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7/29/2019 Paper - Rangel, Victor Cesar Torres de Mello Rangel SPG 18 - ANPOCS 2013
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37 Encontro Anual da ANPOCS
SPG 18: Prticas das Instituies do Sistema de Segurana
Pblica e de Justia Criminal
A invisibilidade dos conflitos religiosos e as formas de administrao de
conflitos pelos mediadores em um Juizado Especial Criminal do
municpio de So GonaloRJ
Victor Cesar Torres de Mello Rangel
Doutorando em Antropologia pelo PPGA/UFF
Pesquisador do NUFEP/UFF e do INCT/InEAC
Email: vctmrangel@id.uff.br
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Este paper foi escrito a partir de minha dissertao de mestrado intitulada
Nem Tudo medivel: a invisibilidade religiosa e as formas de administrao de
conflitos (mediao e conciliao) no Rio de Janeiro. Na dissertao, procurei analisar
quais os valores, estratgias e cdigos de conduta empregados por conciliadores - em um
Juizado Especial Criminal do municpio do Rio de Janeiro (JECrim) - e mediadores - em
um JECrim do municpio de So Gonalo, localizado na regio metropolitana do Estado
do Rio de Janeiro - na administrao dos casos de intolerncia religiosa. Neste presente
trabalho direciono o olhar para as prticas de administrao de conflitos dos mediadores
em relao aos casos que envolvem motivaes religiosas elencadas pelaspartes 1.
importe frisar de a categoria intolerncia religiosa utilizada nesse trabalho
uma categoria nativa, criada pela Comisso de Combate a Intolerncia Religiosa 2 como
uma bandeira na luta pela criminalizao desses casos.
Tambm importante dizer que os casos envolvendo preconceito ou
discriminao religiosa possui uma lei especfica, a Lei 7716/89, conhecida como Lei
Ca, que prev de dois a cinco anos de recluso para esses crimes e o encaminhamento
para as Varas Criminais. Entretanto, em muitos desses casos o contedo religioso das
ofensas desconsiderado na hora do Registro de Ocorrncia realizado pela delegacia e
apenas o resultado desses conflitos na forma de ameaa, injria, agresso fsica leve,
entre outros, so considerados. Logo, muitos desses casos so encaminhados aos
Juizados Especiais Criminais, responsveis por atenderem crimes com penas previstas de
at dois anos de recluso classificados pelo Direito como casos de menor potencial
ofensivo.
Os procedimentos nos Juizados Especiais Criminais
1 Assupostas vtimas e supostos autores do fato (acusados) so chamados, pelos operadores do Direito, departes.2 A Comisso de Combate Intolerncia Religiosa - CCIR foi criada em 2008 na cidade do Rio de Janeiroa partir de diversos casos envolvendo agresses e ameaas aos praticantes das religies de matriz afro-
brasileiras. A comisso foi criada inicialmente por religiosos da Umbanda e do Candombl, no possuindofins lucrativos. Tem por objetivo denunciar crimes contra os praticantes das religies de matrizes afro-
brasileiras, invisibilizados no sistema de justia criminal. Aps algum tempo, outros segmentos religiososse juntaram ao grupo, que hoje formado por umbandistas, candomblecistas, espritas, judeus, catlicos,muulmanos, mals, bahs, evanglicos, hare krishnas, budistas, ciganos, wiccanos, seguidores do santo
daime, presbiterianos, ateus e agnsticos, alm de membros do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro -TJRJ, o Ministrio Pblico e a Polcia Civil. Para mais informaes: http://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrjAcessado em 15/05/2013.
http://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrjhttp://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrjhttp://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrjhttp://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrjhttp://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrj -
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O primeiro contato entre o reclamante e o reclamado 3 nos Juizados Especiais
Criminais acontece na audincia de conciliao, que tambm chamada de audincia
preliminar. Aps o registro de ocorrncia na delegacia pela suposta vtima ou pela
autoridade policial competente 4, e o envio deste ao JECrim, um funcionrio do cartrio
marca o dia e horrio da audincia de acordo com a disponibilidade do rgo.
O objetivo da audincia de conciliao nos casos envolvendo aes pblicas
condicionadas representaoquando algum entra com uma ao contra outrem
que o conciliador tente ao mximo que asuposta vtima desista do processo. Isto se pode
dar de trs maneiras: 1) pela desistncia da suposta vtimaem continuar com o feito-
Estas desistncias podem ser explicadas por inmeros motivos, os argumentos mais
comuns que presenciei foram: a desistncia da suposta vtima pelas consecutivas
ausncias do autor do fato s audincias; arrependimento em ter registrado o fato; o uso
do registro como uma forma de dar apenas um susto na outra parte; a orientao de
alguns advogados de que o tempo gasto indo as audincias no vale a pena frente multa
pecuniria que o autor do fato ir receber. 2) pela conciliao entre as partes - A
conciliao mais comum entre as partes concretizada a partir do pedido de desculpas
do autor do fato vtima ou desculpas mtuas. Existem outros tipos de retratao,
como a publicao de notas em jornais reconhecendo o erro do autor do fato, por
exemplo. S vi este tipo de retratao num caso tipificado como calnia envolvendo um
patro e um empregado. 3) ou pelo acordo civil -O acordo civil tambm pode ser feito
de inmeras formas, os mais comuns que presenciei foram: o pagamento de algum valor
em dinheiro do autor do fato vtima para tentar recompor algum prejuzo causado; o
compromisso de que o autor do fato no se aproxime mais da vtima. comum nesses
acordos serem tambm discutidas questes relativas ao Juizado Especial Cvel, pois
permitido que neste espao fosse resolvido tanto a questo criminal como questes
financeiras.
Nos casos em que as partes possuam algum vnculo geogrfico ou sentimental
(como no caso de vizinhos e parentes), durante a audincia de conciliao comunicado
3Aspartes ousupostas vtimas esupostos agressores,tambm so chamadas de reclamante e reclamado.
Ao analisar semanticamente essas palavras, podemos observar como opera a lgica da dualidade, tendo emvista que os atores presentes aparecerem como dois plos (vtima e autor do fato) opostos. A palavrareclamar, segundo o Novo Dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa, significa fazer impugnao ou
protesto (verbal ou por escrito); opor-se; reivindicar; exigir.4 O primeiro, no caso de aes condicionadas representao e o segundo, nos casos de aesincondicionadas representao. Explicarei esses termos a seguir.
