bruno perandin monografia complementaridade final
Post on 04-Jul-2015
390 Views
Preview:
TRANSCRIPT
BRUNO PERANDIN DE MELO
OS ELEMENTOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS NA
ATIVIDADE DE RADIODIFUSÃO E O PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS
SISTEMAS PÚBLICO, ESTATAL E PRIVADO
FACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2009
3
BRUNO PERANDIN DE MELO
N° 12290 – 5° G
OS ELEMENTOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS NA
ATIVIDADE DE RADIODIFUSÃO E O PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS
SISTEMAS PÚBLICO, ESTATAL E PRIVADO
MONOGRAFIA APRESENTADA À
FACULDADE DE DIREITO DE SÃO
BERNARDO DO CAMPO COMO
EXIGÊNCIA PARCIAL PARA
OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
BACHAREL EM DIREITO.
REVISADA E CORRIGIDA DE
ACORDO COM AS CONSIDERAÇÕES
DA BANCA EXAMINADORA,
COMPOSTA PELO PROFESSOR
ORIENTADOR CARLOS EDUARDO
BATALHA DA SILVA E COSTA,
PROFESSORA CARMEN SILVIA
FULLIN E PROFESSOR ROBERTO
BAHIA.
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2009
4
“Qualquer um é cidadão na proporção do que consome,
Será que estamos indo para o lado errado?”
Ecos Falsos, Findo Milênio
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 6
1. A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO BRASIL: BREVE DESENVOLVIMENTO
HISTÓRICO ..................................................................................................................................... 7
1.1 Noções técnicas de radiodifusão e de televisão por radiodifusão...................................... 7
1.2 Do rádio à televisão: 1922 a 1950 ....................................................................................... 8
1.3 Das emissoras locais de televisão à criação da Embratel: 1950 a 1965 ............................ 12
1.4 Das redes nacionais (de integração) aos governos civis democráticos: 1965 a 1985 ....... 14
2. A REGULAÇÃO JURÍDICA DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO........................................................................................................................................ 16
2.1 Os serviços de radiodifusão como serviços públicos ........................................................ 18
2.2 Elementos dos serviços públicos. ...................................................................................... 19
2.3 Identificação dos elementos dos serviços públicos nas atividades de radiodifusão ........ 21
2.3.1 Elemento subjetivo dos serviços públicos de radiodifusão ....................................... 21
2.3.2 Elemento material dos serviços públicos de radiodifusão ......................................... 23
2.3.3 Elemento formal dos serviços públicos de radiodifusão............................................ 25
3. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS SISTEMAS DE
RADIODIFUSÃO: COMENTÁRIOS AO CAPUT DO ART. 223 .......................................................... 27
3.1 Os sistemas de televisão por radiodifusão ........................................................................ 33
3.2 Sistema privado ................................................................................................................. 34
3.3 Sistemas público e estatal: identidade ou distinção? ....................................................... 39
3.3.1 Sistema estatal ........................................................................................................... 41
3.3.2 Sistema público em sentido estrito ............................................................................ 43
CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 46
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................................. 48
6
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu art. 223, caput, que o Poder
Executivo, ao outorgar e renovar as concessões, permissões e autorizações para os
serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, deverá observar o princípio da
complementaridade dos sistemas público, estatal e privado da atividade.
A doutrina publicista é pacífica ao classificar os serviços de radiodifusão
como serviços públicos, independentemente da forma da prestação – pública, estatal ou
privada por meio de concessão, permissão ou autorização.
No entanto, há corrente recente que defende a classificação do sistema
privado, especificamente de televisão, como atividade econômica em sentido estrito,
sob a égide, portanto, do direito privado.
Acerca dos sistemas estatal e público de radiodifusão, discute-se se são
idênticos ou distintos. Se distintos, diverge-se quanto às suas características
diferenciadoras, especialmente nos serviços televisivos.
O presente trabalho busca abordar tais aspectos, não pretendendo esgotar o
tema. Trata-se de uma singela contribuição a um debate necessário, que vem sendo
travado por distintos atores, com interesses e posições também diversas acerca da
classificação dos serviços de radiodifusão como serviços públicos e do princípio
constitucional da complementaridade dos seus sistemas.
7
1. A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO BRASIL:
BREVE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
1.1 Noções técnicas de radiodifusão e de televisão por radiodifusão.
Antes que seja desenvolvido o tema do presente trabalho, imperioso se faz
apresentar alguns delineamentos técnicos necessários para a compreensão da matéria
jurídica que envolve a radiodifusão e os serviços televisivos prestados por meio desta
técnica, comumente chamados de “televisão aberta”.
Em primeiro lugar, observe-se que a radiodifusão consiste, basicamente, na
transmissão de informação através do espectro eletromagnético. A técnica da
radiodifusão permite que informações como sons, imagens e dados sejam transmitidas
na forma de ondas elétricas e, quando recebidas, convertidas novamente às formas
originais.
Espectro eletromagnético é o espaço por onde as ondas são transmitidas.
Esse espaço, cumpre elucidar, é limitado, pois comporta um determinado número de
faixas de freqüências por onde as ondas elétricas de diferentes tamanhos são enviadas.
Mal comparando, é como se o espectro eletromagnético fosse a malha
viária, composta por ruas, avenidas, rodovias, espaço por onde trafegam ônibus, carros,
motos etc., estes sendo as ondas eletromagnéticas que transportam as informações, que
podem ser de serviços de televisão, rádio, telefonia e internet sem fio, entre outros.
A televisão por radiodifusão consiste no envio de ondas que contém
informações de sons e imagens por meio do espectro eletromagnético e no recebimento
dessas ondas por um aparelho televisor, que as converte à forma de sons e imagens
novamente.
Neste sentido, “televisão é o processo técnico de transmissão de imagens a
distância, mediante a conversão de ondas luminosas em elétricas e a posterior
8
reconversão à forma anterior”1, sendo que o meio por onde essas ondas trafegam, no
caso da radiodifusão, é o espectro eletromagnético.
Nas ciências jurídicas, Ericson Meister Scorsim, advogado e Doutor pela
Universidade de São Paulo, apresenta o conceito técnico do serviço de televisão por
radiodifusão, nos seguintes termos:
“O serviço de televisão por radiodifusão é prestado mediante a transmissão
pela estação de radiodifusão dos sinais de vídeo e áudio, com a utilização do
espaço eletromagnético para fins de propagação das ondas radioelétricas
(mediante a consignação de um canal de freqüência de 6 MHz a cada
concessão do serviço), com o amparo de uma rede de antenas, localizadas
em terra, de repetição e retransmissão dos sinais, e com o auxílio de
satélites, até os domicílios dos receptores”2.
É esta a definição adotada no presente trabalho. Sendo assim,
suficientemente aclarados, mesmo que de maneira superficial, os aspectos técnicos que
permeiam o objeto em estudo, passa-se à indispensável exposição de um breve histórico
da regulação dos serviços de radiodifusão no Brasil.
1.2 Do rádio à televisão: 1922 a 1950
A primeira transmissão de ondas radiodifusoras no Brasil aconteceu em 7 de
julho de 1922, na cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, reproduziu-se o discurso
do Presidente da República Epitácio Pessoa para menos de 100 aparelhos receptores
trazidos dos Estados Unidos e espalhados pela cidade.
Não havia no País, ainda, regulação jurídica da atividade de radiodifusão.
Nas palavras de Bruno Vicchi, “dado o seu ineditismo, as Constituições Federais
brasileiras de 1824 e 1891 não trataram do tema radiocomunicação/radiodifusão. Do
ponto de vista legal, a radiocomunicação/radiodifusão, no Brasil, nasce somente em 27
1 BITTAR. Televisão. In: Enciclopédia saraiva do direito, p. 188.
2 SCORSIM, Ericson Meister. TV digital e comunicação social: aspectos regulatórios: TVs pública, estatal e
privada. Belo Horizonte: ed. Fórum, 2008. p. 97.
9
de maio de 1931, com a publicação do Dec. 20.047, subscrito pelo então Presidente da
República, Sr. Getúlio Vargas.”3.
Citado Decreto aprovou o Regulamento da Execução dos Serviços de
Radiocomunicação no país, fixando a competência exclusiva da União para disciplinar,
entre outras modalidades de comunicações, a radiodifusão. Em seguida, foi editado o
Decreto nº 21.111/32, com o objetivo de complementar o anterior, especificamente
estabelecendo a competência exclusiva da União para legislar e explorar serviços de
“radiocomunicação”, diretamente ou mediante concessões e permissões.
Este último Decreto trouxe à ordem jurídica brasileira, além da definição de
“radiocomunicação” como a transmissão ou recepção sem fio, de escritos, signos,
sinais, imagens ou sons de qualquer natureza, por meio de ondas hertzianas, a
explicitação dos conceitos de radiodifusão, que seria a “radiocomunicação de sons e
imagens destinada a ser livremente recebida pelo público”, e, em antecipação aos
serviços existentes no país, apresentou o conceito de radiotelevisão, como sendo
“radiocomunicação de imagens animadas”, embora ainda não existissem emissoras de
televisão no Brasil.
Em 1934 a “radiocomunicação” ganha previsão constitucional. A Carta
Magna daquele ano foi a primeira a contemplar, em seu artigo 5º, inciso VIII, a
competência privativa da União para “explorar ou dar em concessão os serviços de
telégrafos, radiocomunicação e navegação aérea”.
Em seguida, a Constituição de 1937 é a primeira a exibir a expressão
“radiodifusão”. No entanto, a previsão constitucional foi concebida para possibilitar a
prática da censura prévia, conforme se depreende do artigo 122, item 15, alínea a.
Por sua vez, a Constituição de 1946 altera a sistemática anteriormente
estabelecida, separando os serviços de radiodifusão das modalidades de
radiocomunicação. “Para Saint-Clair Lopes, a preocupação jurídica na década de 40
consistia na destinação das emissões, o que configuraria o critério para distinguir a
radiocomunicação (destinação certa e determinada de suas emissões) em face da
3 VICCHI, Bruno. In BITELLI, Marcos Alberto Sant’Anna. O direito da comunicação e da comunicação
social – São Paulo : ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 93.
10
radiodifusão (destinada ao público em geral, sem limitações de destino, orientando-se
no sentido da universalidade) (...)”4.
