência concreta e plena de si não pode ser
egocêntrica” (MARCEL, 1964, p. 11).
No itinerário de sua existência, o homem não está só; por isso, Marcel realça a
importância do encontro, por vezes desprezado pelos filósofos e “educadores”. O encontro,
em seu verdadeiro sentido, só é possível entre seres dotados de interioridade e de liberdade.
Estes, na abertura real e sincera ao outro, voltam-se para o seu interior e viabilizam o
reconhecimento de si, em um progresso criador. A importância do encontro pode ser
percebida nas próprias palavras de Marcel:
[...] Encontrar alguém não é simplesmente cruzar com ele é estar pelo menos uminstante junto, com ele; é o que direi em uma palavra que deverei usar mais de umavez uma co-presença. Há muitos pensamentos que nós convivemos semverdadeiramente encontrá-los, sem que eles se revelem a nós, sem que eles nossejam presentes, e, acrescentarei, sem que nós nos entreguemos a deles [...](MARCEL, 1999, p. 22).
Encontrar-se com é ser co-presença, exige mútua doação e receptividade, enfim, uma
abertura mútua dos corações e partilha da vida. Vale lembrar que, para serem estabelecidas
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relações reais, é necessário que o existente tenha consciência daquilo que é; não poderá
apresentar-se ao outro de maneira camuflada, mas deverá ele ser fiel a si mesmo, sob risco de
o encontro não se realizar.
Aquele que é disponível faz a experiência do encontro: escolhe viver. O que renúncia
o encontro, se torna indisponível e converte-se em um morto-vivo. Conforme Marcel, “o ser
centrado em si mesmo é indisponível; com isso quero dizer que ele se torna incapaz de
responder aos chamados da vida [...]” (MARCEL, 1963. p. 178). Aquele que não é capaz de
sair de si, não é capaz do encontro e vive o paradoxo de não se ver, não se conhecer, nem
reconhecer. Eis o paradoxo da filosofia da liberdade: o homem livre pode optar por abrir-se à
experiência do encontro e edificar o seu ser, o seu eu, ou poderá optar por renunciar ao
encontro, à co-existência e, nesse caso, atrofiar-se a ponto de não mais se reconhecer.
Aquele que não permite a experiência do encontro tem dificuldade para viver o seu
ser, pois o encontro é condição para o autoconhecimento e é força de renovação do ser, como
afirma Marcel: “quando sinto [o outro] presente, de certa maneira me renovo interiormente;
essa presença é então reveladora, quer dizer, me faz ser plenamente o que eu não seria sem
ela” (MARCEL, 1963, p. 221). A presença implica transformação mútua, o que leva a
concluir que só existe presença na intersubjetividade. Não basta o encontro entre sujeitos que
não transcendam para uma íntima relação de comunhão recíproca na experiência da co-
participação. Na co-participação, ou na comunhão, há um envolvimento mútuo, uma
participação que pressupõe a esperança, o amor e a fidelidade criadora.
A presença exige liberdade e supõe que o sujeito se coloque diante de outro sujeito,
com liberdade de escolher uma atitude de abertura e disponibilidade, ou, pelo contrário,
adotar uma postura de recusa, de isolamento em sua subjetividade. No primeiro caso, o ser,
que é mistério, poderá ser desvelado, mesmo que parcialmente. No segundo, o ser
permanecerá um mistério impenetrável.
Nas obras de Marcel, a intersubjetividade aparece cada vez mais claramente como a
pedra angular de uma ontologia concreta, a ponto de o próprio Marcel identificar a
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intersubjetividade à própria caridade. Para que se dê intersubjetividade, é preciso que o eu
esteja diante de um tu, desarmado e disponível ao encontro. A experiência da alteridade supõe
o encontro de um eu e um tu, dois mistérios que se revelam e possibilitam o conhecimento
mútuo. Na convivência, o existente desenvolve seu projeto, criando-se e recriando-se
constantemente e, assim, humanizando-se e edificando o mundo. O existente que se isola
torna-se indisponível ao encontro e, consequentemente, ao outro; tornar-se-á opaco, não
podendo ver-se e, assim, desumanizar-se-á gradativamente.
A humanização e o conhecimento exigem a presença, que não pode ser compreendida
como simplesmente estar diante do outro. Presença, na perspectiva de Marcel,
significa algo mais e algo diferente do simples fato de estar aí; em rigor, não se podedizer de um objeto que está presente. Digamos que a presença implica sempre umaexperiência, ao mesmo tempo irredutível e confusa, que é o próprio sentimento deexistir, de estar no mundo. Rapidamente se realiza no ser humano uma união, umaarticulação entre essa consciência de existir, [...] e a pretensão de fazer-se reconhecer
pelo outro. (MARCEL, 2005, p. 27).