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que o juiz entendeu as partes devem passar por sesses de mediaes. As dinmicas da
conciliao e da mediao so bem diferentes. Explicarei essas diferenas mais a frente.
Caso no haja nenhum tipo de entendimento na conciliao ou na mediao,
normalmente marcada uma nova audincia - em alguns casos aberto um prazo para a
juntada 5 de documentos relativos ao processo. Nessa nova audincia tentada
novamente a conciliao. Caso no a conciliao no se realize, oferecido ao suposto
autor do fato o benefcio da transao penal - cada pessoa tem direito de utilizar esse
beneficio a cada cinco anos -, que consiste no pagamento de um valor estipulado pelo
Ministrio Pblico a ser doado a favor de uma instituio de caridade ou a prestao de
servio comunitrio por algum tempo delimitado. Se o supostoautor do fato aceitar, o
processo extinto, independente se asuposta vtima concordar ou no. Caso no aceite, o
caso encaminhado ao juiz e ele quem decidir na audincia de instruo e julgamento,
fase posterior audincia preliminar.
Nos casos de ao pblica incondicionada representao quando o Estado
entra com uma ao contra um indivduo 6 - como no h a possibilidade de desistncia,
acordo civil, conciliao nem de mediao - oferecido ao suposto autor do fato o
benefcio da transao penal 7 logo na primeira audincia. Este encaminhado ao
defensor, no caso de no possuir um patrono 8, que o orienta, na maioria dos casos, a
aceitar a multaconsiderada uma deciso bem mais sensata frente ao risco de sofrer uma
maior sano na audincia de instruo e julgamento com o juiz.
As diferenas entre a conciliao e a mediao
5 O prazo para ajuntada um perodo de tempo solicitado pelos advogados para que possam reunirdocumentos sobre o caso. Entre esses documentos, destaco os laudos periciais, lista das testemunhas aserem encaminhadas ao juiz, peties, entre outros.6 Os casos mais comuns no juizado pesquisado da cidade do Rio de janeiro so: Porte de Drogas paraConsumo Prprio, Contraveno (Jogo do Bicho, Bingos),Desobedincia,Desacato, entre outros.7 Em alguns casos envolvendo o uso de drogas para o consumo prprio, no era oferecido transao
penal, mas uma advertncia - o conciliador perguntava se o individuo era viciado em alguma substncia e,caso a resposta fosse negativa (como aconteceu em todos os casos que presenciei) era recomendado aos
conciliadores dar uma lio de moral no suposto autor do fato, que muitas das vezes prometia que no iriavoltar a fazer uso de tal substncia.8 Termo utilizado pela linguagem jurdica para se referir ao advogado representante daspartes envolvidas.
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Antes de comear a anlisar as audincias de mediao, importante ressaltar as
diferenas em relao s audincias de conciliao. Destaco alguns pontos a seguir.
1) O tempo das audincias de conciliao e mediao distinto. Na conciliao,
as audincias so marcadas de quinze em quinze minutos, o que demonstra sua
preocupao mais quantitativa do que qualitativa no tratamento dos conflitos. A curta
durao motivo de constantes reclamaes das partes, que chegam audincia
querendo falar sobre o ocorrido. Diferentemente, a audincia de mediao dura duas
horas ou mais, podendo ser realizado mais de uma sesso 9, de acordo com a necessidade
dos casos.
2) Outra diferena se refere ao perfil dos conciliadores e mediadores. Dos sete
conciliadores que tive contato em um JECrim da cidade do Rio de Janeiro, todos eram
estudantes ou bacharis em Direito. Na mediao, diferentemente, era apenas
recomendado que o mediador possusse formao superior (em qualquer rea). No
JECrim de So Gonalo, os mediadores eram psiclogos, assistentes sociais,
serventurios e (poucos) advogados. A maioria so funcionrios do prprio Frum.
3) importante ressaltar que as mudanas propostas pelos Juizados Especiais so
inspiradas no modelo jurdico americano da common law, que difere estrutural e
filosoficamente do modelo inquisitorial brasileiro, inscrito no sistema da civil law
(KANT DE LIMA: 2008; GARAPON: 2008). Deste modo, a conciliao e a mediao
so estranhas tradio jurdica brasileira, uma vez que nosso sistema de justia preserva
uma tradio inquisitorial, herana jurdica portuguesa. Ou seja, o sistema jurdico
brasileiro da civil law foi regido sob tica da dominao e controle do Estado sobre a
populao (AMORIM, KANT DE LIMA & BURGOS, 2003: 53). Diferentemente, na
tradio jurdica da common law o sistema jurdico se preocupa com os interesses
individuais dos envolvidos.
Entretanto, apesar da conciliao e mediao se posicionarem contra a lgica do
ltigiocaracterstica da nossa tradio jurdica da civil law (KANT DE LIMA: 2008) -,
a mediao surge como algo ainda mais distante do que os operadores do Direito julgam
ser, de fato, cabvel ao direito. Ou seja, o fato dos mediadores no se basearem no Termo
9Normalmente, a segunda sesso marcada quinze dias aps a primeira sesso.
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Circunstanciado de Ocorrncia TCO 10 ao guiarem a mediao, no se prendendo a
uma perspectiva normativa, faz com que a mediao seja vista por advogados e
conciliadores como algo, por assim dizer, fora do Direito. O conciliador se volta quase
que mecanicamente para o TCO, diferente da mediao onde, segundo uma mediadora,
o processo aqui no vale nada, o que vale o que falado e acordado pelas partes.
Sobretudo, pelo fato de que as provas e testemunhas, to valorizadas no meio jurdico,
no possuem qualquer validade nas audincias de mediao. Um advogado descreveu a
mediao como como uma terapia. A diferena que de graa. Um conciliador
tambm disse, quando perguntado sobre a diferena entre a conciliao e mediao, que
esse lance da mediao muito blblbl, coisa de psiclogo.
4) Tambm existem diferentes orientaes para o trato dos casos nesses dois
espaos. Na conciliao no h oportunidade para a discusso sobre as motivaes
referentes ao conflito, nem mesmo para qualquer outro dilogo entre as partes. A prpria
supervisora do JECrim que trabalhei na cidade do Rio de Janeiro orienta os conciliadores
a no entrar no mrito do conflito focando a audincia para o daqui para frente. J na
mediao buscado se achar, usando as palavras de uma mediadora, a raz do
desentendimento, ou seja, as motivaes iniciais para o surgimento do conflito.
interessante que logo aps de ser identificada a origem do conflito, os mediadores pedem
para que as partes esqueceam o que ocorreu e tentam solucionar o conflito a partir da
ideia do perdo, como veremos a seguir.