Acerca do tratamento constitucional conferido à radiodifusão em 1946, é
mister trazer à colação a detalhada lição de Antonio Chaves5, que data de 1952:
“Nossa Constituição define a radiodifusão como serviço público, suscetível
de concessão por prazo determinado, uma vez que atribui à União, art. 5º,
XII, „explorar diretamente ou mediante autorização ou concessão os
serviços telégrafos, de radiocomunicação, de radiodifusão, de telefones
interestaduais e internacionais‟, além de outros. A radiodifusão, portanto, é
um serviço público, da competência da União (...). Encontramo-nos, assim,
num meio termo entre os países que, como a Grã-Bretanha, consideram a
radiodifusão atividade intimamente ligada a interesses públicos, exercendo-
a diretamente, e os países da doutrina oposta, como os EE.UU., que a
consideram como atividade comercial privada. Desde logo se observa que a
Constituição não tem a radiodifusão na conta de uma das modalidades de
radiocomunicação, uma vez que as menciona separadamente, daí deduzindo
a Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara Federal, no relatório
citado, que devam ser autônomas as leis respectivas. (...) Conclui-se que no
Brasil a radiodifusão é um serviço público de competência da União, que
pode atribuir sua execução a particulares, por meio de concessão, e a
entidades públicas e administrativas, mediante autorização (...)”.
Não obstante os termos constitucionais da época distinguirem a radiodifusão
da radiocomunicação, foi ratificada pelo Brasil a Convenção Internacional de
Telecomunicações de Atlantic City, em 1947, revista em Buenos Aires em 1952, que
estabeleceu: (i) “telecomunicação” como toda transmissão ou recepção de símbolos,
sinais, fac-símiles, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por fio,
radioeletricidade, meios óticos ou outros sistemas eletromagnéticos; (ii)
“radiocomunicação” como toda telecomunicação por meio de ondas hertizianas e; (iii)
4 In SCORSIM, Ericson Meister. Op. cit. p. 45.
5 CHAVES, Antonio. Proteção internacional do direito autoral de radiodifusão. São Paulo ; Empresa
Gráfica da RT.
11
“radiodifusão” como serviço de radiocomunicação que efetua emissões destinadas à
recepção direta pelo público em geral, que pode compreender emissões sonoras, de
televisão ou de fac-símiles e outras espécies.
Conforme se observa, a Constituição de 1946 não estabeleceu as diretrizes
para a radiodifusão e a radiocomunicação em observância estrita aos padrões
internacionais, mas levou em conta os fins da radiodifusão perante a sociedade, mesmo
que isso tenha significado deficiência no delineamento técnico dos serviços. A este
respeito, mais uma vez são pertinentes as palavras de Saint-Clair Lopes6: “justifica-se,
porém, a heresia técnica do texto constitucional. O legislador viu mais longe do que o
emaranhado de fios e válvulas; compreendeu a missão social da radiodifusão e
destacou-a como era mister”.
Sob este contexto regulatório foi estreada, em 1950, na cidade de São Paulo,
pelas mãos de Assis Chateaubriand, a televisão brasileira. Fernando Morais narra o
episódio com riqueza de detalhes tanta que é possível visualizar a tensão e a euforia que
pairaram sobre o evento, valendo a transcrição:
“Às sete em ponto (do dia 18 de setembro de 1950), como tinha sido
marcado, o salão do restaurante do Jockey Club fervilhava de gente. Em
pontos estratégicos da cidade foram instalados 22 receptores nas vitrinas das
dezessete lojas revendedoras de televisores, em quatro bares e no saguão
dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril. No estúdio também estava
tudo preparado: as três câmeras que iam transmitir o primeiro programa
estavam prontas, e no chão as marcações com giz indicavam onde cada
artista deveria se colocar. Longe do alcance das lentes, espalhavam-se por
todos os cantos as „dálias‟ – pedaços de cartolina com os lembretes das falas
de cada um dos apresentadores e cantores. Suando nas mãos, Walter Foster
esperava a luz vermelha da câmera um se acender para pronunciar uma
breve mensagem: Está no ar a PRF-3-TV Tupi de São Paulo, a primeira
estação de televisão da América Latina. Para desespero generalizado,
aconteceu o que ninguém poderia imaginar: uma das câmeras pifou. Não é
verdadeira a versão de que o defeito tenha sido provocado por uma garrafa
6 In SCORSIM, op. cit.
12
de champanhe quebrada na câmera (...). Com uma hora e meia de atraso
(...), o que Obermüller viu na tela, ao contrário da tragédia que previra, foi
um programa correto do começo ao fim. Improvisado e irresponsável, é
certo, mas impecável. Ao final de duas horas de programação, só um
especialista familiarizado com o funcionamento de um canal de TV (...)
poderia perceber que apenas duas, e não três câmeras, haviam focalizado
Walter Foster (...)”7.
1.3 Das emissoras locais de televisão à criação da Embratel: 1950 a 1965
No Brasil, até a década de 1960, as regras que regiam o setor de
telecomunicações eram fragmentadas e apresentavam-se por meros decretos. Não
existia um sistema normativo congruente que adotasse padrões obrigatórios de
transmissão. Nesse cenário, empresas locais e regionais prestavam os serviços de
radiodifusão adotando diferentes formatos técnicos, de modo não coordenado, o que
dificultava a repetição das ondas eletromagnéticas por estações retransmissoras e
impedia a formação de uma rede nacional.
Durante a década de 1950, as transmissões da televisão limitavam-se ao
espaço onde estavam instaladas as antenas, cujo sinal era captado pelos telespectadores
em um raio máximo de 100 quilômetros do transmissor. É Priolli quem bem resume
esse período, explicando que “a televisão brasileira, portanto, nasceu local e assim
permaneceu por uma década, antes de que a evolução técnica a projetasse além das
fronteiras municipais”8.
Esse panorama começa a ser alterado em 1962, quando a Lei 4.117, de 27
de agosto instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT. Foi previsto no
diploma a competência da União para executar diretamente os serviços de radiodifusão
ou através da concessão, autorização ou permissão. O CBT apresentava uma unicidade
entre serviços de radiodifusão ou radiocomunicação, espécies do gênero
7 In BITELLI, Marcos Alberto Sant’Anna. Op. cit. p. 89.
8 PRIOLLI. Antenas da Brasilidade. In: BUCCI, Eugênio (Org.). A TV aos 50: criticando a televisão brasileira
no seu cinqüentenário. In SCORSIM, Ericson Meister. p. 49
13
telecomunicações, conforme o artigo 4º. Nesse sentido, o serviço de radiodifusão não
foi disposto como um conceito autônomo, apenas sendo um dos serviços de
telecomunicações, nos termos do artigo 6º, alínea d.
A novidade trazida pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, no
entanto, consistiu na autorização para que fosse criada, pela União, uma entidade
destinada à exploração de “serviços dos troncos que integram o Sistema Nacional de
Telecomunicações, inclusive suas conexões internacionais” e também dos “serviços
públicos de telégrafos, de telefonia interestaduais e de radiocomunicações, ressalvadas
as exceções legais”.
No ano seguinte à publicação do diploma legal foi aprovado o Regulamento
dos Serviços de Radiodifusão, por meio do Decreto nº 52.795/63, que classificou a
atividade quanto ao tipo de transmissão (de sons ou de sons e imagens), quanto à área
de serviço (local, regional e nacional), quanto ao tipo de modulação (amplitude
modulada – AM – ou freqüência modulada – FM), quanto ao tempo de funcionamento
(horário limitado ou ilimitado) e quanto à faixa de freqüência e comprimento das ondas
radioelétricas, de acordo com os critérios estabelecidos no item 5º do artigo 4º.
Dois anos depois, em 1965, foi criada, pela União, a entidade autorizada
pelo CBT que organizaria o setor das telecomunicações nacionalmente. Sob a forma de
empresa pública, passa a existir a Empresa Brasileira de Telecomunicações –
EMBRATEL. Eugenio Bucci faz uma sucinta, porém esclarecedora, narração do
surgimento da entidade, nas seguintes palavras:
“A Embratel nasceu em 16 de setembro de 1965, sob a ditadura militar. Sua
origem não pertence à tradição autoritária, mas deve ser buscada no período
anterior: a autorização para sua criação já se encontrava na lei nº 4.117, de
27 de agosto de 1962, que instituiu o Código Brasileiro de
Telecomunicações. Trata-se, portanto, de uma empresa de inspiração
nacionalista, mas não nos moldes autoritários - seus compromissos com a
doutrina da segurança nacional só iriam acontecer mais tarde. Em 1967, a
Embratel passou a integrar o Ministério das Comunicações, instituído
naquele ano e, em 1972, foi transformada em sociedade de economia mista
14
e virou uma subsidiária da Telebrás, Telecomunicações Brasileiras S. A.,
criada pela lei 5.792, de 11 de julho de 1972”9.
1.4 Das redes nacionais (de integração) aos governos civis democráticos:
1965 a 1985
Conforme se expôs, a televisão brasileira da década de 1950 a meados de
1960 tinha caráter exclusivamente local. No entanto, com a criação da EMBRATEL em
1965 iniciou-se a organização nacional do setor, que em 1967 já contava com três
sistemas de microondas, ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, Belo Horizonte e
Brasília.
Em 1969, com a inauguração, no Rio de Janeiro, do primeiro Centro de TV
da Empresa Brasileira de Telecomunicações, foi possível a interligação das emissoras
de TV ao Sistema Nacional de Telecomunicações, tornando-se viáveis as transmissões
nacionais diretas de televisão. Vale dizer, passaram a existir as precondições necessárias
à criação de uma rede nacional de televisão.
Nesse contexto, a Constituição de 1967, em sintonia com o marco
regulatório do setor das telecomunicações, o CBT, concentrou em mãos da União a
competência para a outorga dos serviços de telecomunicações, evitando a dispersão com
os Estados e Municípios, o que poderia prejudicar a organização de um sistema
nacional.
A partir desse cenário normativo a União instalou e administrou a maioria
das operadoras do País, pois, nas palavras de Pastoriza10
, “a idéia básica era criar um
sistema nacional de telecomunicações que permitisse unificar e compatibilizar
tecnicamente a rede, uma vez que a fragmentação da indústria havia produzido grande
heterogeneidade de equipamentos, prejudicando a internalização entre as diversas
regiões do país e elevando o custo de operação do sistema”.
