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Leandro Csar Bernardes Pereira
NARRATIVIDADE E TEOLOGIA O PERSONAGEM DEUS EM AT 1,1-2,41
Dissertao de Mestrado em Teologia
Orientador: Prof. Dr Jaldemir Vitrio
Apoio PAPG-FAPEMIG
FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia
BELO HORIZONTE
2013
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Leandro Csar Bernardes Pereira
NARRATIVIDADE E TEOLOGIA O PERSONAGEM DEUS EM AT 1,1-2,41
Dissertao apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, como requisio parcial obteno do ttulo de Mestre em Teologia.
rea de concentrao: Teologia Sistemtica
Orientador: Prof. Dr. Jaldemir Vitrio
Apoio PAPG-FAPEMIG
FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia
BELO HORIZONTE
2013
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Pereira, Leandro Csar Bernardes
P436n Narratividade e Teologia: O personagem Deus em At 1,1-2,41 /
Leandro Csar Bernardes Pereira. Belo Horizonte, 2013.
101p.
Orientador: Prof. Dr. Jaldemir Vitrio
Dissertao (mestrado) Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia.
Departamento de Teologia.
1. Narratividade 2. Personagem 3. Deus. 4. Atos 5. Narratologia
6. Anlise 7. Narrativa 8. Apstolos I. Vitrio, Jaldemir II. Faculdade
Jesuta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia. III. Ttulo
CDU 226.6
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L E A N D R O CSAR B E R N A R D E S P E R E I R A
" N A R R A T I V I D A D E E T E O L O G I A O P E R S O N A G E M D E U S E M A T 1 ,1 -2 ,41"
B e l o H o r i z o n t e , 1 2 d e a b r i l d e 2 0 1 3 .
C O M I S S O E X A M I N A D O R A :
E s t a Dissertao f o i j u l g a d a a d e q u a d a obteno d o ttulo d e M e s t r e e m T e o l o g i a e a p r o v a d a e m s u a f o r m a f i n a l p e l o C u r s o d e M e s t r a d o e m T e o l o g i a d a F a c u l d a d e Jesuta d e F i l o s o f i a e T e o l o g i a .
/ U / M A !
P r o f A D r . J a l d e m i r V i t o r i o / F A J E ( O r i e n t a d o r )
r o f . D r . G e r a l d o L u f e D e M o r i V F A J E
P r o f . D r . G e r a l d o Dndici V i e i r a / P U C - R J ( V i s i t a n t e )
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Agradecimento
Agradeo a Deus pela providncia deste mestrado em minha vida. Agradeo a todos os
que fazem parte da FAJE, em especial, ao orientador desta pesquisa, Jaldemir Vitrio, a
Comunidade Cano Nova, a FAPEMIG e a minha esposa Luana.
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RESUMO
Esta dissertao tem como objetivo fazer a anlise narrativa de At 1,1-2,41, centrando-
se no personagem Deus, servindo-se dos princpios da narratologia. A escolha do
mtodo reflete uma tendncia atual nos estudos bblicos que o tem empregado sempre
mais. Partindo da anlise do personagem Deus, o principal protagonista do episdio em
foco, mostrar-se- como a ao divina na histria deve-se ao desgnio de salvar todos os
seres humanos e reuni-los na comunho trinitria. Deus se revela de forma direta atravs
de teofanias e, indiretamente, atravs dos discpulos de Jesus. Seu plano salvfico
plenifica-se na morte e na ressurreio do Filho Jesus e na realizao da promessa do
batismo no Esprito Santo. Deus referido no texto como Salvador e Comunho. O
batismo une a ele todos os discpulos de Jesus. A realizao da promessa, em
Pentecostes, revela a centralidade do personagem Deus no mbito da misso crist.
Portanto, limitando-nos percope selecionada, ser explicitada a teologia subjacente
com o instrumental da anlise narrativa.
SUMMARY
The aim of the dissertation is the narrative analyze of Gods character in Acts 1,1-2,41,
in the perspective of the principles of narrative logic and narrative analysis. It is
intended to contribute to the improvement of the knowledge of this character, given
exclusively by the text of Acts. The choice of this method of narrative analysis comes
from the recent discovery of the use of narrative logic in biblical exegesis. The purpose
of this research is to reach the knowledge of the main axes present in the theological
narrative sequence. According to the narrator, Gods character is the main protagonist of
the story. God's action in history is due to His plan to save all people and unite them in
the Trinitarian communion. God reveals Himself directly through theophanies and,
indirectly, through the disciples of Jesus. The salvation plan of God finds its fulfillment
in the death and resurrection of Jesus and in the fulfillment of the promise of the
baptism in the Holy Spirit. God appears in the text as Savior and Communion. Through
baptism He unites to Himself all disciples of Jesus. The fulfillment of the promise at
Pentecost has as its center Gods character whom revels himself in a sensitive way.
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SUMRIO
INTRODUO, 1
CAPTULO 1: Narratividade e Teologia, 4
1. A noo de texto, 5
2. Narratividade, 8
3. Narrativa, 10
3.1 Ficcionalidade, 11
3.2 Entre a histria e o discurso, 12
4. As narrativas bblicas, 13
4.1 A prioridade da ao nas narrativas bblicas, 13
4.2 A nomeao de Deus no texto bblico de gnero narrativo, 14
5. Narratologia e exegese, 16
5.1 A narratologia, 16
5.2 A anlise narrativa, 17
5.3 Que perguntas a anlise narrativa faz a uma narrativa?, 18
6. Conceitos narratolgicos fundamentais para a interpretao de At 1,1-2,41, 18
6.1 Autor real, 19
6.2 Autor implcito, 19
6.3 Narrador, 20
-
6.4 A relao entre narrador e narratrio, 21
6.5 Leitor, 22
6.6 Leitor implcito, 23
6.7 Intriga, 23
6.8 Personagem, 25
6.9 Redundncia, 25
6.10 Perspectiva Narrativa, 25
7. Concluso, 26
CAPTULO 2: Anlise narrativa do personagem Deus em At 1,1-2,13, 29
1. A macroestrutura dos Atos dos Apstolos, 30
2. O texto e a delimitao da sequncia de At 1,1-2,41, 33.
2.1 O texto, 33
2.2 Os limites literrios da sequncia, 35
3. Anlise da intriga de At 1,1-2,13, 37
3.1 A promessa do Pai, At 1,1-11, 38
3.1.1 O prlogo: vv. 1-3, 38
3.1.2 A promessa do Pai: vv. 4-5, 41
3.1.3 O tempo do Pai: vv. 6-8, 41
3.1.4 A ascenso como obra simblica de Deus: v. 9, 43
3.1.5 A interveno de Deus por meio dos anjos: vv. 10-11, 43
3.2 Os discpulos esperam a promessa de Deus, At 1,12-26, 44
3.2.1 Preparao para a vinda do Esprito (1,12-14), 45
3.2.2 A eleio de Matias, At 1,15-26, 46
3.3 A realizao da promessa: At 2,1-13, 48
3.3.1 A interveno de Deus: At 2,1-2, 48
3.3.2 A manifestao do Esprito de Deus: At 2,3-4, 49
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3.3.3 As maravilhas de Deus, At 2,5-13, 51
4. Concluso, 52
CAPTULO 3: O personagem Deus no discurso petrino de At 2,14-41, 57
1. Contedo e estrutura de At 2,14-40, 58
1.1 Contedo e estrutura da primeira subunidade: At 2,14-36, 60
1.1.1 Primeira parte (vv. 14-21), 60
1.1.2 Segunda parte (vv. 22-28), 62
1.1.3 Terceira parte (vv. 29-36), 63
1.2 Contedo e estrutura da segunda subunidade: At 2,37-40, 65
2. Caractersticas da figura narrativa de Deus em At 2,14-40, 66
2.1 O termo "Deus" () nos Atos dos Apstolos, 66
2.2 Anlise do termo Deus no interior do discurso petrino, 68
2.3 O ttulo "Senhor" () nos Atos dos Apstolos, 69
2.4 O ttulo Senhor () no discurso petrino, 70
2.4.1 O ttulo Senhor na primeira subunidade do discurso, 70
2.4.2 O termo Senhor na segunda subunidade do discurso, 73
2.5 O ttulo "Pai" () no discurso petrino, 73
3. Concluso, 74
CAPTULO 4: Os principais eixos teolgicos na sequncia de At 1,1-2,41, 77
1. Duas linguagens para revelar o personagem Deus, 78
1.1 A revelao implcita de Deus, 78
1.2 A revelao explcita de Deus, 79
2 Como se articulam histria de Deus e histria da humanidade?, 80
2.1 Funo programtica: Deus precede a histria, 80
2.2 Funo performativa: Deus muda o rumo da histria, 81
2.3 Funo interpretativa: Deus revela o sentido da histria, 81
3. Os principais eixos teolgicos, 83
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3.1 A promessa do batismo no Esprito Santo: a revelao de Deus
Salvador, 83
3.2 O apelo ao testemunho, 84
3.3 Deus como sujeito, 86
3.4 Um Deus que se comunica, 86
3.5 Jesus destinatrio da ao divina, 87
3.6 A morte e a ressurreio de Jesus nos desgnios de Deus, 88
3.7 Os milagres como sinais do envolvimento de Deus na histria, 89
3.8 O apelo converso, 90
4 Concluso, 91
CONCLUSO, 93
BIBLIOGRAFIA, 102
-
1
INTRODUO
O objetivo deste estudo o de conhecer o modo como o narrador revela ao leitor
quem Deus na primeira sequncia dos Atos dos Apstolos (At 1,1-2,41). Deus, nas
narrativas bblicas, um personagem que se envolve com a histria dos seres humanos. A
atuao divina permite conhecer suas principais caractersticas como onipotncia,
onipresena, oniscincia, misericrdia etc. Jesus e o Esprito Santo esto em estreita relao
com Deus, possibilitando a compreenso da Trindade.
A dissertao limitar-se- ao emprego exclusivo dos princpios oferecidos pela
narratologia e pela anlise narrativa, frutos da semitica moderna.
O primeiro captulo aprofundar os fundamentos da narratologia e da anlise
narrativa em sua relao com as narrativas bblicas. As perguntas centrais deste primeiro
momento sero: O que um texto? Que se entende por narratividade? O que uma narrativa?
Qual a relao entre narratologia e teologia? Como se caracterizam as narrativas bblicas?
Como se apresenta o personagem Deus nas narrativas bblicas? Como a anlise narrativa
questiona e estuda as narrativas bblicas? Que conceitos fundamentais, oferecidos pela
narratologia, podem ser utilizados na anlise de At 1,1-2,41?