Os Mediadores e o perdo
Dos quinze mediadores que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente de
um total de dezoito mediadores todos trabalham como serventurios, psiclogos ou
assistentes sociais no juizado e so cedidos de suas atividades para atuarem como
mediadores uma vez por semana. Isso pode ser explicado a partir de algumas Resolues
do Conselho Nacional de Justia (CNJ). A Resoluo n19/19 que dispe sobre a
regulamentao da atividade de Mediao no mbito do Poder Judicirio do Estado do
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O Termo Circunstanciado de Ocorrncia TCO o documento especfico lavrado pelo delegado quandose trata de enquadrar o crime na Lei 9.099/95. Neste documento consta um pequeno relato policial sobre ofato ocorrido. Os mediadores, diferente dos conciliadores, no tem acesso a esse documento.
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Rio de Janeiro expe em seu Pargrafo 5 que o mediador pode ganhar pontos em
provas de ttulos para concursos realizados pelo judicirio.
5 O exerccio das funes de mediadorcertificado, por perodo contnuo superior a um ano,constitui relevante servio pblico a ser anotado nosassentamentos funcionais de servidor, alm de ttulo emconcurso pblico realizado no mbito do Poder Judiciriodo Estado, inclusive no de provas e ttulos para ingresso namagistratura de carreira estadual e critrio de desempatenesse, ou em qualquer concurso realizado por essePoder. Quando exercida por bacharel em direito, tambmconsiderada atividade jurdica para os fins de que cuida o
artigo 58, da Resoluo n 75, de 12 de maio de 2009, doConselho Nacional de Justia, desde que exercida por, nomnimo 16 (dezesseis) horas mensais, no perodo de 1(hum) ano [grifos meus].
O Artigo 1 do Ato Executivo n 3053/10 11resolve que o Servidor Mediador
cumprir expediente, trs dias ao ms, no Centro de Mediao a que esteja vinculado.
Por isso que a maioria dos servidores do Juizado de So Gonalo trabalha tambm como
mediadores. Um deles me disse que bom trabalhar uma vez por semana no Centro de
Mediao porque um trabalho mais tranquilo que sua atividade como serventurio noJuizado e porque as mediaes duram em mdia duas horas, desde modo ele consegue ir
embora mais cedo nesse dia.
O perfil das pessoas que trabalham como mediador parece ser um importante
fator de distino em relao aos que trabalham como conciliadores. Com isso, os
conciliadores, por serem advogados ou estudantes de direito se aproximam e se
identificam mais com o mundo do direito (KANT DE LIMA: 2008). Os mediadores
so funcionrios pblicos, de diversas reas, e muitos deles demonstram pouco
conhecimento sobre o Direito. Alm de terem formao variada, o fato do mediador no
ter acesso ao processo, diferente do conciliador, faz com que no precise entrar em
debate com advogados tendo que recorrer a argumentos jurdicos para legitimarem seu
discurso. Nas audincias de mediao que assisti sempre era reforado o fato de que eles
so proibidos de consultarem o processo e que provas e testemunhas, to valorizadas no
11http://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce77-4070-a409-e1c8714b994cAcessado em:20/02/2013.
http://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce77-4070-a409-e1c8714b994chttp://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce77-4070-a409-e1c8714b994chttp://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce77-4070-a409-e1c8714b994chttp://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce77-4070-a409-e1c8714b994c -
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meio jurdico, no possuem qualquer validade naquele espao.
Dos quinze mediadores que conheci durante o trabalho no Juizado, tive,
particularmente, maior contato com trs mediadores 12. Um serventurio, Joel, que um
dos poucos mediadores formado em Direito, uma assistente social, Daniela, e uma
psicloga, Joana, sendo todos funcionrios do Frum da comarca de So Gonalo.
Joel o mediador que mais realizou audincias de mediao comigo durante o
tempo que estive trabalhando no juizado. Formado em direito, passou para o concurso de
seventurio do Frum de So Gonalo h muitos anos e estava quase se aposentando. Ele
me disse certa vez que pensou em tentar concurso pblico para delegado, mas quedesistiu da ideia porque acabou se acomodando nesse emprego. Joel era um dos
funcionrios mais antigos do juizado, trabalhou com muita gente e em muitos setores no
Judicirio da cidade. Apesar de no atuar como advogado, ele tem um grande
conhecimento sobre a prtica jurdica. Pude notar isso em suas conversas com os
advogados das partes durante as vrias mediaes que realizei com ele. Joel tambm
trabalhou alguns anos como conciliador antes de ir para a mediao. Disse que ficou mais
tempo que precisava para obter a certificao, pois, na poca, o juizado estava muito
escasso de conciliadores. As mediaes que realizei com ele, quase sempre demoravam,
em mdia, menos de uma hora e meia. Joel me disse, certa vez, que o segredo da
mediao, era identificar com asuposta vtima o que causou o conflito e levar isso para o
AF. Em seguida, tu v qual a da vtima, se ela se mostrar flexvel certo que vai ter
acordo. Ele critica os mediadores que demoram muito na mediao, pois, a seu ver,
no conseguimos resolver todos os problemas gerados em anos (...) temos que ir no foco
especfico que gerou o processo. Joel considera que mediao no terapia.
Daniela tem menos de trinta anos e trabalha como assistente social no Frum de
So Gonalo h cerca de trs anos. Formou-se em servio social e logo em seguida foi
aprovada nesse concurso. Daniela, diferente de Joel, sempre escuta as partes sem
interromp-las. Ela diz que importante elas desabafarem sobre o ocorrido e tambm
importante [os mediadores] escutar tudo o que elas [aspartes] trazem para c. Joel,
certa vez a criticou por no ter um pulso firme, ele me contou que quase saiu briga em
12Os trs nomes foram modificados.
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uma audincia de mediao porque ela no consegue mostrar autoridade para aspartes.
Daniela, nos casos envolvendo conflitos entre parentes, sempre demonstra se preocupar
com a famlia. Certa vez me disse que em So Gonalo as famlias so muito
desestruturadas, pai que no fala com filho e irmo que mata irmo. Perguntei se ela
sabia o porqu disso? Ela falou que a cidade muito pobre e as famlias
desestruturadas. Por isso ela diz que sempre bom ressaltar a importncia da famlia
nas audincias, pois considera que isso toca o sentimental das pessoas e ajuda uma
perdoara outra.
