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ANA CRELIA PENHA DIAS
RETRATOS DISPERSOS: artimanhas dos textos de Silviano Santiago
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens. Co-orientadora: Professora Doutora Heloísa Buarque de Hollanda
Rio de Janeiro
2008
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DIAS, Ana Crelia Penha Retratos dispersos: artimanhas dos textos de Silviano Santiago
Rio de Janeiro, 04 de junho de 2008. ___________________________________________________________________ Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens – Faculdade de Letras – UFRJ Orientadora ___________________________________________________________________ Professora Doutora Heloísa Buarque de Hollanda – Escola de Comunicação – UFRJ Co-orientadora ___________________________________________________________________ Professora Doutora Elódia Xavier – Faculdade de Letras – UFRJ ___________________________________________________________________ Professor Doutor Alcmeno Bastos – Faculdade de Letras – UFRJ ___________________________________________________________________ Professor Doutor Armando Gens – Faculdade de Educação – UFRJ ___________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Consuelo Cunha Campos – Instituto de Letras – UERJ ___________________________________________________________________ Professor Doutor Sérgio Martagão Gesteira – Faculdade de Letras – UFRJ (Suplente) ___________________________________________________________________ Professora Doutora Sílvia Regina Pinto – Instituto de Letras – UERJ (Suplente)
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A Juliana, sempre. E, claro, à Pequenina, que nem sabe ainda o que é uma tese. A Fernando, pelo amor, alegria e apoio. Enfim, à minha família, meu maior projeto.
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AGRADECIMENTOS
• Às mulheres da minha vida: Solange, Fernanda e Marlene.
• Ao meu tio Antônio, pela confiança.
• A Rosa, minha professora, orientadora e grande amiga.
• A Heloísa Buarque, pelas referências e paciência.
• A Armando, grande responsável por minha escolha profissional e por esta
tese.
• A Laura e Thaïs, pelo apoio.
• Ao Professor e mestre Antonio Candido, pela paciência e elucidações nas
conversas pelo telefone.
• A Silviano Santiago, é claro, pela recepção sempre muito simpática quando eu
o procurava.
• À Professora Consuelo Cunha Campos, por disponibilizar o acervo do autor.
• À Professora Silvia Regina, pela gentileza de permitir que assistisse às aulas
na UERJ.
• Ao Professor João Camillo, pelas sugestões a respeito do tema.
• Ao Professor Evando Nascimento, pelas longas conversas sobre Silviano
Santiago.
• Aos meus amigos: Patrícia, Roseni, Thiago, Paloma, Celéia, Ana Ligia, Luiz
Cláudio, Soninha, Adriana, Alessandra Ciambarella, Kellyanne, Carlos André,
Guilherme, André, Soraya, Carlos, Ricardo, que entenderam minhas ausências
(e também porque não entenderam às vezes).
• Aos amigos Raquel Oliveira e Rodrigo Ielpo, pelas traduções dos resumos.
• Aos meus ex- e atuais alunos, pelo incentivo.
• À direção, aos professores e aos funcionários do Colégio de Aplicação da
UFRJ.
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Elogio da sombra
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade. O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma. Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão. Buenos Aires, que antes se espalhava em subúrbios em direção à planície incessante, voltou a ser La Recoleta, o Retiro, as imprecisas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul. Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito. Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade. Meus amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros. Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno. Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando. Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte convergem os caminhos que me trouxeram a meu secreto centro. Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada ínfimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas. Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho. Breve saberei quem sou. (Jorge Luis Borges. Obras completas.)
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RESUMO
DIAS, Ana Crelia Penha. Retratos dispersos: artimanhas dos textos de Silviano Santiago. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas)—Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
A escrita de Silviano Santiago desperta críticas ambivalentes: de um lado estão os que aplaudem de pé o percurso de um renomado crítico, acima de todas as suspeitas; em contrapartida, localizam-se, diante de sua obra ficcional, figuras que, se não lançam sobre ela ácidos comentários, atêm-se ao elogio de sua obra crítica e, no silêncio, acabam por questionar a qualidade estética dessa última produção. A investigação da escrita ficcional de Silviano Santiago e suas estratégias são o alvo da discussão desta tese. A escolha do corpus − Uma história de família, Keith Jarrett no Blue Note, De cócoras, O falso mentiroso e Histórias mal
contadas, Em liberdade e Viagem ao México − justifica-se por três aspectos, primordialmente, que norteiam a pesquisa: o primeiro é o tom de (des)continuidade das características dos sujeitos: o moribundo, os homossexuais, o aposentado, todos marcados pelo traço do isolamento e da atitude de construção da identidade via memória. O segundo diz respeito ao conceito de simulacro, que se desdobra e se intensifica, principalmente, nos dois últimos textos, num processo de construção irônico-corrosiva. O terceiro aspecto que, de certa forma, retoma os dois anteriores, estabelece uma possível intersecção entre a atividade de crítico e ficcionista do escritor.