No isolamento, ou na presença sem disponibilidade, não ocorre o encontro. Para que a
presença se converta em encontro, é necessário que o indivíduo tenha a capacidade de se
mostrar e, ao mesmo tempo, ver o outro, conviver com ele, sem objetivá-lo, sem escamotear o
que ele é, sob pena de perder a autenticidade de seus atos. Viver a experiência do encontro é
próprio daquele que não teme ser visto, mas também daquele que não é narcisista; daquele
que é capaz de deixar o outro se mostrar, dizer quem ele é, enfim, ser capaz de ver e de deixar
que o outro o veja; de doar-se e de receber a doação de outrem. Enfim, tornar-se hóspede e
hospedar em si o ser de outrem.
Na perspectiva de Marcel, o homem somente pode afirmar sua existência diante do
outro; se não perceber aos outros, também não perceberá a si mesmo. Se não for capaz de ver
aos outros, também não verá a si mesmo.
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Aquele que desejar verdadeiramente responder à pergunta primordial da metafísica
marceliana – “o que sou eu?” – deverá seguir o caminho indicado por ele: encontrar-se
consigo e, para isso, deverá percorrer, em sua existência, o caminho do autoconhecimento.
Mas como o ser poderá conhecer a si mesmo? Por meio do encontro com o outro. Na
concepção de Marcel, não posso admitir conscientemente o meu ser sem admitir o ser do
outro. Em suas palavras, “não posso conceder-me a mim mesmo uma existência da qual eu
não admitiria que os outros estivessem privados; e aqui ‘eu não posso’ não significa ‘eu não
tenho direito’, mas ‘isto não é possível’; se os outros me escapam, eu também escapo a mim
mesmo.” (MARCEL, 2005, p. 150).
Para Marcel, é muito importante a maneira pela qual o eu olha para o outro,
acolhendo-o, ou refutando-o. O modo pelo qual o ser (o eu) se coloca diante do outro em
atitude de abertura ou recolhimento, enfim, o espírito que desenvolve na situação em que está
situado, a maneira de viver e de se relacionar com os outros e com o mundo à sua volta.
Marcel acredita que a pessoa humana deveria desenvolver o espírito da hospitalidade e da
acolhida, eliminando ou combatendo o espírito da exclusão – “mas o que se mantém
inteiramente verdadeiro, espiritualmente verdadeiro, é que temos que combater em nós, sem
trégua, esse espírito de excomunhão [...] ” (MARCEL, 1963, p. 173).
Ser presença é característico do ser humano, o que implica dizer que o encontro só é
possível entre as pessoas. Estar na presença do outro é interagir, é ser capaz de mostrar-se ao
outro e, ao mesmo tempo, vê-lo, acolhê-lo em seu íntimo. Marcel acredita o eu não é um entre
os outros, mas com os outros.
Mas, afinal, o que é o eu? Não se pode dar uma única resposta a essa questão. Pode-se
até confundir o eu com sua função, com seus atos, com sua trajetória histórica, mas,
metafisicamente, não se pode dar uma resposta definitiva à questão. O eu é o um ser existente,
um ser itinerante, um ser que se constrói ao longo da existência. É um ser encarnado, situado,
que, ao longo da vida, é chamado a ser, a criar-se e a criar o mundo na intersubjetividade. Os
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homens que fazem a experiência do encontro se revelam: ao outro e a si mesmos. Não é
possível a consciência da ipseidade sem a intersubjetividade.
4. Relacionamento interpessoal no processo ensino aprendizagem e outros desafios
do ambiente escolar do século XXI
Em situações cotidianas é recorrente o fato de docentes e discentes reclamarem da
falta de relacionamento autêntico no processo de ensino-aprendizagem, por vezes, marcado
pela indiferença e pelo individualismo: nega a alteridade e favorece o desenvolvimento do ser
denominado por Buber de egotico19. Segundo Buber a alteridade, o mútuo reconhecimento é
imprescindível na convivência, assim, ele propõe um relacionamento que supõe presença,
transparência e autenticidade.