Joana psicloga, aparenta ter menos de quarenta anos e trabalha no Frum da
cidade h quase uma dcada. Joana, como Daniela, sempre escuta as partes sem
interromp-las, entretanto, tem uma postura mais austera com as partes quando no
concorda com elas. Em algumas audincias vi Joana criticar a postura de alguma das
partes, como uma vez em que no concordou com a postura de umsuposto autor do fato
dizendo que ele tinha que respeitar seu tio por ser mais velho e ser seu familiar. Joana
se preocupava muito com os detalhes do caso, pois, em suas palavras, muitas dessas
pessoas no tem muita instruo e no conseguem se comunicar de forma clara. Junto a
isso, Joana considerava que tem assuntos que as partes tm vergonha de falar oucoisas que as partes no tinham pensado antes e s comearam a pensar depois de ouvir
o relato do outro e o relato delas mesmas. Joana me disse tambm que existem muitos
motivos ocultos para o conflito e o mediador tem que pescar esses fatos.
Apesar dos diferentes perfis, os mediadores sempre buscam encontrar o que
motivou o conflito. uma espcie de flash back, uma volta momentnea ao passado
buscando a gnese do conflito. interessante que logo aps de ser identificada a origem
desse conflito - depois de as partes ficarem muito tempo expondo seus argumentos e
sentimentos, lembrando-se de situaes ocorridas no passado - os mediadores pedem
para que as partesesqueceam o que ocorreu e pensem o daqui para frente . Parece
algo meio contraditrio. Trazer tona todo o histrico dos conflitos e no final da
audincia, como disse um mediador, falar: O que aconteceu at agora no d para voltar
no tempo. E agora? Como vai ser agora em diante?. As partes foram escutadas, falaram,
emocionaram-se, trouxeram suas representaes sobre o conflito, elencaram os motivos
que causaram o processo e, aps tudo isso, devem esquecer o que ocorreu e pensar no
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agora em diante.
Quando percebi que sempre era realizado esseflash backnas audincias e depois,
como num passe de mgica, o mediador pedia que a suposta vtima esquecesse tudo, fui
perguntar aos mediadores no sentido de entender essa dinmica. Joel me disse que
resolvemos o que est no processo. Perguntei como, j que os mediadores no tem
acesso ao processo. Ele me disse que aspartesrelatam o processo para os mediadores
e que estes teriam que fazer essa retrospectiva para identificar o problema. Perguntei
por que os mediadores perguntam como vai ser agora em diante e pedem aspartespara
esquecer o ocorrido. Joel respondeu que a mediao no consegue resolver tudo, mas
bom no sentido das partes falarem e tentarmos resolver o problema pontual do
processo. Ou seja, possvel perceber que Joel, por ser advogado e ter sido conciliador
muito tempo, possui uma viso instrumentalizada acerca da resoluo de conflitos, se
preocupando mais com aforma,ou seja, com o processo, com a questo pontual e no
com o contedo trazido pelaspartes.
Conversei tambm com uma psicloga, Joana, e com uma assistente social, Aline,
que me deram respostas parecidas. Joana disse que trazer os problemas tona faz bem
para as pessoas. Ela chama isso de choque de verdade, onde as partes falam sobre os
problemas e uma se coloca no lugar da outra. Joana diz que muitas vezes existe um
problema de comunicao e quando uma parte escuta a outra fica mais fcil entender o
porqu de tal atitude e assim uma desculpar a outra. Pergunto por que focar para o daqui
para frente? Ela diz que, depois de esclarecidos os fatos, uma tem que perdoar a outra,
pois o que est no passado j foi. Assim como Joana, Aline me disse que esse flash
back era bom para uma parte entenda a viso da outra e que no fim, aps as
explicaes, proposto que a vtimaperdoe o outro. Ela ainda me disse que a maioria
dos casos envolve familiares ou pessoas que convivem h muito tempo e por isso que
deveria haver o perdo: so pessoas que se conhecem h anos ou a vida toda, no so
desconhecidos e a funo do mediador uni-las novamente. Para isso, Aline considera
que os mediadores tm que relembrar os momentos bons que passaram juntos, relembrar
que so do mesmo sangue. Por fim, ela diz que muitas vezes so brigas bobas, o
mediador tem que estimular as pessoas aperdoarem.
Essa ideia do perdo, utilizada no sentido cristo, de remisso, de libertao,
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apareceu em alguns momentos durante a pesquisa. A primeira vez, durante o Curso de
Formao de Mediadores (requisito para o trabalho de mediador), e em outras vezes nas
mediaes no JECrim da cidade de So Gonalo. Lembro-me de uma audincia,
interrompida diversas vezes por discusses e lgrimas, envolvendo uma briga antiga
entre um pai e seu filho. O filho demonstrava muito rancor em relao ao pai. Uma
mediadora, Bruna, vendo que o filho no iria perdoar o pai, disse no final da audincia
que o perdo a maior virtude do homem e que se ele no conseguia perdoar o
prprio pai no ir conseguir perdoar mais ningum.
interessante observar que a mediadora fala em perdo, que interpretado no
sentido do arrependimento do suposto autor do fato e do esquecimento completo da
ofensa pela suposta vtima. Diferente da desculpa, que se relaciona com a idia de que
uma argumentao do suposto autor do fato considerada coerente pela suposta vtima
pode isentar osuposto autor do fato da culpa, portanto, tirar a culpa (des + culpa); ou da
superao, que se relaciona a uma questo de cura psicanaltica.
Os casos de intolerncia religiosa na mediaoA seguir descrevo trs casos que demonstram como os mediadores conduziram as
audincias de mediao.
1 Caso - Tipificao: Ameaa
O caso envolvia uma briga de vizinhos, onde uma vizinha entrou com o processo
contra dois vizinhos que estavam ameaando seu filho. possvel observar que os
conflitos iam alm dessa ameaa, apresentado um contedo discursivo que demonstra
certa discriminao daspartes em relao s suas diferentes religies.
