dados de copyright a...o fim da arte médica é a saúde, o da construção naval é um navio, o da...

Post on 11-Mar-2021

1 Views

Category:

Documents

0 Downloads

Preview:

Click to see full reader

TRANSCRIPT

DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.siteouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira

umnovonível."

LIVROI

1

Admite-segeralmentequetodaarteetodainvestigação,assimcomotodaaçãoetoda escolha, têm emmira um bem qualquer; e por isso foi dito, commuitoacerto,queobeméaquiloaquetodasascoisastendem.Masobserva-seentreosfins certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos dasatividades que os e produzem.Onde existem fins distintos das ações, são elespornaturezamaisexcelentesdoqueestes.

Ora,comosãomuitasasações,arteseciências,muitossãotambémosseusfins:ofimdaartemédicaéasaúde,odaconstruçãonavaléumnavio,odaestratégiaéavitóriaeodaeconomiaéariqueza.Masquandotaisartessesubordinamaumaúnica faculdade—assimcomoa selaria e asoutras artesque seocupamcomosaprestosdoscavalosseincluemnaartedaequitação,eesta,juntamentecom todas as ações militares, na estratégia, há outras artes que também seincluememterceiras—,emtodaselasosfinsdasartesfundamentaisdevemserpreferidosa todosos finssubordinados,porqueestesúltimossãoprocuradosabemdosprimeiros.Não fazdiferençaqueos finsdas ações sejamasprópriasatividadesoualgodistintodestas,comoocorrecomasciênciasqueacabamosdemencionar.

2

Se,pois,paraascoisasquefazemosexisteumfimquedesejamosporelemesmoe tudoomais édesejadono interessedesse fim;e se éverdadequenem todacoisadesejamoscomvistasemoutra,porque,então,oprocessose repetiriaaoinfinito,einútilevãoseriaonossodesejar,evidentementetalfimseráobem,ouantes,osumobem.

Mas não terá o seu conhecimento, porventura, grande influência sobre a essavida?Semelhantesaarqueirosque têmumalvocertoparaa suapontaria,não

alcançaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcançar? Se assim é,esforcemo-nospordeterminar,aindaqueemlinhasgeraisapenas,oquesejaeleedequaldasciênciasoufaculdadesconstituioobjeto.Ninguémduvidarádequeoseuestudopertençaàartemaisprestigiosaequemaisverdadeiramentesepodechamaraartemestra.Ora, apolíticamostra serdessanatureza,pois é elaquedeterminaquaisasciênciasquedevemserestudadasnumEstado,quaissãoasquecadacidadãodeveaprender,eatéqueponto;evemosqueatéasfaculdadestidasemmaiorapreço,comoaestratégia,aeconomiaearetórica,estãosujeitasaela.Ora, comoapolíticautilizaasdemaisciênciase,poroutro lado, legislasobreoquedevemoseoquenãodevemosfazer,afinalidadedessaciênciadeveabrangerasdasoutras,demodoqueessafinalidadeseráobemhumano.Comefeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para oEstado, o deste último parece ser algomaior emais completo, quer a atingir,querapreservar.Emboravalhabemapenaatingiressefimparaumindivíduosó, émais belo emais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-estados.Taissão,porconseguinte,osfinsvisadospelanossainvestigação,poisqueissopertenceàciênciapolíticanumadasacepçõesdotermo.

3

Nossadiscussãoseráadequadasetivertantaclarezaquantocomportaoassunto,poisnãosedeveexigiraprecisãoemtodososraciocíniosporigual,assimcomonão se deve buscá-la nos produtos de todas as artesmecânicas.Ora, as açõesbelas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade eflutuações de opinião, de formaque se pode considerá-las como existindoporconvenção apenas, e nãopornatureza.E em tornodosbensháuma flutuaçãosemelhante,pelofatodeseremprejudiciaisamuitos:houve,porexemplo,quemperecessedevidoàsuariqueza,eoutrosporcausadasuacoragem.

Aotratar,pois,detaisassuntos,epartindodetaispremissas,devemoscontentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e ao falar decoisasquesãoverdadeirasapenasemsuamaiorparteecombaseempremissasdamesmaespécie,sópoderemostirarconclusõesdamesmanatureza.Eédentrodomesmoespíritoquecadaproposiçãodeverá ser recebida,pois éprópriodohomemcultobuscaraprecisão,emcadagênerodecoisas,apenasnamedidaemqueaadmiteanaturezadoassunto.Evidentemente,nãoseriamenos insensatoaceitarumraciocínioprováveldapartedeummatemáticodoqueexigirprovas

científicasdeumretórico.

Ora,cadaqualjulgabemascoisasqueconhece,edessascoisaséelebomjuiz.Assim, o homemque foi instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesseassunto,eohomemquerecebeuinstruçãosobretodasascoisasébomjuizemgeral. Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre a ciênciapolítica. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em tornodestesquegiramasnossasdiscussões;alémdisso,comotendeaseguirassuaspaixões,talestudolheserávãoeimprofícuo,poisofimquesetememvistanãoéoconhecimento,masaação.Enãofazdiferençaquesejajovememanosounocaráter;odefeitonãodependedaidade,masdomododeviveredeseguirumapós outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aosincontinentes,aciêncianãotrazproveitoalgum;masaosquedesejameagemdeacordocomumprincípio racionaloconhecimentodessesassuntos farágrandevantagem.

Sirvam, pois, de prefácio estas observações sobre o estudante, a espécie detratamentoaseresperadoeopropósitodainvestigação.

4

Retomemos anossa investigação eprocuremosdeterminar, à luzdeste fatodequetodoconhecimentoe todotrabalhovisaaalgumbem,quaisafirmamosseros objetivos da ciência política e qual é omais alto de todos os bens que sepodemalcançarpelaação.Verbalmente,quasetodosestãodeacordo,poistantoovulgocomooshomensdeculturasuperiordizemseresse fima felicidadeeidentificamobemvivereobemagircomooserfeliz.Diferem,porém,quantoaoquesejaafelicidade,eovulgonãooconcebedomesmomodoqueossábios.Osprimeirospensamquesejaalgumacoisasimpleseóbvia,comooprazer,ariqueza ou as honras, muito embora discordem entre si; e não raro o mesmohomema identifica comdiferentes coisas, com a saúde quando está doente, ecomariquezaquandoépobre.Cônsciosdasuaprópriaignorância,nãoobstante,admiram aqueles que proclamam algum grande ideal inacessível à suacompreensão.Ora,algunstêmpensadoque,àparteessesnumerososbens,existeoutroqueêautosubsistenteetambémécausadabondadedetodososdemais.Seria talvez infrutífero examinar todas as opiniões que têm sido sustentadas aesse respeito; basta considerar asmais difundidas ou aquelas que parecem ser

defensáveis.

Nãopercamosdevista,porém,queháumadiferençaentreosargumentosqueprocedemdosprimeirosprincípioseosquesevoltamparaeles.OpróprioPlatãohavia levantado esta questão, perguntando, como costumava fazer: "Nossocaminho parte dos primeiros princípios ou se dirige para eles?" Há aí umadiferença, como há, num estádio, entre a reta que vai dos juízes ao ponto deretornoeocaminhodevolta.Comefeito,emboradevamoscomeçarpeloqueéconhecido,osobjetosdeconhecimentoosãoemdoissentidosdiferentes:algunspara nós, outros na acepção absoluta da palavra. É de presumir, pois, quedevamoscomeçarpelascoisasquenossãoconhecidas,anós.Eisaíporque,afim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e emgeral sobre temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bonshábitos.Porquantoofatoéopontodepartida,eseforsuficientementeclaroparaoouvinte,nãohaveránecessidadedeexplicarporqueéassim;eohomemquefoi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los comfacilidade.Quanto àquelequenemospossui, nemé capazde adquiri-los, queouçaaspalavrasdeHesíodo:

Ótimoéaquelequedesimesmoconhecetodasascoisas;

Bom,oqueescutaosconselhosdoshomensjudiciosos.

Masoqueporsinãopensa,nemacolheasabedoriaalheia,

Esseé,emverdade,umacriaturainútil.

5

Voltemos,porém,aopontoemquehaviacomeçadoestadigressão.

Ajulgarpelavidaqueoshomenslevamemgeral,amaioriadeles,eoshomensdetipomaisvulgar,parecem(nãosemcertofundamento)identificarobemouafelicidadecomoprazer,eporissoamamavidadosgozos.Pode-sedizer,comefeito,queexistemtrêstiposprincipaisdevida:aqueacabamosdemencionar,avidapolítica e a contemplativa.Agrandemaioriadoshomens semostramemtudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certajustificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas

partilharemosgostosdeSardanapalo.

A consideração dos tipos principais de vidamostra que as pessoas de granderefinamentoeíndoleativaidentificamafelicidadecomahonra;poisahonraé,em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiadosuperficial para ser aquela que buscamos, visto que dependemais de quem aconferequedequemarecebe,enquantoobemnospareceseralgoprópriodeumhomemequedificilmentelhepoderiaserarrebatado.

Dir-se-ia,alémdisso,queoshomensbuscamahonraparaconvencerem-seasimesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grandesabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e,aindamais,emrazãodasuavirtude.Estáclaro,pois,queparaeles,aomenos,avirtudeémaisexcelente.Poder-se-iamesmosuporqueavirtude,enãoahonra,é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modoincompleta,porquepodeacontecerquesejavirtuosoquemestádormindo,quemleva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com osmaioressofrimentoseinfortúnios.Ora,salvoquemqueirasustentarateseatodocusto,ninguémjamaisconsideraráfelizumhomemquevivedetalmaneira.

Quantoaisto,basta,poisoassuntotemsidosuficientementetratadomesmonasdiscussõescorrentes.Aterceiravidaéacontemplativa,queexaminaremosmaistarde.

Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não éevidentementeobemqueprocuramos:éalgodeútil,nadamais,eambicionadonointeressedeoutracoisa.Eassim,antesdeveriamserincluídosentreosfinsosquemencionamosacima,porquantosãoamadosporsimesmos.Maséevidenteque nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sidodesperdiçadosemfavordeles.Deixamos,pois,esteassunto.

6

Seria melhor, talvez, considerar o bem universal e discutir a fundo o que seentendeporisso,emboratalinvestigaçãonossejadificultadapelaamizadequenos une àqueles que introduziram as Formas. No entanto, os mais ajuizadosdirãoqueépreferívelequeémesmonossodeverdestruiroquemaisdepertonostocaafimdesalvaguardaraverdade,especialmenteporsermosfilósofosou

amantesdasabedoria;porque,emboraambosnossejamcaros,apiedadeexigequehonremosaverdadeacimadenossosamigos.

OsdefensoresdessadoutrinanãopostularamFormasdeclassesdentrodasquaisreconhecessemprioridadeeposterioridade (eporessa razãonãosustentaramaexistênciadeumaFormaaabranger todososnúmeros).Ora,o termo"bem"éusadotantonacategoriadesubstânciacomonadequalidadeenaderelação,eoqueexisteporsimesmo,istoé,asubstância,éanteriorpornaturezaaorelativo(este,de fato,écomoumaderivaçãoeumacidentedoser);demodoquenãopodehaverumaideiacomumporcimadetodosessesbens.

Alémdisso,comoapalavra"bem"temtantossentidosquantos"ser"(vistoqueépredicadatantonacategoriadesubstância,comodeDeusedarazão,quantonade qualidade, isto é, das virtudes; na de quantidade, isto é, daquilo que émoderado; na de relação, isto é, do útil; na de tempo, isto é, da oportunidadeapropriada;nadeespaço,istoé,dolugarapropriado,etc.),estáclaroqueobemnão pode ser algo único e universalmente presente, pois se assim fosse nãopoderiaserpredicadoemtodasascategorias,massomentenuma.

Aindamais:comodascoisasquecorrespondemaumaideiaaciênciaéumasó,haveria umaúnica ciência de todos os bens.Mas o fato é que as ciências sãomuitas,mesmodascoisasquese incluemnumasócategoria:daoportunidade,porexemplo,poisqueaoportunidadenaguerraéestudadapelaestratégiaenasaúdepelamedicina, enquantoamoderaçãonosalimentoséestudadaporestaúltima, enos exercíciospela ciênciadaginástica.E alguémpoderia fazer estapergunta:queentendemeles,afinal,poresse"emdecadacoisa, jáqueparao"homememsi"eparaumhomemparticularadefiniçãodohomeméamesma?Porque,namedidaemqueforem"homem",nãodiferirãoemcoisaalguma.E,assimsendo,tampoucodiferirãoo"bememsi"eosbensparticularesnamedidaemqueforem"bem".E,poroutrolado,o"bememsi"nãoserámais"bem"pelofatodesereterno,assimcomoaquiloqueduramuitotemponãoémaisbrancodoqueaquiloqueperecenoespaçodeumdia.

Os pitagóricos parecem fazer uma concepção mais plausível do bem quandocolocamo"um"nacolunadosbens;eestaopinião,senãonosenganamos,foiadotadaporEspeusipo.

Masdeixemosessesassuntospara seremdiscutidosnoutraocasião.Poder-se-áobjetar aoque acabamosdedizer apontandoque (os platônicos) não falamde

todososbens,equeosbensbuscadoseamadosporsimesmossãochamadosbonsemreferênciaaumaFormaúnica,enquantoosquedecertomodotendemaproduzirouapreservarestes,ouaafastarosseusopostos,sãochamadosbonsemreferênciaaestesenumsentido subsidiário.Éevidente,pois,que falamosdosbensemdoissentidos:unsdevemserbensemsimesmos,eosoutros,emrelaçãoaosprimeiros.

Separemos,pois,ascoisasboasemsimesmasdascoisasúteis,evejamosseasprimeirassãochamadasboasemreferênciaaumaIdeiaúnica.Queespéciedebens chamaríamos bens em si mesmos? Serão aqueles que buscamos mesmoquando isolados dos outros, como a inteligência, a visão e certos prazeres ehonras?Estes,emboratambémpossamosprocurá-lostendoemvistaoutracoisa,seriamcolocadosentreosbensemsimesmos.

OunãohaveránadadebomemsimesmosenãoaIdeiadobem?Nessecaso,aFormaseesvaziarádetodosentido.Mas,seascoisasqueindicamostambémsãoboasemsimesmas,oconceitodobemterádeseridênticoemtodaselas,assimcomo o da brancura é idêntico na neve e no alvaiade.Mas quanto à honra, àsabedoriaeaoprazer,noqueserefereàsuabondade,osconceitossãodiversosedistintos.Obem,porconseguinte,nãoéumaespéciedeelementocomumquecorrespondaaumasóideia.

Masqueentendemos, então,pelobem?Não será,por certo, comoumadessascoisasquesóporcasualidadetêmomesmonome.Serãoosbensumasócoisaporderivaremdeumsóbem,ouparaelecontribuírem,ouantesserãoumsóporanalogia?Inegavelmente,oqueavisãoéparaocorpoarazãoéparaaalma,edamesmaformaemoutroscasos.Mastalvezsejapreferível,porora,deixarmosdeladoessesassuntos,vistoqueaprecisãoperfeitanotocanteaelescompetemaispropriamenteaoutroramodafilosofia.

Omesmo se poderia dizer no que se refere à Ideia: mesmo ainda que existaalgum bem único que seja universalmente predicável dos bens ou capaz deexistência separada e independente, é claro que ele não poderia ser realizadonemalcançadopelohomem;masoquenósbuscamosaquiéalgodeatingível.

Alguém,noentanto,poderápensarquesejavantajosoreconhecê-locomamiranosbensquesãoatingíveiserealizáveis;porquanto,dispondodelecomodeumaespéciedepadrão,conheceremosmelhorosbensquerealmentenosaproveitam;e,conhecendo-os,estaremosemcondiçõesdealcançá-los.Esteargumento tem

certo ar de plausibilidade, mas parece entrar em choque com o procedimentoadotadonasciências;porquetodaselas,emboravisemaalgumbemeprocuremsuprir a sua falta, deixam de lado o conhecimento do bem. Entretanto, não éprovável que todos os expoentes das artes ignorem e nem sequer desejemconhecer auxílio tão valioso.Não se compreende, por outro lado, a vantagemquepossa trazeraumtecelãoouaumcarpinteiroesseconhecimentodo"bememsi"noquetocaàsuaarte,ouqueohomemquetenhaconsideradoaIdeiaemsivenhaaser,porissomesmo,melhormédicoougeneral.Porqueomédiconemsequerpareceestudarasaúdedessepontodevista,massimasaúdedohomem,ou talvez sejamais exatodizer a saúdedeum indivíduoparticular, pois é aosindivíduosqueelecura.Masquantoaisso,basta.

7

Voltemosnovamenteaobemqueestamosprocurandoeindaguemosoqueéele,poisnãoseafiguraigualnasdistintasaçõeseartes;édiferentenamedicina,naestratégia,eemtodasàsdemaisartesdomesmomodo.Queé,pois,obemdecada uma delas? Evidentemente, aquilo em cujo interesse se fazem todas asoutrascoisas.Namedicinaéasaúde,naestratégiaavitória,naarquiteturaumacasa, em qualquer outra esfera uma coisa diferente, e em todas as ações epropósitoséeleafinalidade;poisétendo-oemvistaqueoshomensrealizamoresto.Porconseguinte,seexisteumafinalidadeparatudoquefazemos,essaseráobemrealizávelmedianteaação;e,sehámaisdeuma,serãoosbensrealizáveisatravésdela.

Vemos agora que o argumento, tornando por um atalho diferente, chegou aomesmoponto.Masprocuremosexpressar istocommaisclarezaainda. Jáque,evidentemente,osfinssãováriosenósescolhemosalgunsdentreeles(comoariqueza,asflautaseosinstrumentosemgeral),segue-sequenemtodososfinssãoabsolutos;masosumobeméclaramentealgodeabsoluto.Portanto, sesóexisteumfimabsoluto,seráoqueestamosprocurando;e,seexistemaisdeum,omaisabsolutodetodosseráoquebuscamos.

Ora,nóschamamosaquiloquemereceserbuscadoporsimesmomaisabsolutodoqueaquiloquemereceserbuscadocomvistasemoutracoisa,eaquiloquenunca é desejável no interesse de outra coisamais absoluto do que as coisasdesejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso

chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em simesmoenuncanointeressedeoutracoisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É elaprocuradasempreporsimesmaenuncacomvistasemoutracoisa,aopassoqueàhonra,aoprazer,à razãoea todasasvirtudesnósde fatoescolhemosporsimesmos(pois,aindaquenadaresultassedaí,continuaríamosaescolhercadaumdeles);mas tambémos escolhemosno interesse da felicidade, pensandoque apossedelesnos tornará felizes.Afelicidade, todavia,ninguémaescolhe tendoemvistaalgumdestes,nem,emgeral,qualquercoisaquenãosejaelaprópria.

Considerado sob o ângulo da autossuficiência, o raciocínio parece chegar aomesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como autossuficiente.Ora,porautossuficientenãoentendemosaquiloqueésuficienteparaumhomemsó,paraaquelequelevaumavidasolitária,mastambémparaospais,osfilhos,aesposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceuparaacidadania.Masénecessáriotraçaraquiumlimite,porque,seestendermosos nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dosamigos,teremosumasérieinfinita.

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos aautossuficiênciacomosendoaquiloque,emsimesmo,tornaavidadesejávelecarente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, alémdisso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entreoutros.Seassimfizéssemos,éevidentequeelase tornariamaisdesejávelpelaadiçãodomenorbemquefosse,poisoqueéacrescentadosetornaumexcessodebens,edosbensésempreomaioromaisdesejável.Afelicidadeé,portanto,algoabsolutoeautossuficiente,sendotambémafinalidadedaação.

Masdizerqueafelicidadeéosumobemtalvezpareçaumabanalidade,efaltaainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceriagrande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem.Pois,assimcomoparaumflautista,umescultorouumpintor,eemgeralparatodas as coisasque têmuma funçãoou atividade, considera-sequeobemeo"bemfeito"residemnafunção,omesmoocorreriacomohomemseeletivesseumafunção.

Dar-se-áocaso,então,dequeocarpinteiroeocurtidortenhamcertasfunçõeseatividades,eohomemnão tenhanenhuma?Teráelenascidosemfunção?Ou,

assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têmevidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, domesmomodo,temumafunçãoàpartedetodasessas?Qualpoderáserela?

Avidaparecesercomumatéàsprópriasplantas,masagoraestamosprocurandoo que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição ecrescimento.A seguirháumavidadepercepção,masessa tambémparece sercomum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa doelementoque temumprincípio racional;desta,umaparte tem talprincípionosentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer opensamento. E, como a “vida do elemento racional" também tem doissignificados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido deatividade;poisestapareceseraacepçãomaisprópriadotermo.

Ora,seafunçãodohomeméumaatividadedaalmaquesegueouqueimplicaumprincípioracional,esedizemosque"umtal-e-tal"e"umbomtal-e-tal"têmumafunçãoqueéamesmaemespécie(porexemplo,umtocadordeliraeumbom tocador de lira, e assim em todos os casos, semmaiores discriminações,sendoacrescentadaaonomedafunçãoaeminênciacomrespeitoàbondade—poisafunçãodeumtocadordeliraétocarlira,eadeumbomtocadordeliraéfazê-lobem); se realmente assimé [e afirmamos ser a funçãodohomemumacertaespéciedevida,eestavidaumaatividadeouaçõesdaalmaqueimplicamumprincípioracional;eacrescentamosqueafunçãodeumbomhomeméumaboaenobrerealizaçãodasmesmas;esequalqueraçãoébemrealizadaquandoestádeacordocomaexcelênciaquelheéprópria;serealmenteassimé],obemdo homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com avirtude,e,sehámaisdeumavirtude,comamelhoremaiscompleta.

Maséprecisoajuntar"numavidacompleto".Porquantoumaandorinhanãofazverão,nemumdiatampouco;edamesmaformaumdia,ouumbreveespaçodetempo,nãofazumhomemfelizeventuroso.

Que isto sirva como um delineamento geral do bem, pois presumivelmente énecessário esboçá-lo primeiro de maneira tosca, para mais tarde precisar osdetalhes.Mas,abemdizer,qualquerumécapazdepreencherearticularoqueem princípio foi bem delineado; e também o tempo parece ser um bomdescobridor e colaborador nessa espécie de trabalho. A tal fato se devem osprogressosdasartes,poisqualquerumpodeacrescentaroquefalta.

Devemos igualmente recordaroquesedisseantesenãobuscaraprecisãoemtodasascoisasporigual,mas,emcadaclassedecoisas,apenasaprecisãoqueoassuntocomportarequeforapropriadaàinvestigação.Porqueumcarpinteiroeumgeômetrainvestigamdediferentesmodosoânguloreto.Oprimeiroofaznamedidaemqueoânguloretoéútilaoseutrabalho,enquantoosegundoindagaoqueouqueespéciedecoisaeleé;poisogeômetraécomoqueumespectadordaverdade. Nós outros devemos proceder do mesmo modo em todos os outrosassuntos,paraqueanossatarefaprincipalnãofiquesubordinadaaquestõesdemenormonta.Etampoucodevemosreclamaracausaemtodososassuntosporigual.Emalgunscasosbastaqueo fatoestejabemestabelecido, comosucedecomosprimeirosprincípios:ofatoéacoisaprimáriaouprimeiroprincípio.

Ora, dos primeiros princípios descobrimos alguns pela indução, outros pelapercepção, outros comoqueporhábito, e outros aindadediferentesmaneiras.Mas a cada conjunto de princípios devemos investigar da maneira natural eesforçar-nosparaexpressá-loscomprecisão,poisqueelestêmgrandeinfluênciasobreoquesesegue.Diz-se,comefeito,queocomeçoémaisquemetadedotodo,emuitasdasquestõesqueformulamossãoaclaradasporele.

8

Devemosconsiderá-lo,noentanto,nãosóàluzdanossaconclusãoedasnossaspremissas,mas tambémdoqueaseurespeitosecostumadizer;poiscomumaopiniãoverdadeira todososdadosseharmonizam,mascomumaopiniãofalsaosfatosnãotardamaentraremconflito.

Ora,osbenstêmsidodivididosemtrêsclasses,ealgunsforamdescritoscomoexteriores,outroscomorelativosàalmaouaocorpo.Nósoutrosconsideramoscomomais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com aalma,ecomotaisclassificamosasaçõeseatividadespsíquicas.Logo,onossopontodevistadevesercorreto,pelomenosdeacordocomestaantigaopinião,com a qual concordam muitos filósofos. É também correto pelo fato deidentificarmos o fim com certas ações e atividades, pois dessemodo ele vemincluir-seentreosbensdaalma,enãoentreosbensexteriores.

Outracrençaqueseharmonizacomanossaconcepçãoéadequeohomemfelizvivebemeagebem;poisdefinimospraticamenteafelicidadecomoumaespécie

deboavidaeboaação.Ascaracterísticasquesecostumabuscarnafelicidadetambémparecempertencertodasàdefiniçãoquedemosdela.Comefeito,algunsidentificam a felicidade com a virtude, outros com a sabedoria prática, outroscom uma espécie de sabedoria filosófica, outros com estas, ou uma destas,acompanhadasounãodeprazer;eoutrosaindatambémincluemaprosperidadeexterior. Ora, algumas destas opiniões têm tido muitos e antigos defensores,enquantooutrasforamsustentadasporpoucas,maseminentespessoas.Enãoéprovável que qualquer delas esteja inteiramente equivocada, mas sim quetenham razão pelo menos a algum respeito, ou mesmo a quase todos osrespeitos.

Tambémseajustaànossaconcepçãoadosque identificamafelicidadecomavirtudeemgeraloucomalgumavirtudeparticular,poisqueàvirtudepertenceaatividadevirtuosa.Mashá,talvez,umadiferençanãopequenaemcolocarmososumobemnaposseounouso,noestadodeânimoounoato.Porquepodeexistiro estadodeânimosemproduzirnenhumbom resultado, comonohomemquedorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa devenecessariamenteagir,eagirbem.E,assimcomonosJogosOlímpicosnãosãoosmaisbeloseosmaisfortesqueconquistamacoroa,masosquecompetem(poisédentreestesquehãodesurgirosvencedores),tambémascoisasnobreseboasdavidasósãoalcançadaspelosqueagemretamente.

Suaprópriavidaéaprazívelporsimesma.Comefeito,oprazeréumestadodaalma,eparacadahomeméagradávelaquiloqueeleama:nãosóumcavaloaoamigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos,mas tambémosatos justos ao amanteda justiça e, emgeral, os atos virtuosos aos amantes davirtude.Ora,namaioriadoshomensosprazeresestãoemconflitounscomosoutrosporquenãosãoaprazíveispornatureza,masosamantesdoqueénobresecomprazememcoisasquetêmaquelaqualidade;taléocasodosatosvirtuosos,que não apenas são aprazíveis a esses homens,mas em simesmos e por suapróprianatureza.Emconsequência,avidadelesnãonecessitadoprazercomoumaespéciedeencantoadventício,maspossuioprazeremsimesma.Poisque,alémdoquejádissemos,ohomemquenãoseregozijacomasaçõesnobresnãoésequerbom;eninguémchamariadejustooquenãosecomprazemagircomjustiça,nemliberaloquenãoexperimentaprazernasaçõesliberais;edomesmomodoemtodososoutroscasos.

Sendoassim,asaçõesvirtuosasdevemseraprazíveisemsimesmas.Massão,alémdisso,boasenobres,epossuemnomaisaltograucadaumdestesatributos,

porquantoohomembomsabeaquilatá-losbem;suacapacidadede julgaré talcomo a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a maisaprazível coisa domundo, e esses atributos não se acham separados como nainscriçãodeDelos:

Dascoisasamaisnobreéamaisjusta,eamelhoréasaúde;

Masamaisdoceéalcançaroqueamamos.

Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ouentão,umadelas—amelhor—,nósaidentificamoscomafelicidade.

Enoentanto,comodissemos,elanecessitaigualmentedosbensexteriores;poisé impossível, ou pelomenos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidosmeios.Emmuitasaçõesutilizamoscomoinstrumentososamigos,ariquezaeopoderpolítico;ehácoisascujaausênciaempanaafelicidade,comoanobrezadenascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem demuitofeia aparência, ou malnascidos, ou solitário e sem filhos, não tem muitasprobabilidadesdeserfeliz,etalveztivessemenosaindaseseusfilhosouamigosfossemvisceralmentemaus e se amorte lhe houvesse roubado bons filhos oubonsamigos.

Comodissemos,pois,ohomemfelizparecenecessitartambémdessaespéciedeprosperidade;eporessarazãoalgunsidentificamafelicidadecomaboafortuna,emboraoutrosaidentifiquemcomavirtude.

9

Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pelaaprendizagem,pelohábitoouporalgumaoutraespéciedeadestramento,ouseelanoséconferidaporalgumaprovidênciadivina,ouaindapeloacaso.Ora,sealgumadádivaoshomensrecebemdosdeuses,érazoávelsuporqueafelicidadesejaumadelas,e,dentretodasascoisashumanas,aquemaisseguramenteéumadádiva divina, por ser a melhor. Esta questão talvez caiba melhor em outroestudo;noentanto,mesmoqueafelicidadenãosejadadapelosdeuses,mas,aocontrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie deaprendizagemouadestramento,elaparececontar-seentreascoisasmaisdivinas;poisaquiloqueconstituioprêmioeafinalidadedavirtudesenosafiguraoque

demelhorexistenomundo,algodedivinoeabençoado.

Dentrodestaconcepção,tambémdeveelaserpartilhadaporgrandenúmerodepessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para avirtudepodeconquistá-lamediantecertaespéciedeestudoediligência.Mas,seé preferível ser feliz dessamaneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatossejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, pornatureza,tãobomquantopoderiaser,edomesmomodooquedependedaarteoudequalquercausaracional,especialmentesedependedamelhordetodasascausas.Confiaraoacasooquehádemelhoredemaisnobreseriaumarranjomuitoimperfeito.

Arespostaàperguntaqueestamosfazendoétambémevidentepeladefiniçãodafelicidade, por quando dissemos que ela é uma atividade virtuosa da alma, decerta espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentescomocondiçõespréviasda felicidade,eoutrossãonaturalmentecooperanteseúteiscomoinstrumentos.Eisto,comoédeverconcordacomoquedissemosnoprincípio, isto é, que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essaciênciadedicaomelhordeseusesforçosafazercomqueoscidadãossejambonsecapazesdenobresações.

Énatural,portanto,quenãochamemosfeliznemaoboi,nemaocavalonemaqualqueroutroanimal,vistoquenenhumdelespodeparticipardetalatividade.Pelomesmomotivo,ummeninotampoucoéfeliz,poisque,devidoàsuaidade,ainda não é capaz de tais atos; e osmeninos a quem chamamos felizes estãosimplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que nelesdepositamos. Porque, como dissemos, há importante não só de uma virtudecompletamastambémdeumavidacompleta,jáquemuitasmudançasocorremna vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima degrandesinfortúniosnavelhice,comosecontadePríamonoCicloTroiano;eaquemexperimentoutaisvicissitudeseterminoumiseravelmenteninguémchamafeliz.

10

Entãoninguémdeveráserconsideradofelizenquantoviver,eseráprecisoverofim,comodizSólon?Mesmoqueesposemosessadoutrina,dar-se-áocasode

queumhomemsejafelizdepoisdemorto?Ounãoseráperfeitamenteabsurdatal ideia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie deatividade?Mas,senãoconsideramosfelizesosmortoseseSólonnãoserefereaisso,mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar umhomem de venturoso porque finalmente nãomais o podem atingirmales neminfortúnios,issotambémfornecematériaparadiscussão.Efetivamente,acredita-sequeparaummortoexistemmalesebens,tantoquantoparaosvivosquenãotêmconsciênciadeles:porexemplo,ashonrasedesonras,asboasemásfortunasdosfilhosedosdescendentesemgeral.

E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenhavivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitosrevesespodemsucederaosseusdescendentes.Algunsserãobonseterãoavidaque merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também éevidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podemvariar indefinidamente. Seria estranho, pois, se osmortos devessem participardessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado,também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse omenorefeitosobreafelicidadedeseusancestrais.

Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo examemais atento talveznosdêasoluçãodopresenteproblema.Ora,seéprecisoverofimparasóentãodeclararumhomemfeliz,temosaíumparadoxoflagrante:quandoeleéfeliz,osatributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados deledevidoàsmudançasaqueestão sujeitos,porqueadmitimosquea felicidadeéalgodepermanenteequenãomudacomfacilidade,aopassoquecadaindivíduopode sofrermuitas voltas da roda da fortuna.É claro que, para acompanhar opassodesuasvicissitudes,deveríamoschamaromesmohomemoradefeliz,oradedesgraçado,oquefariadohomemfelizum"camaleão,sembasesegura".Ouserá um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? Osucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas, como dissemos, aexistência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o queconstituiafelicidadeouoseucontráriosãoasatividadesvirtuosasouviciosas.

Aquestãoqueacabamosdediscutirconfirmaanossadefinição,poisnenhumafunçãohumanadesfrutadetantapermanênciacomoasatividadesvirtuosas,quesãoconsideradasmaisduráveisdoqueopróprioconhecimentodasciências.Easmaisvaliosasdentreelassãomaisduráveis,porqueoshomensfelizesdebomgradoecommuitaconstâncialhesdedicamosdiasdesuavida;eestapareceser

arazãopelaqualsemprenoslembramosdeles.Oatributoemapreçopertencerá,pois, aohomem feliz, queo serádurante avida inteira; porque sempre, oudepreferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou nacontemplaçãovirtuosa,esuportaráasvicissitudesdavidacomamaiornobrezaedecoro,seé"verdadeiramentebom"e"honestoacimadetodacensura".

Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto àimportância.Éclaroqueospequenosincidentesfelizesouinfelizesnãopesammuitonabalança,masumamultidãodegrandesacontecimentos, senos foremfavoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em simesmos,defeitioaaumentarabelezadavida,masaprópriamaneiracomoumhomemosrecebepodesernobreeboa);e,sesevoltaremcontranós,poderãoesmagaremutilarafelicidade,poisque,alémdeseremacompanhadosdedor,impedemmuitasatividades.Todavia,mesmonessesanobrezadeumhomemsedeixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não porinsensibilidadeàdor,maspornobrezaegrandezadealma.

Seasatividadessão,comodissemos,oquedácaráteràvida,nenhumhomemfeliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis.Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade,pensamosnós,todasascontingênciasdavida,esempretiraomaiorproveitodascircunstâncias,comoumgeneralquefazomelhorusopossíveldoexércitosoboseucomandoouumbomsapateiro fazosmelhorescalçadoscomocouroquelhedão;edomesmomodocomtodososoutrosartífices.E,seassimé,ohomemfeliznuncapodetornar-sedesgraçado,muitoemboranãoalcanceabeatitudesetiverumafortunasemelhanteàdePríamo.

Etampoucoseráeleversátilemutável,poisnemsedeixarádesviarfacilmentedo seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns,mas somente pormuitas egrandes;nem, se sofreumuitas egrandesdesventuras, recuperará embrevetempoasuafelicidade.Searecuperar,seránumtempolongoecompleto,emquehouveralcançadomuitoseesplêndidossucessos.

Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtudeperfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante umperíodoqualquer,masatravésdeumavidacompleta?Oudevemosacrescentar:"Equeestádestinadoaviverassimeamorrerdemodoconsentâneocomasuavida"? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade,afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim,

chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essascondiçõesserealizemouestejamdestinadasarealizar-se—mashomensfelizes.Sobreestasquestõesdissemososuficiente.

11

Queasortedosdescendentesedetodososamigosdeumhomemnãolheafetede nenhum modo a felicidade parece ser uma doutrina cínica e contrária àopiniãocomum.Mas,vistoseremnumerosososacontecimentosqueocorrem,eadmitiremtodaespéciedediferenças,ejáquealgunsnostocammaisdepertoeoutros menos, mostra-se uma tarefa longa— mais do que longa, infinita—discutir cada um em detalhe. Talvez possamos contentar-nos com um esboçogeral.

Se,pois,algunsinfortúniospessoaisdeumhomemtêmcertopesoeinfluênciana vida, enquanto outros são, por assim dizer, mais leves, também existemdiferençasentreosinfortúniosdenossosamigostomadosemconjunto,enãodánomesmo que os diversos sofrimentos sobrevenham aos vivos ou aosmortos(com efeito, a diferença aqui émuitomaior, até, do que entre atos terríveis einíquospressupostosnumatragédiaouefetivamenterepresentadosnacena),essadiferençatambémdeveserlevadaemconta—ouantes,talvez,ofatodehaverdúvidasobreseosmortosparticipamdequalquerbemoumal.Poisparece,deacordocomtudoqueacabamosdeponderar,queaindaquealgodebomoumauchegueatéeles,devemserinfluênciasmuitofracaseinsignificantes,queremsimesmas, quer para eles; ou, então, serão tais em grau e em espécie que nãopossam tornar felizquemnãooé,nemroubarabeatitudeaosventurosos.Porconseguinte,aboaoumáfortunadosamigosparecetercertosefeitossobreosmortos,masefeitosdetalespécieegrauquenãotornamdesgraçadososfelizesnemproduzemqualqueroutraalteraçãosemelhante.

12

Tendo dado uma resposta definida a essas questões, vejamos agora se afelicidadepertence aonúmerodas coisasque são louvadas, ou, antes, dasquesão estimadas; pois é evidente que não podemos colocá-la entre aspotencialidades.

Tudo que é louvado parece merecer louvores por ser de certa espécie erelacionadodeummodoqualquercomalgumaoutracoisa;porquelouvamosojustoouovaloroso, e, emgeral, tantoohomembomcomoaprópria virtude,devidoàsaçõesefunçõesemjogo,elouvamosohomemforte,obomcorredor,etc.,porquesãodeumadeterminadaespécieeserelacionamdecertomodocomalgo de bom ou importante. Isso também é evidente quando consideramos oslouvoresdirigidosaosdeuses,poispareceabsurdoqueosdeusessejamaferidospelos nossos padrões; no entanto assim se faz, porque o louvor envolve umareferência,comodissemos,aalgumaoutracoisa.

Entretanto, se o louvor se aplica a coisas do gênero das que descrevemos,evidentemente o que se aplica às melhores coisas não é louvor, mas algo demelhoredemaior;porquantoaosdeuseseaosmaisdivinosdentreoshomens,oque fazemos é chamá-los felizes e bem-aventurados. E omesmo vale para ascoisas:ninguémlouvaafelicidadecomolouvaajustiça,masantesachamadebem-aventurada,comoalgomaisdivinoemelhor.

Também parece que Eudoxo estava acertado em seu método de sustentar asupremacia do prazer. Pensava ele que o fato de não ser louvado o prazer,embora seja um bem, está a indicar que ele émelhor do que as coisas a queprodigalizamoslouvores—etaissãoDeuseobem;poiséemrelaçãoaelesquetodasasoutrascoisassãojulgadas.

Olouvoréapropriadoàvirtude,poisgraçasaelaoshomenstendemapraticaraçõesnobres,masosencômiossedirigemaosatos,querdocorpo,querdaalma.Noentanto, talvezasutilezanestesassuntossejamaisprópriadosquefizeramumestudodosencômios;paranós,oquesedisseacimadeixabastanteclaroquea felicidade pertence ao número das coisas estimadas e perfeitas. E tambémpareceserassimpelo fatodeserelaumprimeiroprincípio;poisé tendo-aemvistaquefazemostudoquefazemos,eoprimeiroprincípioecausadosbensé,afirmamosnós,algodeestimadoededivino.

13

Já que a felicidade é uma atividade da alma conforme à virtude perfeita,devemos considerar a natureza da virtude: pois talvez possamos compreendermelhor,poressemeio,anaturezadafelicidade.

Ohomemverdadeiramentepolíticotambémgozaareputaçãodehaverestudadoa virtude acimade todas as coisas, pois que ele deseja fazer comque os seusconcidadãos sejam bons e obedientes às leis. Temos um exemplo disso noslegisladoresdoscretensesedosespartanos,eemquaisqueroutrosdessaespéciequepossaterhavidoalhures.E,seestainvestigaçãopertenceàciênciapolítica,éevidentequeelaestarádeacordocomonossoplanoinicial.

Mas a virtude que devemos estudar é, fora de qualquer dúvida, a virtudehumana;porquehumanoeraobemehumanaafelicidadequebuscávamos.Porvirtude humana entendemos não a do corpo, mas a da alma; e também àfelicidadechamamosumaatividadedealma.Mas,assimsendo,éóbvioqueopolíticodevesaberdealgummodooquedizrespeitoàalma,exatamentecomodeveconhecerosolhosouatotalidadedocorpoaquelequesepropõeacurá-los;e commaior razão ainda por ser a políticamais estimada emelhor do que amedicina.Mesmoentreosmédicos,osmaiscompetentesdão-segrandetrabalhoparaadquiriroconhecimentodocorpo.

O político, pois, deve estudar a alma tendo em vista os objetivos quemencionamos e quanto baste para o entendimento das questões que estamosdiscutindo, já que os nossos propósitos não parecem exigir uma investigaçãomaisprecisa,queseria,aliás,muitotrabalhosa.

A seu respeito são feitas algumas afirmações bastante exatas, mesmo nasdiscussões estranhas à nossa escola; e delas devemos utilizar-nos agora. Porexemplo:queaalmatemumaparteracionaleoutraparteprivadaderazão.Queelassejamdistintascomoaspartesdocorpooudequalquercoisadivisível,oudistintas por definição mas inseparáveis por natureza, como o côncavo e oconvexonacircunferênciadeumcírculo,não interessaàquestãocomquenosocupamosdemomento.

Doelementoirracional,umasubdivisãopareceestarlargamentedifundidaeserdenaturezavegetativa.Refiro-meàqueécausadanutriçãoedocrescimento;pois é essa espécie de faculdade da alma que devemos atribuir a todos oslactanteseaosprópriosembriões,equetambémestápresentenosseresadultos:com efeito, é mais razoável pensar assim do que atribuir-lhes uma faculdadediferente. Ora, a excelência desta faculdade parece ser comum a todas asespécies,enãoespecificamentehumana.Alémdisso,tudoestáaindicarqueelafuncionaprincipalmenteduranteosono,aopassoqueénesseestadoquemenossemanifestamabondadeeamaldade.Daívemoaforismodequeosfelizesnão

diferemdosinfortunadosdurantemetadedesuavida;oqueémuitonatural,emvistade sero sonouma inatividadedaalmaem relaçãoàquiloquenos levaachamá-ladeboaoumá;amenos,talvez,queumapequenapartedomovimentodos sentidos penetre de algummodo na alma, tornando os sonhos do homembom melhores que os da gente comum. Mas basta quanto a esse assunto.Deixemos de lado a faculdade nutritiva, uma vez que, por natureza, ela nãoparticipadaexcelênciahumana.

Parecehavernaalmaaindaoutroelementoirracional,masque,emcertosentido,participa da razão. Com efeito, louvamos o princípio racional do homemcontinente e do incontinente, assim como a parte de sua alma que possui talprincípio,porquantoelaosimpelenadireçãocertaeparaosmelhoresobjetivos;mas,aomesmotempo,encontra-senelesoutroelementonaturalmenteopostoaoprincípioracional,lutandocontraestearesistindo-lhe.Porque,exatamentecomoosmembrosparalisadossevoltamparaaesquerdaquandoprocuramosmovê-lospara a direita, a mesma coisa sucede na alma: os impulsos dos incontinentesmovem-se em direções contrárias. Com uma diferença, porém: enquanto, nocorpo,vemosaquiloque sedesviadadireçãocerta,naalmanãopodemosvê-lo.

Apesar disso, devemos admitir que também na alma existe qualquer coisacontráriaaoprincípioracional,qualquercoisaquelheresisteeseopõeaele.Emquesentidoesseelemento sedistinguedosoutros, éumaquestãoquenãonosinteressa. Nem sequer parece ele participar de um princípio racional, comodissemos. Seja como for, no homem continente ele obedece ao referidoprincípio; e é de presumir que no temperante e no bravo sejamais obedienteainda,poisemtaishomenselefala,arespeitodetodasascoisas,comamesmavozqueoprincípioracional.

Porconseguinte,oelementoirracionaltambémpareceserduplo.Comefeito,oelementovegetativonãotemnenhumaparticipaçãonumprincípioracional,masoapetitivoe,emgeral,oelementodesiderativoparticipadeleemcertosentido,na medida em que o escuta e lhe obedece. É nesse sentido que falamos em"atenderàsrazões"dopaiedosamigos,oqueébemdiversodeponderararazãodeumapropriedadematemática.

Que, de certo modo, o elemento irracional é persuadido pela razão, tambémestãoaindicá-loosconselhosquesecostumadar,assimcomotodasascensurase exortações. E, se convém afirmar que também esse elemento possui um

princípioracional,oquepossuitalprincípio(comotambémoquecarecedele)será de dupla natureza: uma parte possuindo-o em si mesma e no sentidorigoroso do termo, e a outra com a tendência de obedecer-lhe como um filhoobedeceaopai.

A virtude também se divide em espécies de acordo com esta diferença,porquantodizemosquealgumasvirtudessãointelectuaiseoutrasmorais;entreasprimeirastemosasabedoriafilosófica,acompreensão,asabedoriaprática;eentre as segundas,por exemplo, a liberalidadee a temperança.Comefeito, aofalar do caráter de um homem não dizemos que ele é sábio ou que possuientendimento,masqueécalmooutemperante.Noentanto,louvamostambémosábio, referindo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor chamamosvirtudes.

LIVROII

1

Sendo,pois,deduasespéciesavirtude,intelectualemoral,aprimeira,porviade regra, gera-se e cresce graças ao ensino— por isso requer experiência etempo;enquantoavirtudemoraléadquiridaemresultadodohábito,dondeter-se formadooseunomeporumapequenamodificaçãodapalavra(hábito).Portudoisso,evidencia-setambémquenenhumadasvirtudesmoraissurgeemnóspor natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar umhábitocontrárioàsuanatureza.Porexemplo,àpedraquepornaturezasemoveparabaixonão sepode imprimirohábitode irparacima, aindaque tentemosadestrá-lajogando-adezmilvezesnoar;nemsepodehabituarofogoadirigir-separabaixo,nemqualquercoisaquepornaturezasecomportedecertamaneiraacomportar-sedeoutra.

Nãoé,pois,pornatureza,nemcontrariandoanaturezaqueasvirtudessegeramem nós. Diga-se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nostornamosperfeitospelohábito.

Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiroadquirimos a potência emais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente nocasodossentidos,poisnãofoiporverououvirfrequentementequeadquirimosavisãoeaaudição,mas,pelocontrário,nósaspossuíamosantesdeusá-las,enãoentramosnapossedelaspelouso.Comasvirtudesdá-seexatamenteooposto:adquirimo-laspeloexercício,comotambémsucedecomasartes.Comefeito,ascoisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo;por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de liratangendoesseinstrumento.Damesmaforma,tornamo-nosjustospraticandoatosjustos,eassimcomatemperança,abravura,etc.

IstoéconfirmadopeloqueacontecenosEstados:oslegisladorestornambonsoscidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todolegislador,equemnãologrataldesideratofalhanodesempenhodasuamissão.Nisso,precisamente,resideadiferençaentreasboaseasmásconstituições.

Aindamais:édasmesmascausasepelosmesmosmeiosquesegeraesedestróitoda virtude, assim como toda arte: de tocar a lira surgemos bons e osmausmúsicos. Isso também vale para os arquitetos e todos os demais; construindobem,tornam-sebonsarquitetos;construindomal,maus.Senãofosseassimnãohaverianecessidadedemestres,etodososhomensteriamnascidobonsoumausemseuofício.

Isso,pois,éoquetambémocorrecomasvirtudes:pelosatosquepraticamosemnossas relações com os homens nos tornamos justos ou injustos; pelo quefazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nostornamosvalentesoucovardes.Omesmosepodedizerdosapetitesedaemoçãoda ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros sem limites e irascíveis,portando-sedeummodooudeoutroemigualdadedecircunstâncias.

Numa palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. Épreciso,pois,atentarparaaqualidadedosatosquepraticamos,porquantodasuadiferençasepodeaquilataradiferençadecaracteres.Enãoécoisadesomenosque desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquelamaneira. Tem,pelocontrário,imensaimportância,oumelhor:tudodependedisso.

2

Umavezqueapresenteinvestigaçãonãovisaaoconhecimentoteóricocomoasoutras—porquenãoinvestigamosparasaberoqueéavirtude,masafimdenostornarmosbons,docontrárioonossoestudoseria inútil—,devemosexaminaragora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, comodissemos,elesdeterminamanaturezadosestadosdecaráterquedaísurgem.

Ora,quedevemosagirdeacordocomaregrajustaéumprincípiocomumenteaceito, que nós encamparemos. Mais tarde havemos de nos ocupar dele,examinandooquesejaaregrajustaecomoserelacionacomasoutrasvirtudes.Umacoisa,porém,deveserassentadadeantemão,eéquetodoessetratamentodeassuntosdecondutasefaráemlinhasgeraisenãodemaneiraprecisa.Desdeoprincípiofizemosverqueasexplicaçõesquebuscamosdevemestardeacordocom os respectivos assuntos. Tal como se passa no que se refere à saúde, asquestõesdecondutaedoqueébomparanósnãotêmnenhumafixidez.Sendoessa a natureza da explicação geral, a dos casos particulares será ainda mais

carentedeexatidão,poisnãoháarteoupreceitoqueosabranjaatodos,masaspróprias pessoas atuantes devem considerar, em cada caso, o que é maisapropriado à ocasião, como também sucede na arte da navegação e namedicina.

Mas,emboraonossotratadosejadestanatureza,devemosprestartantoserviçoquanto for possível. Comecemos, pois, por frisar que está na natureza dessascoisasoseremdestruídaspelafaltaepeloexcesso,comoseobservanoreferenteàforçaeàsaúde(pois,a fimdeobteralgumaluzsobrecoisas imperceptíveis,devemosrecorreràevidênciadascoisassensíveis).Tantoadeficiênciacomooexcesso de exercício destroem a força; e, da mesma forma, o alimento ou abebidaqueultrapassemdeterminadoslimites,tantoparamaiscomoparamenos,destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, aproduzem,aumentamepreservam.

Omesmo acontece com a temperança, a coragem e as outras virtudes, pois ohomemqueatudotemeedetudofoge,nãofazendofrenteanada,torna-seumcovarde,eohomemquenãotemeabsolutamentenada,masvaiaoencontrodetodososperigos, torna-se temerário;e,analogamente,oqueseentregaa todososprazeresenãoseabstémdenenhumtorna-sesemlimite,enquantooqueevitatodososprazeres,comofazemosrústicos,setornadecertomodoinsensível.

A temperança e a coragem, pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, epreservadas pela mediania. Mas não só as causas e fontes de sua geração ecrescimentosãoasmesmasqueasdeseuperecimento,comotambéméamesmaesfera de sua atualização. Isto tambémé verdadeiro das coisasmais evidentesaossentidos,comoaforça,porexemplo:elaéproduzidapelaingestãodegrandequantidade de alimento e por um exercício intenso, e quem mais está emcondições de fazer isso é o homem forte. O mesmo ocorre com as virtudes:tornamo-nostemperantesabstendo-nosdeprazeres,eédepoisdenostornarmostais que somos mais capazes dessa abstenção. E igualmente no que toca àcoragem, pois é habituando-nos a desprezar e arrostar coisas terríveis que nostornamos bravos, e depois de nos tornarmos tais, somosmais capazes de lhesfazerfrente.

3

Devemos tomar como sinais indicativos do caráter o prazer ou a dor queacompanhamosatos;porqueohomemqueseabstémdeprazerescorporaisesedeleita nessaprópria abstenção é temperante, enquantooque se aborrece comelaé sem limite;equemarrostacoisas terríveise senteprazeremfazê-lo,ou,pelomenos,nãosofrecomisso,ébravo,enquantoohomemquesofreécovarde.Comefeito,aexcelênciamoral,relaciona-secomprazeresedores;éporcausadoprazer que praticamosmás ações, e por causa da dor que nos abstemos deações nobres. Por isso deveríamos ser educados de uma determinadamaneiradesde a nossa juventude, como diz Platão, a fim de nos deleitarmos e desofrermoscomascoisasquenosdevemcausardeleiteousofrimento,poisessaéaeducaçãocerta.

Poroutro lado, se asvirtudesdizem respeito a ações epaixões, e cada açãoecada paixão é acompanhada de prazer ou de dor, também por este motivo avirtudeserelacionarácomprazeresedores.Outracoisaqueestáaindicá-loéofatodeser infligidoocastigoporessesmeios;ora,ocastigoéumaespéciedecura,eédanaturezadascurasoefetuarem-sepeloscontrários.

Ainda mais: como dissemos não faz muito, todo estado da alma tem umanaturezarelativaeconcernenteàespéciedecoisasquetendematorná-lamelhoroupior;maséemrazãodosprazeresedoresqueoshomensse tornammaus,istoé,buscando-osouevitando-os—querprazeresedoresquenãodevem,naocasiãoemquenãodevemoudamaneirapelaqualnãodevembuscarouevitar,quer por errarem numa das outras alternativas semelhantes que se podemdistinguir.Porisso,muitoschegamadefinirasvirtudescomocertosestadosdeinflexibilidade e repouso; não acertadamente, porém, porque se exprimem demodoabsoluto,semdizer"comosedeve","comonãosedeve","quandosedeveounão se deve", e as outras condiçõesque se podemacrescentar.Admitimos,pois,queessaespéciedeexcelênciatendeafazeroqueémelhorcomrespeitoaosprazereseàsdores,equeovíciofazocontrário.

Os fatos seguintes também nos podem mostrar que a virtude e o vício serelacionamcomessasmesmas coisas.Comoexistem trêsobjetosde escolha etrêsderejeição—onobre,ovantajoso,oagradáveleseuscontrários,ovil,oprejudicialeodoloroso—,arespeitodetodoselesohomembomtendeaagircertoeohomemmauaagirerrado,eespecialmentenoquetocaaoprazer.Comefeito, além de ser comum aos animais, este também acompanha todos osobjetos de escolha, pois até o nobre e o vantajoso se apresentam comoagradáveis.

Acrescequeoagradáveleodolorosocresceramconoscodesdeanossainfância,eporissoédifícilconteressaspaixões,enraizadascomoestãonanossavida.E,alguns mais e outros menos, medimos nossas próprias ações pelo estalão doprazeredador.Poressemotivo,todaanossainquiriçãogiraráemtornodeles,jáque,pelo fatodeserem legítimosou ilegítimos,oprazereadorquesentimostêmefeitonãopequenosobreasnossasações.

Poroutro lado,parausarmosa frasedeHeráclito, émaisdifícil lutar contraoprazerdoquecontraador,mastantoavirtudecomoaarteseorientamparaomaisdifícil,queaté tornamelhoresascoisasboas.Essaé tambémarazãoporquetantoavirtudecomoaciênciapolíticagiramsempreemtornodeprazeresedores,devezqueohomemquelhesderbomusoserábomeoquelhesdermauusoserámau.

Demosporassentado,pois,queavirtudetemquevercomprazeresedores;que,pelosmesmosatosdequeelaseorigina,tantoéacrescidacomo,setaisatossãopraticadosdemododiferente,destruída;equeosatosdeondesurgiuavirtudesãoosmesmosemqueelaseatualiza.

4

Alguémpoderiaperguntarqueentendemosnósaodeclararquedevemostornar-nos justos praticando atos justos e temperantes praticando atos temperantes;porque, se um homem pratica tais atos, é que já possui essas virtudes,exatamentecomo,sefazcoisasconcordescomasleisdagramáticaedamúsica,équejáégramáticoemúsico.

Ounãoseráistoverdadeironemsequerdasartes?Pode-sefazerumacoisaqueestejaconcordecomasleisdagramática,querporacaso,querporsugestãodeoutrem. Um homem, portanto, só é gramático quando faz algo pertencente àgramática e o faz gramaticalmente; e isto significa fazê-lo de acordo com osconhecimentosgramaticaisqueeleprópriopossui.

Sucede, por outro lado, que neste ponto não há similaridade de caso entre asarteseasvirtudes,porqueosprodutosdasprimeirastêmasuabondadeprópria,bastando que possuam determinado caráter; mas porque os atos que estão deacordo com as virtudes tenham determinado caráter, não se segue que sejampraticadosdemaneirajustaoutemperante.Tambéméimportantequeoagentese

encontre em determinada condição ao praticá-los: em primeiro lugar deve terconhecimentodoquefaz;emsegundo,deveescolherosatos,eescolhê-losporeles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter firme eimutável. Estas não são consideradas como condições para a posse das artes,salvoosimplesconhecimento;mascomocondiçãoparaapossedasvirtudesoconhecimentopoucoounenhumpesotem,aopassoqueasoutrascondições—isto é, aquelas mesmas que resultam da prática amiudada de atos justos etemperantes—são,numapalavra,tudo.

Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperantes quando são taiscomoasquepraticariaohomemjustoou temperante;masnãoé temperanteohomem que as pratica, e sim o que as pratica tal como o fazem os justos etemperantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera ohomemjusto,epelapráticadeatostemperantes,ohomemtemperante;semessaprática,ninguémteriasequerapossibilidadedetornar-sebom.

Masamaioriadaspessoasnãoprocedeassim.Refugiam-senateoriaepensamqueestãosendofilósofosesetornarãobonsdessamaneira.Nistoseportam,decertomodo,comoenfermosqueescutassematentamenteosseusmédicos,masnãofizessemnadadoqueesteslhesprescrevessem.Assimcomoasaúdedestesúltimosnãopoderestabelecer-secomtaltratamento,aalmadossegundosnãosetornarámelhorcomsemelhantecursodefilosofia.

5

Devemos considerar agora o que é a virtude.Visto quena alma se encontramtrês espécies de coisas— paixões, faculdades e disposições de caráter —, avirtudedevepertenceraumadestas.

Porpaixõesentendoosapetites,acólera,omedo,aaudácia,áinveja,aalegria,aamizade,oódio,odesejo,aemulação,acompaixão,eemgeralossentimentosque são acompanhadosdeprazer oudor; por faculdades, as coisas emvirtudedasquaissedizquesomoscapazesdesentirtudoisso,ouseja,denosirarmos,de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as coisas emvirtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Porexemplo, com referência à cólera, nossa posição émá se a sentimos demodoviolentooudemasiadofraco,eboaseasentimosmoderadamente;edamesma

formanoqueserelacionacomasoutraspaixões.

Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chamabons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ouvícios, e porque não somos louvados nem censurados por causa de nossaspaixões(ohomemquesentemedooucóleranãoélouvado,nemécensuradooque simplesmente se encoleriza,mas simo que se encoleriza de certomodo);maspelasnossasvirtudesevíciossomosefetivamentelouvadosecensurados.

Por outro lado, sentimos cólera emedo semnenhuma escolha de nossa parte,masasvirtudessãomodalidadesdeescolha,ouenvolvemescolha.Alémdisso,comrespeitoàspaixõessedizquesomosmovidos,mascomrespeitoàsvirtudese aos vícios não se diz que somos movidos, e sim que temos tal ou taldisposição.

Porestasmesmas razões, tambémnão são faculdades,porquantoninguémnoschama bons ou maus, nem nos louva ou censura pela simples capacidade desentir as paixões.Acrescequepossuímos as faculdadespornatureza,masnãonostornamosbonsoumauspornatureza.Jáfalamosdistoacima.

Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta umaalternativa:adequesejamdisposiçõesdecaráter.

Mostramos,assim,oqueéavirtudecomrespeitoaoseugênero.

6

Nãobasta, contudo,definir avirtudecomoumadisposiçãodecaráter; cumpredizerqueespéciededisposiçãoéela.

Observemos, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em boacondição a coisa de que é a excelência como também faz com que a funçãodessa coisa seja bemdesempenhada. Por exemplo, a excelência do olho tornabons tanto o olho como a sua função, pois é graças à excelência do olho quevemosbem.Analogamente,aexcelênciadeumcavalotantootornabomemsimesmocomobomnacorrida,emcarregaroseucavaleiroeemaguardardepéfirmeoataquedoinimigo.Portanto,seistovaleparatodososcasos,avirtudedohomem também será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz

desempenharbemasuafunção.

Comoissovemasuceder,jáoexplicamosatrás,masaseguinteconsideraçãodanaturezaespecificadavirtudelançaránovaluzsobreoassunto.Emtudoqueécontínuoedivisívelpode-setomarmais,menosouumaquantidadeigual,eissoqueremtermosdaprópriacoisa,querrelativamenteanós;eoigualéummeio-termoentreoexcessoeafalta.Pormeio-termonoobjetoentendoaquiloqueéequidistante de ambos os extremos, e que é um só e omesmo para todos oshomens;epormeio-termorelativamenteanós,oquenãoénemdemasiadonemdemasiadamente pouco — e este não é um só e o mesmo para todos. Porexemplo,sedezédemaisedoisépouco,seiséomeio-termo,consideradoemfunção do objeto, porque excede e é excedido por uma quantidade igual; essenúmeroéintermediáriodeacordocomumaproporçãoaritmética.Masomeio-termorelativamenteanósnãodeveserconsideradoassim:sedezlibrasédemaisparaumadeterminadapessoacomereduaslibrasédemasiadamentepouco,nãose segue daí que o treinador prescreverá seis libras; porque isso também é,talvez,demasiadoparaapessoaquedevecomê-lo,oudemasiadamentepouco—demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiante. Omesmoseaplicaàcorridaeàluta.Assim,ummestreemqualquerarteevitaoexcessoeafalta,buscandoomeio-termoeescolhendo-o—omeio-termonãonoobjeto,masrelativamenteanós.

Seéassim,pois,quecadaarte realizabemoseu trabalho—tendodiantedosolhosomeio-termoe julgandosuasobrasporessepadrão;epor issodizemosmuitasvezesqueàsboasobrasdeartenãoépossíveltirarnemacrescentarnada,subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras,enquanto omeio-termo a preserva; e para este, como dissemos, se voltam osartistasnoseutrabalho—,ese,ademaisdisso,avirtudeémaisexataemelhorquequalquerarte,comotambémoéanatureza,segue-sequeavirtudedeveteroatributodevisaraomeio-termo.Refiro-meàvirtudemoral,poiséelaquedizrespeito às paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e um meio-termo.