9 BUCCI, Eugênio: disponível em:
http://www2.mre.gov.br/cdBrasil/itamaraty/web/port/comunica/tv/crescim/embratel/index.htm. Acessado em 14.06.2009. 10
In SCORSIM, Ericson Meister. Op. cit. p. 29-30.
15
Ainda em 1967 aprovou-se o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro, que
modificou o Código Brasileiro de Telecomunicações nos aspectos relacionados à
outorga das licenças e instituiu penalidades e regras no controle da concentração da
propriedade das emissoras de rádio e televisão, prevendo-se que cada entidade poderia
ter concessões ou permissões para executar os serviços de radiodifusão de sons e
imagens no número máximo de 10 (dez) em todo o território nacional, sendo limitadas a
5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por Estado e, no caso da radiodifusão de sons, estabeleceu
limites locais, regionais e nacionais, nos termos do artigo 12 do referido Decreto-Lei11
.
A implantação desse modelo de concessões e permissões centralizadas na
competência da União foi um dos fatores essenciais para o desenvolvimento da infra-
estrutura de telecomunicações no Brasil. A criação desse sistema nacional significou,
para os militares, uma ferramenta para a concretização do projeto de “integração
nacional”. A Rede Básica de Microondas inaugurada em 1969 permitiu a “interligação
entre as diversas regiões por sistemas confiáveis de telefonia e transmissão de TV, rádio
e dados”, com a “transmissão de programas ao vivo, em tempo real(...)”12
.
Por fim, anote-se que o Código Brasileiro de Telecomunicações e o seu
Regulamento dos Serviços de Radiodifusão continuam em vigência e são, até hoje, os
diplomas que editam as regras a serem observadas nas atividades de rádio e televisão.
A seguir se demonstrará o tratamento conferido pela Constituição Federal
de 1988 e suas Emendas ao setor, bem como as alterações da legislação de regência da
matéria até os dias atuais.
11
Não é preciso uma pesquisa aprofundada para se constatar que essa regra jamais foi respeitada. Hoje, a principal razão desse descumprimento é a estranha interpretação que o Ministério das Comunicações faz da disposição. Venício A. de Lima expõe que “por razões inexplicáveis o Ministério das Comunicações, que deve fiscalizar o cumprimento da lei, interpreta ‘entidade’ como ‘pessoa física’ e considera, portanto, a óbvia situação de propriedade cruzada que predomina em vários grupos de mídia do país como observando as limitações legais”. LIMA, Venício A. de Lima. Mídia: Teoria e Política. São Paulo : ed. Fundação Perseu Abramo. 2007. p 96. 12
SCORSIM, Ericson Meister. p. 30-31.
16
2. A REGULAÇÃO JURÍDICA DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Constituição promulgada em 1988 é a primeira na história do Brasil a
dedicar um capítulo exclusivo à comunicação social. O capítulo V, composto pelos
artigos 220 a 224, expõe regras aplicáveis a todos os meios de comunicação social,
impressos ou eletrônicos, como, por exemplo, a vedação à censura, a liberdade de
manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo, garantindo que essas liberdades não sofrerão qualquer restrição,
observadas as disposições constitucionais.
Além dessas regras de aplicação a todos os meios, a radiodifusão é,
especificamente, objeto de tratamento constitucional nos artigos 221 a 223 da Carta
Magna, bem como no artigo 21, inciso XII, alínea a), donde se depreende o regime
jurídico especial ao qual estão sujeitos o rádio e a televisão, estabelecendo-se a
competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão
ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Ademais, o artigo
22, inciso IV, estabelece competência privativa da União para legislar sobre o setor, e,
ainda, no artigo 49, inciso XII, se vê que é da competência exclusiva do Congresso
Nacional apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio
e televisão.
Depreendem-se dos citados dispositivos as competências legislativa e
administrativa sobre a matéria. A começar pela legislativa, observa-se que a União é,
privativamente, competente para estabelecer os diplomas de regência da radiodifusão.
Administrativamente, também compete à União explorar os serviços de rádio e
televisão, sendo que quando houver a exploração por particulares, os atos de outorga e
de renovação das concessões serão apreciados pelo Congresso Nacional, em verdadeira
função fiscalizatória.
Importa anotar que o §4º do artigo 223 da Carta Magna dispõe que o
cancelamento de concessão ou permissão, antes de vencido o prazo de vigência,
17
depende de decisão judicial, sendo a radiodifusão o único serviço que, outorgado ao
particular pela Administração, tem a extinção unilateral da concessão ou permissão,
antes de decorrido o prazo de vigência, condicionada ao Poder Judiciário.
O prazo de vigência das concessões, nos termos do artigo 223, § 5º da CF, é
de dez anos para as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão. Tal previsão
também é encontrada no artigo 33, §3º, do Código Brasileiro de Telecomunicações e no
artigo 27 do Decreto 52. 795 de 1963, de onde se extrai que as concessões poderão ser
renovadas por igual período, dependendo de decisão do Estado e mediante determinadas
condições.
Nesse sentido, estabelece o § 2º do artigo 223 da Constituição Federal que a
não-renovação da concessão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do
Congresso Nacional, em votação nominal. Não obstante a intenção constituinte de
submeter ao crivo do Congresso Nacional os atos da União pertinentes à radiodifusão,
tal regra não significou uma atuação muito criteriosa dos parlamentares13
. Scorsim
comenta que “na prática, ocorre a renovação automática das concessões”14
.
Uma diferenciação que se faz pertinente é a de “propriedade” das
freqüências concedidas e da propriedade dos meios de comunicação por radiodifusão.
Não há que se fazer tal confusão, pois, em verdade, a propriedade das freqüências por
um particular é juridicamente impossível, sendo concedido pelo Estado apenas a sua
exploração, por prazo determinado e mediante condições previstas no Código Brasileiro
de Telecomunicações, no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão e na própria
Constituição Federal. É necessário observar que o que existe, sim, é a propriedade
privada dos meios de produção e de transmissão de conteúdo, por meio dos quais atuam
as empresas privadas nos meios de comunicação.
Nessa esteira, a Constituição Federal traz regras para a propriedade dos
meios de comunicação social. O §5º do artigo 220 estabelece que não pode haver, direta
ou indiretamente, monopólio ou oligopólio no setor. O artigo 222 prevê em seu caput
13
É de se compreender que um senador ou deputado federal não tenha disposição para, abertamente, votar pela não-renovação de uma concessão de rádio ou televisão, sob pena de ser pautado nesses meios de uma forma pouco favorável, sendo prejudicado perante seu eleitorado. 14
SCORSIM, Ericson Meister. Op. cit. p. 327.
18
que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e
imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de
pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País”.
Por fim, cumpre-se anotar a separação entre telecomunicações e
radiodifusão procedida pela Emenda Constitucional nº 8 de 1995. Decorreu dessa
Emenda a distinção jurídica dos serviços de telecomunicações dos serviços de
radiodifusão, sendo editada a Lei nº 9.472, de 1997, Lei Geral de Telecomunicações,
para a disciplina daqueles, e estes permaneceram sob a égide da Lei nº 4.117, de 1962, o
Código Brasileiro de Telecomunicações.
Sendo assim, apresentadas as normas pertinentes aos serviços de
radiodifusão no Estado Democrático de Direito, necessário agora analisá-los à luz do
Direito Administrativo quanto ao enquadramento da atividade como serviço público.
2.1 Os serviços de radiodifusão como serviços públicos
Doutrinariamente, são apresentados elementos dos serviços públicos aos
quais os serviços de radiodifusão se enquadram sem maiores dificuldades, não obstante
suas especificidades estabelecidas em nosso ordenamento pelo constituinte e pelo
legislador ordinário, sobre as quais se tratou no capítulo anterior.
Neste ponto é necessário observar que o conceito de “serviço público” é
objeto de grandes divergências doutrinárias. Isso porque tal definição vincula-se às
diversas percepções acerca do papel do Estado perante a sociedade e o mercado e, por
isso, modifica-se de acordo com as diferentes convicções dos autores.
Portanto, não se buscará, aqui, a definição do que seja serviço público,
sendo certo que tal não é objeto do trabalho. O que se pretende com este capítulo é
trazer à tona as formulações doutrinárias sobre os elementos comuns aos serviços
públicos para que tais traços sejam identificados nos serviços de radiodifusão.
19
2.2 Elementos dos serviços públicos.
Na lição de Odete Medauar15
, as atividades qualificadas como serviços
públicos devem apresentar dois elementos: “a) vínculo orgânico com a Administração,
que tem previsão constitucional no caput do art. 175, e; b) quanto ao regime jurídico, a
atividade de prestação é submetida total ou parcialmente ao direito administrativo.”
(destaques da autora).
Celso Antônio Bandeira de Mello16
também apresenta dois elementos que
compõem a noção de serviço público: “(a) um deles, que é seu substrato material,
consistente na prestação de utilidade ou comodidade fruível singularmente pelos
administrados; o outro, (b) traço formal indispensável, que lhe dá justamente caráter de
noção jurídica, consistente em um específico regime de Direito Público, isto é, numa
„unidade normativa‟.” (destaques do autor).
Destas lições é possível a extração de três elementos dos serviços públicos:
o subjetivo, o material e o formal. Tais são apresentados por Maria Sylvia Zanella Di
Pietro17
, que ensina terem surgido no período do Estado Liberal e que permanecem
compondo a definição dos serviços públicos, com sensíveis diferenças com relação à
sua concepção original devido à evolução histórica.
O elemento subjetivo é apresentado por Odete Medauar como o “vínculo
orgânico [do serviço] com a Administração”, que corresponde à titularidade do Estado
sobre a atividade. Para Di Pietro, a criação de serviço público é feita por lei, como
opção do Estado na execução de determinada atividade que não parece ser conveniente
depender da iniciativa privada, sendo que a sua gestão também é incumbência do
Estado, direta ou indiretamente.
O elemento material é, nas palavras nunca demais citadas de Celso Antônio
Bandeira de Mello, a caracterização do serviço como de “utilidade ou comodidade
15
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno – 11. ed. – São Paulo : Revista dos Tribunais, 2007. p. 315. 16
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo – 26. ed. – São Paulo :
Malheiros, 2009. p. 668. 17
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 19ª ed. – São Paulo : Atlas, 2006. p. 112-116.