Ao iniciar a audincia, sala de audincias estava composta pelos mediadores Jlio
e Daniela, aspartes, Ana (suposta vtima), Anderson e Magali (suposto autor do fato), e
eu, que estava atuando como observador 13. Aps as partes entrarem na sala, os dois
mediadores explicaram os procedimentos e aspartes aceitaram participar. Os mediadores
decidiram, como de praxe, comear audincia de mediao com uma sesso individual
13 Antes de comear a mediar, os iniciantes devem assistir algumas sesses de mediao como
observadores. Ao final da sesso, devem preencher um formulrio que relatando como foi a atuao dosmediadores.
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com asuposta vtima.
Sesso individual com asupostavtima, Ana:
A suposta vtima, Ana, entrou com a ao alegando que seufilho, Lus, que possui problemas mentais, estava sendoameaado pelos vizinhos. Segundo Ana, a motivao doconflito se refere inveja desses vizinhos por ela tercomprado o terreno onde construiu sua casa e este ter umtamanho superior em relao aos demais terrenos da rua.Por ser uma mulher simples e ter comprado o terrenocom muito custo construindo uma casa muito simples,seus vizinhos no conseguem a engolir. Como Lus nervoso, ele s vezes no mede o que fala. Ou seja, pelainveja do seu grande terreno, por Ana ser muito simples,
por sua casa destoar das outras da rua e pelo fato de seufilho, Lus, ser nervoso e no medir o que fala, muitosvizinhos da rua no a aceitam, considerando-a umainvasora. [A fala dela foi bem confusa, parecia nervosa eum tanto descontrolada].
(Notas de Campo)
Sesso individual com o primeiro supostoAF, Anderson:
O primeiro vizinho, Anderson, alega que o filho da supostavtima, Lus, ofende constantemente os moradores da ruacom xingamentos e agresses, segundo Anderson, ele
[Lus] taca pedra em todo mundo que passa e ficasacudindo os badalos para as meninas. Anderson no vmotivo para o processo, pois, apesar do pouco dilogosempre os tratou com respeito. Tambm comenta que notem interesse no terreno e que possui muitos bens.Anderson comenta: Eu sou catlico, se Deus deu, ele quetem que tirar. Anderson, por fim, d a entender que Ana
possui problemas mentais como Lus, por isso os dois soagressivos assim.
(Notas de Campo)
Sesso individual com a segunda suposta autora do fato, Magali:A segunda vizinha, Magali, comenta que esta senhora[Ana] veio corrida de algum lugar e que inclusive tentou aajudar certo momento de dificuldade. Mas como ela arisca no conseguimos conviver bem. Magali disse queAna a ameaou dizendo que minha macumba bate palma.Em seguida, Magali comenta que da Pastoral e quetrabalha para a igreja: no carnaval nem vou rua. Magalidiz que ela que teria que entrar como vtima no processo.Magali comenta que quando cumprimenta Ana dizendo vaicom Deus, ela responde vai com o Diabo. Certo diadisse que a ameaou dizendo que jogaria terra de cemitrionela.
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(Notas de Campo)
Nesse momento a mediadora, Daniela, corta a fala de Magali e pergunta: l onde
vocs moram tm cemitrio? Magali respode que no. Daniela pergunta a Magali: voc
no disse que tem f?. Magali diz que sim. Daniela ento diz que Magali no deve ligar
para isso.
Segunda sesso individual com asupostavtima, Ana:
Ao voltar para a sala, Daniela pergunta para Ana qual suareligio. Ela responde em voz baixa, como queenvergonhada por isso: esprita, mas de santo! Emseguida diz que seus vizinhos no respeitam a religio dela.Segundo Ana, eles falaram tanto do meu Centro que eu
sa dele. Eu canto para os meus Orixs, mas no vou maispara o Centro. O outro mediador presente, Jlio, disse aMagali: voc no deve ligar para isso, esse negcio dereligio bobagem, temos que ver como vocs podemconviver melhor, e mudou de assunto.
(Notas de Campo)
Aps as conversas individuais, os dois mediadores chamaram as partes
novamente para a sala e resolveram marcar outra sesso aps 15 dias 14. Os mediadores
suspeitaram que a Ana tivesse algum problema mental e solicitaram uma avaliao
psicolgica. possvel observar nesse caso que a susposta vtima demonstra claramente sua
insatisfao em relao aos vizinhos no respeitarem sua identidade religiosa. Tambm
possvel notar na fala de Ana certo constrangimento em relao a como os mediadores
iriam v-la como uma praticante de uma religio de matriz afro-brasileira. Por fim,
tambm podemos ver que as duas partesreclamam de situaes que as ofenderam em
termos religiosos. Ana diz que eles reclamaram tanto do Centro que ela teve que sair.
Por outro lado, Magali ficou ofendida quando Ana ameaou-lhe jogar terra decemitrio. Apesar de todas essas demandas terem sido trazidos pelas partes como um
insulto, os mediadores no conseguiram enxergar - ou enxergaram e consideraram sem
importncia - que isso pudesse ser a motivao do desentendimento entre as partes. Pelo
contrrio, eles no deveriam ligar para isso, pois, na perspectiva do mediador, esse
negcio de religio bobagem.
14
No pude acompanhar o desfecho desse caso porque havia me inscrito, semanas antes, para umamediao que seria realizada na mesma semana em que essa foi remarcada. Nesse juizado, os mediadores eobservadores participam no mximo de uma audincia de mediao por semana.
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2 Caso - Tipificao: Injria
Esse caso, assim como o primeiro, envolvia uma briga de vizinhos. Uma vizinha
entrou com o processo contra dois vizinhos que constantemente a ofendiam. possvel
observar que os conflitos iam alm dessa injria reclamada pela suposta vtima, tendo
em vista haver outros processos, segundo fala da advogada de uma das partes. Na fala
das partes e tambm da advogada podemos perceber a manisfestao da intolerncia
religiosa em relao s diferentes religies mencionadas.
Ao iniciar a audincia, a sala estava composta pelos mediadores Joel e Joana, as
partes Andria (suposta vtima), Jomar e Geraldo (AFs), e eu, que estava atuando como
observador. Aps as partes entrarem na sala, os dois mediadores explicaram os
procedimentos e as partes, apesar da relutncia inicial de Andria em participar,
aceitaram aderir dinmica. Os mediadores decidiram, como de praxe, comear a
audincia de mediao com uma sesso individual com asuposta vtima.