Porexemplo,tantoomedocomoaconfiança,oapetite,aira,acompaixão,eemgeraloprazereador,podemsersentidosemexcessoouemgrauinsuficiente;e,numcasocomonooutro, issoéummal.Mas senti-losnaocasiãoapropriada,comreferênciaaosobjetosapropriados,paracomaspessoasapropriadas,pelomotivoedamaneiraconveniente,nissoconsistemomeio-termoeaexcelênciacaracterísticosdavirtude.

Analogamente, no que tange às ações também existe excesso, carência e ummeio-termo.Ora,avirtudediz respeitoàspaixõeseaçõesemqueoexcessoéuma formadeerro, assimcomoacarência, aopassoqueomeio-termoéumaformade acertodignade louvor; e acertar e ser louvada são característicasdavirtude. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania, já que, comovimos,elapõeasuamiranomeio-termo.

Poroutrolado,épossívelerrardemuitosmodos(poisomalpertenceàclassedoilimitadoeobemàdolimitado,comosupuseramospitagóricos),massóháummododeacertar.Porisso,oprimeiroéfácileosegundodifícil—fácilerraramira, difícil atingir o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso e a falta sãocaracterísticosdovício,eamedianiadavirtude:

Poisoshomenssãobonsdeummodosó,emausdemuitosmodos.

A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha econsistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual édeterminadaporumprincípio racionalprópriodohomemdotadode sabedoriaprática.Eéummeio-termoentredoisvícios,umporexcessoeoutroporfalta;pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que éconvenientenotocanteàsaçõesepaixões,avirtudeencontraeescolheomeio-termo.Eassim,noquetocaàsuasubstânciaeàdefiniçãoquelheestabeleceaessência,avirtudeéumamediania;comreferênciaaosumobemeaomaisjusto,é,porém,umextremo.

Masnem todaaçãoepaixãoadmiteummeio-termo,poisalgumas têmnomesquejádesimesmosimplicammaldade,comoodespeito,odespudor,ainveja,e,nocampodasações,oadultério,ofurto,oassassínio.Todasessascoisaseoutrassemelhantesimplicam,nosprópriosnomes,quesãomásemsimesmas,enãooseuexcessooudeficiência.Nelasjamaispodehaverretidão,masunicamenteoerro. E, no que se refere a essas coisas, tampouco a bondade ou maldadedependem de cometer adultério com a mulher apropriada, na ocasião e damaneiraconvenientes,masfazersimplesmentequalquerdelaséummal.

Igualmente absurdo seria buscar ummeio-termo, um excesso e uma falta ematosinjustos,covardesoulibidinosos;porqueassimhaveriaummeio-termodoexcessoedacarência,umexcessodeexcessoeumacarênciadecarência.Mas,do mesmo modo que não existe excesso nem carência de temperança e decoragem, pois o que é intermediário também é, noutro sentido, um extremo,

também das ações que mencionamos não há meio-termo, nem excesso, nemfalta, porque, de qualquer forma que sejampraticadas, sãomás.Em suma, doexcessooudafaltanãohámeio-termo,comotambémnãoháexcessooufaltademeio-termo.

7

Não devemos, porém, contentar-nos com esta exposição geral; é importanteaplicá-la tambémaosfatos individuais.Comefeito,dasproposiçõesrelativasàconduta,asuniversaissãomaisvazias,masasparticularessãomaisverdadeiras,porquantoacondutaversasobrecasos individuaisenossasproposiçõesdevemharmonizar-secomosfatosnessescasos.

Podemostomá-losnonossoquadrogeral.Emrelaçãoaossentimentosdemedoede confiança, a coragem é o meio-termo; dos que excedem, o que o faz nodestemornãotemnome(muitasdisposiçõesnãootêm),enquantooqueexcedena audácia é temerário, e o que excede nomedo emostra falta de audácia écovarde.Comrelaçãoaosprazeresedores—nãotodos,emenosnoquetangeàsdores—omeio-termoéatemperançaeoexcessoéaintemperança.Pessoasdeficientes no tocante aos prazeres não são muito encontradiças, e por estemotivonãoreceberamnome;chamemo-las,porém,"insensíveis".

No que se refere a dar e receber dinheiro o meio-termo é a liberalidade; oexcessoeadeficiência,respectivamente,prodigalidadeeavareza.Nestaespéciedeaçõesaspessoasexcedeme sãodeficientesdemaneirasopostas:opródigoexcedenogastareédeficientenoreceber,enquantooavaroexcedenorecebereé deficiente no gastar. (De momento, tudo que fazemos é dar um esboço ousumário, e com isso nos contentamos; mais adiante essas disposições serãodescritascommaisexatidão).

Ainda no que diz respeito ao dinheiro, existem outras disposições: ummeio-termo,amagnificência(poisohomemmagnificentediferedoliberal;oprimeirolida comgrandes quantias, o segundo comquantias pequenas); um excesso, avulgaridadeeomaugosto;eumadeficiência,amesquinhez;estasdiferemdasdisposiçõescontráriasàliberalidade,emaistardediremosemquê.

Comrespeitoàhonraeàdesonra,omeio-termoéojustoorgulho,oexcessoéconhecido como uma espécie de "vaidade oca" e a deficiência como uma

humildade indébita; eamesma relaçãoqueapontamosentrea liberalidadeeamagnificência, da qual a primeira difere por lidar com pequenas quantias,também se verifica aqui, pois há uma disposição que tem alguns pontos emcomum com o justo orgulho,mas ocupa-se com pequenas honras, enquanto aestesóinteressamasgrandes.Porqueépossíveldesejarahonracomosedeve,maisdoque sedeveemenosdoque sedeve, eohomemqueexcedeem taisdesejoséchamadoambicioso,oqueficaaquémémodesto,enquantoapessoaintermediárianãotemnome.

As disposições também não receberam nome, salvo a do ambicioso, que sechamaambição.Porisso,aspessoasqueseencontramnosextremosarrogam-sea posição intermediária; e nós mesmos às vezes chamamos as pessoasintermediárias de ambiciosas e outras vezes de modestas, e ora louvamos aprimeiradisposição,oraasegunda.Arazãodissoserádadamaisadiante;agora,porém,falemossobreasdemaisdisposições,deacordocomométodoindicado.

Notocanteàcóleratambémháumexcesso,umafaltaeummeio-termo.Emborapraticamente não tenham nomes, uma vez que chamamos calmo ao homemintermediário,sejaomeio-termotambémacalma;edosqueseencontramnosextremos,chamemos irascívelaoqueexcedee irritabilidadeaoseuvício;eaoqueficaaquémdajustamedidachamemospacato,ecalmaàsuadeficiência.

Há outros três meios-termos que diferem entre si, apesar de revelarem certasemelhança comum. Todos eles dizem respeito ao intercâmbio em atos epalavras,masdiferemnoseguinte:umserelacionacomaverdadenessasesferase os outros dois com o que é aprazível; e destes, um se manifesta emproporcionar divertimento e o outro em todas as circunstâncias da vida. Épreciso, portanto, falar destes dois, a fim demelhor compreendermos que emtodas as coisas o meio-termo é louvável e os extremos nem louváveis nemcorretos,masdignosdecensura.Ora,amaioriadessasdisposiçõestambémnãoreceberamnomes,masdevemosesforçar-nospor inventá-los,paraqueanossaexposiçãosejaclaraefácildeacompanhar.

No que toca à verdade, o intermediário é a pessoa verídica e ao meio-termopodemoschamarveracidade,enquantoasimulaçãoqueexageraéajactânciaeapessoa que se caracteriza por esse hábito é jactanciosa; e a que subestima é afalsamodéstia,aquecorrespondeapessoafalsamentemodesta.

Quantoàaprazibilidadenoproporcionardivertimento,apessoaintermediáriaé

espirituosa e aomeio-termo chamamos espírito; o excesso é a chocarrice, e apessoa caracterizada por ele, um chocarreiro, enquanto a pessoa que mostradeficiênciaéumaespéciederústicoeasuadisposiçãoéarusticidade.

Vejamos, finalmente, a terceira espécie de aprazibilidade, isto é, a que semanifesta na vida em geral. O homem que sabe agradar a todos da maneiradevida é amável, e omeio-termo é a amabilidade, enquanto o que excede oslimiteséumapessoaobsequiosasenãotemnenhumpropósitodeterminado,umlisonjeirosevisaaoseuinteressepróprio,eohomemquepecapordeficiênciaesemostrasempredesagradáveléumapessoamal-humoradaerixenta.

Também há meios-termos nas paixões e relativamente a elas, pois que avergonha não é uma virtude, e não obstante louvamos os modestos. Mesmonesses assuntos, diz-se que um homem é intermediário e outro excede, como,por exemplo, o acanhado que se envergonha de tudo; enquanto o quemostradeficiênciaenãoseenvergonhadecoisaalgumaéumdespudorado,eapessoaintermediáriaémodesta.

A justa indignação é um meio-termo entre a inveja e o despeito, e estasdisposiçõessereferemàdoreaoprazerquenosinspiramaboaoumáfortunadenossos semelhantes. O homem que se caracteriza pela justa indignaçãoconfrange-secomamáfortunaimerecida;oinvejoso,queoultrapassa,aflige-secomtodaboafortunaalheia;eodespeitado,longedeseafligir,chegaaopontoderejubilar-se.

Teremosoportunidadededescreveralhuresestasdisposições.Quantoàjustiça,como o significado deste termo não é simples, após descrever as outrasdisposições distinguiremos nele duas espécies e mostraremos em que sentidocada uma delas é um meio-termo; e trataremos do mesmo modo as virtudesracionais.

8

Existem, pois, três espécies de disposições, sendo duas delas vícios queenvolvemexcessoecarênciarespectivamente,eaterceiraumavirtude,istoé,omeio-termo.Eemcertosentidocadaumadelasseopõeàsoutrasduas,poisquecadadisposiçãoextremaécontráriatantoaomeio-termocomoaooutroextremo,eomeio-termoé contrário a ambosos extremos: assimcomoo igual émaior

relativamente ao menor e menor relativamente ao maior, também os estadosmedianossãoexcessivosemconfrontocomasdeficiênciasedeficientesquandocomparadoscomosexcessos,tantonaspaixõescomonasações.Comefeito,obravo parece temerário em relação ao covarde, e covarde em relação aotemerário;e,damesmaforma,o temperantepareceumvoluptuosoemrelaçãoaoinsensívele insensívelemrelaçãoaovoluptuoso,eo liberalparecepródigoem confronto com o avaro e avaro em confronto com o pródigo. Por isso aspessoas que se encontram nos extremos empurram uma para a outra aintermediária:ohomembravoéchamadode temeráriopelocovardeecovardepelotemerário,eanalogamentenosoutroscasos.

Opostascomosãoumasàsoutrasessasdisposições,amaiorcontrariedadeéaque se observa entre os extremos, e não destes para com o meio-termo;porquantoosextremosestãomaislongeumdooutroquedomeio-termo,assimcomo o grande está mais longe do pequeno e o pequeno do grande, do queambosestãodoigual.

Poroutro lado,algunsextremosmostramcertasemelhançacomomeio-termo,como a temeridade com a coragem e a prodigalidade com a liberalidade. Osextremos, porém,mostram amaior disparidade entre si; ora, os contrários sãodefinidos como as coisas quemais se afastam uma da outra, demodo que ascoisasmaisafastadasentresisãomaiscontrárias.

Aomeio-termo,omaiscontrárioàsvezeséadeficiência,outrasvezesoexcesso.Por exemplo, não é a temeridade, que representaumexcesso,mas a covardia,umadeficiência,quemaisseopõeàcoragem;masnocasodatemperança,oquemaisselheopõeéaintemperança,umexcesso.

Issosedeveadoismotivos,umdosquaisresidenaprópriacoisa:pelofatodeumdosextremosestarmaispróximodomeio-termoeassemelhar-semaisaele,nãoopomosaomeio-termoesseextremo, e simo seucontrário.Por exemplo,como a temeridade é consideradamais semelhante à coragem emais próximadesta,eacovardiamaisdessemelhante,éesteúltimoextremoquecostumamosoporaomeio-termo;porquantoascoisasquemaisseafastamdomeio-termosãoconsideradascomomaiscontráriasaele.

Esta é, pois, a causa inerente à própria coisa.A outra reside emnósmesmos,poisaquiloparaquemais tendemospornaturezanosparecemaiscontrárioaomeio-termo. Por exemplo, nós próprios tendemos mais naturalmente para os

prazeres, e por isso somos mais facilmente levados à intemperança do que àcontenção.Daídizermosmaiscontráriosaomeio-termoaquelesextremosaquenosdeixamosarrastarcommaisfrequência;eporissoaintemperança,queéumexcesso,émaiscontráriaàtemperança.

9

Está,pois,suficientementeesclarecidoqueavirtudemoraléummeio-termo,eemquesentidodevemosentenderestaexpressão;equeéummeio-termoentredoisvícios,umdosquaisenvolveexcessoeooutrodeficiência,eissoporqueasuanaturezaévisaràmedianianaspaixõesenosatos.

Doqueacabamosdedizer segue-sequenãoé fácil serbom,poisem todasascoisas édifícil encontraromeio-termo.Por exemplo, encontraromeiodeumcírculo não é para qualquer um, mas só para aquele que sabe fazê-lo; e, domesmomodo,qualquerumpodeencolerizar-se,darougastardinheiro—issoéfácil;masfazê-loàpessoaqueconvém,namedida,naocasião,pelomotivoedamaneiraqueconvém,eisoquenãoéparaqualquerume tampouco fácil.Porissoabondadetantoéraracomonobreelouvável.

Porconseguinte,quemvisaaomeio-termodeveprimeiroafastar-sedoquelheémaiscontrário,comoaconselhaCalipso:

Passaaolargodetalressacaedetalsurriada.Comefeito,dosextremos,umémais errôneo e o outro menos; portanto, como acertar no meio-termo éextraordinariamente difícil, devemos contentar-nos com o menor dos males,comosecostumadizer;eamelhormaneiradefazê-loéaquedescrevemos.Masdevemos considerar as coisas para as quais nós próprios somos facilmentearrastados, porque um pende numa direção e outro em outra; e isso se podereconhecerpeloprazerepeladorquesentimos.

Éprecisoforçar-nosairàdireçãodoextremocontrário,porquechegaremosaoestado intermediário afastando-nos o mais que pudermos do erro, comoprocedemaquelesqueprocuramendireitarvarastortas.

Ora, em todas as coisaso agradável eoprazer é aquilodequemaisdevemosdefender-nos,poisnãopodemosjulgá-locomimparcialidade.Aatitudeatomarem face do prazer é, portanto, a dos anciãos do povo para comHelena, e em

todas as circunstâncias cumpre-nos dizer o mesmo que eles; porque, se nãodermos ouvidos ao prazer, correremos menos perigo de errar. Em resumo, éprocedendo dessa forma que teremos mais probabilidades de acertar com omeio-termo.

Nãohánegar,porém,queissosejadifícil,especialmentenoscasosparticulares:pois quem poderá determinar com precisão de que modo, com quem, emrespostaaqueprovocaçãoedurantequantotempodevemosencolerizar-nos?Eàsvezeslouvamososqueficamaquémdamedida,qualificando-osdecalmos,eoutrasvezeslouvamososqueseencolerizam,chamando-osdevaronis.Nãosecensura,contudo,ohomemquesedesviaumpoucodabondade,quernosentidodomenos,querdomais;sómerecereprocheohomemcujodesvioémaior,poisessenuncapassadespercebido.

Masatéquepontoumhomempodedesviar-sesemmerecercensura?Issonãoéfácildedeterminarpeloraciocínio,comotudoquesejapercebidopelossentidos;tais coisas dependem de circunstâncias particulares, e quem decide é apercepção.

Fica bem claro, pois, que em todas as coisas o meio-termo é digno de serlouvado,masqueàsvezesdevemos inclinar-nosparaoexcessoeoutrasvezesparaadeficiência.Efetivamente,essaéamaneiramaisfácildeatingiromeio-termoeoqueécerto.

LIVROIII

1

Visto que a virtude se relaciona com paixões e ações, e é às paixões e açõesvoluntáriasquesedispensalouvorecensura,enquantoasinvoluntáriasmerecemperdão e às vezes piedade, é talvez necessário a quem estuda a natureza davirtude distinguir o voluntário do involuntário. Tal distinção terá tambémutilidadeparaolegisladornoquetangeàdistribuiçãodehonrasecastigos.

São,pois,consideradasinvoluntáriasaquelascoisasqueocorremsobcompulsãoou por ignorância; e é compulsório ou forçado aquilo cujo princípiomotor seencontra fora de nós e para o qual emnada contribui a pessoa que age e quesenteapaixão—porexemplo, se talpessoa fosse levadaaalgumapartepeloventoouporhomensquedelasehouvessemapoderado.

Mas,quantoàscoisasquesepraticamparaevitarmaioresmalesoucomalgumnobrepropósito(porexemplo,seumtiranoordenasseaalguémumatovileessealguém,tendoospaiseosfilhosempoderdaquele,praticasseoatoparasalvá-losdeseremmortos),édiscutívelse taisatossãovoluntáriosouinvoluntários.Algo de semelhante acontece quando se lançam cargas ao mar durante umatempestade;porque,emteoria,ninguémvoluntariamentejogaforabensvaliosos,mas quando assim o exige a segurança própria e da tripulação de um navio,qualquerhomemsensatoofará.

Tais atos, pois, são mistos, mas assemelham-se mais a atos voluntários pelarazão de serem escolhidos nomomento emque se fazem e pelo fato de ser afinalidade de uma ação relativa às circunstâncias. Ambos esses termos,"voluntário" e "involuntário", devem portanto ser usados com referência aomomentodaação.Ora,ohomemagevoluntariamente,poisneleseencontraoprincípio que move as partes apropriadas do corpo em tais ações; e aquelascoisascujoprincípiomotorestáemnós, emnósestá igualmenteo fazê-lasounão as fazer. Ações de tal espécie são, por conseguinte, voluntárias, mas emabstrato talvez sejam involuntárias, pois que ninguém as escolheria por simesmas.

Por ações dessa espécie os homens são até louvados algumas vezes, quandosuportamalgumacoisaviloudolorosaemtrocadegrandesenobresobjetivosalcançados; no caso contrário são censurados, porque expor-se às maioresindignidadessemqualquerfinalidadenobreouporumobjetivoinsignificanteéprópriodeumhomeminferior.

Algumasações,emverdade,nãomerecemlouvor,masperdão,quandoalguémfaz o que não deve sem sofrer umapressão superior às forças humanas e quehomemalgumpoderiasuportar.Mashátalvezatosqueninguémnospodeforçarapraticareaquedevemospreferiramorteentreosmaishorríveissofrimentos;eosmotivosque"forçaram"oAlcmêondeEurípidesamataraprópriamãenosparecemabsurdos.Éporvezesdifícildeterminaroquesedeveriaescolhereaquecusto,eoquedeveriasersuportadoemtrocadequevantagem;eaindamaisdifícilépermanecerfirmenasresoluçõestomadas,poisporviaderegraoqueseesperaédolorosoeoquesomosforçadosafazerévil;dondeseremobjetodelouvorecensuraaquelesqueforamouquenãoforamcompelidosaagir.

Queespéciedeaçõessedevem,pois,chamarforçadas?Respondemosque,semressalvasdequalquerespécie,asaçõessãoforçadasquandoacausaseencontranascircunstânciasexterioreseoagenteemnadacontribui.Quantoàscoisasqueemsimesmassãoinvoluntárias,mas,nomomentoatualedevidoàsvantagensquetrazemconsigo,merecempreferência,ecujoprincípiomotorseencontranoagente, essas são, como dissemos, involuntárias em si mesmas, porém, nomomentoatualeemtrocadessasvantagens,voluntárias.Etêmmaissemelhançacomasvoluntárias,poisqueasaçõessucedemnoscasosparticularese,nestes,sãopraticadasvoluntariamente.Queespéciesdecoisasdevemserpreferidas,eemtrocadequê?Nãoéfácildeterminá-lo,poisexistemmuitasdiferençasentreumcasoparticulareoutro.

Se alguém afirmasse que as coisas nobres e agradáveis têm um podercompulsório porque nos constrangem de fora, para ele todos os atos seriamcompulsóriose forçados,pois tudoquefazemos temessamotivação.Eosqueagemforçadosecontraasuavontade,agemcomdor,masosquepraticamatospor sua satisfação própria ou pelo que aqueles têm de nobre fazem-no comprazer.Éabsurdoresponsabilizarascircunstânciasexterioresenãoasimesmo,julgando-se facilmente arrastado por tais atrativos, e declarar-se responsávelpelos atos nobres enquanto se lança a culpa dos atos vis sobre os objetosagradáveis.

Ocompulsórioparece,pois,seraquilocujoprincípiomotorseencontradoladodefora,paranadacontribuindoqueméforçado.

Tudo o que se faz por ignorância é não voluntário, e só o que produz dor earrependimento é involuntário. Com efeito, o homem que fez alguma coisadevido à ignorância e não se aflige em absoluto com o seu ato não agiuvoluntariamente, visto que não sabia o que fazia; mas tampouco agiuinvoluntariamente, jáque issonão lhecausadoralguma.Eassim,daspessoasque agem por ignorância, as que se arrependem são consideradas agentesinvoluntários, e as que não se arrependem podem ser chamadas agentes nãovoluntários, visto diferirem das primeiras; em razão dessa própria diferença,devemterumadenominaçãodistinta.

Agirporignorânciaparecediferirtambémdeagirnaignorância,poisdohomemembriagadoouenfurecidodiz-sequeagenãoemresultadoda ignorância,masdeumadascausasmencionadas,econtudosemconhecimentodoquefaz,masnaignorância.

Ora,todohomemperversoignoraoquedevefazeredequedeveabster-se,eéemrazãodeumerrodestaespéciequeoshomenssetornaminjustose,emgeral,maus. Mas o termo "involuntário" não é geralmente usado quando o homemignoraoquelhetrazvantagem—poisnãoéopropósitoequivocadoquecausaaação involuntária (esse conduziria antes à maldade), nem a ignorância douniversal(pelaqualoshomenssãopassíveisdecensura),masaignorânciadosparticulares, isto é, das circunstâncias do ato e dos objetos com que ele serelaciona. São justamente esses que merecem piedade e perdão, porquanto apessoaqueignoraqualquerdessascoisasageinvoluntariamente.

Talvezconvenhadeterminaraquianaturezaeonúmerodetaisatos.Umhomempodeignorarquemelepróprioé,oqueestáfazendo,sobrequecoisasoupessoasestáagindo,eàsvezestambémqualéoinstrumentoqueusa,comquefim(podepensar, por exemplo, que está protegendo a segurança de alguém) e de quemaneiraage(secombranduraoucomviolência,porexemplo).

Ora,nenhumadestascoisasumhomempodeignorar,anãoserqueestejalouco,e também é claro que não pode ignorar o agente, pois como é possíveldesconhecer a si mesmo? Mas é possível ignorar o que se está fazendo:costumamosdizer, comefeito, "eledeixouescaparestaspalavras semquerer",ou "não sabia que se tratava de um segredo", como se expressou Esquilo a

respeito dos mistérios, ou como aquele homem que disparou a catapulta edesculpou-se alegando que só queria mostrar o seu funcionamento e eladispararaporsi.

Tambémépossívelconfundirnossofilhocomuminimigo,comoocorreucomMérope,oupensarqueumalançapontiagudatemapontaembotada,ouqueumapedraépedra-pomes;epode-sedaraumhomemumapoçãoparacurá-lo,eaoinvés dissomatá-lo; e também ferir um adversário quando se pretende apenastocá-lo,comoacontecenopugilato.

Aignorânciapoderelacionar-se,portanto,comqualquerdessascoisas—istoé,qualquerdascircunstânciasdoato;edohomemqueignoravaumadelasdiz-sequeagiu involuntariamente,sobretudose ignoravaospontosmais importantes,que,naopiniãogeral,sãoascircunstânciaseafinalidadedoato.Alémdisso,apráticadeumatoconsideradoinvoluntárioemvirtudedeumaignorânciadestaespéciedevecausardoretrazerarrependimento.

Como tudo o que se faz constrangido ou por ignorância é involuntário, ovoluntáriopareceseraquilocujoprincípiomotorseencontranopróprioagenteque tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato. É de presumirque os atos praticados sob o impulso da cólera ou do apetite nãomereçam aqualificaçãodeinvoluntários.Porque,emprimeirolugar,sefossemtais,nenhumdos outros animais agiria voluntariamente, e as crianças tampouco; e, emsegundolugar,seriaocasodeperguntarseoqueseentendeporissoéquenãopraticamosvoluntariamentenenhumdosatosdevidosaoapetiteouàcólera,ousepraticamosvoluntariamenteosatosnobreseinvoluntariamenteosvis.Nãoéabsurdoisso,quandoacausaéumasóeamesma?Inegavelmente,seriaestranhoqualificardeinvoluntáriasascoisasquedevemosdesejar;eécertoquedevemosencolerizar-nosdiantedecertascoisaseapeteceroutras:porexemplo,asaúdeeainstrução.

Poroutrolado,oinvoluntárioéconsideradodoloroso,masoqueestádeacordocom o apetite é agradável. Ainda mais: qual a diferença, no que tange àinvoluntariedade,entreoserroscometidosafrioeaquelesemquecaímossobaaçãodacólera?Ambosdevemserevitados,masaspaixõesirracionaisnãosãoconsideradasmenoshumanasdoquearazão;porconseguinte,tambémasaçõesqueprocedemdacóleraoudoapetitesãoaçõesdohomem.Seriaestranho,pois,tratá-lascomoinvoluntárias.

2

Tendo sido delimitados desta forma o voluntário e o involuntário, devemospassaragoraaoexamedaescolha,que,paraosespíritosdiscriminadores,pareceestarmaisestreitamenteligadaàvirtudedoqueasações.

Aescolha,pois,pareceservoluntária,masnãoseidentificacomovoluntário.Osegundoconceitotemmuitomaisextensão.Comefeito,tantoascriançascomoos animais inferiores participam da ação voluntária, porém não da escolha; e,embora chamemos voluntários os atos praticados sob o impulso domomento,nãodizemosqueforamescolhidos.

Osqueadefinemcomosendoumapetite,acólera,umdesejoouumaespéciedeopinião,nãoparecemterrazão.Efetivamente,aescolhanãoé tambémcomumàs criaturas irracionais, mas a cólera e o apetite, sim. Por outro lado, oincontinente age com apetite, porém não com escolha; o continente, pelocontrário, age com escolha, porém não com apetite. Ainda mais: hácontrariedadeentreapetiteeescolha,masentreapetiteeapetite,não.Eainda:oapetiterelaciona-secomoagradáveleodoloroso;aescolha,nemcomum,nemcomooutro.

Se assim acontece com o apetite, tantomais com a cólera; porquanto os atosinspiradosporestasãoconsideradosaindamenosobjetosdeescolhadoqueosoutros.

Nem tampouco o é o desejo, embora pareça estar mais próximo dela. Comefeito,aescolhanãopodevisaracoisasimpossíveis,equemdeclarasseescolhê-las passaria por tolo e ridículo; mas pode-se desejar o impossível — aimortalidade, por exemplo. E o desejo pode relacionar-se com coisas em quenenhum efeito teriam os nossos esforços pessoais, como, por exemplo, quedeterminado ator ou atleta vença uma competição; mas ninguém escolhe taiscoisas,esimaquelasquejulgapoderemrealizar-segraçasaosseusesforços.

Além disso, o desejo relaciona-se com o fim e a escolha com os meios. Porexemplo: desejamos gozar saúde, mas escolhemos os atos que nos tornarãosadios;edesejamosserfelizes,econfessamostaldesejo,masnãopodemosdizercom acerto que "escolhemos" ser felizes, pois, de um modo geral, a escolhaparecerelacionar-secomascoisasqueestãoemnossopoder.

Tambémporestemotivo,nãosepodeidentificá-lacomaopinião,umavezqueesta se relaciona com toda a sorte de coisas, não menos as eternas e asimpossíveis do que as que estão em nosso poder; e, por outro lado, ela sedistinguepelaverdadeoufalsidade,enãopelabondadeoumaldade,enquantoaescolhasecaracterizaacimadetudoporestasúltimas.

Ora, com a opinião em geral não há ninguém que a identifique. Nós, porém,acrescentamosqueelanãoéidênticaanenhumaespéciedeopinião.Comefeito,porescolheroqueébomoumausomoshomensdeumdeterminadocaráter,masnãoosomosporsustentarestaouaquelaopinião.Eescolhemosobterouevitaralgobomoumau,mastemosopiniõessobreoquesejaumacoisa,paraquemelaé boa e de quemaneira é boa para ele; e não seriamuito acertado dizer que"opinamos"obterouevitarumacoisaqualquer.

Acresce que a escolha é louvada pelo fato de relacionar-se com o objetoconveniente,enãode relacionar-seconvenientementecomele,aopassoqueaopinião é louvada quando tem uma relação verdadeira com o seu objeto. Etambémescolhemosoquesabemossermelhor,tantoquantonosédadosabê-lo,mas opinamos sobre o que não sabemos exatamente; e não são as mesmaspessoas que passam por fazer as melhores escolhas e sustentar as melhoresopiniões, mas de algumas se diz que têm excelentes opiniões, e no entantopadecemdeumvícioqualquerqueasimpededeescolherbem.

Nãofazdiferençaqueaopiniãoprecedaaescolhaouaacompanhe,poisnãoéissoqueestamosexaminando,massimseaescolhaéidênticaaalgumaespéciedeopinião.

Que é ela, pois, e que espécie de coisa é, se não se identifica com nenhumadaquelasqueexaminamos?Pareceservoluntária,masnemtudoqueévoluntárioparece ser objeto de escolha. Será, pois, aquilo que decidimos numa análiseanterior? De qualquer forma, a escolha envolve um princípio racional e opensamento.Seupróprio nomeparece sugerir que ela é aquilo que colocamosdiantedeoutrascoisas.

3

Mas delibera-se acerca de toda coisa, e toda coisa é um possível assunto dedeliberação,ouestaéimpossívelarespeitodealgumas?

É de presumir que devamos chamar objeto de deliberação não àquilo que umnéscioouumloucodeliberaria,masàquilosobrequepodedeliberarumhomemsensato. Ora, sobre coisas eternas ninguém delibera: por exemplo, sobre ouniversomaterial ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o lado doquadrado.E tampouco deliberamos sobre as coisas que envolvemmovimento,mas sempre acontecem do mesmo modo, quer necessariamente, quer pornatureza ou por alguma outra causa, como os solstícios e o nascimento dasestrelas;nemarespeitodecoisasqueacontecemoradeummodo,oradeoutro,como as secas e as chuvas; nem sobre acontecimentos fortuitos, como adescoberta de um tesouro. E nem sequer deliberamos sobre todos os assuntoshumanos:porexemplo,nenhumespartanodeliberasobreamelhorconstituiçãoparaoscitas.Comefeito,nenhumadessascoisaspoderealizar-sepelosnossosesforços.

Deliberamossobreascoisasqueestãoaonossoalcanceepodemserrealizadas;e essas são, efetivamente, as que restam. Porque como causas admitimos anatureza, a necessidade, o acaso, e também a razão e tudo que depende dohomem. Ora, cada classe de homem delibera sobre as coisas que podem serrealizadaspelosseusesforços.Enocasodasciênciasexataseautossuficientesnãohádeliberação, como,por exemplo, a respeitodas letrasdoalfabeto (poisnãotemosdúvidasquantoàmaneiradeescrevê-las);aocontrárioascoisasquesão realizadaspelosnossos esforços,masnem sempredomesmomodo, essassãoobjetosdedeliberação:osproblemasde tratamentomédicoedecomércio,porexemplo.Edeliberamosmaisnocasodanavegaçãodoquenodaginástica,porqueaquelaestámaislongedeserexata.Enasoutrascoisasigualmente;mais,porém, quanto às artes do que quanto às ciências, pois que as primeirascomportammaioresdúvidas.

Delibera-searespeitodascoisasquecomumenteacontecemdecertomodo,mascujoresultadoéobscuro,edaquelasemqueesteéindeterminado.Enascoisasde grande monta tomamos conselheiros, por não termos confiança em nossacapacidadededecidir.

Não deliberamos acerca de fins, mas a respeito de meios. Um médico, porexemplo,nãodeliberasehádecurarounão,nemumoradorsehádepersuadir,nem um estadista se há de implantar a ordem pública, nem qualquer outrodelibera a respeito de sua finalidade. Dão a finalidade por estabelecida econsideramamaneiraeosmeiosdealcançá-la;e,separecepoderseralcançadapor vários meios, procuram o mais fácil e o mais eficaz; e se por um só,

examinam como será alcançada por ele, e por que outro meio alcançar esseprimeiro,atéchegaraoprimeiroprincípio,quenaordemdedescobrimentoéoúltimo.

Comefeito, a pessoa que delibera parece investigar e analisar damaneira quedescrevemos, como se analisasse uma construção geométrica (nem todainvestigação é deliberação: vejam-se, por exemplo, as investigaçõesmatemáticas;mastodadeliberaçãoéinvestigação);eoquevememúltimolugarnaordemdaanálisepareceserprimeironaordemdageração.Esechegamosauma impossibilidade, renunciamos à busca: por exemplo, se precisamos dedinheiro e não hámaneira de consegui-lo;mas se uma coisa parece possível,tratamos de fazê-la. Por coisas "possíveis" entendo aquelas que se podemrealizarpelosnossosesforços;e,emcertosentido,istoincluiasquepodemserpostasempráticapelosesforçosdenossosamigos,poisqueoprincípiomotorestáemnósmesmos.

Oobjetodainvestigaçãosãoporvezesosinstrumentoseporvezesousoadar-lhes;eanalogamentenosoutroscasos:porvezesomeio,outrasvezesamaneiradeusá-looudeproduzi-lo.

Parece,pois,comojáficoudito,queohomeméumprincípiomotordeações;ora,adeliberaçãogiraemtornodecoisasaseremfeitaspelopróprioagente,easaçõestêmemvistaoutracoisaquenãoelasmesmas.Comefeito,ofimnãopodeserobjetodedeliberação,masapenasomeio.Etampoucopodemsê-loosfatosparticulares: por exemplo, se isto é pão e se foi assado como devia, pois taiscoisassãoobjetosdepercepção.Sequiséssemosdeliberarsempre, teríamosdecontinuaratéoinfinito.

Éamesmacoisaaquelasobrequedeliberamoseaqueescolhemos,salvoestaroobjeto de escolha já determinado, já que aquilo por que nos decidimos emresultadodadeliberaçãoéoobjetoda escolha.Efetivamente, todos cessamdeindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princípio motor a simesmoseàpartedirigentedesimesmos,poiséessaqueescolhe.Istosepodevertambémnasantigasconstituiçõestaiscomono-lasmostraHomero,ondeosreisanunciavamaopovooquehaviamescolhido.

Sendo,pois, oobjetode escolhaumacoisaque está aonosso alcance eque édesejadaapósdeliberação,aescolhaéumdesejodeliberadodecoisasqueestãoao nosso alcance; porque, após decidir em resultado de uma deliberação,

desejamosdeacordocomoquedeliberamos.

Consideremos, pois, como descrita em linhas gerais a escolha, estabelecida anaturezadosseusobjetoseofatodequeeladizrespeitoaosmeios.

4

Jámostramosqueodesejotemporobjetoofim;algunspensamqueessefiméobem,eoutrosqueéobemaparente.Ora,osprimeiros terãodeadmitir, comoconsequênciadesuapremissa,queacoisadesejadapelohomemquenãoescolhebemnãoé realmenteumobjetodedesejo (porque, seo fosse,deveria serboatambém;masnocasoqueconsideramosémá).Poroutrolado,osqueafirmamserobjetodedesejoobemaparentedevemadmitirquenãoexisteobjetonaturaldedesejo,masapenasoqueparecebomacadahomemédesejadoporele.Ora,coisasdiferenteseatécontráriasparecemboasadiferentespessoas.

Se estas consequências desagradam, deveremos dizer que em absoluto e emverdadeobeméoobjetodedesejo,masparacadapessoaemparticularoéobemaparente;queaquiloqueemverdadeéobjetodedesejoéobjetodedesejoparaohomembom,equequalquercoisapodesê-loparaohomemmau,assimcomo,nocasodoscorpos,ascoisasqueemverdadesãosaudáveisosãoparaoscorposemboascondições,enquantoparaoscorposenfermosoutrascoisaséquesão saudáveis, ou amargas, doces, quentes, pesadas, e assim por diante?Comefeito,ohomembomaquilatatodaclassedecoisascomacerto,eemcadaumadelas a verdade lhe aparece com clareza;mas cada disposição de caráter temsuas ideias próprias sobre o nobre e o agradável, e amaior diferença entre ohomembomeosoutrosconsiste,talvez,emperceberaverdadeemcadaclassede coisas, como quem é delas a norma e a medida. Na maioria dos casos oengano deve-se ao prazer, que parece bom sem realmente sê-lo; e por issoescolhemosoagradávelcomoumbemeevitamosadorcomoummal.

5

Sendo, pois, o fim aquilo que desejamos, e o meio aquilo acerca do qualdeliberamosequeescolhemos,asaçõesrelativasaomeiodevemconcordarcomaescolhae servoluntárias.Ora,oexercíciodavirtudediz respeitoaosmeios.

Porconseguinte,avirtudetambémestáemnossopoder,domesmomodoqueovício,poisquandodependedenósoagir, tambémdependeonãoagir,evice-versa;demodoquequandotemosopoderdeagirquandoissoénobre,tambémtemosodenãoagirquandoévil;eseestaemnossopoderonãoagirquandoissoénobre,tambémestáoagirquandoissoévil.Logo,dependedenóspraticaratosnobresouvis,eseéissoqueseentendeporserbomoumau,entãodependedenóssermosvirtuososouviciosos.

O aforismo "ninguém é voluntariamente mau, nem involuntariamente feliz"parece ser em parte falso e em parte verdadeiro, porque ninguém éinvoluntariamente feliz,mas amaldade é voluntária.Do contrário, teremos decontestar o que se acabou de dizer, e negar que o homem seja um princípiomotor e pai de suas ações como o é de seus filhos. Mas, se esses fatos sãoevidentes e não podemos referir nossas ações a outros princípiosmotores quenãoestejamemnósmesmos,osatoscujosprincípiosmotoresseencontramemnósdevemtambémestaremnossopodereservoluntários.

Isto parece ser confirmado tanto por indivíduos na sua vida particular comopelospróprios legisladores,osquaispunemecastigamosquecometeramatosperversos,anãoserquetenhamsidoforçadosa issoouagidoemresultadodeuma ignorância pela qual eles próprios não fossem responsáveis; e, por outrolado,honramosquepraticaramatosnobres,comosetencionassemestimularossegundose refrearosprimeiros.Masninguéméestimuladoa fazercoisasquenão estejam em seu poder nem sejam voluntárias; admite-se que não hávantagemnenhumaemsermospersuadidosanãosentircalor,fome,doreoutrassensaçõesdomesmogênero,jáquenãoassentiríamosmenosporisso.Esucedeaté que um homem seja punido pela sua própria ignorância quando o julgamresponsável por ela, como no caso das penas dobradas para os ébrios; pois oprincípiomotorestánopróprioindivíduo,vistoqueeletinhaopoderdenãoseembriagar, e o fato de se haver embriagado foi causa da sua ignorância. Epunimosigualmenteaquelesqueignoramquaisquerprescriçõesdasleis,quandoatodoscumpreconhecê-laseissonãoédifícil;edamesmaformaemtodososcasosemqueaignorânciasejaatribuídaànegligência:presumimosquedependados culpados o não ignorar, visto que têm o poder de informar-sediligentemente.

Mastalvezumhomemsejafeitodetalmodoquenãopossaserdiligente.Semembargo, taishomenssão responsáveisemrazãodavida indolenteque levam,por se haverem tornado pessoas dessa espécie. Os homens tornam-se

responsáveis por serem injustos ou sem limites, no primeiro caso burlando opróximoenosegundopassandooseu tempoemorgiasecoisasque tais;poissão as atividades exercidas sobre objetos particulares que fazem o carátercorrespondente.Bemomostramaspessoasquesetreinamparaumacompetiçãoouparaumaaçãoqualquer,praticando-aconstantemente.

Ora,ignorarqueépeloexercíciodeatividadessobreobjetosparticularesqueseformamasdisposiçõesdecaráterédehomemverdadeiramente insensato.Nãomenos irracional é supor que umhomemque age injustamente não deseja serinjusto,ouaquelequecorreatrásdetodososprazeresnãodesejasersemlimite.Masquando,semserignorante,umhomemfazcoisasqueotornarãoinjusto,eleseráinjustovoluntariamente.Daínãosesegue,porém,que,seassimodesejar,deixarádeserinjustoesetornarájusto.Porquetampoucooqueestáenfermosecuranessascondições.

Podemos supor o caso de um homem que seja enfermo voluntariamente, porvivernaincontinênciaedesobedeceraosseusmédicos.Nessecaso,aprincípiodependiadeleonãoserdoente,masagoranãosucedeassim,porquantovirouascostasàsuaoportunidade—talcomoparaquemarremessouumapedrajánãoépossívelrecuperá-la;econtudoestavaemseupodernãoarremessar,vistoqueoprincípio motor se encontrava nele. O mesmo sucede com o injusto e o semlimite: a princípio dependia deles não se tornarem homens dessa espécie, demodoqueéporsuaprópriavontadequesãoinjustosesemlimites;eagoraquesetornaramtais,nãolhesépossívelserdiferentes.

Masnãosóosvíciosdaalmasãovoluntários,senãoquetambémosdocorpoosão para alguns homens, aos quais censuramos por issomesmo: ao passo queninguém censura os que são feios por natureza, censuramos os que o são porfalta de exercício e de cuidado.Omesmo vale para a fraqueza e a invalidez:ninguémcondenariaumcegodenascença,pordoençaoupor efeitodealgumgolpe,mas todoscensurariamumhomemquetivessecegadoemconsequênciadaembriaguezoudealgumaoutraformadeintemperança.

Dosvíciosdocorpo,pois,osquedependemdenóssãocensuradoseosquenãodependemnãoosão.E,assimsendo,tambémnosoutroscasososvíciosquesãoobjetosdecensuradevemdependerdenós.

Alguémpoderiaobjetarquetodososhomensdesejamobemaparente,masnãotêmnenhumcontrolesobreaaparência,equeofimseapresentaacadaumsob

uma forma correspondente ao seu caráter. A isso respondemos que, se cadahomemédecertomodoresponsávelpelasuadisposiçãodeânimo,serátambémde certo modo responsável pela aparência; do contrário, ninguém seriaresponsávelpelosseusmausatos,mas todosospraticariampela ignorânciadofim,julgandoquecomeleslograriamomelhor.Ora,visaraofimnãodependeda nossa escolha,mas é preciso ter nascido com um sexto sentido, por assimdizer, que nos permita julgar com acerto e escolher o que é verdadeiramentebom;erealmentebemdotadopelanaturezaéquemopossui.Comefeito,issoéoquehádemaisnobre, enãopodemosadquiri-lonemaprendê-lodeoutrem,mas o possuímos sempre tal como nos foi dado ao nascer; e ser bem enobrementedotadodessaqualidadeéaperfeiçãoeacúpuladeourodosdotesnaturais.

Seistoéverdade,comoseráavirtudemaisvoluntáriadoqueovício?Tantoparaohomembomcomoparaomau,ofimseapresentataleéfixadopelanaturezaoupeloquequerqueseja,etodososhomensagemreferindocadacoisaaele.

Portanto,quernão sejapornaturezaqueo fim se apresente a cadahomem talcomoseapresenta,algotodaviatambémdependedele;querofimsejanatural,umavezqueohomembomadotavoluntariamenteomeio,avirtudeévoluntária— o vício não será menos voluntário, pois no homem mau está igualmentepresente aquilo que depende dele próprio em seus atos, embora não na suaescolhadeumfim.Se,pois, comoseafirma,asvirtudes sãovoluntárias (poisnósprópriossomosemparteresponsáveispornossasdisposiçõesdecaráter,eéporsermospessoasdecertaespéciequeconcebemoso fimcomosendo taloutal),osvíciostambémserãovoluntários,porqueomesmoseaplicaaeles.

Quanto às virtudes em geral, esboçamos uma definição do seu gênero,mostrando que são meios e também que são disposições de caráter; e, alémdisso, que tendem por sua própria natureza para a prática dos atos que asproduzem; que dependem de nós, são voluntárias e agem de acordo com asprescrições da regra justa. Mas as ações e as disposições de caráter não sãovoluntárias do mesmo modo, porque de princípio a fim somos senhores denossos atos se conhecemos as circunstâncias; mas, embora controlemos odespontar de nossas disposições de caráter, o desenvolvimento gradual não éóbvio, como não o é também na doença; no entanto, como estava em nossopoderagirounãoagirdetalmaneira,asdisposiçõessãovoluntárias.

Tomemos,porém,asváriasvirtudesedigamosquaissão,comqueespéciesde

coisasserelacionam,ecomoserelacionamcomelas;eaomesmotemposeveráquantassão.Emprimeirolugarfalemosdacoragem.

6

Que a coragem é um meio-termo em relação aos sentimentos de medo econfiança já foi suficientemente esclarecido; e, evidentemente, as coisas quetememossãocoisasterríveis,quequalificamossemreservasdemales;eporestemotivoalgunschegamadefiniromedocomoumaexpectaçãodomal.

Ora,nóstememostodososmales,comoodesprezo,apobreza,adoença,afaltadeamigos,amorte;masnãosepensaqueabravuraserelacionecomtodoseles,poisque temercertascoisaséaté justoenobre,evilonãose receardelas.Odesprezo,porexemplo:quemotemeépessoaboaerecatada,edesavergonhadaquem não o teme. No entanto, alguns chamam bravo a tal homem, por umatransferênciadosentidodapalavra,vistoterelealgoemcomumcomohomembravo,quetambémédestemido.

Quantoàpobrezaeàdoença,talveznãodevêssemostemê-las,nem,emgeral,àscoisas que não procedem do vício e não dependem de nós próprios. Mastampouco o homem que não as receia é bravo. No entanto, aplicamos-lhe otermo, também em virtude de uma semelhança, pois alguns que são covardesdiantedosperigosdaguerramostram-seliberaisecorajososemfacedaperdadedinheiro.

Tampoucoécovardeohomemquetemeosinsultosàsuaesposaeaseusfilhos,ainvejaouqualquercoisadessaespécie;nemébravosemostracoragemquandoestáparaseraçoitado.Comqueespéciedecoisasterríveis,então,serelacionaabravura?

Seguramente,comasmaiores,poisninguémcomoohomembravoécapazdefazer frente ao que aterroriza o comum das pessoas. Ora, a morte é a maisterríveldetodasascoisas,poiselaéofim,eacredita-sequeparaosmortosjánãohánadadebomoumau.Masabravuranãoparecerelacionar-sesequercoma morte em todas as circunstâncias — como no mar ou nas doenças, porexemplo.Emquecircunstâncias,então?

Semamenordúvida,nasmaisnobres.Ora,essasmortessãoasqueocorremem

batalha,poiséemfacedosmaioresemaisnobresperigosqueseverificam.Epor issomesmo são honradas nas cidades-estados e nas cortes dosmonarcas.Propriamentefalando,pois,échamadobravoquemsemostradestemidoemfacede uma morte honrosa e de todas as emergências que envolvem o perigo demorte;easemergênciasdaguerrasão,emsumograu,destaespécie.

Mastambémnomarenadoençaohomembravoédestemido,sebemquenãodomesmomodoqueomarinheiro;porqueelerenunciouàesperançadesalvar-se e detesta a ideia dessa espécie de morte, enquanto aqueles se mantêmesperançosos devido à sua experiência. Por outro lado, somos corajosos emsituaçõesquenospermitemmostraronossovalorouemqueamortesejanobre;masnasformasdemortequeacabamosdeapontarnenhumadessascondiçõesserealiza.

7

Ascoisasterríveisnãosãoasmesmasparatodososhomens.Dizemos,contudo,quealgumasosãoalémdasforçashumanas.Essas,pois,sãoterríveisparatodos—aomenosparatodohomemnoseujuízonormal;masasquenãoultrapassamas forças humanas diferem em magnitude e grau, assim como as coisas queinspiramconfiança.

Ora,osbravossãotãoindômitosquantopodesê-loumhomem.Porisso,emboratemamtambémascoisasquenãoestãoacimadas forçashumanas,enfrentam-nas como devem e como prescreve a regra, a bem da honra; pois essa é afinalidadedavirtude.Masépossíveltemê-lasmaisoumenos,etambémtemercoisasquenãosãoterríveiscomoseofossem.Doserrosquesepodemcometer,um consiste em temer o que não se deve, outro em temer como não se deve,outro quando não se deve, e assim por diante; e da mesma forma quanto àscoisas que inspiram confiança. Por conseguinte, o homem que enfrenta e quetemeascoisasquedeveepelodevidomotivo,damaneiraenaocasiãodevidas,e que mostra confiança nas condições correspondentes, é bravo; porque ohomembravosenteeageconformeosméritosdocasoedomodoquearegraprescreve.

Ora,ofimdetodaatividadeéaconformidadecomacorrespondentedisposiçãodecaráter.Ora,acorageménobre;portanto,seufimtambéménobre,poiscadacoisaédefinidapeloseufim.Dondeseconcluiqueécomumafinalidadenobrequeohomembravoageesuportaconformelheapontaacoragem.

Dosquevãoaosexcessos,oqueexcedenodestemornãotemnome(jádissemosanteriormente que muitas disposições de caráter não o têm), mas seria umaespéciede loucooudehomem insensível senada temesse,nemos terremotosnemasondas,comodizemquesãoosceltas;enquantoohomemqueexcedenaconfiança com respeito ao que é realmente terrível é temerário. Considera-se,por isso, o homem temerário como um jactancioso e um mero simulador decoragem. Seja como for, o que o bravo é com relação às coisas terríveis, otemeráriodesejaparecer;portanto, imita-onassituaçõesemque lheépossívelfazê-lo. Daí também o serem, a maioria deles, uma mistura de temeridade ecovardia; porque, embora mostrem arrojo em tais situações, não se mantêmfirmescontraoqueérealmenteterrível.

O homem que excede nomedo é um covarde, porque teme tanto o que devecomo o que não deve, e todas as características do mesmo gênero lhe sãoaplicáveis.Falta-lheigualmenteconfiança,masfaz-senotarprincipalmentepeloexcessodemedoemsituaçõesdifíceis.Ocovardeé,porisso,umhomemdadoao desespero, pois teme todas as coisas. O bravo, por outro lado, tem adisposição contrária, pois a confiança é a marca característica de um naturalesperançoso.

Emsuma,acovardia,a temeridadeeabravura relacionam-secomosmesmosobjetos, mas revelam disposições diferentes para com eles, pois as duasprimeiras vão ao excesso ou ficam aquém damedida, ao passo que a terceiramantém-se na posição mediana, que é a posição correta. Os temerários sãoprecipitadosedesejamosperigoscomantecipação,masrecuamquandoostêmpelafrente,enquantoosbravossãoardentesnomomentodeagir,masforadissosãotranquilos.

Como dissemos, pois, a coragem é um meio-termo no tocante às coisas queinspiram confiança oumedo, nas circunstâncias que descrevemos; e o homemcorajosoescolheesuportacoisasporqueénobrefazê-lo,ouporqueévildeixardefazê-lo.Contudo,morrerparaescaparàpobreza,aoamorouaoquequerquesejadedolorosonãoéprópriodeumhomembravo,masantesdeumcovarde.Porquanto é moleza fugir do que nos atormenta, e um homem dessa espéciesuportaamortenãoporelasernobre,masparaeximir-seaomal.

8

Acoragemé,pois,algocomooquedescrevemos,masonometambémseaplicaacincooutrasespécies.

Em primeiro lugar vem a coragem do cidadão-soldado, que é a que mais seassemelha à verdadeira coragem. Os cidadãos-soldados parecem enfrentar osperigos em virtude das penas cominadas pelas leis e das censuras em queincorreriamseassimnãoprocedessem,etambémporcausadashonrasquelhesvaleráasuaação.Porissoafiguram-semaisbravosaquelespovosentreosquaisoscovardessãoexpostosàdesonra,eosbravossãohonrados.EssaéaespéciedecoragemretratadaporHomero,porexemplo,emDiômedeseemHeitor:

PrimeiroPolidamasamontoarácensurassobremim;e

Poisumdia,entreostroianos,Heitordirácomsoberba:

MedrosofoiTídides,efugiudaminhafrente.

Estaespéciedecorageméaquemaisseassemelhaàacimadescrita,porquesedeveàvirtude;emsuaorigemestáavergonha,odesejodeumnobreobjeto(ahonra) e o medo à desonra, que é ignóbil. Poder-se-iam incluir nesta classemesmo aqueles que são forçados pelos seus governantes; mas esses sãoinferiores,poisoque fazemnãoépor sentimentosdehonra,maspormedo,enãoparaevitaroqueévergonhoso,esimoqueédoloroso.Comefeito,osseuschefesoscompelemcomoHeitor:

Mas,seeudepararcomalgumpoltrãoatremerlongedarefrega,

Emvãoesperaráeleescaparaoscães.

E omesmo fazem os que os colocam nos seus postos e os espancam quandorecuam,ouosqueosdispõememfileirascomfossosoucoisas semelhantesàretaguarda: todos esses usam a compulsão. Mas deve-se ser bravo não sobcoação,esimporqueissoénobre.

A experiência com relação a fatos particulares é também considerada comocoragem; aí temos, em verdade, a razão pela qual Sócrates identificava acoragemcomoconhecimento.Outraspessoasrevelamessaqualidadediantedeoutrosperigos,eossoldadosprofissionaisnosperigodaguerra;poisnaguerraparece haver muitos alarmas infundados, dos quais esses homens têm a maisamplaexperiência;eporissoparecembravos,umavezqueosoutrosignorama

natureza dos fatos. Por outro lado, sua experiência os torna capacíssimos noataque e na defesa, porquanto sabem fazer bomuso das armas e dispõemdasmelhores tanto para atacar como para defender-se.Batem-se, por conseguinte,como homens armados contra homens desarmados, ou como atletas bemtreinados contra amadores, pois também nesses encontros não é omais bravoquemelhorluta,masomaisforteeoquetemocorpoemmelhorescondições.

Ossoldadosprofissionaismostram-secovardes,noentanto,quandoatensãodoperigoémuitograndeequandosãoinferioresemnúmeroeemequipamento.Esãoosprimeirosafugir,aopassoqueasmilíciasdecidadãosperecemnosseuspostos, como realmente sucedeuno templodeHermes.Comefeito, para estesúltimosafugaédesonrosa,emorrerépreferívelasalvar-seemtaiscondições;enquantoosprimeirosdesdeoprincípioenfrentaramoperigonaconvicçãodequeeramosmaisfortes,eaoteremconhecimentodarealidadefogemtemendomaisamortedoqueadesonra.Obravo,porém,nãoprocedeassim.

A paixão também é confundida às vezes com a coragem.Os que agem sob oimpulsodapaixão,comoferasquesearremessamsobreosqueasferiram,sãoconsideradosbravos,porqueoshomensbravos tambémsãoapaixonados.Comefeito,apaixão,maisdoquequalqueroutracoisa,anseiaporatirar-seaoperigo;daíasfrasesdeHomero:"instilouforçanasuapaixão","despertou-lhesoânimoe a paixão", "respirava forte, ofegando", e "seu sangue fervia". Todas estasexpressõesparecemindicaroímpetoeotumultodapaixão.

Ora, os bravos agem com a mira na honra, mas são auxiliados pela paixão,enquantoasferasagemsobainfluênciadador:atacamporqueforamferidasouporque têm medo, pois que nunca se aproximam de quem se extravia numafloresta. E assim não são bravas porque, impelidas pela dor e pela paixão,atiram-se aos perigos semprevê-los.Do contrário, até os asnos seriambravosquandotêmfome,poisnãoháforçadegolpesqueosfaçaafastardoseupasto;etambémaluxúrialevaosadúlterosacometermuitosatosaudaciosos.(Nãosãobravas, pois, aquelas criaturas que a dor ou a paixão impele para diante doperigo.) A "coragem" devida à paixão parece ser a mais natural, tornando-severdadeiracoragemquandoselheajuntamaescolhaeomotivo.

Oshomens,pois,assimcomoosanimais,experimentamdorquandoestãoiradose prazer quando se vingam.Os que lutam por essesmotivos, no entanto, sãopugnazes,masnãosãobravos,porquantonãoagemtendoemvistaahonranemcomoprescrevearegra,maslevadospelaforçadaemoção.Semembargo,existe

nelesalgoquetemafinidadecomacoragem.

Tampoucoaspessoasotimistassãobravas,poisessasmostramconfiançadiantedoperigosóporquevencerammuitasvezesecontramuitosinimigos.Econtudoassemelham-sedepertoaosbravos,porqueambossãoconfiantes;masosbravossão confiantes pelas razões que expusemos atrás, enquanto estes o são porquesupõem serem os mais fortes e incapazes de sofrer o que quer que seja. (Osbêbedos também se portam dessa maneira: tornam-se otimistas.) Quando,todavia, as suas aventuras terminammal, rodam sobre os calcanhares; mas amarca distintiva do homem bravo era enfrentar as coisas que são e parecemterríveis, porque é nobre fazê-lo e vergonhoso não o fazer. Também por isso,considera-se como marca distintiva de um homem mais bravo o mostrar-sedestemidoeimperturbávelnosalarmasrepentinosdoquenosperigosprevistos;pois isso deve proceder mais de uma disposição de caráter e menos dapreparação:osatosprevistospodemserescolhidosporcálculoeregra,masosatosimprevistosdevemestardeacordocomadisposiçãodecaráterdoagente.

Aspessoasque ignoramoperigo tambémparecembravas,enãodistammuitodas de temperamento sanguíneo e otimista, mas são inferiores por não teremconfiançaemsimesmas,comoas segundas.Tambémpor isso,osotimistas semantêm firmes durante algum tempo, mas os que foram enganados sobre arealidadedosfatosfogemtãologosabemoususpeitamqueestessãodiferentesdoquesupunham,comosucedeucomosargivosquandotravaramcombatecomosespartanos,tomando-osporsiciônios.

Ecomistoficacompletadaadescriçãodocarátertantodoshomensbravoscomodosquesãoconsideradosbravos.

9

Sebemqueacoragemse relacionecomsentimentosdemedoedeconfiança,nãoserelacionaigualmentecomambos,masemgraumaiorcomascoisasqueinspiram medo. Com efeito, aquele que permanece imperturbável e se portacomodeveemfacedessascoisasémaisgenuinamentebravodoqueohomemquefazomesmodiantedascoisasqueinspiramconfiança.

Comodissemos,pois,épor fazer frenteaoqueédolorosoqueoshomenssãochamados bravos. Portanto, também a coragem envolve dor e é justamente

louvadaporisso,poismaisdifíciléenfrentaroqueédolorosodoqueabster-sedoqueéagradável.

Semembargo,a finalidadequeacoragemsepropõedir-se-iaqueéagradável,mas é encoberta pelas circunstâncias do caso, como também sucede nascompetiçõesatléticas;porquantoéagradávelofimvisadopelospugilistas, istoé,acoroaeashonras;masosgolpesquerecebemsãodolorososeexcruciantespara o corpo, como também o são os seus esforços; e, como os golpes e osesforçossãomuitos,ofim,queéumsóepequeno,parecenadaterdeagradável.E assim, se o mesmo se dá com a coragem, a morte e os ferimentos serãodolorososparaohomembravoecontráriosàsuavontade,maseleosenfrentaráporqueénobrefazê-loevildeixardefazê-lo.Equantomaisvirtuosoefelizfor,mais lhedoeráopensamentodamorte;pois épara talhomemquemaisvalortemavida,eeleconscientementerenunciaaomaiordosbens,oqueédoloroso.Masnemporissodeixadeserbravo,etalvezosejaaindamaisporescolher,aessecusto,apráticadeatosnobresnaguerra.

Nemdetodasasvirtudes,portanto,oexercícioéagradável,salvonamedidaemque alcançam o seu fim. Mas é bem possível que os melhores soldados nãosejamhomensdessaespécieesimosquesãomenosbravosmasnãopossuemoutrosbens;poisessesestãoprontosparaenfrentaroperigoevendemsuasvidasporumaninharia.

Quanto à coragem dissemos o suficiente. Não é difícil compreender-lhe anaturezaemlinhasgerais,pelomenosemfacedoqueficouexposto.

10

Depoisdacoragem,falemosda temperança;poisestasparecemserasvirtudesdaspartesirracionais.Dissemosqueatemperançaéummeio-termoemrelaçãoaosprazeres (porquedizmenosrespeitoàsdores,enãodomesmomodo);eaintemperançatambémsemanifestanamesmaesfera.Determinemos,pois,comqueespéciedeprazeresserelacionamambas.

Podemos admitir a distinção entre prazeres corporais e prazeres da alma :aiscomo o amor à honra e o amor ao estudo; pois quem ama uma dessas coisasdeleita-senaquiloqueama,nãosendoocorpodenenhummodoafetado,esimamente; mas com relação a tais prazeres os homens não são chamados

temperantesnem sem limites.E tampouco em relação aosoutrosprazeresquenãosejamdocorpo:osquegostamdeouviredecontarhistóriasepassamodiaocupados com tudo que acontece são chamados mexeriqueiros e não semlimites; e da mesma forma os que sofrem com a perda de dinheiro ou deamigos.