O ponto de partida ser a elucidao da noo de texto dada pela narratologia.
Aprofundar suas propriedades permitir maior clareza na compreenso das realidades
narradas. O segundo passo consistir na anlise das narrativas bblicas.
As narrativas bblicas, facilmente, revelam o agir divino por meio de suas aes.
A nomeao de Deus ocorre nas entrelinhas de suas aes. Estes pressupostos nortearo o
estudo da relao entre narratologia e exegese. O ltimo passo do primeiro captulo consistir
-
2
no aprofundamento da compreenso da anlise narrativa e dos conceitos narratolgicos
fundamentais para a compreenso de At 1,1-2,41.
Os captulos dois, trs e quatro sero compostos a partir da anlise do personagem
Deus. A primeira sequncia narrativa dos Atos dos Apstolos permite diversas abordagens
narratolgicas. Contudo, a dissertao se concentrar no personagem Deus.
A sequncia de At 1,1-2,41 mista por unir narrao (At 1,1-2,13) e discurso (At
2,14-41). Por isso, o segundo captulo dedicar-se- ao estudo da parte narrativa e o terceiro,
parte discursiva.
O segundo captulo ter presente a macroestrutura dos Atos dos Apstolos, ou
seja toda a intriga da obra. A compreenso da macroestrutura revelar a presena das diversas
sequncias que compem o livro.
A anlise narrativa fornece quatro critrios para a delimitao de uma intriga (os
critrios do tempo, espao, personagens e tema). Esses critrios sero utilizados para a
delimitao da sequncia a ser analisada.
O emprego dos quatro critrios fornece a percepo dos fios condutores
empregados pelo narrador para conduzir o leitor. O estudo dos fios condutores mostrar como
o narrador inseriu o personagem Deus na sequncia e como o caracterizou.
O captulo trs dedicar-se- ao estudo narrativo do discurso petrino. O discurso
composto de trs partes (At 2,14-21.22-28.29-36). Cada parte ser analisada somente em vista
da compreenso do personagem Deus, apresentado com trs ttulos: Deus, Senhor e Pai.
O quarto captulo basear-se- nos resultados obtidos nos captulos dois e trs. O
objetivo do ltimo captulo ser sistematizar os principais eixos teolgicos que esses captulos
fornecero.
A anlise da sequncia escolhida nesta dissertao servir-se- da traduo feita
pela Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)1 e do original grego apresentado por
Westcoot e Hort2.
A importncia desta dissertao consiste em verificar os fundamentos da f crist
no mbito da primeira comunidade crist. Deus o autor da promessa do recebimento do
1 CONFERNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Bblia Sagrada. Traduo da CNBB com introduo e notas. Braslia: CNBB, [s.d.]. 2 WESTCOOT, Brooke - HORT, Fenton. The New Testament in the original Greek, 1881. Url: http://www.qbible.com/greek-new-testament/. Consulta feita em: 01/10/2012.
-
3
Esprito Santo. A realizao desta promessa deu incio Igreja. A anlise narrativa do evento
Pentecostes, na primeira sequncia dos Atos dos Apstolos, fornece uma contribuio
singular para o aprofundamento da f na primeira pessoa da Santssima Trindade.
-
4
CAPTULO 1
Narratividade e Teologia
A relao entre narratividade e teologia nasce da noo de texto. Os avanos da
compreenso do texto, oriundos dos estudos literrios a partir da dcada de setenta,
permitiram uma nova abordagem do gnero literrio narrativo. A noo de narratividade
propiciou notrios avanos no campo do estudo das narrativas bblicas. Desta maneira surge a
anlise narrativa como mtodo de estudo para as narrativas tanto do Antigo Testamento,
quanto do Novo Testamento.
A compreenso da narratividade alicera-se na compreenso do texto. Por isso, a
primeira questo a ser abordada neste captulo : O que um texto? Como compreender sua
ontologia enquanto escrito? A resposta exige analisar o texto em sua dimenso estrutural,
transfrsica e simblica.
O prximo passo consiste em considerar o texto enquanto narratividade. A
narratividade um elemento estruturante, que confere ao texto caractersticas prprias. Para
compreender essas caractersticas preciso perguntar-se: O que narratividade?
A narratividade o elemento causante da narrativa. Compreender este conceito,
segundo a narratologia contempornea, fundamental para a compreenso das narrativas
bblicas. Por isso, aps a anlise da narratividade, ser necessrio estudar sua principal
consequncia, a narrativa. Existem diversos tipos de narrativas. No caso desta pesquisa,
exige-se compreender as caractersticas de uma narrativa histrica e as caractersticas de uma
narrativa ficcional. As narrativas bblicas se inserem no contexto de ambas.
As narrativas bblicas so uma forma particular de narrativa literria. O principal
elemento deste tipo de narrativa a presena do personagem Deus. Por isso, as perguntas
-
5
fundamentais para este prximo passo so: Como compreender as narrativas bblicas? Como
compreender o personagem Deus nas narrativas bblicas?
Aps compreender a noo do texto, a narratividade como elemento causante das
narrativas, as diferentes narrativas literrias (histricas e ficcionais) e as caractersticas
particulares das narrativas bblicas, o objetivo consistir em compreender como as narrativas
so atualmente estudadas.
A narrativa literria o objeto de estudo da narratologia que fornece os princpios
tericos necessrios para a compreenso das narrativas. No mbito da exegese, a aplicao
desses pressupostos tericos acontece na anlise narrativa. Para aprofundar o conhecimento
da narratologia e da anlise narrativa preciso ter presente as seguintes questes: Qual a
relao entre narratologia e teologia? Como a anlise narrativa questiona as narrativas
bblicas?
A relao entre narratividade e teologia faz emergir conceitos fundamentais da
narratologia, aplicveis a At 1,1-2,41. Entre eles, se podem elencar: autor real, autor implcito,
narrador, relao narrador-narratrio, leitor, leitor implcito, intriga, personagem, redundncia
e perspectiva narrativa.
Portanto, as questes propostas para este primeiro captulo so: O que um texto?
Que se entende por narratividade? O que uma narrativa? Qual a relao entre narratologia e
teologia? Como se caracterizam as narrativas bblicas? Como se apresenta o personagem
Deus nas narrativas bblicas? Como a anlise narrativa questiona e estuda as narrativas
bblicas? Que conceitos fundamentais, oferecidos pela narratologia, podem ser utilizados na
anlise de At 1,1-2,41?
1. A noo de texto
O primeiro passo, ao analisar um texto, segundo o mtodo da anlise narrativa,
consiste em aprofundar na noo de texto. Segundo Ricoeur, "o texto primeiramente um
anel em uma corrente comunicativa: em primeiro lugar, uma experincia de vida levada
linguagem, torna-se discurso; depois, o discurso se diferencia em fala e em escrita3. O texto
uma comunicao de um destinador para um destinatrio. Esta comunicao pode ser feita de
diversos modos por meio dos gneros literrios. Independentemente do gnero literrio em
3 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus (1977). In: Leituras 3: nas Fronteiras
da Filosofia. So Paulo: Loyola, 1996, 184.
-
6
que foi escrito, o texto um todo significante. Possui uma verdade simblica interna, sobre a
qual se alicera a verdade do texto. Uma vez que o texto escrito, automaticamente, se torna
autnomo em relao a seu autor real. Esta autonomia faz com que seja aberto a uma
infinidade de releituras. Com isso, o texto passa a ter seu mundo prprio.
Ao libertar-se de seu autor, o texto passa a ser polissmico. A polissemia do texto
refora-se ao se libertar da presena fsica de seu primeiro produtor. A este respeito, Ricoeur
ensina:
Ao libertar-se de seu destinatrio primeiro, o texto se liberta de seu autor, isto , da psicologia do homem por trs da obra, da compreenso que esse homem tem de si mesmo e de sua situao, de sua relao de autor com seu primeiro pblico, destinatrio originrio do texto. Esta tripla independncia do texto em relao ao autor, ao seu contexto e ao seu destinatrio primeiro, explica porque os textos estejam abertos para incontveis recontextualizaes pela escuta e pela leitura4.
Esta independncia do texto ensinada, tambm, por Wolfgang Iser. Para ele, um
mesmo texto pode ser objeto de leituras diversas, contrastantes; que todo texto , por
definio, polissmico, ambguo e rico de numerosos potenciais de significao, no
esgotados pelo leitor, o qual se nutre de interpretaes mltiplas e variadas5.
Embora o texto seja aberto a diversas interpretaes, no deixa de possuir um
sentido que lhe prprio, ou seja, no perde a sua verdade. Ricoeur afirma que "no basta
substituir um texto na corrente comunicativa para arruinar a hipstase do texto em si.
preciso atac-lo em sua hiptese mais central, pois, a escrita opera no discurso uma mutao
fundamental concernente relao entre o sentido e a referncia"6.
Por sentido preciso entender, na perspectiva da referncia abolida, uma rede de relaes puramente internas ao texto, quer se trate da relao hierrquica pela qual unidades de ordem inferior so integradas a unidades de ordem superior, ou da relao entre a mensagem de superfcie e os cdigos subjacentes, ou da combinao entre cdigos diversos no interior do mesmo texto, ou ainda da citao de alguns cdigos exteriores ao texto7.
O sentido do texto encontra-se na relao de suas trs propriedades essenciais, ou
seja, em sua estrutura, no sentido transfrsico e no sentido simblico. A anlise da estrutura
4 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus, 183-184.
5 Cf. HORELLOU-LAFARGE, Chantal. Sociologia da Leitura. Cotia: Atelie Editorial, 2010, 139. 6 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus, 185. 7 Idem, 185.
-
7
muito importante, pois mostra a quantidade das partes, o contedo e a substncia que as
compem8. A estrutura de um texto permite sua logicidade e entendimento.
A lgica de um texto dada por sua estrutura. A estrutura composta por frases e
oraes, que possuem um sentido. Todavia, o sentido isolado de cada frase no capaz de
estabelecer a verdade do texto. A verdade do texto d-se em seu conjunto. Cada frase, cada
termo, recebe seu sentido no conjunto do texto.
O conjunto do texto possui articulaes, as quais fornecem os mecanismos que
permitem a compreenso de cada frase, e, consequentemente, de cada termo que a compe.