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ABSTRACT
DIAS, Ana Crelia Penha. Retratos dispersos: artimanhas dos textos de Silviano Santiago. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas)—Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Silviano Santiago’s writing arouses ambivalent criticisms: On the one hand some clap enthusiastically the renowned critic’s course – above all suspicion; On the other, in the face of his fictional work, some either make acid comments about it or praise his critical work and, in silence, end up questioning the aesthetic quality of that last production. The investigation of Silviano Santiago’s fictional writing and his strategies are the aim of this thesis. The corpus choice – Uma história de família, Keith Jarrett no Blue Note, De cócoras, O falso mentiroso e Histórias mal contadas, Em liberdade and Viagem ao México – is justified by three aspects that essentially guide this research: the first one is the tone of (dis-)continuity of the subjects’ characteristics: the dying, the homosexuals, the retired, all marked by features of isolation and the attitude of identity construction by means of memoir. The second aspect refers to the concept of simulacrum, which unfolds and intensifies, principally in the last two texts, through a process of ironic corrosive construction. The third aspect, in a way, resumes the previous ones and establishes a feasible intersection between the writer’s activity as critic and as fictionist.
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RÉSUMÉ
DIAS, Ana Crelia Penha. Retratos dispersos: artimanhas dos textos de Silviano Santiago. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas)—Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
L'écriture de Silviano Santiago provoque des critiques ambivalentes: d'un côté se trouvent ceux qui applaudissent le parcours d'un critique renommé, au-dessus de tout soupçon, de l'autre certains, sans proprement lancer contre son œuvre fictionnelle des commentaires acides, consacrent leurs éloges à l'œuvre critique et finissent par remettre en question la qualité esthétique de sa production fictionnelle. L'investigation de cette production fictionnelle et ses stratégies forment le centre de discussion de cette thèse. Le choix du corpus - Uma história de família, Keith Jarrett no Blue Note, De cócoras, O falso mentiroso e Histórias mal contadas, Em liberdade e Viagem ao México – est légitimé par trois aspects qui jalonnent cette recherche: le premier, c'est le ton de (des)continuité des traits des sujets : le moribond, les homosexuels, le retraité, tous marqués par l'isolement et l'attitude de construction de l'identité à travers la mémoire. Le deuxième aspect concerne le concept de simulacre qui se déploie et s'intensifie surtout dans les deux derniers textes, dans un processus de construction ironique-corrosive. Le troisième aspects reprend en quelque sorte les deux premiers en établissant des intersections entre les activités critique et fictionnelle de l'écrivain.
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Diálogo crítica/ficção. Estratégias narrativas. Jogos de simulação. (Des)construções de subjetividades movediças. Percursos críticos para análise da obra. A construção estilhaçada da memória.
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SUMÁRIO
1 PALAVRAS INICIAIS ........................................................................................ 11 2 ORELHA DE LIVRO............................................................................................ 17 3 ENTRE-CAMINHOS: O LUGAR DA ESCRITA FRONTEIRIÇA ............. 41 4 JOGOS DE CENA OU O BAILE DE MÁSCARAS ....................................... 67 5 MODOS DE (NÃO) USAR: A DIREÇÃO DA NARRATIVA .................... 95 6 JOGOS DE ARMAR: SUJEITOS E IDENTIDADES .................................. 127
PALAVRAS FINAIS .............................................................................................. 172 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 177 APÊNDICE: Entrevista com Silviano Santiago ................................................ 186
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1 PALAVRAS INICIAIS
Falar sobre Silviano Santiago significa sempre despertar críticas
ambivalentes: de um lado estão os que aplaudem de pé o percurso de um
renomado crítico, acima de todas as suspeitas. Em contrapartida, localizam-se,
diante de sua obra ficcional, figuras que, se não lançam sobre ela ácidos
comentários, atêm-se ao elogio de sua obra crítica e, no silêncio, acabam por
questionar a qualidade estética dessa última produção.
O incômodo diante desse impasse de recepção levou-me a uma
necessidade de investigação maior da obra do Silviano Santiago, processo
intensificado a partir da reportagem da revista Veja, de 8 de junho de 2005, em
que uma crítica intensa se referia à obra ficcional do autor, assim como à de
Davi Arrigucci, como “abaixo da crítica”. A ambigüidade dessa expressão, que
se apresentava como título da reportagem, levou-me a querer buscar a
fundamentação dessa linha, que considera a superioridade da produção crítica
em contraponto com certa “precariedade” da obra ficcional.
O interesse pelo autor deveu-se a um trajeto pessoal. Tendo entrado
em contato com o texto de Silviano ainda na graduação, no ano de 1994,
especificamente com a leitura de Uma história de família, resolvi investigar mais a
fundo sua obra e verifiquei a insistência no aprofundamento da subjetividade,
construída ora por personae descentralizadas e nômades, ora por figuras que
também são narradores e que paradoxalmente se escondem/expõem.
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A escolha do corpus − Uma história de família, Keith Jarrett no Blue Note,
De cócoras, O falso mentiroso e Histórias mal contadas, Em liberdade e Viagem ao
México − justifica-se por três aspectos, primordialmente, que nortearam a
pesquisa da tese: o primeiro é o tom de (des)continuidade das características
dos sujeitos: o moribundo, os homossexuais, o aposentado, todos marcados
pelo traço do isolamento e da atitude de construção da identidade via
memória. O segundo diz respeito ao conceito de simulacro, que se desdobra e
se intensifica, principalmente, nos dois últimos textos, num processo de
construção irônico-corrosiva. O terceiro aspecto, de certa forma, retoma os dois
anteriores e pretende pensar sobre uma possível intersecção entre a atividade
de crítico e ficcionista do escritor.