A temperança deve relacionar-se com os prazeres corporais; não, porém, comtodos, pois os que se deleitam com objetos da visão tais como as cores, asformaseapinturanãosãochamados temperantesnemsemlimites;econtudo,parecequeépossíveldeleitar-secomessascoisastantocomosedevequantoemexcessoouemgrauinsuficiente.

Omesmosepodedizerdosobjetosdaaudição:ninguémchamadesemlimitesosquesedeleitamemdemasiacomamúsicaouasrepresentaçõesteatrais,nemdetemperantesosqueofazemnamedidajusta.

Tambémnãoaplicamosessesnomesaosquesedeleitamcomodores,anãoserincidentalmente:nãochamamosdesemlimitesosquesedeliciamcomocheirodemaçãs, de rosas ou de incenso, mas sim os que sentem prazer em cheirarmolhos e acepipes: com efeito, os sem limites deleitam-se com essas coisasporque lhes lembramosobjetosdeseuapetite.Eatéaoutraspessoas,quandotêmfome,causaprazerocheirodecomida;mascomprazer-senessaespéciedecoisasécaracterísticodohomemsemlimite,poiselassãoobjetosdeapetiteparaele.

Fora do homem, não há nos outros animais nenhum prazer relacionado comessessentidos,anãoserincidentalmente.Porquantooscãesnãosedeleitamcomocheirodaslebres,massimemcomê-las;acontece,apenas,queofaroosavisoudapresençadeumalebre.Nemoleãosedeleitaemouviromugidodoboi,mastãosomenteemcomê-lo;percebeu,pelomugido,queoanimalestavapróximo,eporessarazãoparecedeleitar-secomomugido;domesmomodo,nãosedeleitaemver"umveadoouumacabramontês",masporquevaidevorá-los.

Apesar disso, a temperança e a intemperança relacionam-se com a espécie deprazeres que é compartilhada pelos outros animais, e que por esse motivoparecem inferioresebrutais; sãoelesosprazeresdo tatoedopaladar.Mesmodestes últimos, no entanto, parecem fazer pouco ou nenhum uso; porquanto afunçãodopaladaréadiscriminaçãodossabores,comofazemosprovadoresdevinhoeaspessoasquetemperamiguarias.Noentanto,malsepodedizerquese

comprazem em fazer tais discriminações; pelo menos, tal não é o caso daspessoassemlimites.Aessassóinteressaogozodoobjetoemsi,quesempreéumaquestãode tato, tantonoque tocaaocomercomoaobebereàuniãodossexos.Porissocertoglutãorogouaosdeusesquesuagargantasetornassemaislongaqueadeumgrou,dondeseinferequetodooseuprazervinhadocontato.

E assim, o sentido com que se deleita a intemperança é o mais largamentedifundidode todos; e ela parece ser justamentemotivode censuraporquenosdomina não como homens, mas como animais. Deleitar-se com tais coisas,portanto,eamá-las sobre todasasoutras,éprópriodosbrutos.Porquemesmodosprazeresdotatoosmaisliberaisforameliminados,comoosqueafricçãoeoresultante calor produzem no ginásio; com efeito, o contato preferido pelohomemsemlimitenãoafetaocorpointeiro,masapenascertaspartes.

11

Dos apetites, alguns parecem comuns e outros, peculiares aos indivíduos eadquiridos.Porexemplo:oapetitedoalimentoénatural,jáquetodososqueosentemanseiamcomerebeber,eàsvezesambasascoisas;etambémpeloamor,quando são jovens e vigorosos; mas nem todos anseiam por esta ou aquelaespéciedealimentooudeamor,nempelasmesmascoisas.

Por isso, talanseiopareceserumaquestão inteiramentepessoal.Noentanto,émuito natural que assim seja, pois diferentes coisas agradam a diferentesindivíduos, e algumas são mais agradáveis a todos do que qualquer objetotomado ao acaso. Ora, nos apetites naturais poucos se enganam, e numa sódireção, a do excesso; e comer ou beber tudo que se tenha à mão, até asaciedade, é exceder a medida natural, pois que o apetite natural se limita apreencher o que nos falta. Por isso tais pessoas são chamadas "deuses doestômago", dando a entender que enchem o estômago além da medida. E sópessoasdecaráterinteiramenteabjetosetornamassim.

Masnoqueserefereaosprazerespeculiaresaindivíduos,muitaspessoaserram,edemuitasmaneiras.Pois,enquantoaspessoasque"gostamdistooudaquilo"sãoassimchamadasouporquesedeleitamnascoisasquenãodevem,oumaisdoqueocomumdoshomens,oudemaneiraindébitaossemlimitesexcedemdetodosostrêsmodos;tantosecomprazememcoisascomasquaisnãodeveriam

comprazer-se (porquanto são odiosas), como, se é lícito comprazer-se emalgumascoisasdesuapredileção,elesofazemmaisdoquesedeveedoqueofazamaioriadoshomens.

Está claro, pois, que o excesso em relação aos prazeres é intemperança, e éculpável.Comrespeitoàsdoresninguémé,comonocasodacoragem,chamadotemperanteporarrostá-lasnemsemlimitepordeixardefazê-lo,masohomemsemlimiteéassimchamadoporquesofremaisdoquedevequandonãoobtémascoisasquelheapetecem(sendo,pois,asuaprópriadorumefeitodoprazer),eohomem temperante levaessenomeporquenão sofre comaausênciadoqueéagradávelnemcomofatodeabster-se.

Osemlimite,pois,almejatodasascoisasagradáveisouasquemaisosão,eélevadopeloseuapetiteaescolhê-lasaqualquercusto;porissosofrenãoapenasquando não as consegue, mas também quando simplesmente anseia por elas(pois o apetite é doloroso). No entanto, parece absurdo sofrer por causa doprazer.

Aspessoasqueficamaquémdamedidaemrelaçãoaosprazeresesedeleitamcom eles menos do que deviam são raras e quase inexistentes, pois talinsensibilidade não é humana. Até os outros animais distinguem diferentesespéciesdealimentoseapreciamunsmaisdoqueoutros.E,seháalguémquenão se agrade de nada e não ache nenhuma coisamais atraente do que outraqualquer,essealguémdeveseralgomuitodiferentedeumhomem;talespéciedepessoanãorecebeunomeporquedificilmenteéencontrada.

O temperante ocupa uma posição mediana em relação a esses objetos. Comefeito, nem aprecia as coisas que são preferidas pelo sem limite— as quaischegamatéadesagradar-lhe—nem,emgeral,ascoisasquenãodeve,nemnadadisso emexcesso; por outro lado, não sofrenemanseiapor elas quando estãoausentesousóofazemgraumoderadoenãomaisdoquedeve,enuncaquandonãodeve,eassimpordiante.Masascoisasque,sendoagradáveis,contribuemparaasaúdeouaboacondiçãodocorpo,eleasdesejamoderadamenteecomodeve, assim como também as outras coisas agradáveis que não constituamempecilhoaessesfins,nemsejamcontráriasaoqueénobre,nemestejamacimadosseusmeios.Poisaquelequenãoatendeaessascondiçõesamataisprazeresmaisdoqueelesmerecem,masohomem temperantenãoéumapessoadessaespécie,esimdaespécieprescritapelaregrajusta.

12

A intemperança assemelha-se mais a uma disposição voluntária do que acovardia,poisaprimeiraéatuadapeloprazerea segundapelador;ora,aumnósprocuramoseàoutraevitamos;acresceaindaqueadortranstornaedestróianaturezadapessoaqueasente,aopassoqueoprazernãotemtaisefeitos.Logo,aintemperançaémaisvoluntária.

Eporissomesmoéelamaispassíveldecensura,poisémaisfácilacostumar-seaosseusobjetos,jáqueavidatemmuitascoisasdessaespécieparaoferecer,eaelas nos acostumamos sem perigo para nós, ao passo que com os objetosterríveisdá-seexatamenteocontrário.Masacovardiapareceservoluntáriaemgrau diferente de suas manifestações particulares. Com efeito, ela própria éindolor, mas nestas últimas somos avassalados pela dor, que nos leva aabandonarnossasarmaseadesonrar-nosdeoutrasmaneiras;eporisso,algunschegamapensarqueosnossosatosemtaisocasiõessãoforçados.Paraosemlimite,aocontrário,osatosparticularessãovoluntários(jáqueeleospraticasoboimpulsodoapetiteedodesejo),masadisposiçãoemsuatotalidadeoémenos,umavezqueninguémdesejasersemlimite.

O termo "sem limite" também se aplica a faltas infantis, pormostrarem certasemelhança com o que estivemos considerando.Ao nosso propósito atual nãointeressaindagarqualdasduasacepçõesderivadaoutra,maséevidentequeestasegunda é derivada.A transferência de sentido parece bastante plausível, poisquemdesejaaquiloqueévilequesedesenvolverapidamentedeveserrefreadoa tempo; ora, essas características pertencem acima de tudo ao apetite e àcriança,jáquenarealidadeascriançasvivemàmercêdosapetites,enelastemmaisforçaodesejodascoisasagradáveis.Senãoforemobedientesesubmissasaoprincípioracional,irãoagrandesextremos,poisnumserirracionalodesejodo prazer é insaciável, embora experimente todas as fontes de satisfação.Acresce que o exercício do apetite aumenta-lhe a força inata, e quando osapetites são fortes e violentos, chegam ao ponto de excluir a faculdade deraciocinar.

Portanto,osapetitesdevemserpoucosemoderados,enãoseoporemdemodoalgumaoprincípioracional—eissoéoquechamamosobediênciaedisciplina.E,assimcomoacriançadevesubmeter-seàdireçãodoseupreceptor,tambémo

elementoapetitivodevesubordinar-seaoprincípioracional.

Emconclusão:nohomemtemperanteoelementoapetitivodeveharmonizar-secomoprincípioracional,poisoqueambostêmemmiraéonobre,eohomemtemperanteapeteceascoisasquedeve,damaneiraenaocasiãodevidas;eissoéoqueprescreveoprincípioracional.

Aquiterminaanossaanálisedatemperança.

LIVROIV

1

Falemos agora da liberalidade, que parece ser o meio-termo em relação àriqueza.Ohomemliberal,comefeito,élouvadonãopelosseusfeitosmilitares,nem pelas coisas que se costuma louvar no temperante, nem por decidir comjustiça num tribunal, mas no tocante ao dar e receber riquezas — eespecialmenteaodar.

Ora,por"riquezas"entendemostodasascoisascujovalorsemedepelodinheiro.Aprodigalidadeeaavareza,porsuavez,sãoumexcessoeumadeficiêncianotocanteàriqueza.Sempreimputamosaavarezaaosqueamamariquezamaisdoque devem, mas também usamos o termo "prodigalidade" num sentidocomplexo, chamando pródigos aos homens incontinentes que malbaratamdinheirocomosseusprazeres.Daíoseremelesconsideradososcaracteresmaisfracos,poiscombinamemsimaisdeumvício.Contudo,aaplicaçãodotermoataispessoasnãoéapropriada,porquantoum"pródigo"éumhomemquepossuiuma sómá qualidade, a demalbaratar os seus bens. Pródigo é aquele que searruínaporsuaprópriaculpa,eomalbaratarseusbenséconsideradoumaformadearruinarasimesmo,poiséopiniãodemuitosqueavidadependedapossederiquezas.

Esseé,porconseguinte,o sentidoemque tomamosapalavra"prodigalidade".Ora,ascoisasúteispodemserbemoumalusadas,eariquezaéútil;ecadacoisaéusadadamelhormaneirapelohomemquepossui avirtude relacionada comela. Quemmelhor usará a riqueza, por conseguinte, é o homem que possuí avirtuderelacionadacomariqueza;eesseéohomemliberal.

Ora,daregastarpareceserousodariqueza,aopassoqueadquirireconservaréantesasuaposse.Porissoémaisprópriodohomemliberaldaràspessoasqueconvémdoqueadquirirdasfontesqueconvémenãodasindébitas.Comefeito,é mais característico da virtude fazer o bem do que recebê-lo de outrem, epraticaraçõesnobresdoqueabster-sedeaçõesvis;efacilmentesecompreendequedarimplicafazerobemepraticarumaaçãonobre,enquantoreceberimplica

serobeneficiáriodeumaboaaçãoounãoagirdemaneiravil.Esomosgratosaquemdá,porémnãoaoquenãorecebe,eoprimeiroémais louvadodoqueosegundo.Tambémémaisfácilnãoreceberdoquedar,poisoshomenspreferemdesfazer-sedopoucoquetêmatomaroalheio.

Osquedãotambémsãochamadosliberais,masosqueseabstêmdetomarnãosão louvados pela liberalidade e sim pela justiça, enquanto os que tomamdificilmentesãolouvados.Eosliberaissãoquasequeosmaislouvadosdetodososcaracteresvirtuosos,porquantosãoúteis;eissoporcausadesuasdádivas.

Ora,asaçõesvirtuosassãopraticadastendoemvistaoqueénobre.Porissoohomem liberal, como as outras pessoas virtuosas, dá tendo em vista o que énobre,ecomodeve;poisdá,àspessoasqueconvém,asquantiasqueconvémenaocasiãoqueconvém,comtodasasdemaiscondiçõesqueacompanhamaretaaçãodedar.Eissocomprazeresemdor,poisoatovirtuosoéagradáveleisentodedor.Oquemenospodeserédoloroso.

Oquedáàspessoasaquemnãodevedar,porém,outendoemvistanãooqueénobre e sim alguma outra coisa, não é chamado de liberal,mas recebe algumoutronome.Tampoucoéliberalquemdácomdor,poisesseprefeririaariquezaàaçãonobre,oquenãoéprópriodeumhomemliberal.

Mastampoucoohomemliberalreceberádefontesquenãodeve,poisissonãoépróprio de quem não dá valor à riqueza. Nem será ele muito afeito a pedir,porquantoohomemqueconferebenefíciosnãoosaceitafacilmente.Mastomarádasfontesqueconvém—dassuasprópriasposses,porexemplo—,nãocomoumatonobre,mascomoumanecessidade,afimdeteralgoquedar.

Poroutro lado,nãodescurará eleos seusbens, comosquaisdeseja auxiliar aoutrem.Eseabsterádedara todoseaqualquerum,afimdeteroquedaràspessoasqueconvém,nasocasiõesqueconvémeemqueénobrefazê-lo.

É também muito característico de um homem liberal exceder-se nas suasdádivas,demaneiraaficarcommuitopoucoparasi;poisestánasuanaturezaonãoolharasimesmo.

Otermo"liberalidade"seusarelativamenteàspossesdeumhomem,poisessavirtudenãoconsistenamultidãodasdádivas,esimnadisposiçãodecaráterdequemdá,eestaérelativaàssuasposses.Nadaimpede,pois,queohomemquedámenossejamaisliberal,setemmenosparadar.

Sãoconsideradosmaisliberaisosquenãofizeramasuafortuna,masherdaram-na.Porque,emprimeirolugar,essesnãotêmexperiênciadanecessidade;e,emsegundo, todos os homens têm mais amor ao que eles próprios produziram,comoospaiseospoetas.Nãoé fácilaumhomemliberalser rico,poisnãoéinclinadonematomarnemaconservar,masadar,enãoestimaariquezaporsimesma,esimcomoinstrumentodesualiberalidade.Daíaacusaçãoquesefazàfortuna:queosquemaisamerecemsãoosquemenosaalcançam.Masénaturalque seja assim, pois com a riqueza sucede omesmo que com todas as outrascoisas:ninguémpodealcançá-lasenãoseesforçaporisso.

Todavia,ohomemliberalnãodaráàspessoasnemnaocasiãoquenãoconvém,porque nesse caso já não estaria agindo de acordo com a liberalidade, e segastassecomessesobjetosjánãoteriaoquegastarcomosqueconvêm.Porque,comodissemos,éliberalaquelequegastadeacordocomassuasposses,ecomos objetos que convém; e quem excede a medida é pródigo. Por isso nãochamamos os déspotas de pródigos: no caso deles não nos parece fácil dar egastaralémdesuasposses.

Sendo,pois,aliberalidadeummeio-termonotocanteaodareaotomarriquezas,o homem liberal dará c gastará as quantias que convém com os objetos queconvém, tanto nas coisas pequenas como nas grandes, e isso com prazer; etambémtomaráasquantiasqueconvémdasfontesqueconvém.Porque,sendoavirtude unsmeios-termos em relação a ambos, ele fará ambas as coisas comodeve;porquantoessaespéciedereceberacompanhaaretaaçãodedar,eoquenãoédessaespécieopõe-seaela;daíodareoreceberqueacompanhamumaooutro estarem simultaneamente presentes no mesmo homem, o queevidentementenãoacontececomasespéciescontrárias.Masse,poracaso,elegastar de maneira contrária ao que é reto e nobre, sofrerá com isso, masmoderadamente e conformedeve; pois é própriodavirtude sentir tantoprazercomodoremfacedosobjetosapropriadosedamaneiraapropriada.

Alémdisso,éfáciltratarcomohomemliberalemassuntosdedinheiro;nãodátrabalho persuadi-lo, pois não tem grande estima ao dinheiro, e fica maisaborrecidosedeixoudegastaralgumacoisaquedeviadoquesegastoualgoquenãodevia,discordandonissodoaforismodeSimônides.

Opródigoerratambémaessesrespeitos,poisnãosenteprazeredordiantedascoisas que convém e damaneira que convém; isto se tornarámais evidente àproporçãoqueavançarmosemnossainvestigação.Dissemosqueaprodigalidade

eaavarezasãoexcessosedeficiências,eemduascoisas:nodarenoreceber;poisincluímosogastarnogênerodar.Ora,aprodigalidadeexcedenodarenonão receber,mostrando-sedeficienteno receber, enquanto a avareza semostradeficientenodareexcedenoreceber,salvoempequenascoisas.

Ascaracterísticasdaprodigalidadenãoseencontramsemprecombinadas,poisnãoéfácildara todossenãoserecebedeninguém.Aspessoaspródigas,quedãoemexcesso,nãotardamaexaurirassuasposses.Eéjustamenteaessesqueseaplicaonomedepródigos,sebemquetalhomempareçaserbastantesuperioraumavaro,porquantoécuradodeseuvíciotantopelosanoscomopelapobreza,e destarte poderá aproximar-se da disposição intermediária. Com efeito, opródigopossuiascaracterísticasdohomemliberal,vistoquedáeseabstémdetomar, conquanto não faça nenhuma dessas coisas bem ou da maneiraapropriada.E,sefosselevadoaprocederassimpelohábitoouporalgumoutromeio,serialiberal;porqueentãodariaàspessoasqueconvémenãoreceberiadefontes indébitas. Por isso não é julgadoummau caráter: não é próprio de umhomemmalvadoouignóbilexceder-senodarenonãoreceber,masapenasdeumtolo.Ohomemqueépródigonestesentidoéconsideradomuitomelhordoqueoavaro,tantopelasrazõesacimaapontadascomoporquebeneficiaamuitos,enquantoooutronãobeneficiasequerasimesmo.

Mas a maioria dos pródigos, como já se disse, também tomam de fontesindébitas, e a esse respeito são avaros. Adquirem o hábito de tomar porquedesejamgastar, e issonão lhesé fácil emrazãodenão tardaremaminguarassuasposses.São,porisso,forçadosabuscarmeiosemoutrasfontes.Aomesmotempo, como não dão nenhum valor à honra, tomam indiferentemente dequalquer fonte: pois têmo apetite de dar e não lhes importa amaneira nemafontedeondeprocedeoquedão.Porissonãodãocomliberalidade:nãoofazemcomnobreza, nem tendo esta emvista, nemdamaneira quedevem.Asvezesenriquecem os que deveriam ser pobres, não dão nada às pessoas dignas deestima, e muito aos aduladores ou aos que lhes proporcionam algum outroprazer.Porissoamaioriadelessãotambémsemlimites;comefeito,gastamsemrefletir e desperdiçam dinheiro com os seus prazeres, inclinados que são paraestesporquesuaexistêncianãotememmiraoqueénobre.

Ohomempródigo,portanto,converte-senoqueacabamosdedescreverquandonãolheéimpostanenhumadisciplina,massefortratadocomcuidadochegaráàdisposiçãointermediáriaejusta.Aavareza,porém,éaomesmotempoincurável,poisavelhiceetodaincapacidadepassamportornaroshomensavaros,emais

inataaoshomensdoqueaprodigalidade.Comefeito,amaioriagostamaisdeganhar dinheiro que de dá-lo. Este vício é também muito difundido emultiforme,poisparecehavermuitasespéciesdeavareza.

Consisteelaemduascoisas,adeficiêncianodareoexcessonotomar,enãoseencontracompletaemtodososhomens,masàsvezesaparecedividida:algunsvãoaoexcessonotomar,enquantooutrosficamaquémnodar.Todosaquelesaquem se aplicam nomes como "forreta", "sovina", "pão-duro" dão comrelutância,masnãocobiçamaspossesalheiasnemdesejamtomá-lasparasi.Emalguns, isso se deve a uma espécie de honestidade e aversão ao que évergonhoso,poisalgunsparecem,oupelomenosdizem,amontoardinheiroporestarazão:paraqueumdianãosejamforçadosacometeralgumatovergonhoso;aestaclassepertencemo sovinae todososoutrosdamesmaespécie,que sãoassim chamados pela relutância com que abrem mão das mínimas coisas;enquantooutrosseabstêmdetocarnoalheiopormedo,julgandoquenãoéfácil,quandonosapropriamosdosbensdosoutros,evitarqueelesseapropriemdosnossos.Contentam-se,porisso,emnãodarnemtomar.

Outros,porsuavez,excedem-seno tocanteaoreceber, tomandotudoque lhesaparece e de qualquer fonte que venha, como os que se dedicam a profissõessórdidas, alcoviteiros edemaisgentedessa laia, eosqueemprestampequenasquantiasajuroselevados.Comefeito,todosessestomammaisdoquedevem,ede fontes indébitas.Evidentemente,oquehádecomumentreeleséo sórdidoamor ao lucro; todos se conformam com umamá fama em troca do ganho, eminguadoganhoaindaporcima.Comefeito,aosqueauferemganhosvultososeinjustosdefontesindébitas,comoosdéspotasquesaqueiamcidadesedespojamtemplos,nãochamamosavarosesimmalvados,ímpioseinjustos.

Mas quanto ao jogador e ao salteador, esses pertencem à classe do avaro porterem um amor sórdido ao ganho. É, efetivamente, pelo ganho que ambos sededicam às suas práticas e suportam a vergonha de que ela se cerca; e umenfrentaosmaioresperigosporamoràpresa,enquantoooutrosubtraidinheiroaos seus amigos, aquemdevia antesdá-lo.Ambos,pois, comodebomgradoauferem ganhos de fontes indébitas, são sórdidos amantes do ganho. Porconseguinte,todasessasformasdetomarincluem-senovíciodaavareza.

Eénaturalqueaavarezasejadefinidacomoocontráriodaliberalidadepoisnãosó é ela um maior mal do que a prodigalidade, mas os homens erram maisamiúdenessesentidodoquenodaprodigalidadetalcomoadescrevemos.

Basta,pois,oquedissemossobrealiberalidadeeosvícioscontrários.

2

Talvez convenha discutir agora a magnificência, que também parece ser umavirtuderelacionadacomariqueza.Nãoseestende,porém,comoaliberalidade,atodas as ações que têm que ver com a riqueza,mas apenas às que envolvemgasto; e nestas, ultrapassa a liberalidade em escala. Porque, como o próprionomesugere,éumgastoapropriadoqueenvolvegrandesquantias.Masaescalaérelativa,poisadespesadequemguarneceumatrirremenãosecomparaàdequem chefia uma embaixada sagrada. A magnificência, portanto, deve seradequadatantoaoagentecomoaoobjetoeàscircunstâncias.Ohomemqueemcoisas pequenas e medianas gasta de acordo com os méritos do caso não échamadodemagnificente,masunicamenteaquelequeofazemgrandescoisas.Porquantoomagnificenteéliberal,masoliberalnemsempreémagnificente.

A deficiência desta disposição de caráter é chamada mesquinhez e o excessovulgaridade,maugosto,etc.,oqualnãoseexcedenasquantiasdespendidascomosobjetosqueconvém,maspelosgastosostentososemcircunstânciasindébitasedemaneiraindébita.Maisadiantefalaremosdessesvícios.

O homem magnificente assemelha-se a um artista, pois percebe o que éapropriado e sabe gastar grandes quantias com bom gosto. No princípiodissemosqueumadisposiçãode caráter é determinadapelas suas atividades epelos seus objetos. Ora, os gastos do homem magnificente são vultosos eapropriados. Por conseguinte, tais serão também os seus resultados; e assim,haverá um grande dispêndio em perfeita consonância com o seu resultado.Dondeseseguequeoresultadodevecorresponderaodispêndioeestedeveserdignodoresultado,oumesmoexcedê-lo.

O homemmagnificente, além disso, gastará dinheiro tendo emmira a honra,pois essa finalidade é comum a todas as virtudes.Mais ainda: ele o fará comprazerecomlargueza,vistoqueoscálculosprecisossãoprópriosdosavarentos.E considerará os meios de tornar o resultado o mais belo possível e o maisapropriadoaoseuobjeto,aoinvésdepensarnoscustosenosmeiosmaisbaratosdeobtê-lo.Énecessário,pois,queohomemmagnificenteseja tambémliberal.Comefeito,estetambémgastaoquedeveecomodeve,eéemtaisassuntosque

se manifesta a grandeza implicada pelo nome "magnificente", já que aliberalidadedizrespeitoaessascoisas;e,comdespesaigual,eleproduziráumaobradeartemaismagnificente.Porquantoumaposseeumaobradeartenãotêmamesma excelência. A possemais valiosa é aquela que valemais, como porexemplooouro,masamaisvaliosaobradearteéaqueégrandeebela,poisacontemplação de uma tal obra inspira admiração, e o mesmo faz amagnificência; e uma obra possui uma espécie de excelência— isto é, umamagnificência—queenvolvegrandeza.

Amagnificênciaéumatributodosgastosquechamamoshonrosos,comoosqueserelacionamcomosdeuses—ofertasvotivas,construções,sacrifícios—,edomesmomodonoquetangeatodasasformasdecultoreligiosoetodasaquelascoisas que são objetos apropriados de ambição cívica, como a dos que seconsideramnodeverdeorganizarumcoro,guarnecerumatrirremeouoferecerespetáculospúblicoscomgrandebrilhantismo.Emtodososcasos,porém,comojáfoidito,nãodeixamosdelevaremcontaoagenteedeindagarqueméeleeque recursos possui; pois os gastos devem ser dignos dos seus recursos eadequar-senãosóaosresultados,mas tambémaquemosproduz.Por issoumhomem pobre não pode ser magnificente, visto não ter os meios de gastarapropriadamente grandes quantias; e quem tenta fazê-lo é um tolo, porquantogasta alémdo que se pode esperar dele e do que é apropriado; ora, a despesajustaéqueévirtuosa.Masemgeralosgrandesgastosficambemaosque,paracomeçar,possuemosrecursosadequados,adquiridosporseusprópriosesforçosouprovenientesdeseusantepassadosoudeseusamigos;e tambémàspessoasdenascimentonobreoudegrandereputação,eassimpordiante;poistodasessascoisastrazemconsigoagrandezaeoprestígio.

Basicamente, pois, o homem magnificente é uma pessoa dessa espécie, e amagnificência se revela nos gastos que descrevemos acima; pois esses são osmaioreseosmaishonrosos.Dasocasiõesprivadasdemostrarmagnificênciaasmaisadequadassãoasqueacontecemumaveznavida,comoasbodaseoutrascoisas do mesmo gênero, ou tudo aquilo que interessa à cidade inteira ou àspessoas de posição que nela vivem, e também à recepção e à despedida dehóspedes estrangeiros, assim como à troca de presentes; pois o homemmagnificente não gasta consigo mesmo e sim com objetos públicos, e ospresentestêmcertasemelhançacomasofertasvotivas.

Ohomemmagnificentetambémaprestasuacasademaneiracondignacomasuariqueza, pois até uma casa é uma espécie de ornamento público, e gastará de

preferênciaemobrasduradouras,poissãoessasasmaisbelas,eemtodaclassedecoisasgastaráoquefordecoroso;poisasmesmascoisasnãosãoadequadasaosdeusese aoshomens,nemaum temploe aum túmulo.E,vistoque todogasto pode ser grande em sua espécie e o que, em absoluto, há de maismagnificenteéumgenerosogastocomumobjetograndioso,masomagnificenteemcada caso éoque égrandenas circunstânciasdeste, e a grandezanaobradiferedagrandezanodispêndio,porquantoamaisbeladetodasasbolasoudetodos os brinquedos é ummagnífico presente para uma criança, embora custepouco dinheiro—, segue-se que a característica do homemmagnificente, sejaqualfororesultadodoquefaz,éfazê-locommagnificênciaetorná-lodignododispêndio.

Tal é, pois, o homemmagnificente. O vulgar e extravagante excede, como jádissemos, gastando além do que é justo.Com efeito, em pequenos objetos dedispêndio ele gasta muito e revela uma ostentação de mau gosto. Dá, porexemplo,umjantardeamigosnaescaladeumbanquetedenúpcias,equandoforneceocoroparaumacomédiacoloca-oemcenavestidodepúrpuracomosecostumafazeremMégara.Etodasessascoisas,elenãoasfaztendoemvistaahonra,masparaostentarasuariquezaeporquepensaseradmiradoporisso;egastapoucoquandodeveriagastarmuito,evice-versa.

Ohomemmesquinho,poroutrolado,ficaaquémdamedidaemtudo,edepoisdegastarasmaioresquantiasestragaabelezadoresultadoporumabagatela;eemtudoquefazhesita,estudaamaneiradegastarmenos,lamentaatéopoucoquedespendeejulgaestarfazendotudoemmaiorescaladoquedevia.

Estas disposições de caráter são, por conseguinte, vícios; entretanto, nãodesonram ninguém, porque não são nocivas aos demais, nem muitoindecorosas.

3

Peloseunome,amagnanimidadeparecerelacionar-secomgrandescoisas.Queespéciedegrandescoisas?Eisaprimeiraperguntaquecumpreresponder.

Nãofazdiferençaqueconsideremosadisposiçãodecaráterouohomemqueaexibe.Ora,diz-sequeémagnânimoohomemquecomrazãoseconsideradignodegrandescoisas;poisaquelequesearrogaumadignidadeaquenãofazjusé

umtolo,enenhumhomemvirtuosoétoloouridículo.Omagnânimo,pois,éohomemqueacabamosdedefinir.Comefeito,aquelequedepoucoémerecedoreassim se considera é temperante e nãomagnânimo; amagnanimidade implicagrandezadomesmomodoqueabelezaimplicaumaboaestatura,easpessoaspequenaspodemserbonitasebemproporcionadas,porémnãobelas.Poroutrolado, o que se julga digno de grandes coisas sem possuir tais qualidades évaidoso,sebemquenemtodososqueseconsiderammaismerecedoresdoquerealmentesãopossamserchamadosdevaidosos.

O homem que se considera menos merecedor do que realmente é, éindevidamentehumilde,querosseusméritossejamgrandesoumoderados,quersejampequenos,massuaspretensõesaindamenores.Eohomemcujosméritossão grandes parece ser o mais indebitamente humilde; pois que faria ele semerecessemenos?

O magnânimo, portanto, é um extremo com respeito à grandeza de suaspretensões,masummeio-termonoque tangeà justezadasmesmas;porquesearroga o que corresponde aos seus méritos, enquanto os outros excedem ouficamaquémdamedida.

Se,pois,elemereceepretendegrandescoisas,eessasacimadetodasasoutras,há de ambicionar uma coisa em particular. O mérito é relativo aos bensexteriores;eomaiordestes,acreditamosnós,éaquelequeprestamosaosdeusese que as pessoas de posiçãomais ambicionam, e que é o prêmio conferido àsmaisnobresações.Refiro-meàhonra,queé,porcerto,omaiordetodososbensexteriores.

Honras e desonras, por conseguinte, são os objetos com respeito aos quais ohomemmagnânimo é tal comodeve ser. E,mesmodeixando de lado o nossoargumento,éahonraqueosmagnânimosparecemteremmente;poiséelaquese arrogam acima de tudo, mas de acordo com os seus méritos. O homemindevidamente humilde revela-se deficiente não só em confronto com os seusméritos próprios, mas também com as pretensões do magnânimo. O vaidosoexcedeemrelaçãoaosseusméritospróprios,masnãoexcedeaspretensõesdomagnânimo.

Ora,omagnânimo,vistomerecermaisdoqueosoutros,deveserbomnomaisaltograu;poisohomemmelhorsempremerecemais,eomelhorde todoséoquemaismerece.Logo,ohomemverdadeiramentemagnânimodeve serbom.

Alémdisso,agrandezaemtodasasvirtudesdevesercaracterísticadohomemmagnânimo.Enadahaveriamaisindecorosoparaohomemaltivodoquefugirao perigo, abanando as mãos, ou fazer injustiça a outro; pois com que fimpraticaria atos vergonhosos aquele para quem nada é grande? Se oconsiderarmos ponto por ponto, veremos o perfeito absurdo de um homemmagnânimoquenãosejabom.E tampoucomereceriaele serhonradose fossemau;poisahonraéoprêmiodavirtude,esóérendidaaosbons.

Amagnanimidadeparece,pois,serumaespéciedecoroadasvirtudes,porquantoas torna maiores e não é encontrada sem elas. Por isso é difícil serverdadeiramentemagnânimo,poissempossuirumcaráterbomenobrenãosepodesê-lo.

Demodoqueésobretudoporhonrasedesonrasqueomagnânimoseinteressa;eashonrasqueforemgrandeseconferidasporhomensbons,eleasreceberácommoderadoprazer,pensandoreceberoquemereceouatémenosdoque-merece,poisnãopodehaverhonraqueestejaàalturadavirtudeperfeita;noentanto,eleaaceitará,jáqueosoutrosnadatêmdemaiorparalheoferecer.Masashonrasque procedem de pessoas quaisquer e por motivos insignificantes, ele asdesprezará, visto não ser isso o quemerece; e domesmomodo no tocante àdesonra,que,aplicadaaele,nãopodeserjusta.

Emprimeirolugar,pois,comodissemos,ohomemmagnânimoseinteressapelashonras.Apesardisso,conduzir-se-ácommoderaçãonoquerespeitaaopoder,àriqueza e a toda boa ou má fortuna que lhe advenha e não exultaráexcessivamentecomaboafortunanemseabaterácomamá.Comefeito,nemparacomaprópriahonraeleseconduzcomosefosseumacoisaextraordinária.Opodereariquezasãodesejáveisabemdahonra;e,paraosquetêmaprópriahonra empouca conta, eles tambémdevem ser coisa de somenos. Por isso oshomensmagnânimossãoconsideradosdesdenhosos.

É opinião comum que os bens de fortuna também contribuem para amagnanimidade. Com efeito, os homens bem-nascidos são consideradosmerecedoresdehonra,edamesmaformaosquedesfrutamdepodereriqueza;poiselesseencontramnumaposiçãosuperior,etudoquesemostrasuperioremalgodebométidoemgrandehonra.Daíqueatéessascoisastornemoshomensmais magnânimos, pois alguns os honram pelo fato de possuí-las. Mas, emverdade, só merece ser honrado o homem bom; aquele, porém, que goza deambasasvantagenséconsideradomaismerecedordehonra.

Noentanto, os homensque, sem seremvirtuosos, possuem tais bensnem têmpor que alimentar grandes pretensões, nem fazem jus ao nome de"magnânimos"; porquanto essas coisas implicam virtude perfeita. Isso nãoimpede,porém,quesetornemdesdenhososeinsolentes,poissemvirtudenãoéfácil carregar com elegância os bens da fortuna. Incapazes que são disso, ejulgando-se superiores aos demais, desprezam-nos e fazem o que bem lhesapraz. Imitam o homemmagnânimo sem serem semelhantes a ele, e o fazemnaquiloquepodem;procedercomohomensvirtuososestáforadoseualcance,masdesprezarosoutros,não.Comefeito,ohomemmagnânimodesprezacomjustiça (visto que pensa acertadamente), mas o vulgo o faz sem causa nemmotivosério.

Omagnânimonãoseexpõeaperigosinsignificantes,nemtemamoraoperigo,poisestimapoucascoisas;masenfrentaráosgrandesperigos,enessescasosnãopouparáasuavida,sabendoquehácondiçõesemquenãovaleapenaviver.Étambémmuito capaz de conferir benefícios,mas envergonha-se de recebê-los,pois aquilo é característico do homem superior e isto do inferior. E costumaretribuir comgrandes benefícios, pois assim o primeiro benfeitor, alémde serpago, incorrerá em dívida para com ele e sairá lucrando na transação. Parecetambémlembrar-sedetodososserviçosqueprestou,masnãodosquerecebeu(pois quem recebe um serviço é inferior a quem o presta, mas omagnânimodesejasersuperior).Eouvemencionarosprimeiroscomprazer,eossegundoscomdesagrado;foitalvezporissoqueTétisnãofalouaZeusdosserviçosquelhe havia prestado, nem os espartanos enumeraram os seus serviços aosatenienses,masapenasosquehaviamrecebido.

É tambémcaracterísticodohomemmagnânimonãopedirnadaouquasenada,masprestarauxíliodebomgradoeadotarumaatitudedignaemfacedaspessoasque desfrutam de alta posição e são favorecidas pela fortuna, enquanto semostramdespretensiosospara comosdeclassemediana;pois é coisadifícil egrandemarcadealtivezmostrar-sesuperioraosprimeiros,emborasejafácilcomossegundos,eumacondutaaltivanoprimeirocasonãoésinaldemáeducação,masentrepessoashumildesétãovulgarquantoumaexibiçãodeforçacontraosfracos.

Igualmenteprópriodohomemmagnânimoénãoambicionarascoisasquesãovulgarmenteacatadas,nemaquelasemqueosoutrossedistinguem;mostrar-sedesinteressadoeabster-sedeagir,salvoquandosetratedeumagrandehonraoudeumagrandeobra,eserhomemdepoucasações,masgrandesenotáveis.

Deve também ser franco nos seus ódios e amores (porquanto ocultar os seussentimentos,istoé,olharmenosàverdadedoqueàopiniãodosoutros,éprópriode um covarde); e deve falar e agir abertamente. Com efeito, o magnânimoexpressa-secomfranquezapordesdémeéafeitoadizeraverdade,salvoquandofalacomironiaàspessoasvulgares.

Deveserincapazdefazercomquesuavidagireemtornodeoutro,anãoserdeum amigo; pois isso é próprio de um escravo, e daí o serem servis todos osaduladores, e aduladores todos aqueles que não respeitam a si mesmos.Tampoucoédadoàadmiração,pois,paraele,nadaégrande.Nemguardarancorporofensasquelhefaçam,jáquenãoéprópriodeumhomemmagnânimoteramemória longa, particularmente no que toca a ofensas, mas antes relevá-las.Tampouco é dado a conversas fúteis, pois não fala nem sobre simesmo nemsobreosoutros,porquantonãolheinteressamoselogiosquelhefaçamnemascensuras dirigidas aos outros. Por outro lado, não é amigo de elogiar nemmaledicente, mesmo no que se refere aos seus inimigos, salvo por altivez.Quantoàscoisasqueocorremnecessariamenteouquesãodepoucamonta,édetodososhomensomenosdadoa lamentar-seouasolicitar favores;poissóosquelevamtaiscoisasasérioseportamdessamaneiracomrespeitoaelas.Éeleohomemquepreferepossuircoisasbelase improfícuasàsúteiseproveitosas,poisissoémaisprópriodeumcaráterquebastaasimesmo.

Alémdisso,umandarlentoéconsideradoprópriodohomemmagnânimo,umavozprofundaeumaentonaçãouniforme;poisaqueleque levapoucascoisasasérionãocostumaapressar-se,nemohomemparaquemnadaégrandeseexcitafacilmente,aopassoqueavozestridenteeoandarcéleresãofrutosdapressaedaexcitação.

Tal é, pois, o homem magnânimo; o que lhe fica aquém é indevidamentehumildeeoqueoultrapassaévaidoso.Ora,nemmesmoessessãoconsideradosmaus(poisnãosãomaldosos),masapenasequivocados.Comefeito,ohomemindevidamentehumilde,queédignodeboascoisas, roubaasimesmodaquiloquemerece,epareceteralgodecensurávelporquenãosejulgadignodeboascoisas e também parece não se conhecer; do contrário desejaria as coisas quemerece, visto que elas sãoboas.E contudo, tais pessoasnão são consideradastolas,mas antes excessivamentemodestas. Dir-se-ia, contudo, que semelhantereputação até as torna piores, porque cada classe de pessoa ambiciona o quecorrespondeaosseusméritos,enquantoessesseabstêmmesmodenobresaçõese empreendimentos, considerando-se indignos, e dos bens exteriores por igual

forma.

Osvaidosos,poroutrolado,sãotolosqueignoramasimesmos,eissodemodomanifesto.Porquanto,semseremdignosdetaiscoisas,aventuram-seahonrososempreendimentos que não tardam a denunciá-los pelo que são. E adornam-secom belas roupas, ares afetados e coisas que tais, e desejam que suas boasfortunas se tornem públicas, tornando-as para assunto de conversa, como sedesejassemserhonradosporcausadelas.Masahumildadeindébitaseopõemaisàmagnanimidade do que a vaidade, tanto por sermais comum como por seraindapiordoqueesta.

O magnânimo relaciona-se, pois, com a honra em grande escala, como já sedisse.

4

Tambémparecehavernaesferadahonra,comodissemosemnossasprimeirasobservações sobre o assunto, uma virtude que guarda para com amagnanimidadeamesmarelaçãoquea liberalidadeparacomamagnificência.Com efeito, nenhuma das duas tem nada que ver com as coisas em grandeescala,masambasnosdispõemcorretamenteemrelaçãoaobjetosdepoucaoumediana importância.Assim como no receber e dar riquezas existe ummeio-termo,umexcessoeumadeficiência,tambémahonrapodeserdesejadamaisoumenos do que convém, ou damaneira e das fontes que convém.Censuramostantoohomemambiciosopordesejarahonramaisdequeconvémedefontesindébitas, como o modesto por não querer ser honrado mesmo por motivosnobres.Masàsvezes louvamoso ambiciosopor servaronil e amigodoqueénobre, e o modesto por ser moderado e autossuficiente, como dissemos naprimeiravezquetocamosnesteassunto.

Evidentemente,como"gostardetaloutalobjeto"temmaisdeumsignificado,nãoaplicamossempreàmesmacoisaotermo"ambição"ou"amoràhonra",masaolouvaraqualidadepensamosnohomemquetemmaisamoràhonradoqueamaioria das pessoas, e ao censurá-la temos em mente aquele que a ama emdemasia. Como não existe palavra para designar o meio-termo, os extremosparecemdisputaroseulugarcomoseestivessevagoporabandono.Masondeháexcessoefalta,hátambémummeio-termo.Ora,oshomensdesejamahonranão

sómaiscomotambémmenosdoquedevem;logo,épossíveldesejá-latambémcomosedeve.Emtodocaso,éessaadisposiçãodecaráterqueselouvaequeéummeio-termo sem nome no tocante à honra. Em confronto com a ambiçãoparece ser desambição, e vice-versa; e, em confronto com as duasconjuntamente, parece, emcerto sentido, ser ambas. Isto se afiguraverdadeirotambémdasoutrasvirtudes,masnocasoqueacabamosdeexaminarosextremosseapresentamcomocontraditóriosporqueomeio-termonãorecebeunome.

5

Acalmaéummeio-termocomrespeitoàcólera.Nãohavendonomesnemparaaposiçãointermediárianemparaosextremos,colocamosacalmanessaposição,sebemqueelaseinclineparaadeficiência,quetampoucotemnome.Oexcessopoderia ser chamado uma espécie de "irritabilidade", pois que a paixão é acólera,aopassoquesuascausassãomuitasediversas.

Louva-seohomemqueseencolerizajustificadamentecomcoisasoupessoase,alémdisso,comodeve,nadevidaocasiãoeduranteotempodevido.Esseserá,pois, o homem calmo, já que a calma é louvada. Tal homem tende a não sedeixarperturbarnemguiarpelapaixão,masairar-sedamaneira,comascoisaseduranteotempoquearegraprescreve.Pensa-se, todavia,queeleerradecertomodo no sentido da deficiência, pois o homem calmo não é vingativo, masinclina-seantesarelevarfaltas.

A deficiência, seja ela uma espécie de "calma" ou do que quer que for, écensurada.Comefeito,osquenãoseencolerizamcomascoisasquedeveriamexcitarsuairasãoconsideradostolos,edamesmaformaosquenãoofazemdamaneira apropriada, na ocasião apropriada e com as pessoas que deveriamencolerizá-los.Porquantotaishomenspassamporserinsensíveis,e,comonãoseencolerizam, julgam-nos incapazes de se defender; e suportar insultos tantopessoaiscomodirigidosaosnossosamigoséprópriodeescravos.

Oexcessopodemanifestar-seemtodosospontosqueindicamos(poisépossívelirar-se compessoas ou coisas indébitas,mais do que convém, comdemasiadapresteza ou por um tempo excessivamente longo). Sem embargo, todos essesexcessos não são encontrados namesma pessoa.Nem tal coisa seria possível,visto que o mal destrói até a si próprio, e quando completo torna-se

insuportável.

Ora, os irascíveis encolerizam-se depressa, com pessoas e coisas indébitas emais do que convém,mas sua cólera não tarda a passar, e isso é o que há demelhoremtaispessoas.Sãoassimporquenãorefreiamasuaira,masanaturezaardenteaslevaarevidarlogo,feitooquê,dissipa-seacólera.

Em razão de um excesso, as pessoas coléricas são irritáveis e prontas aencolerizar-secomtudoeporqualquermotivo;daíoseunome.

Aspessoasbirrentassãodifíceisdeapaziguareconservampormaistempoasuacólera, porque a refreiam. Cessa, porém, quando revidam, pois a vingança asalivia da cólera, substituindo-lhes a dor pelo prazer. Se isso não acontecer,guardarãoasuacarga,pois,comoestanãoévisível,ninguémpensasequeremapaziguá-las, e digerir sozinho a sua cólera é coisa demorada. Tais pessoascausamgrandesincômodosasimesmaseaosseusamigosmaischegados.

Chamamosmal-humoradososqueseencolerizamcomoquenãodevem,maisdoquedevemepormaistempo,enãopodemserapaziguadosenquantonãosevingamoucastigam.

Àcalmaopomosanteso excessodoqueadeficiência,poisnão sóele émaiscomum(jáquevingar-seémaishumano),masaspessoasdemaugêniosãoaspiorescomasquaissepodeconviver.

Oquedissemosatrássobreesteassuntotorna-seclaropelapresenteexposição,isto é, que não é fácil definir como, com quem, com que coisa e por quantotempodevemosirar-nos,eemquepontoterminaaaçãojustaecomeçaainjusta.Porquantoohomemquesedesviaumpoucodocaminhocerto,querparamais,quer para menos, não é censurado; e às vezes louvamos os que revelamdeficiência,chamando-osbem-humorados,aopassoqueoutrasvezeslouvamosaspessoascoléricascomosendovaronisecapazesdedirigirasoutras.Atéqueponto, pois, e de que modo um homem pode desviar-se do caminho sem setornar merecedor de censura é coisa difícil de determinar, porque a decisãodependedascircunstânciasparticularesdocasoedapercepção.Masumacoisapelo menos é certa: o meio-termo (isto é, aquilo em virtude de que nosencolerizamoscomaspessoasecoisasdevidas,damaneiradevida,eassimpordiante)mereceser louvado,enquantoosexcessosedeficiências sãodignosdecensura—censuraleveseestãopresenteemmodestograu,efrancaeenérgica

censuraseemgrauelevado.Torna-seassimevidentequedevemosater-nosaomeio-termo.

Istobastaquantoàsdisposiçõesrelativasàcólera.

6

Nas reuniões de homens, na vida social e no intercâmbio de palavras e atos,algunssãoconsideradosobsequiosos,istoé,aquelesqueparaseremagradáveislouvamtodasascoisasejamaisseopõemaquemquerquesejajulgandoqueéseu dever "não magoar as pessoas que encontram"; enquanto os que, pelocontrário, se opõem a tudo e não têm o menor escrúpulo de magoar sãochamadosgrosseirosepolemistas.

Queasdisposiçõesqueacabamosdenomearsãocensuráveis,éevidente,assimcomoédignadelouvoradisposiçãointermediária—istoé,aquelaemvirtudedaqualumhomemseconformaeserebelaanteascoisasquedeveedamaneiradevida.Nenhumnome,porém,lhefoidado,emboraseassemelheacimadetudoà amizade. Com efeito, o homem que corresponde a essa disposiçãointermediária aproxima-se muito daquele que, com o acréscimo da afeição,chamamosumbomamigo.Masadisposiçãoemapreçodiferedaamizadepelofato de não implicar paixão nem afeição para com as pessoas com quemtratamos,vistoquenãoéporamornemporódioqueumhomemacolhetodasascoisas como deve, e sim por ser um indivíduo de determinada espécie. Comefeito,eleseconduzirádomesmomodocomconhecidosedesconhecidos,comíntimosecomosquenãoosão,muitoemboraseconduzaemcadaumdessescasos como convém; pois não é certo interessar-se igualmente por pessoasíntimas e por estranhos, nem tampouco são asmesmas condições que tornamjustomagoá-los.

Ora,nósdissemosdeummodogeralqueessehomemserelacionacomasoutraspessoas do modo que convém; mas é com referência ao que é honroso econvenientequeprocuranãocausardorouproporcionarprazer.

Com efeito, ele parece interessar-se pelos prazeres e dores da vida social; esempre que não for honroso ou que for nocivo proporcionar tal prazer, ele serecusará a fazê-lo, preferindo antes causar dor. Do mesmo modo, se suaaquiescência ao ato de outro trouxesse grande desonra ou dano a esse outro,

enquanto sua oposição lhe causa um pouco de dor, ele se oporá ao invés deaquiescer.

Tal homem se relacionará diferentemente com pessoas de alta posição e compessoascomuns,comconhecidos íntimoseoutrosmaisdistantes,edomesmomodo no que diz respeito a todas as demais diferenças, tratando cada classecomoforapropriado;eembora,deummodogeral,prefiraproporcionarprazereevitecausardor,guiar-se-ápelasconsequênciasseestasforemmaisimportantes— em outras palavras, pela honra e pela conveniência. E também infligirápequenasdorestendoemvistaumgrandeprazerfuturo.

Ohomemquealcançaomeio-termoé,pois,talcomodescrevemos,emboranãotenha recebido um nome. Dos que proporcionam prazer, o que procura seragradávelsemnenhumobjetivoulterioréobsequioso,masaquelequeofazcomofimdeobteralgumavantagememdinheiroounascoisasqueodinheiropodecomprar é um adulador; enquanto o que se opõe a tudo é, como dissemos,grosseiro e polemista. E os extremos parecem ser contraditórios um ao outroporqueomeio-termonãotemnome.

7

O meio-termo oposto à jactância é encontrado quase na mesma esfera; etampouco ele tem nome. Não será fora de propósito descrever também estasdisposições, porque examinando-as em detalhe teremos uma ideia mais exatados caracteres e, por outro lado, nos convenceremos de que as virtudes sãomeios-termosseverificarmosqueissoocorreemtodososcasos.

No campo da vida social, já descrevemos aqueles que se propõem comofinalidadeproporcionarprazer emsuas relaçõescomosoutros.Falemosagoradosquebuscamaverdadeouafalsidadetantoematoscomoempalavras,edassuas pretensões. O homem jactancioso, pois, é considerado como afeito aarrogar-secoisasquetrazemglória,quandonãoaspossui,ouarrogar-semaisdoque possui; e o homem falsamente modesto, pelo contrário, a negar ou aamesquinhar o que possui, enquanto o que observa omeio-termonão exageranemsubestimae éveraz tanto emseumododeviver comoemsuaspalavras,declarandooquepossui,porémnãomaisnemmenos.

Ora, cada uma dessas linhas de conduta pode ser adotada com ou sem um

objetivo,mascadahomemfala,ageevivedeacordocomoseucaráter,senãoestáagindocomumfimulterior.Eafalsidadeéemsimesmavileculpável;eaverdade,nobreedignadelouvor.Portanto,ohomemverazémaisumexemplodaqueles que, conservando-se no meio-termo, merecem louvor; e ambas asformas de homem inverídico são censuráveis, mas particularmente ojactancioso.

Examinemosaambos,masantesdetudoaohomemveraz.Nãoestamosfalandodaquelequecumpreasuapalavranascoisasquedizemrespeitoà justiçaouàinjustiça (pois issopertenceaoutravirtude),masdohomemque, emassuntosondenadadissoestáemjogo,éveraztantoempalavrascomonavidaqueleva,porque tal é o seu caráter. Sem embargo, uma pessoa dessa espécie seránaturalmente equitativa, porquanto o homem que é veraz e ama a verdadequando não há nada em jogo deve sê-lo ainda mais quando vai nisso umaquestãodejustiça.Evitaráafalsidadeemtaiscasoscomoalgodeignóbil,vistoqueaevitavaporsimesma;etalhomemédignodelouvor.Einclina-semaisaatenuaraverdadeissolheparecedemaisbomgosto,porquantoosexagerossãotediosos.

Aqueleque se arrogamaisdoquepossui semqualquer objetivoulterior é umindivíduodesprezível (poisdocontrárionãosecomprazerianafalsidade),maspareceserantesfútildoquemau.Se,porém,ofazcomumfiaqualquer,aquelequeofazvisandoboareputaçãoouàhonranãoé(paraumjactancioso)dignodegrande censura: mas o que o faz por dinheiro, ou pelas coisas que levam àaquisição de dinheiro, é um caráter mais detestável. Com efeito, não é acapacidade que faz o jactancioso, mas o propósito, pois é em virtude dessadisposição de caráter e por ser um homem de determinada espécie que ele éjactancioso;assimcomoumhomemémentirosoporquesedeleitacomamentiraem si mesma e não porque deseje a reputação ou o lucro. Ora, os que sevangloriampara serbemconceituadosarrogam-sequalidadesque lhespossamvalerlouvoresoucongratulações,enquantoosquevisamaoproveitoseatribuemqualidadesvaliosasparaosoutros,mascuja inexistêncianãoé fácildescobrir,comoas de umvidente, de um sábio oude ummédico.Eis aí por que é essaespécie de coisas que a maioria dos arrogantes se arrogam ou de que sevangloriam;poisnelasseencontramasqualidadesquemencionamosacima.

Aspessoasfalsamentemodestas,quesubestimamosseusméritos,parecemmaissimpáticas porque se pensa que não falam com amira no proveito,mas parafugiràostentação;etambémaquiasqualidadesquenegampossuir,comofazia

Sócrates,sãoaquelasquetrazemboareputação.Osquesedizemdestituídosdequalidadesevidentesedepoucamontasãoconsideradosimpostoresesãomaisdesprezíveis; e às vezes isso parece ser jactância, como omodo de trajar dosespartanos,poistantooexcessocomoumagrandedeficiênciaéarrogante.Masos que são modestos com moderação e subestimam qualidades não muitomanifestas parecem simpáticos. E é o jactancioso que se afigura contrário aohomemveraz,porquedasduasdisposiçõesextremasasuaéapior.

8

Comoavidaéfeitanãosódeatividade,mastambémderepouso,eesteincluioslazeresearecreação,parecehaveraquitambémumaespéciedeintercâmbioqueserelacionacomobomgosto.Pode-sedizer—etambémescutar—oquesedeve eoquenão sedeve.Aespéciedepessoa a quem falamosou escutamosinfluiigualmentenocaso.

Evidentemente,tambémnestecampoexisteumademasiaeumadeficiênciaemconfronto com o meio-termo. Os que levam a jocosidade ao excesso sãoconsideradosfarsantesvulgaresqueprocuramserespirituososaqualquercustoe,nasuaânsiadefazerrir,nãosepreocupamcomapropriedadedoquedizemnem em poupar as suscetibilidades daqueles que tomam para objeto de seuschistes;enquantoosquenãosabemgracejar,nemsuportamosqueofazem,sãorústicos e impolidos. Mas os que gracejam com bom gosto chamam-seespirituosos,oqueimplicaumespíritovivoemsevoltarparaumladoeoutro;com efeito, tais agudezas são consideradas movimentos do caráter, e aoscaracteres, assim como aos corpos, costumamos distinguir pelos seusmovimentos.

Nãoé,porém,difícildescobriroladoridículodascoisas,eamaioriadaspessoasdeleitam-semaisdoquedevemcomgracejosecaçoadas;daíseremospróprioschocarreiros chamados espirituosos, pelo agrado que causam; mas o quedissemos acima torna evidente que eles diferem em não pequeno grau dosespirituosos.

A disposição intermediária também pertence o tato. E característico de umhomemdetatodizereescutaraquiloqueficabemaumapessoadignaebem-educada; pois há coisas que fica bem a tal homem dizer e escutar a título de

gracejo; e os chistes de um homem bem-educado diferem dos de um homemvulgar,assimcomoosdeumapessoainstruídadiferemdosdeumignorante.Istosepodeveraténascomédiasantigasemodernas:paraosautoresdasprimeirasalinguagemindecenteeradivertida,enquantoosdassegundasprefereminsinuar;eambosdiferembastantenoquetangeàpropriedadedoquedizem.

Mas devemos definir o homem que sabe gracejar bem pelo fato de ele dizerapenasaquiloquenãoficamalaumhomembem-educado,oupornãomagoaroouvinteeatépordeleitá-lo?Ounãoseráestasegundadefinição,pelomenos,elaprópria indefinida, uma vez que diferentes coisas são aprazíveis ou odiosas adiferentes pessoas? A espécie de gracejos que ele se disporá a escutar será amesma,poisaquelesquepodetolerarsãotambémosquegostadefazer.Há,porconseguinte,gracejosqueessehomemnuncafará,poisogracejoéumaespéciede insulto, e há coisas que os legisladores nos proíbem insultar, e talvezdevessemtambémproibir-nosdegracejaremtornodelas.

Ohomemfinoebem-educadoserá,pois,talcomoodescrevemos,eelemesmoditará,porassimdizer,asualei.

Esseéohomemqueobservaomeio-termo,querochamemoshomemde tato,querespirituoso.Ochocarreiro,poroutrolado,éoescravodasuacriticidade,eparaprovocarorisonãopoupanemasinemaosoutros,dizendocoisasqueumhomemfinojamaisdiria,ealgumasdasquaisnemeleprópriodesejariaescutar.Orústico,porseulado,éinútilparaessaespéciedeintercâmbiosocial,poisemnadacontribuieemtudoachaoquecensurar.Masoslazeresearecreaçãosãoconsideradosumelementonecessárioàvida.

Os meios-termos que descrevemos: acima com respeito à vida são, pois, emnúmero de três, e relacionam-se todos com alguma espécie de intercâmbio depalavraseatos.Diferem,porém,pelofatodeumserelacionarcomaverdadeeosoutrosdoiscomoprazer.Dosquedizemrespeitoaoprazer,umsemanifestanosgracejoseooutronotratosocialcomum.

9

Avergonhanãodeveria ser incluída entre asvirtudes,porquanto se assemelhamaisaumsentimentodoqueaumadisposiçãodecaráter.Édefinida,emtodocaso,comoumaespéciedemedodadesonra,eproduzumefeitosemelhanteao

domedocausadopeloperigo.Comefeito,aspessoasenvergonhadascorameasquetememamorteempalidecem;ambos,portanto,parecemseremcertosentidoestadoscorporais,oqueseriamaiscaracterísticodeumsentimentoquedeumadisposiçãodecaráter.

O sentimento de vergonha não fica bem a todas as idades, mas apenas àjuventude.Pensamosqueosmoçossãosujeitosaenvergonhar-seporquevivempelos sentimentos e por isso cometemmuitos erros, servindo a vergonha pararefreá-los; e louvamos os jovens que mostram essa propensão.; mas a umapessoamaisvelhaninguém louvariapelomesmomotivo,vistopensarmosqueela não deve fazer nada de que tenha de envergonhar-se. Com efeito, osentimentodevergonhanãoésequercaracterísticodeumhomembom,umavezqueacompanhaasmásações.Ora,taisaçõesnãodevemserpraticadas;enãofazdiferençaquealgumassejamvergonhosasemsimesmaseoutrasosejamapenasde acorda com a opinião comum, pois nem as primeiras, nem as segundasdevemos praticar, a fim de não sentirmos vergonha. E é característico de umhomemmauosercapazdecometerqualqueraçãovergonhosa.

É absurdo julgar-se alguém um homem bom porque sente vergonha quandocometetalação,vistoquenosenvergonhamosdenossasaçõesvoluntárias,eohomembomjamaiscometerámásaçõesvoluntariamente.Masavergonhapodeserconsideradaumaboacoisadentrodecertascondições: seumhomembomcometer uma ação dessas, sentirá vergonha. As virtudes, porém, não estãosujeitasa taiscondições.Eseodespudor—onãoseenvergonhardepraticaraçõesvis—émau,nãoseseguequesejabomenvergonhar-sedepraticá-las.

Acontinênciatambémnãoéumavirtude,masumaespéciededisposiçãomista.Éoquemostraremosmaisadiante.Agora,porém,tratemosdajustiça.

LIVROV

1

Noquetocaàjustiçaeàinjustiçadevemosconsiderar:comqueespéciedeaçõesserelacionamelas;queespéciedemeio-termoéajustiça;eentrequeextremosoato justoé intermediário.Nossa investigação seprocessarádentrodasmesmaslinhasqueasanteriores.

Vemosque todososhomensentendempor justiçaaqueladisposiçãodecaráterquetornaaspessoaspropensasafazeroqueéjusto,queasfazagirjustamenteedesejaroqueé justo;edomesmomodo,por injustiçaseentendeadisposiçãoque as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto. Também nós,portanto,assentaremosissocomobasegeral.Porqueasmesmascoisasnãosãoverdadeiras tanto das ciências e faculdades como das disposições de caráter.Considera-se que uma faculdade ou ciência, que é uma I e amesma coisa, serelaciona comobjetos contrários,masumadisposiçãode caráter, que éumdedoiscontrários,nãoproduzresultadosopostos.Porexemplo:emrazãodasaúdenãofazemosoqueécontrárioàsaúde,massóoqueésaudável,poisdizemosqueumhomemcaminhademodo saudável quando caminha comoo faria umhomemquegozassesaúde.