Ricoeur, tendo presente esta perspectiva, ensina que a anlise estrutural uma etapa
intermediria (a ser ultrapassada), mas necessria para a inteligncia hermenutica9. Com
isso, importante ter presente que um texto possui uma estrutura fundamental para a sua
compreenso, porm, seu significado ultrapassa o contedo das frases, do ponto de vista
semntico, fazendo com que seu sentido seja extralingustico, em outras palavras o que ele
chama de texto transfrsico10.
O sentido transfrsico do texto exige uma leitura simblica, por sua inteno
perlocutria. O texto simblico, enquanto comunicador da experincia primeira do autor.
Por meio do texto, busca unir o leitor experincia que deseja comunicar.
A verdade do texto possui sua expresso mais arcaica no smbolo. Ricoeur
tratando sobre a simblica do mal afirma que "uma meditao sobre os smbolos parte da
plenitude da linguagem e do sentido j presente"11. Antes do texto, h a experincia humana
diante de um fenmeno que depois se traduz em "experincia da confisso"12. Esta confisso,
em um segundo momento, recebe uma elaborao mental, traduzida naquilo que Ricoeur
chama de smbolos mticos, que comportam a dimenso narrativa, com personagens, lugares e
tempos fabulosos, contando, assim, o comeo e o fim dessa experincia13.
A experincia da confisso expressa em smbolos, j contidos no sentido literal.
Porm, o sentido literal visa a um sentido mais profundo que est, como que, escondido nele.
O sentido literal visa, alm de si mesmo, alguma coisa que como uma mancha, como um desvio, como um fardo. Assim, ao contrrio dos signos
8 Cf. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. So Leopoldo: Sinodal, 1998, 248. 9 Cf. RICOEUR, Paul. O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica. Porto: Rs, 1988, 63. 10 Cf. Idem, 78-79. 11 Idem, 242. 12 Cf. Idem, 243. 13 Cf. Idem, 244.
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8
tcnicos, perfeitamente transparentes, que s dizem o que querem dizer, ao colocar o significado, os signos simblicos so opacos porque o sentido primeiro, literal, patente, visa ele prprio, analogicamente, um sentido segundo que no dado de outra maneira seno nele. Essa opacidade a prpria profundidade do smbolo, que o torna inesgotvel 14.
Dufour explica a relao entre o simblico e o real, nos seguintes termos:
A despeito do uso banal da palavra, 'simblico' no se ope de modo algum a 'real', pelo contrrio, s simblico aquilo que apresenta uma realidade com a qual quem o olha entra em comunho. A palavra 'smbolo' significa 'por junto': um smbolo une duas entidades, a que imediatamente perceptvel pelos sentidos e a invisvel, que visada; esta transparece imediatamente na primeira15.
Conclui-se que o texto um todo significante. A verdade de um texto pode ser
percebida e assimilada de diferentes maneiras, pois o texto essencialmente polissmico.
Embora polissmico, o texto no objeto de qualquer constatao. Possui elementos prprios
que delimitam seu sentido e sua interpretao. Esses elementos so distribudos ao longo de
sua estrutura. A estrutura de um texto o primeiro elemento sobre o qual se deve construir
sua interpretao. Entretanto no encerra em si o sentido do texto. O sentido do texto
encontra-se por detrs das palavras. As palavras que compem um texto so elementos
simblicos, por serem portadoras da experincia feita por seu autor.
No caso do gnero literrio narrativo, a estrutura e, consequentemente, o sentido
transfrsico e simblico do texto so elementos oriundos de sua narratividade.
2. Narratividade
O desenvolvimento da semitica precisou a noo de narratividade, a partir da
dcada de setenta. O termo passa a ser considerado como o princpio organizador de todo e
qualquer discurso16. Narratividade uma forma organizada de se contar uma histria.
Para aprofundar a compreenso do conceito torna-se conveniente um inventrio
crtico das diversas definies do conceito. Para o grupo de Entrevernes, a narratividade o
fenmeno de sucesso de estados e transformaes, inscrito no discurso e responsvel pela
14 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica, 244. 15 LON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo Joo. I . So Paulo: Loyola, 1996, 24. 16 Cf. MURATA, Elza Kioko Nakayama Nenoki. Em busca da casa perdida: vozes e imaginrio de meninos de rua. So Paulo: Annablume, 2005, 43.
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produo de sentido17. No interior do discurso, ocorre uma dinamicidade, um movimento
contnuo de transformaes que se sucedem. De forma semelhante, Greimas define o termo
como a irrupo do descontnuo na permanncia discursiva de uma vida, de uma histria, de
um indivduo, de uma cultura, o que permite desarticular essa permanncia discursiva em
estados discretos entre os quais ela (a narratividade) situa transformaes18. A definio da
transformao como manifestao da narratividade une o pensamento de ambos.
A narratividade pode ser compreendida, tambm, sob a tica do receptor do texto.
Prince adota esta concepo, que se difere totalmente de Greimas. Para ele,
A narratividade de um texto depende da medida em que o texto concretiza a expectativa do receptor, representando totalidades orientadas temporalmente, envolvendo uma qualquer espcie de conflitos e constitudas por eventos discretos, especficos e concretos, totalidades essas significativas em termos de um projeto humano e de um universo bem humanizado19.
As diversas concepes do conceito demonstram que a narratividade uma
qualidade presente nos textos narrativos de todas as pocas, no somente em textos literrios,
mas tambm em textos no-literrios20. Nesta perspectiva, Dijk entende os textos narrativos
como formas bsicas da comunicao social, pressupondo a narratividade como elemento
central de diversos tipos de textos:
Depois das narraes naturais, aparecem em segundo lugar os textos narrativos que apontam para outros tipos de contexto, como as anedotas, mitos, contos populares, as sagas, lendas etc., e em terceiro lugar, as narraes, frequentemente muito mais complexas, que geralmente circunscrevemos com o conceito de literatura: contos, romances, etc21.
Tratando-se exclusivamente das narraes, Dijk insiste na noo de que toda
narrativa vem de uma superestrutura articulada. Segundo ele, no desenrolar de uma ao
verifica-se uma complicao, solicitando uma resoluo. Estas duas categorias formam o
ncleo narrativo (o evento), o qual, juntamente com a moldura, forma a intriga. Verifica-se,
nas produes narrativas, a presena de estruturas fixas. Neste sentido, h uma lgica
narrativa que leva a configurar uma gramtica narrativa universal22. A narratividade est
17 GROUPE D'ENTREVERNES. Analyse smiotique des textes. Lyon: Presses Univertaires de Lyon, 1979, 14. 18 GREIMAS, Algirdas Julius. Du sens II: Essais smiotiques. Paris: Seuil, 1983, 43. 19 PRINCE, Gerald. Narratology. The form and functioning of narrative. New York: Mouton, 1982. 20 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa,71. 21 DIJK, Teun A. Van. La ciencia dei texto: un enfoque interdisciplinario. Buenos Aires: Paids, 1983, 154. 22 Cf. BREMOND, Claude. Logique du rcit. Paris: Seuil,1973, 330.
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ligada capacidade possuda pelo texto narrativo para permitir ao receptor o acesso a aes de
dimenso humana, englobadas em estruturas coerentes dentro de uma narrao.
A narratividade o conjunto das caractersticas que fazem de um texto uma narrativa, diferente do discurso ou da descrio. Os traos narrativos, pelos quais se identifica um relato, diferenciam-se dos traos discursivos, pelos quais se identifica um discurso (que interpela diretamente o destinatrio)23.
Portanto, a narratividade um movimento no interior de um discurso que suscita
transformaes. Ela, por meio de conflitos, fornece ao receptor totalidades significativas.
Essas podem estar presentes em diversos tipos de produo narrativa, escritas ou no. A
narratividade se manifesta, dando ao texto estruturas fixas, pelas quais pode ser chamado de
narrativa.
3. Narrativa
O termo narrativa compreendido de diversas maneiras: enquanto enunciado,
como o conjunto de contedos representado por esse enunciado, como o ato de relatar24 esses
contedos e, ainda, como modo25. Uma narrativa pode se apresentar de diferentes modos
(narrativa de imprensa, historiografia, relatrios, anedotas, histrias em quadrinhos, cinema,
narrativa literria etc.). Nesta diversidade de narrativas, encontra-se a narrativa literria.
A narrativa literria formada por textos, normalmente, de ndole ficcional,
estruturados por cdigos e signos. Adam, em Dcrire des actions, enumera quatro parmetros
da narrativa26. Para que haja narrativa, preciso primeiramente uma sucesso temporal de
aes ou fatos. Segundo, a presena de um agente-heri, animado por uma inteno que leva a
narrativa ao seu fim. Terceiro, um enredo que sobrepuje a cadeia das peripcias e as integre
na unidade de uma mesma ao. Quarto, uma relao de causalidade-consecuo,
estruturando o enredo mediante um jogo de causas e efeitos. Denhire prope o seguinte
resumo:
uma exposio, que comporta a descrio dos personagens principais, do lugar, do tempo, da situao inicial;
23 MARGUERAT, Daniel - BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bblicas. Iniciao anlise narrativa. So Paulo: Loyola, 2009, 13. 24 Cf. GENETTE, Gerrd. Figures III. Paris: Seuil, 1972, 71-72. 25 Cf. FOWLER, Alastair. Kinds of literature. An introduction to the theory of genres and modes. Cambridge: Harvard University Press, 1982, 235-240. 26 ADAM, Jean-Michel. Dcrire des actions: raconter ou relater?In: Littrature. 95. 1994, 3-22. Url : http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/litt_0047-4800_1994_num_95_3_2336. Consulta feita em: 01/10/2012.
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uma complicao, ou n da intriga que, em referncia situao inicial, descreve um ou mais acontecimentos especficos notveis; uma resoluo, ou o desfazer da intriga, que remete s aes realizadas pelos personagens principais aps os acontecimentos da complicao; uma avaliao que especifica as reaes mentais do personagem/narrador do episdio; uma moral: categoria que, como a anterior, opcional, estando na maioria das vezes implcita27.
Esses parmetros que estruturam uma narrativa literria se manifestam tanto nas
narrativas ficcionais quanto nas histricas. Em outras palavras, enquanto a ficcionalidade est
ligada ideia de uma narrao baseada em uma histria imaginria, a historicidade est ligada
a uma narrao de carter cientfico.
A narrativa literria, portanto, modelada ou pelos atributos presentes na
ficcionalidade ou pelos atributos prprios de uma narrativa histrica.
3.1 Ficcionalidade
Na narratologia, o termo ficcionalidade recebe diversas conotaes. De certa
forma, trata-se de uma narrativa inventada, ou seja, seu contedo tem origem na imaginao
do autor. Porm, esta histria possui caractersticas pertencentes ao mundo real. A
narratologia serve-se da intencionalidade e da abordagem de tipo contratualista para
explic-la.