Alguns conceitos críticos de Jacques Derrida são discutidos para
possível encontro com os textos do corpus: a) a escrita, principalmente na análise
derridiana do Fedro, em “A farmácia de Platão”, em sua dupla caracterização,
ora como órfã, ora como parricida, com o objetivo de pensar de que modo essa
concepção se vale para refletir sobre uma atitude subjetivo-autoral movediça
nos textos em estudo; b) a potência do falso constitui-se, aqui, bom rastreador
para problematizar a construção de simulacro que se intensifica nas duas
últimas obras do Silviano: O falso mentiroso e Histórias mal contadas; c) a lógica do
suplemento, pautada sobre uma perspectiva descentrada e múltipla, encaminha,
principalmente, a reflexão acerca da construção da subjetividade na obra do
autor, além mesmo da investigação de uma possível intersecção ficção/crítica.
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Entretanto, este não é o único caminho teórico. A partir da leitura das
obras de Silviano, outros caminhos de referência teórica tornam-se necessários:
a estrutura arquitetônica construída a partir de indicações referenciais presentes
na obra levaram à aproximação da escrita do autor com as estratégias usadas no
cinema e, neste caso, a teoria sobre montagem cinematográfica de Sergei
Einsenstein foi utilizada.
Estudiosos da contemporaneidade e dos processos de subjetivação,
como Michel Foucault, Michel Mafessolli, Antoine Campagnon, Jacques
Rancière, Janice Caiafa, entre outros, constituem o leque das especulações
acerca do sujeito; Jean Baudrillard e Wolfgang Iser estão no centro das
discussões acerca da construção do simulacro; e o próprio Silviano Santiago vai
dialogar com ele mesmo nas reflexões sobre a justaposição/aglutinação dos
discursos ficcional e crítico de que sua obra se vale.
O primeiro capítulo, Orelha de livro, faz uma apresentação das obras
analisadas aqui. Como são muitas as publicações de autores contemporâneos,
uma atualização se faz necessária para acompanhamento e avaliação da análise.
O recorte feito na produção ficcional de Silviano Santiago nesta tese
abarca aproximadamente duas décadas. Muitos são os caminhos trilhados pelo
autor nesse período, uma vez que não é novidade que ele empreende sua
escrita em formatos diversos. Entretanto, sorrateiramente, se mostram vestígios
de aspectos peculiares à escrita do nosso autor.
Entre-caminhos: o lugar da escrita fonteiriça traz uma reflexão
acerca de certo alargamento de fronteiras de gêneros, extremamente recorrente
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na literatura contemporânea. Aquilo que Antonio Candido e Flora Sussekind
anunciavam no fim da década de 70 sobre um novo rumo que tomava a
narrativa desdobrou-se e intensificou-se, chegando às vezes a uma radicalização
do que poderia ser o experimentalismo no ato de narrar. E Silviano Santiago,
em suas obras, percorre esse processo de mudança de focalização do objeto de
narrar, mostrando-se muito contemporâneo aos novos formatos.
A abordagem deste capítulo nasceu a partir de uma fala do escritor
Sérgio Sant’anna, no Seminário A literatura latino-americana no século XXI,
realizado no Centro Cultural Banco do Brasil, em outubro de 2005, organizado
pela professora Beatriz Resende. Na ocasião, Sérgio Sant’anna afirmou que um
dos caminhos da literatura contemporânea traça-se em território limítrofe: entre
ficção e ensaio, processo que ele denominou ficção ensaística. Nesse sentido, o
objetivo do capítulo é fazer um rastreamento do limites entre a escrita crítica e a
ficcional do nosso autor.
Jogos de cena ou O baile de máscaras trata de um assunto que se
mostra muito presente na escrita ficcional contemporânea: a discussão acerca
do processo de construção de simulacros na literatura. As formas de simulação
apresentam-se sob máscaras infindas, num processo em que o alcance do
referente não é buscado, ou este talvez já nem exista mais.
Neste capítulo, a reflexão sobre o conceito de simulacro, presente
também como motivo narrativo, gira em torno, principalmente, de duas obras:
O falso mentiroso e Histórias mal contadas. Numa atitude zombeteira acerca dos
conceitos de verdade e mentira, Silviano Santiago, em O falso mentiroso, cujo
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subtítulo é memórias, nos apresenta um tom de paródia que, como tal,
camufla/expõe intensa crítica ao abordar os temas da exclusão e da violência,
por meio do olhar do pintor carioca Samuel, personagem central, cujos
desencontros amorosos pincelam de humor um processo muito mais amplo: o
de revitalização da escrita.
Em Histórias mal contadas, o grande embate travado no universo de
quase todos os doze contos que compõem a obra gira em torno de um caos que
se configura a partir da tentativa de contar uma história, de maneira uníssona,
em meio a um panorama de identidades múltiplas. Os contos pairam já na
impossibilidade de narrar à moda antiga, diante da criação centrada em um
processo semelhante ao de O falso mentiroso, em que a escrita como
desvelamento de múltiplas possibilidades chega a uma experiência radical.