Ora, muitas vezes um estado é reconhecido pelo seu contrário, e não menosfrequentemente os estados são reconhecidos pelos sujeitos que osmanifestam;porque,quandoconhecemosaboacondição,amácondiçãotambémsenostornaconhecida; e a boa condição é conhecida pelas coisas que se acham em boacondição,eassegundaspelaprimeira.Seaboacondiçãoforarijezadecarnes,énecessárionãosóqueamácondiçãosejaacarneflácida,comoqueosaudávelsejaaquiloquetornarijasascarnes.Esegue-se,demodogeral,que,seumdoscontrários forambíguo,ooutro tambémoserá;porexemplo, seo "justo"oé,tambémoseráo"injusto".

Ora, "justiça" e "injustiça" parecem ser termos ambíguos, mas, como os seusdiferentes significados se aproximam uns dos outros, a ambiguidade escapa àatenção e não é evidente como, por comparação, nos casos em que os

significadosseafastammuitoumdooutro—porexemplo(poisaquiégrandeadiferença de forma exterior), como a ambiguidade no emprego de ??e?? paradesignaraclavículadeumanimaleo ferrolhocomque trancamosumaporta.Tomemos, pois, como ponto de partida os vários significados de "um homeminjusto". Mas o homem sem lei, assim como o ganancioso e ímprobo, sãoconsiderados injustos,de formaque tantoo respeitadorda lei comoohonestoserãoevidentementejustos.Ojustoé,portanto,orespeitadordaleieoprobo,eoinjustoéohomemsemleieímprobo.

Vistoqueohomeminjustoéganancioso,deveteralgoquevercombens—nãotodososbens,masaquelesaquedizemrespeitoaprosperidadeeaadversidade,equetomadosemabsolutosãosemprebons,masnemsempreosãoparaumapessoa determinada. Ora, os homens almejam tais coisas e as buscamdiligentemente;eissoéocontráriodoquedeveriaser.Deviamantespediraosdeuses que as coisas que são boas em absoluto o fossem tambémpara eles, eescolheressas.

Ohomeminjustonemsempreescolheomaior,mastambémomenor—nocasodas coisas que são más em absoluto. Mas, como o mal menor é, em certosentido,consideradobom,eaganânciasedirigeparaobom,pensa-sequeessehomem é ganancioso. E é igualmente iníquo, pois essa característica contémambasasoutraseécomumaelas.

Como vimos que o homem sem lei é injusto e o respeitador da lei é justo,evidentementetodososatoslegítimossão,emcertosentido,atosjustos;porqueosatosprescritospelaartedolegisladorsãolegítimos,ecadaumdeles,dizemosnós,éjusto.Ora,nasdisposiçõesquetomamsobretodososassuntos,asleistêmemmiraavantagemcomum,querdetodos,querdosmelhoresoudaquelesquedetêmopoderoualgonessegênero;demodoque,emcertosentido,chamamosjustos aqueles atos que tendem a produzir e a preservar, para a sociedadepolítica,afelicidadeeoselementosqueacompõem.Ealeinosordenapraticartanto os atos de umhomembravo (por exemplo, nãodesertar de nossoposto,nem fugir, nemabandonarnossas armas)quantoosdeumhomem temperante(por exemplo, não cometer adultério nem entregar-se à luxúria) e os de umhomemcalmo(porexemplonãobateremninguém,nemcaluniar);edomesmomodocomrespeitoàsoutrasvirtudeseformasdemaldade,prescrevendocertosatos e condenando outros; e a lei bem elaborada faz essas coisas retamente,enquantoasleisconcebidasàspressasasfazemmenosbem.

Essaformadejustiçaé,portanto,umavirtudecompleta,porémnãoemabsolutoesimemrelaçãoaonossopróximo.Porissoajustiçaémuitasvezesconsideradaamaiordasvirtudes,e"nemVésper,nemaestrela-d’alva"sãotãoadmiráveis;eproverbialmente, "na justiça estão compreendidas todas as virtudes".E ela é avirtudecompletanoplenosentidodotermo,porseroexercícioatualdavirtudecompleta.Écompletaporqueaquelequeapossuipodeexercersuavirtudenãosósobresimesmo,mastambémsobreoseupróximo,jáquemuitoshomenssãocapazes de exercer virtude em seus assuntos privados, porém não em suasrelaçõescomosoutros.PorissoéconsideradoverdadeirooditodeBias,"queomando revela o homem", pois necessariamente quemgoverna está em relaçãocomoutroshomenseéummembrodasociedade.

Poressamesmarazãosedizquesomenteajustiça,entretodasasvirtudes,éo"bemdeoutro",vistoque se relacionacomonossopróximo, fazendooqueévantajosoaumoutro, sejaumgovernante, sejaumassociado.Ora,opiordoshomenséaquelequeexerceasuamaldadetantoparaconsigomesmocomoparacomosseusamigos,eomelhornãoéoqueexerceasuavirtudeparaconsigomesmo,masparacomoutro;poisquedifíciltarefaéessa.

Portanto,ajustiçanestesentidonãoéumapartedavirtude,masavirtudeinteira;neméseucontrário,ainjustiça,umapartedovício,masovíciointeiro.Oquedissemospõeadescobertoadiferençaentreavirtudeea justiçanestesentido:sãoelasamesmacoisa,masnãooéasuaessência.Aquiloque,emrelaçãoaonossopróximo,é justiça,comoumadeterminadadisposiçãodecarátereemsimesmo,évirtude.

2

Seja, porém, como for, o objeto de nossa investigação é aquela justiça queconstituiumapartedavirtude;porquantosustentamosquetalespéciedejustiçaexiste. E analogamente, é com a injustiça no sentido particular que nosocupamos.

Quetalcoisaexiste,éindicadopelofatodequeohomemquemostraemseusatos as outras formas de maldade age realmente mal, porém nãogananciosamente (por exemplo, o homem que atira ao chão o seu escudo porcovardia,quefaladuramentepormauhumoroudeixadeassistircomdinheiro

ao seu amigo, por avareza); e, por outro lado, o gananciosomuitas vezes nãoexibe nenhum desses vícios, nem todos juntos, mas indubitavelmente revelacertaespéciedemaldadeede injustiça.Existe,pois,outraespéciede injustiçaqueépartedainjustiçanosentidolato,eumdosempregosdapalavra"injusto"quecorrespondeaumapartedoqueéinjustonosentidoamplode"contrárioàlei".

Poroutrolado,seumhomemcometeadultériotendoemvistaolucroeganhadinheiro com isso, enquanto outro o faz levado pelo apetite, embora percadinheiro e sofra com o seu ato, o segundo será considerado sem limite e nãoganancioso,enquantooprimeiroéinjusto,masnãosemlimite.Estáclaro,pois,queeleéinjustopelarazãodelucrarcomoseuato.Aindamais:todososoutrosatos injustos são invariavelmente atribuídos a alguma espécie particular demaldade; por exemplo, o adultério à intemperança, o abandono de umcompanheiroemcombateàcovardia,aviolênciafísicaàcólera;mas,quandoumhomemtiraproveitodesuaação,estanãoéatribuídaanenhumaoutraformademaldadequenãoainjustiça.Éevidente,pois,quealémdainjustiçanosentidolato existe uma injustiça "particular" que participa do nome e da natureza daprimeira, porque sua definição se inclui no mesmo gênero. Com efeito, osignificadodeambasconsistenumarelaçãoparacomopróximo,masumadelasdiz respeitoàhonra, aodinheiroouà segurança—ouàquiloque inclui todasessascoisas,sehouvesseumnomeparadesigná-lo—eseumotivoéoprazerproporcionadopelolucro;enquantoaoutradizrespeitoatodososobjetoscomqueserelacionaohomembom.

Estábemclaro,pois,queexistemaisdeumaespéciedejustiça,eumadelassedistinguedavirtudenoplenosentidodapalavra.Cumpre-nosdeterminaroseugêneroeasuadiferençaespecífica.

Oinjustofoidivididoemilegítimoeímproboeojustoemlegítimoeprobo.Aoilegítimocorrespondeosentidodeinjustiçaqueexaminamosacima.Mas,comoilegítimo e ímprobo não são amesma coisa, mas diferem entre si como umaparte do seu todo (pois tudo que é ímprobo é ilegítimo,mas nem tudo que éilegítimoé ímprobo), o injusto e a injustiçano sentidode improbidadenão seidentificam com a primeira espécie citada,mas diferem dela como a parte dotodo.Comefeito, a injustiçaneste sentido éumaparte da injustiçano sentidoamplo, e, do mesmo modo, a justiça num sentido o é da justiça do outro.Portanto, devemos também falar da justiça e da injustiça particulares, e damesmaformaarespeitodojustoedoinjusto.

Quanto à justiça, pois, que corresponde à virtude total, e à correspondenteinjustiça,sendoumadelasoexercíciodavirtudeemsuainteirezaeaoutra,odovício completo, ambos em relação ao nosso próximo, podemos deixá-las departe. E é evidente o modo como devem ser distinguidos os significados de"justo"ede"injusto"que lhescorrespondem,pois,abemdizer,amaioriadosatos ordenados pela lei são aqueles que são prescritos do ponto de vista davirtudeconsideradacomoumtodo.Efetivamente,aleinosmandapraticartodasas virtudes e nos proíbe de praticar qualquer vício. E as coisas que tendem aproduziravirtudeconsideradacomoumtodosãoaquelesatosprescritospelaleitendoemvistaaeducaçãoparaobemcomum.Masnoquetangeàeducaçãodoindivíduocomotal,educaçãoessaquetornaumhomembomemsi,ficaparaserdeterminadoposteriormente,se issocompeteàartepolíticaouaalgumaoutra;poistalveznãohajaidentidadeentreserumhomembomeserumbomcidadãodequalquerEstadoescolhidoaocaso.

Dajustiçaparticularedoqueéjustonosentidocorrespondente,umaespécieéaque semanifesta nas distribuiçõesdehonras, dedinheirooudas outras coisasquesãodivididasentreaquelesquetêmpartenaconstituição(poisaíépossívelreceberumquinhãoigualoudesigualaodeoutro);eoutraespécieéaquelaquedesempenhaumpapelcorretivonastransaçõesentreindivíduos.Destaúltimaháduas divisões: dentre as transações, algumas são voluntárias, e outras sãoinvoluntárias—voluntárias,porexemplo,ascomprasevendas,osempréstimosparaconsumo,asarras,oempréstimoparauso,osdepósitos,aslocações(todosestessãochamadosvoluntáriosporqueaorigemdastransaçõesévoluntária);aopassoquedasinvoluntárias,algumassãoclandestinas,comoofurto,oadultério,oenvenenamento,olenocínio,oengodoafimdeescravizar,ofalsotestemunho,eoutrassãoviolentas,comoaagressão,osequestro,ohomicídio,orouboamãoarmada,amutilação,asinvectivaseosinsultos.

3

Mostramos que tanto o homem como o ato injustos são ímprobos ou iníquos.Agora se torna claroque existe tambémumponto intermediário entre as duasiniquidades compreendidas em cada caso.E esse ponto é a equidade, pois emtodaespéciedeaçãoemqueháomaiseomenostambémháoigual.Se,pois,oinjusto é iníquo, o justo é equitativo, como, aliás, pensam todos mesmo semdiscussão. E, como o igual é um ponto intermediário, o justo será ummeio-

termo.

Ora, igualdade implicapelomenosduascoisas.O justo,porconseguinte,deveseraomesmotempointermediário,igualerelativo(istoé,paracertaspessoas).E, como intermediário, deve encontrar-se entre certas coisas (as quais são,respectivamente,maioresemenores);comoigual,envolveduascoisas;e,comojusto,oéparacertaspessoas.Ojusto,pois,envolvepelomenosquatrotermos,porquantoduassãoaspessoasparaquemeleédefarojusto,eduassãoascoisasemquesemanifesta—osobjetosdistribuídos.

Eamesmaigualdadeseobservaráentreaspessoaseentreascoisasenvolvidas;pois a mesma relação que existe entre as segundas (as coisas envolvidas)tambémexisteentreasprimeiras.Senãosãoiguais,nãoreceberãocoisasiguais;masissoéorigemdedisputasequeixas:ouquandoiguaistemerecebempartesdesiguais,ouquandodesiguaisrecebempartesiguais.Isso,aliás,éevidentepelofato de que as distribuições devem ser feitas "de acordo com omérito"; poistodosadmitemqueadistribuiçãojustadeverecordarcomoméritonumsentidoqualquer,sebemquenemtodosespecifiquemamesmaespéciedemérito,masosdemocrataso identificamcomacondiçãodehomemlivre,ospartidáriosdaoligarquiacomariqueza(oucomanobrezadenascimento),eospartidáriosdaaristocraciacomaexcelência.

O justo é, pois, uma espécie de termo proporcional (sendo a proporção umapropriedade não só da espécie de número que consiste em unidades abstratas,masdonúmeroemgeral).Comefeito,aproporçãoéumaigualdadederazões,eenvolvequatrotermospelomenos(queaproporçãodescontínuaenvolvequatrotermoséevidente,masomesmosucedecomacontínua,poiselausaumtermoemduasposiçõeseomencionaduasvezes;porexemplo"alinhaAestáparaalinha B assim como a linha B está para a linha C": a linha B, pois, foimencionada duas vezes e, sendo ela usada em duas posições, os termosproporcionaissãoquatro).Ojustotambémenvolvepelomenosquatrotermos,earazãoentredoisdeleséamesmaqueentreosoutrosdois,porquantoháumadistinçãosemelhanteentreaspessoaseentreascoisas.AssimcomootermoAestáparaB,otermoCestáparaD;ou,alternando,assimcomoAestáparaC,BestáparaD.Logo,tambémotodoguardaamesmarelaçãoparacomotodo;eesseacoplamentoéefetuadopeladistribuiçãoe,sendocombinadosostermosdaformaqueindicamos,efetuadojustamente.DondeseseguequeaconjunçãodotermoAcomCedeBcomDéoqueéjustonadistribuição;eestaespéciedojusto é intermediária, e o injusto é o que viola a proporção; porque o

proporcionaléintermediário,eojustoéproporcional.(Osmatemáticoschamam"geométrica" a esta espécie de proporção, pois só na proporção geométrica otodoestáparaotodoassimcomocadaparteestáparaapartecorrespondente.)Esta proporção não é contínua, pois não podemos obter um termo único querepresenteumapessoaeumacoisa.

Eisaí,pois,oqueéojusto:oproporcional;eoinjustoéoqueviolaaproporção.Desse modo, um dos termos torna-se grande demais e o outro demasiadopequeno, como realmente acontece na prática; porque o homem que ageinjustamente temexcessoeoqueé injustamente tratado temdemasiadopoucodo que é bom. No caso do mal verifica-se o inverso, pois o menor mal éconsideradoumbememcomparaçãocomomalmaior,vistoqueoprimeiroéescolhidodepreferênciaaosegundo,eoqueédignodeescolhabom,ededuascoisasamaisdignadeescolhaéumbemmaior.

Essaé,porconseguinte,umadasespéciesdojusto.

4

A outra é a corretiva que surge em relação com transações tanto voluntáriascomoinvoluntárias.Estaformadojustotemumcaráterespecíficodiferentedaprimeira. Com efeito, a justiça que distribui posses comuns está sempre deacordo com a proporção mencionada acima (e mesmo quando se trata dedistribuir os fundos comuns de uma sociedade, ela se fará segundo a mesmarazãoqueguardamentre si os fundosempregadosnonegóciopelosdiferentessócios); e a injustiça contrária a esta espécie de injustiça é a que viola aproporção.Masajustiçanastransaçõesentreumhomemeoutroéefetivamenteuma espécie de igualdade, e a injustiça uma espécie de desigualdade; não deacordo com essa espécie de proporção, todavia, mas de acordo com umaproporção aritmética. Porquanto não faz diferença que um homem bom tenhadefraudadoumhomemmauouvice-versa,nemsefoiumhomembomoumauquecometeuadultério;aleiconsideraapenasocaráterdistintivododelitoetrataaspartescomoiguais,seumacometeeaoutrasofreinjustiça,seumaéautoraeaoutraévítimadodelito.

Portanto, sendo esta espécie de injustiça uma desigualdade, o juiz procuraigualá-la; porque também no caso em que um recebeu e o outro infligiu um

ferimento, ou um matou e o outro foi morto, o sofrimento e a ação foramdesigualmente distribuídos; mas o juiz procura igualá-los por meio da pena,tomando uma parte do ganho do acusado. Porque o termo "ganho" aplica-segeralmente a tais casos, embora não seja apropriado a alguns deles, comoporexemplo, àpessoaque infligeum ferimento—"e"perda"àvítima.Seja comofor,umavezestimadoodano,uméchamadoperdaeooutro,ganho.

Logo.oigualéintermediárioentreomaioreomenor,masoganhoeperdasãorespectivamentemenoresemaioresemsentidoscontrários;maiorquantidadedobem emenor quantidade domal representam ganho, e o contrário é perda; eintermediárioentreosdoisé,comovimos,o igual,quedizemosser justo.Porconseguinte,ajustiçacorretivaseráointermediárioentreaperdaeoganho.

Eis aí por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz érecorreràjustiça,poisanaturezadojuizéserumaespéciedejustiçaanimada;eprocuram o juiz como um intermediário, e em alguns Estados os juízes sãochamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem omeio-termo,conseguirãooqueéjusto.Ojusto,pois,éummeio-termojáqueojuizoé.

Ora,ojuizrestabeleceaigualdade.Ecomosehouvesseumalinhadivididaempartes desiguais e ele retira a diferença pela qual o segmento ma excede ametadepara acrescentá-lamenor.Equandoo todo foi igualmentedividido,oslitigantesdizemquereceberam"oquelhespertence"—istoé,receberamoqueéigual.

O igual é intermediário entre a linha maior e a menor de acordo com umaproporção aritmética. Por esta mesma razão é ele chamado justo (d??a???),devidoaserumadivisãoemduaspartesiguais,comoquemdissessed??iov;eojuiz (d??ast??) é aquele que divide em dois (d??ast??). Com efeito, quandoalguma coisa é subtraída de um de dois iguais e acrescentada ao outro, estesuperaoprimeiropelodobrodela,vistoque,seoquefoitomadoaumnãofosseacrescentado aooutro, a diferença seria deum só.Portanto, omaior excedeointermediáriodeum,eointermediárioexcededeumaqueledequefoisubtraídaalgumacoisa.Por aí se vêquedevemos tanto subtrair doque temmais comoacrescentaraoquetemmenos;eaesteacrescentaremosaquantidadepelaqualoexcede o intermediário, e domaior subtrairemos o seu excesso em relação aointermediário.

SejamaslinhasAA',BB'eCC'iguaisumasàsoutras.Subtraia-sedalinhaAA'osegmentoAE,eacrescente-seàlinhaCCosegmentoCD,demodoquetodaalinha DCC' exceda a linha EA' pelo segmento CD e pelo segmento CF; porconseguinte,elaexcedealinhaBB'pelosegmentoCD.

A______E_____________________________A'

B_____________________________________B'

D______C______F_____________________________C’

Estesnomes,perdaeganho,procedemdas trocasvoluntárias,pois termaisdoqueaquiloqueénossochama-seganhar,etermenosdoqueanossaparteinicialchama-seperder,como,porexemplo,nascomprasevendaseemtodasasoutrastransações em que a lei dá liberdade aos indivíduos para estabelecerem suaspróprias condições; quando, todavia, não recebem mais nem menos, masexatamenteoquelhespertence,dizemquetêmoqueéseuequenemganharamnemperderam.

Logo, o justo é intermediário entre uma espécie de ganho e uma espécie deperda,asaber,osquesão involuntários.Consisteem terumaquantidade igualantesedepoisdatransação.

5

Algunspensamqueareciprocidadeéjustasemqualquerreserva,comodiziamos pitagóricos; pois assim definiam eles a justiça.Ora, "reciprocidade" não seenquadranemnajustiçadistributiva,nemnacorretiva,enoentantoqueremqueajustiçadopróprioRadamantosignifiqueisso:

Seumhomemsofreroquefez,adevidajustiça,seráfeita.

Ora, emmuitos casos a reciprocidade não se coaduna coma justiça corretiva:porexemplo, seumaautoridade infligiuumferimento,nãodeveser feridaemrepresália, e se alguém feriu uma autoridade, não apenas deve ser tambémferido,mascastigadoalémdisso.Acrescequehágrandediferençaentreumatovoluntário e um ato involuntário.Mas nas transações de troca essa espécie dejustiçanãoproduzauniãodoshomens:areciprocidadedevefazer-sedeacordo

com uma proporção e não na base de uma retribuição exatamente igual.Porquanto é pela retribuição proporcional que a cidade se mantém unida. Oshomens procurampagar omal comomal e, se não podem fazê-lo, julgam-sereduzidos à condição de simples escravos— e o bem com o bem, e se nãopodemfazê-lonãohátroca,eépelatrocaqueelessemantêmunidos.PoressemesmomotivodãoumaposiçãoproeminenteaotemplodasGraças:promoveraretribuiçãodosserviçosécaracterísticodagraça,edeveríamosserviremtrocaaquelequenosdispensouumagraça,tomandonoutraocasiãoainiciativadelhefazeromesmo.

Ora,a retribuiçãoproporcionalégarantidapelaconjunçãocruzada.SejaAumarquiteto,Bumsapateiro,CumacasaeDumpardesapatos.Oarquiteto,pois,devereceberdosapateirooprodutodotrabalhodesteúltimo,edar-lheoseuemtroca.Se,pois,háumaigualdadeproporcionaldebenseocorreaaçãorecíproca,oresultadoquemencionamosseráefetuado.Senão,apermutanãoéigual,nemválida,poisnadaimpedequeotrabalhodeumsejasuperioraodooutro.Devem,portanto,serigualados.

Eistoéverdadeirotambémdasoutrasartes,porquantoelasnãosubsistiriamseoque o paciente sofre não fosse exatamente o mesmo que o agente faz, e damesmaquantidadeeespécie.Comefeito,nãosãodoismédicosqueseassociamparatroca,masummédicoeumagricultor,e,demodogeral,pessoasdiferentese desiguais; mas essas pessoas devem ser igualadas. Eis aí por que todas ascoisasquesãoobjetosdetrocadevemsercomparáveisdeummodooudeoutro.Foiparaessefimqueseintroduziuodinheiro,oqualsetorna,emcertosentido,ummeio-termo, visto quemede todas as coisas e, por conseguinte, tambémoexcessoe a falta—quantosparesde sapatos são iguais aumacasaouaumadeterminadaquantidadedealimento.

O número de sapatos trocados por uma casa (ou por uma determinadaquantidadedealimento)deve,portanto,corresponderàrazãoentreoarquitetoeosapateiro.Porque,seassimnãofor,nãohaverátrocanemintercâmbio.Eessaproporção não se verificará, a menos que os bens sejam iguais de ummodo.Todososbensdevem,portanto,sermedidosporumasóeamesmacoisa,comodissemosacima.Ora,essaunidadeénarealidadeaprocura,quemantémunidastodasascoisas(porque,seoshomensnãonecessitassememabsolutodosbensunsdosoutros,ounãonecessitassemdelesigualmente,ounãohaveriatroca,ounãoamesmatroca);masodinheiro tornou-se,porconvenção,umaespéciederepresentantedaprocura;eporissosechamadinheiro(?óµ?sµa),jáqueexiste

nãopornatureza,masporlei(vóµoç),eestáemnossopodermudá-loetorná-losemvalor.

Haverá, pois, reciprocidade quando os termos forem igualados de modo que,assim como o agricultor está para o sapateiro, a quantidade de produtos dosapateiro esteja para a de produtos de agricultor pela qual é trocada.Mas nãodevemos, colocá-los em proporção depois de haverem realizado a troca (docontrárioambososexcessossejuntarãonumdosextremos),esimquandocadaumpossuiaindaos seusbens.Dessemodosão iguaiseassociados justamenteporqueessaigualdadesepodeefetivarnoseucaso.

Seja A um agricultor, C uma determinada quantidade de alimento, B umsapateiroeDoseuproduto,queequiparamosaC.Senãofossepossívelefetuardessa formaa reciprocidade,nãohaveriaassociaçãodaspartes.Queaprocuraenglobaas coisasnumaunidade sóéevidenciadopelo fatodeque,quandooshomens não necessitam um do outro — isto é, quando não há necessidaderecíprocaouquandoumdelesnãonecessitadosegundo—,nãorealizamatroca,como acontece quando alguém deseja o que temos: por exemplo, quando sepermiteaexportaçãodetrigoemtrocadevinho.Epreciso,pois,estabeleceressaequação.

Equantoàs trocas futuras—a fimdeque, senãonecessitamosdeumacoisaagora,possamostê-laquandoelavenhaafazer-senecessária—,odinheiroé,decertomodo, a nossa garantia, pois devemos ter a possibilidadede obter o quequeremosemtrocadodinheiro.Ora,comodinheirosucedeamesmacoisaquecomosbens:nemsempretemeleomesmovalor;apesardisso,tendeasermaisestável.Daíanecessidadedequetodososbenstenhamumpreçomarcado;poisassim haverá sempre troca e, por conseguinte, associação de homem comhomem.

Deste modo, agindo o dinheiro como uma medida, torna ele os benscomensuráveis e os equipara entre si; pois nem haveria associação se nãohouvesse troca, nem troca se não houvesse igualdade, nem igualdade se nãohouvesse comensurabilidade. Ora, ha realidade é impossível que coisas tãodiferentes entre si se tornem comensuráveis, mas com referência à procurapodem tornar-se tais em grau suficiente. Deve haver, pois, uma unidade, Iunidadeestabelecidaporcomumacordo(porissosechamaeladinheiro);poiséela que torna todas as coisas comensuráveis, já que todas são medidas pelodinheiro.

SejaAumacasa,Bdezminas,Cumacama.AéametadedeB,seacasavalecincominas ou é igual a elas; a cama, C, é um décimo de B; torna-se assimevidentequantascamasigualamumacasa,asaber:cinco.Nãohádúvidaqueatrocaserealizavadessemodoantesdeexistirdinheiro,poisnenhumadiferençafaz que cinco camas sejam trocadas por uma casa ou pelo valormonetário decincocamas.

Temos,pois,definidoojustoeoinjusto.Apósdistingui-losassimumdooutro,éevidentequeaaçãojustaéintermediáriaentreoagirinjustamenteeoservítimade injustiça; pois um deles é ter demais e o outro é ter demasiado pouco. Ajustiçaéumaespéciedemeio-termo,porémnãonomesmosentidoqueasoutrasvirtudes, e sim porque se relaciona com uma quantia ou quantidadeintermediária, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E justiça éaquiloemvirtudedoqualsedizqueohomemjustopratica,porescolhaprópria,oqueéjusto,equedistribui,sejaentresimesmoeoutro,sejaentredoisoutros,nãodemaneiraadarmaisdoqueconvémasimesmoemenosaoseupróximo(einversamentenorelativoaoquenãoconvém),masdemaneiraadaroqueéigualdeacordocomaproporção;edamesmaformaquandosetratadedistribuirentre duas outras pessoas. A injustiça, por outro lado, guarda uma relaçãosemelhante para com o injusto, que é excesso e deficiência, contrários àproporção, do útil ou do nocivo. Por esta razão a injustiça é excesso edeficiência,istoé,porqueproduztaiscoisas—nonossocasopessoal,excessodo que é útil por natureza e deficiência do que é nocivo, enquanto o caso deoutraspessoaséequiparáveldemodogeralaonosso,comadiferençadequeaproporçãopodeservioladanumenoutrosentido.Naaçãoinjusta,terdemasiadopoucoéservítimadeinjustiça,eterdemaiséagirinjustamente.

Sejaestaanossaexposiçãodanaturezadajustiçaedainjustiçae,igualmente,dojustoedoinjustoemgeral.

6

Visto que agir injustamente não implica necessariamente ser injusto, devemosindagar que espécies de atos injustos implicam que o autor é injusto comrespeito a cada tipo de injustiça: por exemplo, um ladrão, um adúltero ou umbandido.Evidentemente, a respostanãogiraem tornodadiferençaentreessestipos,poisumhomempoderiaatédeitar-secomumamulher,sabendoquemela

é,semquenoentantoomotivodeseuatofosseumaescolhadeliberada,masapaixão.Essehomemageinjustamente,porconseguinte,masnãoéinjusto;eumhomempodenão ser ladrãoapesarde ter roubado,nemadúltero apesarde tercometidoadultério;eanalogamenteemtodososoutroscasos.

Ora,jámostramosanteriormentecomoorecíprocoserelacionacomojusto;masnãodevemosesquecerqueoqueestamosprocurandonãoéapenasaquiloqueéjustoincondicionalmente,mastambémajustiçapolítica.Estaéencontradaentrehomens que vivem em comum tendo emvista a autossuficiência, homens quesãolivreseiguais,querproporcionalmente,queraritmeticamente,demodoqueentreosquenãopreenchemestacondiçãonãoexistejustiçapolítica,masjustiçanumsentidoespecialeporanalogia.

Com efeito, a justiça existe apenas entre homens cujas relações mútuas sãogovernadaspelalei;ealeiexisteparaoshomensentreosquaisháinjustiça,poisajustiçalegaléadiscriminaçãodojustoedoinjusto.E,havendoinjustiçaentrehomens, também há ações injustas (se bem que do fato de ocorrerem açõesinjustas entre eles nem sempre se pode inferir que haja injustiça), e estasconsistemematribuirdemasiadoasiprópriodascoisasboasemsi,edemasiadopoucodascoisasmásemsi.

Aí está por que não permitimos que um homem governe, mas o princípioracional,poisqueumhomemofaznoseuprópriointeresseeconverte-senumtirano.Omagistrado,poroutrolado,éumprotetordajustiçae,porconseguinte,tambémda igualdade.E,visto supor-sequeelenãopossuamaisdoquea suaparte,seéjusto(porquenãoatribuiasimesmomaisdaquiloqueebomemsi,amenos que tal quinhão: seja proporcional aos seusméritos—demodo que épara outros que trabalha, e por essa razão os homens, como mencionamosanteriormente, dizem ser a justiça "o bem de outro"), ele deve, portanto, serrecompensado,esuarecompensaéahonraeoprivilégio;masaquelesquenãosecontentamcomessascoisastornam-setiranos.

Ajustiçadeumamoeadeumpainãosãoamesmaqueajustiçadoscidadãos,embora se assemelhem a ela pois não pode haver justiça no sentidoincondicionalemrelaçãoacoisasquenospertencem,masoservodeumhomeme o seu filho, até atingir certa idade e tornar-se independente, são, por assimdizer,umapartedele.Oraninguémferevoluntariamenteasimesmo,razãopelaqual também não pode haver injustiça contra si próprio. Portanto, não é emrelações dessa espécie que semanifesta a justiça injustiça dos cidadãos; pois,

comovimoselaserelacionacomaleieseverificaentrepessoasnaturalmentesujeitasàlei;eestas,comotambémvimos,sãopessoasquetêmpartesiguaisemgovernar e ser governadas. Por isso émais fácilmanifestar verdadeira justiçaparacomnossaesposadoqueparacomnossosfilhoseservos.Trata-se,nessecaso, de justiça doméstica, a qual, sem embargo, também difere da justiçapolítica.

7

Da justiçapolítica,umaparteénatural eoutraparte legal:natural, aquelaquetemamesma força ondequer que seja e não existe em razãode pensaremoshomensdesteoudaquelemodo;legal,aquedeinícioéindiferente,masdeixadesê-lodepoisquefoiestabelecida:porexemplo,queoresgatedeumprisioneirosejadeumamina,ouquedeve ser sacrificadoumbodeenãoduasovelhas, etambémtodasasleispromulgadasparacasosparticulares,comoaquemandavaoferecersacrifíciosemhonradeBrásidas,easprescriçõesdosdecretos.

Ora, algunspensamque toda justiçaédesta espécie,porqueas coisasque sãopornatureza, são imutáveiseem todaparte têmamesmaforça (comoo fogo,queardetantoaquicomonaPérsia),aopassoqueelesobservamalteraçõesnascoisas reconhecidas como justas. Isso, porém, não é verdadeiro de modoabsolutomasverdadeiroemcertosentido;oumelhor,paraosdeusestalveznãoseja verdadeiro de modo algum, enquanto para nós existe algo que é justomesmopornatureza,emborasejamutável.Issonãoobstante,algumascoisasosãopornaturezaeoutras,não.

Comtodaaevidênciapercebe-sequeespéciedecoisas,entreasquesãocapazesde ser de outro modo, é por natureza e que espécie não o é, mas por lei econvenção,admitindo-sequeambassejamigualmentemutáveis.Eemtodasasoutras coisas a mesma distinção será aplicável: por natureza, a mão direita émais forte; e no entanto é possível que todos os homens venham a tornar-seambidestros.

As coisas que são justas em virtude da convenção e da conveniênciaassemelham-seamedidas,poisqueasmedidasparaovinhoeparaotrigonãosão iguais em todaparte,porémmaioresnosmercadospor atacadoemenoresnosretalhistas.Damesmaforma,ascoisasquesãojustasnãopornatureza,mas

por decisão humana, não são as mesmas em toda parte. E as própriasconstituiçõesnãosãoasmesmas,conquantosóhajaumaqueé,pornatureza,amelhoremtodaparte.

Dascoisasjustaselegítimas,cadaumaserelacionacomoouniversalparacomoseuscasosparticulares;poisascoisaspraticadassãomuitas,masdessascadaumaéumasó,vistoqueéuniversal.

Háumadiferençaentreoatodeinjustiçaeoqueéinjusto,assimcomoentreoatodejustiçaeoqueéjusto.Comoefeito,umacoisaéinjustapornaturezaouporlei;eessamesmacoisa,depoisquealguémafaz;éumatodeinjustiça;antesdisso,porém,éapenas injusta.Edomesmomodoquantoaoatode justiça (sebemque a expressão geralmente usada seja "ação justa", e "ato de justiça" seapliqueàcorreçãodoatodeinjustiça).

Cada uma destas coisas deve ser examinada separadamente mais tarde, notocanteànaturezaeaonúmerodesuasespécies,bemcomoànaturezadascoisascomqueserelaciona.

8

Sendo os atos justos e injustos tais como os descrevemos, um homem age demaneirajustaouinjustasemprequepraticataisatosvoluntariamente.Quandoospratica involuntariamente, seus atos não são justos nem injustos, salvo poracidente,istoé,porqueelefezcoisasqueredundamemjustiçasouinjustiças.Eo caráter voluntário ou involuntário do ato que determina se ele é justo ouinjusto,pois,quandoévoluntário,écensurado,epelamesmarazãosetornaumato de injustiça; de forma que existem coisas que são injustas, sem que noentanto sejam atos de injustiça, se não estiver presente também avoluntariedade.

Porvoluntárioentendo,comojádisseantes,tudoaquiloqueumhomemtemopoderdefazerequefazcomconhecimentodecausa,istoé,semignorarnemapessoaatingidapeloato,nemoinstrumentousado,nemofimquehádealcançar(por exemplo, em quem bate, com que e com que fim); além disso, cada umdessesatosnãodeveseracidentalnemforçado(se,porexemplo,AtomaamãodeBecomelabateemC,Bnãoagiuvoluntariamente,poisoatonãodependiadele).

Apessoaatingidapodeseropaidoagressor,eestepodesaberquebateunumhomemounumadaspessoaspresentes, ignorando,noentanto,que se tratadeseupai.Umadistinçãodomesmogênerosedevefazerquantoaofimdaaçãoeàação em sua totalidade. Por conseguinte, aquilo que se faz na ignorância, ouemborafeitocomconhecimentodecausa,nãodependedoagente,ouqueéfeitosob coação, é involuntário (pois há, até, muitos processos naturais que nóscientemente realizamoseexperimentamos,enenhumdosquais,noentanto, sepodequalificardevoluntárioouinvoluntário,como,porexemplo,envelheceroumorrer).

Mastantonocasodosatosjustoscomodosinjustos,ainjustiçaoujustiçapodeser apenas acidental; pois pode acontecer que um homem restituainvoluntariamenteoupormedoumvalordepositadoemsuasmãos,enessecasonãosedevedizerqueelepraticouumatode justiçaouqueagiu justamente,anãoserdemodoacidental.Damesmaforma,aquelequesobcoaçãoecontraasuavontadedeixade restituirovalordepositado,agiu injustamenteecometeuumatodeinjustiça,masapenasporacidente.

Dosatosvoluntários,praticamosalgunsporescolhaeoutrosnão;porescolha,osque praticamos após deliberar, e por não escolha os que praticamos semdeliberaçãoprévia.

Há, por conseguinte, três espécies de dano nas transações entre um homem eoutro. Os que são infligidos por ignorância são enganos quando a pessoaatingida pelo ato, o próprio ato, o instrumento ou o fim a ser alcançado sãodiferentes do que o agente supõe: ou o agente pensou que não ia atingirninguém, ou que não ia atingir com determinado objeto, ou a determinadapessoa,oucomoresultadoquelhepareciaprovável(porexemplo,seatiroualgonãocomopropósitodeferir,masdeincitar,ouseapessoaatingidaouoobjetoatiradonãoeramosqueelesupunha).Ora,quandoodanoocorrecontrariandooque era razoavelmente de esperar, é um infortúnio. Quando não é contrário auma expectativa razoável, mas tampouco implica vício, é um engano (pois oagente comete um engano quando a falta procede dele, mas é vítima de umacidentequandoacausalheéexterior).Quandoagecomoconhecimentodoquefaz,massemdeliberaçãoprévia,éumatodeinjustiça:porexemplo,osqueseoriginamdacóleraoudeoutraspaixõesnecessáriasounaturaisaohomem.Comefeito,quandooshomenspraticamatosnocivoseerrôneosdestaespécie,ageminjustamente, e seusatos sãoatosde injustiça,mas issonãoquerdizerqueosagentessejaminjustosoumalvados,poisqueodanonãosedeveaovício.Mas

quandoumhomemageporescolha,éeleumhomeminjustoevicioso.

Por isso, é com razão que se consideram os atos originados da cólera comoimpremeditados,poisacausadomalnãofoiohomemqueagiusoboimpulsodacólera,masaquelequeoprovocou.Alémdisso,oobjetodadisputanãoéseacoisa aconteceuoudeixoude acontecer,mas se é justa ounão; pois foi a suaaparente injustiça que provocou a ira. Com efeito, eles não disputam sobre aocorrênciadoato(comonastransaçõescomerciaisemqueumadasduaspartesforçosamente agiu de má fé), a menos que o façam por esquecimento; mas,estando concordes a respeito do fato, disputam sobre qual deles está com ajustiça (ao passo que um homem que deliberadamente prejudicou a outro nãopodeignorartalcoisa);deformaqueumpensaestarsendoinjustamentetratadoeooutrodiscordadessaopinião.

Mas,seumhomemprejudicaaoutroporescolha,ageinjustamente;esãoestesos atos de injustiça que caracterizam os seus perpetradores como homensinjustos,contantoqueoatovioleaproporçãoouaigualdade.Domesmomodo,umhomemé justoquandoage justamentepor escolha;masage justamente sesuaaçãoéapenasvoluntária.

Dosatosvoluntários,algunssãodesculpáveiseoutrosnão.Comefeito,oserrosqueoshomenscometemnãoapenasnaignorânciamastambémporignorânciasão desculpáveis, enquanto os que não se devem à ignorância (embora sejamcometidosna ignorância),mas aumapaixãoqueneménatural, nem se contaentreaquelasaqueogênerohumanoestásujeito—essessãoindesculpáveis.

9

Dando como suficientemente definidos o que sejam cometer injustiça e servitima dela, pode-se perguntar se a verdade está expressa nas palavrasparadoxaisdeEurípedes:

Mateiminhamãe;eisomeucaso,emsuma.

Fizeste-loporvossoquerer,oucompesardeambos?

Serámesmo possível sermos tratados injustamente por nosso querer, ou, pelocontrário, será involuntária toda injustiça sofrida, como toda ação injusta é

voluntária?Eserátodainjustiçasofridadasegundaespécieoudaprimeira,ouàsvezesvoluntáriaeoutrasvezesinvoluntária?Edomesmomodonoqueserefereaosertratadocomjustiça:comotodaaçãojustaévoluntária,seriarazoávelquehouvesseumaoposiçãosemelhanteemcadaumdosdoiscasos:quetantoosertratado com justiça como com injustiça fossem igualmente voluntários ouinvoluntários. Mas pareceria paradoxal, mesmo no caso de ser tratado comjustiça,queissofossesemprevoluntário,poisécontraasuavontadequealgunssãojustamentetratados.

Poder-se-ialevantarestaoutraquestão:todososquesofreminjustiçaestãosendoinjustamentetratados,ouocorrerácomapassividadea.mesmacoisaquecomaação?Tantonumacomonaoutraépossívelparticiparacidentalmentedajustiça,e,domesmomodo(comoéevidente),dainjustiça.Comefeito,praticarumatoinjustonão éomesmoque agir injustamente, nem sofrer injustiça é omesmoqueserinjustamentetratado;eomesmoocorrequantoaoagirinjustamenteeaoserjustamentetratado,poiséimpossívelserinjustamentetratadoseooutronãoage injustamente, ou ser justamente tratado a não ser que ele aja com justiça.Ora,seagirinjustamentenãoémaisqueprejudicarvoluntariamenteaalguém,e"voluntariamente"significa"comconhecimentodapessoaatingidapelaação,doinstrumentoedamaneirapelaqual seage",eohomemincontinenteprejudicavoluntariamenteasimesmo,nãosóeleseráinjustamentetratadoporseuquerercomotambémserápossíveltratarasimesmoinjustamente.(Estapossibilidadedetratarinjustamenteasimesmoéumadasquestõesaseremdebatidas).

Poroutrolado,umhomempodevoluntariamente,devidoàincontinência,sofreralgum mal da parte de outro que age voluntariamente, de modo que seriapossível ser injustamente tratado por seu próprio querer. Ou porventura éincorretaanossadefinição,ea"fazermalaoutro,comconhecimentodapessoaatingidapelaação,do instrumentoedamaneira" faz-se importanteacrescentar"contraavontadedapessoaatingidapelarazão"?Assim,umhomempoderiaservoluntariamente prejudicado e voluntariamente sofrer injustiça, mas ninguémseriainjustamentetratadoporseuquerer;poisninguémdesejaserinjustamentetratado,nemmesmoohomemincontinente.

Essehomemagecontrariamenteaoseudesejo,poisninguémdesejaoquejulganãoserbom,masohomemincontinentedefatofazcoisasquepensanãodeverfazer. E, por outro lado, quem dá o que lhe pertence, como Homero diz queGlaucodeuaDiômedesarmaduradeouroporarmaduradebronzeeopreçodecemboispornove,nãoéinjustamentetratado;porque,seodardependedele,o

ser injustamente tratado não depende: para isso é preciso haver alguémque otrate injustamente. Torna-se claro, pois, que o ser injustamente tratado não évoluntário.

Das questões que tencionávamos discutir restam ainda duas: se quem ageinjustamente é o homemque confere a outro um quinhão superior ao que lhecabeouoqueficoucomoquinhãoexcessivo,eseépossíveltratarinjustamentea simesmo. Estas questões sãomutuamente conexas porquanto se a primeiraalternativaépossívelequemage injustamenteéopartilhadorenãoohomemque ficou coma parte excessiva, então, se umhomemvoluntariamente e comconhecimentodecausaatribuiaoutromaisdoqueasimesmo,essehomemtrataasimesmoinjustamente;eéoqueparecemfazeraspessoasmodestas,jáqueohomem virtuoso tende a tomarmenos que a sua parte justa. Ou será tambémprecisopôrrestriçõesaoqueacabamosdedizer?Comefeito,eletalvezobtenhaum quinhãomaior de algum outro bem, como, por exemplo, de honra ou denobrezaintrínseca.Aquestãoéresolvidaaplicando-seadistinçãoqueFizemosnotocanteàaçãoinjusta,poisqueelenãosofrenadacontrárioaoseudesejo,eassimnãoéarigorinjustamentetratado,mas,nomáximo,sofreumdano.

É evidente, por outro lado, que o partilhador age injustamente,mas isso nemsempre é verdadeiro do homem que recebeu a parte excessiva; porque não éaqueleaquemcabeo injustoqueage injustamente,masaqueleaquemcoubepraticarvoluntariamenteoatoinjusto,istoé,apessoanaqualresideaorigemdaação;eestaresidenopartilhador,enãonoaquinhoado.Poroutrolado,comoapalavra "fazer" é ambígua, e de coisas inanimadas, de uma mão ou de umescravo que executa uma ordem se pode dizer em certo sentido quemataram,aquelequerecebeuumquinhãoexcessivonãoageinjustamente,embora"faça"oqueéinjusto.

Aindamais: se o partilhador decidiu na ignorância, não age injustamente comrespeitoà justiça legalesuadecisãonãoé injustanestesentido,masemoutrosentido é realmente injusta (pois a justiça legal e a justiça primordial diferementresi);masse,comconhecimentodecausa, julgouinjustamente,eleprópriotem em vista um quinhão excessivo, quer de gratidão, quer de vingança. Ohomemque julgou injustamenteporestas razões recebeu,porconseguinte,umquinhãoexcessivo,talqualcomosehouvesseparticipadonapilhagem;ofatodereceber algo diferente daquilo que distribui não vem ao caso, pois tambémquandoconcedeterrascomvistasemparticipardapilhagem,oquerecebenãoéterra,masdinheiro.

Os homens pensam que, como o agir injustamente depende deles, é fácil serjusto.Enganam-se, contudo: irparaa camacomamulherdovizinho, ferirousubornaralguéméfáciledependedenós,masfazeressascoisasemresultadodeuma disposição de caráter nem é fácil nem está em nosso poder. Do mesmomodo, conhecer o que é justo e o que é injusto não exige grande sabedoria,segundopensamoshomens,porquenãoédifícilcompreenderosassuntossobrequeversaalei(emboranãosejamessasascoisasjustas,salvoacidentalmente).Massabercomosedeveagirecomoefetuardistribuiçõesa fimdeser justoémais difícil do que saber o que faz bem à saúde; se bem que mesmo nesteterreno,emboranãodêgrandetrabalhoaprenderqueomel,ovinho,oheléboro,ocautérioeousodafacatêmtalefeito,osabercomo,aquemeemqueocasiãoessascoisasdevemseraplicadascomvistasemproduzirasaúdenãoémenosdifícildoquesermédico.

Aindamais:porestamesmarazãojulgamoshomensqueagirinjustamenteétãoprópriodohomemjustocomodoinjusto,poisaquelenãoseriamenos,senãoatémaiscapazdecometercadaumdessesatosinjustos;comefeito,ohomemjustopoderia deitar-se com umamulher ou ferir o seu vizinho, e o valente poderiajogar forao seuescudoepôr-se em fuga.Mas fazerpapeldecovardeouagirinjustamentenãoconsisteempraticaressascoisas,salvoporacidente,esimempraticá-lascomoresultadodecertadisposiçãodecaráter,domesmomodoqueexerceramedicinaecurarnãoconsisteemaplicaroudeixardeaplicarafaca,nememusaroudeixardeusarmedicamentos,masemfazeressascoisasdecertamaneira.

Os atos justos ocorrem entre pessoas que participam de coisas boas em si epodem ter uma parte excessiva ou excessivamente pequena delas; porque aalgunsseres (comoaosdeuses,presumivelmente)nãoépossível terumaparteexcessivadetaiscoisas,eaoutros,istoé,osincuravelmentemaus,nemamaismínima parte seria benéfica, mas todos os bens dessa espécie são nocivos,enquantopara outros sãobenéficos dentro de certos limites.Donde se concluiqueajustiçaéalgoessencialmentehumano.

10

O assuntoque se segue é a equidade e o equitativo (t??p?e????) e respectivasrelações com a justiça e o justo. Porquanto essas coisas não parecem ser

absolutamenteidênticasnemdiferirgenericamenteentresi;e,emboralouvemosporvezesoequitativoeohomemequitativo(eatéaplicamosessetermocomoexpressão laudatória a exemplo de outras virtudes, significando por ?p?e???stepovqueumacoisaémelhor),emoutrasocasiões,pensandobem,nospareceestranhoqueoequitativo,emboranãoseidentifiquecomojusto,sejadignodelouvor;porque,seojustoeoequitativosãodiferentes,umdelesnãoébom;e,sesãoambosbons,têmdeseramesmacoisa.

Sãoestas,pois,aproximadamente,asconsideraçõesquedãoorigemaoproblemaemtornodoequitativo.Emcertosentido,todaselassãocorretasenãoseopõemumasàsoutras;porqueoequitativo,emborasuperioraumaespéciedejustiça,éjusto, e não é como coisa de classe diferente que émelhor do que o justo.Amesma coisa, pois, é justa e equitativa, e, embora ambos sejam bons, oequitativoésuperior.

Oquefazsurgiroproblemaéqueoequitativoéjusto,porémnãoolegalmentejusto, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei éuniversal,mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmaçãouniversalquesejacorreta.Noscasos,pois,emqueénecessáriofalardemodouniversal,masnãoépossívelfazê-locorretamente,a leiconsideraocasomaisusual,sebemquenãoignoreapossibilidadedeerro.Enemporissotalmododeprocederdeixadesercorreto,poisoerronãoestánalei,nemnolegislador,masnanaturezadaprópriacoisa, jáqueosassuntospráticossãodessaespéciepornatureza.

Portanto, quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não éabrangidopeladeclaraçãouniversal,éjusto,umavezqueolegisladorfalhoueerrou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão— era outras palavras,dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teriaincluídonaleisetivesseconhecimentodocaso.

Por isso o equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça—não justiçaabsoluta,masaoerroprovenientedocaráterabsolutodadisposiçãolegal.Eessaéanaturezadoequitativo:umacorreçãodaleiquandoelaédeficienteemrazãodasuauniversalidade.E,mesmo,éesseomotivoporquenemtodasascoisassãodeterminadaspela lei:emtornodealgumasé impossível legislar,demodoque se faz necessário um decreto. Com efeito, quando a coisa é indefinida, aregra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar asmolduraslésbicas:aréguaadapta-seàformadapedraenãoérígida,exatamente

comoodecretoseadaptaaosfatos.

Torna-seassimbemclarooquesejaoequitativo,queeleéjustoeémelhordoqueumaespéciedejustiça.Evidencia-setambém,peloquedissemos,quemsejaohomemequitativo:ohomemqueescolheepraticataisatos,quenãoseaferraaosseusdireitosemmausentido,mastendeatomarmenosdoqueseuquinhãoemboratenhaaleiporsi,éequitativo;eessadisposiçãodecaráteréaequidade,queéumaespéciedejustiçaenãoumadiferentedisposiçãodecaráter.

11

Seumhomempodeounãotratarinjustamenteasimesmo,ficasuficientementeclaropeloqueficouditoatrás.Comefeito,umaclassedeatosjustossãoosatosqueestãoemconsonânciacomalgumavirtudeequesãoprescritospelalei:porexemplo,aleinãopermiteexpressamenteosuicídio,eoquealeinãopermiteexpressamente,elaoproíbe.Poroutrolado,quandoumhomem,violandoalei,causa dano a outro voluntariamente (excetuados os casos de retaliação), essehomemageinjustamente;eumagentevoluntárioéaquelequeconhecetantoapessoaaquematingecomoseuatocomooinstrumentoqueusa:equem,levadopela cólera, voluntariamente se apunhala, pratica esse ato contrariando a retarazãodavida,tissoaleinãopermite;portanto,eleageinjustamente.Masparacomquem?CertamentequeparacomoEstado,enãoparaconsigomesmo.Porque ele sofre voluntariamente, e ninguém é voluntariamente tratado cominjustiça. Por essamesma razão, o Estado pune o suicida, infligindo-lhe certaperdadedireitoscivis,poisqueeletrataoEstadoinjustamente.

Alémdisso,naquelesentidode"agirinjustamente"emqueohomemqueassimprocede é apenas injusto e não completamente mau, não é possível tratarinjustamenteasimesmo.Comefeito,estesentidodiferedoanterior;ohomeminjusto,numadasacepçõesdotermo,émaudeumamaneiraparticularizada,talqualcomoocovarde,enãonosentidodesercompletamentemau,deformaqueo seu "ato injusto" nãomanifestamaldade em geral. Porque isso implicaria apossibilidade de ter sido amesma coisa simultaneamente subtraída de outra eacrescentada a ela;mas isso é impossível, poisqueo justo eo injusto sempreenvolvem mais de uma pessoa. Por outro lado, a ação injusta é voluntária epraticadaporescolha,alémdeaelapertencerainiciativa(porquenãosedizqueagiu injustamenteohomemque, tendosofridoummal, retribuicomomesmo

mal);masaquelequefazdanoasimesmosofreepraticaasmesmascoisasaomesmo tempo. Além disso, se um homem pudesse tratar injustamente a simesmo,poderiasertratadoinjustamenteporseuquerer.E,porfim,ninguémageinjustamente sem cometer atos específicos de injustiça; mas ninguém podecometer adultério com sua própria esposa, nem assaltar a sua própria casa oufurtarosseusprópriosbens.

De um modo geral, a questão: "pode um homem tratar injustamente a simesmo?"é tambémrespondidapeladistinçãoqueaplicamosaoutrapergunta:"podeumhomemserinjustamentetratadoporseuquerer”?

Étambémevidentequesãomásambasascoisas:serinjustamentetratadoeagirinjustamente; porque uma significa ter menos e a outra ter mais do que aquantidademediana, que desempenha aqui omesmo papel que o saudável naartemédicaeaboacondiçãonaartedo treinamento físico.Nãoobstante,agirinjustamente é pior, pois envolve vício emerece censura. E tal vício ou é daespécie completa e irrestrita, ou poucomenos (devemos admitir esta segundaalternativa, porque nem toda ação injusta voluntária implica a injustiça comodisposição de caráter), enquanto ser injustamente tratado não envolve vício einjustiça na própria pessoa. Em si mesmo, por conseguinte, ser injustamentetratado é menos mau, porém nada impede que seja acidentalmente um malmaior. Isso, contudo, não interessa à teoria, que considera a pleuris um malmaior do que um tropeção, muito embora este último possa tornar-seacidentalmente mais grave, se a consequente queda é causa de ser o homemcapturadooumortopeloinimigo.

Metaforicamente e em virtude de certa analogia, há uma justiça não entre umhomemeelemesmo,masentrecertaspartessuas.Nãosetrata,noentanto,deumajustiçadequalquerespécie,masdaquelaqueprevaleceentreamoeescravoouentremaridoemulher.Poistaissãoasrelaçõesqueaparteracionaldaalmaguardaparacomaparteirracional;eélevandoemcontaessaspartesquemuitospensamqueumhomempodeserinjustoparaconsigomesmo,asaber:porqueaspartesemapreçopodemsofreralgumacoisacontráriaaosseusdesejos.Pensa-se,por isso,queexisteumajustiçaimútuaentreelas,comoentregovernanteegovernado.

Eaquiterminaanossaexposiçãodajustiçaedasoutrasvirtudes—istoé,dasoutrasvirtudesmorais.

LIVROVI

1

Comodissemosanteriormentequesedevepreferiromeio-termoenãooexcessoouafalta,equeomeio-termoedeterminadopelosditamesdaretarazão,vamosdiscutiragoraanaturezadessesditames.

Emtodasasdisposiçõesdecaráterquemencionamos,assimcomoemiodososdemais assuntos, há umameta a que visa o homem orientado pela razão, oraintensificando,orarelaxandoasuaatividade;eháumpadrãoquedeterminaosestadosmedianosquedizemosseremosmeios-termosentreoexcessoeafalta,eque estão em consonância com a reta razão.Mas, assim dita a coisa, emboraverdadeira,nãoédemodoalgumevidente;poisnãosóaquicomoemtodasasoutras ocupações que são objetos de conhecimento é correto afirmar que nãodevemos esforçar-nos nem relaxar nossos esforços em demasia nemdemasiadamente pouco, mas em grau mediano e conforme dita a reta razão.Entretanto,seumhomempossuísseapenasesseconhecimento,nãosaberiamaisnada:porexemplo,nãosaberíamosqueespéciesdemedicamentoaplicaraoseucorposealguémdissesse:"todosaquelesqueaartemédicaprescreveequeestãodeacordocomapráticadequempossuiaarte".Énecessário,pois,comrespeitoàs disposições da alma, não só que se faça essa declaração verdadeira, mastambémquesedefinaoquesejamajustaregraeopadrãoqueadetermina.

Dividimosasvirtudesdaalma,dizendoquealgumas sãovirtudesdocaráter eoutras do intelecto. Agora que acabamos de discutir em detalhe as virtudesmorais, exponhamos nosso ponto de vista relativo às outras da maneira quesegue,começandoporfazeralgumasobservaçõesarespeitodaalma.

Dissemosanteriormentequeesta temduaspartes:aqueconcebeumaregraouprincípio racional, e a privada de razão. Façamos uma distinção simples nointerior da primeira, admitindo que sejam duas as partes que conceberam umprincípio racional: uma pela qual contemplamos as coisas cujas causasdeterminantes são invariáveis, e outra pela qual contemplamos as coisasvariáveis;porque,quandodoisobjetosdiferememespécie,aspartesdaalmaque

correspondemacadaumdeles tambémdiferememespécie,vistoserporcertasemelhançaeafinidadecomosseusobjetosqueelasosconhecem.Chamemoscientíficaaumadessaspartesecalculativaàoutra,poisomesmosãodeliberarecalcular,masninguémdeliberasobreoinvariável.Porconseguinte,acalculativaéumapartedafaculdadequeconcebeumprincípioracional.Devemos,assim,investigarqualsejaomelhorestadodecadaumadessasduaspartes,poisneleresideavirtudedecadauma.

2

Avirtudedeumacoisaérelativaaoseufuncionamentoapropriado.Ora,naalmaexistemtrêscoisasquecontrolamaaçãoeaverdade:sensação,razãoedesejo.

Destastrês,asensaçãonãoéprincípiodenenhumaação:bemomostraofatodeosanimaisinferiorespossuíremsensação,masnãoparticiparemdaação.

Aafirmaçãoeanegaçãonoraciocíniocorrespondem,nodesejo,aobuscareaofugir;demodoque,sendoavirtudemoralumadisposiçãodecaráterrelacionadacom a escolha, e sendo a escolha um desejo deliberado, tanto deve serverdadeirooraciocíniocomoretoodesejoparaqueaescolhasejaacertada,eosegundodevebuscarexatamenteoqueafirmaoprimeiro.

Ora, esta espécie de intelecto e de verdade é prática. Quanto ao intelectocontemplativo, e não prático nem produtivo, o bom e o mau estado são,respectivamente, a verdade e a falsidade (pois essa é a obra de toda a parteracional);masdaparteprática e intelectualobomestadoé a concordânciadaverdadecomoretodesejo.

Aorigemdaação—suacausaeficiente,nãofinal—éaescolha,eadaescolhaéodesejoeoraciocíniocomumfimemvista.Eisaíporqueaescolhanãopodeexistir nem sem razão e intelecto, nem semumadisposiçãomoral; pois a boaaçãoeoseucontrárionãopodemexistirsemumacombinaçãodeintelectoedecaráter.Ointelectoemsimesmo,porém,nãomovecoisaalguma;sópodefazê-lo o intelecto prático que visa a um fim qualquer. E isto vale também para ointelectoprodutivo, jáquetodoaquelequeproduzalgumacoisaofazcomumfimemvista;eacoisaproduzidanãoéumfimnosentidoabsoluto,masapenasumfimdentrodeumarelaçãoparticular,eofimdeumaoperaçãoparticular.Sóo que se pratica é um fim irrestrito; pois a boa ação é um fim ao qual visa o

desejo.

Portanto, a escolha ou é raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo, e aorigemdeumaaçãodessaespécieéumhomem.Deve-seobservarquenenhumacoisapassadaéobjetodeescolha;porexemplo,ninguémescolhe tersaqueadoTróia,porqueninguémdeliberaarespeitodopassado,massóarespeitodoqueestá para acontecer e pode ser de outra forma, enquanto o que é passado nãopodedeixardehaverocorrido;porissoAgatãotinharazãoemdizer:

PoissomenteistoéaopróprioDeusvedado:

Ofazernãosucedidooqueumavezaconteceu.

Comoacabamosdever,aobradeambasaspartesintelectuaiséaverdade.Logo,asvirtudesdeambasserãoaquelasdisposiçõessegundoasquaiscadaumadelasalcançaráaverdadeemsumograu.

3

Comecemos, pois, pelo princípio, discutindomais uma vez essas disposições.Dê-seporestabelecidoqueasdisposiçõesemvirtudedasquaisaalmapossuiaverdade, quer afirmando, quer negando, são em número de cinco: a arte, oconhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razãointuitiva(nãoincluímosojuízoeaopiniãoporqueestespodemenganar-se).

Ora, o que seja o conhecimento científico, se quisermos exprimir-nos comexatidão e não nos guiar por meras analogias, evidencia-se pelo que segue.Todosnóssupomosqueaquiloquesabemosnãoécapazdeserdeoutraforma.Quantoàscoisasquepodemserdeoutraforma,nãosabemos,quandoestãoforadonossocampodeobservação,seexistemounãoexistem.Porconseguinte,oobjetodeconhecimentocientíficoexistenecessariamente;dondeseseguequeéeterno,poistodasascoisasqueexistempornecessidadenosentidoabsolutodotermosãoeternas,eascoisaseternassãoingênitaseimperecíveis.