A ficcionalidade pode ser concebida em termos de intencionalidade. Neste
sentido, a narrativa constri-se na intencionalidade do autor, ou seja, a histria narrada fruto
da imaginao do autor. A este tipo de abordagem associa-se a do tipo contratualista. Nesta
perspectiva, no existe um corte radical e irreversvel com o mundo real.
As prticas ficcionais, embora possuam uma pseudo-referencialidade, comportam
uma dimenso perlocutria no receptor28. A fico exerce efeito sobre o receptor, por ter os
mesmos mecanismos presentes em uma histria real como personagens, tempo etc. Por isso,
, tambm, uma via de humanizao. Portanto, a narrativa deste gnero estabelece uma
relao entre o texto e o leitor.
27 PIETRARIA, Cristina Moerbeck Casadei. Questes de leitura: aspectos prticos e tericos da leitura em francs lngua estrangeira. So Paulo: Annablume, 2001, 91. 28 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa, 44.
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O leitor torna-se um cooperador na interpretao da narrativa, pois infunde nela
suas prprias atitudes epistmicas.
Em nvel da histria, cada texto narrativo apresenta-nos um mundo com indivduos e propriedades, um mundo possvel cuja lgica pode no coincidir com a do mundo real ( o que acontece nos contos maravilhosos, nas narrativas fantsticas ou na fico cientfica). Os diferentes estados de uma histria constituem estados de um mundo narrativo que se constri progressivamente no processo de leitura de um texto. No interior da histria, surgem ainda os chamados mundos epistmicos, definidos em funo das crenas e pressuposies das personagens (ideologias, atitudes tico-morais, opes axiolgicas, etc.). Por outro lado, na relao de cooperao interpretativa, o leitor introduz na histria, atravs de mecanismos de inferncia e previso, as suas prprias atitudes epistmicas29.
A ficcionalidade, em uma narrativa de cunho contratual, como foi dito, pode
assumir elementos histricos, embora sua referncia persista na intencionalidade do autor.
Neste sentido, os instrumentos que utiliza so os mesmos da biografia, da autobiografia, do
romance etc.
A fico no intil para a cultura humana, pois reflexo de sua capacidade
artstica e criatividade. Ela perpassa a histria, desde a Antiguidade clssica e o Helenismo,
at o mundo moderno. Retira o leitor da ociosidade, torna-se cultura e, tambm, lazer, alm de
ser um instrumento de comunicao com diversos tipos de pblico30. Numa outra perspectiva
literria, encontra-se a narrao de cunho mais epistmico, cuja referncia so os fatos reais
da experincia humana.
3.2 Entre a histria e o discurso
Diversos autores propem a distino entre o plano de contedo e o plano de
expresso em uma narrativa. Por exemplo, Todorov faz a distino entre histria e
discurso; Genette estabelece a distino entre histria e narrao; Bremond serve-se do
rcit racont e rcit racontant31. importante compreender a distino entre esses dois
planos para compreender melhor as narrativas literrias.
O plano de contedo compreende a sequncia de aes, a relao entre
personagens, a localizao dos eventos em um contexto temporal ou espacial etc. O plano de
expresso o discurso narrativo propriamente dito. Manifesta-se atravs da linguagem verbal,
29 REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa, 45. 30 Cf. BACHTIN, Mikhail. Estetica e romanzo. II. Torino: Einaudi, 1979, 480. 31 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa, 49.
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de imagens, gestos etc. Em outras palavras, o plano de expresso refere-se maneira como o
narrador d a conhecer ao leitor o contedo da histria por meio da narrao.
Essa diferenciao dos termos serve para elucidar dois aspectos essenciais de uma
composio. Por isso, no devem ser tratados como entidades autnomas em um texto.
A histria de uma narrativa revela-se a partir de uma sequncia temporal e
logicamente ordenada de eventos. No caso de uma narrativa histrica, possvel admitir a
existncia de um referente emprico pr-textual32. Contudo, no caso da narrativa literria
torna-se extremamente problemtico definir o estatuto ontolgico da histria sem colocar a
questo da ficcionalidade33. Genette, a este respeito, afirma que, na narrativa literria, o ato de
narrao produz simultaneamente uma histria e um discurso, dois planos inseparveis que s
uma exigncia metodolgica poderia separar34.
Os dois elementos, histria e discurso, so essenciais na composio de uma
narrativa histrica. Portanto, no h como separar a ficcionalidade de sua composio. As
narrativas bblicas, por serem narrativas literrias histricas, possuem esses dois elementos.
4. As narrativas bblicas
As narrativas bblicas possuem caractersticas semelhantes s narrativas literrias
seculares. Porm, possuem particularidades que devem ser ressaltadas. O conhecimento
dessas particularidades necessrio para a sua interpretao. Neste sentido destaca-se,
sobretudo, a prioridade da ao e a nominao de Deus.
4.1 A prioridade da ao nas narrativas bblicas
Nas narrativas bblicas, o narrador prioriza mais a ao do que a descrio. As
descries so mnimas, em todo o conjunto das narrativas bblicas. Em geral, os autores
bblicos privilegiam os elementos que enfatizam a ao em seus relatos: discusses, decises,
aes, e, sobretudo, dilogos35.
Consequentemente, normal que o interesse pela psicologia dos personagens seja
colocada em um segundo plano. O gosto pela introspeco, tpico da idade moderna, 32 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa, 50. 33 Cf. Idem, 50. 34 Cf. GENETTE, Gerrd. Nouveau discours du rcit. Paris: Seuil, 1983, 11. 35 Cf. SKA, Jean-Luis; SONNET, Jean-Pierre ; WENIN, Andr. Anlisis narrativo de relatos del Antiguo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 2001, 10.
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estranho aos escritores bblicos36. Os personagens esto inteiramente a servio da ao. Por
isso, os sentimentos dos personagens, seus conflitos interiores, seus pensamentos etc., so
confiados ao trabalho do leitor.
Outros aspectos colocados em segundo plano nas narrativas bblicas so a
presena de detalhes (por exemplo: os adjetivos em geral, os detalhes das casas, animais,
decoraes etc.), a presena de personagens secundrios (esses aparecem, geralmente, quando
so indispensveis), as diferenas de raas, lnguas e classes sociais etc37.
Quanto presena da ao, o relato bblico privilegia uma s ao, ou seja,
unilinear, pois no apresenta, diante de uma nica ao, vrias intrigas paralelas. Ao mesmo
tempo, no exclui digresses, pois comum a interrupo de relatos por episdios38.
A prioridade da ao, nas narrativas bblicas, tem importantes conseqncias na
maneira de tratar os personagens. Em geral, o personagem atuante em uma cena um s; os
grupos so tratados como personagens coletivos; os dilogos so sempre entre duas pessoas e
o nmero de personagens limitado em um episdio39. Constata-se, alm desses elementos, a
presena de repeties de episdios e contradies nas narrativas bblicas. As narrativas
bblicas possuem um estilo particular e bem delimitado. a partir dele que se compreende o
principal personagem nela presente: Deus.
4.2 A nomeao de Deus no texto bblico de gnero narrativo
O gnero narrativo um dos diversos gneros literrios presentes no texto bblico.
A Bblia , sobretudo, um livro teolgico. Seu objetivo consiste sobretudo, em demonstrar a
revelao divina ao ser humano e suscitar-lhe uma resposta. O modo como Deus revelado
nos textos bblicos possui caractersticas comuns.
No texto bblico, a nomeao de Deus acontece de modo polifnico40. Ou seja,
acontece atravs de "formas complexas de discurso to diversas quanto narraes, profecias,
legislaes, provrbios, preces, hinos, frmulas litrgicas, escritos sapienciais. Essas formas
36 Cf. SKA, Jean-Luis; SONNET, Jean-Pierre ; WENIN, Andr. Anlisis narrativo de relatos del Antiguo Testamento, 10. 37 Idem, 11-12. 38 Cf. Idem, 13. 39 Cf. Idem, 14. 40 Cf. RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus, 189.
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de discurso nomeiam Deus todas juntas. Mas elas o nomeiam diversamente"41. As diversas
formas so interligadas dialeticamente.
Ricoeur confirma-o dizendo: "Deus nomeado diversamente na narrao que o
conta, na profecia que fala em Seu nome, na prescrio que o designa como fonte do
imperativo, na Sabedoria que o procura como sentido do sentido, no hino que o invoca na
segunda pessoa"42. Portanto, os textos da Escritura, tanto os do Antigo como os do Novo
Testamento, se apresentam ao leitor com uma grande variedade de composies, de gneros
literrios e de estilos. Como todo texto, so obras de linguagem marcadas por um estilo e um
modo de composio.
H um primado da estrutura narrativa nos escritos bblicos43. A nominao de
Deus , primeiramente, uma nominao narrativa.
A teologia das tradies nomeia Deus em concordncia com um drama histrico que se conta como uma narrativa de libertao. Deus o Deus de Abrao, de Isaac e de Jac. Ele assim o Atuante da grande gesta de libertao. E seu sentido de Atuante solidrio dos acontecimentos fundadores nos quais a comunidade de interpretao se reconhece enraizada, instaurada, instituda. So os prprios acontecimentos que nomeiam Deus44.
Uma nominao narrativa , essencialmente, uma constatao, um testemunho de
uma experincia feita com algo ou algum. No caso bblico, trata-se de uma experincia feita
com Deus por algum, a qual, em seguida, interpretada e narrada. Como so os prprios
acontecimentos que o revelam, Deus era "ento nomeado na terceira pessoa no horizonte do
acontecimento contado"45. Portanto, Deus no texto um personagem narrado em terceira
pessoa, tanto no Antigo Testamento (Pentateuco, livros histricos), quanto no Novo
Testamento (Evangelho e Atos dos Apstolos).
Nas narrativas bblicas, verifica-se, primeiramente, uma experincia feita por
algum ou pela comunidade. Esta experincia em seguida, transmitida por meio de recursos
narrativos. O ponto central no so os dados presentes no interior do texto, mas sua ligao
com a atuao de Deus na histria contada. Embora presente em terceira pessoa, o
personagem Deus o principal protagonista das narrativas. Porm, nem sempre aparece de
forma clara e explcita. Muitas vezes, sua atuao percebida, somente, atravs da leitura
atenta ao texto. A anlise narrativa um recurso que permite essa leitura. Portanto, antes de
41 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus, 190. 42 Idem, 194. 43 Cf. Idem, 191. 44 Idem, 191. 45 Idem, 192.