Sesso individual com asuposta vtima, Andria:
Asuposta vtima, Andria, alega que dois vizinhos,Geraldo e Jomar, constantemente a ofendem. Como elesmoram no mesmo terreno e a janela da sala de Andria fica
posicionada em frente ao quintal dos vizinhos d para
escutar todos os xingamentos. Segundo Andria, osvizinhos gritam ofensas a meu respeito o dia todo. Falamque ela uma sapato endiabrada e que tem que ir igreja,no ficar importunando ele [nesse momento ela se refere aGeraldo]. Andria tambm reclama que os cachorros dosvizinhos latem muito e da sujeira do quintal. Alm disso,outra coisa que a incomoda a bateo do porto. Dizque o problema comeou quando tacaram uma cabea denego 15 nela. O que motivou esses problemas, segundoAndria, que a me de um dos AF, Geraldo, no aceitaque ela seja proprietria do terreno.
(Notas de Campo)
Como um dos AF, Jomar, tem um grave problema de audio, os mediadores
resolvem fazer uma nica sesso com os dois acusados.
Sesso com o primeiro e segundoAF, Jomar e Geraldo:
O primeiro AF, Jomar, alega que a Andria inventoutudo por no gostar da me do segundo AF, Geraldo. Emseguida, Jomar diz num tom de reprovao que Andriafrequenta centro de macumba, batuque. E que a me de
15Cabea de nego o nome popular de uma espcie de rojo feito de plvora prensada. Aps aceso opavio, ela explode em segundos.
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Geraldo evanglica,por isso no se do.(Notas de Campo)
Jomar quase no fala na audincia, por conta de seu problema auditivo. Os
mediadores, Joana e Joel, com dificuldade de entend-lo pedem para Geraldo expor o
caso.
O segundo AF, Geraldo, afirma logo ao entrar eutrabalho, vou para a Igreja, sou do bem. Diz que Andriano gosta da gente [se referindo a ele e Jomar] porqueminha me evanglica. Comenta que Andria damacumba. Em seguida acusa Andria de ter colocado umdiabo na porta da minha casa [no entendi o que ele quisdizer com isso, suponho que tenha feito um trabalho em
frente da sua casa]. (Notas de Campo)
Como estava atuando como observadorno podia falar com aspartes. Entretanto,
como estava sentado ao lado da advogada de Andria, aproveitei enquanto Andria
tomava um caf para conversar alguns instantes com sua advogada sobre o caso. A
advogada, Maria, me disse que a briga entre eles era antiga e que esse no era o
primeiro processo. Segundo Maria, o desentendimento comeou h anos quando a me
de Geraldo fazia culto at 1h da manh em casa. Como sua cliente era da umbanda,
Josefa [me de Geraldo] no a respeitava. Perguntei por que Josefa no estava includa
no processo. Maria me respondeu que havia outros em que ela estava, mas esse ela no
entrou. Perguntei de que se tratavam os outros processos. Maria disse que eram todos
parecidos, injria, ameaa..., alm de um sobre o terreno. Antes de recomear a
audincia, Maria disse isso no vai acabar nunca, a vizinha [Josefa] no acei ta ela
[Andria] por conta da religio.
Segunda sesso individual com asuposta vtima, Andria:
Andria, logo ao entrar, disse que no iria sairacordo. Segundo ela, j havia vrios processos e elescontinuam me desrespeitando. Inclusive j entrei com um
processo no cvel [JEC] para eles sarem de l. SegundoAndria, o terreno deles no tm documento. Amediadora Joana pergunta por que Andria acha que osvizinhos no gostam dela. Andria faz uma pausa e pensa
por alguns segundos. Depois diz que eles no a respeitampor ser de uma religio diferente da deles. Um dosmediadores, Joel, j impaciente sentindo que no iria sairnenhum acordo, pergunta se no havia algo que os vizinhos
pudessem fazer para que ela pudesse os perdoar. Andriaresponde que no. Joel ento termina a audincia.
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(Notas de Campo)
No houve acordo nessa mediao.
Depois de terminada a audincia Joel comenta ironicamente comigo: porra, o
cara surdo, deve colocar a msica alta pra caralho . Na viso de Joel (que o nico
advogado que atua como mediador e que trabalhou por muito tempo como conciliador
nesse JECrim) o problema a questo da propriedade e da ao cvel tendo em vista
esistir, conforme mencionado por Andria, outra ao movida em um Juizado Especial
Cvel JEC envolvendo uma disputa pelo terreno.
Logo a princpio, podemos observar que Jomar ao citar a religio de Andria a
refere como algo a ser reprovado pelos mediadores. Em sua concepo, o fato da me de
Geraldo e eles (ele e Geraldo) serem evanglicos poderia significar algo positivo na
avaliao do caso pelos mediadores e o fato de Andria ser uma praticante de uma
religio de matriz afro-brasileira, poderia soar como um defeito, em termos morais.
Geraldo tambm corrobora isso em sua fala quando diz que trabalha, vou para a Igreja,
sou do bem, ele elenca esses fatores como virtudes morais a serem explicitadas na
audincia. A prpria advogada de Andria comenta comigo e os mediadores tambm
escutaram esse relato que o problema era por conta da religio. Os mediadores
ignoram esse fato, alm de todas as outras falas nesse sentido, como o insulto suposta
vtima em ser chamada de sapato endiabrado e quando diz claramente que os AFs
no a respeitam por ser de uma religio diferente da deles. Os mediadores tambm no
conseguem perceber o contedo das ofensas quando Geraldo acusa Andria de ter
colocado um diabo em frente da sua casa. Joel, por fim, considera que o problema se
restringe a questo da propriedade e da ao cvel.
3 Caso - Tipificao: Injria
O terceiro caso, assim como o dois primeiros, tambm envolvia uma briga entre
vizinhos. Essa audincia de mediao foi presidida por mim e por outro mediador, Jlio.
Alm de ns, estavam as partes: Vilma (suposta vtima) e Elaine (AFs). No havia
advogados nem observadores. Como estava atuando como mediador, tentei fazer muitas
perguntas o que irritou meu colega mediador pelo fato dele sentir que no iria sair
nenhum acordo - sobre o fato ocorrido, direcionando o assunto para questes religiosas
com intuito de que aspartes relatassem como uma representa a religio da outra.
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Aps as partes entrarem na sala, explicamos os procedimentos e as partes
aceitaram aderir dinmica. Desta forma, eu e Jlio comeamos a audincia de mediao
com asuposta vtima.
Sesso individual com asupostavtima, Vilma:
A suposta vtima, Vilma, alegou que a AF, Elaine,foi at a frente da sua casa e fez inmeros xingamentos.Vilma relata que elas brigaram por conta do barulho: nossacasa muito perto da outra, ela faz barulho l, eu reclamo eno resolve. Vilma diz que, como resposta, ela amenta oseu som e ela me xinga na frente de todos os vizinhos.