Por outro lado, julga-se que toda ciência pode ser ensinada e seu objeto,aprendido.Etodoensinopartedoquejáseconhece,comosustentamostambémnosAnalíticos.Comefeito,oensinoprocedeàsvezesporinduçãoeoutrasvezesporsilogismo.Ora,ainduçãoéopontodepartidaqueopróprioconhecimento

douniversalpressupõe,enquantoosilogismoprocededosuniversais.Existem,assim,pontosdepartidadeondeprocedeosilogismoequenãosãoalcançadosporeste.Logo,éporinduçãoquesãoadquiridos.

Em suma, o conhecimento científico é um estado que nos torna capazes dedemonstrar,epossuiasoutrascaracterísticas limitativasqueespecificamosnosAnalíticos,poiséquandoumhomemtemcertaespéciedeconvicção,alémdeconhecerospontosdepartida, quepossui conhecimento científico.E, se estesnão lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusão, sua ciência serápuramenteacidental.

Comistodamosporterminadanossaexposiçãodoconhecimentocientífico.

4

Naclassedovariávelincluem-setantocoisasproduzidascomocoisaspraticadas.Há uma diferença entre produzir e agir (quanto à natureza de ambos,consideramoscomoassenteoque temosditomesmoforadenossaescola);desortequeacapacidaderaciocinadadeagirdiferedacapacidaderaciocinadadeproduzir. Daí, também, o não se incluírem uma na outra, porque nem agir éproduzir,nemproduziréagir.

Ora, como a arquitetura é uma arte, sendo essencialmente uma capacidaderaciocinadadeproduzir,enemexisteartealgumaquenãosejaumacapacidadedestaespécie,nemcapacidadedestaespéciequenãosejaumaarte,segue-sequeaarteéidênticaaumacapacidadedeproduzirqueenvolveoretoraciocínio.

Todaartevisaàgeraçãoeseocupaeminventareemconsiderarasmaneirasdeproduziralgumacoisaque tantopodesercomonãoser,ecujaorigemestánoqueproduz,enãonoqueéproduzido.Comefeito,aartenãoseocupanemcomascoisasquesãoouquesegerampornecessidade,nemcomasqueofazemdeacordocomanatureza(poisessastêmsuaorigememsimesmas).

Diferindo,pois,oproduzireoagir,aartedeveserumaquestãodeproduzirenãodeagir;eemcertosentido,oacasoeaarteversamsobreasmesmascoisas.ComodizAgatão:"Aarteamaoacaso,eoacasoamaaarte".Logo,como jádissemos,aarteéumadisposiçãoqueseocupadeproduzir,envolvendooretoraciocínio;eacarênciadearte,pelocontrário,étaldisposiçãoacompanhadade

falso raciocínio. E ambas dizem respeito às coisas que podem serdiferentemente.

5

No que tange à sabedoria prática, podemos dar-nos conta do que sejaconsiderandoaspessoasaquemaatribuímos.

Ora, julga-se que é cunho característico de um homem dotado de sabedoriapráticaopoderdeliberarbemsobreoqueébomeconvenienteparaele,nãosobum aspecto particular, como por exemplo sobre as espécies de coisas quecontribuemparaasaúdeeovigor,massobreaquelasquecontribuemparaavidaboa em geral. Bem o mostra o fato de atribuirmos sabedoria prática a umhomem, sob um aspecto particular, quando ele calculou bem com vistas emalgumafinalidadeboaquenãoseincluientreaquelasquesãoobjetodealgumaarte.

Segue-sedaíque,numsentidogeral,tambémohomemqueécapazdedeliberarpossuisabedoriaprática.Ora,ninguémdeliberasobrecoisasquenãopodemserdeoutromodo,nemsobreasquelheéimpossívelfazer.Porconseguinte,comooconhecimentocientíficoenvolvedemonstração,masnãohádemonstraçãodecoisas cujos primeiros princípios são variáveis (pois todas elas poderiam serdiferentemente), e como é impossível deliberar sobre coisas que são pornecessidade, a sabedoria prática não pode ser ciência, nem arte: nem ciência,porqueaquiloquesepodefazerécapazdeserdiferentemente,nemarte,porqueo agir e o produzir são duas espécies diferentes de coisa. Resta, pois, aalternativa de ser ela uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir comrespeitoàscoisasquesãoboasoumásparaohomem.

Comefeito,aopassoqueoproduzirtemumafinalidadediferentedesimesmo,isso não acontece como agir pois que a boa ação é o seu próprio fim.Daí oatribuirmossabedoriapráticaaPériclesehomenscomoele,porquepercebemoqueébomparasimesmoseparaoshomensemgeral:pensamosqueoshomensdotadosdetalcapacidadesãobonsadministradoresdecasasedeEstados.Eporissomesmodamos à temperançaonomede s?f??s???, subentendendoque elapreservaanossasabedoria?????satt?f????s??.

Ora, o que a temperança preserva um juízo da espécie que descrevemos

Porquanto nem todo e qualquer juízo é destruído e pervertido pelos objetosagradáveisoudolorosos:nãooé,porexemplo,ojuízoarespeitodeterosnãoterotriânguloseusângulosiguaisadoisângulosretos,masapenasosjuízosemtornodoquesehádefazerComefeito,ascausasdeondeseoriginaoquesefazconsistemnosfinsvisados;masohomemquefoipervertidopeloprazeroupeladorperdeimediatamentedevistaessascausas:nãopercebemaisqueéabemdetal coisa ou devido a tal coisa que deve escolher e fazer aquilo que escolhe,porqueovícioanulaacausaoriginadoradaação.

Asabedoriapráticadeve,pois,serumacapacidadeverdadeiraeraciocinadadeagircomrespeitoaosbenshumanos.Mas,poroutrolado,emboranaartepossahaverumaexcelência,nasabedoriapráticaelanãoexiste;eemarteépreferívelquem erra voluntariamente, enquanto na sabedoria prática, assim como nasoutrasvirtudes,éexatamenteocontrárioqueacontece.

Torna-seevidente,pois,queasabedoriapráticaéumavirtudeenãoumaarte.E,como sãoduas as partes da almaque seguiampelo raciocínio, ela deve ser avirtudedeumadessasduas, istoé,daquelapartequeformaopiniões;porqueaopinião versa sobre o variável, e da mesma forma a sabedoria prática. Semembargo,elaémaisdoqueumasimplesdisposiçãoracional:mostra-oofatodequetaisdisposiçõespodemseresquecidas,masasabedoriaprática,não.

6

O conhecimento científico é um juízo sobre coisas universais e necessárias, etantoasconclusõesdademonstraçãocomooconhecimentocientíficodecorremde primeiros princípios (pois ciência subentende apreensão de uma baseracional). Assim sendo, o primeiro princípio de que decorre o que écientificamenteconhecidonãopodeserobjetodeciência,nemdearte,nemdesabedoriaprática;poisoquepode ser cientificamente conhecidoépassíveldedemonstração, enquanto a arte e a sabedoria prática versam sobre coisasvariáveis. Nem são esses primeiros princípios objetos de sabedoria filosófica,poisécaracterísticodofilósofobuscarademonstraçãodecertascoisas.Se,porconseguinte,asdisposiçõesdamentepelasquaispossuímosaverdadeejamaisnos enganamos a respeito de coisas invariáveis oumesmovariáveis—se taisdisposições,digo,sãooconhecimentocientífico,asabedoriaprática,asabedoriafilosóficaearazãointuitiva,enãopodetratar-sedenenhumadastrês(istoé,da

sabedoria prática, do conhecimento científico ou da sabedoria filosófica), sóresta uma alternativa: que seja a razão intuitiva que apreende os primeirosprincípios.

7

A sabedoria, nas artes, é atribuída aos seus mais perfeitos expoentes, porexemplo, aFídias comoescultor e aPolicleto como retratista empedra; e porsabedoria,aqui,nãoentendemosoutracoisa senãoaexcelêncianaarte.Masacertas pessoas consideramos sábias de modo geral e não em algum campoparticular ou sob qualquer outro aspecto limitado, como diz Homero noMargites:

Nemlavrador,nemmesmocavadorfizeramosdeusesestehomem,

Nemsábioemoutracoisaqualquer.

Époisevidentequeasabedoriadeveserdetodasasformasdeconhecimentoamaisperfeita.Dondeseseguequeohomemsábionãoapenasconheceráoquedecorre dos primeiros princípios, senão que também possuirá a verdade arespeito desses princípios. Logo, a sabedoria deve ser a razão intuitivacombinada com o conhecimento científico— uma ciência dosmais elevadosobjetosquerecebeu,porassimdizer,aperfeiçãoquelheéprópria.

Dosmaiselevadosobjetos,dizemosnós,porqueseriaestranhoseaartepolíticaouasabedoriapráticafosseomelhordosconhecimentos,umavezqueohomemnãoéamelhorcoisadomundo.Ora,seoqueésaudáveloubomdifereparaoshomenseospeixes,masoqueébrancoouretoésempreomesmo,qualquerumdiriaqueoqueésábioéomesmo,masoqueépraticamentesábiovaria;poiséàquelequeobservabemasdiversascoisaquelhedizemrespeitoqueatribuímossabedoriaprática,eéaelequeconfiaremostaisassuntos.Porissodizemosqueaté alguns animais inferiores possuem sabedoria prática, isto é, aqueles quemostrampossuircertopoderdeprevisãonoquetocaàsuaprópriavida.

Éevidente,poroutro lado,queasabedoriapráticaeaartepolíticanãopodemseramesmacoisa;porque,sedevemoschamarsabedoriafilosóficaàdisposiçãomental que seocupa comos interessespessoaisdeumhomem,haverámuitassabedorias filosóficas. Não existirá uma relativa ao bem de todos os animais

(assimcomonão existe uma artemédicapara todas as coisas existentes),masumasabedoriafilosóficadiferentesobreobemdecadaespécie.

Eseargumentaremdizendoqueohomeméomelhordosanimais,issonãofazdiferença,porqueháoutrascoisasmuitomaisdivinasporsuanaturezadoqueohomem: o exemplomais conspícuo são os corpos de que foram povoados oscéus. De quanto se disse resulta claramente que a sabedoria filosófica é umconhecimento científico combinado com a razão intuitiva daquelas coisas quesãoasmaiselevadaspornatureza.PorissodizemosqueAnaxágoras,Taleseoshomens semelhantes a eles possuem sabedoria filosófica, mas não prática,quando os vemos ignorar o que lhes é vantajoso; e tambémdizemos que elesconhecemcoisasnotáveis,admiráveis,difíceisedivinas,masimprofícuas.Isso,porquenãosãoosbenshumanosqueelesprocuram.

A sabedoria prática, pelo contrário, versa sobre coisas humanas, e coisas quepodemserobjetodedeliberação;poisdizemosqueessaéacimadetudoaobradohomemdotadodesabedoriaprática:deliberarbem.Masninguémdeliberaarespeitodecoisasinvariáveis,nemsobrecoisasquenãotenhamumafinalidade,e essa finalidade; um bem que se possa alcançar pela ação. De modo quedeliberabemnosentidoirrestritodapalavraaqueleque,baseando-senocálculo,écapazdevisaràmelhor,paraohomem,dascoisasalcançáveispelaação.

Tampouco a sabedoria prática se ocupa apenas com universais.Deve tambémreconhecerosparticulares,poiselaéprática,eaaçãoversasobreosparticulares.É por isso que alguns que não sabem, e especialmente os que possuemexperiência,sãomaispráticosdoqueoutrosquesabem;porque,seumhomemsoubesse que as carnes leves são digestíveis e saudáveis, mas ignorasse queespéciesdecarnessãoleves,essehomemnãoseriacapazdeproduzirasaúde;poderia,pelocontrário,produzi-laoquesabesersaudávelacarnedegalinha.

Ora,asabedoriapráticadizrespeitoàação.Portanto,deveríamospossuirambasasespéciesdesabedoria,ouasegundadepreferênciaàprimeira.Mastantodasabedoriapráticacomodafilosóficadevehaverumaespéciecontroladora.

8

Asabedoriapolíticaeapráticasãoamesmadisposiçãomental,massuaessêncianãoéamesma.Dasabedoriaquedizrespeitoàcidade,asabedoriapráticaque

desempenhaumpapel controladoréa sabedoria legislativa, enquantoaque serelacionacomosassuntosdacidadecomoparticularesdentrodoseuuniversaléconhecidapeladenominaçãogeralde"sabedoriapolítica"eseocupacomaaçãoeadeliberação,poisumdecretoéalgoaserexecutadosobaformadeumatoindividual.Eisaíporquesódosexpoentesdessaartesedizque"tomampartenapolítica";porquesóeles"produzemcoisas",comoasproduzemostrabalhadoresmanuais.

A sabedoria prática também é identificada especialmente com aquela de suasformasquedizrespeitoaoprópriohomem,aoindivíduo;eessaéconhecidapeladenominaçãogeralde"sabedoriaprática".Dasoutrasespécies,umaéchamadaadministraçãodoméstica,outra, legislação,ea terceira,política, edestaúltimaumapartesechamadeliberativaeaoutra,judicial.

Ora,saberoqueébomparasiéumaespéciedeconhecimento,masdiferemuitodasoutrasespécies;eaohomemqueconheceosseus interessesecomelesseocupa atribui-se sabedoria prática, ao passo que os políticos são consideradosmetediços.DaíaspalavrasdeEurípides:

Masparaquedar-meaotrabalhodesersábio,

Secomopartedonumerosoexércitoobteriasemesforço

Umquinhãoigual?...

Poisosquevisamaltodemaisefazemmuitascoisas...

Osqueassimpensambuscamoseuprópriobemeachamque todosdeveriamfazer o mesmo. Daí vem a opinião de que tais homens possuem sabedoriaprática; e no entanto, o bem pessoal de cada um talvez não possa existir semadministraçãodomésticaesemalgumaformadegoverno.Alémdisso,amaneiradepôremordemosseusnegóciosnãoéclaraeprecisaserestudada.

Oquesedisseacimaéconfirmadopelofatodeque,emboraosmoçospossamtornar-segeômetras,matemáticosesábiosemmatériasquetais,nãoseacreditaqueexistaumjovemdotadodesabedoriaprática.Omotivoéqueessaespéciedesabedoriadizrespeitonãosóaosuniversaismastambémaosparticulares,quese tornam conhecidos pela experiência.Ora, um jovem carece de experiência,quesóotempopodedar.

Caberia aqui também esta outra pergunta: por que ummenino pode tornar-sematemático,porémnãofilósofo,nemfísico?Éporqueosobjetosdamatemáticaexistem por abstração, enquanto os primeiros princípios das outras matériasmencionadas provêm da experiência; e também porque os jovens não têmconvicção sobre estes últimos, mas contentam-se em usar a linguagemapropriada, aopassoquea essênciadosobjetosdamatemática lhes ébastanteclara.

Além disso, o erro na deliberação pode versar tanto sobre o universal comosobre o particular, isto é: tanto é possível ignorar que toda água pesada émácomoqueestaáguaaquipresenteépesada.

Que a sabedoria prática não se identifica com o conhecimento científico, éevidente;porqueelaseocupa,comojásedisse,comofatoparticularimediato,vistoqueacoisaafazerédessanatureza.

Ela opõe-se, por outro lado, à razão intuitiva, que versa sobre as premissaslimitadorasdasquaisnãosepodedara razão,enquantoa sabedoriaprática seocupa comoparticular imediato, que é objeto nãode conhecimento científicomas de percepção — e não da percepção de qualidades peculiares a umdeterminado sentido, mas de uma percepção semelhante àquela pela qualsabemos que a figura particular que temos diante dos olhos é um triângulo;porque tanto nessa direção como na da premissamaior existe um limite.Masissoéantespercepçãodoquesabedoriaprática,emborasejaumapercepçãodeoutraespéciequenãoadasqualidadespeculiaresacadasentido.

9

Há uma diferença entre investigação e deliberação, pois esta última é ainvestigaçãodeumaespécieparticulardecoisa.Devemosapreenderigualmentea natureza da excelência na deliberação: se ela é uma formade conhecimentocientífico,umaopinião,ahabilidadedefazerconjeturasoualgumaoutraespéciedecoisa.

Não se trata de conhecimento científico, porque os homens não investigam ascoisas que conhecem, ao passo que a boa deliberação é uma espécie deinvestigação,equemdeliberainvestigaecalcula.

Tampoucoéhabilidadeemfazerconjeturas,pois,alémdeimplicarausênciaderaciocínio,estaéumaqualidadequeoperacomrapidez,aopassoqueoshomensdeliberam longamente, e diz-se que a conclusão do que se deliberou deve serposta logo em prática, mas a deliberação deve ser lenta. Domesmomodo, avivacidade intelectual também difere da excelência na deliberação; é ela umaespéciedehabilidadeemconjeturar.

Não se pode, por outro lado, identificar a excelência na deliberação comumaopinião de qualquer espécie que seja.Mas, como o homem que delibera malcometeumerro,enquantooquedeliberabemofazcorretamente,claroestáquea excelência no deliberar é uma espécie de correção — não, porém, deconhecimentooudeopinião.Comefeito,conhecimentocorretoécoisaquenãoexiste, assim como não existe conhecimento errado; e a opinião correta é averdade. Ao mesmo tempo, tudo que é objeto de opinião já se achadeterminado.

Mas,poroutrolado,aexcelênciadadeliberaçãoenvolveraciocínio.Resta,pois,aalternativadequeelasejaacorreçãodoraciocínio.Comefeito,estaaindanãoéasserção,masaopiniãooé,tendojáultrapassadoafasedainvestigação;eohomemquedelibera,querofaçabem,quermal,buscaalgumacoisaecalcula.

Mas a excelência da deliberação é certamente a deliberação correta. Por issodevemosindagarprimeirooquesejaadeliberaçãoequaloseuobjeto.E,umavezqueexistemaisdeumaespéciedecorreção,evidentementeaexcelêncianodeliberarnãoéumaespéciequalquer;porqueohomemincontinenteeohomemmau, se forem hábeis, alcançarão como resultado do seu cálculo o quepropuseramasimesmos,deformaqueterãodeliberadocorretamente,masoqueterão alcançado é um grande mal para eles. Ora, ter deliberado bem éconsiderado uma boa coisa, pois é essa espécie de deliberação correta queconstituiaexcelênciadadeliberação—istoé,aquelaquetendeaalcançarumbem.

Entretanto,éatépossívelalcançarobemechegaraoquesedevefazermedianteumsilogismo falso—não, todavia, pelomeio correto, sendo falsa apremissamenor; de forma que tampouco isso é a excelência no deliberar — essadisposiçãoemvirtudedaqualatingimosoquedevemos, sebemquenãopelomeiocorreto.

Poroutrolado,épossívelalcançá-loporumalongadeliberaçãoenquantooutro

homem chega a ele rapidamente. Por conseguinte, no primeiro caso nãopossuímosaindaaexcelêncianodeliberar,queéacorreçãonoquedizrespeitoao conveniente — a correção tanto no que toca ao fim como ao meio e aotempo.

Alémdisso,épossível terdeliberadobem,quernosentidoabsoluto,quercomreferênciaaumfimparticular.Aexcelênciadadeliberaçãonosentidoabsolutoé,pois,aquiloquelograêxitocomreferênciaaoqueéofimnosentidoabsoluto,e a excelência da deliberação num sentido particular é o que logra um fimparticular.

Se, pois, é característico dos homens dotados de sabedoria prática o terdeliberadobem,aexcelênciadadeliberaçãoseráacorreçãonoquedizrespeitoàquiloqueconduzaofimdequeasabedoriapráticaéaapreensãoverdadeira.

10

Ainteligência,damesmaforma,eaperspicácia,emvirtudedasquaissedizqueos homens são inteligentes ou perspicazes, nem se identificam de todo com aopinião ou o conhecimento científico (pois nesse caso todos seriam homensinteligentes),nemsãoelasumadasciênciasparticulares,comoamedicina,queéaciênciadasaúde,ouageometria,queéaciênciadasgrandezasespaciais.Comefeito,a inteligêncianemversa sobreascoisaseternase imutáveis,nemsobretoda e qualquer coisa que vem a ser, mas apenas sobre aquelas que podemtornar-se assunto de dúvidas e deliberação. Portanto, os seus objetos são osmesmosqueosdasabedoriaprática;masinteligênciaesabedoriapráticanãosãoamesmacoisa.Estaúltimaemiteordens,vistoqueoseufiméoquesedeveounãosedevefazer;ainteligência,pelocontrário,limita-seajulgar.(Inteligênciaéo mesmo que perspicácia, e homens inteligentes, o mesmo que homensperspicazes).

Ora, elanão énemaposse, nema aquisiçãoda sabedoriaprática;mas, assimcomo o aprender é chamado entendimento quando significa o exercício dafaculdadedeconhecer,tambémotermo"entendimento"éaplicávelaoexercícioda faculdade de opinar com o fim de aquilatar o que outra pessoa diz sobreassuntos que constituem o objeto da sabedoria prática — e de aquilatarcorretamente,pois"bem"e"corretamente"sãoamesmacoisa.

Edaí provémousodonome "inteligência", emvirtudedoqual sediz queoshomens são "perspicazes", a saber: da aplicação do termo à apreensão daverdadecientífica,poismuitasvezeschamamosaissoentendimento.

11

Oquesechamadiscernimento,eemvirtudedoqualsedizqueoshomenssão"juízes humanos" e que "possuem discernimento", é a reta discriminação doequitativo.Mostra-oofatodedizermosqueohomemequitativoéacimadetudoum homem de discernimento humano, e de identificarmos a equidade com odiscernimentohumanoarespeitodecertosfatos.Eessediscernimentoéaquelequediscriminacorretamenteoqueéequitativo, sendoodiscernimentocorretoaquelequejulgacomverdade.

Ora, todas as disposições que temos considerado convergem, como era deesperar, para o mesmo ponto, pois, quando falamos de discernimento, deinteligência, de sabedoria prática e de razão intuitiva, atribuímos às mesmaspessoasapossedodiscernimento,oteremalcançadoaidadedarazão,eoseremdotadas de inteligência e de sabedoria prática. Com efeito, todas essasfaculdadesgiramemtornodecoisasimediatas,istoé,departiculares;eserumhomeminteligenteoudebomouhumanodiscernimentoconsisteemsercapazdejulgarascoisascomqueseocupaasabedoriaprática,porquantoasequidadessãocomunsatodososhomensbonsemrelaçãoaosoutroshomens.

Ora, todas as coisas que cumpre fazer incluem-se entre os particulares ouimediatos; pois não só deve o homem dotado de sabedoria prática terconhecimento dos fatos particulares, mas também a inteligência e odiscernimentoversamsobrecoisasaseremfeitas,eestassãocoisasimediatas.Arazão intuitiva, por sua vez, ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos,pois tantoosprimeiros termoscomoosúltimos sãoobjetosda razãointuitivaenãodoraciocínio,earazãointuitivapressupostapelasdemonstraçõesapreendeos termosprimeirose imutáveis,enquantoarazão intuitivarequeridapelo raciocínio prático apreende o fato último e variável, isto é, a premissamenor.Eessesfatosvariáveisservemcomopontosdepartidaparaaapreensãodofim,vistoquechegamosaosuniversaispelosparticulares;éimportante,porconseguinte,que tenhamospercepçãodestesúltimos,e talpercepçãoéa razãointuitiva.

Eisaíporquetaisdisposiçõessãoconsideradascomodotesnaturais,eenquantode ninguém se diz que é filósofo por natureza, a muitos se atribui umdiscernimento, inteligência e uma razão intuitiva inatos. Mostra-o acorrespondência que estabelecemos entre os nossos poderes e a nossa idade,dizendo que uma determinada idade traz consigo a razão intuitiva e odiscernimento; isto implicaqueacausaénatural.Dondese seguequea razãointuitivaétantoumcomeçocomoumfim,poisasdemonstraçõespartemdestesesobreestesversam.Porissodevemosacatar,nãomenosqueasdemonstrações,osaforismoseopiniõesnãodemonstradasdepessoasexperientesemaisvelhas,assimcomodaspessoasdotadasdesabedoriaprática.Comefeito,essaspessoasenxergambemporqueaexperiêncialhesdeuumterceiroolho.

Acabamosdemostrar,portanto,quecoisassãoasabedoriapráticaeasabedoriafilosófica, em que consistem uma e outra, e acrescentamos que cada uma é avirtudedeumapartediferentedaalma.

12

Masalguémpoderiaperguntardequeservemessasfaculdadesdamente,jáqueasabedoriafilosóficanãoconsideranenhumadascoisasquetornamumhomemfeliz(poisnãodizrespeitoàscoisasquesegeram);equantoàsabedoriaprática,emboratratedessascoisas,paraquenecessitamosdela?Asabedoriapráticaéadisposição damente que se ocupa com as coisas justas, nobres e boas para ohomem,masessassãoascoisascujapráticaécaracterísticadeumhomembom,enãonostornamosmaiscapazesdeagirpelofatodeconhecê-lasseasvirtudessãodisposiçõesdecaráter,domesmomodoquenãosomosmaiscapazesdeagirpelofatodeconhecerascoisassãsesaudáveisnãonosentidodeproduziremasaúde,mas no de serem consequência dela. Efetivamente, a simples posse daartemédicaoudaginásticanãonostornamaiscapazesdeagir.

Mas se dissermos que um homem deve possuir sabedoria prática, não paraconhecer as verdades morais, mas para tornar-se bom, a sabedoria práticanenhumautilidadeteráparaosquejásãobons;e,poroutrolado,denadaserveela para os que não possuem virtude.Com efeito, nenhuma diferença faz queelespróprios tenhamsabedoriapráticaouqueobedeçamaoutrosquea têm,eseria suficiente fazer o que costumamos fazer com respeito à saúde: emboradesejemos gozar saúde, não nos dispomos por isso a aprender a arte da

medicina.

Por outro lado, pareceria estranho que a sabedoria prática, sendo inferior àfilosófica,tivesseautoridadesobreela,comopareceimplicarofatodequeaartequeproduzumacoisaqualquerexerceomandoeogovernorelativamenteaessacoisa.

Sãoestas,pois,asquestõesquecumprediscutir,poisatéagoranoslimitamosaexporasdificuldades.

Antes de tudo, diremos que essas disposições de caráter devem ser dignas deescolha porque são as virtudes das duas partes da alma respectivamente, e oseriamaindaquenenhumadelasproduzisseoquequerquefosse.

Emsegundolugar,elasdefatoproduzemalgumacoisa—não,porém,comoaarte médica produz saúde, mas como a saúde produz saúde. É assim que asabedoria filosófica produz felicidade; porque, sendo ela uma parte da virtudeinteira,tornaumhomemfelizpelofatodeestarnasuaposseedeatualizar-se.

Poroutrolado,aobradeumhomemsóéperfeitaquandoestádeacordocomasabedoria prática e com a virtude moral; esta faz com que seja reto o nossopropósito; aquela, comque escolhamosos devidosmeios. (Daquarta parte daalma, a nutritiva, não existe nenhumavirtudedessa espécie, pois nãodependedelafazeroudeixardefazeroquequerqueseja).

Quanto a não sermosmais capazes de operar coisas nobres e justas devido àsabedoriaprática,devemosvoltarumpoucoatrásepartirdoseguinteprincípio:

Assim como dizemos que algumas pessoas que praticam atos justos não sãonecessariamente justas por isso — referimo-nos às que praticam os atosprescritos pela lei, quer involuntariamente, quer devido à ignorância ou poralgumaoutra razão,masnãono interessedospróprios atos, embora seja certoquetaispessoasfazemoquedevemetodasascoisasqueohomembemdevefazer—,pareceque,domesmomodo,paraalguémserboméprecisoencontrar-se em determinada disposição quando pratica cada um desses atos: numapalavra, é preciso praticá-los em resultado de uma escolha e no interesse dosprópriosatos.

Ora,avirtudetornaretaaescolha,masquecoisassejamaptaspornaturezaapôrem prática a nossa escolha não as aprendemos da virtude e sim de outra

faculdade. Devemos deter-nos um pouco nestes assuntos e falar deles maisclaramente.

Existeumafaculdadequesechamahabilidade,etaléasuanaturezaquetemopoderdefazerascoisasqueconduzemaofimpropostoeaalcançá-lo.Ora,seofiménobre,ahabilidadeédignadelouvor,masseofimformau,ahabilidadeserásimplesastúcia;porissochamamosdehábeisouastutosospróprioshomensdotadosdesabedoriaprática.Estanãoéafaculdade,porémnãoexistesemela,eesseolhodaalmanãoatingeoseuperfeitodesenvolvimentosemoauxíliodavirtude, como já dissemos e como, aliás, é evidente.E a razão disto é que ossilogismosemtornodoquesedevefazercomeçamassim:"vistoqueofim,istoé, o que é melhor, é de tal e tal natureza..." Admitamos, no interesse doargumento, que ela seja qual for, mas só o homem bom a conheceverdadeiramente,porquantoamaldadenosperverteenoslevaaenganar-nosarespeito dos princípios da ação. Donde está claro que não é possível possuirsabedoriapráticaquemnãosejabom.

13

Devemos, por isso, voltar mais uma vez a considerar a virtude, pois nela seobservaumarelaçãodomesmogênero:assimcomoasabedoriapráticaestáparaahabilidade(nãosendoamesmacoisa,massemelhante),avirtudenaturalestáparaavirtudenaacepçãoestritadotermo.Comefeito,todososhomenspensamque, em certo sentido, cada tipo de caráter pertence por natureza aos que omanifestam,equedesdeomomentodenascersomosjustos,oucapazesdenosdominar,oubravos,oupossuímosqualqueroutraqualidademoral.Nãoobstante,andamos em busca de outro bem que propriamente seja tal— queremos queessasqualidadesexistamemnósdeoutromodo.Poisquetantoascriançascomoos brutos têm as disposições naturais para essas qualidades, mas, quandodesacompanhadasdarazão,elassãoevidentementenocivas.Sónósparecemosperceber que elas podem conduzir-nos para o mau caminho, como um corporobustomasprivadodevisãopodecairdesastrosamentedevidoàsuacegueira;mas,depoisdehaveradquiridoarazão,haveráumadiferençanoseumododeagiresuadisposição:emboracontinuandosemelhanteaoqueera,passaráaservirtudenosentidoestritodapalavra.

Porconseguinte,assimcomonaquelapartedenósqueformaopiniõesexistem

dois tipos, a habilidade e a sabedoria prática, também na partemoral existemdois tipos, a virtudenatural e avirtudeno sentido estrito.Edestas, a segundaenvolve sabedoria prática. Daí o afirmarem alguns que todas as virtudes sãoformasdesabedoriaprática.ESócratestinharazãoacertorespeito,masaoutrorespeitoandavaerrado:erradoempensarquetodasasvirtudesfossemformasdesabedoria prática, mas certo em dizer que elas implicam tal modalidade desabedoria. Temos uma confirmação disto no fato de que ainda hoje todos oshomens,quandodefinemavirtude,apósindicaradisposiçãodecarátereosseusobjetos,acrescentam:"aquilo(istoé,aqueladisposição)queestádeacordocomaretarazão".Ora,aretarazãoéoqueestádeacordocomasabedoriaprática.

De certomodo, pois, todos os homens parecemadivinhar que essa espécie dedisposição,asaber,aqueestádeacordocomasabedoriaprática,évirtude.Nós,porém, devemos ir um poucomais longe, pois não é apenas a disposição queconcorda coma reta razão,mas aque implica apresençada reta razão,que évirtude:easabedoriapráticaéaretarazãonotocanteataisassuntos.

Sócrates,porconseguinte,pensavaqueasvirtudesfossemregrasouprincípiosracionais (pois a todas elas considerava como formas de conhecimentocientífico),enquantonóspensamosqueelasenvolvemumprincípioracional.

Doquesedisseficabemclaroquenãoépossívelserbomnaacepçãoestritadotermo sem sabedoria prática, nem possuir tal sabedoria sem virtude moral. Edesta formapodemos tambémrefutaroargumentodialéticodequeasvirtudesexistem separadas umas das outras, e o mesmo homem não é perfeitamentedotadopelanaturezapara todasasvirtudes,demodoquepoderáadquirirumadelas sem ter ainda adquirido outra. Isso é possível no tocante às virtudesnaturais, porém não àquelas que nos levam a qualificar um homemincondicionalmente de bom; pois, com a presença de uma só qualidade, asabedoriaprática,lheserãodadastodasasvirtudes.E,evidentemente,aindaqueelanãotivessevalorprático,nosserianecessáriaporseravirtudedaquelaparteda almadeque falamos; enão émenos evidenteque a escolhanão será certasemsabedoriaprática,comonãooseriasemvirtude.Comefeito,umadeterminaofimeaoutranoslevaafazerascoisasqueconduzemaofim.

Masnempor issodominaelaasabedoria filosófica, istoé,apartesuperiordenossa alma, assimcomoa artemédicanãodomina a saúde, pois não se servedela, mas fornece os meios de produzi-la; e faz prescrições no seu interesse,porémnãoaela.Alémdisso,sustentarasuasupremaciaequivaleriaadizerque

osdeusessãogovernadospelaartepolíticaporqueestafazprescriçõesarespeitodetodososassuntosdoEstado.

LIVROVII

1

Recomeçaremos agora a nossa investigação tomando outro ponto de partida esalientandoqueasdisposiçõesmoraisaserevitadassãodetrêsespécies:ovício,a incontinência e a bruteza. Os contrários de duas delas são evidentes: a umchamamos virtude e ao outro continência. À bruteza, omais apropriado seriaoporumavirtudesobre-humana,umaespécieheroicaedivinadevirtudecomoaquePríamoatribuiaHeitoremHomero,dizendo:

Poiselenãopareciaofilhodeumhomemmortal,

Masalguémqueviessedasementedosdeuses.

Portanto,se,comosecostumadizer,oshomenssetornaramdeusespeloexcessode virtude, dessa espécie deve ser evidentemente a disposição contrária àbruteza.Comefeito,assimcomoumbrutonãotemvícionemvirtude,tampoucoos tem um deus; seu estado é superior à virtude, e o de um bruto difere emespéciedovício.

Ora, como é raro encontrar um homem divino— para usarmos o epíteto dosespartanos, que chamam um homem de "divino" quando lhe têm grandeadmiração—, também o tipo brutal é raramente encontrado entre os homens.Existe principalmente entre os bárbaros, mas algumas qualidades brutais sãotambém produzidas pela doença ou pela deformidade; e também damos essemaunomeàquelescujovíciovaialémdamedidacomum.

Destaespéciededisposiçãotrataremosrapidamentemaistarde.Quantoaovício,já o discutimos antes.Agora devemos falar da incontinência e damoleza (ouefeminação),edeseuscontrários,acontinênciaeafortaleza;poiscumpretratarde ambas como não idênticas à virtude ou à maldade, nem como um gênerodiferente.Aexemplodoquefizemosemtodososoutroscasos,passaremosemrevistaosfatosobservadose,apósdiscutirasdificuldades,trataremosdeprovar,sepossível,averdadede todasasopiniõescomunsa respeitodessesafetosda

mente — ou, se não de todas, pelo menos do maior número e das maisautorizadas;porque, se refutarmos asobjeções edeixarmos intatas asopiniõescomuns,teremosprovadosuficientementeatese.

Ora, tanto a continência como a fortaleza são incluídas entre as coisas boas edignasde louvor,e tantoa incontinênciacomoamolezaentreascoisasmásecensuráveis; e omesmo homem é julgado continente e disposto a sustentar oresultadodeseuscálculos,ouincontinenteeprontoaabandoná-los.Eohomemincontinente,sabendoqueoquefazémau,ofazlevadopelapaixão,enquantoohomemcontinente,conhecendocomomausosseusapetites, recusa-seasegui-losemvirtudedoprincípioracional.

Ao temperante todoschamamcontinenteedispostoà fortaleza,masnoqueserefere ao continente alguns sustentam que ele é sempre temperante, enquantooutros o negam; e alguns chamam incontinente ao sem limite e sem limite aoincontinentesemqualquerdiscriminação,enquantooutrosdistinguementreeles.Às vezes se diz que o homem dotado de sabedoria prática não pode serincontinente e, outras vezes, que alguns homens desse tipo, e hábeis ademais,são incontinentes. E por fim, diz-se que os homens são incontinentes mesmocomrespeitoàcólera,àhonraeaolucro.

Estassão,pois,ascoisasquesecostumadizer.

2

Podemosperguntaragoracomoépossívelqueumhomemquejulgacomretidãose mostre incontinente na sua conduta. Alguns afirmam que tal conduta éincompatível com o conhecimento; pois seria estranho — assim pensavaSócrates,—que,existindooconhecimentonumhomem,algumacoisapudesseavassalá-lo e arrastá-lo após si como a um escravo. Com efeito, Sócrates erainteiramentecontrárioàopiniãoemapreço,esegundoelenãoexistiaissoquesechama incontinência. Ninguém, depois de julgar — afirmava —, agecontrariandooque julgoumelhor;oshomenssóassimprocedemporefeitodaignorância.

Ora,estaopiniãocontradiznitidamenteosfatosobservados,eéprecisoindagaroqueaconteceatalhomem:seeleageemrazãodaignorância,dequeespéciede ignorância se trata? Porque é evidente que o homem que age com

incontinêncianãopensa,antesdechegaraesseestado,quedevaagirassim.

Mas alguns concedem certos pontos defendidos por Sócrates, e outros não.Admitem que nada seja mais forte do que o conhecimento, porém não quealguém aja contrariando o que lhe pareceu ser omelhor alvitre; e dizem, porisso,queoincontinentenãopossuiconhecimentoquandoédominadopelosseusprazeres,massóopinião.Se,todavia,setratadeopiniãoenãodeconhecimento,senãoéumaconvicçãoforte,masfraca,queresiste,comonoshesitantes,nóssimpatizamos com a sua incapacidade de manter-se firme em tais convicçõescontraapetitespoderosos;nãosimpatizamos,porém,comamaldadenemcomqualqueroutradisposiçãoquemereçacensura.

Será,então,a resistênciadasabedoriapráticaquecede?Estaéamaisfortedetodas as disposições. Mas a suposição é absurda: o mesmo homem seria aomesmotempodotadodesabedoriapráticaeincontinente,masninguémdiriaquesejaprópriodetalhomempraticarvoluntariamenteosatosmaisvis.Alémdisso,jásemostrouanteriormentequeosquepossuemestaespéciedesabedoriasãohomensdeação (pois seocupamcomfatosparticulares)epossuemasdemaisvirtudes.

Por outro lado, se a continência implica ter fortes e maus apetites, o homemtemperante não será continente, nem este será temperante; pois um homemtemperantenãotemapetitesexcessivosnemmaus.Ohomemcontinente,porém,nãopodedeixardetê-los;porque,seosapetitessãobons,adisposiçãodecaráterquenosinibedesegui-losémá,deformaquenemtodacontinênciaseráboa;e,seelessãofracossemseremmaus,nãohánadadeadmirávelemrefreá-los;e,sesãofracosemaus,tampoucoégrandeproezaresistir-lhes.

Alémdisso,seacontinênciatornaumhomempropensoasustentartenazmentequalqueropinião,acontinênciaémá—istoé,seo levaasustentarmesmoasopiniões falsas; e se a incontinência faz com que um homem abandonefacilmente qualquer opinião, haverá umaboa espécie de incontinência, de quetemos exemplo em Neoptólemo tal como nos é apresentado no Filoctetes deSófocles. Com efeito, ele é digno de louvor por não haver cumprido o queUlissesopersuadiraafazer,eissoporquelherepugnavamentir.

Por outro lado, o argumento sofistico apresenta uma dificuldade.O silogismoinspiradonodesejodeexporosresultadosparadoxaisdecorrentesdaopiniãodeum adversário, a fimde conquistar a admiração dos ouvintes para o refutador

quando este logra o seu desiderato, nos coloca em grande embaraço (pois oraciocínioficaamarradoquandonãoquerimobilizar-se,porqueaconclusãonãoosatisfaz;enãopodeavançarporqueéincapazderefutaroargumento).Háumsilogismo do qual se conclui que a loucura conjugada com a incontinência évirtude,poisumhomemfazocontráriodoquejulgadevidoàincontinência,maspor outro lado, o que é bom lhe parece mau e algo a ser evitado; e, porconseguinte,faráobemenãoomal.

Eainda:aqueleque,porconvicção,faz,buscaeescolheoqueéagradávelseriaconsideradomelhor do que quem o faz não em resultado do cálculo, mas daincontinência;porqueoprimeiroémais fácildecurar,dadaapossibilidadedepersuadi-loamudardeideia.Masaoincontinentepode-seaplicaroprovérbio:"Quando a água sufoca, com que a faremos descer?" Se ele tivesse sidopersuadidodaretidãodoquefaz,desistiriaquandoopersuadissemamudardeideia;masacontecequetalhomemage,emboraestejapersuadidodealgomuitodiferente.

E finalmente: se a continência e a incontinência dizem respeito a qualquerespéciedeobjeto,quevemasero incontinentenosentidoabsoluto?Ninguémpossui todasas formasde incontinência,masdealgumaspessoasdizemosquesãoincontinentesemabsoluto.

3

Deumadasespéciesenumeradassãoasdificuldadesquesurgem.Algunsdestespontospodemserrefutados,enquantooutrosficarãosenhoresdocampo;porqueadificuldadeencontrasuasoluçãoquandosedescobreaverdade.

Devemos, pois, considerar primeiro se as pessoas incontinentes agemcientementeounãoecientementeemquesentido;ecomqueespéciedeobjetosse pode dizer que têm relação o homem incontinente e o continente, e se ohomemcontinenteeohomemdotadodefortalezasãoomesmooudiferentes;ede modo análogo no tocante aos outros assuntos abrangidos pela nossainvestigação.

Constituemonossopontodepartida aquestãode seohomemcontinente eoincontinentesãodiferenciadospelosseusobjetosoupelasuaatitude,istoé,seoincontinenteétalapenasporqueserelacionacomtaisetaisobjetos,ou,então,

pela sua atitude, ou ainda por ambas as coisas; a segunda questão é se acontinênciaeaincontinênciaserelacionamcomtodoequalquerobjeto,ounão.

Ohomemqueé incontinentenosentidoabsolutonemserelacionacomtodoequalquerobjeto,massimprecisamentecomaquelesquesãoosobjetosdosemlimite, nem se caracteriza por essa simples relação (pois, a ser assim, a suadisposiçãoseidentificariacomaintemperança),masporserelacionarcomelesdecertomodo.Comefeito,umélevadopelasuaprópriaescolha,pensandoquedeve buscar sempre o prazer imediato, enquanto o outro busca tais prazeresemboranãopenseassim.

Sugere-sequeécontraaretaopiniãoenãocontraoconhecimentoqueagimosde modo incontinente, mas isso não vem ao caso; porque certas pessoas nãohesitamquandonutremumaopinião,maspensam ter conhecimentoexato.Se,pois,oque sepretende sustentar éque,devidoaumaconvicção fraca,osquetêmopinião sãomais sujeitos a agir contrariandoo seupróprio julgamentodoqueaquelesquesabem,responderemosqueaesterespeitonãohádiferençaentreconhecimento eopinião,pois algunshomensnãoestãomenos convencidosdoquepensamquedoquesabem,comobemomostraocasodeHeráclito.Mas,vistoqueusamosapalavra"saber"emdoissentidos,poistantodohomemquepossuioconhecimentomasnãoousacomodaquelequeopossuieusadizemosquesabem,farágrandediferençaseohomemquepraticaoquenãodevepossuio conhecimentomas nãoo exerce, ou se o exerce; porque a segundahipótesepareceestranha,masnãoaprimeira.

Alémdisso,comoháduasespéciesdepremissas,nadaimpedequeumhomemajacontrariandooseupróprioconhecimentoemborapossuaambasaspremissas,desdequeuseapenasauniversal,porémnãoaparticular;porqueosatosaserrealizadossãoparticulares.Ehátambémduasespéciesdetermouniversal;umépredicáveldoagenteeooutrodoobjeto:porexemplo,"acomidasecafazbematodososhomens"e"eusouumhomem",ou"talcomidaéseca";masohomemincontinentenãopossuiounãousaoconhecimentodeque"estacomidaétaletal".Haverá,pois,emprimeiro lugarumaenormediferençaentreessesmodosdesaber,deformaquenãoparecerianadaestranhosaberdeumdosmodosaomesmotempoqueseagecomincontinência,enquantofazê-lo,sabendodooutromodo,seriaextraordinário.

Alémdisso,aconteceaoshomenspossuíremconhecimentoemoutrosentidoquenãoosacimamencionados;poisnaquelesquepossuemconhecimentosemusá-

lopercebemosumadiferençadeestadoquecomportaapossibilidadedepossuirconhecimentoemcertosentidoeaomesmotemponãoopossuir,comosucedecomosquedormem,comosloucoseosembriagados.Ora,éjustamenteessaacondição dos que agem sob a influência das paixões; pois é evidente que asexplosões de cólera, de apetite sexual e outras paixões que tais alterammaterialmente a condição do corpo, e em alguns homens chegam a produziracessosdeloucura.Claroestá,pois,quedosincontinentessepodedizerqueseencontram num estado semelhante ao dos homens adormecidos, loucos ouembriagados. O fato de usarem uma linguagem própria do conhecimento nãoprovanada,poisoshomensqueseachamsobainfluênciadessaspaixõespodematé articular provas científicas e declamar versos de Empédocles, e os queapenascomeçaramaaprenderumaciênciapodemalinhavarassuasproposiçõessem, todavia, conhecê-la.Para ser realmenteconhecida, éprecisoque se torneumapartedeles,eissorequertempo.Logo,édesuporqueousodalinguagempor parte de homens em estado de incontinência não signifique mais que asdeclamaçõesdeatoresemcena.

Também podemos encarar o caso da maneira que segue, com referência àspeculiaridades da natureza humana.Umadas opiniões é universal, a outra dizrespeito a fatos particulares, e aqui nos deparamos com algo que pertence àesferadapercepção.Quandodasduasopiniõesresultaumasó,numaespéciedecaso a alma afirmará a conclusão, enquanto no caso de opiniões relativas àproduçãoelaagiráimediatamente(porexemplo,se"tudooqueédocedeveserprovado"e“istoédoce",nosentidodeserumadascoisasdocesparticulares,ohomemquepodeagirenãoéimpedidoprocederáimediatamentedeacordocoma conclusão).Quando, pois, está presente em nós a opinião universal que nosproíbe provar, mas também existe a opinião de que "tudo que é doce éagradável"edeque"istoédoce"(eéestaaopiniãoativa),equandosucedeestarpresenteemnósoapetite,umadasopiniõesnosmandaevitaroobjeto,masoapetitenosconduzparaele(poistemopoderdemovercadaumadaspartesdenossocorpo);esucede,assim,queumhomemagedemaneiraincontinentesobainfluência(emcertosentido)deumarazãoedeumaopiniãoquenãoécontráriaemsimesma,porémapenasacidentalmente,àretarazão(poisqueoapetitelheécontrário,masnãooéaopinião).Dondeseseguequeéessetambémomotivodenãoseremincontinentesosanimaisinferiores:comefeito,elesnãopossuemjuízouniversal,masapenasimaginaçãoememóriadeparticulares.

Aexplicaçãodecomosedissolveaignorânciaeohomemincontinenterecuperaoconhecimentoéamesmaquenocasodosembriagadoseadormecidosenão

temnadadepeculiaraestacondição.Devemospedi-laaosestudiososdeciêncianatural. Ora, sendo a segunda premissa, ao mesmo tempo, uma opinião arespeitodeumobjetoperceptíveleaquiloquedeterminaasnossasações,ouumhomemnão a possui quando se encontra no estado de paixão, ou a possui nosentidoemqueterconhecimentonãosignificaconhecer,masapenasfalar,comoumbêbedoquedeclamaversosdeEmpédocles.E,comooúltimotermonãoéuniversal,nemtampoucoumobjetodeconhecimentocientíficoamesmotítuloque o termo universal, parece mesmo resultar daí a posição que Sócratesprocurou estabelecer; pois não é em presença daquilo que consideramosconhecimento propriamente dito que surge a afecção da incontinência (nem éverdade que ele seja "arrastado" pela paixão), mas o que se acha presente éapenasoconhecimentoperceptual.

Que isto baste como resposta à questão ao ato acompanhado ou não deconhecimento e de como é possível agir de maneira incontinente comconhecimentodecausa.

4

Examinaremosagoraseexistealguémquesejaincontinentenosentidoabsolutoou se todos os homens incontinentes o são num sentido particular; e, se talhomemexiste,comqueespéciedeobjetoeleserelaciona.

Quetantoaspessoascontinentesedotadasdefortalezacomoasincontinenteseefeminadasserelacionamcomprazeresedores,éevidente.Ora,dascoisasquecausamprazeralgumassãonecessárias,enquantooutrasmerecemserescolhidaspor si mesmas e contudo admitem excesso, havendo importante das causascorporaisdeprazer(pelasquaisentendonãosóasquesereferemàalimentaçãocomo também à conjunção sexual, isto é, os estados corporais com os quaisdissemosqueserelacionamatemperançaeaintemperança),enquantoasoutrasnãosãonecessárias,masmerecemserescolhidasporsimesmas(comoavitória,ahonra,ariquezaeoutrascoisasboaseagradáveisdestaespécie).

Assimsendo,aosquevãoaoexcessocomreferênciaassegundas,contrariandoaretarazãoquelevamemsi,nãochamamossimplesmentedeincontinentes,masdeincontinentescomaespecificação"notocanteaodinheiro,àhonra,aolucroou à cólera"— não simplesmente incontinentes, porque diferem das pessoas

incontinentesesãoassimchamadosdevidoaumasemelhança.(Confronte-seahistória de Anthropos—Homem—, que venceu uma competição nos JogosOlímpicos;noseucaso,adefiniçãogeraldehomempoucodiferiadadefiniçãoque lhe era própria, mas no entanto diferia.) Prova-o o fato de tanto aincontinência no sentido absoluto como a relativa a algum prazer físicoparticular ser censurada não apenas como uma falta mas também como umaespéciedevício,aopassoquenenhumadaspessoasincontinentesaestesoutrosrespeitosécensuradaataltítulo.

Masdaspessoasquesãoincontinentescomrespeitoaosgozosfísicoscomquedizemosrelacionar-seohomemtemperanteeosemlimite,aquelequebuscaoexcessodecoisasagradáveis—eevitaodascoisasdolorosas:fome,sede,calor,frioetodososobjetosdotatoedopaladar—nãoporescolha,mascontrariandoa sua escolha e o seu julgamento, é chamado incontinente, não com aespecificação"comrespeitoaistoouàquilo",como,porexemplo,àcólera,masnumsentidoabsoluto.Confirma-oofatodeseremoshomenschamados"moles"ou "efeminados" com respeito a esses prazeres, porém não a qualquer dosoutros.

E por essa razão juntamos num só grupo o incontinente e o sem limite, ocontinenteeotemperante—excluindo,porém,qualquerdestesoutrostipos—,porque se relacionamde algummodo comosmesmos prazeres e dores.Mas,embora digam respeito aosmesmos objetos, sua relação para com eles não ésemelhante,poisalgunsfazemumaescolhadeliberadaeoutrosnão.

Por esta razão,merecemais o qualificativo de sem limite o homem que semapetite ou com escasso apetite, busca os excessos de prazer e evita doresmoderadas, doqueohomemque fazomesmo levadopor apetites poderosos:poisquefariaoprimeiroseosseusapetitesfossemdessasorteeseafaltadosobjetos"necessários"ofizessesofrerviolentamente?

Ora,dosapetiteseprazeres,algunspertencemàclassedascoisasgenericamentenobres e boas— pois algumas coisas agradáveis são por natureza dignas deescolha,enquantooutraslhessãocontráriaseoutrasaindaocupamumaposiçãointermédia,paraadotaradistinçãoqueestabelecemosanteriormente.Exemplosdaprimeiraclassesãoariqueza,olucro,avitória,ahonra.Ecomreferênciaatodososobjetosdestaespécieoudaintermediárianãosãocensuradososhomenspordesejá-loseamá-los,masporfazerem-nodecertomodo—istoé, indoaoexcesso.

(Emfacedisto,nãosãomaustodososque,contrariandoaretarazão,sedeixamavassalar por um dos objetos naturalmente nobres e bons e o buscam emdetrimento de tudomais, como, por exemplo, os que se ocupammais do quedevem com a honra, ou comos filhos e os pais.Com efeito, essas coisas sãobenseosquedelasseocupamsãolouvados.Mesmoaí,contudo,podehaverumexcesso:se,comoNíobe,porexemplo,alguémlutassecontraosprópriosdeuses,ou se fosse tãodevotadoaopaiquantoSátiro, cognominado"o filial",que foiconsideradoumgrandetoloporessemotivo).

Comrespeitoaessesobjetosnãohá,pois,maldadepelarazãoindicada, istoé:cadaumdelesépornaturezaalgodignodeescolhaemsimesmo.Semembargo,o excesso em relação a eles émau e deve ser evitado.Analogamente, não háincontinêncianoquetocaaessesobjetos,poisa incontinêncianãosódeveserevitada como merece censura; mas, em razão de uma semelhança quanto aosentimento, aplica-se-lhesonomede incontinênciaprecisandoemcadacasoorespectivo objeto, assim como chamamos de mau médico ou mau ator a umhomemquenãoqualificaríamosdemauemsi.

Visto,pois,quenestecasonãoaplicamoso termoemsentidoabsolutoporquecadaumadessascondiçõesnãoémaldade,masapenasseassemelhaàmaldade,é claro que também no outro caso só se deve considerar como continência eincontinênciaoqueserelacionacomosmesmosobjetosquea temperançaeaintemperança. Aplicamos, porém, o termo à cólera em virtude de umasemelhança, precisando desta forma: "incontinente no que se refere à cólera",comotambémdizemos:"incontinentenoqueserefereàhonraouaolucro".

5

Certas coisas são agradáveis por natureza, e destas algumas o são em sentidoabsolutoeoutrasemrelaçãoadeterminadasclassesdeanimaisoudehomens;edaquelasquenãosãoagradáveispornatureza,algumassetornamtaisporefeitodedistúrbiosnoorganismo,outrasdevidoahábitosadquiridoseoutrasaindaemrazãodeumanaturezacongenitamentemá.

Assimsendo,épossíveldescobriremcadaumadasespéciesdosegundogrupodisposiçõesdecarátersemelhantesàsquereconhecemosemrelaçãoaoprimeiro.Refiro-meaosestadosbrutais,comonocasodafêmeaque,segundosediz,rasga

oventredasmulheresgrávidasedevoraosfetos,edascoisascomquepassampor deleitar-se algumas tribos que habitam as margens do mar Negro e quecaíramno estadode selvageria—carne crua, carne humana, ou levarem seusfilhosunsaosoutrosparaquesebanqueteiemcomeles—eaindaahistóriaquesecontadeFálaris.

Estas disposições são brutais. Há, porém, outras que resultam da doença (emcertoscasos tambémda loucura, comoohomemque sacrificouedevorousuaprópriamãe, ou o escravo que comeu o fígado de um companheiro), e outrasainda são estados mórbidos, como o hábito de arrancar os pelos, de roer asunhas, e mesmo de comer carvão ou terra; a estes deve acrescentar-se apederastia,e todoselessurgememalgunspornaturezaeemoutros,comonosquedesdeainfânciaforamvítimasdalibidinagemalheia,porhábito.

Ora,àquelesemquemanaturezaéacausadetaldisposiçãoninguémchamariaincontinentes,comoninguémaplicariaoepítetoàsmulheresporcausadopapelpassivoquedesempenhamnacópula.Etampoucoseriaeleaplicadoaosqueseencontramnumadisposiçãomórbidapor efeitodohábito.Possuir essesváriostipos de hábito está para além das fronteiras do vício, como também o está abrutalidade.Paraohomemqueospossui,dominá-losouserdominadoporelesnão é simples continência ou incontinência, mas algo que é tal por analogia,assimcomoohomemquetemtaldisposiçãocomrespeitoaosacessosdecóleradeveserchamadoincontinenteemrelaçãoaessesentimento,enãoincontinentenosentidoabsoluto.

Comefeito,todoestadoexcessivo,sejadeloucura,decovardia,deintemperançaoudeirritabilidade,ouébrutaloumórbido.Ohomemquepornaturezareceiatodasascoisas,inclusiveoguinchodeumcamundongo,padeceumacovardiadebruto, enquanto aqueleque temiauma fuinha estava simplesmente enfermo.Edostolos,osquepornaturezasãoestouvadosevivemapenaspelossentidossãocomobrutos,aexemplodecertasraçasdebárbarosdistantes,enquantoosquesãotaisporefeitodeumadoença(daepilepsia,porexemplo)oudaloucurasãomórbidos.

Destas características, é possível possuir algumas apenas em certas ocasiões enãoserdominadoporelas.Porexemplo,Fálarispode ter refreadoodesejodecomercarnedecriançaouumapetitesexualcontraanatureza;mas tambémépossível ser dominado e não apenas ter tais sentimentos. Logo, assim como amaldade que se mantém no nível humano é chamada simplesmente maldade,

enquantoaoutranãoésimplesmaldade,porémmaldadecomaqualificaçãode"brutal" ou "mórbida", também é evidente que há uma incontinência brutal eoutra mórbida, mas só a que corresponde à intemperança humana é simplesincontinência.

Torna-seclaro,pois,quea incontinênciaeacontinênciase relacionamcomosmesmosobjetosquea intemperançaea temperança, eoque se relacionacomoutros objetos é um tipo distinto da incontinência, que recebe este nome pormetáforaenãoéchamadosimplesincontinência.

6

Veremosagoraqueaincontinênciarelativaàcóleraémenosvergonhosadoqueaquelaquedizrespeitoaosapetites.

A cólera parece ouvir o raciocínio até certo ponto,mas ouvi-lomal, como osservos apressados que partem correndo antes de havermos acabado de dizer oque queremos e cumprem a ordem às avessas, ou os cães que ladram apenasouvembateràporta,semprocurarverprimeirosesetratadeumapessoaamiga;edamesmaformaacólera,devidoàsuanaturezaardenteeimpetuosa,emboraouvindo,nãoescutaasordenseprecipita-separaavingança.Porqueoraciocínioouaimaginaçãonosinformadequefomosdesprezadosoudesconsiderados,eacólera,comoquechegandoàconclusãodequeéprecisoreagircontraqualquercoisadessaespécie,ferveimediatamente;enquantooapetite,maloraciocínioouapercepçãolhedizemquedeterminadoobjetoéagradável,correadesfrutá-lo.Porconseguinte,acóleraobedeceemcertosentidoaoraciocínio,masoapetitenão.Porissoéelemaiscensurável,poisohomemincontinentecomrespeitoàcóleraévencidoemcertosentidopeloraciocínio,aopassoqueooutrooépeloapetiteenãopeloraciocínio.

Alémdisso,perdoamosmaisfacilmenteàspessoasqueseguemdesejosnaturais,ouseja,osapetitescomunsatodososhomens,namedidaemquesãocomuns.Ora,acóleraeairritabilidadesãomaisnaturaisdoqueoapetitepelosexcessos,istoé,porobjetosdesnecessários.Sirvadeexemploohomemquesedefendeudaacusaçãodehaverbatidonoprópriopaidizendo"sim,maselebatianoseu,eseupai, por suavez, batiano seu; e estemenino (apontandoparao seu filho)bateráemmimquandoforhomem;issoédefamília";ouohomemqueestava

sendolevadoderastospelofilhoelhepediuqueparasseàporta,poiseleprópriosóhaviaarrastadoseupaiatéali.

Por outro lado, osmais afeitos a conspirar contra outros sãomais criminosos.Ora,umhomemcolériconãoseinclinaaconspirar,nemofazaprópriacólera,queéabertaefranca;masanaturezadoapetiteéelucidadapeloqueospoetaschamamAfrodite,"insidiosafilhadeChipre",epelosversosdeHomerosobreoseu"cintobordado":

Ealiestãoossussurrosdeamor,

Tãosutisqueroubamarazãoaossábios,porprudentesquesejam.

Logo, se esta formade incontinência émais criminosa e vergonhosaque adacólera,elaéaomesmotempoincontinêncianosentidoabsolutoetambémvício.

Aindamais:ninguémcometedesregramentoscomumsentimentodedor,masacólera é sempre acompanhada de dor, enquanto o que comete desregramentosagecomprazer.Se,pois,osatosquemaisjustamenteincitamàcólerasãomaiscriminososdoqueosoutros,mais criminosa é a incontinênciaque sedeve aoapetite;porquantonacóleranãohádesregramento.

Ficabemclaro,pois,queaincontinênciacausadapeloapetiteémaisvergonhosado que aquela que se relaciona com a cólera; e tanto continência comoincontinência dizem respeito aos apetites e prazeres do corpo. Mas é precisodistinguir entre estes últimos, porque, como dissemos no começo, alguns sãohumanos e naturais tanto emespécie como emgrandeza, outros são brutais, eoutrosainda sedevema lesõesedoençasorgânicas.Sócomosprimeiros têmqueveratemperançaeaintemperança,eesseéomotivoporquenãochamamostemperantes nem sem limites aos animais inferiores, a não ser em linguagemfigurada e só quando alguma raça de animais supera uma outra nalibidinosidade,nosinstintosdedestruiçãoenaavidezonívora.Essesnãotêmafaculdade de escolher nem de calcular, mas são realmente desvios da normanatural,comoosloucosentrenós.

Ora,abrutezaéummalmenordoqueovício,sebemquemaisassustador,poisque a parte pervertida não foi a melhor, como no homem: os brutossimplesmentenãotêmumapartemelhor.É,pois,comosecomparássemosumacoisainanimadacomumservivoquantoàmaldade;porqueamaldadedaquiloquenãopossuiumafonteoriginadorademovimentoésempremenosdaninha,e

a razão é uma fonte originadora dessa espécie. E é também o mesmo quecomparara injustiçaemabstratocomumhomem injusto.Cadaumdosdoiséemcertosentidopior,poisumhomemmaucausarádezvezesmaisdanodoqueumbruto.