Modos de (não) usar, o quarto capítulo, busca apreender as
estratégias de que o autor lança mão na construção do texto, como a teoria do
cinema, principalmente. Este capítulo nasceu da observação de certa recorrência
ao cinema como referência na obra de Silviano Santiago. Essa presença se dá,
primordialmente, de duas formas: há referências a filmes e atores, que
constituem paralelos de construção temática e comparação com personagens e
situações vividas pelo narrador; ou ainda, a teoria do cinema é utilizada como
técnica na narrativa.
O quinto capítulo, Jogos de armar – sujeitos e identidades, faz uma
investigação acerca da construção da subjetividade e da identidade nas obras
em questão. A construção/reconstituição da memória será o tema abordado,
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tendo como foco, principalmente, três obras: Uma história de família, De cócoras e
O falso mentiroso. Mais uma vez, valho-me do conceito derridiano, agora o de
rastro, como algo que se aventura ao esquecimento, ao apagamento, mas que
busca permanência, como nos afirma o professor Evando Nascimento: “A
restância do rastro é o índice mesmo de sua resistência.” (NASCIMENTO, 2004,
35).
Enfim, o objetivo desta tese é identificar na escrita de Silviano
Santiago as artimanhas temático-discursivas de que se vale o autor. Além disso,
procuro as escavações dos traços esboçados nessa escrita limítrofe – a influência
da teoria do cinema, os recursos visuais, enfim, as outras linguagens com as
quais estabelece diálogo intertextual. A estrutura da obra de Silviano Santiago
é, enfim, o principal objeto desta pesquisa.
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2 ORELHA DE LIVRO
Este capítulo justifica-se pela necessidade de fazer uma apresentação
das obras, em resposta à dificuldade dos leitores de acompanhar a vasta
produção contemporânea. Seis são as obras em estudo: Em liberdade (1981); Uma
história de família (1992); Viagem ao México (1995); Keith Jarret no Blue Note (1996);
De cócoras (1999), O falso mentiroso (2004); Histórias mal contadas (2005). O corpus
deste trabalho limita-se a um recorte da produção ficcional de Silviano
Santiago, justificado pelo encontro de características que balizam os caminhos
da análise.
Em liberdade é a primeira das obras e constitui um diário dos dias
pós-saídos da prisão, que Graciliano Ramos não escreveu. Silviano Santiago
recria a escrita e a configuração político-existencial do escritor alagoano, sobre
cuja vida, a partir de extensa pesquisa, compõe uma ficção que se constitui
como ímpar na literatura brasileira, não só pelo trabalho estético que se vale da
reconstrução mimética da escrita de Graciliano, mas, também, por discutir o
papel do intelectual no Brasil, a partir da apresentação de figuras como o
escritor alagoano, Wladimir Herzog e Cláudio Manuel da Costa.
A ficção de Em liberdade inicia-se antes da narrativa em si, isto é, é na
“Nota do editor” que apresenta a identidade construída para a obra. Justifica-se
ali o fato de ter esse editor “recebido” os originais de um diário que Graciliano
Ramos teria escrito a partir da data que foi libertado da prisão. Seria uma
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espécie de desdobramento da experiência relatada em Memórias do cárcere. O
sigilo do diário de Graciliano é fiado a um amigo do ficcionista alagoano e,
depois da morte deste, é confiado a Silviano Santiago, que aparece na obra
como o personagem-editor.
Silviano constrói uma narrativa audaciosa, que mimetiza a escrita de
Graciliano no que diz respeito a estilo – seco, com frases curtas, com um
vocabulário preciso –, contextualizando ainda as experiências ali “relatadas”
por meio de extensa pesquisa que faz sobre a obra do autor de Vidas secas.
Ficcionalizando dados da vida civil do alagoano, Silviano transita entre
realidade e ficção numa perspectiva fronteiriça. O diário inicia-se em 14 de
janeiro de 1937 (um dia depois da libertação de Graciliano) e termina em 26 de
março do mesmo ano.
Os primeiros capítulos tratam da saída da prisão e do sentimento de
inadequação e de humilhação que experimenta Graciliano, que passa o início
dessa nova fase na casa de José Lins do Rego. Mostra-se um homem
amargurado, com o mesmo tom de inabilidade com a convivência social que
contorna muitos de seus personagens, como Fabiano e Paulo Honório, por
exemplo.
A presença de Heloísa – mulher de Graciliano – é muito expressiva
neste relato: ela oferece ao marido o apoio confortante – advindo dos sucessivos
reforços de auto-estima – e, ao mesmo tempo, é desestruturante, afinal a
potência de Heloísa contrapõe-se ao sentimento de fracasso que acompanha a
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visão que ele tem de si: “Dependo demais de Heloísa. Muito mais do que
gostaria.” (SANTIAGO,1994, 71).
A falta de critério seletivo para os assuntos promove certa fluidez ao
relato e contribui para a construção do discurso de um diário, que se caracteriza
pela ausência de rigidez temática e presença de tom confessional. As indicações
de data conferem à obra o caráter histórico que se deseja de uma autobiografia.
Existe alguma lógica na escolha dos sucessivos assuntos de que trato nesse diário? (...) Se houver um critério pessoal na escolha dos assuntos, creio que ele repousa sobre o meu prazer em escrever e sobre a importância desse escrito nas mãos do leitor. (SANTIAGO,1994,133-134)
O texto assume tom crítico e a principal argumentação do autor
Graciliano gira em torno das reflexões a respeito das injustiças decorrentes da
sociedade burguesa. Afirma que seu desajuste é uma espécie de conseqüência
da segregação social. É um diário, enfim, de forte caráter ideológico, dado seu
caráter reflexivo acerca de vários temas. Silviano-editor faz anotações, justifica
excessos ou supressões, num processo em que reafirma seu distanciamento e
sua não-autoria do texto.