Segundo Vilma, Elaine no tem um mnimo de educao.Em seguida, Vilma comea a desqualificar a vizinha: elaxinga o tempo todo, fuma igual uma chamin e sopra afumaa pro meu terreno [explica que existe um basculanteda sala da vizinha fica de frente para seu terreno]. Vilmadiz que sempre fica incomodada com barulho e cheiro, quesegundo ela, insuportvel, a reclamo e ela meofende....
(Notas de Campo)
Sesso individual com a suposta autora do fato, Elaine
Elaine alega que teve uma discusso com a Vilma nafrente da casa da vizinha e ela foi at a delegacia fazer oregistro. Elaine comenta que no concorda com o registro, ediz que a vizinha que no a respeita e a agride sempre.Pergunto o porqu das agresses. Elaine responde que avizinha nunca gostou dela porque no aceita sua religio.Pergunto qual a religio das duas. Elaine responde que avizinha da Universal[se referindo a Igreja Universal do
Reino de Deus] e eu sou esprita. Perguntei se ela eraesprita kardecista. Ela responde, num tom meioenvergonhado e ao mesmo tempo reativo: sou de santo. Ooutro mediador, Jlio, pergunta como era a relao delacom a vizinha antes da briga, se elasse falavam. Elainediz que quando foi morar l a vizinha j morava, e que elasempre falou com os outros vizinhos. O problema queela evanglica e eles [se referindo aos evanglicos] sacham a religio deles boa. Em seguida, respondeu que avizinha nunca falou com ela direito, passava na rua e ela[se referindo a Vilma] virava a cara. Pergunto a Elaine
como ela achava que aquele problema poderia sersolucionado. Ela respondeu: acho que no tem soluo.
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Jlio em seguida comenta que vocs no precisam gostaruma da outra, da religio da outra, que aqui temos queresolver o que motivou o problema, os insultos e o
barulho. Elaine responde que a vizinha tambm a chamoude preta velha macumbeira e disse que no tinha moral deir at sua casa reclamar do barulho. Jlio pergunta comoaconteceu a confuso. Andria relata que estava em casafazendo o almoo e colocou uma msica para se distrair, eela escutou a vizinha pelo basculante da sala gritandomsica do demnio e outras coisas. A ela colocou umamsica da Igreja muito alta, parecia um trio eltrico. Fui lreclamar, a comeou a confuso. Jlio repete novamente aminha pergunta sobre como Elaine considera que essasituao poderia ser resolvida. Ela respondeu que sabia que
as duas tinham se excedido quando discutiram na frente doporto da vizinha, mas que no queria ser ofendida pelavizinha novamente s porque ela acha que a Igreja dela anica salvao do mundo.
(Notas de Campo)
Sesso audincia individual com asuposta vtima, Vilma
Vilma entrou e Jlio relatou que a Elaine estavadisposta a colaborar e que ela reconheceu que as duas seexaltaram na frente do seu porto. Vilma respondeu eu nome exaltei nada, ela que veio igual o co na minha porta.Em seguida, pergunto a Vilma com ela via a vizinha antesda confuso. Vilma responde que nunca teve contato comela, ela no uma pessoa boa, ela um bicho ruim, Deussabe disso. Pergunto por que ela diz isso. Ela responde:Ela anda com esse pessoal da magia negra. Isso no deDeus. O outro mediador interrompe e diz no vamos
entrar no mrito da religio, estamos conversamos sobre odesentendimento de vocs [se referindo confuso emfrente ao porto de sua casa]. Tentando encerrar o assuntosobre religio, Jlio pergunta a Vilma como ela acha queaquilo poderia ser resolvido. Vilma responde: s se eu ouela nos mudarmos dali (...) no d pra conviver perto deuma pessoa dessas, que vai em frente da minha casa mexingar, que cultua coisa ruim. Comento que Elaine admitiuque vocs estavam exaltadas no momento da confuso e seno havia alguma forma para que elas chegassem a algumentendimento. Ela diz que no. A palavra dela no vale
nada, pode me pedir desculpa hoje e amanh tentar algumacoisa ruim comigo. O outro mediador, sentindo que no
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iria sair nenhum entendimento dali, tentou finalizar aconversa, mas insisto e pergunto que tipo de coisa ruim?Vilma responde fazer um trabalho. Peo para ela ser maisclara. Ela diz que esse pessoal faz trabalhos para
prejudicar os outros, mas meu pai mais forte. Jlio, jinquieto com minhas perguntas, pede para Vilma se retirarda sala.
(Notas de Campo)
No houve acordo nessa mediao.
Ao terminar a sesso, o mediador disse que no iria adiantar eu tentar prolongar a
sesso porque sabia que no se chegaria a um acordo, em suas palavras: dava pra ver
que no ia ter acordo. Perguntei por que ele achava isso? Jlio respondeu que asuposta
vtima se ofendeu quando a outra parte a ofendeu em frente aos seus vizinhos. E
completou essas pessoas religiosas, como ela [se referindo a Vilma], no conseguem
perdoar quando so ofendidas assim. Acham que a moral que vale tudo (...) no consegue
perdoar a ofensa. Fiz uma cara de que no entendi o que estava falando e Jlio
completou: ela [Vilma] foi ofendida na frente das vizinhas, no vai sossegar at que aoutra seja penalizada na justia. Perguntei a Jlio se Vilma, como uma pessoa crist, no
tinha obrigao de perdoar Elaine que se mostrou mais disposta a encerrar o processo.
Jlio respondeu Cristo est longe dessas duas ai. E encerrou o assunto.
O grau dos insultos
Observando trs diferentes contextos etnogrficos Brasil, Estados Unidos e
Canad 16 -, o antroplogo Luis Roberto Cardoso de Oliveira tem se preocupado em
analisar a relao entre as idias de respeito a direitos plenamente universalizveis,
tendo como referncia o indivduo genrico, e de considerao ao cidado, portador de
uma identidade singular (CARDOSO DE OLIVEIRA: 2008), a partir do olhar atento s
dimenses legal e moral dos direitos.
16 Em Massachusetts seu foco foi os processos de resoluo de disputas na esfera dos Juizados de Pequenas
Causas. Em Quebec, discutiu sobre o debate pblico a respeito da soberania daquele pas. No Brasil, seateve nas discusses sobre direitos a partir da elaborao da Constituio de 1988 e suas reformas duranteo perodo de reabertura poltica.