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adentrar no tema proposto nesta dissertao, faz-se necessrio conhecer os principais
fundamentos deste mtodo, para depois aplic-lo percope escolhida.
5. Narratologia e exegese
Para estudar uma narrativa existe atualmente a narratologia. A narratologia uma
rea de reflexo do tipo terico-metodolgica autnoma, centrada na narrativa como modo de
representao literria e no-literria. Alm disso, analisa os textos narrativos atravs da
teoria semitica. Os princpios de abordagem empregados pela narratologia so, tambm,
empregados pela exegese bblica. Na exegese, esta maneira de abordar os textos de gnero
narrativo, segundo os princpios dados pela narratologia, chamada de Anlise Narrativa.
5.1 A narratologia
Diversas so as propostas de definio do termo narratologia. No entanto,
reconhece-se nelas sua especificidade. Gerbase define-a da seguinte maneira: A narratologia
(teoria da narrativa) estuda as noes de enredo, de diferentes tipos de narradores e suas
tcnicas narrativas46. Para Bal, a narratologia a cincia que procura formular a teoria das
relaes entre texto narrativo, narrativa e histria47. Segundo Prince, a narratologia o
estudo da forma e funcionamento da narrativa48. Em outras palavras, a narratologia concebe
a narrativa de forma orgnica. Ela procura descrever, sistematicamente, os cdigos que
estruturam a narrativa, seja esta literria, verbal, cinematogrfica, histria de imprensa e em
quadrinhos.
A narratologia interessa-se pela narrao, entendida como enunciao narrativa49.
Por isto busca, compreender seus mecanismos internos. Segundo Barthes, a ateno que a
narratologia atribui ao plano da histria funda-se na contribuio dada pela anlise
estrutural50. Segundo ele, o texto possui um carter orgnico, uma gramtica narrativa,
estabelecida quer em termos funcionais, quer em termos sequenciais51. Quando se utiliza a
46 GERBASE, Carlos. Impactos das tecnologias digitais na narrativa cinematogrfica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, 59. 47 BAL, Mieke. Narratologie; essais sur la signification narrative dans quatre romans modernes. Paris: Klincksieck, 1977, 79. 48 PRINCE, Gerald. Narratology. The form and functioning of narrative, 4. 49 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa,58. 50 Cf. BARTHES, Roland. Introduction l'analyse structuraIe du rcit. Revue Communications. Paris, 8, 1966, 1-10. 51 Cf. Idem, 1-10.
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expresso gramtica narrativa, pressupe-se de imediato que o texto narrativo tem unidades e
regras especficas, uma estrutura e um funcionamento que possvel descrever tal como se
descreve a organizao das lnguas naturais52.
Portanto, toda narrativa formada por um conjunto orgnico de enunciados, por
uma narrao, por uma estrutura, por uma gramtica narrativa. A narratologia encarrega-se
destes elementos, visando a uma compreenso cada vez mais profunda desses mecanismos
presentes na narrao. Tal compreenso propicia o entendimento semntico das narrativas.
Enquanto a narratologia visa a compreender os mecanismos da narrao, a anlise narrativa
busca compreender sua mensagem.
5.2 A anlise narrativa
A exegese bblica serve-se de todo este aparato dado pela narratologia para
analisar as narrativas bblicas, atravs do mtodo chamado de anlise narrativa. Na anlise
narrativa toda leitura se faz a partir do questionamento feito ao texto.
Na exegese, o texto bblico pode ser abordado de diferentes maneiras. O mtodo
histrico-crtico se interessa pelo mundo histrico por detrs do texto. A anlise semitica,
pelo texto em si mesmo. Na anlise semitica, somente a estrutura do texto levada em conta;
nenhuma informao tirada de fora do texto. A pergunta da anlise narrativa : como o autor
comunica sua mensagem ao leitor? Marguerat afirma que o estudo recai sobre a estrutura que
permite mensagem atingir o efeito buscado pelo emissor53. Ou seja, o texto possui uma
estrutura construda de forma a gerar um efeito no leitor. A anlise narrativa considera este
efeito e a maneira como o texto conduz o leitor a seu encontro.
A anlise narrativa uma das leituras ditas pragmticas, que se aplicam a procurar
o efeito do texto no leitor. O texto, por sua estrutura e contedo, a um s tempo explcito e
implcito, guia a imaginao do leitor, controlando-a54. Por isso, a anlise narrativa recusa-se
a reconstruir o ambiente social e cultural do texto. No substitui o estudo histrico-crtico,
mas destaca informaes que lhe escapam. Encara o texto como um processo de comunicao
entre autor e leitor. Nesta perspectiva formula uma srie de questes para compreender o
sentido deste processo de comunicao entre autor-leitor.
52 REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa,163. 53 MARGUERAT, Daniel - BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bblicas. Iniciao anlise narrativa, 16. 54 Cf. HORELLOU-LAFARGE, Chantal. Sociologia da Leitura, Cotia: Atelie Editorial, 2010,139.
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5.2.1 Que perguntas a anlise narrativa faz a uma narrativa?
Existem muitas maneiras de narrar uma histria. A forma de narrar no
indiferente ao sentido do texto. Pelo contrrio, muitas vezes determinante55. Por isso, a
anlise narrativa se pergunta pelo como da narrao. Sabendo que toda narrativa uma
comunicao entre um emissor (narrador) e um receptor (o leitor), busca compreender a
estratgia narrativa que forma a mensagem (narrao). Alm disso, a anlise narrativa
atenta s repeties presentes na narrao, tanto de termos quanto de relatos semelhantes.
Para compreender a histria narrada, as principais perguntas que se faz ao texto
so: Como a narrativa foi construda? Como o narrador estruturou a intriga? Qual o objetivo
da intriga, o desenlace de um conflito ou a revelao de uma verdade oculta? Quais so os
ritmos empregados pelo narrador nos diversos momentos de seu relato e qual o efeito que
produzem? Como faz para manter o suspense e a ateno do leitor? Como conduz o leitor a
descobrir o que est oculto no relato? Como se serve das repeties na narrativa? Quais so os
personagens que o narrador coloca em cena e como os relaciona entre si? Como os
caracteriza? Quais so as tcnicas (dilogos, monlogos, descrio direta, apreciaes
explcitas etc.) privilegiadas pelo narrador no relato?
Para compreender o narrador, as principais perguntas so: Sob que perspectiva o
narrador considera as coisas e os acontecimentos? Como se manifesta no texto, de forma a
conduzir o leitor a compartilhar seus valores?
Conclui-se que a narratologia fornece anlise narrativa o aparato prtico e
terico para abordar as narrativas bblicas. As narrativas bblicas possuem sua especificidade.
Por isso, o prximo passo consistir em analisar os conceitos fundamentais, teorizados pela
narratologia, empregados na anlise narrativa de At 1,1-2,41.
6. Conceitos narratolgicos fundamentais para a interpretao de
At 1,1-2,41
Os conceitos fundamentais, oferecidos pela narratologia, presentes em At 1,1-2,41
so: autor real, autor implcito, narrador, a relao entre narrador e narratrio, leitor, leitor
implcito, intriga, personagem, redundncia e perspectiva narrativa.
55 SKA, Jean-Luis; SONNET, Jean-Pierre ; WENIN, Andr. Anlisis narrativo de relatos del Antiguo Testamento, 7.
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6.1 Autor real
O autor a entidade, materialmente, responsvel pelo texto narrativo56. Tacca
explica o termo da seguinte maneira: A categoria de autor a do escritor que pe todo o
seu ofcio, todo o seu passado de informao literria e artstica, todo o seu caudal de
conhecimento e ideias ao servio do sentido unitrio da obra que elabora57.
O autor do texto, chamado na anlise narrativa de autor real, pode ser tanto um
indivduo quanto um grupo de pessoas que redigiram o texto. O primeiro destinatrio do
texto, chamado na anlise narrativa de leitor real, a pessoa, a quem foi destinado o texto (um
indivduo ou uma coletividade). O autor real e o leitor real so personagens histricos fora do
alcance do leitor que, posteriormente, entra em contato com o texto58.
No contexto da narratologia, a figura do autor compreendido somente em sua
relao com o narrador. Por isso, no analisado do ponto de vista histrico-literrio
(biografia, influncias etc.), scio-ideolgico, psicanaltico etc. observado, somente, em sua
relao de dilogo com o narrador. Nesta relao, a narratologia busca a figura do autor
implcito.
6.2 Autor implcito
O conceito autor implcito objeto de discusso entre os estudiosos da teoria
narrativa59. A origem do conceito est na descoberta de um segundo eu, uma verso criada,
literria, ideal, de um homem real, nas narrativas60. Em outras palavras, trata-se da imagem
implcita de um autor manifestada no texto. Por isso, a concepo de autor implcito vista
como uma entidade personalizada, semelhante do narrador61.
O autor implcito o sujeito da estratgia narrativa. Est envolvido na obra,
servindo-se de diversos recursos para conduzir o leitor. O narrador , neste sentido, um dos
recursos empregados pelo autor implcito, ou seja, uma inveno do autor implcito da
mesma forma que os demais elementos da narrativa. Marguerat afirma que pr-se em busca
56 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa,14. 57 TACCA, Oscar. Las voces de la novela. Madrid: Gredos, 1973, 17. 58 Cf. MARGUERAT, Daniel - BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bblicas. Iniciao anlise narrativa, 23. 59 Cf. BOOTH, Wayne. The rhetoric of fiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1983, 421-422. 60 Cf. BOOTH, Wayne. A retrica da fico. Lisboa: Arcdia, 1980, 92. 61 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa,17.
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do autor implcito observar que estratgia narrativa emprega, que estilo escolhe, como faz
intervir seus personagens, que sistema de valores usa para conduzir a narrativa. A imagem do
autor implcito resulta da soma das escolhas de escrita identificadas no texto62.
6.3 Narrador
A definio do conceito de narrador deve partir da distino do conceito de autor.
Enquanto o autor corresponde a uma entidade real e emprica, o narrador deve ser entendido
como autor textual. O narrador uma entidade fictcia cuja tarefa enunciar o discurso63. Por
isso, o primeiro passo para compreender o papel do narrador, distingu-lo do conceito de
autor. Stanzel explica a importncia desta distino:
Se tentssemos assimilar a personalidade individual de um narrador ficcional personalidade do autor para salvaguardar a clareza e fidedignidade da narrativa, renunciaramos mais importante funo prpria do teor mediato da narrativa: revelar a natureza enviesada da nossa experincia da realidade64.