O Graciliano que se nos apresenta é um homem com muitas questões
relacionadas ao tempo na prisão. A fragilidade do corpo de Graciliano Ramos –
enfraquecido pelas precárias condições em que viveu quando preso – contrasta
com o desejo de vitalidade sexual: pensa na mulher Heloísa e nas moças de
Ipanema; excita-se com a jovem de vinte anos que vai à praia e associa o desejo
sexual à confirmação de sua liberdade:
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Não me lembrava de ter tido semelhante reação sexual há muitos anos. [...]. Andava de membro duro pela praia de Botafogo, sentia-me finalmente em liberdade. Entregava-me à imagem do corpo gracioso da moça à minha frente. Recebia de cheio no rosto o sol e a brisa marinha. Reparava o movimento pacífico das ondas na enseada [...] (SANTIAGO,1994, 95-96)
Essa condição de animal – que se encarna na visão do desejo sexual
como instinto – estende-se ao plano da relação com os filhos. Graciliano Ramos
faz profunda reflexão sobre o relacionamento dele e da mulher Heloísa com os
filhos – um total de sete, mas apenas três do casamento com ela. Incomoda-se
com o fato de não haver, no planejamento do casal, previsão para alocação dos
filhos. Reconhece uma semelhança entre eles e os animais:
A relação entre nós e os nossos filhos deve assemelhar-se à relação de paternidade tal como a “pensam” os animais mamíferos. Duas atitudes básicas determinam a nossa conduta com relação a eles: uma primeira, curta no tempo, de carinho e amor, onde transparece o excesso de cuidados; outra, para a vida inteira, de desapego e falta de consideração pessoal, que pode ser interpretada maldosamente como sendo de total descaso. Sai a criança do intenso e passageiro regime especial e entra na manada dos filhos, fazendo parte dela sem direito a protecionismo individual. [...] Somos um casal de bois que lambe o recém-nascido procurando cercá-lo do mais intenso calor humano. (SANTIAGO,1994, 103-104)
Este imperativo de existência coletiva dos filhos incomoda o
personagem, mas, como no universo ficcional do autor alagoano, as angústias
deparam-se com o sentimento maior de impotência de superação,
demonstrando a tragicidade da condição humana. Resigna o personagem como
resignou-se Paulo Honório: “não consigo modificar-me.”1 – a fala de Paulo
Honório caberia com pertinência na voz do personagem Graciliano Ramos 1 Fala de Paulo Honório, ao final do livro São Bernardo. In.: RAMOS: 1986, 187.
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neste diário. Uma vida de descompassos familiares se mostra, mesmo na
tentativa silenciosa de velar os problemas do casal. É Naná, a mulher de José
Lins do Rego, que fala o que intimamente Graciliano já reconhece, embora tente
não transparecer:
[Naná] Continuou afirmando que bastava olhar para cada um de nós, isoladamente, quando estávamos juntos, para perceber quão feridos estávamos. Não era o antigo casal, feliz e sofrido, ferido pelos acontecimentos do ano passado. Cada um agora tinha ferimentos distintos e individuais, produtos de uma guerra em surdina. (SANTIAGO,1994,106)
Com muita acuidade, o personagem ouve as considerações da amiga
e não perde a oportunidade de avaliá-la, como também a Heloísa,
reconhecendo nas duas mulheres a força e até uma condição de estar à frente do
tempo: “Soltaram-se, com facilidade, das amarras que as prendiam à sociedade
patriarcal” (SANTIAGO,1994,107).
A reação da mulher Heloísa ao acolhimento deles pela família de José
Lins do Rego funda-se no desconforto de ter ajuda de pessoas que
ideologicamente estavam em posições diferentes daquela que ela teve de tomar
para tirar o marido da prisão. Ajudada por representantes da força comunista,
sentia-se desconfortável em ser recebida por representantes do Integralismo.
Entendo por que os amigos de Heloísa não nutrem grande simpatia por Zé Lins, chegando a considerá-lo como conivente com a causa integralista. A recriação que faz do latifúndio nordestino funciona a contento para a visão do Brasil que querem passar os camisas-verdes. O romancista oferece-lhes o álibi que os ajuda a provar que o brasileiro é pacato e ordeiro, que não se deixa influenciar por malignas teorias estrangeiras, que dizem ser a luta de classes o motor da história. (SANTIAGO,1994,126)
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O velho Graça, apesar do incômodo que sente pelo fato de estar entre
o partidarismo radical de Heloísa e a tolerância com as idéias de Zé Lins,
entende a necessidade de se manterem os preceitos ideológicos, entretanto sem
a exclusão ou a impossibilidade de trânsito: “Ela [Heloísa] pode transitar entre
o mundo dos amigos e o dos inimigos. Mas, no fundo, gostaria de ir fechando
os sinais verdes do trânsito.” (SANTIAGO,1994, 130-131).