A questão do relacionamento entre professores e alunos é de extrema relevância. Esse
assunto perpassa os séculos, foi tema de reflexão de diversos pensadores, das diversas áreas
do conhecimento. John Locke, (apud GADOTTI, 2003, p. 192), na segunda metade do século
XVII, dizia “o professor deve acrescentar gentileza em todas as suas aulas, [...] deixar
perceber à criança que ela é amada [...]; esse é o único modo de originar amor na criança, o
que a fará dar atenção às aulas e ter prazer com o que o professor lhe ensina”. Nessa
perspectiva, não existe condições de aprendizado real sem a experiência do amor, que só é
possível no relacionamento intersubjetivo.
Morales (2006), diz que nem sempre os educadores refletem sobre essa questão, que a
seu ver é de extrema importância, em suas palavras “[...] pensar na sala de aula como lugar de
relação pode abrir para nós um horizonte de possibilidades, inclusive didática, que talvez não
estejamos utilizando em todo seu potencial” (MORALES, 2006, p. 10). Assim, ele convida a
19 O termo egotico, Eigenwesen, aparece no livro Eu e Tu (2006), e conforme nota xxi serefere à relação do homem consigo mesmo, assim é característica dos que somente enxergama si mesmos.
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todos os docentes a refletirem sobre o seu relacionamento com os seus alunos: “Qual é a
nossa relação com os alunos na sala de aula?”.
Morales não se restringe o relacionamento interpessoal ao ambiente da sala de aula,
mas destaca a importância de pensar também as relações humanas nesse espaço, mesmo que
alguns professores digam que ele seja apenas um lugar de ensinar. Em suas palavras, “certa
vez, ouvi de um professor este comentário “Na sala de aula, eu me limito a ensinar; me
relaciono com os alunos apenas fora da classe” (MORALES, 2006, p. 09). Diante do exposto,
questionamos: é possível ensinar sem se relacionar com os discentes? A partir da proposta
existencialista de Gabriel Marcel, a resposta é obvia: não.
Quanto um professor afirma que a sala de aula é apenas um espaço para ensinar, o que
ele quer disser? Será que ensinar implica apenas na transmissão de conhecimento? Não temos
elemento, no texto, para fazer tal inferência, mas ela é uma possibilidade, pois se não existe
relacionamento, há de se supor que o aluno é um mero receptor.
Bellotti e Faria, (ano, p. 01) relatam o que a mídia moderna veicula constantemente, a
falta de respeito no ambiente escolar, eles atestam que “[...] não há respeito do aluno com o
professor e este não se preocupa com o aluno”. Nossa experiência docente nos obriga a
questionar a generalização da afirmação, pois conhecemos diversos discentes e docentes que
vivenciam um relacionamento de mútuo respeito, mas também ouvimos de professores e
alunos relatos de desrespeito e aviltamento.
Belotti e Faria (ano, 01) atestam que “[...] o grande desafio dos educadores está em
reverter a relação de desencontros, de conflitos e de pré-conceitos estabelecidos entre a
escola, os professores e os alunos”. Ora, se levarmos em conta o pensamento de Locke, que
diz que para se ter sucesso no processo cognitivo deve haver amor na pratica educativa,
devemos considerar o desafio em questão, uma prioridade.
Antunes e Zuin (2008), iniciam o seu texto com uma epigrafe de Adorno, que ora
transcrevemos “...desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia”
(ADORNO, 1971/2003 apud ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 33). Os autores lembram que o
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“hoje em dia”, na perspectiva de Adorno se refere a Alemanha nas décadas de 50 e 60, mas
que sua reflexão pode ser aplicada ao Brasil de nossos dias, marcado por um contexto de
violência, preconceito e Bullyng. Descrevem sinteticamente a história da preocupação com o
tema da violência no ambiente escolar, dizem que a princípio essa violência era direcionada
aos prédios, mas gradativamente migra para as relações humanas, “envolvendo alunos,
professores e outros agentes da comunidade escolar” (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 33).
É importante lembrar que Antunes e Zuin dizem que este tema não é privilegio do
Brasil do século XXI, tampouco é um problema exclusivo do nosso país: perpassa a história
da educação e atinge diferentes países. Mas lembram de que a questão se agravou nos últimos
anos, e ganhou novos horizontes como o cyberbullying: o uso da mídia moderna para
propagar a violência e o aviltamento. Por fim, nos lembram de que “a educação, sem dúvidas
é um caminho para a superação da barbárie, [...].” (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 38).