O narrador uma inveno do autor. O autor pode, portanto, modelar o narrador
merc de seus objetivos no texto. Por exemplo, pode projetar sobre o narrador certas atitudes
ideolgicas, ticas, culturais etc.
As funes do narrador no se limitam ao ato de enunciao. O narrador a voz
que conta a histria e guia o leitor na narrativa. Conforme a voz do narrador se manifesta na
narrativa, fala-se de narrador autodiegtico, homodiegtico, heterodiegtico etc. Pode colocar-
se no texto, em primeira pessoa do singular, como em uma autobiografia. Pode, tambm,
ausentar-se da narrativa. Isto, geralmente, acontece nas narrativas bblicas, onde o narrador se
esconde por detrs de suas palavras, permanecendo como o servidor que se retira para trs dos
fatos que expe65. Porm, o narrador, embora por detrs dos fatos, pode estar profundamente
presente, atravs da estratgia narrativa empregada no texto.
Como o narrador aquele que conduz o leitor na narrativa, verifica-se que
necessariamente h uma ligao entre narrador e narratrio.
62 MARGUERAT, Daniel - BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bblicas. Iniciao anlise narrativa, 25. 63 Cf. REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa,61. 64 STANZEL, Franz . A theory of narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, 11. 65Cf. MARGUERAT, Daniel - BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bblicas. Iniciao anlise narrativa, 21.
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6.4 A relao entre narrador e narratrio
Segundo Prince, o autor o enunciador que, no discurso narrativo, delega voz ao
narrador, o qual assume a palavra e fala a um narratrio66. Toda narrao pressupe um
narratrio, e este um ser fictcio, assim como o narrador67. Trata-se, portanto, de dois
elementos essenciais em uma narrativa, os quais precisam ser compreendidos.
Toda narrao, seja ela escrita ou oral, referindo-se a acontecimentos verdicos ou mticos, contando uma histria ou uma simples srie de aes no tempo, pressupe no somente (ao menos) um narrador, mas tambm (ao menos) um narratrio, isto , algum a quem o narrador se dirige68.
A anlise narrativa entende por narratrio aquele que toma conhecimento da
histria, atravs da leitura. O termo narratrio foi proposto para delimitar a figura do leitor
inscrita no texto. Genette distingue dois tipos de narratrios. O narratrio intradiegtico
(interno diegese, ou seja, ao mundo da histria) e o narratrio extradiegtico (externo a
esse mundo)69. Embora o narrador seja onisciente, onipresente e onipotente diante da
narrativa, precisa do narratrio para decifr-la. A leitura um processo que alterna liberdade,
criao e coero. Liberdade, porque o texto sempre em parte aberto, inacabado, contm
brancos, suscitando por isso mesmo o trabalho imaginrio do leitor e sua cooperao
ativa70. Em outras palavras, o texto revela-se por meio da comunicao entre o texto e o
narratrio. O mediador desta comunicao, no texto, o narrador que guia o leitor ao encontro
do sentido do texto.
Esta comunicao como um contrato, pois o leitor ao tomar o posto de
narratrio, deve deixar-se conduzir pelo narrador. Somente assim pode compreender o texto.
Neste sentido, o narratrio deve reconhecer a oniscincia e a confiabilidade do narrador. Para
Pietraria
Ler e compreender uma narrativa antes de qualquer coisa estabelecer uma relao de comunicao com um texto que j traz para o leitor uma estrutura em princpio conhecida. render-se a ela e, ao mesmo tempo, selar um
66 Cf. PARASO, Andra Correa. Marguerite Duras e os possveis da escritura: a incansvel busca.
So Paulo: Editora UNESP, 2001, 77. 67 Cf. Idem, 77. 68 Idem, 77. 69 Cf. JOUVE, Vincent. A leitura. So Paulo: Editora UNESP, 2002, 39. 70 HORELLOU-LAFARGE, Chantal. Sociologia da Leitura,139.
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contrato de leitura, muitas vezes automtico e inconsciente, colocando-se como leitor potencial daquela escrita71.
Portanto, enquanto o narrador conduz o narratrio na narrativa, por meio de sinais
e informaes necessrias no tempo desejado, o narratrio confia nele e, ao mesmo tempo,
coopera em sua interpretao e atualizao. Ligadas ao conceito de narratrio esto as
diversas concepes do conceito de leitor.
6.5 Leitor
O conceito de leitor correlativo e distintivo. Correlativo, porque o leitor real est
no mesmo plano funcional que o autor emprico; distintivo, porque o leitor real se reveste de
contornos bem definidos em relao ao narratrio, ao leitor virtual ou ao leitor ideal. Por isso,
o leitor emprico, ou real, identifica-se com o receptor. Silva, explica este fato da seguinte
maneira:
O leitor emprico, ou real, identifica-se, em termos semiticos, com o receptor do texto, mas antes como um elemento com relevncia na estruturao do prprio texto. Todavia, o leitor ideal nunca pode ser configurado ou construdo pelo emissor com autonomia absoluta em relao aos virtuais leitores empricos contemporneos, mesmo quando na sua construo se projeta um desgnio de ruptura radical com a maioria desses mesmos presumveis leitores contemporneos72.
O autor real, ao elaborar sua narrativa, escreve ao leitor implcito. Ele tem em
mente um leitor ideal, ou seja, algum que compreender os menores termos empregados na
narrativa.
Alm do conceito de leitor ideal, verifica-se uma srie de outras concepes de
leitor. Eco fala de um leitor modelo que detm uma capacidade de cooperao textual que
configura uma competncia narrativa perfeita73. Iser fala de um leitor pretendido, uma
entidade projetada, patenteando as disposies histricas do pblico leitor visado pelo
autor74.
O leitor pretendido o leitor implcito que ser analisado de forma particular, pois
ser o conceito empregado na interpretao de At 1,1-2,41.
71 PIETRARIA, Cristina Moerbeck Casadei. Questes de leitura: aspectos prticos e tericos da leitura em francs lngua estrangeira, 97. 72 SILVA, Vitor Manuel. Teoria da literatura. 5. Coimbra: Almedina, 1983, 310-311. 73 Cf. ECO, Umberto. Lector in fabula. La cooperazione interpretativa nei testi narrativi. Milano: Bompiani, 1979, 53-56. 74 ISER, Wolfgang. The implied reader. Patterns of communication in Prosefiction from Bunyan to Beckett. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1975, 34.
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6.6 Leitor implcito
O leitor implcito no algum concreto, identificado no texto, como muitas
vezes o leitor real. O leitor implcito uma imagem abstrata que o narrador infunde na
narrativa.
Genette explica essa imagem da seguinte maneira: contrariamente ao autor
implcito, que , na cabea do leitor, a ideia de um autor real, o leitor implcito, na cabea do
autor real, a ideia de um leitor possvel75.
A correspondncia entre leitor real e leitor implcito uma possibilidade que
escapa ao autor.
6.7 Intriga
Por intriga, entende-se uma organizao macroestrutural de um texto narrativo. E
a narrativa em sua inteireza formada pela estratgia narrativa. Ou seja, pelos recursos
empregados pelo narrador para desenvolver a histria. Alm da sucessividade e do
enquadramento temporal dos eventos de forma encadeada, a intriga possui outras duas
caractersticas especficas: a tendncia para apresentar os eventos de forma encadeada, de
modo a fomentar a curiosidade do leitor, e o fato de tais eventos se encaminharem para um
desenlace que inviabiliza a continuao da intriga76.
A intriga chamada, tambm, de enredo. A noo elementar de enredo muito
simples. Todo texto deve ter um comeo, um meio e um fim; deve apresentar uma situao
inicial, uma complicao, uma transformao (algum tipo de virada ou mudana de
estado) e uma resoluo que marque uma mudana significativa77. Pode ser utilizado tanto
para caracterizar macronarrativas quanto micronarrativas. Marguerat define-o do seguinte
modo:
Chamamos de enredo essa estrutura unificadora que liga as diversas peripcias da narrativa e as organiza em uma histria contnua. O enredo assegura a unidade de ao e d sentido aos mltiplos elementos da narrativa. O enredo o princpio unificador da narrativa, seu fio vermelho; ele permite organizar, em um cenrio coerente, as etapas da histria contada.
75 GENETTE, Gerrd. Nouveau discours du rcit, 103. 76 REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa, 212. 77 Cf. GERBASE, Carlos. Impactos das tecnologias digitais na narrativa cinematogrfica, 59.
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A organizao do enredo corresponde a uma lgica possvel de ser descrita numa gramtica narrativa78.
O enredo composto tradicionalmente por cinco etapas, seguindo, geralmente, o
seguinte esquema:
Situao inicial
N
Ao transformadora
Desfecho
Situao final
No primeiro momento, aparecem os personagens em um determinado ambiente ou
em uma determinada situao (situao inicial). Faz parte do processo posterior o
aparecimento de um obstculo a ser vencido (n). O caminho de passagem deste obstculo ou
dificuldade recebe o nome de ao transformadora. A consequncia da mudana de estado ou
resoluo do problema recebe o nome de desenlace ou desfecho. Por ltimo, fechando o
quadro, geralmente o narrador coloca os personagens ou a situao em um novo estado
(situao final).
Marguerat explica essas etapas:
A situao inicial (ou exposio) fornece ao leitor os elementos de informao necessrios para compreender a situao que a narrativa vai modificar. Essa exposio explicita quem, o que e (s vezes) o como. A complicao (ou n) constitui o desencadeamento da ao. aqui, geralmente, que comea a tenso dramtica. O detonador pode ser o enunciado de uma dificuldade, de um conflito, de um incidente, de um obstculo soluo de um problema. A ao transformadora visa liquidao da dificuldade, ou da falta, ou da perturbao anunciada pela narrativa. A dinmica transformadora pode consistir em um ato pontual ou em um longo processo de mudana. O desenlace a etapa simtrica do n. Ele anuncia a resoluo do problema anunciado. Descreve os efeitos da ao transformadora sobre as pessoas em questo ou a maneira como se restabelece a situao em seu estado anterior. A situao final expe o reconhecimento do novo estado (aps a eliminao da dificuldade) ou o retorno ao normal (aps o desaparecimento da perturbao). Essa etapa, descreve a nova situao depois que a tenso narrativa instalada pela narrativa foi acalmada79.