20
fruível singularmente pelos administrados”. A este respeito, depreende-se da lição de Di
Pietro que os autores “todos consideram que o serviço público corresponde a uma
atividade de interesse público”18
, mas a professora ressalva que nem toda atividade de
interesse público é serviço público, pois algumas delas, quando exercidas por
particulares, tem como objetivo primeiro a satisfação do interesse do próprio prestador,
e não o interesse geral, que também é contemplado pela atividade, mas de forma
secundária. Sendo assim, pontua a autora que é necessário que a lei atribua o objetivo de
interesse público ao Estado para que se caracterize o serviço público.
Quanto ao elemento formal, trata-se da sujeição do serviço a um regime
específico de direito público. Sobre o assunto, Medauar admite a aplicação total ou
parcial do Direito Administrativo ao serviço público. Importa apresentar também a lição
de Di Pietro, que estabelece uma divisão entre serviços públicos não comerciais e não
industriais e serviços públicos comerciais e industriais para a definição do elemento
formal de cada um deles, vale dizer, a caracterização dos regimes jurídicos aplicáveis
nos diferentes casos. É pertinente a transcrição destes ensinamentos, que por sua riqueza
e exatidão não se faz possível o resumo:
“O regime jurídico a que se submete o serviço público também é definido
por lei. Para determinados tipos de serviços (não comerciais ou industriais)
o regime jurídico é de direito público: nesse caso, os agentes são
estatutários; os bens são públicos; as decisões apresentam todos os atributos
do ato administrativo, em especial a presunção de veracidade e a
executoriedade; a responsabilidade é objetiva, os contratos regem-se pelo
direito administrativo. Evidentemente, isso não exclui a possibilidade de
utilização de institutos de direito privado, em determinadas circunstâncias
previstas em lei, especialmente em matéria de contratos como os de locação,
comodato, enfiteuse, compra e venda.
Quando, porém, se trata de serviços comerciais e industriais, o seu regime
jurídico é o de direito comum (civil e comercial), derrogado, ora mais ora
menos, pelo direito público. Em regra, o pessoal se submete ao direito do
18
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. p. 115
21
trabalho, com equiparação aos funcionários públicos para determinados fins;
os contratos com terceiros submetem-se, em regra, ao direito comum; os
bens não afetados à realização do serviço público submetem-se ao direito
privado, enquanto os vinculados ao serviço têm regime semelhante ao dos
bens públicos de uso especial; a responsabilidade, que até recentemente era
subjetiva, passou a ser objetiva com a norma do artigo 37, § 6º, da
Constituição de 1988. Aplica-se também o direito público no que diz
respeito às relações entre a entidade prestadora do serviço e a pessoa
jurídica política que a instituiu. Vale dizer, o regime jurídico, nesse caso, é
híbrido, podendo prevalecer o direito público ou o direito privado,
dependendo do que dispuser a lei em cada caso; nunca se aplicará, em sua
inteireza, o direito comum tal qual aplicado às empresas privadas.”
É de se destacar que as diferentes formulações doutrinárias não se anulam,
pelo contrário, apresentam integralmente o elemento formal dos serviços públicos, na
medida em que aplicado o regime do direito administrativo em maior ou menor
proporção em cada caso, em nenhum deles a atividade poderá fugir do interesse público
e sempre estará submetida a um regime de direito público elaborado em função de
valores previstos de forma especial nas normas de regência da atividade.
Sendo assim, definidos os elementos dos serviços públicos conforme os
ensinamentos da melhor doutrina pátria, passa-se à identificação de tais características
nos serviços de radiodifusão.
2.3 Identificação dos elementos dos serviços públicos nas atividades de
radiodifusão
2.3.1 Elemento subjetivo dos serviços públicos de radiodifusão
Neste item, cumpre demonstrar a titularidade estatal dos serviços de
radiodifusão no sistema normativo pátrio, não obstante alguns dos dispositivos que
22
trazem essa regra já terem sido citados no capítulo que tratou da regulação dos serviços
de radiodifusão no Estado Democrático de Direito.
Em primeiro lugar, importa trazer à colação o disposto no artigo 21, inciso
XII, alínea a) da Constituição Federal:
“Art. 21. Compete à União:
(...)
XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou
permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;”
Depreende-se da regra constitucional, sem margem para dúvidas, que a
União é titular dos serviços de radiodifusão, podendo explorá-los diretamente e também
transferir a prestação da atividade a particulares, mediante autorização, concessão ou
permissão.
Neste sentido, estabelece o caput do artigo 223 da Carta Magna que
“compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização
para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.
Como se vê, é notório o vínculo das atividades de radiodifusão com o
Estado, em sua esfera federal, conferido pelo constituinte, identificando-se facilmente,
portanto, o elemento subjetivo desse serviço público. Ademais, não obstante a
titularidade dos serviços de radiodifusão, estes compõem a única espécie de serviços
públicos em que o Estado tem a obrigação de prestar diretamente e também de outorgar
aos particulares, por força do princípio da complementaridade dos sistemas. Tal aspecto
é analisado mais detidamente no próximo capítulo, que trata especificamente deste
princípio constitucional.
Evidenciado, portanto, que a titularidade dos serviços de radiodifusão é do
Estado, especificamente da União, a ela competindo a sua prestação direta e também os
23
atos de concessão, permissão ou autorização da prestação dos serviços, é necessário
diferenciar a titularidade dos serviços e a prestação dos serviços. Resumidamente, na
lição de Celso Antônio Bandeira de Mello19
, a titularidade dos serviços públicos é
sempre do Estado e o que se consigna ao particular é somente a prestação de tais
serviços.
Neste diapasão, dispõe o parágrafo único do artigo 24 do Regulamento dos
Serviços de Radiodifusão (Decreto n.º 52.795/63) que “em qualquer caso, as
freqüências consignadas não constituem direito de propriedade da entidade, incidindo
sempre sobre as mesmas o direito de posse da União”. Resta claro, portanto, a diferença
entre a titularidade dos serviços de radiodifusão, que é do Estado, e a prestação, que
pode ser direta ou indireta.
Sendo assim, demonstrado o elemento subjetivo dos serviços públicos de
radiodifusão, passa-se à identificação do seu elemento material.
2.3.2 Elemento material dos serviços públicos de radiodifusão
Em primeiro lugar, para definir o elemento material dos serviços em estudo,
cumpre expor o papel de utilidade e comodidade que os meios de comunicação por
radiodifusão representam para a população brasileira. Para tanto, é mister apresentar
alguns dados sobre a presença da televisão e do rádio nos lares dos brasileiros.
De acordo com pesquisa realizada em 2005 pelo Comitê Gestor da Internet
no Brasil – CGIBR -, intitulada “Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e
da Comunicação No Brasil 2005”, “o bem mais popular no Brasil é a televisão. Mais de
95% das famílias brasileiras possui um aparelho de TV. A TV é mais popular até
mesmo que um bem muito mais barato, o rádio que é propriedade de quase 92% da
população”20
.
19
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit. 20
Trecho extraído do relatório final da pesquisa. Disponível em http://www.cetic.br. Acessado em 14.06.2009.
24
No mesmo sentido concluiu a pesquisa formulada em 2007 pelo Programa
Nacional de Conservação de Energia Elétrica – PROCEL – intitulada “Pesquisa de
Posse de Equipamentos e Hábitos de Consumo”. Segundo os dados colhidos “o
aparelho eletro-eletrônico mais presente nos lares brasileiros é a televisão, com 97,1%
deles contando com pelo menos uma tevê, superando o refrigerador, que pode ser
encontrado em 96% das casas. A força da televisão pode ser medida por outro dado: a
média do número de televisores por residência é de 1,41, ou seja, há mais de um
aparelho do tipo por casa”21
.
Conforme se observa, a televisão é o aparelho eletrodoméstico com maior
presença nos lares brasileiros, estando o rádio também presente em mais de noventa por
cento dos domicílios. Sendo assim, não é preciso muito esforço para reconhecer a
utilidade e a comodidade que esses meios de comunicação representam à população.
No entanto, tal aspecto não é bastante para caracterizar o elemento material
dos serviços de radiodifusão como serviços públicos. Além das estatísticas sobre a
presença dos aparelhos de rádio e televisão nos lares, é necessário compreender o papel
que estes meios de comunicação assumem perante a sociedade brasileira, já que são os
mais difundidos do País.
Não se pode olvidar que estes veículos são centrais à função de informar a
população brasileira, pois nenhum outro meio comunicativo tem inserção tão grande
quanto os de radiodifusão. Sendo assim, é pertinente que tais serviços sejam eleitos
como públicos pelo Estado, pois podem (e devem), efetivamente, satisfazer interesses
gerais de veiculação de conteúdos de caráter educativo, artístico, cultural e informativo,
promovendo a cultura nacional e regional e estimulando a produção independente que
objetive divulgação, nos termos do artigo 221 e incisos da Constituição Federal.
Neste sentido, é mister colacionar a magistral lição de Eros Roberto Grau:
21
Trecho extraído do sítio eletrônico da Eletrobrás, em artigo de título “Procel apresenta pesquisa sobre posse e uso de equipamentos elétricos”, de 18.04.2007. Disponível em http://www.eletrobras.com. Acessado em 14.06.2009.
25
“(...) a comunicação social viabilizada pelas empresas de radiodifusão
sonora e de sons e imagens é, em última instância, instrumental da
concreção da soberania nacional”22
.
2.3.3 Elemento formal dos serviços públicos de radiodifusão
Quanto ao elemento formal, necessário delinear o regime jurídico pertinente
aos serviços de radiodifusão. É ponto pacífico na doutrina que o Direito Administrativo
rege as relações entre o delegante e o delegado23
do serviço público, incidindo sobre a
atividade, portanto, os princípios que informam a atuação do Estado e seus atos de
outorga.
É de se destacar que a Constituição Federal apresenta, no artigo 221,
princípios a serem atendidos pelas emissoras de rádio e televisão, bem como o
Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (aprovado pelo Decreto nº 52795/6), em seu
artigo 67 dispõe que as concessionárias e permissionárias dos serviços deverão atender
uma série de exigências, dentre as quais destacam-se a limitação a um máximo de vinte
e cinco por cento do horário da programação diária o tempo destinado à publicidade
comercial e destinar no mínimo cinco por cento para a transmissão de serviço noticioso.