7

Comrespeitoaosprazeres,dores,apetiteseaversõesquenosvêmdotatoedopaladar, e aos quais havíamos reduzido anteriormente a temperança e aintemperança, é possível ter tal disposição que se seja vencido mesmo poraquelesqueamaioriadaspessoasdominam,oudominarmesmoaquelesaqueamaioria é incapaz de resistir. Entre essas possibilidades, as que se relacionamcomosprazeressãoaincontinênciaeacontinência,easqueserelacionamcomas dores são a moleza e a fortaleza. A disposição da maioria das pessoas éintermediária,emboraseinclinemaisparaasdisposiçõespiores.

Ora,comoalgunsprazeressãonecessárioseoutrosnão,eosprimeirososãoatécertoponto,masnãoosãoosseusexcessosedeficiências—ecomoistoétãoverdadeirodasdorescomodosapetites—,ohomemquebuscaoexcessodascoisas agradáveis ou busca em demasia as coisas necessárias, fazendo-odeliberadamente, por elas próprias e nunca tendo emvista algumoutro fim, ésem limite. Tal homem será necessariamente inacessível ao arrependimento e,por conseguinte, incurável, pois quem não pode arrepender-se não pode sercurado.

Ohomemquesemostradeficientenabuscadessascoisaséocontráriodosemlimite;eoqueocupaaposiçãomedianaétemperante.

Existe, igualmente, o homemque evita as dores corporais, nãoporque estas olevemdevencida,masporescolhadeliberada.(Dosquenãoescolhemtaisatos,umaespécieéconduzidaaelespelapromessadeprazereaoutraporfugiràdornascidadoapetite,demodoqueessestiposdiferementresi.Ora,todosfariampioropiniãodeumhomemque,semapetiteoucomumapetitefraco,cometessealgumatovergonhoso,doqueseofizessesobainfluênciadeumforteapetite,epior do homem que ferisse outro sem cólera do que se o fizesse levado pelacólera;poisquefariaeleentãoseasuairafossegrande?Eisaíporqueohomemsemlimiteépiordoqueoincontinente).

Das disposições indicadas, pois, a segunda é antes uma espécie de moleza,enquanto a primeira é intemperança.Ao passo que ao homem incontinente seopõe o continente, ao mole opõe-se o homem dotado de fortaleza; pois afortaleza consiste em resistir, enquanto a continência consiste em vencer, eresistirevencerdiferemumdooutroassimcomonãoperderdiferedeganhar;epor isso mesmo a continência é também mais digna de escolha do que afortaleza.

Ora,ohomemdeficientenotocanteàscoisasaqueamaioriaresiste,eofazcomêxito,émoleeefeminado;poisaefeminaçãotambéméumaespéciedemoleza.Talhomemdeixaarrastaroseumantoparaevitaroesforçodeerguê-loesimuladoença sem se considerar infeliz, ao passo que o homem a quem ele imita érealmenteinfeliz.

Ocasoéanálogonoquetangeàcontinênciaeàincontinência.Comefeito,nãoécoisadecausaradmiraçãoqueumhomemsejaderrotadoporprazeresoudoresviolentoseexcessivos,eaténosdispomosaperdoarseeleresistiucomofazoFiloctetesdeTeodectesquandopicadopelaserpente,ouoCercíondeCárcinonaÁlope, e como as pessoas que procuram conter o riso e irrompem numagargalhada,comoocorreuaXenofanto.Mascausasurpresaqueumhomemnãopossa resistir e seja derrotado por prazeres e dores que amaioria arrosta semgrandedificuldade,quandoissonãosedeveàhereditariedadeouàdoença,comoamolezaqueéhereditáriaentreosreisdoscitasouaquelaquedistingueosexofemininodomasculino.

O amigo de diversões é também considerado sem limite, mas na realidade émole.Porqueadiversãoéumrelaxamentodaalma,umdescansodotrabalho;eoamigodediversõeséumapessoaquevaiaoexcessoemtaiscoisas.

Daincontinência,umaespécieéimpetuosidadeeoutraéfraqueza.Comefeito,algunshomens,apósteremdeliberado,nãosabemmanter,devidoàemoção,asconclusões a que chegaram, enquanto outros, por não terem deliberado, sãolevadospela sua emoção.Eoutros (assim comoos que tomama iniciativa defazercócegaselespróprios),quandopercebemcomantecedênciaeveemoquevaiacontecer,despertamatempoefazemfuncionarasuafaculdadecalculadora,nãosendovencidospelaemoção,querestasejaagradável,querdolorosa.Sãoaspessoasdehumorvivaz ede temperamento excitável asmais sujeitas à formaimpetuosa de incontinência; porque as primeiras, devido à vivacidade, e assegundas, pormotivo da violência das paixões, não esperampelo raciocínio e

tendemaseguirasuaimaginação.

8

O homem sem limite, como dissemos, não costuma arrepender-se porque seatém ao que escolheu;mas qualquer homem incontinente pode arrepender-se.Porisso,aposiçãonãoétalcomoaexpressamosaoformularoproblema,masosem limite é incurável e o incontinente, curável. Porquanto a maldade seassemelhaaumadoençacomoahidropisiaouatísica,enquantoaincontinênciaécomoaepilepsia:aprimeiraépermanenteeasegunda,intermitente.E,deummodo geral, a incontinência e o vício diferem em espécie: o vício não temconsciênciadesimesmo,aincontinênciatem(doshomensincontinentes,osquetemporariamente perdem o domínio próprio são melhores do que os quepossuemoprincípioracionalmasnãoseatemaele,vistoqueossegundossãoderrotadosporumapaixãomaisfracaenãoagemsempréviadeliberação,comoosoutros);porqueohomemincontinenteécomoosqueseembriagamdepressaecompoucovinho—istoé,commenosdoqueamaioriadaspessoas.

Vê-seclaramente,pois,queaincontinêncianãoévício(sebemquetalvezosejanumsentidoparticularizado).Comefeito,aincontinênciaécontráriaàescolha,enquanto o vício segue o que escolheu. Isso, porém, não impede que seassemelhem nas ações a que conduzem.Como disseDemódoco dosmilésios,"quenãoeramprivadosde razão,mas faziamasmesmascoisasque fazemosinsensatos", também os incontinentes não são criminosos, mas praticam atoscriminosos.

Ora, como o homem incontinente tende a buscar, não por convicção, prazerescorporaisquesãoexcessivosecontráriosàretarazão,enquantoosemlimiteestáconvencidopor seraespéciedehomemfeitaparabuscá-los, éoprimeiroquefacilmentesedeixadissuadir,aopassoquecomosegundonãoaconteceassim.Com efeito, a virtude e o vício preservam e destroem, respectivamente, oprimeiro princípio, e na ação a causa final é o primeiro princípio, como ashipótesesosãonamatemática.Nemnaquelecaso,nemnesteéoraciocínioqueensinaosprimeirosprincípios—oqueensinaaretaopiniãoaseurespeitoéavirtude, quer natural, quer produzida pelo hábito. Um homem assim é, pois,temperante,eoseucontrárioéosemlimite.

Masháumaespéciedehomemqueéarrastadopelapaixãocontrariandoaregrajusta—umhomemaquemapaixãodominaportalformaqueéincapazdeagirde acordo com a reta razão, mas não ao ponto de fazê-lo acreditar que devabuscar taisprazeressemreservas.Esseéo incontinentequeésuperioraosemlimite e não é mau no sentido absoluto, pois nele se conserva o que tem demelhor,oprimeiroprincípio.Econtráriaaeleéoutraespéciedehomem,quesemantém firme nas suas convicções e não se deixa arrastar, ao menos pelapaixão.

Torna-seclaro,peloqueacabamosdedizer,queasegundaéumaboadisposiçãoeaprimeiraémá.

9

Écontinenteohomemque seatema todaequalquer regra, a todaequalquerescolha,ouaquelequeseatemàretaescolha?Eéincontinenteoqueabandonatodaequalquerescolha,assimcomotodaequalquerregra,ouoqueabandonaaregraeaescolhajustas?Foiassimquecolocamosanteriormenteoproblema.Ouseráacidentalmentea todaequalquerescolha,mas, emsi, à regraeà escolhajustasqueumseatemeooutronão?Quandoalguémescolheoubuscaistonointeresse daquilo, em si busca e escolhe o segundo, mas acidentalmente oprimeiro.Masquandofalamosemabsoluto,entendemosoqueébuscadoemsi.Logo,emcertosentidoumsustentaeooutroabandonatodaequalqueropinião;mas,emsentidoabsoluto,sóaretaopinião.

Háalgunsquetendemasustentarasuaopiniãoequesãochamadosteimosos,asaber:osquedeummodogeralsãodifíceisdepersuadire,emparticular,quenão se deixam persuadir facilmente a mudar de ideia. Esses têm algo desemelhanteaohomemcontinente,assimcomoopródigoseassemelhadecertomodoaoliberaleotemerárioaoconfiante;masdiferemamuitosrespeitos.Comefeito, é à paixão e ao apetite que um não quer ceder, já que outras vezes ohomem continente se mostra fácil de persuadir; mas é ao raciocínio que osoutros resistem, porque cultivam seus apetites e muitos deles são conduzidospelosprazeres.

Ora, as pessoas teimosas são as opiniáticas, as ignorantes e as rústicas— asopiniáticas, porque são influenciadas pelo prazer e pela dor, pois deleitam-se

comasuavitóriaquandonãosedeixampersuadiramudaresofremquandoassuasdecisõessetornamnulas,comosucedeàsvezescomosdecretos:demodoqueseassemelhammaisaohomemincontinentedoqueaoseucontrário.

Mas há alguns que abandonam as suas resoluções não por efeito daincontinência, como o Neoptólemo de Sófocles. Sem embargo, foi sob ainfluênciadoprazerqueeletergiversou—masdeumprazernobre;pois,paraele, dizer a verdade era nobre, e contudoUlisses o persuadira amentir. Comefeito,nem todososque fazemalgumacoisa tendoemvistaoprazer sãosemlimites, maus ou incontinentes, mas só os que a fazem por um prazervergonhoso.

Comotambémexisteumaespéciedehomemquesedeleitamenosdoquedevecom as coisas do corpo e não olha à reta razão, o intermediário entre ele e oincontinente é o homemcontinente.Com efeito, o incontinente não se atem àretarazãoporquesedeleitaemexcessocomtaiscoisas,eestehomemporquesedeleitademasiadamentepoucocomelas; aopassoqueohomemcontinente seatem à razão e nãomuda por nada destemundo.Ora, se a continência é boa,ambas as disposições contrárias devem sermás, como realmente parecem ser;mas,comoooutroextremoéobservadoemmuitopoucoseraramente,pensa-sequeacontinênciasótemumcontrário,aincontinência,domesmomodoqueatemperançasótemumcontrário,queéaintemperança.

Como muitos nomes são aplicados por analogia, é também por analogia queviemosa falarda"continência"dohomemtemperante;pois tantoocontinentecomootemperantesãodetalíndolequejamaiscontrariamaregrajustalevadospelosprazerescorporais;masoprimeiropossuieosegundonãopossuiapetitesmaus.Alémdisso,osegundoé talquenãosenteprazercontrárioà reta razão,enquantooprimeiroétalquesenteprazermasnãosedeixaconduzirporele.Eoincontinenteeosemlimitetambémseassemelhamnumponto:ambosbuscamosprazerescorporais;diferem,contudo,pelofatodeosegundopensarquedeveprocederassim,enquantooprimeiropensademodocontrário.

10

Tampouco é possível que o mesmo homem possua sabedoria prática e sejaincontinente. Com efeito, já mostramos que o homem dotado de sabedoria

prática é tambémumhomemde bom caráter.Alémdisso, a sabedoria práticanãonosvemapenasdoconhecimento,mastambémdacapacidadedeagir.Ora,oincontinenteéincapazdeagir.

Nada impede,porém,queumhomemhábil seja incontinente.Porestemotivo,alguns chegam a pensar que certas pessoas dotadas de sabedoria prática sãoincontinentes;comefeito,ahabilidadeeasabedoriapráticadiferemdamaneiraquedescrevemosemnossasprimeirasdiscussões,eestãopróximasumadaoutranotocanteaomododeraciocinar,masdistinguem-sequantoaoseupropósito.

Etampoucooincontinenteseparececomohomemquesabeecontemplaumaverdade,mascomoadormecidoouoembriagado.Eagevoluntariamente(poisage, em certo sentido, com conhecimento não só do que faz como do fimvisado); não é, porém,mau, visto que o seu propósito é bom; demodoque oincontinenteéapenasmeiomau.Poroutrolado,nãoécriminoso,poisnãoagepremeditadamente.

Dos dois tipos de homem incontinente, umnão se atem às conclusões do quedeliberou,enquantoooutronãodeliberaemabsoluto.Eassimoincontinenteseassemelha a uma cidade que aprova todos os decretos apropriados e temboasleis,masnãoaspõeemprática,comonaobservaçãograciosadeAnaxândrides:

Assimoquisacidadequenãofazcasoalgumdasleis.

Ohomemmau,pelocontrário,écomoumacidadequefazusodesuasleis,masemqueestassãomás.

Ora, a incontinência e a continência relacionam-se com o que excede adisposiçãocaracterísticadamaioriadoshomens;porqueohomemcontinenteseatemmais às suas resoluções e o incontinente menos do que a maioria podefazer.

Dasformasdeincontinência,aprópriadaspessoasexcitáveisémaiscurávelquea das que deliberam mas não se atem às suas conclusões, e os que sãoincontinentes por hábito são mais curáveis do que aqueles em que aincontinênciaéinata;poisémaisfácilmudarumhábitodoquealteraranossanatureza;eoprópriohábitomudadificilmenteporqueseassemelhaànatureza,comodizEveno:

Ohábito,meucaro,nãoésenãoumalongaprática

Queacabaporfazer-senatureza.

Terminamosdemostraroquesãoacontinênciaeaincontinência,afortalezaeamoleza,ecomoessasdisposiçõesserelacionamumascomasoutras.

11

Oestudodoprazeredadorpertenceaocampodofilósofopolítico,poiseleéoarquitetodofimcomvistasnoqualdizemosqueumacoisaémáeoutraéboaemabsoluto.Alémdisso,considerá-loséumadenossastarefasnecessárias,poisnãoapenasassentamosqueavirtudeeovíciomoraisdizemrespeitoadoreseprazeres,masamaioriapensaqueafelicidadeenvolveprazer;eporissosedeuaohomemfelizumnomederivadodeumapalavraquesignificaprazer.

Ora,paraalgumaspessoasnenhumprazeréumbem,queremsimesmo,queracidentalmente, visto que o bem e o prazer não são a mesma coisa; outrospensamquealgunsprazeressãobons,masamaioriadelessãomaus.Háaindaumaterceiraopinião,segundoaqual,mesmoquetodososprazeressejambons,amelhorcoisadomundonãopodeseroprazer.

Estessãoosargumentosemfavordaopiniãodosquenegamabsolutamentequeoprazersejaumbem:Todoprazeréumprocessoperceptívelaumadisposiçãonatural,enenhumprocessoédamesmaespéciequeoseufim,porexemplo:oprocesso da construção não é da mesma espécie que a casa. O homemtemperanteevitaosprazeres,Ohomemdotadodesabedoriapráticabuscaoqueé isento de dor e não o que é agradável. Os prazeres são um obstáculo aopensamento, e quanto mais o são, mais nos deleitamos neles, como, porexemplo,oprazersexual,poisninguémêcapazdepensarnoquequerquesejaquandoestáabsorvidonele.Nãoexisteartedoprazer,aopassoquetodobeméprodutodealgumaarte.Ascriançaseosbrutosbuscamosprazeres.

Aopiniãodequenemtodososprazeressãobonsbaseia-seemdoisargumentos:existemprazeresquesãorealmenteviseobjetosdecensura,eexistemprazeresnocivos,poisalgumascoisasagradáveissãomalsãs.

Oargumentoemfavordaopiniãosegundoaqualamelhorcoisadomundonãoéoprazeréqueestenãoéumfim,masumprocesso.

12

Estassãomaisoumenosascoisasquesecostumadizer.Detaispremissasnãose segue que o prazer não seja um bem, oumesmo omaior dos bens, comomostramasseguintesconsiderações:

Primeiro,vistoqueaquiloqueébompodesê-lonumdedoissentidos(umacoisaé simplesmente boa, enquanto outra é boa para determinada pessoa), asconstituiçõesedisposiçõesnaturaisdoser,comoscorrespondentesmovimentoseprocessos,serãodivisíveisdamesmaforma.

Dos que são consideradosmaus, alguns o serão em absoluto, porém não parauma pessoa determinada, mas merecedores da sua escolha; e alguns nãomerecerãosequeraescolhadeumapessoadeterminada,anãosernumaocasiãoparticulareporbreveperíodo,eassimmesmocomrestrições;outros,enfim,nãochegama serprazeres,masapenasparecem tais.Refiro-meaosqueenvolvemdorecujofimécurativo,comoosprocessosqueocorremnaspessoasdoentes.

Além disso, sendo uma espécie de bem atividade e outra espécie, estado, osprocessos que nos restituem ao nosso estado natural só são agradáveisacidentalmente.Aliás,aatividadecanalizadaparaosapetitesquetêmessesbenspor objeto é a atividade daquela parte de nosso estado e natureza quepermaneceuincólume;poisemverdadeháprazeresquenãoenvolvemdornemapetite (como os da contemplação, por exemplo), estando a natureza intatanessescasos.Queosoutrossãoacidentais, indica-oofatodealgumaspessoasnão se deleitarem, quando sua natureza se encontra no estadonormal, comosmesmos objetos agradáveis que lhes causam prazer quando ela está sendorefeita; mas no primeiro caso deleitam-se com coisas que são agradáveis nosentidoabsoluto,enosegundo,tambémcomoscontráriosdestas,inclusivecomcoisasacreseamargas,nenhumadasquaiséagradávelquerpornatureza,querem sentido absoluto.Os estados que elas produzem, por conseguinte, não sãoprazeres naturalmente nem no sentido absoluto; pois, assim como as coisasagradáveisdiferementresi,tambémdiferemosprazeresqueelasproporcionam.

Por outro lado, não é necessário que exista algo melhor do que o prazersimplesmentepordizeremalgunsqueo fimémelhordoqueoprocesso.Comefeito,osprazeresnãosãoprocessos,nem todoselesenvolvemprocessos: são

atividadesefins.Etampoucoosexperimentamosquandonosestamostornandoalgumacoisa,masquandoexercemosalgumafaculdade;enemtodososprazerestêmumfimdiferentedelesmesmos,massóosprazeresdaspessoasqueestãosendoconduzidasaoaperfeiçoamentodesuanatureza.Eisporquenãoécertodizerqueoprazersejaumprocessoperceptível,masantesdeveríamoschamá-loatividadedoestadonaturale,emvezde"perceptível","desimpedida".Algunsoconsideramumprocessosimplesmenteporquepensamqueeleébomnosentidoestrito do termo; pois julgam, equivocadamente, que a atividade seja umprocesso.

A opinião de que os prazeres sãomaus porque algumas coisas agradáveis sãomalsãsequivaleadizerqueascoisassaudáveissãomásporquealgumascoisassaudáveis nos impedem de ganhar dinheiro. Ambas são más nos casosparticularesmencionados,masnãosãomásemsimesmasporessarazão;eatépodesuceder,àsvezes,quepensarfaçamalàsaúde.

Nemasabedoriaprática,nemqualquerestadodoseréimpedidopeloprazerqueeleproporciona.Sãoosprazeresestranhosquetêmumefeitoimpeditivo,vistoqueosprazeresadvindosdopensaredoaprendernosfazempensareaprenderaindamais.

Nadamais natural doqueo fatodenenhumprazer ser oprodutodeumaartequalquer.Nãoexisteartedenenhumaoutraatividadetampouco,masapenasdafaculdade correspondente, embora seja certo que as artes do perfumista e docozinheirosãoconsideradasartesdeprazer.

Os argumentos baseados nas premissas de que o homem temperante evita osprazeres,edequeohomemdotadodesabedoriapráticabuscaavidasemdoredequeascriançaseosbrutosbuscamoprazersãotodosrefutadospelamesmaconsideração. Já mostramos em que sentido alguns prazeres são bons emabsoluto e em que sentido outros não são bons.Ora, tanto os brutos como ascriançasbuscamprazeresdasegundaespécie (eohomemdesabedoriapráticabuscauma tranquila isençãodosprazeresdessaespécie): referimo-nosaosqueimplicamapetiteedor;istoé,osprazerescorporais(poisesteséquesãodetalnatureza), e aos excessos dos mesmos, em virtude dos quais se diz que umhomemésemlimite.Eisaíporqueohomemtemperanteevitaessesprazeres;porquantoeletambémtemosseusprazerespróprios.

13

Mas, além disso, todos concordam em que a dor é má e deve ser evitada;porquantoalgumasdoressãomásemsentidoabsoluto,eoutrassãomásporquedealgummodonosservemde impedimento.Ora,ocontráriodoquedeveserevitado, enquanto coisa vitanda e má, é bom. O prazer, por conseguinte, énecessariamente um bem. E a resposta de Espeusipo, dizendo que o prazer écontrário tanto à dor como ao bem, assim como omaior é contrário tanto aomenor como ao igual, não consegue convencer, pois que o próprio Espeusiponãodiriaqueoprazeré,essencialmente,umasimplesespéciedemal.

E, se certos prazeres sãomaus, isso não impede que o sumo bem seja algumprazer,assimcomoosumobempodeseralgumaespéciedeconhecimento,nãoobstantecertasespéciesdeconhecimentoseremmás.Talvezsejaaténecessário,se a cada disposição pode corresponder uma atividade desimpedida, que, nãosendoafelicidadeoutracoisasenãoaatividadedesimpedidadetodasasnossasdisposiçõesoudealgumasdelas,sejaessaacoisamaisdignadenossaescolha;eessa atividade é prazer. E assim, o sumo bem seria alguma espécie de prazer,emboraamaioriadosprazeresfossemtalvezmausemsentidoabsoluto.

Poressamesma razão todososhomenspensamqueavida felizéagradáveleentremeiam o prazer no seu ideal da felicidade — o que, aliás, é bastantesensato, jáquenenhumaatividadeéperfeitaquandoimpedida,eafelicidadeéumacoisaperfeita.Eisaíporqueohomemfeliznecessitadosbenscorporaiseexteriores, istoé,osda fortuna,a fimdenãoser impedidonessescampos.Osque dizem que o homem torturado no cavalete ou aquele que sofre grandesinfortúnioséfelizseforbomestãodisparatando,querfalemasério,quernão.

E pelo fato de necessitarmos da fortuna como de outras coisas, algunsidentificam a boa fortuna com a felicidade; mas sucede que a própria boafortuna,quandoemexcesso,éumobstáculo,etalvezjánãomereçaonomedeboafortuna,poisqueoseulimiteéfixadocomreferênciaàfelicidade.

E em verdade o fato de todos os seres, tanto os brutos como os homens,buscaremoprazeréumindíciodequeeleseja,decertomodo,osumobem:

Nuncaseperdedetodoavozquemuitospovos...

Mas, assim como nenhuma natureza e nenhum estado são considerados osmelhoresparatodos,tambémnemtodosbuscamomesmoprazer;nãoobstante,

todosbuscamoprazer.Etalveznarealidadebusquem,nãooprazerquejulgamouquedizembuscar,masomesmoprazer;pois todasascoisascontêmemsi,pornatureza,algodedivino.Masosprazerescorporaisapropriaram-sedonometantoporqueosbuscamoscommaisfrequênciadoqueaosoutros,comoporquetodos os homens participam deles; e assim, por não conhecerem outros, oshomenspensamqueelesnãoexistem.

É evidente, por outro lado, que se o prazer, isto é, a atividade de nossasfaculdades,nãoéumbem,ninguémpoderádizerqueohomemfeliztenhaumavidaagradável;poiscomquefimnecessitariaeledoprazerseestenãoéumbemeohomemfelizpodeatélevarumavidadesofrimentos?Eadornãoénemummal,nemumbem,seoprazernãooé:porque,então,evitá-la?Porconseguinte,tambémavidadohomembomnãoserámaisagradávelqueadequalqueroutro,seassuasatividadesnãoforemmaisagradáveis.

Com respeito aos prazeres corporais, os que dizem que alguns prazeres sãomuito dignos de escolha, a saber, os nobre, porém não os corporais, isto é,aqueles a que se dedica o homem sem limite, devemexaminar por que, nessecaso,asdorescontrárias sãomás.Porquantoocontráriodomauébom.Serãobonsosprazeresnecessáriosnosentidoemquemesmoaquiloquenãoémauébom?Ouserãobonsatécertoponto?Dar-se-áocasoque,sedealgunsestadoseprocessos não pode haver demasia, tampouco a pode haver do prazercorrespondente, e quando aqueles comportam excesso, também o comportamestes?

Ora,écertoquepodehaverexcessodebenscorporais,eohomemmauémaupor buscar o excesso e não por buscar os prazeres necessários (pois todos oshomens deleitam-se de um modo ou de outro com acepipes saborosos, comvinhosecomauniãosexual,masnemtodosofazemcomodevem).Comadordá-seocontrário,poiselenãoevitaoseuexcesso:evita-adetodo;eissolheépeculiar,jáqueoexcessodeprazernãotemcomoalternativaador,salvoparaohomemquebuscaesseexcesso.

Comodevemosexpornãosomenteaverdade,mastambémacausadoerro—pois issocontribuiparaconvencer,umavezquequandosedáumaexplicaçãorazoáveldeporqueofalsopareceverdadeiro,issotendeafortaleceracrençanaopinião verdadeira —, cumpre-nos mostrar agora a razão de os prazerescorporaispareceremmaisdignosdeescolha.

Emprimeirolugar,pois,éporqueelesexpulsamador:devidoaosexcessosdedorqueexperimentam,oshomensbuscamprazeresexcessivose,emgeral,denaturezacorporalcomoremédioparaador.Ora,osmeioscurativosprovocamintensosentimento(eéesteomotivodeserembuscados),pelocontrasteentreeleseadorcontrária.(E,emverdade,considera-sequeoprazernãoébomporestas duas razões, como já dissemos, a saber: que alguns deles são atividadespertinentes a uma natureza má— quer congênita no caso de um bruto, querdevidaaohábito,istoé,adoshomensmaus:aopassoqueoutrossedestinamacurar uma natureza deficiente; ora, é melhor gozar saúde do que estar-securando, mas esses prazeres surgem durante o processo de cura e, porconseguinte,sãobonsapenasacidentalmente).

Além disso, eles são buscados devido à sua violência pelos que não podemdesfrutaroutrosprazeres. (Em todocaso,dão-se ao trabalhode fabricar sedes,por assim dizer, para si mesmos; quando estas são inofensivas, a prática éinocente,equandosãoprejudiciais,émá.)Taispessoasnãotêmnadamaisquegozar e, além disso, para a natureza de muitas pessoas um estado neutro édoloroso. Com efeito, a natureza animal está em constante labuta, e isto étambém confirmado pelos estudiosos de ciência natural quando dizem seremdolorosasavisãoeaaudição,sucedendoapenasquenosacostumamosaelas.

Do mesmo modo, as pessoas jovens, devido ao processo de crescimento,encontram-senumacondiçãosemelhanteàdosembriagados,eamocidadeéumestadoagradável.Aspessoasdenaturezaexcitável,poroutro lado,necessitamconstantementedealívio;oseuprópriocorpoviveatormentadoporefeitodeseutemperamento,eelasestãosempresobainfluênciadeumdesejoviolento;masadoréexpulsadanãosópeloprazercontráriocomoporqualquerprazer,contantoquesejaforte;eporestarazãoelassetornamsemlimitesemás.

Osprazeresquenãoenvolvemdor,pelocontrário,nãoadmitemexcesso;eessessecontamentreascoisasagradáveispornaturezaenãoporacidente.Porcoisasacidentalmente agradáveis entendo as que agem como meios curativos (pelomotivodeseremaspessoascuradasporelas,mediantealgumaaçãodapartequepermanecesadia,oprocessoéconsideradoagradável);eporcoisasnaturalmenteagradáveisentendoasqueestimulamaaçãodanaturezasã.

Nãoexistecoisaalgumaquesejasempreagradável,jáquenossanaturezanãoésimples,masexisteemnóstambémoutroelementoporsermoscriaturasmortais;demodo que, se um elemento produz determinado efeito, este é antagônico à

outra natureza; e quando os dois elementos estão equilibrados o efeito nãoparece agradável nem desagradável; porquanto, se a natureza de um ser fossesimples,amesmacoisalheseriasempreagradávelnomaisaltograu.ÉporissoqueDeussempregozaumprazerúnicoesimples:comefeito,nãoexisteapenasuma atividade do movimento, mas também uma atividade do repouso, eexperimenta-semaisprazernorepousodoquenomovimento.Mas"amudançaéaprazívelemtodasascoisas",comodizopoeta,emrazãodealgumvício;pois,assimcomoohomemvicioso se caracterizapelamutabilidade, anaturezaquenecessitademudaréviciosa,pornãosersimplesnemboa.

Aquiterminaanossadiscussãodacontinênciaedaincontinência,doprazeredador.Mostramos tantooquecadauméemsicomoemquesentidoalgunssãobonseoutrosmaus.Restaagorafalardaamizade.

LIVROVIII

1

Depoisdoquedissemossegue-senaturalmenteumadiscussãodaamizade,vistoque ela é uma virtude ou implica virtude, sendo, além disso, sumamentenecessária à vida. Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda quepossuíssetodososoutrosbens.Eacredita-se,mesmo,queosricoseaquelesqueexercemautoridade epoder sãoosquemais precisamde amigos; pois dequeserve tanta prosperidade sem um ensejo de fazer bem, se este se fazprincipalmente e sob a forma mais louvável aos amigos? Ou como se podemanter e salvaguardar a prosperidade sem amigos? Quanto maior é ela, maisperigoscorre.

Poroutrolado,napobrezaenosdemais infortúniososhomenspensamqueosamigossãooseuúnicorefúgio.Aamizadetambémajudaosjovensaafastar-sedo erro, e aos mais velhos, atendendo-lhes às necessidades e suprindo asatividadesquedeclinamporefeitodosanos.Aosqueestãonovigordaidadeelaestimulaàpráticadenobresações,poisnacompanhiadeamigos—"doisqueandamjuntos"—oshomenssãomaiscapazestantodeagircomodepensar.

E tambémospais parecem senti-la naturalmentepelos filhos e os filhospelospais, não só entre os homens, mas entre as aves e a maioria dos animais.Membrosdamesmaraçaasentemunspelosoutros,eespecialmenteoshomens;por isso louvamos os amigos de seu semelhante. Até em nossas viagenspodemosverquantocadahomeméchegadoecaroatodososoutros.Aamizadetambém parecemanter unidos os Estados, e dir-se-ia que os legisladores têmmaisamoràamizadedoqueàjustiça,poisaquiloaquevisamacimadetudoéàunanimidade, que tem pontos de semelhança com a amizade; e repelem osectarismocomosefosseoseumaiorinimigo.Equandooshomenssãoamigosnão necessitam de justiça, ao passo que os justos necessitam também daamizade;econsidera-sequeamaisgenuínaformade justiçaéumaespéciedeamizade.

Nãoéela,contudo,apenasnecessária,mastambémnobre,porquantolouvamos

osqueamamosseusamigoseconsidera-seumabelacoisatermuitosdeles.Epensamos,poroutrolado,queasmesmaspessoassãohomensbonseamigos.

Ora,certospontosatinentesàamizadesãomatériadedebate.Algunsadefinemcomoumaespéciedeafinidadeedizemqueaspessoassemelhantessãoamigas,donde os aforismos "igual com igual", "cada ovelha com sua parelha", etc.;outros,pelocontrário,dizemque"doisdomesmoofícionuncaestãodeacordo".E investigam esta questão buscando causas mais profundas e mais físicas,dizendoEurípedesque"aterraressecaamaachuva,eomajestosocéu,quandoprenhe de chuva, adora cair sobre a terra", eHeráclito: "o que se opõe é queajuda", e "de notas diferentes nasce a melodia mais bela", e ainda: "todas ascoisassãogeradaspelaluta";aopassoqueEmpédocles,juntamentecomoutros,exprimeaopiniãocontráriadequeosemelhantebuscaosemelhante.

Quantoaosproblemasfísicos,podemosdeixá-losdeparte,poisnãopertencemàpresente investigação.Examinemos os que são humanos e envolvem caráter esentimento, por exemplo: se a amizade pode nascer entre duas pessoasquaisquer,sepodemseramigososmaus,eseexisteumasóespéciedeamizade,ou mais. Os que pensam que só existe uma porque a amizade admite grausbaseiam-senumindícioinadequado,vistoquemesmoascoisasquediferememespécieadmitemgraus.Esteassuntojáfoidiscutidopornósanteriormente.

2

Talvez possamos deslindar as espécies de amizade se começarmos por tomarconhecimentodoobjetodoamor.Ora,nemtudopareceseramado,masapenasoestimável, e este é bom, agradável ou útil.Mas o útil, em suma, é aquilo queproduz algo de bom ou agradável, de modo que são o bom e o útil que sãoestimáveiscomofins.

Oshomensamam,então,oqueébomemsiouoqueébomparaeles?Osdoisentramporvezesemconflito.Eomesmopode-sedizernotocanteaoagradável.Ora,pensa-sequecadaumamaoqueébomparaele,eoqueéboméestimávelem simesmo, enquanto o que é bompara cada um é estimável para ele;mascada homem ama não o que é bom para ele, e sim o que parece bom. Isso,contudo, não vem ao caso; limitar-nos-emos a dizer que ele é "o que pareceestimável".

Ora,aspessoasamamportrêsrazões.Paraoamordosobjetosinanimadosnãousamosapalavra "amizade",poisnãose tratadeamormútuo,nemumdesejabemaooutro(seria,comefeito,ridículosedesejássemosbemaovinho;sealgolhe desejamos é que se conserve, para que continuemos dispondo dele); notocanteaosamigos,porém,diz-sequedevemosdesejar-lhesobemnointeressedeles próprios. Mas aos que desejam bem dessa forma só atribuímosbenevolência, se o desejo não é recíproco; a benevolência, quando recíproca,torna-seamizade.Ouseráprecisoacrescentar"quandoconhecida"?Poismuitagentedesejabemapessoasquenuncaviu,easjulgaboaseúteis;eumadelaspoderiaretribuir-lheessesentimento.Taispessoasparecemdesejarbemumasàsoutras;mascomochamá-lasdeamigosseignoramosseusmútuossentimentos?Afimdeseremamigas,pois,devemconhecerumaàoutracomodesejando-sebemreciprocamenteporumadasrazõesmencionadasacima.

3

Ora, essas razõesdiferemumasdas outras emespécie; portanto, é emespécieque diferem também as correspondentes formas de amor e de amizade. Há,assim,trêsespéciesdeamizade,iguaisemnúmeroàscoisasquesãoestimáveis;poiscomrespeitoacadaumadelasexisteumamormútuoeconhecido,eosqueseamamdesejam-sebemarespeitodaquiloporqueseamam.

Ora,osque se amampor causade suautilidadenão se amampor simesmos,masemvirtudedealgumbemquerecebemumdooutro.Idênticacoisasepodedizer dos que se amam por causa do prazer; não é devido ao caráter que oshomensamamaspessoasespirituosas,masporqueasachamagradáveis.Logo,osqueamamporcausadautilidade,amampeloqueébomparaelesmesmos,eosqueamamporcausadoprazer,amamemvirtudedoqueéagradávelaeles,enãonamedidaemqueooutroéapessoaamada,masnamedidaemqueéútilouagradável.

Deformaqueessasamizadessãoapenasacidentais,poisapessoaamadanãoéamadaporserohomemqueé,masporqueproporcionaalgumbemouprazer.Eisporquetaisamizadessedissolvemfacilmente,seaspartesnãopermanecemiguaisasimesmas:comefeito,seumadaspartescessadeseragradávelouútil,aoutradeixadeamá-la.

Ora, o útil não é permanente, mas muda constantemente. E assim, quandodesapareceomotivodaamizade,estasedissolve,poisqueexistiaapenasparaosfinsdequefalamos.Essaespéciedeamizadepareceexistirprincipalmenteentrevelhos (poisnavelhice aspessoasbuscamnãoo agradável,masoútil) e, dosjovens e dos que estão no vigor dos anos, entre os que buscam a utilidade.Etampoucotaispessoasconvivemmuitoumascomasoutras,poisàsvezesnemsequer se veem com agrado, e por isso não sentem necessidade de talcompanhia,amenosquesejammutuamenteúteis:oconvíviosólheséagradávelnamedidaemquedespertamumanaoutraaesperançadealgumbemfuturo.

Entre essas amizades alguns classificam também a que se observa entrehospedeiro e hóspede. A amizade dos jovens, por outro lado, parece visar aoprazer,poiselessãoguiadospelaemoçãoebuscamacimadetudooquelheséagradável e o que têm imediatamente diante dos olhos;mas como correr dosanos os seus prazeres tornam-se diferentes. E por isso que fazem e desfazemamizades rapidamente: sua amizade muda com o objeto que lhes pareceagradável,etalprazersealterabemdepressa.

Osjovenssãotambémamorosos,pois,emsuamaiorparte,aamizadequeexisteno amor depende da emoção e visa ao prazer; é por isso que tão depressa seapaixonamcomoesquecemasuapaixão,muitasvezesmudandonoespaçodeumdia.Masécertoquetaispessoasdesejampassarjuntasosseusdiaseasuavidainteira,poissóassimalcançamopropósitodasuaamizade.

Aamizadeperfeitaéadoshomensquesãobonseafinsnavirtude,poisessesdesejamigualmentebemumaooutroenquantobons,esãobonsemsimesmos.Ora, os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os maisverdadeiramenteamigos,porqueofazememrazãodasuapróprianaturezaenãoacidentalmente.Porissosuaamizadeduraenquantosãobons—eabondadeéumacoisamuitodurável.Ecadaumébomemsimesmoeparaoseuamigo,poisosbonssãobonsemabsolutoeúteisumaooutro.Edamesmaformasãoagradáveis,porquantoosbonsosãotantoemsimesmoscomoumparaooutro,vistoqueacadaumagradamassuasprópriasatividadeseoutrasquelhessejamsemelhantes,easaçõesdosbonssãoasmesmasousemelhantes.

Talamizadeé,comoseriadeesperar,permanente,jáqueelesencontramumnooutro todas as qualidades que os amigos devem possuir. Com efeito, toda aamizade tememvistaobemouoprazer—bemouprazer,quer emabstrato,quer tais que possam ser desfrutados por aquele que sente a amizade —, e

baseia-se numa certa semelhança. E à amizade entre homens bons pertencemtodasasqualidadesquemencionamos,devidoànaturezadosprópriosamigos,poisnumaamizadedestaespécieasoutrasqualidadestambémsãosemelhantesem ambos; e o que é irrestritamente bom também é agradável no sentidoabsoluto do termo, e essas são as qualidadesmais estimáveis que existem. Oamor e a amizade são, portanto, encontrados principalmente e em suamelhorformaentrehomensdestaespécie.

Mas é natural que tais amizades não sejam muito frequentes, pois que taishomens são raros. Acresce que uma amizade dessa espécie exige tempo efamiliaridade. Como diz o provérbio, os homens não podem conhecer-semutuamente enquanto nãohouverem "provado sal juntos"; e tampoucopodemaceitarumaooutro comoamigos enquanto cadaumnãoparecer estimável aooutro e este não depositar confiança nele. Os que não tardam a mostrarmutuamentesinaisdeamizadedesejamseramigos,masnãoosãoamenosqueambos sejam estimáveis e o saibam; porque o desejo da amizade pode surgirdepressa,masaamizadenão.

4

Essaespéciedeamizade,pois,éperfeitatantonoqueserefereàduraçãocomoaoutrosrespeitos,enelacadaumrecebedecadaumatodososrespeitosomesmoquedá,oualgodesemelhante;eéexatamenteissooquedeveacontecerentreamigos.

Aamizadequevisaaoprazertemcertaparecençacomestaespécie,porquantoaspessoasboassãodefatoagradáveisumasàsoutras.Omesmosepodedizerdaamizadequebuscaautilidade,poisosbonstambémsãoúteisunsaosoutros.Entre os homens destas espécies inferiores as amizades sãomais permanentesquandoosamigosrecebemamesmacoisaumdooutro(oprazer,porexemplo)— e não só amesma coisa,mas tambémdamesma fonte, como ocorre entrepessoasespirituosas,enãocomosucedeentreamanteeamado.Porquantoestesnão recebem prazer das mesmas fontes, mas o amante compraz-se em ver oamadoeesteemreceberatençõesdoseuamante;equandocomeçaapassaroviçodamocidadeaamizadetambémsedesvanece(porqueumnãoexperimentaprazer em ver o outro, e o segundo não mais recebe atenções do primeiro).Muitosamantes,porém,sãoconstantes,quandoafamiliaridadeoslevaaamaro

caráterumdooutropelaafinidadequeexisteentreeles.Masaquelescujoamorconsistenumatrocadeutilidadesenãodeprazeressão,aomesmotempo,menosverdadeiramente amigos emenos constantes.Os que são amigos por causa dautilidade separam-se quando cessa a vantagem, porque não amavam um aooutro,masapenasoproveito.

Porconseguinte,quandooqueselevaemmiraéoprazerouautilidade,atéosmauspodemseramigosunsdosoutros,ouosbonspodemseramigosdosmaus,ou aquele que não é bom nem mau pode ser amigo de qualquer espécie depessoa;masporsimesmos,sóoshomensbonspodemseramigos.Comefeito,os maus não se deleitam com o convívio uns dos outros, a não ser que essarelaçãolhestragaalgumavantagem.

A amizade entre os bons, e só ela, tambémé invulnerável à calúnia, pois nãodamosouvidosfacilmenteàspalavrasdequalquerumarespeitodeumhomemque durante muito tempo submetemos à prova; e é entre os bons que sãoencontradas a confiança, o sentimento expresso pelas palavras "ele nuncamefaria uma deslealdade", e todas as outras coisas que se requerem numaverdadeira amizade.Nasoutras espécies de amizade, porém,nada impedequetaismalesvenhamamanifestar-se.

Comefeito,oshomensaplicamonomedeamigosmesmoàquelescujomotivoéa utilidade, e nesse sentido se diz que as disposições são amigáveis (pois asaliançasdedisposiçõesparecemvisaràvantagem),etambémaosqueseamamcomvistasnoprazer—eénestesentidoquesedizseremamigasascrianças.Portanto, nós tambémdeveríamos talvez chamar amigas a tais pessoas e dizerqueexistemdiversas espéciesdeamizade—primeiro, eno sentidopróprio, ados homensbons enquantobons, e por analogia as outras espécies; pois é emvirtude de algo bom e algo semelhante ao que é encontrado na verdadeiraamizadequeelessãoamigos,jáqueatéoagradávelébomparaosqueamamoprazer.Masessasduasespéciesdeamizadenãosejuntamcomfrequência,nemas mesmas pessoas se tornam amigas tendo em vista a utilidade e o prazer;porquanto as coisas que só acidentalmente se relacionam umas com as outrasnãoandammuitasvezesjuntas.

Dividindo-se,pois,aamizadenestasespécies,osmausserãoamigoscomvistasnautilidadeounoprazer,eaesserespeitoseassemelharãoumaooutro;masosbons serão amigos por elesmesmos, isto é, em razão da sua bondade. Esses,pois,sãoamigosnosentidoabsolutodotermo,eosoutrososãoacidentalmente

eporumasemelhançacomosprimeiros.

5

Assim como, no tocante às virtudes, alguns homens são chamados bons comreferênciaaumadisposiçãodecarátereoutroscomreferênciaaumaatividade,tambémomesmosucedenoquediz respeito à amizade.Efetivamente,osquevivemjuntosdeleitam-seumcomooutroeconferem-semútuosbenefícios,masosquedormemouqueseachamseparadosnoespaçonãorealizam,masestãodispostos a realizar os atos da amizade.A distância não rompe a amizade emabsoluto,masapenasasuaatividade.Todavia,seaausênciaduramuitotempo,parece realmente fazer com que os homens esqueçam a sua amizade; daí oprovérbio"longedosolhos,longedocoração".

Nem os velhos, nem as pessoas acrimoniosas parecem fazer amigos comfacilidade.Comefeito, taispessoaspouco têmdeagradável,eninguémdesejapassar seus dias com alguém cuja companhia é dolorosa ou não é agradável,vistoqueanaturezapareceacimadetudoevitarodolorosoebuscaroagradável.Aqueles, porém, que aprovamumao outromas não convivem, parecem antesolhar-se com simpatia do que ser verdadeiros amigos. Porquanto nada émaiscaracterístico dos amigos do que o convívio; e, embora sejam os que sofremnecessidade que desejam benefícios, mesmo os que são sumamente felizesdesejam passar os dias juntos; e é justamente a esses que menos agrada asolidão. Mas as pessoas não podem conviver se não são agradáveis umas àsoutrasenãosedeleitamcomasmesmascoisas,comoparecemfazerosamigosquesãotambémcompanheiros.

A verdadeira amizade é, pois, a dos bons, como tantas vezes dissemos.Efetivamente, o que é bomou agradável no sentido absoluto do termo pareceestimáveledesejável,eacadaumseafiguraseroqueébomeagradávelparaele; e por ambas essas razões o homem bom é estimável e desejável para ohomem bom. Ora, dir-se-ia que o amor é um sentimento e a amizade é umadisposição de caráter, porque se pode sentir amor mesmo pelas coisasinanimadas,mas o amormútuo envolve escolha, e a escolha procede de umadisposiçãodecaráter.Eoshomensdesejambemàquelesaquemamamporelesmesmos,nãoporefeitodeumsentimento,masdeumadisposiçãodecaráter.Efinalmente, os que amam um amigo amam o que é bom para eles mesmos;

porqueohomembom,aotornar-seamigo,passaaserumbemparaoseuamigo.Cadaqual, portanto, aomesmo tempoque amaoque ébompara ele, retribuicombenevolência e aprazibilidadeem igualdadede termos;porque sedizqueamizadeéigualdade,eambassãoencontradasmaiscomumentenaamizadedosbons.

6

Entrepessoasidosaseacrimoniosasémenosfácilformar-seamizade,porquantotais pessoas sãomenosbem-humoradas e se comprazemmenosna companhiaumasdasoutras;eestassãoconsideradasasmaioresmarcasdeamizadeeasquemaiscontribuemparaproduzi-la.Éporissoque,enquantoosjovenssãorápidosemfazeramizades,omesmonãosedácomosvelhos:oshomensnãosetornamamigos daqueles em cuja companhia não se comprazem. E, damesma forma,também as pessoas acrimoniosas não se tornam amigas facilmente. Mas taishomens podem sentir benevolência uns pelos outros, desejando-se bem eajudando-se quando um precisa do outro.Mal se pode dizer, no entanto, quesejamamigos,porquenãopassamosdiasjuntosnemsedeleitamnacompanhiaumdooutro;eestassãoconsideradasasmaioresmarcasdaamizade.

Não se pode ser amigo de muitas pessoas no sentido de ter com elas umaamizadeperfeita,assimcomonãosepodeamarmuitaspessoasaomesmotempo(poisoamoré,decertomodoumexcessodesentimentoeestánasuanaturezadirigir-se a uma pessoa só); e não sucede facilmente que muitas pessoas, aomesmo tempo, agradem muito a um indivíduo só, ou mesmo, talvez, quepareçam boas aos seus olhos. É preciso, por outro lado, adquirir algumaexperiência da outra pessoa e familiarizar-se com ela, e isso custa muitotrabalho, Mas com vistas na utilidade ou no prazer, é possível que muitaspessoasagrademaumasó,poismuitaspessoas sãoúteisouagradáveis, e taisserviçosnãoexigemmuitotempo.

Dessas duas espécies, a que tem em mira o prazer parece-se mais com aamizade, quando ambas as partes recebem as mesmas coisas uma da outra edeleitam-se uma com a outra ou com as mesmas coisas, como acontece nasamizades dos jovens; pois é em tais amizades que se observa com maisfrequência agenerosidade.Aamizadeque sebaseianautilidadeéprópriadaspessoasdeespíritomercantil.

Tambémaspessoassumamentefelizesnãonecessitamdeamigosúteis,massimde amigos agradáveis; porque desejam viver com alguém e, embora possamsuportarduranteumcurtoespaçodetempooqueédoloroso,ninguémotolerariaconstantemente, mesmo que se tratasse do próprio Bem, se este lhe fossedoloroso.Éporissoquebuscamamigosagradáveis;mastalvezdevessembuscaraqueles que, sendo agradáveis, fossem tambémbons, inclusive para eles; poisassimpossuiriamtodasascaracterísticasquedevempossuirosamigos.

Oshomensqueocupamposiçãodeautoridadeparecemteramigosdediferentesclasses.Algunslhessãoúteiseoutrossãoagradáveis,masraramenteosmesmosindivíduosreúnememsiasduasqualidade;poisquetaispessoasnãoprocuramnem aqueles que, além de agradáveis, sejam virtuosos, nem aqueles cujautilidade vise a objetos nobres,mas, levados pelo desejo de prazer, buscam acompanhiadepessoasespirituosase,quantoaosseusoutrosamigos,escolhem-nosentreosquesãohábeisemfazeroquelhesmandam;ora,taiscaracterísticasraramenteseencontramcombinadasnumasópessoa.Jádissemosqueohomemboméaomesmotempoútileagradável;mastalhomemnãosetornaamigodequem lhe é superior em posição, amenos que lhe seja superior também pelavirtude;e,mesmoassim,nãopoderiaestabelecer-seuma igualdadepor sereleultrapassadoemambosos respeitos.Entretanto,pessoasqueoultrapassememambososrespeitosnãosãofáceisdeencontrar.

Seja como for, as amizades supramencionadas envolvem igualdade, pois osamigos recebem as mesmas coisas um do outro e desejam-se mutuamente asmesmas coisas, ou trocam coisas entre si, como por exemplo, o prazer pelautilidade. Dissemos, contudo, que essas amizades não apenas são menosverdadeiras como menos permanentes. Mas é por sua semelhança e suadessemelhançaemrelaçãoàmesmacoisaqueasconsideramosounãoamizades.Éporsuasemelhançacomaamizadedavirtudequeparecemseramizades(poisumadelas envolve prazer e a outra utilidade, e estas características pertencemtambém à amizade dos virtuosos); e é por ser permanente e invulnerável àcalúnia a amizadedosvirtuosos, enquanto estasmudam rapidamente (alémdediferirem emmuitos respeitos da primeira), que parecemnão ser amizades—istoé,emrazãodesuadessemelhançacomaamizadedosvirtuosos.

7

Masexisteoutraespéciedeamizade,asaber,aqueenvolveumadesigualdadeentreaspartes, comoadepaipara filhoe,emgeral,demaisvelhoparamaisjovem,ademaridoparamulhere,emgeral,degovernanteparasúdito.Eessasamizadesdiferemtambémumasdasoutras,poisaqueexisteentrepaisefilhosnãoéamesmaqueentregovernantesesúditos,nemaamizadedepaiparafilhoéamesmaqueadefilhoparapai,comoademaridoparamulhernãoéamesmaque a demulher paramarido. Com efeito, a virtude e a função de cada umadessas pessoas são diferentes, e por isso também diferem as suas razões paraamar; e outra consequência do mesmo fato é que amor e amizade diferemigualmenteumdooutro.

Cadaparte,pois,nemrecebeamesmacoisadaoutranemdeveriabuscá-la;masquandoosfilhosprestamaospaisaquiloquedevemprestaraosqueospuseramnomundo, eospais aquiloquedevemprestar aos filhos, a amizadeentre taispessoaséduradouraeexcelente.

Em todas as amizades que envolvem desigualdade, o amor também deve serproporcional, isto é,omelhordeve recebermais amordoquedá, assimcomodevesermaisútil,eanalogamenteemcadaumdosoutroscasos;poisquandooamor é proporcional ao mérito das partes estabelece-se, em certo sentido, aigualdade,queéindubitavelmenteconsideradaumacaracterísticadaamizade.

Mas a igualdade não parece assumir amesma forma nos atos de justiça e naamizade.Comefeito,nosprimeirosoqueé igualno sentidoprimárioéoqueestá em proporção com o mérito, ao passe que a igualdade quantitativa ésecundária;masnaamizadeaigualdadequantitativaéprimária,eaproporçãoaomérito,secundária.Issosetornaclaroquandoháumagrandedistânciaentreaspartesnoqueserefereàvirtude,aovício,àriquezaououtracoisaqualquer;poisnesse caso já não são amigos e nem sequer esperam sê-lo. E a situação émanifesta acima de tudo quando se trata dos deuses, que nos ultrapassamimensamenteemtudooqueébom.Masétambémclaranotocanteaosreis,poisos homens que lhes são muito inferiores tampouco esperam tornar-se seusamigos, nem indivíduos de pouca valia esperam ser amigos dos melhores oumaissábiosdentreoshomens.

Em tais casos não é possível definir com exatidão até que ponto os amigospodem permanecer amigos. Com efeito, a amizade pode sobreviver aodesaparecimentodemuitoselementosqueacompunham,masquandoumadasparteséafastadaparamuitolonge,comosucedecomDeus,cessaapossibilidade

de amizade. Essa é, aliás, a origem da questão sobre se os amigos realmentedesejamaosseusamigososmaioresbens,comoodeseremdeuses,vistoqueemtalcasoseusamigosdeixarãodesê-loe,porconseguinte, jánãorepresentarãobensparaeles(porqueosamigossãorealmenteumgrandebem).Arespostaéque,setínhamosrazãoemafirmarqueoamigodesejabemaoseuamigoporelemesmo,estedevecontinuarsendoaespéciedeserqueé;portanto,éaele,namedidaemquecontinuasendoumhomem,queooutrodesejaosmaioresbens.Mas talveznão lhedeseje todososmaioresbens, pois é a simesmo, antesdequalqueroutro,quecadahomemdesejaobem.

8

Amaioriadaspessoasparecem,devidoàambição,preferirseramadaaamar.Eéporissoqueoshomens,emgeral,amamalisonja.Comefeito,olisonjeiroéumamigoemposiçãoinferior,oufingesertalaomesmotempoquesimulaamarmais do que é amado; e ser amado parece ter bastante semelhança com serhonrado,eissoéoqueamaioriadaspessoasambicionam.

Entretanto, dir-se-ia que elas não preferem a honra em si, mas apenasacidentalmente; porquanto a maioria gosta de ser honrada pelos que ocupamposição de autoridade, em razão de suas esperanças (pois pensam que, senecessitarem de alguma coisa, consegui-las-ão com eles, e por isso secomprazemnahonra comoprenunciode favores futuros).Osquedesejam serhonrados por homens bons e sábios, por seu lado, querem confirmar a boaopinião que fazem de si mesmos; e, por conseguinte, deleitam-se em serhonradosporqueacreditamnasuaprópriabondadeestribadosnojulgamentodosquefalamaseurespeito.

O ser amado, por outra parte, é deleitável em simesmo, e por isso afigura-sepreferível ao ser honrado; e a amizade parece digna de ser desejada por simesma.Masdir-se-iaqueelaresideantesemamardoqueemseramado,comomostraodeleitequeasmãessentememamar;poisalgumasmãesentregamosfilhos a outros para serem educados, e, enquanto conhecem o destino deles,amam-nossemprocurarseramadasemtroca(senãolhessãopossíveisambasascoisas),masparecemcontentar-se emvê-losprosperar; e amamos seus filhosmesmoquandoestes,por ignorância,não lhesdãonadadoquesedeveaumamãe.

Eassim,comoaamizadedependemaisdoamarquedoseramado,esãoosqueamam os seus amigos que são louvados, o amar parece ser a virtudecaracterísticados amigos, demodoque só aquelesque amamnamedida justasãoamigosduradouros,esóaamizadedessesresisteaotempo.

É deste modo, mais que de qualquer outro, que até os desiguais podem seramigos,poisépossívelestabelecer-seumaigualdadeentreeles.Ora,igualdadeesemelhançasãoamizade,eespecialmenteasemelhançadosquesãoafinspelavirtude.Comefeito,sendoconstantespornatureza,elesmantêm-sefiéisumaooutro enão solicitamnemprestam serviçosbaixos,maspode-sedizerque atéprevinemtaisocorrências,poisécaracterísticodoshomensbonsnãofazeromalelespróprios,nempermitirqueseusamigosofaçam.Osmaus,porém,nãotêmconstância,vistoquenemsequerasimesmossemantêmsemelhantes,massãoamigos durante breve tempo, por se deleitarem na maldade um do outro. Asamizadesúteisouagradáveisdurammais,istoé,subsistemenquantoosamigosproporcionamprazeresouvantagensumaooutro.

A amizade comvistas na utilidade parece ser a quemais facilmente se formaentre contrários, como, por exemplo, entre pobre e rico, entre ignorante eletrado;porqueumhomemambicionaaquiloque lhe faltaedáalgoem troca.Masnestaclassetambémsepoderiaincluiramanteeamado,beloefeio.Éporissoqueosamantesparecemàsvezesridículos,quandopretendemseramadosem troca; quando ambos são igualmentedignosde amor a pretensão talvez sejustifique, mas é ridícula quando não têm nenhuma qualidade própria paradespertaroamor.

Averdade,talvez,équeocontrárionemsequerbuscaocontrárioporsuapróprianatureza, mas apenas acidentalmente, sendo o intermediário o objeto real dodesejo;poisesteéqueérealmentebom,porexemplo:paraoseco,obomnãoéficarúmido,maspassaraoestado intermediário, edamesma formanoque serefere ao quente e em todos os outros casos. Podemos deixar de parte estesassuntos,queemverdadesãoumpoucoestranhosànossainvestigação.

9

Comodissemosnocomeçodenossadiscussão, aamizadeea justiçaparecemdizer respeito aos mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas.

Comefeito,emtodacomunidadepensa-sequeexistealgumaformadejustiça,eigualmente de amizade; pelo menos, os homens dirigem-se como amigos aosseus companheiros deviagemou camaradasde armas, e damesma forma aosqueselhesassociamemqualqueroutraespéciedecomunidade.Eatéondevaiasuaassociaçãovaiasuaamizade,comotambémajustiçaqueentreelesexiste.Eoprovérbiosegundooqual"osamigostêmtudoemcomum"éaexpressãodaverdade,poisaamizadedependedacomunhãodebens.

Ora,os irmãoseoscamaradaspossuemtodasascoisasemcomum,masessesoutrosaquemnosreferimospossuememcomumcertascoisas—algunsmaiseoutrosmenos:porquedasamizades,tambémalgumassãoverdadeirasamizadesemmaioreoutrasemmenorgrau.Easimposiçõesdajustiçatambémdiferem:nãosãoosmesmososdeveresdospaisparacomosfilhoseosdosirmãosentresi,nemosdoscamaradasoudosconcidadãos;eomesmonoquetocaàsoutrasespéciesdeamizade.

Hátambémumadiferença,porconseguinte,entreosatosquesãoinjustosparacomcadaumadessasclassesdeassociados,eainjustiçacrescedepontoquandosemanifestaparacomosquesãoamigosnumsentidomaispleno;porexemplo,émais detestável defraudar umcamaradadoqueumconcidadão,mais odiosodeixar de ajudar um irmão do que um estranho, e mais abominável ferir oprópriopaidoqueaqualqueroutro.Easimposiçõesdajustiçatambémparecemaumentarcomaintensidadedaamizade,oqueimplicaqueaamizadeeajustiçaexistementreasmesmaspessoasesãocoextensivas.

Ora, todas as formasde comunidade são comopartes da comunidadepolítica.Por exemplo: é tendo em vista alguma vantagem particular que os homensviajamjuntos,eafimdeproveremalgumacoisanecessáriaàvida;eéporcausadavantagemqueacomunidadepolíticaparece ter-se formadoeperdurar,poisesseéoobjetivoqueoslegisladoressepropõem,echamamjustooqueconcorrepara a vantagem comum. Mas as outras comunidades têm em mira aspectosparticularesdessavantagemcomum:osmarinheiros,porexemplo,visamaoqueé vantajoso numa travessia para o propósito de ganhar dinheiro ou algumafinalidade dessa espécie; e os soldados, ao que é vantajoso na guerra, querbusquem riqueza, quer a vitória ou a posse de uma cidade; e osmembros detribosoudemosprocedemdomesmomodo.

[Algumascomunidadesparecemoriginar-sedanecessidadedeprazer,comoascorporaçõesreligiosaseosgrêmiossociais;poisessesexistemafimdeoferecer

sacrifícios e proporcionar o convívio. Mas todos parecem incluir-se nacomunidadepolítica,quenãovisaàvantagemimediata,masaoqueévantajosopara a vida no seu todo], oferecendo sacrifícios e programando reuniões paraesse fim,honrandoosdeuseseprovendoaprazíveis recreaçõesparasimesma.Comefeito, tudo indicaqueosantigos sacrifíciose reuniõesocorriamapósascolheitascomoumaespéciedefestadasprimícias,poiseranessaépocaqueoshomenstinhammaislazeres.

Todas as comunidades, por conseguinte, parecem fazer parte da comunidadepolítica;easespéciesparticularesdeamizadedevemcorresponderàsespéciesparticularesdecomunidade.

10

Existem trêsespéciesdeconstituiçãoe igualnúmerodedesvios—perversõesdaquelas,porassimdizer.Asconstituiçõessãoamonarquia,aaristocracia,eemterceiro lugar a que se baseia na posse de bens e que seria talvez apropriadochamar timocracia, embora a maioria lhe chame governo do povo. A melhordelaséamonarquia,eapioréatimocracia.

Odesviodamonarquiaéatirania,poisqueambassãoformadasdegovernodeumsóhomem,masháentreelasamaiordiferençapossível.Otiranovisaàsuaprópriavantagem,oreiàvantagemdeseussúditos.Comefeito,umhomemnãoéreiamenosquebasteasimesmoesupereosseussúditosemtodasasboascoisas.Ora,umhomememtaiscondiçõesdemaisnadaprecisa,eporissonãoolharáaosseusinteresses,masaosdeseussúditos;poisoreiqueassimnãoforterádarealezaapenasotítulo.Ora,atiraniaéocontrárioexatodetudoisso:otiranovisaaoseuprópriobem.Eéevidenteserestaapiorformadedesvio,poisocontráriodomelhoréqueéopior.