78 Cf. MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bblicas, 57-59. 79 Idem, 58-59
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6.8 Personagem
Categoria fundamental da narrativa, o personagem revela-se o eixo em torno do
qual gira a intriga. Em outras palavras, toda narrativa organiza-se em torno de seus
personagens.
A imagem do personagem, na narrativa, revela-se de forma progressiva e difusa.
Hamon afirma que o personagem o suporte das redundncias e das transformaes
semnticas da narrativa, e se constitui pela soma das informaes facultadas sobre o que ele
e sobre o que faz80. Neste sentido, por revelar-se progressivamente no texto, atravs de suas
entradas em cena, ou aparies na narrativa, o personagem pode ser compreendido como
signo.
Segundo Harvey, enquanto signo narrativo, o personagem sujeito a
procedimentos de estruturao que determinam sua funcionalidade e importncia no relato.
Conforme sua presena na narrativa, o personagem pode ser definido em termos de relevo,
como protagonista, personagem secundrio, ou simplesmente como mero figurante81.
6.9 Redundncia
A palavra redundncia, ou repetio, por si s indica seu significado em um texto.
Trata-se dos sinais que repetem uma informao. A redundncia assegura de algum modo a
plena inteligibilidade da mensagem, pois imprescindvel quanto estruturao da coerncia
textual. Favorece a inteligibilidade semntica dos diversos termos presentes na narrativa.
Trata-se de um recurso presente na estratgia narrativa que visa a conduzir o leitor ao objetivo
perlocutrio do narrador e sua perspectiva narrativa.
6.10 Perspectiva Narrativa
A perspectiva narrativa, tambm chamada de ponto de vista, constitui um dos
aspectos mais complexos da configurao narrativa e um dos mais visados por reflexes
tericas82. Esta problemtica deve-se ao fato de que toda narrativa aberta a uma infinidade
de possibilidades de leitura. Allot confirma este pensamento: A casa da fico tem, em suma,
80 Cf. HAMON,Philippe. Le personnel du roman: Le systme des personnages dans les Rougon-Macquart d'mile Zola. Genve: Droz,1983, 20. 81 HARVEY,William John. Character and the novel. London: Chatto and Windus, 1970, 52-55. 82 REIS, Carlos LOPES, Ana Cristina. Dicionrio de teoria da narrativa, 278.
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no uma janela, mas um milho, quer dizer, um nmero incalculvel de possveis janelas;
cada uma delas foi penetrada, ou pode s-lo, na sua vasta fachada, pela necessidade da viso
individual e pela presso da vontade individual83. Embora a narrativa seja aberta a um
nmero incalculvel de possibilidades de interpretaes, h em seu interior a presena do
narrador que condiciona o texto a determinadas perspectivas.
Neste sentido, possvel encontrar no texto eixos centrais, os quais so como
smbolos. Ou seja, abertos a diversas releituras, porm fechados a interpretaes que no
condizem com o universo da narrativa.
7. Concluso
O texto um todo significante, ou seja, o sentido de um texto no est em trechos
isolados como frases ou pargrafos. A mensagem que o destinador escreve ao seu destinatrio
est na totalidade do escrito. Uma vez que o texto foi escrito, torna-se independente de seu
autor real e de seu leitor real. Essa independncia do texto faz com que seja aberto a uma
infinidade de releituras. Porm, o texto portador de um sentido transfrsico e simblico que
delimita as possibilidades de leitura. Outro elemento essencial do texto, que delimita seu
sentido, sua estrutura.
A estrutura de um texto permite sua logicidade e entendimento. Alm disso,
fornece a compreenso de sua forma e de seu gnero literrio. O texto pode possuir uma
qualidade interna que o modela, dando-lhe a forma de narrativa. Esta qualidade a
narratividade.
O conceito de narratividade pode ser compreendido como o princpio organizador
de todo e qualquer discurso. Por narratividade entende-se, tambm, uma forma organizada de
se contar uma histria. Essa maneira de contar uma histria pode ser de forma oral ou escrita.
A narratividade uma propriedade presente no texto que produz a narrativa.
Existem diversos tipos de narrativa. A pesquisa limitou-se narrativa literria. A
narrativa literria possui alguns parmetros que lhe so prprios: a exposio de uma situao
inicial, na qual esto envolvidos personagens em um determinado tempo e espao; a
complicao (n) a ser resolvida; a resoluo da complicao (desenlace) e, por ltimo, a
avaliao que especifca as reaes mentais do personagem/narrador do episdio.
83 ALLOTT, Miriam. Los novelistas y la novela. Barcelona: Seix Barral, 1966, 169.
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Esses parmetros que estruturam uma narrativa literria se manifestam tanto nas
narrativas ficcionais quanto nas histricas. A primeira est ligada ideia de uma narrao
baseada em uma histria imaginria, enquanto a segunda est ligada a uma narrao de carter
cientfico. As narrativas bblicas possuem elementos ficcionais e histricos. Esta constatao
deve-se ao fato de que os narradores bblicos interpretam os acontecimentos luz da teologia.
A interpretao luz da teologia permite a percepo de duas caractersticas
prprias das narrativas bblicas: o primado da ao e a centralidade do personagem Deus. Por
primado da ao, entende-se a postura do narrador em privilegiar a ao em seus relatos mais
do que a descrio. Por isso, ao escrever, o narrador bblico privilegia a apresentao de
discusses, aes, decises e dilogos. Pouco se interessa pelos aspectos psicolgicos dos
personagens (sentimentos, pensamentos, conflitos interiores etc.). O narrador, tambm, pouco
se interessa pelos detalhes (decorao das casas, detalhes da natureza, animais, pelos adjetivos
em geral etc.). Enfim, todos os recursos utilizados por ele encontram-se a servio da ao.
Sobretudo, para enfatizar a ao do personagem Deus.
As narrativas bblicas contam sobre Deus. Ou seja, ele um personagem que
aparece em terceira pessoa do singular. Neste sentido, so os acontecimentos que o nomeiam.
Os acontecimentos revelam Deus como o principal atuante da histria. Ele o Deus de
Abrao, Isaac e Jac; liberta o povo da escravido do Egito; conquista a terra de Cana;
suscita o rei Davi e os profetas; na fidelidade, abenoa o povo, na infidelidade, o corrige, pois
foi ele quem libertou o povo da escravido. Os acontecimentos revelam quem Deus e como
atua na histria. Portanto, embora presente em terceira pessoa, o personagem Deus o
principal protagonista das narrativas. Porm, nem sempre aparece de forma clara e explcita.
Muitas vezes sua atuao percebida, somente, atravs, de uma leitura atenta ao texto. A
anlise narrativa um recurso que permite essa leitura.
A anlise narrativa fruto da narratologia. A narratologia uma rea de reflexo
do tipo terico-metodolgica autnoma, centrada na narrativa como modo de representao
literria e no-literria. Alm disso, analisa os textos narrativos atravs da teoria semitica. A
narratologia concebe a narrativa de forma orgnica. Procura descrever, de forma sistemtica,
os cdigos que estruturam a narrativa.
A exegese bblica serve-se de todo o aparato dado pela narratologia para analisar
as narrativas bblicas atravs da anlise narrativa. A anlise narrativa uma das leituras ditas
pragmticas que se aplicam a procurar o efeito do texto sobre o leitor. Na anlise narrativa,
toda leitura se faz a partir do questionamento feito ao texto. Encara o texto como um processo
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de comunicao entre autor e leitor. O presente captulo no buscou apresentar todos os
conceitos fundamentais da narratologia. O objetivo foi o de compreender os conceitos
fundamentais que podem ser aplicados em At 1,1-2,41.
Os conceitos fundamentais, aplicveis a At 1,1-2,41 so: o autor real (somente
como entidade histrica que compe a narrativa, porm, no buscado pela anlise narrativa),
o autor implcito (a imagem implcita de um autor manifestada no texto; o autor implcito ,
tambm, o sujeito da estratgia narrativa), o narrador (voz que conta a histria e que guia o
leitor na narrativa), a relao entre narrador e narratrio (aquele que toma conhecimento da
histria atravs da leitura e participa de sua interpretao), leitor real (leitor emprico do texto,
seu primeiro destinatrio, trata-se de uma entidade no buscada pela anlise narrativa), leitor
implcito ( uma imagem abstrata de leitor que o narrador infunde na narrativa), intriga ou
enredo (estrutura unificadora que liga as diversas peripcias da narrativa e as organiza em
uma histria contnua), personagem (eixo em torno do qual gira a intriga), redundncia (as
repeties presentes no texto, tanto de conceitos quanto de estruturas semelhantes; so
necessrias para a inteligibilidade e a coerncia textual), perspectiva narrativa (eixos em torno
dos quais o autor implcito construiu sua mensagem em vista do efeito perlocucionrio84).
O primeiro captulo teve como objetivo fornecer todos os pressupostos tericos
necessrios para a compreenso de At 1,1-2,41 como narrativa. A aplicao deste
embasamento terico na percope escolhida ser feita no prximo captulo.
84 Cf. VELASCO, Marina. tica do discurso: Apel ou Haberbas?. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2001, 84.
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CAPTULO 2
Anlise narrativa do personagem Deus em At 1,1-2,13
Os pressupostos tericos analisados no primeiro captulo sero aplicados tendo
como base as perguntas essenciais feitas pela anlise narrativa ao texto. Contudo, a
centralidade desta pesquisa volta-se, exclusivamente, compreenso do personagem Deus,
segundo a sequncia de At 1,1-2,41. Conforme se verificar no estudo da macroestrutura dos
Atos dos Apstolos, At 1,1-2,41 composto por uma narrativa mista, ou seja, esta sequncia
constitui-se por uma narrao e por um discurso. Por esta razo, o segundo captulo se
dedicar a analisar o personagem Deus na parte narrativa da sequncia, At 1,1-2,13, enquanto
o terceiro captulo voltar-se- para a anlise do personagem Deus no discurso petrino de At
2,14-41.
O primeiro passo para a compreenso de um texto narrativo ter presente a intriga
por inteiro. Ou seja, o narrador, em sua estratgia narrativa, cria uma histria formada por
diversas partes entrelaadas. Cada parte independente e, ao mesmo tempo, dependente de
todas as outras, pois o sentido pleno s pode ser compreendido em sua ligao com as demais.
O conjunto das diversas partes de um texto chamado de macroestrutura. Portanto, a primeira
pergunta que se deve fazer : Como se apresenta a macroestrutura dos Atos?