Tais disposições compõem, exatamente, a unidade normativa que
caracteriza o elemento formal de um serviço público, a qual Celso Antônio Bandeira de
Mello preleciona ser “(...) formada por princípios e regras caracterizados pela
supremacia do interesse público sobre o interesse privado e por restrições especiais,
firmados uns e outros em função da defesa de valores especialmente qualificados no
sistema normativo”24
.
Sobre a forma de escolha do particular que irá prestar serviços de
radiodifusão, tratando-se de serviço público, deverá ser obedecido o artigo 175 da
Constituição Federal, que prevê a obrigação do Poder Público conceder ou permitir a
22
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo : Malheiros. p. 139. 23
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 140. 24
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit.
26
atividade sempre através de licitação. A este respeito, o Regulamento supra citado, em
seu artigo 1º, com redação determinada pelo Decreto 2.180/96, estabelece que, quanto à
outorga para execução dos serviços, deverão ser observadas as disposições da Lei
Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que traz as regras gerais das licitações.
Há disposição constitucional a ser observada pelos concessionários e
permissionários dos serviços de radiodifusão e pelos parlamentares, que é a do artigo
54, alínea a, do inciso I, onde se estabelece que deputados e senadores não podem
“firmar ou manter contrato com (...) empresa concessionária de serviço público”.
O Código Brasileiro de Telecomunicações estabelece, ainda, a proibição a
quem esteja no gozo de “imunidade parlamentar” e, também, de foro especial, de
exercer função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão,
conforme o parágrafo único do artigo 38.
Nestes termos, estão demonstrados os elementos formal, material e
subjetivo da atividade de radiodifusão, concluindo-se, portanto, que trata-se de um
serviço público. Sendo assim, passa-se à análise do princípio da complementaridade dos
sistemas de radiodifusão.
27
3. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS
SISTEMAS DE RADIODIFUSÃO: COMENTÁRIOS AO CAPUT DO ART. 223
Dispõe o artigo 223, caput, da Constituição Federal de 1988:
“Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e
autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens,
observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público
e estatal”.
Este dispositivo traz verdadeira inovação ao ordenamento jurídico pátrio. A
previsão do princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de
radiodifusão não existiu nas Constituições anteriores à de 1988. O preceito é um sopro
da grande inspiração democrática que pautou os trabalhos da Assembléia Constituinte,
devendo, portanto, ser analisado sob esta perspectiva.
Não há melhor maneira de iniciar a digressão sobre o princípio senão
colacionando a didática lição de Celso Antônio Bandeira de Mello25
sobre esta peculiar
espécie de serviço público, que é a radiodifusão:
“Há uma espécie de serviços públicos que o Estado, conquanto obrigado a
prestar por si ou por criatura sua, é também obrigado a oferecer em
concessão, permissão ou autorização: são os serviços de radiodifusão sonora
(rádio) ou de sons e imagens (televisão). Isto porque o art. 223 determina
que, na matéria, seja observado o princípio da complementaridade dos
sistemas privado, público e estatal. Se esta complementaridade deve ser
observada, o Estado não pode se ausentar de atuação direta em tal campo,
nem pode deixar de concedê-los, pena de faltar um dos elementos do
trinômio constitucionalmente mencionado”.
Conforme se depreende, o princípio constitucional significa que, além da
radiodifusão privada, deverão existir a pública e a estatal. O professor apresenta a
25
Op. cit. p. 683.
28
necessidade de o Estado prestar os serviços diretamente, constituindo este o sistema
estatal, bem como a obrigação em conceder a prestação, sendo esta a configuração do
sistema privado26
.
Em sentido diverso é a palavra de Ives Gandra Martins27
, que ao tecer suas
considerações sobre o dispositivo constitucional que trouxe o preceito ao nosso
ordenamento, prega:
“O princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal
diz respeito a que a atuação do Poder Executivo apenas complementará a
atuação dos setores privado, público e estatal. Isso confirma a interpretação
ofertada na primeira parte destes comentários, vale dizer, a competência
formal de atribuições é complementar, no que diz respeito à liberdade de
ação, estando a exploração privada em primeiro lugar”
Tal posicionamento, com o devido respeito, não condiz com os preceitos
regentes do regime jurídico da radiodifusão e seus sistemas. Um serviço público, cuja
prestação e exploração é outorgada pelo Estado, deve reger-se pelos princípios da
indisponibilidade e da supremacia do interesse público sobre o privado (BANDEIRA
DE MELLO, Celso Antônio. 2009) e, conforme se demonstrará, nem sempre os
interesses dos radiodifusores comerciais se coadunam com os interesses e as demandas
da coletividade. Nessa trilha, não se pode entender que o particular tenha preferência na
exploração da atividade de radiodifusão frente ao próprio Estado, pois desta maneira o
serviço público estaria sendo desviado de sua própria finalidade, que é a satisfação do
interesse público.
Mais adequada é a lição de José Afonso da Silva28
:
“Importante é frisar que a Constituição autoriza sistemas públicos de
radiodifusão, e o princípio da complementaridade, aí, não significa que o
sistema diretamente explorado pelo Poder Público complementa o privado.
26
Não obstante o mestre referir-se ao “trinômio” constitucional, não há em sua lição elementos que diferenciem os sistemas público e estatal. Essa distinção será estudada adiante, em item pertinente. 27
BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, vol. 8, 1998, ed. Saraiva. São Paulo. p. 866. 28
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São Paulo : Malheiros, 2009. p. 833.
29
O princípio da complementaridade, nesse sentido, só se aplica às atividades
econômicas, não pode aplicar-se à exploração de serviço público. Seria
absurdo que o próprio titular do serviço o explorasse apenas como
complemento de delegações que ele próprio outorga para exploração desses
serviços.”
Esta última interpretação, ao que parece, é mais fiel à intenção do
constituinte. Nada melhor que as palavras do próprio relator do capítulo da
Comunicação Social da Constituição Federal, o pranteado ex-deputado Artur da Távola,
para delinear o sentido original do preceito e corroborar o posicionamento:
" (...) Eu era o Relator da matéria e considerava que o mais importante era
algo que significasse a democratização na outorga dos canais. (...) E eu
defendia a tese de haver um equilíbrio na concessão. Parecia-me que,
havendo um equilíbrio na concessão, se alcançaria o pressuposto da
democratização nos meios de informação. Então, criei ali a figura da
complementaridade do sistema. Eu era Relator e criei esta figura, que a
autorização, a concessão, a permissão para o serviço de radiodifusão sonora
e de sons e imagens observasse o princípio de uma complementaridade dos
sistemas privado, público e estatal (...).”29
Como se observa, é de grande inspiração democrática o dispositivo,
permitindo-se concluir que a interpretação no sentido de que o sistema privado é o
prioritário e que os público e estatal cumprem papel meramente coadjuvante é
inapropriada e não deve prevalecer.
Nem se queira argumentar que “a única forma de permitir que a liberdade
de imprensa [na radiodifusão] não seja afetada por preferência ou dirigismo
decorrentes de interesses dos detentores do poder reside em considerar que o
29
Exposição feita em reunião da antiga Subcomissão de Rádio e Televisão da Comissão de Educação do Senado Federal, realizada em 9 de setembro de 1999, citada por Venício A. de Lima em em seu artigo intitulado O Princípio da Complementaridade. Disponível em: http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp . Acessado em 14.06.2009
30
dispositivo [art. 223 da CF] é formal”, sendo certo que “se houver canais disponíveis,
não poderão ser negadas as concessões(...)”30
.
Ora, trespassar por inteiro a prestação dos serviços de radiodifusão à
iniciativa privada não parece, nem de longe, uma solução ou garantia à liberdade de
imprensa e de expressão que, diga-se, devem ser amplamente respeitadas no Estado
Democrático de Direito.
Pelo contrário, um sistema privado comercial de radiodifusão hipertrofiado
é prejudicial a tais liberdades e nocivo à própria democracia. Isso se diz porque os
atores comerciais defendem interesses próprios que podem, por vezes, censurar posições
divergentes e colidir com o interesse público.
Deve-se ter em consideração que ao se conceder à exploração comercial
todos os canais de radiodifusão disponíveis, os interesses privados dos empresários e de
seus “colaboradores” serão defendidos unanimemente nas programações. Não está se
pretendendo, aqui, a supressão dessa defesa, mas ela deve ser contraposta, debatida e,
porque não, combatida por aqueles que defendem outro posicionamento. É assim que
deve ocorrer se o que está se querendo salvaguardar são as liberdades de expressão e de
imprensa.
Para tanto, é necessário que existam espaços para a veiculação dos
contrapontos, e esses espaços só podem ser os sistemas público e estatal de
radiodifusão. Nesse sentido, sobre o princípio da complementaridade, Scorsim aponta:
“Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no
campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da
estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da
diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos
audiovisuais para a sociedade brasileira. Vale dizer, a interpretação da
referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do
pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas
organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo
audiovisual diverso). Assim deve ser porque tal norma tem por função a
30
MARTINS, Ives Gandra. Op. cit., p. 865.
31
oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privados, público e
estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para
cumprir tal tarefa (...)”31
.
É de se evidenciar que na ausência dos instrumentos de radiodifusão pública
e estatal prevalecerá na programação, em uníssono, cotidianamente, a exposição de
conteúdos sob um enfoque de interesse privado que, por vezes, não respeitarão sequer
os direitos humanos32
.
Denota-se, portanto, que a radiodifusão constituída nestes moldes, com a
predominância do sistema privado sobre o público e o estatal, por si só, contraria os
princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público sobre o privado e
não é esse, por óbvio, o sentido do princípio da complementaridade.