Outro problema, que exige nossa atenção é proposto por Luckesi, (1990) quando atesta
não existir sistema pedagógico sem base filosófica, ou seja, todos as propostas pedagógicas se
fundam em um pensamento filosófico sobre educação, assim, segundo ele, existe uma intima
relação entre Educação e Filosofia, sendo que está dita os rumos, os objetivos, as metas do
processo de ensino aprendizagem e aquela mostra o caminho a ser seguido para se atingir tal
fim. Ora, há de se refletir a respeito de que ser humano queremos “formar”, aja visto que
segundo Luckesi a filosofia é uma arma que pode ser utilizada para alienar e subjugar ou para
dar consciência e auxiliar na libertação. A de se perguntar: Como utilizamos as ferramentas
pedagógicas: para transformar homens e mulheres em objetos, ou auxiliar no seu
desenvolvimento de pessoas, agentes ativos, capazes de edificar a si e o mundo? O
existencialismo na perspectiva de Marcel condena qualquer tentativa de objetivar um ser
humano.
Por fim, resaltamos o desafio de ensinar a pensar com autonomia, em meio a propostas
pedagógicas influenciadas por correntes filosóficas de caráter positivista, ou por uma mídia
que serve de instrumento de aviltamento, deturpando informações e servindo ao mercado
econômico e a interesses políticos partidários, por vezes reacionários. Michael de Montaigne,
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(1972), fala da importância de educar para a vida e sobretudo para motivar o pensamento
autônomo, pois segundo ele “saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à
memória para guardar.” (MONTAIGNE, 1972 apud GADOTTI, 2003, p. 66). Segundo o
pensador renascentista, é preciso ensinar e de uma forma prazerosa, pois do contrário a
educação é inútil. Ele, já no século XVI, chamava a atenção para a necessidade de cuidado
com os métodos de ensino, pois, a seu ver, os espíritos dos educandos são naturalmente
diferentes, quer pelo temperamento, quer pela inteligência, o que leva a afirmar que tentar
ensinar a todos de uma única maneira, implica em ensinar apenas uma minoria e marginalizar
a grande maioria das crianças confiadas as instituições de ensino. Acreditamos que as suas
observações são pertinentes para o Brasil e o mundo do século XXI.
Diante do exposto, indagamos novamente, como o existencialismo, em especial,
Gabriel Marcel, pode auxiliar no processo de ensino aprendizagem?
5. Considerações finais
Considerando o processo de ensino aprendizagem de nossos dias, verificamos a
existência do que se denomina educação bancaria, de fundamento positivista, que visa formar
o individuo para que aceite de bom grado o seu lugar social, e que atenda aos anseios da
sociedade na qual está inserido. Por outro lado, encontramos educadores que defendem uma
educação denominada progressista, estes creem que a educação deve preparar o homem para
ser autônomo, critico e ativo na sociedade, podendo propor transformações. A primeira ensina
como as coisas são, a segunda, permite compreender como são, mas exige, ou permite, pensar
como podem ser.
O relacionamento entre professores e alunos, nem sempre se pauta no respeito mútuo,
nos quais os dois são sujeitos, por vezes, assistimos, ou lemos nos diversos meios de
comunicação, relatos de agressões não só verbais, mas também físicas. Por um lado temos
ocorrências de alunos que se sentem negados enquanto pessoas, que são classificados como
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incapazes, ou trastes, por outro, temos professores agredidos, e aviltados, a ponto de
desistirem de sua profissão.
Como já foi visto, segundo Marcel, o homem é um ser em construção, é um vivente
que caminha constantemente e no caminho se faz, é um homem itinerante, o que não permite
uma ontologia abstrata, mas sim concreta. Assim, se desejamos refletir sobre o cotidiano
escolar, em especial as questões que se referem ao relacionamento humano, devemos fazê-lo a
partir da realidade concreta.
Se almejamos uma educação que promova o homem livre, é preciso transformar os
relacionamentos, nos quais o Eu se encontra só, ou diante de um Ele, em encontros nos quais
um Eu esteja diante de um Tu: o que supõe um relacionamento no qual os existentes
compartilhem suas vidas e projetos, sem perderem as suas respectivas identidades. Aqui é
imprescindível retomar a questão levantada por Morales, e refletirmos sobre qual a relação
que desejamos ter com nossos alunos.
Cremos ser imperativo refletir sobre as relações interpessoais dentro e fora das salas
de aula, pois, segundo Marcel sem uma experiência real do coexistir, da mútua doação em
prol de um projeto comum, é impossível ao existente ter consciência, quer de si mesmo, quer
da alteridade, quer da realidade na qual se encontra: alteridade é condição sine qua non para a
ipseidade. Assim sendo, conforme Marcel, não é possível a subjetividade sem a experiência
de relações intersubjetivas, sem subjetividade não há como existir liberdade.