Depois de deixar a casa dos Lins do Rego, estabelece-se em uma
pensão no Catete. Em uma viagem a São Paulo, com José Lins do Rego, tem um
sonho com Cláudio Manuel da Costa. No sonho, Graciliano encarna a figura de
Cláudio Manuel da Costa na noite do suicídio do poeta mineiro, em 1789. As
discussões giram em torno da Inconfidência e toda a luta política implicada
nela. O relato termina com Graciliano Ramos estabelecendo (ou, pelo menos,
tentando restabelecer) o cotidiano de uma vida em liberdade. Vai buscar
Heloísa e as filhas mais novas que chegaram de Alagoas. Na realidade, estão
tentando um recomeço depois da desagregação familiar causada pela prisão.
Uma história de família inicia-se com a frase-eco que traduz o desejo da
família diante da diferença: “Todos querem a sua morte, tio Mário.” A morte
anunciada e o alívio que ela traria pela eliminação da diferença – a loucura –
aparecem sob duas perspectivas, que se opõem: a da família, que desprezava a
possibilidade de ser apontada como maculada em uma sociedade tradicional e
provinciana; e a do sobrinho, que desmascarava as “boas intenções” da família
para com o tio.
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A narrativa se faz em primeira pessoa e a abertura do diálogo
impossível com o louco revela dupla função – denunciar a hipocrisia da família
e rever/ conhecer as próprias origens. Num jogo de idas e vindas ao tempo da
infância, o narrador criança vem trazer a si mesmo, já adulto, as cenas
presenciadas para serem, por este último, preenchidas de sentido. O motivo de
o sobrinho voltar ao passado para rever a história da família justifica-se pelo
fato de ele estar doente e querer remontar e avaliar a própria história. Recorre
às fotografias de que dispõe para montar os episódios recuperados na memória.
Ao recorrer ao passado, o narrador encontra a cidade natal, na
fotografia, subtraída de identidade. Na foto, que lhe serve de ponto de partida
para o mergulho na história da família, o flagrante não dá conta das miudezas
cotidianas vivenciadas pelo menino e elaboradas pelo narrador.
Analisando a figura de Tio Mário, percebe, adulto, que a imagem que
tinha do tio louco circundava-se pela avaliação da avó e de Dona Marta que,
valendo-se de uma postura nomeada como cristã, apontavam no homem o mal
de que deveriam ser aliviadas. O sobrinho, por isso, procura lembrar-se do tio
deslocando-o das presenças das duas mulheres.
Uma das lembranças de que o narrador mais sente repugnância,
devido ao alto grau de hipocrisia de que ela se reveste, está uma das visitas que
faz à casa da avó. Lembra-se de que o fato de sua mãe ter morrido muito cedo
serve de pretexto para a avó, mais uma vez, desejar a morte de Tio Mário. A
presença do menino traz à lembrança a mãe e a avó não deixa disfarçar sua
indignação pelo fato de ter morrido a filha sadia e não o doente.
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Uma das imagens mais sarcásticas de que o narrador se vale para
esboçar a figura do tio é o paralelo que faz entre ele e Sísifo – por duas vezes,
tentam matar tio Mário – uma por afogamento e outra em que ele é baleado,
mas não houve sucesso em nenhuma delas e o tio louco enterrou muitos
daqueles que lhe desejaram a morte. Como Sísifo, o tio representava também a
ousadia de enfrentar aqueles que lhes eram superiores, contrariando-lhes o
desejo:
Você era uma decepção ambulante, tio Mário. A morte de cada um dos familiares e dos mais próximos te encontrava a postos na guarita da vida. O certo é que em Pains, tio Mário, ninguém, mas ninguém mais do que você bateu tanto as pernas acompanhando enterros até a subida do morro, ninguém conheceu tão variada coleção de padres, ninguém viu tão comprida coleção de coveiros jogando pazadas e mais pazadas de terra sobre os caixões (...). Você acabou por enterrá-los a todos. Os mais próximos e os que mais te amavam. (SANTIAGO,1993, 27)
A figura da avó era acompanhada da imagem repressora do avô, de
quem o narrador, embora não tenha conhecido, guardava a representação da
repressão, do homem que tentava, a qualquer custo, desfazer a diferença que
marcava a família pelo fato de serem imigrantes italianos.
A maior repugnância do narrador, um moribundo que busca nas
memórias as raízes da família, está no fato de os parentes justificarem os desejos
mais sórdidos com pretextos cristãos – diziam que tio Mário devia morrer
porque sofria, embora não houvesse sinal de sofrimento no homem;
lamentavam a morte prematura da mãe do narrador, mas suspeitavam de que
ela pudesse ter pecado de alguma forma para merecer tão cruel destino. A
25
narrativa se encerra sem que o sobrinho tenha conseguido compor a história da
família. Alcança um mosaico montado a partir de fotografias e das lembranças
geradas por elas.
A terceira obra, Viagem ao México, é uma narrativa de grande
experimentalismo de escrita, que transita pelo diário, pela autobiografia, pelo
romance. Além da diversidade de gênero, esta narrativa apresenta muitos
outros deslocamentos, passando o personagem Artaud por realidades várias,
como França, Brasil, México e Cuba. A obra sobreleva a viagem do poeta
francês ao México, que tinha por objetivo conhecer e aprofundar-se na cultura
dos Tarahumaras, grupo humano pelo qual se viu atraído devido a sua
obsessão pela idéia de desconstruir a memória e o individualismo.