Para além das ciências jurídicas, são rechaçadas as convicções de inspiração
liberal sobre meios de comunicação e liberdade de imprensa, como as apresentadas por
Martins. Especificamente na área do conhecimento humano das Comunicações, Venício
A. de Lima preleciona que:
“Na verdade, estudos feitos a partir dessa perspectiva [liberal] trazem
implícitos pressupostos que muitas vezes conduzem a sérios equívocos de
interpretação e análise. Em primeiro lugar, alguns estudos supõem que as
instituições da mídia são autônomas e servem ao „interesse, à conveniência
e às necessidades do público‟, além de serem fiscais (watchdogs) numa
permanente relação de confronto com o governo. (...) Muitos estudos sobre
a relação entre mídia e política acabam por descartar a possibilidade de que
a mídia, ela própria, com freqüência e deliberadamente distorce, omite e
promove informação com objetivo político. Esse objetivo pode ou não estar
31
SCORSIM, Ericson Meister. Op. Cit. 32
Citando apenas um exemplo, foi o que ocorreu com o programa “Tardes Quentes”, capitaneado pelo apresentador João Kleber. Vale uma leitura sobre o assunto: INTERVOZES. A sociedade ocupa a TV - o caso Direitos de Resposta e o controle público da mídia. 2007. Disponível em: http://www.c3fes.net/docs/direitos.pdf. Acessado em 14.06.2009
32
alinhado com os interesses do regime, numa determinada circunstância e
num determinado momento.”33
A melhor ilustração desta criticada perspectiva encontra-se em discurso de
Roberto Marinho, ex-presidente das Organizações Globo, em entrevista concedida ao
The New York Times (RIDING, 1987, p. A4):
“Sim, eu uso o poder [da Rede Globo de Televisão], mas eu sempre faço
isso patrioticamente, tentando corrigir as coisas, buscando os melhores
caminhos para o país e seus estados. Nós gostaríamos de ter poder para
consertar tudo o que não funciona no Brasil. Nós dedicamos todo o nosso
poder para isso. Se o poder é usado para desarticular o país, para destruir
seus costumes, então, isso não é bom, mas se é usado para melhorar as
coisas, como nós fazemos, isso é bom”.
Como se vê, amplamente respeitada a liberdade de imprensa dos
concessionários comerciais da radiodifusão. Mas se vê também que essa liberdade
torna-se verdadeira afronta ao interesse público e privilégio dos empresários se somente
a eles forem outorgados os serviços de rádio e televisão. Fica evidente, mais uma vez,
que o princípio da complementaridade não foi elaborado com este sentido. Pelo
contrário, o constituinte buscou, justamente, eliminar esta prática.
Nesta senda, a complementaridade dos sistemas de radiodifusão quer
significar que as outorgas devem ser estendidas a outros atores, que prestarão os
serviços sob postulados diferentes dos abraçados pela iniciativa privada, sendo que o
indigitado princípio constitucional visa garantir a existência dos sistemas público e
estatal nas mesmas proporções do privado.
No entanto, ainda hoje, quando se liga o aparelho de rádio ou de televisão o
que se percebe é à hegemonia do sistema privado. Em cada faixa do espectro a
programação predominante é a comercial, em clara inobservância ao preceito da
complementaridade dos sistemas. Diante desta constatação, não se pode dizer
desproporcional a defesa de Scorsim no sentido de que, para as outorgas dos serviços de
radiodifusão, deve ser observada a preferência aos atores de caráter público e estatal até
33
Mídia: Teoria e Política. São Paulo : ed. Fundação Perseu Abramo. 2007. p. 143
33
que se corrija a gestão do espaço eletromagnético com vistas ao equilíbrio dos sistemas,
de acordo com o mandamento constitucional34
.
Mais uma vez é pertinente trazer à baila a intelecção produzida por Venício
A. de Lima35
na área das ciências da comunicação, que, quanto ao que chama de
“grande imprensa”, preleciona:
“Outra alternativa – talvez a mais importante – é a mídia estatal, já existente
(Radiobrás, Rede Brasil36
, TVs e rádios educativas), e a mídia pública, que
está ainda por ser construída. Buscar o equilíbrio entre os sistemas privado,
estatal e público é não só uma exigência constitucional (art. 223), mas,
provavelmente, a principal alternativa à hegemonia histórica da mídia
privada e comercial no Brasil.”
Desta feita, conforme preleciona a melhor doutrina de direito administrativo
e constitucional, nos termos das lições ofertadas por Venício de Lima na área dos
conhecimentos da comunicação, e de acordo com a visão do próprio constituinte relator
da matéria, depreende-se que o preceito constitucional em análise caminha no sentido
de que não há hierarquia entre os sistemas de radiodifusão. Vale dizer, os sistemas
público e estatal não devem ser considerados secundários, pois têm importância
fundamental, tanta quanto tem o sistema privado, para que seja alcançado e consolidado
o regime democrático-constitucional no setor.
A seguir, passa-se ao estudo de cada um dos sistemas de radiodifusão no
Brasil, especificamente sobre os serviços de televisão.
3.1 Os sistemas de televisão por radiodifusão
Neste momento serão apresentados os sistemas de televisão por radiodifusão
previstos na Constituição Federal e suas características. A exposição é restringida aos
serviços de radiodifusão de sons e imagens devido às diferenças jurídicas e de fato que
34
p. 258-259. 35
Mídia: crise política e poder no Brasil – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 173. 36
Incorporadas à Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
34
existem entre este tipo de comunicação e o serviço de radiodifusão de sons, que é o
rádio.
A diferença jurídica mais marcante entre rádio e televisão decorre da Lei nº.
9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que instituiu o “Serviço de Radiodifusão
Comunitária”. O artigo 1º deste diploma identifica este tipo de serviço de radiodifusão
como “sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita,
outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na
localidade de prestação do serviço”.
Seria possível dizer que este tipo de rádio compõe o sistema público de
radiodifusão, pois apresenta elementos consonantes a este. No entanto, conforme a se
demonstrará, tal sistema, previsto na Constituição Federal, ainda não tem previsão na
legislação infra constitucional de regência da radiodifusão. Portanto, se buscará na
doutrina as formulações existentes acerca deste sistema.
Na prática, não obstante o rádio estar presente na maioria dos lares
brasileiros conforme já demonstrado, o serviço de maior inserção é, sem dúvida, o de
radiodifusão de sons e imagens, já que em 2007 esteve presente em mais de noventa e
sete por cento dos lares brasileiros, sendo a televisão o aparelho eletrodoméstico que
ganhou o primeiro lugar neste ranking.
Por tais motivos preferiu-se eleger os serviços de radiodifusão de sons e
imagens como objeto de análise. Sendo assim, passa-se a analisar os sistemas privado,
público e estatal, tratando-se especificamente dos serviços de televisão por radiodifusão.
3.2 Sistema privado
O sistema privado de radiodifusão é formado por particulares que recebem
outorga estatal para a execução dos serviços e o fazem com fins lucrativos. Os serviços
de sons e imagens prestados nestes moldes podem ser denominados, portanto, televisão
comercial.
35
Estes atores privados preenchem papel hegemônico em toda a história da
radiodifusão brasileira, situação que permanece nos dias atuais, sendo possível notá-la
empiricamente simplesmente “zapeando” os canais de televisão aberta disponíveis em
nossos televisores.
Aqui se fará uma breve análise da atuação privada no setor televisivo. Em
primeiro lugar deve-se ter em conta que é legítima esta participação, sendo que o
princípio da complementaridade entre os sistemas torna dever da Administração
outorgar os serviços de radiodifusão a estes atores. Isso porque a perspectiva sobre a
qual eles pautam sua programação, marcada pelo interesse privado, não pode ser
censurada e representa os anseios de uma parcela da sociedade, que devem, sem dúvida,
ser expostos.
No entanto, conforme se informou acima, o sistema privado de radiodifusão
é hegemônico no Brasil. Ocorre, portanto, um desequilíbrio entre este e os sistemas
público e estatal, que serão abordados adiante.
É de se destacar que a radiodifusão feita em bases comerciais desempenha,
hoje, papel de verdadeiro espaço público. No entanto, ali são pautados diversos assuntos
sob a perspectiva privada destes agentes somente. Neste sentido, cumpre observar que o
incentivo que a radiodifusão privada possui para maximizar suas receitas é a ampliação
de sua audiência, agregando maior valor ao seu espaço publicitário.
Sendo assim, este agente que busca maior audiência constituirá sua
programação, via de regra, com conteúdos que apresentem um “mínimo denominador
comum” entre os diferentes telespectadores. Vale dizer, “o programador da televisão ou
rádio, ao tentar maximizar a audiência potencial de um programa, pode procurar apenas
oferecer algo suficientemente atraente para evitar que o espectador ou ouvinte desligue
o aparelho e vá fazer algo diverso”37
.
Esta “programação de massas” pode não apenas deixar completamente
desatendidos certos segmentos da sociedade e seus respectivos interesses, mas atender
de modo insatisfatório a generalidade do público. Isso porque “o comportamento das
37
FARACO, Alexandre Ditzel. Radiodifusão pública e regulação do audiovisual no Brasil. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 21, p. 15.
36
pessoas não é o de assistir somente aquilo que melhor corresponda à sua principal
preferência pessoal”38
, sendo que se o conteúdo oferecido apresentar denominadores
comuns que agradem, minimamente, por diferentes aspectos, diversos telespectadores,
com diferentes demandas, esta será a melhor programação na perspectiva comercial de
televisão.
Não obstante esta característica intrínseca ao sistema privado de televisão,
deve ser reafirmado que este segmento é representativo de uma parcela da sociedade e,
portanto, em tese cumpre um papel democrático quando não é dependente de recursos
estatais para seu funcionamento, mas tão-somente da iniciativa privada comercial.
Neste diapasão, Alexandre Ditzel Faraco, professor da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo,
preleciona:
“Se é possível elaborar uma defesa da mídia privada, essa não deveria ser
reduzida à caricatura de que estaria melhor atendendo às preferências
pessoais dos seus usuários (mas deveria estar, antes, baseada principalmente
nos potenciais benefícios que, sob certas condições, pode representar para a
democracia). O empresário não está focado em maximizar a satisfação
dessas preferências, mas em maximizar seus resultados. A oferta de
informações e entretenimento pelos meios de comunicação social apresenta
características (...) que, numa terminologia econômica neoclássica,
representam „falhas de mercado‟, cuja existência demonstra não ser possível
afirmar que a busca do lucro conduzirá à disponibilização de produtos mais
adequados ao que demandam os usuários”39
.