Amonarquiadegeneraemtirania,queéaformapervertidadogovernodeumsóhomem,eomaureiconverte-seemtirano.Aaristocracia,porseulado,degeneraem oligarquia pela ruindade dos governantes, que distribuem sem equidade oque pertence ao Estado — todas ou a maior parte das coisas boas para simesmos,eoscargospúblicossempreparaasmesmaspessoas,olhandoacimadetudoariqueza;edestarteosgovernantessãopoucosemaus,emlugardeseremosmaisdignos.

Atimocracia,porseulado,degeneraemdemocracia.Ambassãocoextensivas,jáqueaprópriatimocraciatemcomoidealogovernodamaioria,eosquenãotêmpossessãocontadoscomoiguaisaosoutros.Ademocraciaéamenosmádastrêsespéciesdeperversão, poisno seu caso a formade constituiçãonão apresentamaisqueumligeirodesvio.

Sãoestaspoisasmudançasaqueestãomaissujeitasasconstituições,eestasastransiçõesmenoresemaisfáceis.

Podemserencontradasanalogiasdasconstituiçõese,porassimdizer,modelosdelasnasprópriasfamílias.Comefeito,aassociaçãodeumpaicomseusfilhostem a forma damonarquia, visto que o pai zela pelos filhos.Aí está por queHomerochamaaZeusde"pai";eoidealdamonarquiaéserumaformapaternaldegoverno.Entreospersas,noentanto,ogovernodospaisétirânico,poisaliospaisusamosfilhoscomoescravos.Tirânico,igualmente,éogovernodosamossobreosescravos,emqueaúnicacoisaquesetememvistaéavantagemdosprimeiros.Ora,estapareceserumaformacorretadegoverno,masotipopersaépervertido,umavezquediferentessãoasmodalidadesdegovernoapropriadasarelaçõesdiferentes.

A associação entremarido emulher parece ser aristocrática, já que o homemgovernacomoconvémaoseuvalor,masdeixaacargodaesposaosassuntosquepertencemaumamulher.Seohomemgovernaemtudo,arelaçãodegeneraemoligarquia,poisaoprocederassimelenãoagedeacordocomovalorrespectivode cada sexo, nem governa em virtude da sua superioridade. Às vezes, noentanto, são as mulheres que governam, por serem herdeiras; e assim o seugovernonãosebaseianaexcelência,masnariquezaenopoder,comoacontecenasoligarquias.

A associação de irmãos assemelha-se à timocracia, porquanto eles são iguais,salvo namedida emque haja diferença de idades; e por isso, quando diferemmuitoemidade,aamizadejánãoédotipofraternal.Ademocraciaéencontradasobretudonasfamíliasacéfalas(onde,porconseguinte,todosseencontramnumnívelde igualdade), enaquelasemqueochefeé fracoe todos têm licençadeagircomoentenderem.

11

Mostraaobservaçãoquecadaumadasconstituiçõescomportaamizadenaexatamedida em que comporta a justiça. A amizade entre um rei e seus súditosdependedeumexcessodebenefíciosconferidos,porquantooreiosconfereaosseus súditos quando, sendo ele um homem bom, zela pelo bem-estar destes,comofazopastorcomas suasovelhas.E talé tambémaamizadedeumpai,embora este exceda o outro na grandeza dos benefícios dispensados, pois é acausadaexistênciadosfilhos,aqualtodosconsideramomaiordosbens,assimcomoproveàsuaalimentaçãoeeducação.Tudoissosecostumaatribuirtambémaosavós.Eacresceque,pornatureza,umpai tendeagovernar seus filhos,osavós aos descendentes e os reis aos seus súditos. Estas amizades implicamsuperioridadedeumapartesobreaoutra,sendoessaarazãodashonrasqueseprestamaosantepassados.

Portanto,ajustiçaqueexisteentrepessoasassimrelacionadasnãoéamesmadeparteaparte,mas sempreproporcional aomérito;porquanto issoéverdadeirotambémdaprópriaamizade.

Aamizadeentremaridoemulher,poroutrolado,éamesmaqueseobservanaaristocracia,jáqueestádeacordocomavirtude:omelhorrecebemaiorquinhãodebensecadaumrecebeoquelhecompete;eomesmosepodedizerdajustiçanessasrelações.

Aamizadedeirmãosécomoadecamaradas,porquantosãoiguaisepróximosuns dos outros pela idade; e tais pessoas, em geral, assemelham-se nossentimentosenocaráter.Etambémésemelhanteaestaaamizadeapropriadaaogoverno timocrático; pois numa tal constituição o ideal é serem os cidadãosiguaiseequitativos,epor issoogovernoéassumidopor turnosnumabasedeigualdade. E a amizade apropriada a esta constituição corresponde à quedescrevemos.

Nasformasdedesvio,porém,comomalexistejustiça,tambéméraraaamizade.E onde menos existe é na pior das formas: na tirania há pouca ou nenhumaamizade. Com efeito, onde nada aproxima o governante dos governados nãopodehaveramizade,umavezquenãohá justiça.Porexemplo,entreartíficeeferramenta, alma e corpo, amo e escravo, os segundos termos de cada umadessasdualidadessãobeneficiadosporaquelesqueosutilizam,masnãoexisteamizadenemjustiçaparacomcoisasinanimadas.

Mas tampouco existe amizade para com um cavalo, um boi ou um escravo

enquantoescravo,poisnãohánadadecomumentreasduaspartes:oescravoéumaferramentavivaeaferramentaéumescravoinanimado.Enquantoescravo,pois, não se pode ser seu amigo, mas enquanto homem isso é possível, poisparece haver certa justiça entre um homemqualquer e outro homemqualquerquetenhamcondiçõesparaparticipardeumsistemajurídicoouserpartesnumajuste:logo,podehaveramizadecomelenamedidaemqueéumhomem.

Por conseguinte, embora nas tiranias mal existam a amizade e a justiça, nasdemocraciaselastêmumaexistênciamaisplena,poisondeháigualdadeentreoscidadãosestespossuemmuitoemcomum.

12

Comodissemos,pois,todaaformadeamizadeenvolveassociação.Poder-se-ia,noentanto,distinguirdasoutrasaamizadedosfamiliareseadoscamaradas.Asdos concidadãos, companheiros de viagem, etc., se assemelham mais àsamizades de associação, pois parecem repousar sobre uma espécie de pacto.Nestaclassepoderíamosincluiraamizadeentrehóspedeehospedeiro.

A própria amizade dos familiares, embora seja de várias espécies, parecedependeremtodososcasosdaamizadepaterno-filial;porquantoospaisamamosfilhoscomopartesdesimesmos,eosfilhosamamospaisporseremalgoquese originou deles. Ora, os pais conhecem os filhos melhor do que estes seconhecemcomo seus filhos, eoprocriador senteos filhos comoseusmaisdoque os filhos sentem os pais como seus, pois o produto pertence a quem oproduziu (como, por exemplo, um dente, um fio de cabelo ou qualquer outracoisa pertence ao seu dono),mas o produtor não pertence ao seu produto, oupertence em menor grau. E finalmente, o tempo decorrido contribui para omesmoresultado:ospaisamamosfilhosdesdequeestesnascem,masosfilhoscomeçam a amar os pais só depois de algum tempo, quando adquiramentendimento ou o poder de discriminação pelos sentidos. Por isso tudo seevidenciatambémarazãodeseroamordasmãesmaiorqueodospais.

Pai e mãe amam, portanto, os seus filhos como a si mesmos (pois estes, emvirtude de sua existência separada, são como que outros "eus"), enquanto osfilhosamamospaisporteremnascidodeles,eosirmãosamamunsaosoutrosporseoriginaremdosmesmospais, jáqueasuaidentidadecomestesostorna

idênticos entre si (e por isso se fala em ser "domesmo sangue", "domesmotronco"eassimpordiante).Emcertosentido,pois,sãoamesmacoisa,emboraexistamcomoindivíduosseparados.

Duascoisasquemuitocontribuemparaaamizadesãoaeducaçãoemcomumeasemelhançade idade;pois "pessoasdamesma idade sedãobem", eosque secriaramjuntostendemaviveremcamaradagem;eéporissoqueaamizadedosirmãosseassemelhaàdoscamaradas.Eentreprimoseoutrosparentesexisteumlaçoderivadodofraterno,istoé,deproviremdosmesmospais.Aproximam-seedistanciam-seunsdosoutrosproporcionalmenteàproximidadeoudistânciadoprogenitorcomum.

Aamizadedosfilhospelospaisedoshomenspelosdeuseséaquesetemparacomalgodebomesuperior,poiseles lhesdispensaramosmaioresbenefícios,dando-lhesoser,aalimentaçãoeaeducaçãodesdequenasceram.Eessaespéciedeamizade tambéméaprazíveleútil,maisdoqueaamizadeentreestranhos,umavezquetaispessoasconvivemmaisentresi.

A amizade de irmãos tem as características observadas na amizade entrecamaradas (especialmente quando estes são bons) e, de modo geral, entrepessoas semelhantes umas às outras, porquanto eles vivem em comum e seamamdesdequenasceram,e jáqueosfilhosdosmesmospais, tendocrescidojuntoserecebidoamesmaeducação,têmmaiorsemelhançadecaráter;e,noseucaso,aprovadotempofoiaplicadademaneiramaiscompletaeconcludente.

Entre outros graus de parentesco as relações amigáveis são encontradas nasproporçõescorrespondentes.Entremaridoemulheraamizadepareceexistirpornatureza,poisaespéciehumanaseinclinanaturalmenteaformarcasais—maisdoqueaformarcidades,jáqueafamíliaéanterioràcidadeemaisnecessáriadoque esta, e a reprodução é comum ao homem e aos animais. Entre os outrosanimaisauniãovaiapenasatéesseponto,masossereshumanosvivemjuntosnão só para reproduzir-se, senão tambémpara os vários propósitos da vida.Edesdeocomeçosãodivididasasfunções,diferindoentresiasdohomemeasdamulher, e ajudam eles um ao outro fazendo capital comum de seus dotesindividuais. Por tais motivos, tanto a utilidade como o prazer parecem serencontradosnessaespéciedeamizade.Podeela,noentanto,basear-se tambémnavirtude,seaspartessãoboas;poiscadaumapossuiasuavirtudeprópria,eambassedeleitamnisso.Eosfilhosconstituemumlaçodeunião(motivopeloqualoscasaissemfilhosseparam-semais facilmente);porquantoos filhossão

um bem comum a ambos, e o que ambos possuem em comum os conservaunidos.

Comodevemportar-seumparacomooutromaridoemulher,e,deummodogeral,amigocomamigo,pareceseramesmaquestãoqueadedeterminarqualsejaasuaconduta justa,porqueumhomemnãopareceterosmesmosdeveresparacomumamigo,umestranho,umcamaradaeumcondiscípulo.

13

Existem três espécies de amizade, como dissemos no começo de nossainvestigação,ecomrespeitoacadaumadelasalgunssãoamigosemtermosdeigualdade e outros em virtude de uma superioridade (pois não só homensigualmente bons podem tornar-se amigos,mas um homemmelhor pode fazeramizadecomoutropior,etambémnasamizadesquesebaseiamnoprazerounautilidade os amigos podem ser iguais ou desiguais quanto aos benefícios queconferem).Assim sendo, os iguais devem ser amigos numabase de igualdadequantoaoamoreatodososoutrosrespeitos,aopassoqueosdesiguaisdevembeneficiar-seproporcionalmenteàsuasuperioridadeouinferioridade.

Asqueixasecensurassurgemunicamenteouprincipalmentenasamizadesquesebaseiamnautilidade,eissoestáconformeaoqueseriadeesperar.Comefeito,osquesãoamigoscombasenavirtudeanseiamporfazerbemumaooutro(poisque isso é umamarca de virtude e de amizade), e entre homens que emulamentresinessascoisasnãopodehaverqueixasnemdisputas.Ninguéméofendidopor um homem que o ama e lhe faz bem— e, se é uma pessoa de nobressentimentos,vinga-sefazendobemaooutro.Eohomemquesuperaooutronosserviços prestados não se queixará do seu amigo, visto que obtém aquilo quetinhaemvista:comefeito,cadaumdelesdesejaoqueébom.Etampouconasamizades baseadas no prazer surgem muitas queixas, porque ambos recebemsimultaneamenteoquedesejam,sesecomprazemempassarotempojuntos;emesmoohomemquesequeixassedeoutropornãolheproporcionarprazerseriaridículo, umavezquedependedele nãopassar seusdias emcompanhiadesseoutro.

Masaamizadequesebaseianautilidadeérepletadequeixas;porquanto,comocadaumseutilizadooutroemseuprópriobenefício,semprequeremlucrarna

transação, e pensam que saíram prejudicados e censuram seus amigos porquenãorecebemtudooque"necessitamemerecem";eosquefazembemaoutrosnãopodemajudá-lostantoquantoelesquerem.

Ora,édesuporque,sendoajustiçadeduasespécies,umanãoescritaeaoutralegal, haja também uma espécie moral e outra legal de amizade baseada nautilidade. E assim, as queixas surgem principalmente quando os homens nãodissolvem a relação dentro do espírito do mesmo tipo de amizade em que acontraíram.

O tipo legal é aquele que assenta sobre termos definidos. Sua variedadepuramente comercial baseia-se no pagamento imediato, enquanto a variedademaisliberaldácertamargemdetempo,masestipulaumatrocadefinida.Nestavariedade a dívida é clara e não ambígua, mas a sua protelação contém umelementodeamizade;eporissoalgunsEstadosnãoadmitemaçõesjudiciaisemtornodetaisacordos,maspensamqueoshomensquetransacionaramnumabasedecréditodevemaceitarasconsequências.

Otipomoralnãoassentaemtermosfixos.Fazumadádiva,ouoquequerqueseja,comosefosseaumamigo;masesperareceberoutrotantooumais,comosenãotivessedadoesimemprestado;e,seasituaçãodeumdelesépiorapósdissolver-se a relação do que antes de havê-la contraído, esse homem sequeixará. Issoaconteceporque todososhomensouamaioriadelesdesejamoqueénobremasescolhemoqueévantajoso;ora,énobrefazerbemaumoutrosemvisaraqualquercompensação,masreceberbenefícioséqueévantajoso.

Portanto, cabe-nos retribuir, se possível, com o equivalente do que recebemos(porquenãodevemosfazerdeumhomemnossoamigocontraasuavontade;épreciso reconhecer que nos enganamos de começo, aceitando umbenefício deumapessoadequemnãodevíamosaceitá-lo, jáquenãoeranossoamigo,nemde alguém que o fez simplesmente por fazer; e cumpre-nos saldar as contasexatamente como se tivéssemos sidobeneficiados combase em termos fixos).Emverdade, teríamosconcordadoem retribuir sepudéssemos (do contrário, oprópriobenfeitornãocontariacomisso);e,porconseguinte,devemosretribuir,se isso nos é possível.Mas de início devemos considerar o homempor quemestamos sendo beneficiados e em que termos ele procede, a fim de aceitar obenefícionessestermos,ouentãorecusá-lo.

Édiscutívelsedevemosmedirumserviçopelasuautilidadeparaobeneficiadoe

retribuí-lo nessa base, ou pela benevolência do benfeitor. Com efeito, os querecebemdizemterrecebidodeseusbenfeitoresoquecustoupoucoaestesequeelespoderiam terobtidodeoutros—subestimandodessa formao serviço; aopassoqueosbenfeitores,pelocontrário,afirmamterfeitoomáximoquepodiameoquenãopoderia ter sidoobtidodeoutros,equeoserviço foiprestadoemocasiãodeperigooudenecessidade.

Ora,seaamizadeédotipoquevisaàutilidade,certamenteavantagemparaobeneficiadoéamedida,porquantoéelequemsolicitaoserviçoeooutrooajudana suposição de que receberá o equivalente. Destarte, a ajuda foi exatamenteigualàvantagemdobeneficiado,oqual,porconseguinte,deveretribuircomoequivalentedoquerecebeu,oumais(poisissoseriamaisnobre).

Nas amizades que se baseiamna virtude, por outro lado, não surgemqueixas,masopropósitodobenfeitoréumaespéciedemedida;poisnopropósitoresideoelementoessencialdavirtudeedocaráter.

14

Tambémnasamizadesquesebaseiamnasuperioridadesurgemdissensões,poiscada qual espera obter mais proveito delas, mas, quando isso acontece, aamizadesedissolve.Nãosóohomemmelhorpensaquelhecaberecebermais,devezqueumhomembom faz jus amais, comoomaisútil espera amesmacoisa.Edizemqueumhomeminútilnãodevereceber tantoquantoeles,vistoquenessecasoa amizadedeixade ser amizadeparaconverter-senumserviçopúblico quando os seus proveitos não correspondem ao valor dos benefíciosconferidos. Porque tais pessoas pensam que assim como numa sociedadecomercialosqueentramcommaisdevemganharmais,omesmodevesucederna amizade. Mas o homem que se encontra em estado de necessidade einferioridade faz a reivindicação contrária: pensa que é próprio de um bomamigoajudarosnecessitados.Dequeserviria,dizele,seramigodeumhomembomoupoderososenãosetirassenenhumproveitodisso?

Sejacomofor,parecequecadaparteéjustificadanasuaasserçãoequecadaumdeveriatirarmaisvantagemdaamizadedoqueooutro—nãomaiorquantidadeda mesma coisa, porém, mas o superior em honra e o inferior em ganho;porquantoahonraéoprêmiodavirtudeedabeneficência,enquantooganhoéa

ajudadequenecessitaainferioridade.

O mesmo parece suceder nas disposições constitucionais: o homem que nãocontribuicomnadaparaobemcomumnãoéhonrado,poisoquepertenceaopúblicoédadoaquemobeneficia,eahonrapertenceaopúblico.Nãoépossívelreceber aomesmo tempo riqueza e honra do patrimônio comum. Com efeito,ninguémseconformaemreceberapartemenoremtodasascoisas;destarte,aohomemqueperdeariquezaconfere-sehonra,eriquezaaoqueconsenteemserpago,jáqueaproporçãoaoméritoigualaaspartesepreservaaamizade,comodissemos.

É também essa, portanto, a maneira pela qual nos deveríamos associar comdesiguais:ohomemqueébeneficiadocomrespeitoàriquezaouàvirtudedeveretribuir com honra, compensando o outro na medida de suas capacidades.Porquanto a amizade pede a um homem que faça o que pode e não o que éproporcionalaosméritosdocaso,jáqueissonemsempreépossível,como,porexemplo, nas honras prestadas aos deuses ou aos pais. Com efeito, ninguémjamais lhes poderia pagar o equivalente do que recebe,mas o homem que osservenamedidadesuascapacidadeséconsideradoumhomembom.

Eis aí por que não parece lícito a um homem repudiar seu pai (embora o paipossarepudiarofilho).Comodevedorqueé,devepagar,masnadadoqueumfilhopossa fazerequivaleráaoque recebeu,demodoqueelecontinuasempreemdívida.Mas,assimcomooscredorespodemperdoarumadívida,tambémumpaipode fazê-lo.E,poroutro lado,pensa-sequeninguém repudiariaum filhoquenão fosseprofundamenteperverso; porque, alémda amizadenatural entrepaiefilho,éprópriodanaturezahumananãoenjeitaraajudadeumfilho.Maseste,sedefatoéperverso,evitaráajudaropaiounãofarámuitaquestãodisso;porquanto amaioria deseja receber benefíciosmas evita fazê-los, como coisaquenãocompensa.

Sobreestasquestõesdissemososuficiente.

LIVROIX

1

Emtodasasamizadesentredessemelhantesé,comodissemos,aproporçãoqueiguala as partes e preserva a amizade. Por exemplo, na forma política deamizade,osapateirorecebeumacompensaçãopelosseusprodutosnaproporçãodoqueelesvalem,eomesmosucedecomotecelãoeoutrosartífices.Ora,aquifoi estabelecida uma medida comum sob a forma de dinheiro, à qual tudo éreferidoepelaqual tudosemede.Masnaamizadeentreamantes,porvezesoamantesequeixadequeoseuexcessodeamornãoérecompensadocomamor(embora não tenha nada, talvez, que o faça digno de ser amado), enquanto oamado se queixa com frequência de que o amante, que outrora lhe prometiatudo,agoranãocumprenada.Taisincidentesacontecemquandooamanteamaoamado com vistas no prazer, enquanto o amado ama o amante com vistas nautilidade,enenhumdosdoispossuiasqualidadesquedelesseesperam.Setaissãoosobjetivosdaamizade,estasedissolvequandoosdoisnãoobtêmascoisasqueconstituíamosmotivosdeseuamor;porquantonenhumdelesamavaooutroporsimesmo,masapenasassuasqualidades,eestasnãoeramduradouras.Eisaíporqueessasamizadestambémsãopassageiras.Masoamordoscaracteres,comodissemos,perduraporquesódependedesimesmo.

Surgem desentendimentos quando o que as pessoas obtêm é algo diferentedaquilo que desejam, pois é, então, como se nada tivessem obtido. Veja-se ahistóriadohomemquefeztratocomumcitarista,prometendodar-lhetantomaisquanto melhor cantasse; mas pela manhã, quando o outro reclamou ocumprimento da promessa, ele respondeu que havia retribuído prazer comprazer.Ora,sefosseprazeroqueambosqueriam,tudoestariabem;masseumqueriaprazerenquantoooutroqueriaganho,eumrecebeuoquequeria,masooutronão,ostermosdatransaçãonãoforamdevidamentecumpridos;poisoquecadaumnecessitaéaquiloaqueseaplica,eéemtrocadissoquedáoquetem.

Mas quem fixará o valor do serviço: o que se sacrifica ou o que alcança avantagem?Sejacomofor,ooutroparecedeixaradecisãocomele.Eraassim,segundo se conta, que Protágoras costumava proceder: toda vez que ensinava

uma coisa qualquer, mandava o aluno estimar o valor do conhecimento eaceitavaaquantiaqueeletivessefixado.Masemtaisassuntosalgunsaprovamoaforismo:"Quecadaumtenhaasuarecompensafixa".

Os que, tendo recebido o dinheiro com antecipação, não fazem nada do quehaviam prometido por causa da extravagância de suas promessas sãonaturalmenteobjetosdequeixaporquenãocumpremoquepactuaramfazer.Ossofistassãotalvezforçadosaagirassimporqueninguémlhesdariadinheiroemtroca das coisas que eles realmente sabem.Essas pessoas, por conseguinte, senãofazemaquiloparaqueforampagas,sãonaturalmenteobjetosdequeixa.

Masquandonãohácontratodeserviço,aquelesquerenunciamaalgumacoisanointeressedaoutrapartenãopodem,comodissemos,seracusados,porquantoessa é anaturezada amizadebaseadanavirtude; e a retribuição lhesdeve serfeitadeacordocomoseupropósito(poisopropósitoéoquecaracterizatantoumamigo comoavirtude).Edamesma forma, segundoparece, deveriam serretribuídosaquelescomquemestudamosfilosofia,poisoseuvalornãopodesermedido pelo dinheiro, nem há honra que esteja à altura de seus serviços;entretanto, é talvez suficiente, comonocasodosdeusesedenossospais,dar-lhesaquiloquepodemos.

Se a dádiva não era dessa espéciemas foi feita com amira na retribuição, écertamente preferível que se retribua demaneira que pareça justa a ambas aspartes;mas, se isso não for possível, não apenas será necessáriomas tambémjusto que o primeiro beneficiado fixe a recompensa. Com I efeito, se o outroreceber em troca o equivalente da vantagem auferida por ele, ou o preço queteria pago pelo prazer, terá recebido o que é justo da parte do primeirobeneficiado.

Vemosaconteceromesmocomascoisasquesãopostasàvenda,eemalgunslugaresaleiproscreveasdemandasoriginadasdecontratosvoluntários,partindodoprincípiodequecadaumdeveajustarsuascontascomaquelesaquemdeucrédito,dentrodomesmoespíritoemquetransacionoucomeles.Aleiconsideramais justo que as condições sejam fixadas pelo homem a quem se concedeucréditodoquepelooutro,poisqueamaioriadascoisasnão sãoestimadasnomesmovalorpelosqueaspossuemepelosquenecessitamdelas.Cadaclassedágrandevaloraoqueéseuequeelaoferece;nãoobstante,a retribuiçãoé feitanos termos fixados pelo que recebe.Mas, sem dúvida, este deve avaliar umacoisa não pelo que lhe parece valer quando a possui e simpelo valor que lhe

atribuíaantesdepossuí-la.

2

Outroproblemaélevantadoporperguntasdogênerodasseguintes:Devemosdarpreferência em todas as coisas a nosso pai e obedecer-lhe, ou depositar nossaconfiança num médico quando estamos doentes e escolher um homem detirocínio militar quando nos compete eleger um general? E, analogamente,devemos prestar serviço de preferência a um amigo ou a um homem bom, emostrar-nosgratosaumbenfeitorouobsequiarumamigo, senão forpossívelfazerambasascoisas?

Nãoéverdadeque todasessasquestõessãodifíceisderesolvercomprecisão?Porquantoelasadmitemvariaçõesdetodasorte,tantocomrespeitoàmagnitudedoserviçocomoàsuanobrezaeàsuanecessidade.Masquenãodevemosdarpreferênciaemtodasascoisasàmesmapessoaébastanteclaro;e,emgeral,émais certo retribuir benefícios do que obsequiar amigos, e antes de fazer umempréstimoaumamigodevemospagaronossocredor.

Mastalveznemistosejasempreverdadeiro:porexemplo,deveumhomemquefoiresgatadodasmãosdebandidosresgataremtrocaoqueolibertou,sejaelequemfor(oupagar-lhe,seelenãofoicapturado,masexigepagamento),ou,emvezdisso,deveresgataroseupai?Dir-se-iaqueocertoéresgataropaimesmodepreferênciaasipróprio.

Como dissemos, pois, em geral a dívida deve ser paga, mas se a dádiva éextremamente nobre ou necessária cumpre atender também a estasconsiderações.Porqueàsvezesnemsequeré justo retribuircomoequivalentedoquerecebemos,quandoumadaspartesprestouserviçoaumhomemquesabeserbom,enquantoaoutra retribuiaalguémqueacreditasermau.E,àsvezes,não devemos emprestar a quem nos fez um empréstimo, pois o primeiroemprestouaumhomembom,esperando reavero seuempréstimo, enquantoooutro não tem esperança de ser pago por alguém que passa por ser mau.Portanto,seistoéaverdade,aexigêncianãoéjusta;esenãoé,masacredita-seque seja, ninguém consideraria estranha a recusa. Como acentuamos muitasvezes, as discussões a respeito de sentimentos e ações são tão definidas ouindefinidasquantoosseusobjetos.

Que não devemos fazer amesma retribuição a cada um, nem dar a um pai apreferênciaemtodasascoisas,assimcomonãooferecemostodosossacrifíciosa Zeus, é suficientemente claro.Mas, como devemos prestar coisas diferentesaos pais, aos irmãos, aos camaradas e aos benfeitores, a cada classe devemosprestar o que for apropriado e decoroso. E isso é o que as pessoas parecemrealmentefazer.Paraasbodasconvidamosparentes,poisestesfazempartedafamíliae,porconseguinte,participamtambémdosacontecimentosqueaafetam;e por ocasião dos enterros também consideram apropriado que se reúnam osparentesantesdemaisninguém,pelamesmarazão.

Noque toca aos alimentos, pensa-sequedevemos ajudarnossospais antesdequalquer outro, pois que deles recebemos outrora o nosso sustento e é maishonrosoajudaraesserespeitoosautoresdenossoser,mesmodepreferênciaanóspróprios.Etambémdevemoshonrarnossospaiscomohonramososdeuses,porémnãolhesprestartodaequalquerhonra;acrescequeasmesmashonrasnãoconvémaopaieàmãe,nemselhesdevedarasquesecostumaconferiraumfilósofoouumgeneral,esimasquesãodevidasaumpaiouaumamãe.

Atodasaspessoasmaisvelhas,igualmente,devemserprestadasashonrasqueconvémàsuaidade,erguendo-nospararecebê-las,procurandolugaresparaelas,etc.;aopassoqueaoscamaradaseamigosdevemosdaraliberdadedeexpressar-seeousodetodasascoisasemcomum.

Etambémaosparentes,aosconcidadãoseacadaumadasoutrasclassesdeve-sesempre procurar prestar o que for apropriado e comparar os direitos de cadaclasse com respeito à proximidade de relação, e à virtude ou necessidade. Acomparaçãoémais fácilquandoaspessoaspertencemàmesmaclasse,emaistrabalhosaquandosãodiferentes.Nemporissodevemosfurtar-nosàtarefa,mascumpre-nosdecidiraquestãocomomelhorpudermos.

3

Outra questão que se apresenta é sobre se convém ou não romper a amizadequandoaoutrapartenãopermaneceamesma.Talvezsepossadizerquenãohánada de estranho em romper uma amizade baseada na utilidade ou no prazerquandonossosamigos jánãopossuem taisatributos.Pois foiporcausadestesquenostornamosamigos;equandoelesdeixamdeexistir,érazoávelquenãose

sintamaisamor.Maspoderíamosqueixar-nosdeoutrose,tendo-noseleamadopela nossa utilidade ou aprazibilidade, simulou amar-nos pelo nosso caráter.Porque, como dissemos no começo, as mais das vezes surgem osdesentendimentos entre amigos quando não são amigos dentro do espírito emquepensamsê-lo.Eassim,quandoumhomemiludiuasimesmojulgandoqueeraamadopeloseucarátereissonãocorrespondiaemabsolutoàverdade,nãopode ele censurar a ninguém senão a si próprio;masquando foi iludidopelassimulaçõesdaoutrapessoa,é justoquesequeixedequemoenganou—maisjusto,até,doquequandonosqueixamosdefalsificadoresdemoedas,porquantoomaldizrespeitoaumacoisamaisvaliosa.

Masquandoaceitamosumhomemcomobomeele se revelaepatenteiamau,devemos continuar a amá-lo? Isso é certamente impossível, visto que não sepodemamartodasascoisas,masapenasoqueébom.Oqueémaunempodenemdeveseramado,poisninguémtemodeverdeamaromau,nemdetornar-sesemelhanteaele;ejátemosditoqueosemelhanteécaroaosemelhante.

Deve,então,seraamizadeimediatamenterompida?Ounãoseráassimemtodososcasos,masapenasquandonossosamigossãoincuráveisemsuamaldade?Sesãopassíveisdereforma,deveríamosantesprocurarajudá-losnoquetocaaoseucaráter ou aos seus bens materiais, tanto mais que isso é melhor e maiscaracterísticodaamizade.Masninguémachariaestranhoquealguémrompessesemelhanteamizade,poisnãoeraamigodeumhomemdessaespécie;umavezqueseuamigomudoueelenãopodesalvá-lo,éjustoqueoabandone.

Masseumdosamigospermanecesseomesmoeooutrosetornassemelhoreoultrapassassegrandementeemvirtude,deveriaosegundotrataroprimeirocomoamigo? Seguramente, isso não é possível. A verdade do que dizemos seevidenciasobretudoquandoointervaloégrande,comonocasodasamizadesdeinfância: se um dos amigos permaneceu uma criança quanto ao intelecto, aopasso que o outro se tornou um homem na inteira acepção da palavra, comopodemcontinuaramigossenãoaprovamasmesmascoisas,nemsedeleitamoucontristamcomasmesmascoisas?Porquantonemmesmocomrespeitoumaooutro haverá concordância entre os seus gostos, e sem isso, não pode haveramizade,pois impossíveléviveremosdois juntos.Jádiscutimos,porém,estesassuntos.

Devemos,então,conduzir-nosparacomelecomosenuncativéssemossidoseuamigo?Certamentenosrecordaremosdenossaantigaintimidade,ecomosomos

de opinião que convém obsequiar nossos amigos de preferência a estranhos,tambémnocasodosqueforamnossosamigosdevemoslevaremconsideraçãoaamizadedeoutrora,seorompimentonãosedeveuaumexcessodemaldade.

4

Asrelaçõesamigáveiscomseusemelhanteeasmarcaspelasquaissãodefinidasasamizadesparecemprocederdasrelaçõesdeumhomemparaconsigomesmo.Com efeito, definimos um amigo como aquele que deseja e faz, ou parecedesejarefazerobemnointeressedeseuamigo,oucomoaquelequedesejaqueseuamigoexistaeviva,porelemesmo;eissoéoqueasmãesfazemaosseusfilhos eoque fazemos amigosqueentraramemconflito.Eoutrosodefinemcomoaquelequevivenacompanhiadeoutroetemosmesmosgostosqueele,ou o que compartilha os pesares e alegrias de seu amigo; e isso também éencontradoprincipalmentenasmães.Époralgumadestascaracterísticasqueaamizadeédefinida.

Ora,cadaumadelaséverdadeiradohomembomemrelaçãoasimesmo(edetodos os outros homens namedida em que se consideram bons; a virtude e ohomem bom parecem, como dissemos, ser a medida de todas as classes decoisas).Comefeito,assuasopiniõessãoharmônicaseeledesejadetodaasuaalma asmesmas coisas; por conseguinte, deseja para si o que é bom e o queparecesê-lo,eofaz(poisécaracterísticodohomembompôrempráticaobem),e assim procede no seu próprio interesse (isto é, no interesse do elementointelectualquepossuiemsiequeéconsideradocomosendooprópriohomem);easimesmodesejaavidaeapreservação,emespecialdoelementoemvirtudedoqualelepensa.Porquantoaexistênciaéboaparaohomemvirtuoso,ecadaumdesejaparasioqueébom,aopassoqueninguémdesejariapossuiromundointeiroseparatantolhefosseprecisotornar-seoutrapessoa(quantoaisso,Deusé quem tem a posse atual do bem). Tal homem só deseja essas coisas com acondiçãodecontinuarsendooqueé;eoelementopensantepareceseropróprioindivíduo,ousê-lomaisdoquequalqueroutrodoselementosqueoformam.Eele deseja viver consigo mesmo, e o faz com prazer, já que se compraz narecordação de seus atos passados e suas esperanças para o futuro são boas, eportantoagradáveis.Tem,domesmomodo,amentebemprovidadeobjetosdecontemplação. E sofre e se alegra, mais do qualquer outro, consigo mesmo;porquantoamesmacoisaésempredolorosa,eamesmacoisa,sempreagradável,

enãoumacoisaagoraeoutradepois.Elenãotem,porassimdizer,nadadequepossaarrepender-se.

Logo,comocadaumadestascaracterísticaspertenceaohomembomemrelaçãoasimesmo,eeleserelacionaparacomoseuamigocomoparaconsigomesmo(pois o amigo é outro "eu"), pensa-se que a amizade é também um destesatributos,equeaquelesquepossuemestesatributossãoamigos.Seháounãoamizadeentreumhomemeelemesmo,éumaquestãoquepodemosdeixardelado por ora. Parece haver amizade namedida em que ele é dois oumais, ajulgarpelosatributosdaamizadequemencionamosacimaepelofatodequeoextremodaamizadeécomparadoaoamorquesentimospornósmesmos.

Entretanto,osatributosmencionadosparecempertenceràmaioriadoshomens,pordeploráveiscriaturasqueeles sejam.Devemosentãodizerque,namedidaemque estão satisfeitos consigo e se considerambons, eles participamdessesatributos?Ocertoéquenenhumhomemradicalmentemaueímpioospossuiousequerparecepossuí-los.Nãosepodedizer,tampouco,queaspessoasinferioresospossuam,poistaispessoasnãoseharmonizamconsigomesmas,eapetecemcertascoisas,masracionalmentedesejamoutras.

Istoéverdadeiro,porexemplo,dos incontinentes,queescolhem,em lugardascoisasqueelesmesmosjulgamboas,outrasquesãoagradáveismasperniciosas;enquantooutraspessoasainda,porcovardiaeindolência,seesquivamdefazeroque consideram melhor para elas próprias. E os que cometeram muitos atosabomináveis e são odiados pela sua maldade esquivam-se à própria vida edestroema simesmos.Eosmausbuscamoutraspessoascomquempassarosseus dias e fugir de simesmos; pois lembram-se demuitos crimes e preveemoutros semelhantes quando estão sozinhos, mas esquecem-nos quando têmcompanhia.E,nãopossuindoemsinadadelouvável,nãosentemnenhumamorpor simesmos.Por isso, taishomens tampouco se alegramou sofremconsigopróprios; porquanto a sua alma é dilacerada por forças contrárias, e um doselementosqueaconstituem,emrazãodasuamaldade,sofrequandoseabstémde certos atos, enquanto a outra parte se rejubila, e uma delas o arrasta numadireçãoeaoutranadireçãocontrária,comoseoquisessemesquartejar.Seumhomemnãopodesentirdoreprazeraomesmotempo,pelomenosaocabodealguns instantes sofre porque sentiu prazer e desejaria que tais coisas não lhefossemagradáveis;porqueosmaustêmaalmapejadadearrependimento.

Poressesmotivosohomemmaunãopareceamigavelmentedispostosequerpara

consigomesmo,umavezquenelenãoexistenadadignodeamor.Demodoque,setersemelhanteíndoleéseramaisdesgraçadadascriaturas,devemosenvidartodos os esforços para evitar amaldade e procurar ser bons, porque só assimpoderemosseramigosdenósmesmosedosoutros.

5

Abenevolênciaéumaespéciederelaçãoamigável,masnãoseidentificacomaamizade, pois que tanto podemos senti-la para com pessoas a quem nãoconhecemoscomosemqueelasprópriasosaibam,aopassoquecomaamizadenãosucedeassim.Isto,aliás,jáficouditoatrás.Masabenevolêncianãoésequerumsentimentoamistoso,jáquenãoenvolveintensidadeoudesejo,enquantoosentimentodeamizadeéacompanhadodesseselementos.Alémdisso,amizadeimplicaintimidade,enquantoabenevolênciapodesurgirrepentinamente,comoaconteceparacomosadversáriosnumacompetição:sentimosbenevolênciaparacom eles e compartilhamos os seus desejos,mas não cooperaríamos em nadacomeles;porque,comodizíamos,essesentimentonosvemdesúbitoenóssóosamamossuperficialmente.

A benevolência parece, pois, ser um começo de amizade, como o prazer dosolhoséocomeçodoamor.Porqueninguémamasenãosedeleitoudeiníciocomaformadoseramado;masnemporissooquesedeleitacomaformadeoutrooama: é tambémprecisoque sinta a sua faltaquandoestá ausente eque anseiepela sua presença. Do mesmo modo, não é possível que duas pessoas sejamamigas se antes não sentiram benevolência uma para com a outra, mas pelosimples fato de sentirem benevolência não se pode dizer que sejam amigas,porquantoapenasdesejambemaooutro,masnãocooperariamemnadacomelenemsedariamaotrabalhodeajudá-lo.

E assim, por uma extensão do termo amizade, poder-se-ia dizer que abenevolênciaéumaamizadeinativa,sebemquepasseaseramizadeverdadeiraquandoseprolongaechegaaopontodaintimidade.Nãosetrataaqui,porém,daamizadebaseadanautilidadenemdaquetemporobjetooprazer,poistampoucoabenevolênciasurgeemtaiscondições.

Ohomemquerecebeuumbenefícioretribuicombenevolência,enissonãofazsenão o que é justo, enquanto o que deseja a prosperidade de alguém porque

espera enriquecer através dele não parece sentir benevolência para com talpessoa,masantesparaconsigomesmo,assimcomoumhomemnãoéamigodeoutroseoestimaapenasporcausadealgumproveitoquepossatirardele.Emgeral,abenevolênciasurgeemvirtudedealgumaexcelênciaoumérito,quandoumhomempareceaoutrobelo,bravooualgodesemelhante,comofizemosvernocasodosadversáriosnumacompetição.

6

Aunanimidadetambémpareceserumarelaçãoamigável.Porestemotivonãoéelaidentidadedeopinião,aqualpoderiaocorrermesmoentrepessoasquenãoseconhecem.Etampoucodizemosqueosquetêmamesmaopiniãosobretodoequalquer assunto sejam unânimes, como por exemplo os que concordam notocante aos corpos celestes (pois a unanimidade a esse respeito não é umarelaçãoamigável);masdizemosqueumacidadeéunânimequandooshomenstêmamesmaopiniãosobreoqueédeseuinteresse,escolhemasmesmasaçõesefazememcomumoqueresolveram.

É,portanto,arespeitodascoisasafazerquesedizqueaspessoassãounânimes;e,entreelas,dosassuntosimportantesemqueépossívelaambasouatodasaspartes obteremo que pretendem; por exemplo, uma cidade é unânimequandotodos os cidadãos pensamque os seus cargos públicos devem ser eletivos, ouqueconvémfazeraliançacomEsparta,ouquePítacodevegoverná-la—numaocasiãoemqueopróprioPítacotambémdesejegovernar.Masquandocadaumadeduaspessoasdesejaparasiapossedacoisaemquestão,comooscapitãesnasFenícia, elas entram em choque; porquanto não há unanimidade quando cadauma das partes pensa na mesma coisa, seja ela qual for, mas apenas quandopensamnamesmacoisanasmesmasmãos,porexemplo,quando tantoopovocomoosdaclassesuperiordesejamqueosmelhoreshomensgovernem;porqueassim,esóassim,todosalcançarãooquepretendem.

Aunanimidadeparece,pois,seraamizadepolítica,como,defato,égeralmenteconsiderada; pois ela versa sobre coisas que são de nosso interesse e que têminfluênciaemnossavida.

Ora, tal unanimidade é encontrada entre os homens bons, pois estes sãounânimestantoconsigomesmoscomounscomosoutrosetêm,porassimdizer,

umsópensamento(jáqueosdesejosdetaishomenssãoconstantesenãoestãoàmercêdecorrentescontráriascomoumestreitodemar);edesejamoqueéjustoe vantajoso, e esses são os objetos de seus esforços comuns.Mas os homensmausnãopodemserunânimesanãoserdentrodelimitesmuitoreduzidos,comotampoucopodemseramigos,vistoqueambicionammaisdoqueoseuquinhãojusto de vantagens, enquanto, no trabalho e no serviço público, ficam muitoaquémdapartequelhescompete.Ecadahomem,desejandovantagensparasimesmo, critica o seu vizinho e lhe faz obstáculo; porque, se as pessoas nãoforem vigilantes, o patrimônio comum não tardará a ser completamentedemolido.Daíresultaencontrarem-seemestadodeluta,procurandocoagirunsaosoutrossemqueninguémsedisponhaafazeroqueéjusto.

7

Osbenfeitores,segundosepensa,amamaquelesaquemfizerambemmaisdoqueestesosamam,ediscute-seestepontocomosefosseparadoxal.Amaioriajulga que isso acontece porque os segundos se encontram na posição dedevedores e os primeiros, de credores; e por conseguinte, assim como os quetomaramdinheiroemprestadodesejamqueosseuscredoresnãoexistissem,aopasso que estes chegam a zelar pela segurança de seus devedores, também sepensaqueosbenfeitoresdesejamlongavidaaosobjetosdesuasboasações,poisdessemodopoderãocontarcomagratidãodeles,enquantoosbeneficiáriosnãoseinteressamemlhesretribuirdessaforma.

Epicarnoachariatalvezqueelesfalamassimporque"olhamascoisaspeloladomau", mas isso é muito próprio da natureza humana; porque a maioria daspessoastêmamemóriacurtaeantesdesejamserbemtratadasdoquetratarbemaopróximo.Masacausapareceterraízesmaisprofundasnanaturezadascoisas,eocasodosqueemprestaramdinheironemsequerapresentaanalogiacomeste.Comefeito,oscredoresnãotêmnenhumsentimentoamistosoparacomosseusdevedores, mas apenas desejam vê-los em segurança por causa do que têm areceberdeles;enquantoosqueprestaramumserviçoaoutremsentemamizadeeamorporaquelesaquemserviram,mesmoqueestesnãolhessejamdenenhumautilidade nem jamais possam vir a sê-lo. É o que acontece também com osartífices,porexemplo:cadaumamaotrabalhosaídodesuasmãosmuitomaisdoqueoamariaestesepudesseadquirirvida.Emaisqueninguém, talvez,ospoetas,quedevotamexcessivoamoraos seuspoemas, idolatrando-oscomose

fossemseusfilhos.

Aposiçãodosbenfeitoresésemelhante:apessoaaquemfizerambemécomosefosse sua obra, que eles amam mais do que a obra ama o seu artífice. Isso,porqueaexistênciaéparatodososhomensumacoisadignadeserescolhidaeamada;ora,nósexistimosemvirtudedaatividade(istoé,vivendoeagindo),eaobraé,emcertosentido,umaprodutoradeatividade;portanto,oartíficeamaasuaobraporqueamaaexistência.E isso temraízesprofundasnanaturezadascoisas,poisoqueeleéempotência,suaobraomanifestaemato.

Aomesmotempo,paraobenfeitorénobreaquiloquedependedasuaação.Eassimsedeleitacomoobjetodasuaação,enquantoopacientenãovênadadenobrenoagente,masnomáximoalgodevantajoso;eissoémenosagradáveleestimável.Oqueéagradáveléaatividadedopresente,aesperançadofuturoeamemóriadopassado;maisagradávelquetudo,porém,etambémmaisestimável,éoquedependedaatividade.Ora,paraohomemque fez algumacoisa a suaobrapermanece(poisonobreéduradouro),masparaaquelequefoiobjetodaaçãoautilidadenãotardaapassar.Ealembrançadascoisasnobreséagradável,enquanto a das coisas úteis não costuma sê-lo, ou o é menos. No caso daexpectação,contudo,ocontráriodissoéquepareceserverdadeiro.

Acrescequeoamorécomoaatividade,eseramadoassemelha-seàpassividade;e o amor e os seus concomitantes são os atributos dos mais ativos dentre oshomens.

Efinalmente,todososhomenstêmmaioramoraoqueganharamcomofrutodoseutrabalho.Porexemplo,osquefizeramasuafortunaamam-namaisdoqueaqueles a quem ela veio por herança; e ser bem tratado não parece envolvertrabalho,enquantofazerbemaoutremé tarefa laboriosa.Sãoestas tambémasrazõesporqueasmães têmmaisamoraseus filhosdoqueospais;pô-losnomundolhescustoumaisdoreseelassentemmaisprofundamentequeosfilhoslhespertencem.Esteúltimopontopareceaplicar-seigualmenteaosbenfeitores.

8

Tambémsediscuteaquestãodeseumhomemdeveriaamaracimadetudoasimesmoouaalgumaoutrapessoa.Sãocriticadosaquelesqueamamasimesmosmais do que a qualquer outra coisa e dá-se-lhes o nome de ególatras, que é

consideradoumepítetopejorativo;eumhomemmauparecefazer tudonoseuprópriointeresse,eissotantomaisquantopiorelefor.Éacusado,porexemplo,denãofazernadaespontaneamente,enquantoohomembomagetendoemvistaahonra,sacrificandoosseusinteressespessoais,eissotantomaisquantomelhorelefor.

Mas os fatos estão em conflito com estes argumentos, o que aliás não é desurpreender.Comefeito,dizemoshomensquedeveríamosamaracimadetudoonossomelhoramigo,eomelhoramigodeumhomeméaqueleque lhedesejabemporelemesmo,aindaqueninguémvenhaaterconhecimentodisso;eessesatributossãoencontradosprincipalmentenaatitudedeumhomemparaconsigomesmo,comotodososoutrosatributospelosquaisédefinidoumamigo;porque,comodissemos,foiapartirdestarelaçãoquetodasascaracterísticasdaamizadese estenderam aos nossos semelhantes. E isto é confirmado pelos provérbios,como "uma só alma", "os amigos possuem todas as coisas em comum","amizade é igualdade" e "a caridade começa por casa", pois todas essascaracterísticas são encontradas principalmente na relação de um homem paraconsigomesmo.Elepróprioéoseumelhoramigo,eporissodeveriaamarasimesmo acima de tudo. É, pois, razoável indagar qual das duas opiniõesseguiremos,porqueambassãoplausíveis.

Talvezconvenhadistinguiressesargumentosunsdosoutrosedeterminaremquemedida e a que respeito cada uma das opiniões é verdadeira. Ora, a verdadepoderá tornar-seevidenteseapreendermososentidoemquecadaescolausaaexpressão"amigodesimesmo".Osqueausamcomotermodecensuraatribuemaautofiliaaosqueabocanhamumquinhãomaiorderiquezas,honraseprazerescorporais,poisessassãoascoisasqueamaioriadesejaepelasquaisseesforçacomo se fossem as melhores de todas; e também por esse motivo se tornamobjetosdecompetição.Eosquesãocúpidoscomrespeitoaelassatisfazemosseusapetites e,demodogeral,os seus sentimentoseoelemento irracionaldesuaalma.

Ora,amaioriadoshomenssãodessanatureza,eesseéomotivodeserusadooepíteto em tal acepção: ele recebe o seu significado do tipo predominante deautofilia, que émau. É justo, por conseguinte, que os homens que amam a simesmosdessemodosejamobjetosdecensura.

Eéevidentequeamaioriadaspessoascostumamchamaramigosdesimesmosaquelesquesedãopreferênciacomrespeitoaobjetosdessaespécie;porque,se

umhomemfizessesemprequestãodequeelemesmo,acimadetodasascoisas,agissecomjustiçaetemperançaoudeacordocomqualqueroutravirtude,eemgeral procurasse sempre assumir para si a conduta mais nobre, ninguémchamariaamigodesimesmoaumtalhomemeninguémocensuraria.

Noentanto,eleparecesermaisamigodesimesmodoqueooutro.Pelomenos,atribuiasiascoisasmaisnobresemelhores,satisfazoelementomaisvaliosodesua natureza e obedece-lhe em todas as coisas.E, assim comouma cidade ouqualquer outro todo sistemático é, com toda a justiça, identificada com o seuelemento mais valioso, o mesmo sucede com o indivíduo humano; e, porconseguinte,ohomemqueamaesse elementoeo satisfaz émais amigode simesmoquequalqueroutro.

Aindamais:diz-sequeumhomemtemounãotemdomíniopróprioconformearazão domine ou deixe de dominar nele, o que implica que ela é o própriohomem;eascoisasqueoshomensfazemdeacordocomumprincípioracionalsãoconsideradasmaislegitimamenteatosseus,eatosvoluntários.

Éevidente,pois,queesseéoprópriohomem,ouqueoémaisdoquequalqueroutra coisa, e também que o homem bom ama acima de tudo essa sua parte.Dondeseseguequeeleénomais legítimosentidodapalavraumamigodesimesmo, e de um tipo diferente daquele que é alvo de censura, tanto quanto oviverdeacordocomumprincípioracionaldiferedoviversegundoosditamesdapaixão,edesejaroqueénobrededesejaroqueparecevantajoso.

Por isso, todos os homens aprovam e louvam os que se ocupam em grauexcepcional com ações nobres; e se todos ambicionassem o que é nobre ededicassemomelhordeseusesforçosàpráticadasmaisnobresações,todasascoisas concorreriampara o bem comume cada umobteria para si osmaioresbens,jáqueavirtudeéobemmaiorqueexiste.

Portanto,ohomembomdeveseramigodesimesmo(poiselepróprio lucrarácom a prática de atos nobres, ao mesmo tempo que beneficiará os seussemelhantes);masohomemmaunãooé,porque,comoabandonoàssuasmáspaixões,ofendetantoasimesmocomoaosoutros.Paraohomemmau,oqueelefazestá emconflito comoquedeve fazer, enquantoohomembom fazoquedeve;porquearazão,emcadaumdosqueapossuem,escolheoqueémelhorparasimesma,eohomembomobedeceàrazão.

Dohomembomtambéméverdadeirodizerquepraticamuitosatosnointeressedeseusamigosedesuapátria,e,senecessário,dáavidaporeles.Comefeito,talhomemdebomgradorenunciaàriqueza,àshonraseemgeralaosbensquesão objetos de competição, ganhando para si a nobreza, visto que prefere umbreve período de intenso prazer a uma longa temporada de plácidocontentamento,dozemesesdevidanobrealongosanosdeexistênciaprosaica,euma só ação grande e nobre amuitas ações triviais. Ora, os quemorrem poroutremcertamentealcançamesseresultado;éele,pois,umgrandeprêmioqueescolhemparasimesmos.

Oshomensbonstambémsedesfazemdesuasriquezasparaqueosseusamigospossamganharmais,pois,enquantooamigodeumhomemadquireriqueza,elepróprioalcançanobreza:éaele,portanto,quecabeomaiorbem.Omesmosepodedizerdashonrasecargospúblicos:tudoissoelesacrificaráaoseuamigo,porquetaisatossãonobreselouváveisnele.

Com razão, pois, é um homem assim considerado bom, visto que escolhe anobrezaacimade tudo.Epodeele, inclusive,deixara açãoao seuamigo: emcertas ocasiões é mais nobre sermos a causa da ação de um amigo do queagirmosnósmesmos.

Vê-se, pois, que em todosos atosque atraem louvores aoshomens, ohomembomreservaparasiomaiorquinhãodoqueénobre.Enestesentido,comojádissemos, umhomemdeve ser amigode simesmo, porémnãono sentido emqueamaioriaoé.

9

Tambémsediscutesobreseohomemfeliznecessitaounãodeamigos.Diz-seque os que são sumamente felizes e autossuficientes não precisam deles, poistaispessoaspossuemtudoqueébome,autossuficientescomosão,dispensamoresto;enquantoumamigo,queéoutro"eu",proveoqueumhomemnãopodeconseguirpelosseusprópriosesforços.Daíaspalavras:"quandoa fortunanossorri,paraqueprecisamosdeamigos”?

Mas parece estranho, quando se atribui tudo o que é bom ao homem feliz,recusar-lhe amigos, que são considerados os maiores bens exteriores. E, se émais próprio de um amigo fazer bem a outrem do que ser beneficiado, e se

dispensarbenefíciosécaracterísticodohomembomedavirtude,eémaisnobrefazerbemaamigosdoqueaestranhos,ohomembomnecessitarádepessoasaquem possa fazer bem. E por esta razão se pergunta se necessitamosmais deamigos na prosperidade ou na adversidade, subentendendo que não só umhomemnaadversidadeprecisadequemlheconfirabenefícios,mastambémosprósperosnecessitamteraquemfazerbem.

Nãomenos estranho seria fazer dohomem sumamente feliz um solitário, poisninguémescolheriaapossedomundointeirosobacondiçãodeviversó,jáqueo homemé um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade. Porisso,mesmoohomembomviveráemcompanhiadeoutros,vistopossuireleascoisasquesãoboaspornatureza.E,evidentemente,émelhorpassarosseusdiascom amigos e homens bons do que com estranhos ou a primeira pessoa queapareça.Logo,ohomemfeliznecessitadeamigos.

Que significa, então, a asserção da primeira escola, e em que sentidocorresponde ela à verdade? Dar-se-á o caso de que a maioria dos homensidentifiquem os amigos com as pessoas úteis? De tais amigos, é certo que ohomem sumamente feliz não temnecessidade, visto já possuir todas as coisasboas;etampouconecessitarádaquelescomquemfazemosamizadeporcausadoprazerquenosproporcionam,ousóprecisarádelesemgraumuitorestrito(pois,sendo aprazível a sua vida, ele dispensa prazeres adventícios); e, como nãonecessitadetaisamigos,julga-sequenãonecessitadeamigosemabsoluto.

Masisto,seguramente,nãoéverdadeiro,porquantonocomeçodissemosqueafelicidadeéumaatividade;eaatividade,evidentemente,éalgoquesefazequenãoestápresentedesdeoprincípio,comoumacoisaquenospertencesse.Seafelicidade consiste em viver e em ser ativo, e a atividade do homem bom évirtuosaeaprazívelemsimesma,comodissemosnocomeço,eofatodeumacoisa nos pertencer é um dos atributos que a tornam aprazível, e podemoscontemplaronossopróximomelhordoqueanósmesmosesuasaçõesmelhordoqueasnossas,eseasaçõesdoshomensvirtuososquesãoseusamigossãoaprazíveis aos bons (visto possuírem ambos os atributos que são naturalmenteaprazíveis)—seassimé,ohomemsumamentefeliznecessitarádeamigosdessaespécie, já que o seu propósito é contemplar ações dignas e ações que sejamsuas, e as de um homem bom que seja seu amigo possuem ambas essasqualidades.

Alémdisso,pensa-sequeohomemfelizdeveterumavidaaprazível.Ora,seele

vivesse comoumsolitário a existência lhe seriadura, poisnão é fácil a quemestásozinhodesenvolverumaatividadecontínua;mascomoutrosevisandoaosoutros,issoémaisfácil.Emcompanhiadeoutraspessoas,porconseguinte,suaatividade serámais contínua e aprazível em simesma, como deve ser para ohomemsumamentefeliz;poisumhomembom,enquantobom,deleita-secomasações virtuosas e se entristece com as más, assim como o amante da músicasenteprazer emouvirbelasmelodias e se aborrececomasmás.Acompanhiadosbonstambémnosoferececertoadestramentonavirtude,comodisseTeógnisantesdenós.

Se aprofundarmos um pouco mais a natureza das coisas, um amigo virtuosoparece ser naturalmente desejável a umhomemvirtuoso.Com efeito, o que ébompornatureza,comodissemos,é,paraohomemvirtuoso,bomeagradávelem si mesmo. Ora, a vida é definida, quanto aos animais, pelo poder depercepção, equantoaohomem,pelopoderdepercepçãooudepensamento; eumpoder é definido com referência à correspondente atividade, que é a coisaessencial;logo,avidapareceseressencialmenteoatodeperceberoudepensar.Ora,avidafazpartedascoisasquesãoboaseaprazíveisemsimesmas,vistoqueelaédeterminada,eodeterminadoédanaturezadobom;eoqueébompornaturezatambémébomparaohomemvirtuoso(porissoavidapareceaprazívelatodososhomens).Nãodevemos,contudo,aplicaresteprincípioaumavidamáe corrupta, nem a uma vida passada entre sofrimentos, pois tal vida éindeterminada,talqualosseusatributos.

Anaturezadadorsetornarámaisclaranaspáginasqueseguem.Mas,seavidaemsimesmaéboaeaprazível(oquepareceserverdadeiropeloprópriofatodeadesejarem todososhomens,eparticularmenteosquesãobonse sumamentefelizes:para taishomens,avidaédesejávelmaisqueparaquaisqueroutros,esuaexistênciaéfeliznomaisaltograu);esequemvêpercebequevê,equemouve percebe que ouve, e quemcaminha percebe que caminha, e em todas asoutrasatividadeshátambémalgumacoisaquepercebequeestamosagindo,demodo que, se percebemos, percebemos que percebemos, e, se pensamos,percebemos que pensamos; e se perceber que percebemos ou pensamos éperceber que existimos (pois que a existência foi definida comopercepção oupensamento); e se perceber que vivemos é, em si mesmo, uma das coisasaprazíveis(poisavidaéboapornatureza,eéaprazívelperceberemsimesmoapresençadoqueébom);eseavidaédesejável,eparticularmentedesejávelparaos homens bons, porque para eles a existência é boa e aprazível (visto que secomprazememsentirpresentenelesoqueébomemsimesmo);e,seohomem

virtuosoéparaoseuamigotalcomoéparasipróprio(porquantooamigoéumoutro "eu") — se tudo isso é verdadeiro, assim como o seu próprio ser édesejável para cada homem, igualmente (ou quase igualmente) o é o de seuamigo.Ora,jávimosqueoseuserédesejávelporqueelepercebeasuaprópriabondade, e tal percepção é agradável em si mesma. Ele necessita, porconseguinte, ter consciência também da existência de seu amigo, e isso severificará se viverem em comum e compartilharem suas discussões epensamentos;poisissoéoqueoconvívioparecesignificarnocasodohomem,enão,comoparaogado,opastarjuntosnomesmolugar.

Se, portanto, o ser é desejável em si mesmo para o homem sumamente feliz(visto que é bom e agradável por natureza), e o ser de seu amigo é mais oumenosidênticoaoseu,umamigoseráumadascoisasdesejáveis.Ora,oqueédesejávelparaele,énecessárioqueopossuasobpenadeserdeficienteaesserespeito.Paraserfelizohomemnecessita,portanto,deamigosvirtuosos.

10

Devemos,então,fazeromaiornúmeropossíveldeamizades,ou,assimcomonotocanteàhospitalidadeéconsideradodebomalvitre"nãoserhomemdemuitosconvidados,nemhomemdenenhum",aregraseaplicatambémàamizadeeumhomemnãodeveviversemamigosnemterumnúmeroexcessivodeles?

Amáximapareceperfeitamenteaplicávelàsamizadesque fazemoscomvistasnautilidade,porqueretribuirosserviçosdemuitagenteécoisatrabalhosaeumavidahumananãobastapara tanto.Logo,oexcessodeamigossobreonúmerosuficiente para a nossa existência é supérfluo e constitui um obstáculo à vidanobre;deformaquenãonecessitamosdeles.Dasamizadesfeitascomvistasnoprazer também bastam umas poucas, assim como um pouco de tempero nacomidaésuficiente.

Masnoquetocaaosbonsamigos,devemostê-lostantoquantopossível,ouháumlimiteparaoseunúmerocomoháparao tamanhodeumacidade?Nãosepodefazerumacidadecomdezhomens,eseestesforemcemmil,nemporissoelaseráumacidade.

Entretanto,onúmeroapropriadonãoéprovavelmenteumaquantidadefixamasqualquer que se situe entre dois pontos fixos. De modo que para os amigos

também existe um número fixo— talvez o maior número com que se podeconviver (pois essa, segundo verificamos, é considerada como a própriacaracterística da amizade); e é evidente quenão se pode conviver commuitaspessoas e dividir-se entre elas. Acresce que essas pessoas também devem seramigas umas das outras, se têm de passar a vida juntas; e dificilmente talcondiçãoserápreenchidacomumnúmeroelevadodeindivíduos.Etampoucoéfácil compartilhar as alegrias e os pesares íntimos de muita gente, pois issoimportaria em sentir-se feliz com um amigo e em contristar-se com outro,simultaneamente.