Numa perspectiva que caminha analogamente à proposta de Em
liberdade – a de ser uma espécie de biografia ficcional –, o texto apresenta uma
rede de referências facilmente comprováveis da vida de Antonin Artaud, o
poeta-dramaturgo que deixa sua pátria para ir ao encontro dos índios no
México, na década de 30, em busca da cosmologia original, além de sua ligação
ao movimento surrealista e suas viagens; e um narrador, que se põe a serviço
do escritor francês, recebendo-lhe as informações e escrevendo, mesmo que dele
esteja separado por muitos anos, assumindo papéis os mais diversos no
decorrer da narrativa, entretecendo referências intertextuais com o pensamento
e a experiência de Artaud.
Caminhando de forma não-linear, Viagem ao México alterna as
reflexões e experiências de Antonin Artaud e o processo de escrita dessa espécie
26
de biografia é sustentado por um escritor que tenta obsessivamente manter-se
fiel ao que “recebe” de Artaud. Em outras palavras, além do enredo das
experiências do poeta francês, que se apresenta fragmentado, afloram os
questionamentos de uma vida paralela à de Artaud – o cotidiano de um escritor
responsável pela recepção e transcrição das informações do poeta.
Keith Jarret no Blue Note é um livro de contos, que tem como
referência o jazz do americano Keith Jarret. São cinco contos que trazem como
título os nomes de músicas do pianista. O CD é resultado de uma gravação que
ocorreu entre 3 e 5 de junho de 1998. O repertório é constituído por um
conjunto de standards. As músicas são executadas por um trio: o pianista Keith
Jarret, o baterista Jack DeJohnette e o baixista Gary Peacock.
O título do primeiro conto ("Autumn leaves") reporta às recordações
do personagem, que trava consigo mesmo um diálogo que percorre muitas
marcas temporais, construídas à medida que ele vivencia novas experiências. A
lembrança do pai doente vem do convívio com o próprio resfriado e o medo da
tuberculose, que abatera seu pai e levava aos hospitais do mundo inteiro novos
doentes. Revive a juventude em Paris quando associa as folhas secas apanhadas
no chão a outras que costumava recolher no outono parisiense, época mais feliz,
uma vez que afirma que "não se sentia estrangeiro em Paris" (SANTIAGO,
1996,33).
Um assalto na Paris dos anos sessenta traz-lhe à memória a infância
na fazenda do avô; é o canivete usado pelo assaltante o gancho para o salto no
tempo - revive os tempos em que via o avô "picar fumo de rolo, enquanto
27
conversava com os compadres" (SANTIAGO,1996,37), usando também um
canivete.
O cinema é, assim como o telefone, o refúgio para o protagonista de
"Autumn leaves”. Nos dias frios, na falta de companhia, adentrar o aconchego
do cinema é uma opção de lazer e, ao mesmo tempo, uma forma de combater a
solidão: "Entrado o inverno, você se refugiava nas poltronas vermelhas
aveludadas das salas aquecidas dos pequenos cinemas..." (SANTIAGO,1996,41).
As recordações terminam exatamente onde a narrativa se inicia: refaz na
memória o caminho percorrido até a loja onde compra o CD, a revista e o jornal
com os quais chegara em casa no início do conto.
A estranheza e a falta de localização espacial advindas do sobressalto
do acordar no meio da noite estendem-se pela realidade do protagonista de
"Days of wine and roses" . No ócio do fim de semana, o personagem relembra
alguns fatos do passado e resolve telefonar a um amante com quem convivera
por muito tempo e a quem abandonara sem deixar vestígios de sua localização.
A diferença entre eles é evidente: Roy, o amante, é romântico e
estável, anseia por relações duradouras. Ele, o protagonista, é instável, nômade
e prefere não se envolver em relacionamentos profundos, por achar que "a
convivência esfria a lembrança dos primeiros dias, dos primeiros meses, e que a
perspectiva da convivência falseia a intensidade dos sentimentos e das emoções
compartilhados" (SANTIAGO,1996,65).
O fim de semana passa com o protagonista a olhar para rua pela
janela, lembrando de seu passado com Roy e avaliando seus sentimentos, numa
28
atitude de repetição de ações que o levara a telefonar mais uma vez ao ex-
amante. Desta vez, é Roy quem deixa o outro sem noção de seu paradeiro, uma
vez que desativa o antigo número do telefone e não autoriza a divulgação do
novo.
A narrativa encerra-se exatamente como começou: o personagem
permanece solitário e sem perspectiva. O título, "Days of wine and roses",
remete à lembrança dos dias de felicidade que o protagonista vivera com Roy,
mas que só aprendera a valorizar quando perdeu o domínio da situação
amorosa. O que não deixa de ser irônico, uma vez que esse também é o título de
um filme de Blake Edwards, de 1962, cuja tradução é Vício maldito. No filme, a
degradação do personagem devido ao vício do álcool traz um clima de
profundo desencanto.