38
FARACO, Alexandre Ditzel. Op. cit. p. 15. O autor expõe, ainda, que “(...) Enquanto os empresários de outros setores estão focados em atender um determinado tipo de consumidor, no setor de radiodifusão é preciso buscar um equilíbrio entre o que demanda o público e o que querem os anunciantes. Por vezes, o interesse dos anunciantes (e não a preferência do público) determinará certos parâmetros de programação. Aqueles visam não apenas espaço para seus anúncios em momentos com grande audiência, mas também programas que possam estimular o espectador a consumir seus produtos. Um eventual documentário sobre uma crise humanitária, que possa provocar mais um movimento de compaixão do que de consumo, não seria um espaço preferencial para anúncios de cerveja (os quais, por outro lado, são uma presença constante nos grandes eventos esportivos).” (15). 39
Op. cit. p. 13.
37
Outro aspecto que se cumpre expor sobre o sistema privado de televisão por
radiodifusão é a sua plena caracterização como serviço público, conforme já restou
demonstrado, de uma maneira geral, no item 3.1. Sendo assim, não obstante a natureza
comercial do sistema privado e a obtenção do lucro pelo particular, sem o qual ele não
se interessaria na sua prestação, este também é um serviço público.
Não obstante esta caracterização, há recente posicionamento doutrinário que
vem propondo uma mudança no regime jurídico a que se submete o sistema privado de
televisão. Ericson Meister Scorsim, em sua tese de doutorado, orientado pela professora
Odete Medauar, defende que “os fundamentos básicos constitucionais do sistema de
radiodifusão privado são: a livre iniciativa (art. 170, caput, parágrafo único), a
propriedade privada (art. 170, II) e o mercado interno como elemento integrante do
patrimônio nacional (art. 219)”40
.
O autor propõe que os emissores privados de televisão, “fundando-se nos
direitos fundamentais à liberdade de expressão, informação e de comunicação,
propriedade privada e livre iniciativa econômica privada”, não sejam caracterizados
como prestadores de serviços públicos, mas como atores de uma “atividade econômica,
com o intuito de lucro, o qual é buscado mediante receitas do mercado publicitário”.
Para tanto, seria necessária uma mudança legislativa no sentido de que a
concessão desses serviços fosse substituída pelo instituto da autorização, mediante
licitação na modalidade leilão para a escolha do particular que realizaria a atividade, nos
termos defendidos pelo autor.
Pauta-se o proponente no próprio princípio da complementaridade para
justificar tal defesa, apresentando uma formulação estranha à intenção do constituinte,
de que o sistema público constitui-se como serviço público não privativo do Estado, o
sistema estatal como serviço público privativo do Estado, enquanto o sistema privado
significa uma atividade econômica em sentido estrito desenvolvida pelos particulares.
Com o devido respeito, esse posicionamento não deve prosperar. Primeiro
porque, conforme já se demonstrou, a doutrina mais autorizada assume que os serviços
privados de radiodifusão compõem serviços públicos. Segundo, deve-se ter em conta
40
Op. cit. p. 314.
38
que a Constituição Federal não faz qualquer ressalva quanto ao regime jurídico
pertinente aos serviços privados de televisão por radiodifusão, não havendo que ser
afastado, portanto, o elemento formal do serviço público, conforme se depreende da
defesa do autor proponente.
Neste sentido, mais uma vez é pertinente transcrever as lições de José
Afonso da Silva acerca do artigo 223 da Constituição Federal:
“O caput do artigo admite os sistemas privado, público e estatal de
radiodifusão. É preciso entender o que isso significa, porque radiodifusão,
em qualquer de suas modalidades, é serviço público. Não existe, pois,
serviço privado de radiodifusão. O modo de exploração do serviço é que
pode ser privado, público ou estatal”41
Conforme já se demonstrou, os serviços de radiodifusão preenchem os
elementos subjetivo, material e formal dos serviços públicos. Sendo assim, o sistema
privado, não obstante sua natureza comercial e a obtenção do lucro pelo particular, não
pode ser classificado como atividade econômica. Vale dizer, o fato de o sistema privado
constituir atividade comercial lucrativa não basta para que seja afastada a caracterização
de serviço público da atividade.
É nesta senda a preleção de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“É indispensável – sem o quê não se caracteriza a concessão de serviço
público – que o concessionário se remure pela „exploração‟ do próprio
serviço concedido.
Isto, de regra, se faz, como indicado, „em geral‟ e „basicamente‟ pela
percepção de tarifas cobradas dos usuários. Entretanto, dita exploração
poderia ser feita, em alguns casos, por outro meio. É o que sucede nas
concessões de rádio e televisão (radiodifusão sonora ou de sons e imagens),
em que o concessionário se remunera pela divulgação de mensagens
publicitárias cobradas dos anunciantes. Não se trata de tarifas e quem paga
41
Op. cit. p. 833-834.
39
por isto não será necessariamente um „usuário‟. Mas há, aí, igualmente,
exploração do próprio serviço público concedido.”42
.
Por fim, não obstante já se haver exposto doutrina de peso que rechaça o
entendimento do sistema privado de radiodifusão como atividade econômica, é a lição
de Marcelo Figueiredo que joga uma pá de cal sobre o assunto, nos seguintes termos:
“Há, sem dúvida uma deformação no processo que vislumbra na atividade
de comunicação social um „negócio‟, (ou atividade econômica) dominado
por interesses particulares e lucrativos, quando segundo o regime
constitucional, estamos diante de um serviço público de relevante interesse
social.
Inverte-se a lógica do sistema constitucional, como se o mesmo franqueasse
o exercício da atividade sem peias aos particulares, ao frágil e inconsistente
argumento da „liberdade econômica‟. Na verdade estamos diante de um
serviço público não privativo do Estado, fortemente regulado, disciplinado,
em prol e em benefício do interesse público e social”43
.
3.3 Sistemas público e estatal: identidade ou distinção?
Antes de deter-se à exposição das características dos sistemas público e
estatal em separado, necessário é estabelecer a distinção entre eles. Adverte-se, no
entanto, que a doutrina não é pacífica ao admitir esta diferenciação. A começar pela
lição de Ives Gandra Martins, de onde se extrai não existir a separação. São as palavras
do autor:
“É de se lembrar que os vocábulos „público‟ e „estatal‟ são idênticos, visto
que toda atuação pública é uma atuação estatal.
42
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit. p. 697. 43
FIGUEIREDO, Marcelo. A Democratização dos Meios de Comunicação – O Papel da Televisão. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº 2, maio, 2001, p. 4.
40
Nem se diga que o constituinte pretende cuidar das empresas estatais, visto
que também estas compõem a Administração Pública indireta.
No caso, a sinonímia entre os dois vocábulos é absoluta”44
.
Em sentido diverso, José Afonso da Silva preleciona, em meio aos seus
comentários ao princípio da complementaridade, que “(...) Fica também a questão de
saber que diferença há entre serviço de radiodifusão público e estatal, porque o estatal
também é público, mas nem todo público é estatal”45
.
Não é rasa a discussão. Convém esclarecer que esse ofuscamento é histórico
e advém, especificamente na comunicação social, do fragmentado conjunto normativo
do setor, com normas da década de 1960, época em que não se vislumbrava a existência
de um público não estatal, conforme foi a intenção do Constituinte de 1988 relator da
matéria da comunicação social, que defendia "a idéia de um (sistema) público que
represente não apenas o Estado, mas o que houver de possivelmente organizado na
chamada sociedade"46
.
Observa-se que a Lei nº 4.117/62 enfatiza o papel preferencial das emissoras
de entidades de direito público, mas não estabelece regras quanto às formas de
organização. O Decreto-Lei 236/67, que modificou a Lei nº 4.117/62, mencionou as
televisões educativas, que têm por finalidade a “divulgação de programas educacionais,
mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates”, nos termos do
artigo 13, prevendo no parágrafo único que tais emissoras não deveriam ter “caráter
comercial”, sendo vedada “a transmissão de qualquer propaganda, direta ou
indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que
nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos”.
Passadas duas décadas, continuaram em vigência tais regras. No entanto, os
acontecimentos históricos, principalmente o questionamento e a queda do regime
ditatorial militar, ofereceram condições para que emergisse a noção da coisa pública
não-estatal, objeto de atuação direta da sociedade civil organizada.
44
Op. cit. 45
Op. cit. p. 833. 46
Artur da Távola in LIMA, Venício A. de. O Princípio da Complementaridade. Disponível em: http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp. Acessado em 14.06.2009.
41
Essa formulação é vista pela primeira vez no setor da radiodifusão no Brasil
em documento entregue ao presidente Tancredo Neves em dezembro de 1984,
formulado pelo Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, donde se depreende a
distinção dos sistemas estatal e público, importando colacionar suas palavras:
“Sem prescindir tanto do estado quanto da iniciativa privada, este
documento privilegia a criação e a consolidação de um sistema público de
radiodifusão. Entendemos como sistema público aquele que sendo
financiado tanto por contribuições diretas do público, como pelo estado e/ou
pela iniciativa privada tem, todavia, sua programação sob o controle de
segmentos organizados da sociedade civil (cf. CEC, "A Transição Política e
a Democratização da Comunicação Social"; Brasília, 1985; p. 7)”47
.
Pelo exposto, parece mais coerente com os dias atuais adotar a distinção
entre os sistemas público e estatal de radiodifusão, principalmente porque esta
formulação pautou a confecção do princípio constitucional da complementaridade.
Neste diapasão, pode-se afirmar que o termo “público” é o gênero que compreende as
espécies estatal e público em sentido estrito de sistemas de radiodifusão.
Sendo assim, passa-se à análise dos sistemas de radiodifusão estatal e
público em sentido estrito.
3.3.1 Sistema estatal
O sistema estatal de radiodifusão é composto por emissoras criadas pelo
Poder Público, que têm como principal objetivo a comunicação institucional do Estado
com os seus utentes. Diga-se que não só a esfera do Poder Executivo é competente para
prestar os serviços estatais de radiodifusão, mas também as emissoras do Legislativo e
do Judiciário compõe este sistema.
47
In LIMA, Venício A. de. O Princípio da Complementaridade. Disponível em http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp. Acessado em 14.06.2209.