A observao da macroestrutura dos Atos dos Apstolos, segundo os critrios
oriundos da narratologia, permitir uma viso mais ampla de At 1,1-2,41, pois esta sequncia
ser analisada em sua ligao com a globalidade da narrativa dos Atos dos Apstolos. Para
isto, necessrio interrogar-se pelo modo como o narrador delimitou a primeira sequncia.
Portanto, a segunda pergunta a ser feita ser: Como o narrador delimitou At 1,1-2,41?
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A anlise narrativa serve-se de quatro parmetros (tempo, lugar, personagens e
tema) para perceber como o narrador delimita, no interior das macronarrativas, as sequncias.
Aps verificar como o narrador apresenta esses parmetros em At 1,1-2-41, possvel
questionar esta sequncia. O emprego dos quatro parmetros permitir estabelecer o incio e o
trmino da primeira sequncia dos Atos dos Apstolos e a percepo de seus fios condutores.
O terceiro passo consistir em analisar os fios condutores da sequncia. Tendo-os
presente, possvel questionar como o narrador estruturou a intriga. Os fios condutores que
estruturam At 1,1-2,41 so quatro: a promessa do Pai (1,1-11), a espera da promessa pelos
discpulos (1,12-26), a realizao da promessa (2,1-13) e o sentido da promessa (2,14-41). Por
ser um discurso, o sentido da promessa (2,14-41) ser analisado no captulo trs.
O narrador cria a intriga ao redor do tema do envio do Esprito Santo por Deus. A
anlise de cada parte da intriga demonstra que Deus seu principal personagem, embora no
aparea de forma explcita. Todos os demais personagens dependem dele e esto relacionados
com ele.
Aps estudar as diversas partes da sequncia, deve-se perguntar: Como o narrador
apresenta o personagem Deus em At 1,1-2,13? A resposta a esta questo estar na concluso
deste captulo.
1. A macroestrutura dos Atos dos Apstolos
O livro dos Atos dos Apstolos uma macroestrutura narrativa. uma narrao
composta por diversas sequncias. Para compreender At 1,1-2,41 como estrutura completa,
deve-se ter presente a coerncia contida na macroestrutura do livro.
O conceito terico de macroestrutura foi introduzido por Dijk para descrever a
estrutura semntica global de um texto. Segundo ele, a macroestrutura de um texto uma
representao abstrata de sua estrutura global85. Essa representao abstrata corresponde ao
sentido global do texto. Esse sentido global resulta da integrao sucessiva de diversas
representaes semnticas parciais. Esta representao semntica equivale ao sentido dado
por um conjunto de frases, linearmente ordenadas no texto, as quais compem uma sequncia.
Uma macroestrutura forma-se por diversas sequncias. Por sequncia, entende-se uma intriga
episdica no interior de uma intriga global.
85 DIJK, Teun A. Van. Some aspects of text grammars. The Hague: Mouton, 1972, 55.
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Nos Atos dos Apstolos, o narrador serviu-se, por diversas vezes, de sumrios
para delimitar e unir as sequncias. O narrador organizou a macroestrutura dos Atos dos
Apstolos da seguinte maneira:
Classificao Estratgia do narrador
Sequncia A narrao (1,1-2,13) DISCURSO (2,14-40) narrao (v. 41);
SUMRIO 2,42-47;
Sequncia B narrao (3,1-11) DISCURSO (3,12-26) narrao (4,1-7)
DISCURSO (4,8-13) narrao (4,1-31);
SUMRIO 4,32-37;
Sequncia C narrao (5,1-11);
SUMRIO 5,12-16;
Sequncia D narrao (5,17-28) DISCURSO (5,29-33) narrao (5,34-42);
SUMRIO 6,1-7;
Sequncia E narrao (6,8-7,1) DISCURSO (7,2-53) narrao (7,54-8,1);
SUMRIO 8,1-4;
Sequncia F narrao (8,5-9,30);
SUMRIO 9,31;
Sequncia G narrao (9,32-10,33) DISCURSO (10,34-43) narrao (10,44-
11,18);
SUMRIO 11,19-30;
Sequncia H narrao (12,1-24);
Sequncia I narrao (13,4-15) DISCURSO (13,16-41) narrao (13,42-14,28);
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Sequncia J narrao (15,1-6) DISCURSO (15,7-11) narrao (15,12)
DISCURSO (15,13-21) narrao (15,22-35);
Sequncia L narrao (15,36-16,4) SUMRIO (6,5) narrao (16,6-17,21)
DISCURSO (17,22-31) narrao (17,32-20,17) DISCURSO (20,18-
35) narrao (20,36-38);
Sequncia M narrao (21,1-22,5) DISCURSO (22,6-21) narrao (22,22-24,9)
DISCURSO (24,10-21) narrao (24,22-26,1a) DISCURSO (26,1b-
23) narrao (26,24-28,31).
A tabela ilustra como o narrador organizou a macroestrutura dos Atos dos
Apstolos. As sequncias, por diversas vezes, so unidas por um sumrio e possuem, tambm,
um discurso ou mais. Segundo Sternberg, o sumrio designa toda a forma de resumo da
histria, de tal modo que o tempo desta aparece reduzido, no discurso, a um lapso durativo
sensivelmente menor do que aquele que a sua ocorrncia exigiria. Segundo ele, o sumrio
um signo temporal do mbito da velocidade narrativa86. O sumrio , portanto, a busca do
narrador de, em poucas palavras, resumir uma fase histrica para destacar os acontecimentos
conexos a sua mensagem.
Com a presena dos sumrios e dos discursos pode-se afirmar que o narrador quis
apresentar ao leitor os primrdios da comunidade crist primitiva, porm, apresenta somente o
essencial desta fase. Prefere conduzir o leitor ao tema do testemunho e do ensinamento
apostlico, presente nos diversos discursos. O emprego do discurso e sua importncia, nos
Atos dos Apstolos, ser visto no captulo trs.
O estudo da macroestrutura da narrativa dos Atos auxilia no processo de
delimitao das sequncias que o formam.
86 Cf. STERNBERG, Meir. Expositional modes and temporal ordering in fiction. London: The Johns Hopkins University Press, 1978, 19-34.
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2. O texto e a delimitao da sequncia de At 1,1-2,41
O texto de At 1,1-2,41, que ser transcrito, corresponde traduo proposta pela
CNBB87. Seguir-se- a proposta de delimitao da sequncia, feita seguindo os ditames dos
quatro parmetros propostos pela anlise narrativa.
2.1 O texto
Atos 1,1-26
1. Em minha primeira narrao, Tefilo, contei toda a seqncia das aes e dos ensinamentos de Jesus, 2. desde o princpio at o dia em que, depois de ter dado pelo Esprito Santo suas instrues aos apstolos que escolhera, foi arrebatado (ao cu). 3. E a eles se manifestou vivo depois de sua Paixo, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas do Reino de Deus. 4. E comendo com eles, ordenou-lhes que no se afastassem de Jerusalm, mas que esperassem o cumprimento da promessa de seu Pai, que ouvistes, disse ele, da minha boca; 5. porque Joo batizou na gua, mas vs sereis batizados no Esprito Santo daqui h poucos dias. 6. Assim reunidos, eles o interrogavam: Senhor, porventura agora que ides instaurar o reino de Israel? 7. Respondeu-lhes ele: No vos pertence a vs saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou em seu poder, 8. mas descer sobre vs o Esprito Santo e vos dar fora; e sereis minhas testemunhas em Jerusalm, em toda a Judia e Samaria e at os confins do mundo. 9. Dizendo isso elevou-se da (terra) vista deles e uma nuvem o ocultou aos seus olhos. 10. Enquanto o acompanhavam com seus olhares, vendo-o afastar-se para o cu, eis que lhes apareceram dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: 11. Homens da Galilia, por que ficais a a olhar para o cu? Esse Jesus que acaba de vos ser arrebatado para o cu voltar do mesmo modo que o vistes subir para o cu. 12. Voltaram eles ento para Jerusalm do monte chamado das Oliveiras, que fica perto de Jerusalm, distante uma jornada de sbado. 13. Tendo entrado no cenculo, subiram ao quarto de cima, onde costumavam permanecer. Eram eles: Pedro e Joo, Tiago, Andr, Filipe, Tom, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simo, o Zelador, e Judas, irmo de Tiago. 14. Todos eles perseveravam unanimemente na orao, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, me de Jesus, e os irmos dele. 15. Num daqueles dias, levantou-se Pedro no meio de seus irmos, na assemblia reunida que constava de umas cento e vinte pessoas, e disse: 16. Irmos, convinha que se cumprisse o que o Esprito Santo predisse na escritura pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam Jesus. 17. Ele era um dos nossos e teve parte no nosso ministrio. 18. Este homem adquirira um campo com o salrio de seu crime. Depois, tombando para a frente, arrebentou-se pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram. 19. (Tornou-se este fato conhecido dos habitantes de Jerusalm, de modo que aquele campo foi chamado na lngua deles Hacldama, isto , Campo de Sangue.) 20. Pois est escrito no livro dos Salmos: Fique deserta a sua habitao, e no haja quem
87 CONFERNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Bblia Sagrada. Traduo da CNBB com introduo e notas. Braslia: CNBB, [s.d.].
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nela habite; e ainda mais: Que outro receba o seu cargo (Sl 68,26; 108,8). 21. Convm que destes homens que tm estado em nossa companhia todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre ns, 22. a comear do batismo de Joo at o dia em que do nosso meio foi arrebatado, um deles se torne conosco testemunha de sua Ressurreio. 23. Propuseram dois: Jos, chamado Barsabs, que tinha por sobrenome Justo, e Matias. 24. E oraram nestes termos: Senhor, que conheces os coraes de todos, mostra-nos qual destes dois escolheste 25. para tomar neste ministrio e apostolado o lugar de Judas que se transviou, para ir para o seu prprio lugar. 26. Deitaram sorte e caiu a sorte em Matias, que foi incorporado aos onze apstolos.
Atos 2,1-41
1. Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. 2. De repente, veio do cu um rudo, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. 3. Apareceu-lhes ento uma espcie de lnguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. 4. Ficaram todos cheios do Esprito Santo e comearam a falar em lnguas, conforme o Esprito Santo lhes concedia que falassem. 5. Achavam-se ento em Jerusalm judeus piedosos de todas as naes que h debaixo do cu. 6. Ouvindo aquele rudo, reuniu-se muita gente e maravilhava-se de que cada um os ouvia falar na sua prpria lngua. 7. Profundamente impressionados, manifestavam a sua admirao: No so, porventura, galileus todos estes que falam? 8. Como ento todos ns os ouvimos falar, cada um em nossa prpria lngua materna? 9. Pa
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