Parece,pois,queconvémnãoprocurarteromaiornúmeropossíveldeamigos,masapenas tantosquantos foremsuficientesparaos finsdoconvívio,pois serumgrandeamigodemuitaspessoasécoisaqueseafiguraimpossível.Poressamesma razão, nãopodemos amarvárias pessoas aomesmo tempo.O ideal doamorésercomoqueumexcessodeamizade,eissosósepodesentirporumapessoa,dondeseseguequetambémsópodemossentirumagrandeamizadeporpoucaspessoas.

Istopareceencontrarconfirmaçãonaprática,pois sãomuito rarososcasosdeumgrandenúmerodepessoasquesejamamigasumasdasoutrasnosentidodaamizade-camaradagem, e as amizades famosas dessa espécie são sempre entreduaspessoas.Osquetêmmuitosamigosemantêmintimidadecomelespassampor não ser amigos de ninguém, salvo dentro dos limites apropriados aconcidadãos; e tais pessoas são também chamadas obsequiosas. Dentro doslimitesapropriadosaconcidadãos,emverdade,épossívelseramigodemuitossemcontudoserobsequioso,masumhomemgenuinamentebom.Poroutrolado,nãosepodemantercommuitaspessoasaespéciedeamizadequesebaseianavirtude e no caráter de nossos amigos, e devemos dar-nos por felizes seencontrarmosunspoucosdessaespécie.

11

Necessitamosmaisdeamigosnaprosperidadeounaadversidade?Tantonumacomo na outra situação eles são procurados, porque, se na adversidade oshomens precisam de ajuda, na prosperidade necessitam pessoas com quemconvivereàsquaisfazerobjetosdesuabeneficência,jáquedesejamfazerbemaoutrem.

A amizade é, pois, mais necessária na adversidade, e por essemotivo são osamigosúteis quebuscamos em tal caso; naprosperidade, pelo contrário, ela émaisnobre,eentãobuscamostambémhomensbonsparaseremnossosamigos,vistoqueémaisdesejávelfazerbemaelesecomelesconviver.Comefeito,aprópriapresençadosamigoséaprazíveltantonaboacomonamáfortuna,jáquenossa dor émenor quando eles a compartilham conosco. E assim, poder-se-iaperguntarseelestomamsobreosseusombrosumapartedonossofardo,ouseéa presença dos amigos, pelo que tem de aprazível, e o pensamento de eles secondoerem conosco que aligeiram a nossa dor. Quer os motivos sejam esses,queralgumoutro,éumaquestãoquepodemospôrdelado;sejacomofor,oquedescrevemosparecerealmenteocorrer.

Mas a presença dos amigos parece encerrar umamistura de vários fatores. Osimples fato de vê-los é agradável, especialmente se nos encontramos numaquadraadversa,etorna-seumasalvaguardacontraopesar(poisumamigotendea confortar-nos tanto pela sua presença como pelas suas palavras, se é umapessoade tato,vistoconheceronossocaráter e ascoisasquenosagradamounoscontristam).Masvê-lossofrercomnossosinfortúniosédoloroso,poistodosevitamcausardoraseusamigos.Poressemotivooshomensdenaturezavaronilabstêm-se de fazer seus amigos sofrer com eles e, a não ser que tenha umaextraordinária insensibilidade à dor, tal homem não pode suportar a dor quecausaaseusamigos,eemgeralnãoadmitecompanheirosdeafliçãoporqueelepróprionãoédadoaafligir-se.Masasmulhereseoshomensmulherisgostamdeterpessoascondoídasaoseuredoreamam-nascomoamigosecompanheirosdepesar.Contudo,éevidentequeemtodasascoisasdeveríamosprocurarimitaromelhortipodepessoa.

Por outro lado, a presença de amigos na prosperidade tanto implica ummodoaprazível de passar o tempo comoo prazer de vê-los felizes com a nossa boafortuna. Segundo parece, pois, deveríamos convocar sem demora os nossosamigosacompartilharanossaventura(poisaspessoasdecaráterbenfazejosãonobres),mas hesitar em chamá-los nos dias de infortúnio, pois que de nossosmalesdevemosdar-lhesumapartetãopequenaquantopossível—dondeafrase:"já basta o meu infortúnio". Acima de tudo, devemos chamar nossos amigosquandoelespodem,semgrandetrabalho,prestar-nosumgrandeserviço.

Inversamente,édecorosoacorrersemserconvidadoemauxíliodosqueforamcolhidospelaadversidade(poisécaracterísticodeumamigoprestarserviços,eespecialmenteaosquedelesnecessitamequenãoossolicitaram;talaçãoémais

nobreemaisaprazívelaambos);masquandonossosamigossãoprósperosnãodevemoshesitaremcompartilhardesuasatividades(porquantoelesprecisamdeamigos também para isso), nem nos apressarmos quando se trata de serbeneficiados por eles: porque não é nobre mostrar-se ávido de receberbenefícios. Ainda assim, convém evitar a reputação de desmancha-prazeres aquenosexporemosseosrepelirmos,poisissoalgumasvezesacontece.

Em conclusão, a presença de amigos parece ser desejável em todas ascircunstâncias.

12

Nãoseseguedaíque,assimcomoparaosamantesavistadoseramadoéacoisaquemaiordeleite lhescausa,epreferemessesentidoaosoutrosporqueédelequemaisdepende tanto a existência comoaorigemdoamor, tambémparaosamigos amais desejável de todas as coisas é o convívio?Porque a amizade éumaparceria,etaléumhomemparasimesmo,taléparaoseuamigo;ora,paraele a consciência do seu ser é desejável, e também o é, por conseguinte, aconsciênciadoserdeseuamigo;eessaconsciência torna-seativaquandoelesconvivem.Porisso,énaturalquebusquemoconvívio.

E daquilo que a existência significa para cada classe de homens, daquilo que,para eles, dá valor à vida, dissomesmo desejam ocupar-se em companhia deseus amigos. Por isso alguns bebem juntos, outros jogamdados juntos, outrosassociam-se nos exercícios atléticos, na caça ou no estudo da filosofia, cadaclassedehomenspassandoosdiasentregue,emmútuacompanhia,àsocupaçõesque mais ama na vida; porque, visto como desejam viver com seus amigos,fazem e compartilham aquelas coisas que lhes dão o sentimento de viveremjuntos.Eassimaamizadedosmausmostraserumapéssimacoisa(porque,emrazãodasua instabilidade,coligam-seemocupaçõesmás,alémdepiorarcadaum pelo fato de se tornar semelhante aos outros), enquanto a amizade doshomensbonséboaporquecrescecomocompanheirismo.Epensa-sequeelessetornam tambémmelhoresgraças às suas atividades e àboa influênciaqueunstêm sobre os outros; pois cada um recebe dos demais o modelo dascaracterísticasqueaprova—edaíafrase:"(aprender)açõesnobresdehomensnobres”.

Basta,pois,quantoàamizade.Nossapróximatarefaserádiscutiroprazer.

LIVROX

1

Depoisdestesassuntosdevemostalvezpassaràdiscussãodoprazer.Comefeito,julga-sequeeleestá intimamenterelacionadocomanossanaturezahumana,eporessarazão,aoeducarosjovens,nósosgovernamoscomoslemesdoprazere da dor. E também se pensa que comprazer-se com as coisas apropriadas edetestarasquesedevetemamaiorinfluênciapossívelsobreocarátervirtuoso.Porqueessascoisasnosacompanhamduranteavidainteira,comumpesoeumpoderprópriostantonoquetocaàvirtudecomoàvidafeliz,jáqueoshomensescolhem o que é agradável e evitam o que é doloroso; e são elas, segundoparece,asquemenosconviriaomitiremnossainvestigação,especialmenteporseremobjetodemuitascontrovérsias.

Alguns,comefeito,dizemqueoprazeréobem,enquantooutrosafirmam,pelocontrário,queeleéabsolutamentemau—uns,semdúvida,naconvicçãodequeessa é a verdade, e outros julgando que terá melhor efeito em nossa vidadenunciaroprazercomocoisamá,aindaqueelenãooseja.Porquantoamaioriadaspessoas(pensameles)se inclinamparaoprazeresãosuasescravas,eporissodeveriamserconduzidasnadireçãocontrária,afimdealcançaremoestadointermediário.

Mas isso, seguramente,nãoé correto.Comefeito,os argumentosem tornodesentimentoseaçõesmerecemmenosconfiançadoqueosfatoseassimquandoentramemconflitocomosfatosdapercepção,elessãodesprezados,aomesmotempoquedesacreditamaprópriaverdade:seumhomemquedifamaoprazerésurpreendido uma vez a buscá-lo, isso parece provar que ele merece serpreferido a todas as coisas, porque a maioria das pessoas não sabe fazerdistinções.

Osargumentosverdadeirosafiguram-se,pois,extremamenteúteis,nãosóparaaciênciamasparaaprópriavida;porque,comoseharmonizamcomosfatos,nóslhes damos crédito, e destarte estimulam os que os compreendem a viver deacordocomeles.

Quantoaessasquestões,basta.Passemosagoraemrevistaasopiniõesquetêmsidoexpressasarespeitodoprazer.

2

Eudoxopensavaqueoprazeréobemporqueviatodososseres,tantoracionaiscomoirracionais,tenderparaele,eporqueemtodasascoisasaquiloparaquesedirigeaescolhaéexcelente,eomaisvisadopelaescolhaéomaiordosbens.Eassim,ofatodetodasascoisassemoveremparaomesmoobjetoindicavaqueparatodaseraesseomaiordosbens(porquecadacoisa,argumentavaEudoxo,encontra o seu bem próprio, da mesma forma que encontra o seu alimentoadequado);eaquiloqueébomparatodasascoisaseaquetodaselasvisaméobemporexcelência.

Seusargumentos foramaceitosnão tantopor simesmoscomopelaexcelênciadoseucaráter.Passavaporserumhomemdenotávelautodomínio,eporissosejulgavaqueelenãoafirmassetaiscoisascomoamigodoprazer,masporqueessaera a verdade. Acreditava Eudoxo quê um estudo do contrário do prazer nãoconduziacommenosevidênciaàmesmaconclusão:assimcomoadoréemsimesmaumobjetodeaversãoparatodasascoisas,oseucontráriodeveserumobjeto de preferência.Ora, omais genuíno objeto de preferência é aquilo queescolhemosporsimesmoenãoporcausadeoutracoisaoucomvistasnela;eoprazer é reconhecidamente dessa natureza, pois que ninguém indaga com quefimosente, implicandodestartequeeleéemsimesmoumobjetodeescolha.Alémdisso,Eudoxoargumentavaqueoprazer,quandoacrescentadoaumbemqualquer,como,porexemplo,àaçãojustaoutemperante,otornamaisdignodeescolha,equeobemsópodeseracrescidoporsimesmo.

Esteargumentoparecemostrarqueeleéumdosbens,masquenãooémaisdoque outro qualquer; pois qualquer bem é mais digno de escolha quandoacompanhadodeoutrodoquequandosozinho.EémesmoporumargumentodestaespéciequePlatãodemonstranãoserobemoprazer.Dizelequeavidaaprazívelémaisdesejávelquandoacompanhadadesabedoriadoquesemela,eque,seamisturaémelhor,oprazernãoéobem;porqueobemnãopodetornar-semaisdesejávelpela adiçãodoquequerque seja.Ora, é claroquenão sóoprazer,masnenhumaoutracoisapodeserobemseaadiçãodeumadascoisasque sãoboas em simesmas a tornamaisdesejável.Que é, então, que satisfaz

estecritério, eemque, aomesmo tempo,podemosparticipar?Éalgumacoisadessaespéciequeestamosprocurando.

Há quem objete a isso dizendo que o fim visado por todas as coisas não énecessariamentebom,maspodemosestarcertosdequetaispessoasnãofazemmaisdoquedisparatar.Porquantonósdizemosqueaquiloquetodospensaméaverdade;eohomemqueatacaressacrençanão teráoutracoisamaisdignadecrédito para sustentar em lugar dela. Se fossem criaturas irracionais quedesejassem as coisas de que falamos, talvez houvesse alguma verdade no queelesdizem:mas,seseresinteligentestambémasdesejam,quesentidopodetertal opinião?Semembargo, talvezmesmonas criaturas inferiores exista algumbem natural mais forte do que elas e que a; oriente para o bem que lhes épróprio.

TampoucoparececorretooargumentosobreocontráriodoprazerDizemque,seadoréummal,nãoseseguedaíqueoprazersejaumbem:porqueummalseopõeaoutrocambosaomesmotemposeopõemaoestadoneutro.Ora, istoébastantecerto,masnãoseaplicaàscoisasdequeestamostratando.Porque,setantaoprazer comoadorpertencessem i classedosmales, ambosdeviamserobjetos de aversão, ao passo que se pertencessem à classe das coisas neutras,nenhumseriaobjetodeaversãoouambososeriamemigualgrau.Masaverdadeevidenteéqueoshomemevitamumacomoummaleescolhemooutrocomoumbem.Essadeveser,portanto,anaturezadaoposiçãoentreosdois.

3

E,poroutrolado,seoprazernãoéumaqualidade,tambémnãoseconcluidaíqueelenãosejaumbem;porquetampoucosãoqualidadesaatividadevirtuosa,nem a felicidade. Dizem, no entanto, que o bem é determinado, enquanto oprazer é indeterminado, visto admitir graus. Ora, se é pela observação dosentimentodeprazerquepensamassim,omesmoseráverdadeiroda justiçaedasoutrasvirtudes,no tocanteàsquaisdizemossemhesitarqueaspessoasdecerto carátero sãomaisoumenoseprocedemmaisoumenosde acordocomessas virtudes; porquanto uma pessoa pode ser mais ou menos corajosa, etambémépossívelagirdemaneiramaisoumenosjustaoutemperante.Mas,seojuízodessespensadoressebaseianosdiversosprazeres,seguramenteelesnãoestão apontando a causa verdadeira, se de fato alguns prazeres são estremes e

outros, mesclados. E, por outro lado, se a saúde admite graus sem serindeterminada, por que não sucederia o mesmo com o prazer? A mesmaproporçãonãoéencontradaemtodasascoisas,nemumadeterminadaproporçãosempre namesma coisa: pode ela afrouxar e, sem embargo, persistir até certoponto; e pode também diferir em grau. Por conseguinte, o caso do prazertambémpodeserdessaespécie.

Poroutrolado,elesalegamqueobeméperfeito,aopassoqueomovimentoeasgerações são imperfeitos, eprocurammostrarqueoprazeréummovimentoeuma geração.Mas nemmesmo isso parece ser verdade. Com efeito, pensa-sequearapidezealentidãosãocaracterísticasdetodoequalquermovimento,eseummovimento comoodos céus não tem rapidez nem lentidão em simesmo,tem-nas em relação a outra coisa; mas do prazer nada disso é verdadeiro.Porquanto, se é certo que podemos comprazer-nos depressa assim comopodemosencolerizar-nosdepressa,nãoépossívelsentirprazerdepressa,emborasepossaandar,crescer,etc., rapidamente.Emoutraspalavras:podemospassardepressaoulentamenteaumestadodeprazer,porémnãomostrarrapidamenteaatividadedoprazer,istoé,sentirprazer.

Aindamais:emquesentidopodeeleserumageração?Nãosecrêqueumacoisaqualquerpossaprovir deoutra coisaqualquer,masqueumacoisa se encontracomo que dissolvida naquela de que provém; e a dor seria a destruição dessacoisacujageraçãoseriaoprazer.

Dizem,também,queadoréaausênciadaquiloqueéconformeànatureza,equeo prazer é o preenchimento dessa falta.Mas tais sensações são corporais. Se,pois,oprazeréopreenchimentodaquiloqueestádeacordocomanatureza,oquesenteprazerseráaquiloemqueocorreopreenchimentodafalta,asaber,ocorpo. Mas não se acredita que seja assim; portanto, o preenchimento não éprazer, embora possamos sentir prazer quando ele ocorre, assim comosentiríamosdoraoseroperados.

Estadoutrinaparecebasear-senasdoreseprazeresassociadosànutrição,enofatodequeaspessoasquepreviamentesofrerammínguadealimentoseestalhesfoidolorosasentemprazeraoserpreenchidaafalta.Masissonãoacontececomtodososprazeres:osprazeresdoaprendere,entreosquenosproporcionamossentidos, os do olfato, e também muitos sons e sensações visuais, além dasrecordaçõesedasesperanças,nãopressupõemdor.Deonde,pois, segerariamestes?Nãohavia,noseucaso,nenhumafaltaapreencher.

Emrespostaaosqueargumentamcomosprazeresvergonhosos,podemosdizerqueessesnãosãoagradáveis.Pelofatodecertascoisasagradaremapessoasdeconstituição viciosa, não devemos supor que elas também sejam agradáveis aoutros,assimcomonãoraciocinamosdessaformaarespeitodascoisasquesãosaudáveis,docesouamargasparaosdoentes,nematribuímosabrancuraàsqueparecembrancasaosquesofremdosolhos.Ou,então,poder-se-iaresponderqueosprazeressãodesejáveis,porémnãoosprovindosdessasfontes,assimcomoariquezaédesejável,porémnãocomorecompensadatraição,ecomoasaúdenãoo é à custa de comer toda e qualquer coisa.Ou talvez os prazeres difiramemespécie, pois os que provêm de fontes nobres são diferentes daqueles cujasfontessãovis,enãosepodesentiroprazerdohomemjustosemserjusto,nemosprazeresdomúsicosemsermúsico,eassimpordiante.

Etambémofatodeumamigoserdiferentedeumaduladorparecemostrarcomtoda a evidência que o prazer não é um bem ou que os prazeres diferem emespécie;porqueseacreditaqueumbuscaonossoconvíviocomamiranobemeooutrovisandoaonossoprazer,eumécensuradopelasuaconduta,enquantoooutro é louvado, partindo-se do princípio de que os dois buscam o nossoconvíviocomfinalidadesdiferentes.Alémdisso,ninguémprefeririaviveravidainteiracomointelectodeumacriança,pormaisprazerquelheproporcionassemas coisas que agradamàs crianças, nemcomprazer-se na prática de algumatoprofundamente vergonhoso, ainda que jamais tivesse de sofrer emconsequência.

Poroutrolado,hámuitascoisasquedevemosdesejarcomtodasasveras,aindaquenãonostragamnenhumprazer,comoavista,amemória,aciência,apossedas virtudes. Não faz diferença que essas coisas sejam necessariamenteacompanhadas de prazer: deveríamos escolhê-las mesmo que nenhum prazerresultassedaí.

Parececlaro,portanto,quenemoprazeréobem,nemtodoprazerédesejável,equealgunsprazeressãorealmentedesejáveisporsimesmos,diferindoelesdosoutros em espécie ou quanto às suas fontes. Quanto às opiniões correntes arespeitodoprazeredador,ésuficienteoquedissemos.

4

Ver-se-ácommaisclarezaoquesejaoprazer,ouqueespéciedecoisaseja,setornarmosaexaminaraquestãopartindodocomeço.

Asensaçãovisualparecesercompletaemtodososmomentos,poisnãolhefaltanada que, surgindo posteriormente, venha completar-lhe a forma; e o prazertambémpareceserdessanatureza.Porqueeleéumtodo,e jamaisseencontraum prazer cuja forma seja completada pelo seu prolongamento. Pela mesmarazão, não é ele um movimento, pois todo movimento (o de construir, porexemplo) requer tempo, faz-se com vistas num fim, e fica completo quandorealizouacoisavisada.Sóficacompleto,porconseguinte,quandoseencaraotemponasuatotalidadeounomomentofinal.Emsuasparteseduranteotempoqueestasocupam,todososmovimentossãoincompletosediferememespéciedomovimento inteiro e uns dos outros.Com efeito, o ajustamento das pedrasumas às outras difere das estrias da coluna, e ambas as coisas diferem daconstrução do templo. E a construção é completa (pois nada lhe falta comrelação ao fim que se tinha em vista), mas o preparo da base e do tríglifo éincompleto,porseraproduçãodeumaparteapenas.Diferemeles,portanto,emespécie, e em nenhum momento dado é possível encontrar um movimentocompletoquantoàforma,massónotempoencaradoemsuatotalidade.

Omesmo se pode dizer no tocante ao andar e a todos os outrosmovimentos.Porque,sealocomoçãoéummovimentodeumlugarparaoutro,tambémnelaexistem diferenças de espécie— voar, caminhar, saltar, etc. E não é só isso,senãoquenoprópriocaminharexistemdiferençasdeespécie;porqueo"donde"eo"paraonde"nãosãoosmesmosnapistadecorridasconsideradacomoumtodo e em cada uma de suas partes, nem nas diversas partes; e tampouco é amesmacoisapercorrerestalinhaeaquela,poisoquesepercorrenãoéapenasumalinha,masumalinhaqueseencontraemdeterminadolugar,eolugardestaédiferentedolugardaquela.

Emoutraobradiscutimosomovimentocomprecisão,masparecequeelenãoécompleto em todo e qualquer momento, e os numerosos movimentos sãoincompletosediferentesemespécie,jáqueo"donde"eo"paraonde"dãoacadaumasuaformaprópria.Masquantoaoprazer,suaformaécompletaemtodoequalquermomento.Éevidente,pois,queoprazereomovimentodiferemumdooutro, e o prazer deve ser uma das coisas que são inteiras e completas. Issotambém é indicado pelo fato de não ser possível mover-se senão dentro dotempo,massentirprazer,sim;porquantoaquiloqueocorrenummomentoéumtodo.

Estas consideraçõesdeixambemclaro,pois, quenão têm razãoospensadoressegundo os quais há um movimento ou uma geração de prazer, pois quemovimentoegeraçãonãopodemseratribuídosatodasascoisas,masapenasàsquesãodivisíveisenãoconstituem"todos".Nãohágeraçãodasensaçãovisual,nem de um ponto, nem de uma unidade, nem qualquer destas coisas é ummovimento ou uma geração. Logo, tampouco há movimento ou geração noprazer,vistoqueeleéumtodo.

Jáquecadasentidoéativoemrelaçãoaoseuobjeto,eumsentidoemcondiçõesde higidez age de maneira perfeita em relação aos mais belos dentre os seusobjetos(poisoidealdaatividadeperfeitapareceserdestanatureza,etantofazdizer que ela própria é ativa como o órgão em que reside), segue-se que, notocanteacadasentido,amelhoratividadeéadoórgãoemmelhorescondiçõescomrelaçãoaosmaisbelosdeseusobjetos.

E essa atividade será a mais completa e a mais aprazível, porque, existindoembora prazer para cada sentido, e não menos para o pensamento e acontemplação, omais completo é omais aprazível, e o de umórgão emboascondiçõescomrelaçãoaosmaisnobresdeseusobjetoséomaiscompleto;eoprazercompletaaatividade.

Entretanto,elenãoacompletadamesmamaneiraqueacombinaçãodeobjetoesentido,ambosbons,assimcomoasaúdeeomédiconãosãonamesmaacepçãoascausasdeumhomemser sadio. (Éevidentequeoprazerpodeacompanharqualquersentido,poisfalamosdeespetáculosedesonscomosendoagradáveis.Nãomenosevidenteéqueeleéexperimentadoacimadetudoquandoosentidoseencontranasmelhorescondiçõeseematividadecomreferênciaaumobjetoapropriado;quandotantoopercipientecomooobjetosãoosmelhorespossíveis,haverásempreprazer,porestarempresentesoagenteeopacienterequeridos.)Oprazer completa a atividade, não como o faz o estado permanente que lhecorresponde,pela imanência,mascomoumfimquesobrevémcomooviçodajuventudeparaosqueseencontramnaflordaidade.Namedida,pois,emquetanto o objeto inteligível ou sensível como a faculdade discriminadora oucontemplativa forem tais como convém, a atividade será acompanhada deprazer;poisquandoofatorativoeopassivosemantêminalteradoseguardamamesmarelaçãoumparacomooutro,omesmoresultadosegue-senaturalmente.

Comoexplicar,então,queninguémestejasemprecontente?Dar-se-áocasodequenosenfastiemos?Averdadeéquetodosossereshumanossãoincapazesde

umaatividadecontínua,eessaéarazãodenãosercontínuotambémoprazer,pois ele acompanhaa atividade.Certas coisasnosdeleitamquando sãonovas,porémmenosquandodeixamdesê-lo,eporessemesmomotivo:aprincípioamente é estimulada e desenvolve intensa atividade em relação a elas, comofazemoscomosentidodavistaquandoolhamosalgumacoisacomatenção.Masdepoisanossaatividadeserelaxa,eporissotambémoprazeréembotado.

Dir-se-iaquetodososhomensdesejamoprazerporquetodosaspiramàvida.Avidaéumaatividade,ecadauméativoemrelaçãoàscoisasecomasfaculdadesquemais ama: por exemplo, omúsico é ativo como ouvido em referência àsmelodias, o estudioso com o intelecto em referência a questões teóricas, e damesmaformanosoutroscasos.Ora,oprazercompletaasatividades,eportantoa vida que eles desejam. Émuito justo, pois, que aspirem também ao prazer,vistoqueparacadaumestecompletaavidaquelheédesejável.Masquantoasaberseescolhemosavidacomvistasnoprazerouoprazercomvistasnavida,éumaquestãoquepodemosdeixardeparteporora.Comefeito,osdoisparecemestarintimamenteligadosentresienãoadmitirseparação,jáquesematividadenãosurgeoprazer,ecadaatividadeécompletadapeloprazerqueaacompanha.

5

Por esta razão, também os prazeres parecem diferir em espécie. Porquanto ascoisas que diferem em espécie são, pensamos nós, completadas por coisasdiferentes (vemos que isto é verdadeiro tanto dos objetos naturais como dascoisascriadaspelaarte:animais, árvores,umapintura,umaestátua,umacasa,um utensílio); e pensamos, da mesma forma, que atividades diferentes emespéciesãocompletadasporcoisasdiferentesemespécie.Ora,asatividadesdopensamentodiferememespéciedasdossentidos,edentrodecadaumadessasclasses existem, por sua vez, diferenças específicas; logo, os prazeres que ascompletamtambémdiferemdomesmomodoentresi.

Istoéconfirmadopelofatodeestarcadaprazerestreitamenteligadoàatividadequeelecompleta.Comefeito,cadaatividadeéintensificadapeloprazerquelheépróprio,vistoquecadaclassedecoisasémaisbemjulgadaelevadaàprecisãopor aqueles que se entregam com prazer à correspondente atividade: porexemplo, são os que se comprazem no raciocínio geométrico que se tornamgeômetrasecompreendemmelhorosdiversosteoremas,eanalogamenteosque

gostamdemúsica,dearquitetura,etc.,fazemprogressosnosrespectivoscamposporquesecomprazemneles.Eassimosprazeresintensificamasatividades,eoqueintensificaumacoisalheécongênere,mascoisasdiferentesemespécietêmpropriedadesdiferentesemespécie.

Mais evidente se torna isto quando consideramos que as atividades sãoimpedidaspelosprazeresprovenientesdeoutrasfontes.Comefeito,aspessoasquegostamdetocarflautasãoincapazesdeacompanharumargumentoquandoouvemumflautista,porquantoosomdesseinstrumentolhesdámaisprazerdoque a outra atividade; e assim, o prazer que acompanha a música anula aatividaderaciocinativa.Issoacontecedamesmaformaemtodososoutroscasos,quando estamos ativos em relação a duas coisas simultaneamente; a atividademaisaprazíveldesalojaaoutra,e isso tantomaisquantomaisaprazívelfor,detal modo que chegamos a abandonar a outra. É por isso que quando nosdeleitamos extraordinariamente com alguma coisa não nos dedicamos a nadamais,efazemosumacoisasóquandoaoutranãonoscausagrandeprazer:porexemplo, no teatro as pessoas que gostam de doces os comem em maiorquantidadequandoosatoressãomedíocres.Ora,comoasatividadessetornammais precisas, mais duradouras e melhores por efeito do prazer que lhes épróprio e sãoprejudicadaspelosprazeres estranhos, é evidenteque essasduasespécies de prazer são bem distintas uma da outra. Porquanto os prazeresestranhos têmmaisoumenosomesmoefeitoqueasdorespróprias,vistoqueestas também destroem as atividades correspondentes: por exemplo, se umhomemachadesagradáveloupenosoescreveroufazercontas,elenãoescrevenemfazcontas,porqueaatividadelheépenosa.

Destarte, uma atividade sofre efeitos contrários por parte de seus prazeres edores próprios, isto é, daqueles que sobrevêm em virtude de sua próprianatureza. E dissemos que os prazeres estranhos têmmais oumenos omesmoefeitoqueador:elestambémdestroemaatividade,sóquenãonomesmograu.

Ora, assimcomoas atividadesdiferemcom respeito àbondadeoumaldade, eumas são dignas de escolha, outras devem ser evitadas e outras ainda sãoneutras,omesmosucedecomosprazeres,poiscadaatividadetemoseuprazerpróprio. O prazer próprio a uma atividade digna é bom, e o próprio a umaatividade indigna é mau, assim como os apetites que têm objetos nobres sãolouváveis e os que têm objetos vis são culpáveis. Mas os prazeres queacompanhamasatividadessãomaisprópriosdestasdoqueosdesejos,poisossegundosestãoseparadosdelastantopelotempocomopelanatureza,enquanto

osprimeirosestãointimamenteunidosàsatividadeseétãodifícildistinguirosprimeirosdassegundasquesepoderiaatédiscutirahipótesedeseraatividadeamesmacoisaqueoprazer.(Noentanto,oprazernãopareceseropensamentooua percepção. Isso seria estranho; mas, como nunca andam um sem o outro,algunsjulgamquesejamamesmacoisa).

Assim,pois, comodiferementre si as atividades, tambémdiferemosprazerescorrespondentes.Ora,avistaésuperioraotatoempureza,eoouvidoeoolfatoaogosto;portanto,osprazerescorrespondentestambémsãosuperiores,eosdopensamentoestãoacimadetodosestes.Edentrodecadaumadasduasespéciesalgunssãosuperioresaoutros.

Pensa-sequecadaanimal temumprazerpróprio,assimcomotemumafunçãoprópria,asaber,oquecorrespondeàsuaatividade.Istosetornaevidentequandoobservamos as espécies uma por uma. Cão, cavalo e homem têm prazeresdiferentese,comodizHeráclito, "osasnosprefeririamasvarredurasaoouro";porqueoalimentoémaisagradáveldoqueoouroparaeles.

Destarte, os prazeres dos animais diferentes em espécie também diferemespecificamente, e éde suporqueosdeumadeterminada espécienãodifiramentresi.Masvariamemnãopequenograu,pelomenosnocasodoshomens;asmesmascoisasdeleitamalgumaspessoasecausamdoraoutras,esãopenosaseodiosasaestes,masagradáveiseestimáveisàqueles.Issotambémsucedecomascoisasdoces:asmesmascoisasnãoparecemdocesaumfebricitanteeaumhomemcomsaúde—nemquentesaumhomemfracoeaumhomemrobusto.Omesmo se dá em outros casos. Mas em todas as coisas, o que parece a umhomemboméconsideradocomosendorealmentetal.Seistoécorretocomoseafigura ser, e a virtude e o homem bom como tais são amedida de todas ascoisas,serãoverdadeirosprazeresosquelhepareceremtais,everdadeiramenteagradáveisascoisasemqueelesedeleitar.Seascoisasqueeleachaenfadonhasparecem agradáveis a outros, não há nada de surpreendente nisso, pois oshomenspodemserpervertidoseestragadosdemuitosmodos;etaiscoisasnãosãorealmenteagradáveis,massóosãoparaessaspessoaseoutrasnasmesmascondições. Das que reconhecidamente são vergonhosas, evidentemente não sedeveriadizerquesãoprazeres,salvoparaumgostopervertido;masdasquesãoconsideradas boas, que espécie de prazer ou que prazer particular deveríamosdizerquesãoprópriosdohomem?Arespostanãoéclarapelaconsideraçãodascorrespondentes atividades? O prazeres seguem a estas. Quer, pois, o homemperfeito e supramente feliz tenha uma, quer mais atividades, diremos que os

prazeresquecompletamessasatividadessão,strictosensu,osprazeresprópriosdohomem;eo restosóoserádemaneirasecundáriaeparcial,comoosãoasatividades.

6

Agora que terminamos de falar das virtudes, das formas de amizade e dasvariedades de prazer, resta discutir em linhas gerais a natureza da felicidade,vistoafirmarmosqueelaéofimdanaturezahumana.Nossadiscussãoserámaisconcisasecomeçarmosporsumariaroquedissemosanteriormente.

Dissemos, pois, que ela não é uma disposição; porque, se o fosse, poderiapertenceraquempassasseavidainteiradormindoevivessecomoumvegetal,ou,também,aquemsofresseosmaioresinfortúnios.Seestasconsequênciassãoinaceitáveisedevemosantesclassificarafelicidadecomoumaatividade,comodissemosatrás,esealgumasatividadessãonecessáriasedesejáveiscomvistasemoutracoisa,enquantooutrasosãoemsimesmas,éevidentequeafelicidadedeveserincluídaentreasdesejáveisemsimesmas,enãoentreasqueosãocomvistasemalgomais.Porqueà felicidadenada falta: elaéautossuficiente.Ora,são desejáveis em simesmas aquelas atividades emque nadamais se procuraalémdaprópriaatividade.Epensa-sequeasaçõesvirtuosassãodestanatureza,porquantopraticaratosnobresebonséalgodesejávelemsimesmo.

Tambémseacreditaqueasrecreaçõesagradáveissejamdessanatureza.Nãoasescolhemos tendoemvistaoutracoisa,umavezqueantessomosprejudicadosdo que beneficiados por elas: tais atividades nos levam a negligenciar nossoscorpos e nossos bensmateriais.Mas amaioria das pessoas que consideramosfelizes buscam refúgio nesses passatempos, e por isso as pessoas hábeis emproporcioná-los são altamente estimadas nas cortes dos tiranos. Tornam-seagradáveiscompanheirosnasocupaçõesfavoritasdotirano,eessaéaespéciedehomemqueeleprecisateraoseulado.

Ora,acredita-sequeessascoisasparticipemdanaturezadafelicidadeporqueosdéspotas entretêm com elas os seus lazeres,mas talvez essa espécie, de gentenão prove nada; porque a virtude e a razão, das quais decorrem as boasatividades, não dependem da posição despótica; nem os prazeres do corpodeveriam ser considerados mais desejáveis porque neles se refugiam tais

pessoas, que nunca experimentaramumprazer puro e generoso; e osmeninostambém julgamque as coisasque elesprópriosprezam são asmelhores.Édecrer,pois,queassimcomodiferentescoisasparecemvaliosasaosmeninoseaoshomens feitos, também se dê omesmo comos homensmaus e os bons.Ora,como muitas vezes sustentamos, realmente valiosas e aprazíveis são aquelascoisas que são tais para o homem bom; e para cada homem a atividade queconcordacomasuadisposiçãodecaráteréamaisdesejável,demodoqueparaohomembomsãoessasasqueconcordamcomavirtude.

Afelicidadenãoreside,porconseguinte,narecreação;eseriamesmoestranhoque a recreação fosseo fim, e umhomemdevessepassar trabalhos e suportaragruras durante a vida inteira simplesmente para divertir-se. Porque, numapalavra,tudoqueescolhemos,escolhemo-locomamiraemoutracoisa—salvoa felicidade, que é um fim em si. Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas narecreaçãoparececoisa tolae absolutamente infantil.Masdivertir-nosa fimdepoder esforçar-nos, como se expressa Anacársis, parece certo; porque odivertimento é uma espécie de relaxação, e necessitamos de relaxação porquenãopodemostrabalharconstantemente.Arelaxação,porconseguinte,nãoéumfim,poisnósacultivamoscomvistasnaatividade.

Pensa-sequeavidafelizévirtuosa.Ora,umavidavirtuosaexigeesforçoenãoconsisteemdivertimento.Edizemosqueascoisassériassãomelhoresdoqueasrisíveiseasrelacionadascomodivertimento,equeaatividadedamelhorentreduascoisas—quersetratededoiselementosdonossoser,querdeduaspessoas—é amais séria.Mas a atividadenamelhor é ipso facto superior e participamais da natureza da felicidade.Alémdoque, umapessoaqualquer—até umescravo—podefruirosprazeresdocorponãomenosqueomelhordoshomens,mas ninguém considera o escravo partícipe da felicidade — a não ser quetambém o considere partícipe da vida humana. Com efeito, a felicidade nãoresideemtaisocupações,mas,comojádissemos,nasatividadesvirtuosas.

7

Se a felicidade é atividade conforme à virtude, será razoável que ela estejatambémemconcordânciacomamaisaltavirtude;eessaseráadoqueexistedemelhoremnós.Quer seja a razão,quer algumaoutracoisaesseelementoquejulgamos ser o nosso dirigente e guia natural, tornando a seu cargo as coisas

nobres e divinas, e quer seja elemesmo divino, quer apenas o elementomaisdivinoqueexisteemnós,suaatividadeconformeàvirtudequelheéprópriaseráa perfeita felicidade. Que essa atividade é contemplativa, já o dissemosanteriormente.

Ora, isto parece estar de acordo não só como quemuitas vezes asseveramos,mastambémcomaprópriaverdade.Porque,emprimeirolugar,essaatividadeéa melhor (pois não só é a razão a melhor coisa que existe em nós, como osobjetosdarazãosãoosmelhoresdentreosobjetoscognoscíveis);e,emsegundolugar, é a mais contínua, já que a contemplação da verdade pode ser maiscontínuadoquequalqueroutraatividade.Epensamosqueafelicidadetemumamisturadeprazer,masaatividadedasabedoriafilosóficaéreconhecidamenteamaisaprazíveldasatividadesvirtuosas;pelomenos, julga-sequeoseucultivoofereceprazeresmaravilhosospelapurezaepeladurabilidade,eédesuporqueos que sabem passem o seu tempo demaneira mais aprazível do que os queindagam.

Alémdisso,aautossuficiênciadequefalamosdevepertencerprincipalmenteàatividade contemplativa. Porque, embora um filósofo, assim comoumhomemjustoouoquepossuiqualqueroutravirtude,necessitedascoisasindispensáveisà vida, quando está suficientemente providode coisas dessa espécie o homemjustoprecisatercomquemeparacomquemagirjustamente,eotemperante,ocorajoso e cada um dos outros se encontram nomesmo caso;mas o filósofo,mesmo quando sozinho, pode contemplar a verdade, e tanto melhor o faráquantomaissábiofor.Talvezpossafazê-lomelhorse tivercolaboradores,masaindaassiméeleomaisautossuficientedetodos.

Eessaatividadepareceseraúnicaqueéamadaporsimesma,poisdelanadadecorre além da própria contemplação, ao passo que das atividades práticassempretiramosmaioroumenorproveito,àpartedaação.

Além disso, pensa-se que a felicidade depende dos lazeres; porquantotrabalhamosparapodertermomentosdeócio,efazemosguerraparapoderviverempaz.Ora,aatividadedasvirtudespráticasexerce-senosassuntospolíticosoumilitares,masasaçõesrelativasaessesassuntosnãoparecemencerrarlazeres.Principalmente as ações guerreiras, pois ninguém escolhe fazer guerra, nemtampoucoaprovoca,pelogostodeestaremguerra;eumhomemteriaatemperadomaior dos assassinos se convertesse os seus amigos em inimigos a fim deprovocar batalhas e matanças. Mas a ação do estadista também não encerra

lazeres, e—alémdaaçãopolíticaemsimesma—visaaopodereàshonrasdespóticas, ou pelo menos à felicidade para ele próprio e para os seusconcidadãos — uma felicidade diferente da ação política, e evidentementebuscadacomosendodiferente.

Portanto, se entre as ações virtuosas as de índole militar ou política sedistinguempelanobrezaepelagrandeza,eestasnãoencerramlazeres,visamaumfimdiferenteenão sãodesejáveispor simesmas, enquantoa atividadedarazão, que é contemplativa, tanto parece ser superior e mais valiosa pela suaseriedadecomonãovisaranenhumfimalémdesimesmaepossuiroseuprazerpróprio (o qual, por sua vez, intensifica a atividade), e a autossuficiência, oslazeres, a isenção de fadiga (namedida em que isso é possível ao homem), etodasasdemaisqualidadesquesãoatribuídasaohomemsumamentefelizsão,evidentemente,asqueserelacionamcomessaatividade,segue-sequeessaseráafelicidadecompletadohomem,seeletiverumaexistênciacompletaquantoàduração(poisnenhumdosatributosdafelicidadeéincompleto).

Mastalvidaéinacessívelaohomem,poisnãoseránamedidaemqueéhomemqueeleviveráassim,masnamedidaemquepossuiemsialgodedivino;etantoquantoesseelementoé superiorànossanaturezacomposta,oé tambémasuaatividadeaoexercíciodaoutraespéciedevirtude.

Se,portanto,arazãoédivinaemcomparaçãocomohomem,avidaconformeàrazãoédivinaemcomparaçãocomavidahumana.Masnãodevemosseguirosquenosaconselhamaocupar-noscomcoisashumanas,vistoquesomoshomens,ecomcoisasmortais,vistoquesomosmortais;mas,namedidaemqueissoforpossível,procuremostornar-nosimortaiseenvidartodososesforçosparaviverde acordo com o que há de melhor em nós; porque, ainda que seja pequenoquantoaolugarqueocupa,superaatudoomaispelopoderepelovalor.

Edir-se-ia,também,queesseelementoéoprópriohomem,jáqueéasuapartedominanteeamelhordentreasqueocompõem.Seriaestranho,pois,quenãoescolhesseavidadoseupróprioser,masadeoutracoisa.Eoquedissemosatrástemaplicaçãoaqui:oqueéprópriodecadacoisaé,pornatureza,oquehádemelhoredeaprazívelparaela;eassim,paraohomemavidaconformeàrazãoéamelhoreamaisaprazível, jáquearazão,maisquequalqueroutracoisa,êohomem.Dondeseconcluiqueessavidaétambémamaisfeliz.

8

Mas, em grau secundário, a vida de acordo com a outra espécie de virtude éfeliz, porque as atividades que concordam com esta condizem com a nossacondiçãohumana.Osatoscorajosose justos,bemcomooutrosatosvirtuosos,nós os praticamos em relação uns aos outros, observando nossos respectivosdeveresnotocanteacontratos,serviçosetodasortedeações,bemassimcomoàspaixões;etodasessascoisasparecemsertipicamentehumanas.Dir-se-iaatéquealgumasdelasprovêmdoprópriocorpoequeocarátervirtuososeprendepormuitoslaçosàspaixões.

A sabedoria prática também está ligada ao caráter virtuoso e este à sabedoriaprática,jáqueosprincípiosdetalsabedoriaconcordamcomasvirtudesmoraisearetidãomoralconcordacomela.

Ligadasquesãotambémàspaixões,asvirtudesmoraisdevempertencerànossanatureza composta.Ora, tais virtudes são humanas; por conseguinte, humanassãotambémavidaeafelicidadequelhescorrespondem.Aexcelênciadarazãoéuma coisa à parte. Dela devemos contentar-nos em dizer isto, porquantodescrevê-la comprecisão é tarefamaior do que exige o nosso propósito. Semembargo,elatambémparecenecessitardebensexteriores,porémpouco,ou,emtodocaso,menosdoquenecessitamasvirtudesmorais.

Admitamos que ambas necessitem de tais coisas em grau igual, embora otrabalho do estadista se ocupe mais com o corpo e coisas que tais, porque adiferença quanto a isso será pequena; mas naquilo de que precisam para oexercíciodesuasatividadeshaverágrandediferença.Ohomemliberalnecessitadedinheiroparaapráticadeseusatosde liberalidadeeohomemjustoparaaretribuiçãodeserviços(poisédifícilenxergarclaronosdesejos,emesmoosquenão são justos aparentam o desejo de agir com justiça); e o homem corajosonecessita de poder para realizar qualquer dos atos que correspondem à suavirtude, e o temperante necessita de oportunidade: pois de que outro modopoderíamosreconhecertantoaelecomoaqualquerdosoutros?

Tambémsediscutesobreseéavontadeouoatoqueémaisessencialàvirtude,pois supõe-se que esta envolve tanto uma como outro. E é evidente que suaperfeição envolve a ambos, mas os atos exigem muitas coisas, e tanto maisquanto maiores e mais nobres forem. O homem que contempla a verdade,porém,nãonecessitadetaiscoisas,aomenosparaoexercíciodesuaatividade;e

pode-sedizeratéqueelaslheservemdeobstáculo,quandomaisnãosejaparaaprópria contemplação. Mas, enquanto homem que vive no meio de outroshomens, ele escolhe a prática de atos virtuosos: por conseguinte, necessitatambémdascoisasquefacilitamavidahumana.

Mas que a felicidade perfeita é uma atividade contemplativa, confirma-otambém a seguinte consideração. Admitimos que os deuses sejam, acima detodososoutrosseres,bem-aventuradosefelizes:masqueespéciedeaçõeslhesatribuiremos?Atosde justiça?Nãopareceriaabsurdoqueosdeusesfirmassemcontratos, restituíssem depósitos e outras coisas do mesmo jaez? Atos decoragem, então, arrostando perigos e expondo-se a riscos, porque é nobreproceder assim?Ou atos de liberalidade?A quem fariam eles dádivas?Muitoestranhoseriaseosdeusesrealmentetivessemdinheirooualgodessaespécie.Eemqueconsistiriamosseusatosdetemperança?Nãoseráridículolouvá-losporisso,umavezquenãotêmmausapetites?

Seasanalisássemosumaporuma,ascircunstânciasdaaçãosenosmostrariamtriviais e indignas dos deuses. Não obstante, todos supõem que eles vivem e,portanto,sãoativos;nãopodemosconcebê-losadormircomoEndimião.Ora,seaumserviventeretirarmosaação,eaindamaisaaçãoprodutiva,quelherestaráanãoseracontemplação?Porconseguinte,aatividadedeDeus,queultrapassatodasasoutraspelabem-aventurança,devesercontemplativa;edasatividadeshumanas, a quemais afinidade tem com esta é a quemais deve participar dafelicidade.

Mostra-o também o fato de não participarem os animais da felicidade,completamente privados que são de uma atividade dessa sorte. Com efeito,enquanto a vida inteira dos deuses é bem-aventurada e a dos homens o é namedidaemquepossuialgodessaatividade,nenhumdosoutrosanimaiséfeliz,uma vez que de nenhummodo participam eles da contemplação.A felicidadetem,porconseguinte,asmesmasfronteirasqueacontemplação,eosqueestãonamaisplenapossedestaúltima sãoosmaisgenuinamente felizes,nãocomosimplesconcomitantemasemvirtudedaprópriacontemplação,poisqueestaépreciosa em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma decontemplação.

Mas o homem feliz, como homem que é, também necessita de prosperidadeexterior, porquanto a nossa natureza não basta a si mesma para os fins dacontemplação:nossocorpotambémprecisadegozarsaúde,deseralimentadoe

cuidado.Nãosepense,todavia,queohomemparaserfeliznecessitedemuitasou de grandes coisas, só porque não pode ser supremamente feliz sem bensexteriores.Aautossuficiênciaeaaçãonãoimplicamexcesso,epodemospraticaratosnobressemsermosdonosdaterraedomar.Mesmodesfrutandovantagensbastante moderadas pode-se proceder virtuosamente (isso, aliás, é manifesto,porquanto sepensaqueumparticularpodepraticar atosdignosnãomenosdoque um déspota—mais, até). E é suficiente que tenhamos o necessário paraisso,poisavidadohomemqueagedeacordocomavirtudeseráfeliz.

Sólonnosdeu,talvez,umesboçofieldohomemfelizquandoodescreveucomomoderadamente provido de bens exteriores, mas como tendo praticado (naopinião de Sólon) as mais nobres ações, e vivido conforme os ditames datemperança.Anaxágorastambémparecesuporqueohomemfeliznãosejariconemumdéspotaquandodizquenãoseadmirariaseeleparecesseàmaioriaumapessoa estranha; pois a maioria julga pelas exterioridades, uma vez que nãopercebeoutracoisa.

E assim, as opiniões dos sábios parecem harmonizar-se com os nossosargumentos. Mas, embora essas coisas também tenham certo poder deconvencer, a verdade em assuntos práticos percebe-semelhor pela observaçãodosfatosdavida,poisestessãoofatordecisivo.Devemos,portanto,examinaroquejádissemosàluzdessesfatos,eseestiveremharmoniacomelesaceitá-lo-emos, mas se entrarem em conflito admitiremos que não passa de simplesteoria.

Ora, quem exerce e cultiva a sua razão parece desfrutar ao mesmo tempo amelhordisposiçãodeespíritoeserextremamentecaroaosdeuses.Porque,seosdeuses se interessam pelos assuntos humanos como nós pensamos, tanto serianaturalquesedeleitassemnaquiloqueémelhoremaisafinidadetemcomeles(istoé,arazão),comoquerecompensassemosqueaamamehonramacimadetodasascoisas,zelandoporaquiloquelhesécaroeconduzindo-secomjustiçaenobreza. Ora, é evidente que todos esses atributos pertencem mais que aninguémaofilósofo.Éele,porconseguinte,detodososhomensomaiscaroaosdeuses. E será, presumivelmente, também omais feliz. De sorte que tambémnestesentidoofilósofoseráomaisfelizdoshomens.

9

Seestesassuntos,assimcomoavirtudeetambémaamizadeeoprazer,foramsuficientementediscutidosemlinhasgerais,devemosdarporterminadoonossoprograma?Semdúvida,comosecostumadizer,ondehácoisasquerealizarnãoalcançamos o fim depois de examinar e reconhecer cada uma delas, mas épreciso fazê-las. No tocante à virtude, pois, não basta saber, devemos tentarpossuí-laeusá-laouexperimentarqualqueroutromeioquesenosanteparedenostornarmosbons.

Ora,seosargumentosbastassememsimesmosparatornaroshomensbons,elesteriamfeitojusagrandesrecompensas,comodizTeógnis,easrecompensasnãofaltariam. Mas a verdade é que, embora pareçam ter o poder de encorajar eestimular os jovens de espírito generoso, e preparar umcaráter bem-nascido egenuinamente amigo de tudo o que é nobre para receber a virtude, eles nãoconseguemincutirnobrezaebondadenamultidão.Porquantoohomemcomumnãoobedecepornaturezaaosentimentodepudor,masunicamenteaomedo,enão se abstém de praticar más ações porque elas são vis, mas pelo temor aocastigo.Vivendopelapaixão,andamnoencalçodeseusprazeresedosmeiosdealcançá-los,evitandoasdoresquelhessãocontrárias,enemsequerfazemideiado que é nobre e verdadeiramente agradável, visto que nunca lhe sentiram ogosto.Que argumento poderia remodelar essa sorte de gente? É difícil, senãoimpossível,erradicarpeloraciocínioostraçosdecaráterqueseinveteraramnasua natureza; e talvez nos devamos contentar se, estando presentes todas asinfluênciascapazesdenosmelhorar,adquirimosalgunslaivosdevirtude.

Ora, algunspensamquenos tornamosbonspor natureza, outros pelohábito eoutrosaindapeloensino.Acontribuiçãodanaturezaevidentementenãodependedenós,mas,emresultadodecertascausasdivinas,estápresentenaquelesquesão verdadeiramente afortunados. Quanto à argumentação e ao ensino,suspeitamosdequenão tenhamumainfluênciapoderosaemtodososhomens,mas é preciso cultivar primeiro a alma do estudioso por meio de hábitos,tornando-acapazdenobresalegriasenobresaversões,comosepreparaaterraquedevenutrir a semente.Comefeito, o que se deixadirigir pela paixãonãoouviráoargumentoqueodissuade;e,seoouvir,nãoocompreenderá.Ecomopersuadiramudardevidaumapessoacomtaldisposição?Emgeral,apaixãonãoparececederaoargumento,masà força.É,portanto,umacondiçãopréviaindispensávelaexistênciadeumcaráterquetenhacertaafinidadecomavirtude,amandooqueénobreedetestandooqueévil.

Masédifícilreceberdesdeajuventudeumadestramentocorretoparaavirtude

quando não nos criamos debaixo das leis apropriadas; pois levar uma vidatemperanteeesforçadanãoseduzamaioriadaspessoas,especialmentequandosãojovens.Poressarazão,tantoamaneiradecriá-loscomoassuasocupaçõesdeveriamserfixadaspelalei;poisessascoisasdeixamdeserpenosasquandosetornaram habituais. Mas não basta, certamente, que recebam a criação e oscuidados adequados quando são jovens; já que mesmo em adultos devempraticá-laseestarhabituadosaelas,precisamosdeleisquecubramtambémessaidade e, demodo geral, a vida inteira; porque amaioria das pessoas obedecemais à necessidade do que aos argumentos, e aos castigos mais do que aosentimentonobre.

Por isso pensam alguns que os legisladores deveriam estimular os homens àvirtude e instigá-los com o motivo do nobre, partindo do princípio de queaquelesquejáfizeramconsideráveisprogressos,mercêdaformaçãodehábitos,serãosensíveisataisinfluências;equeconviriaimporcastigosepenasaosquefossemdenaturezainferior,enquantoosincuravelmentemausseriambanidosdetodo.Ohomembom(pensameles),vivendocomovivecomopensamentofixonoqueénobre,submeter-se-áàargumentação,aopassoqueohomemmau,quesódesejaoprazer,serácorrigidopelador,comoumabestadecarga.Eporissodizemtambémqueasdores infligidasdevemserasque foremmaiscontráriasaosprazeresqueesseshomensamam.

Dequalquer forma (comodissemos)ohomemquequeremos tornarbomdeveser bem adestrado e acostumado, passando depois o seu tempo em ocupaçõesdignasenãopraticandoaçõesmásnemvoluntária,neminvoluntariamente,eseissosepodeconseguirquandooshomensvivemdeacordocomumaespéciedereta razão e ordem, contanto que esta tenha força — se assim é, o governopaternoemverdadenãotemaforçaouopodercoercitivonecessários(nem,emgeral,ostemogovernodeumhomemsó,amenosquesetratedeumreioualgosemelhante);masa lei temessepodercoercitivo, aomesmo tempoqueéumaregrabaseadanumaespéciede sabedoria e razãoprática.E, emborao comumdas pessoas detestem os homens que contrariam os seus impulsos, ainda quecomrazão,aleinãolhesépesadaaoordenaroqueébom.

UnicamenteouquaseunicamentenoEstadoespartanoolegisladorpareceter-seocupadocomquestõesdeeducaçãoedetrabalho.NamaioriadosEstadosessesassuntosforamomitidosecadaqualvivecomolheapraz,àmodadosciclopes,"ditandoa leiàesposaeaos filhos".Ora,omaiscertoseriaque taiscoisassetornassemencargopúblicoequeacomunidadeprovesseadequadamenteaelas;

mas,umavezqueasnegligencia,convémquecadahomemauxilieseusfilhoseamigosaseguiremoscaminhosdavirtude,equetenhamopoderoupelomenosavontadedefazê-lo.

Do que ficou dito parece concluir-se que ele poderia fazê-lo melhor se setornasse capaz de legislar. Porquanto o controle público é evidentementeexercidopelas leis,eobomcontroleporboas leis.Quesejamescritasounão,parecenãoviraocaso,nem tampoucoquesejam leisprovendoàeducaçãodeindivíduos ou de grupos— assim como isso tambémnão importa no caso damúsica,daginásticaeoutrasocupaçõessemelhantes.Poisque,assimcomonascidadestêmforçaasleiseostipospredominantesdecaráter,nasfamíliasatêmaindamais os preceitos e os hábitos dopai, devido aos laços de sangue e aosbenefícios que ele confere; porquanto os filhos têm desde o princípio umaafeiçãonaturaleumadisposiçãoparaobedecer.Alémdisso,aeducaçãoprivadalevavantagemàpública,comoétambémocasodotratamentomédicoprivado;pois,emboradeummodogeralorepousoeaabstençãodealimentofaçambemàspessoas febris, podenão ser assimno casode umdoente particular; e é desupor que um pugilista não prescreva omesmo estilo de luta a todos os seusalunos.Parece,pois,queosdetalhessãoobservadoscommaisprecisãoquandoocontroleéprivado,poiscadapessoatemmaisprobabilidadesdereceberoqueconvémaoseucaso.

Mas quem melhor pode atender aos detalhes é um médico, um instrutor deginásticaouqualqueroutroquetenhaoconhecimentogeraldoqueéapropriadoacadaumouadeterminadaespéciedepessoas (poiscomrazãosedizqueasciênciasversamsobreouniversal).Issonãoimpedequealgumdetalheparticularpossa ser bem atendido por uma pessoa sem ciência que haja estudadocuidadosamente,à luzdaexperiência,oquesucedeemcadacaso,assimcomocertas pessoas parecem ser os melhores médicos de si mesmas, embora nãosaibamtratarasoutras.Nãoobstante,hãodeconcordarqueohomemquedesejatornar-se mestre numa arte ou ciência deve buscar o universal e procurarconhecê-lotãobemquantopossível;poisque,comodissemos,écomelequeseocupamasciências.

E,seépelasleisquenospodemostornarbons,seguramenteoqueseempenhaemmelhorarhomens,sejamestesmuitosoupoucos,devesercapazdelegislar.Porquantoreformarocaráterdequalquerum—doprimeiroquelhecolocamnafrente—nãoétarefaparaqualquerum;sealguémpodefazerisso,éohomemque sabe, exatamente como na medicina e em todos os outros assuntos que

exigemcuidadoeprudência.

Nãoconvém,pois, indagaragoradequemecomosepodeaprenderalegislar?Porventuraserá,comoemtodososoutroscasos,dosestadistas?Averdadeéqueesseassuntofoiconsideradocomofazendopartedaestadística.Ouhaveráumadiferençamanifestaentreaestadísticaeasoutrasciênciaseartes?Nasoutras,vemosqueasmesmaspessoasaspraticameseoferecemparaensiná-las,como,por exemplo, os médicos e os pintores. Mas, enquanto os sofistas pretendemensinar política, não são eles que a praticam, e sim os políticos, que parecemfazê-lograçasaumaespéciedehabilidadeouexperiência,enãopeloraciocínio.Com efeito, ninguém os vê escrever ou falar sobre amatéria (conquanto essafosse, talvez, uma ocupação mais nobre do que preparar discursos para ostribunais e a Assembleia); e também não consta que eles costumem fazerestadistasdeseusfilhosoudeseusamigos.Masseriadeesperarqueofizessem,se isso lhes fosse possível, pois não poderiam legar às suas cidades nada demelhordoqueumahabilidadedessasorte,outransmiti-laaosquelhessãocarossepreferissemguardá-lanoseumeio.Noentanto,acontribuiçãodaexperiênciaparecenãoserpequena;deoutraformaelesnãopoderiamtornar-sepolíticosporparticiparemdavidapolítica.Dondeseconcluiqueosqueambicionamconheceraartedapolíticanecessitamtambémdaexperiência.

Masaquelessofistasqueprofessamaarteparecemestarmuitolongedeensiná-la.Comefeito, para exprimir-nos em termosgerais, esseshomensnem sequersabemqueespéciedecoisaelaé,nemsobreoqueversa.Deoutromodo,nãoateriam classificado como idêntica à retórica ou mesmo inferior a esta, nemjulgariamfácil legislarmedianteumacompilaçãodas leismais-bemreputadas.Dizemqueépossívelselecionarasmelhoresleis,comoseesseprópriotrabalhodeseleçãonãorequeresseinteligênciaecomoseobomdiscernimentonãofosseamaisimportantedetodasascoisas,talqualsucedenamúsica.

Com efeito, embora as pessoas experimentadas em qualquer campo julguemcomacertodasobrasqueseproduzemneleecompreendamporquemeiosedequemodo essas obras são realizadas, e que coisas se harmonizam comoutrascoisas,osinexperientesdevemdar-sepormuitofelizesquandopodemjulgarseaobrafoibemoumalfeita,comonocasodapintura.Ora,asleissão,porassimdizer,as"obras"daartepolítica:comoépossível,então,aprendercomelasaserlegisladoroujulgarquaissejamasmelhores?Osprópriosmédicosnãoparecemformar-sepeloestudodoslivros.Nãoobstante,aspessoasprocuramindicarnãoapenasostratamentos,mascomopodemsercuradosedevemsertratadoscertos

tiposdegente,distinguindoosvárioshábitosdocorpo;mas,emboraissopareçaserútilaosexperimentados,paraosinexperientesnãotemnenhumvalor.

Écerto,pois,queemboraascompilaçõesdeleiseconstituiçõespossamprestarserviços àspessoas capazesde estudá-las, dedistinguir oque ébomdoque émaue aque circunstânciasmelhor se adapta cada lei, osque examinamessascompilaçõessemosocorrodaexperiêncianãopossuirãooretodiscernimento(amenos que seja por um dom espontâneo da natureza), embora talvez possamtornar-semaisinteligentesemtaisassuntos.

Ora,osnossosantecessoresnoslegaramsemexameesteassuntodalegislação.Por isso, talvez convenha estudá-lo nós mesmos, assim como a questão daconstituição emgeral, a fimde completardamelhormaneirapossível anossafilosofiadanaturezahumana.Emprimeirolugar,pois,sealgumacoisafoibemexposta em detalhe pelos pensadores que nos antecederam, passemo-la emrevista; depois, à luz das constituições que nós mesmos coligimos,examinaremosqueespéciesdeinfluênciaspreservamedestroemosEstados,queoutrastêmosmesmosefeitossobreostiposparticularesdeconstituição,eaquecausassedeveofatodeseremumasbemeoutrasmalaplicadas.Apósestudaressas coisas teremos uma perspectiva mais ampla, dentro da qual talvezpossamosdistinguirqualéamelhorconstituição,comodeveserordenadacadaumaequeleisecostumeslheconvémutilizarafimdeseramelhorpossível.

top related