Marcel nos diz que se desejamos fazer a experiência do encontro autêntico, devemos
viver ou desenvolver três virtudes, a do amor incondicional, a da esperança que leva o
existente a se engajar na concretização de projetos e sonhos, confiando que terá auxilio de
outras pessoas: confia como se dependesse dos outros, mas age como se dependesse de si
mesmo: quem tem esperança verdadeira, confia e age para tornar o que se espera real. Por
fim, a virtude da fidelidade que leva a desenvolver projetos em comum, ou seja, a se
comprometer com outros existentes em projetos comuns crendo que se tornarão realidade.
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Ora, não há possibilidade de viver as referidas virtudes no isolamento, as três exigem o
encontro, a presença de outras pessoas, denominadas existentes.
Pensar o ambiente educacional na perspectiva de Marcel, implica em localizar e
enfrentar os desafios que aviltam o homem, que o condiciona e impede de ser quem ele é. Se
os agentes que participam do processo de ensino aprendizagem praticassem as virtudes do
amor, da esperança e da fidelidade, poderiam revolucionar o sistema de educação atual, por
vezes preocupado com o ter, recolocando o desejo de ser como prioridade. Estas virtudes
deveriam orientar as relações interpessoais, pois poderiam evitar, ou abrandar as situações
descritas por Bellotti e Faria. Lembrando que estes descrevem relacionamentos marcados por
conflitos, preconceitos, ou por indiferenças.
Marcel compreende que para a existência de homens e mulheres, verdadeiramente
livres, se faz necessário propiciar condições para que pensem com autonomia, daí se faz
indispensável refletir sobre a proposta de Montaigne, segundo a qual, uma educação que não
vise o pensamento autônomo e a liberdade é inútil. Segundo Montaigne, o processo de ensino
aprendizagem deve preparar para a vida e favorecer o desenvolvimento de sujeitos
autônomos. Ao que acrescentamos a contribuição de Marcel, propiciar ao existente condições
de construir o seu ser, sua personalidade, sem se tornar individualista: edificar um indivíduo
que se preocupe com o aspecto comunitário.
Pensar a partir da vida, da experiência, do encontro com a alteridade, refletir sobre
uma pedagogia da autonomia, implica em desenvolver ambientes nos quais educandos e
educadores, são verdadeiramente pessoas, que vivam o respeito, o amor, a esperança, a
fidelidade, ou seja, se engajem com todas as suas forças, ou habilidades para que se concretize
o processo cognitivo, de maneira crítica. Nesse processo, não há espaço para aviltamentos,
nos quais a liberdade é negada, o que evitaria as questões elencadas por Antunes e Zuin, tais
como preconceitos, discriminações ou a prática de bullyng.
Entre os que se amam e se respeitam verdadeiramente não existe espaço para que um
dos polos negue o outro. Como já foi visto, Marcel acredita que negar a liberdade é negar a
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subjetividade, a autonomia, a dignidade humana, enfim implica em aviltar e alienar: os
educadores não deveriam contribuir para gerar situações nas quais a liberdade fosse negada,
por sua vez, os educandos não deveriam aviltar os educadores, sob pena de inviabilizar uma
educação digna desse nome.
Educandos e educadores que se tornam egocêntricos, inviabilizam encontros reais, se
tornam cegos, provocam cegueira, promovem o aviltamento das pessoas com as quais
“convivem”, negam a liberdade, e assim, a condição especificamente humana e inviabilizam a
subjetividade. Um sistema pedagógico, pautado por egocêntricos, gera apenas uma educação
de caráter reprodutivista, alienante, incapaz de propor transformações. Por outro lado, uma
educação que promova a libertação supõe um encontro autêntico, uma interação entre
professores e alunos, que permita a ambos ensinar e aprender.
Para finalizar, gostaríamos de lembrar a pergunta de Morales, que tipo de
relacionamento queremos desenvolver com nossos alunos e alunas? Dessa resposta surge a
opção de usar a filosofia como arma de manutenção ou de transformação, de aviltamento ou
de liberdade, enfim, uma educação que ensina a reproduzir ou a pensar com autonomia. Aqui,
vale lembrar o que já foi dito: ser presença é característico do ser humano, o que implica dizer
que o encontro só é possível entre as pessoas. Estar na presença do outro é interagir, é ser
capaz de mostrar-se ao outro e, ao mesmo tempo, vê-lo, acolhê-lo em seu íntimo: o eu não é
um entre os outros, mas com os outros.
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