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H alguns anos, o autor tem discutido como a linguagem do direito no consegue
captar os atos ou eventos de desrespeito cidadania (CARDOSO DE OLIVEIRA: 2008).
A elaborao do conceito de insulto moral favorece a anlise sobre o contedo desses
atos, tendo duas caractersticas essenciais: 1) trata-se de uma agresso objetiva a direitos
que no pode ser adequadamente traduzida em evidncias materiais; 2) sempre implica
uma desvalorizao ou negao da identidade do outro (2008).
Para formular o conceito de insulto moral, Cardoso de Oliveira (2008) utiliza as
noes de considerao e desconsiderao a partir das noes de reconhecimento
(anerkennung) e desrespeito (Miachtung), retomadas em autores contemporneos, como
Taylor (1994) e Honneth (1996); pelo debate francs sobre considerao (considration),
desde Rousseau at, mais recentemente, Haroche e Vatin (1998), onde a considerao
encarada como um direito humano; alm dos conceitos de ddiva ou reciprocidade de
Marcel Mauss (1974), tambm revisitados por Caill (1998) e Godbout (1992, 1998).
O insulto - como uma agresso dignidade da vtima possui difcil traduo
em termos materiais, tendendo a ser invisibilizado como uma agresso digna de
retratao. Nas sociedades onde vigora o direito positivo, as formas de administrao
desses conflitos frequentemente no conseguem chegar a algum tipo de resoluo
considerada satisfatria pelos envolvidos. Cardoso de Oliveira elenca trs fatores para
que isso acontea. O primeiro fator se refere a grande impermeabilidade do Judicirio a
demandas por reparao por insulto; tambm pelo fato da dificuldade de formular um
discurso adequado para fundamentar direitos universalizveis; ou tambm devido aos
constrangimentos para a universalizao do respeito a direitos bsicos de cidadania no
Brasil, em virtude da dificuldade das pessoas incorporarem a idia de igualdade
(CARDOSO DE OLIVEIRA: 2008).
No Brasil, quanto nos outros dois casos estudados por Cardoso de Oliveira
(2008), o reconhecimento de determinadas demandas trazidas pelas partes no pode ser
traduzido em direitos pela esfera jurdica, tendo em vista no ser possvel fundamentar
legalmente a atribuio de um valor singular a uma identidade especfica, e exigir o seu
reconhecimento social (2008). Nos casos encaminhados aos Juizados Especiais no
Brasil, aspectos significativos dos conflitos os moraisso muitas vezes excludos da
pauta. Ou seja, a conciliao e transao penalno podem ser interpretadas como etapas
alternativas audincia judicial j que se seguem a lgica jurdica tradicional dasdisputas a partir de um carter impositivo e no guiado a partir das demandas trazidas
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pelas partes (2008).
Em um dos trabalhos sobre os Juizados de Pequenas Causas dos EUA,
CARDOSO DE OLIVEIRA (1996) analisa o trabalho dos mediadores a partir de dois
casos observados empiramente: 1) o desentendimento entre as partes gerado pela venda
de um congelador usado com a data de fabricao diferente do que foi anunciado pelo
vendedor. 2) o desentendimento comea quando uma pessoa processou uma companhia
de transportes por ter danificado seu refrigerador. No primeiro caso, ele considera que
houve um acordo equnime tendo em vista o mediador, numa postura pouco usual,
resolveu explorar o sentido das alegaes de agresso, ou seja, o que as partes
consideraram como sendo um insulto moral. No segundo caso, houve um acordo
barganhado pelo do mediador no considerar relevante o fato dasuposta vtima reclamar
uma reparao em relao postura da empresa em ignorar suas diversas cartas e
telefonemas no intuito de resolver a questo. Segundo a suposta vtima, essa
desconsiderao merecia uma reparao.
No Brasil, apesar das dinmicas de mediao ser diferente dos EUA, nos casos de
intolerncia religiosa relatados, assim como o segundo caso relatado acima por Cardoso
de Oliveira, os mediadores no consideraram relevante as demandas trazida pelaspartes.
No caso da mediao daqui, no consideraram relevantes as ofensas em relao s
diferentes identidades religiosas.
Diferentemente da conciliao, na mediao as partes podem explicitar seus
argumentos e sentimentos sobre o fato ocorrido. Apesar do foco da mediao se voltar
para a busca da gnese do desentendimento entre as partes, em alguns casos, como os
conflitos de natureza religiosa, os mediadores no conseguem entender que aquilo
representa um insulto moral (CARDOSO DE OLIVEIRA: 2012). Ou seja, os
mediadores se voltam, nas palavras de uma conciliadora, para a raiz do
desentendimento para, em seguida, desqualificar as motivaes do conflito. No primeiro
caso relatado, o mediador ignora o ressentimento de uma daspartes em relao ofensa de
cunho religioso, pois, pela sua tica, ela no deve ligar para isso, j que esse negcio
de religio bobagem. No segundo caso (como no terceiro) umaparte diz abertamente
ser intolerante religio da outra. Os mediadores ignoram esse fato durante a audincia e
ainda consideram que o problema a questo da propriedade e da ao cvel - tendo
em vista haver, alm da ao movida no JECrim por injria, outra ao movida pelasuposta vtima em um Juizado Especial Cvel com intuito de que os vizinhos fossem
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despejados e no a ofensa moral elencada pela suposta vtima em torno de sua
identidade religiosa.
Podemos perceber que apesar da mediao permitir, diferentemente da
conciliao, que as partes falem sobre o ocorrido, no qual, segundo um mediador,
proporciona um efeito teraputico, em muitos casos os mediadores no conseguem
captar o contedo moral da ofensa cometida, seja por no perceberem que aquilo - como
nos casos de intolerncia religiosarepresenta um insulto vtima, seja por perceberem
a ofensa, mas consider-la, a partir de suas perspectivas, algo sem grande relevncia.
Portanto, possvel afirmar que existem diferentes moralidades em jogo, ou
melhor, que a noo de direito uma categoria relacional (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1996) e o problema da judicializao de determinados conflitos que o enquadramento
jurdico dos fatos levados ao Judicirio restrito e acaba, muitas vezes, no dando
respostas pertinentes s questes e complexidades sociais envolvidas no conflito efetivo,
real, vivido pelos cidados.
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