42
É de se destacar também que a atividade de radiodifusão pode ser exercida
pelos entes da federação e Municípios em seus respectivos âmbitos. Vale dizer, podem
existir emissoras da União, dos Estados, do Distrito Federal e municipais, prescindindo,
para a regular prestação dos seus serviços, de autorização do Executivo federal, que é
competente para administrar as freqüências do espectro.
Quanto ao conteúdo da programação, a radiodifusão estatal vincula-se,
obviamente, ao regramento do Estado, significando que deverão ser seguidos os
preceitos do Direito Administrativo, dentre eles o princípio da impessoalidade. Neste
sentido, o artigo 47 do Código Brasileiro de Telecomunicações estabelece que
“nenhuma estação de radiodifusão, de propriedade da União, dos Estados, Territórios ou
Municípios ou nas quais possuam essas pessoas de direito público maioria de cotas ou
ações, poderá ser utilizada para fazer propaganda política ou difundir opiniões
favoráveis ou contrárias a qualquer partido político, seus órgãos, representantes ou
candidatos, ressalvado o disposto na legislação eleitoral”.
A radiodifusão estatal também cumpre papel importante quanto ao princípio
da publicidade, pois sua função primordial é, como já se especificou, a comunicação
institucional, entendida como a difusão de atos, programas, obras, serviços e campanhas
dos órgãos públicos, com fundamento na regra constitucional do art. 37, § 1º, que
permite a realização da publicidade institucional pela Administração Pública com
“caráter educativo, informativo ou de orientação social”, reforçando-se ainda o princípio
da impessoalidade, pois o dispositivo estabelece que dessa comunicação não poderá
constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades
ou servidores públicos.
Deve-se mencionar que o sistema estatal de televisão também é integrado
pelas televisões educativas. De acordo com Scorsim, “estas foram modeladas no direito
brasileiro como entidades estatais criadas pela União e pelos Estados, sofrendo forte
intervenção governamental, em sua maioria sob a forma de fundações e autarquias”48
.
48
Op. cit. p. 113-115.
43
Por fim, necessário citar a criação da Empresa Brasil de Comunicação -
EBC, pela Medida Provisória nº 398, de 10 de outubro de 2007, convertida na Lei nº
11.652, de 7 de abril de 2008.
Tal diploma legal trata dos princípios e objetivos dos serviços de
radiodifusão “pública” explorados pelo Poder Executivo federal ou outorgados a
entidades de sua administração indireta. De acordo com a distinção que se fez dos
sistemas estatal e público, quer parecer que a lei adota o sentido amplo do termo
público, pois em verdade a EBC se apresenta como uma prestadora de serviços de
comunicação de caráter estatal.
A corroborar, a referida Lei dispõe que em razão da criação da EBC, fica
extinta a estatal Radiobrás, sendo que seus bens e equipamentos serão incorporados à
nova empresa pública.
3.3.2 Sistema público em sentido estrito
O sistema público em sentido estrito de radiodifusão é aquele cujos serviços
não têm fins lucrativos e que servem para a satisfação das demandas de comunicação
dos diversos setores da sociedade, ou seja, diferencia-se da radiodifusão estatal no
sentido de que esta cumpre um papel prioritário de comunicação institucional do Estado
com a população, enquanto a radiodifusão pública em sentido estrito caracteriza-se
como um complexo comunicativo dos segmentos sociais com a própria sociedade.
A este respeito, Scorsim define que “o sistema de radiodifusão público
requer a plena participação da sociedade civil na organização da programação da TV
Pública. Ou seja, uma emissora de televisão, cujo controle pertença de direito e de fato à
sociedade civil, e não ao governo, nem às emissoras privadas”49
. Para este autor, a
televisão pública é serviço de prestação direta da sociedade civil organizada e sem fins
lucrativos, não se admitindo a criação de entidades estatais para intermediar a relação
dos cidadãos com o Estado na atividade.
49
Op. cit. p. 116.
44
Em outro sentido, Faraco admite a possibilidade da existência de agentes
estatais que cumpram papel de intermédio entre o sistema público de radiodifusão e a
sociedade, fazendo, no entanto, a correta ressalva de que “esses agentes não privados
não podem ser organizados como simples empresas estatais”50
, sendo primordial
“buscar uma efetiva separação estrutural entre o governo e o Legislativo e as
instituições encarregadas dos serviços de radiodifusão pública”.
A lei de regência da radiodifusão brasileira, da década de 1960, não
vislumbrou, conforme já se expôs, a possibilidade de um sistema público não-estatal de
radiodifusão. Sendo assim, a única previsão desse sistema no nosso ordenamento
jurídico é o próprio princípio da complementaridade. Mais uma vez, portanto, é mister
recorrermos à exposição do ex-deputado constituinte Artur da Távola, para que
possamos vislumbrar alguns elementos do sistema público.
Segundo o ex-parlamentar, seu raciocínio decorreu de uma analogia com o
capítulo que tratou da educação e da cultura na Constituição Federal. Nada melhor que
as suas próprias palavras, valendo a extensa citação:
“Eu tinha na mente, não era, digamos assim, assunto do conhecimento
específico dos demais Constituintes, porque não estavam trabalhando
diretamente sobre a matéria, eu tinha em mente, como eu era Relator
também do capítulo de educação e de cultura, de que lá no capítulo de
educação criamos, para o conceito de escola pública, algo que escapasse ao
exclusivo conceito de escola estatal como definição de escola pública.
Havia naquela época uma pressão muito grande nas empresas privadas na
questão da educação e tínhamos o problema político de tirar da mesma luta
as (escolas) privadas qualificadas e as (escolas) privadas comerciais de
educação. Em outras palavras, a igreja, algumas escolas evangélicas
importantes, acabavam ficando no mesmo bolo dos tubarões do ensino
porque a questão da educação privada é que as unificava. E criamos no
capítulo da educação essa idéia da instituição pública que não é
necessariamente estatal, desde que sem fins lucrativos, desde que
50
Op. cit. p. 10.
45
comunitária, desde que filantrópica. (...) Eu tinha em mente que havíamos
criado essa figura da entidade pública ao lado das entidades estatal e privada
e pareceu-me importante criá-la também dentro da comunicação."
Assim, resta aclarado que o sistema público de radiodifusão, portanto, é
aquele cujos serviços são prestados por particulares, não havendo, no entanto, fim
lucrativo. É de grande importância para o regime democrático o preceito constitucional
da complementaridade, que admite a existência desse sistema público de radiodifusão,
pois, na lição de Faraco, “(...) envolve, primordialmente, a possibilidade de os cidadãos
participarem do processo de exercício e controle do poder político em outros níveis.
Essa participação se traduz, em termos ideais, na existência de um espaço público de
debate, integrado potencialmente por todos os cidadãos (e não apenas pelos ocupantes
eleitos para certos cargos)”51
.
É este, portanto, o início dos estudos sobre os sistemas de televisão por
radiodifusão e o princípio constitucional da complementaridade.
51
Op. cit. p. 10.
46
CONCLUSÃO
Os serviços de radiodifusão no Brasil foram inaugurados na Década de
1920, com a primeira transmissão de rádio. Em 1950 surge a televisão, que até meados
da década de 1960 tinha cobertura somente regional. Com a criação da Embratel e a
inauguração de seu sistema de microondas em 1969 torna-se possível a criação de uma
rede nacional de telecomunicações, vista pelos militares como parte de seu plano
político de integração nacional.
No Estado Democrático de Direito, continua em vigência o Código
Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, bem como seu Regulamento dos Serviços de
Radiodifusão do ano de 1963. A Constituição Federal, no entanto, apresenta o regime
jurídico especial a que se submetem os serviços de radiodifusão, estabelecendo que
compete à União administrar e legislar sobre o setor.
Os serviços de radiodifusão se encaixam, sem grandes problemas, aos
elementos dos serviços públicos apresentados pela doutrina, quais sejam: o subjetivo, o
material e o formal.
O artigo 223, caput, da Constituição Federal estabelece que o Poder
Executivo, ao renovar e outorgar os serviços de radiodifusão, deverá observar o
princípio da complementaridade dos sistemas público, estatal e privado.
Tal complementaridade deve ser entendida como um equilíbrio entre os três
sistemas, não havendo que se falar em hierarquia ou maior importância de qualquer um
deles.
O sistema privado de televisão por radiodifusão, historicamente hegemônico
no Brasil, é composto por atores privados que objetivam o lucro da exploração da
atividade, mediante a remuneração feita pela venda de espaço publicitário.
O sistema estatal, de outra forma, não tem fim lucrativo e é veículo de
comunicação dos poderes públicos dos entes federativos e municípios com a população,
objetivando a divulgação institucional das atividades estatais.
47
O sistema público também não tem fim lucrativo, mas o que o diferencia do
sistema estatal é o ator competente para executar os serviços, que é a sociedade civil e
seus setores, caracterizando-se como um meio de comunicação dos diversos segmentos
sociais com a sociedade em geral.
48
BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo – 26. ed. –
São Paulo : Malheiros, 2009.
BITELLI, Marcos Alberto Sant‟Anna. O direito da comunicação e da comunicação
social – São Paulo : ed. Revista dos Tribunais, 2004.
BUCCI, Eugênio: disponível em:
http://www2.mre.gov.br/cdBrasil/itamaraty/web/port/comunica/tv/crescim/embratel/ind
ex.htm
CHAVES, Antonio. Proteção internacional do direito autoral de radiodifusão. São Paulo
; Empresa Gráfica da RT, 1952.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 19ª ed. – São Paulo : Atlas,
2006.
FARACO, Alexandre Ditzel. Radiodifusão pública e regulação do audiovisual no
Brasil. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 21.
FIGUEIREDO, Marcelo. A Democratização dos Meios de Comunicação – O Papel da
Televisão. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.
1, nº 2, maio, 2001
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo :
Malheiros.
INTERVOZES. A sociedade ocupa a TV - o caso Direitos de Resposta e o controle
público da mídia. 2007. Disponível em: http://www.c3fes.net/docs/direitos.pdf
LIMA, Venício A. de Lima. Mídia: Teoria e Política. São Paulo : ed. Fundação Perseu
Abramo. 2007.
LIMA, Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil – São Paulo : Editora
Fundação Perseu Abramo, 2006.
LIMA, Venício A. de. O Princípio da Complementaridade. Disponível em:
http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp
MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988, vol. 8, 1998, ed. Saraiva. São Paulo.
top related