O terceiro dos contos, "Bop be", é uma espécie de divagação onírica,
levando ao extremo o improviso do jazz, em que há, além do eu do personagem
referindo-se a si mesmo como você ("você comenta a atitude dele diante das
palavras proferidas" – SANTIAGO,1996,82), o uso do eu para referir-se a si
mesmo ("Além de tudo, cá estou eu com um viajante pudico" –
SANTIAGO,1996,82). O diálogo com um viajante faz-se de maneira desordenada
e a construção das seqüências é pouco convencional, o que reafirma a
aproximação com um sonho.
A epígrafe retirada do filme Uma vida por um fio anuncia o conteúdo
do quarto conto, "You don't know what love is/ Muezzin": "Nas emaranhadas
redes duma grande cidade, o telefone é [...] o confidente dos nossos segredos
29
mais íntimos..." É via telefone que o protagonista faz companhia a uma mulher
e a tem como companheira em um fim de semana solitário.
Há um jogo de espaço neste conto. Em sonho, o protagonista vê a
Ipanema em que vivera em combate com a Ipanema contemporânea, conhecida
pelas cartas que recebe dos amigos no Brasil. Vive numa pequena cidade
americana, mas deseja estar no Brasil, algo inviável devido a sua necessidade
profissional de morar no exterior, ao que chama de "o negócio patriarcal e o
ócio matriarcal" – a luta interior dá-se no entrave entre necessidade (Estados
Unidos) e desejo (Brasil, mais especificamente, Ipanema). Acaba por envolver-
se emocionalmente com a história de Catarina, a ponto de esperar pelo seu
telefonema.
Em "When I fall in love", a ação transcorre no hospital para onde se
dirige o protagonista para ver o amante morto. A cena é permeada de
lembranças do passado: as conversas entre os dois, o modo como se
conheceram, entre outros assuntos. A mãe de Adolfo – o amante – olha odiosa o
protagonista, por reconhecer o amor que o filho nutria pelo parceiro e a
indiferença que recebia em troca. A intensidade dramática do conto faz-se com
o culto ao cadáver ainda na cama do hospital, encomendado pela própria mãe,
que dispensara até o padre. O protagonista ressente-se por sua dificuldade de
amar, que tanto magoara Adolfo, ao lado de sua facilidade de apaixonar-se,
sem se sentir propriedade do outro.
Os protagonistas dos contos em questão são sempre os que dominam
a relação, nunca os desprezados, como alguém que se apresenta quase como
30
inatingível no que diz respeito às relações duradouras, ou indiferente à dor
quando olhado com distanciamento: "No momento de cair de quatro totalmente
enamorado, quando todos caem de quatro, você levanta poeira e dá a volta por
cima" (SANTIAGO,1996,138).
De cócoras é a obra de maior nuance lírica de Silviano Santiago. A
novela conta a história de Antônio Albuquerque e Silva, o qual já se faz
conhecer como um aposentado no primeiro parágrafo. A narrativa se inicia no
último dia de vida de Antônio e transita entre seu presente – viúvo solitário – e
suas memórias: tematiza a velhice e a morte solitária. A dissolução do corpo e
as reflexões existenciais que isso acarreta para o personagem central podem ser
pensadas como enfraquecimento da própria razão, o que vem promover uma
espécie de exílio – talvez degradação física e existencial .
Em relação ao enredo do romance, este se nos apresenta de forma
linear: é a história de Antônio, uma existência sem grandes sobressaltos ou
acontecimentos, um personagem que pode ser visto como um homem comum,
cuja característica mais marcante é a honestidade e a preservação do caráter.
Em De cócoras, assim como nas outras obras que compõem o corpus, a
reminiscência tem grande importância: nos momentos finais de sua vida,
Antônio se dedica a recordar cenas de sua infância e juventude. Assim também
acontece com o moribundo de Uma história de família, e até mesmo com as
personagens homossexuais de Keith Jarrett no Blue Note. A memória então é
acionada por meio de fotografias, fotogramas, recordações de músicas, filmes,
etc.
31
De suas parcas referências familiares, fica o irmão mais velho, figura
que se opõe radicalmente a Antônio, principalmente pelo traço verborrágico e
carente de presença familiar. Antônio é o símbolo da solidão:
– A solidão me distrai. – Distrai?! – assustou-se o irmão mais velho. – As horas do dia passam mais depressa. É como se meu corpo estivesse flutuando o dia inteiro no mar, aquecido pelo sol. Mal cai a noite e já parece que estou na manhã de um novo dia. Você se lembra daquele relógio Omega que o papai me deu de presente no dia da formatura? Você se lembra? Virou jóia. É um enfeite que está guardado na gaveta do criado-mudo. Trancado a sete chaves na caixinha de música da falecida. (SANTIAGO,1999,54)
Em seu rol de recordações, Antônio encontra semelhança entre seu
corpo e um relógio que foi, aos poucos, perdendo os ponteiros. A passagem do
tempo descaracteriza a matéria e oferece ao corpo uma aparência de
degradação paulatina, expressa inclusive pela ausência dos dentes.
A relação que estabelece com o mundo depois da morte da mulher
efetiva-se como uma atitude de contemplação e distanciamento: “O mundo não
seduz mais os olhos de Antônio” (SANTIAGO,1999,57). Numa espécie de
balanço, Antônio encontra a si mesmo como um homem de ações medianas,
que não tem pretensão de eternização nem méritos para isso. Alheio ao mundo,
vê sua existência semelhante à do cão, Gama, que, envelhecido, caminha pelas
ruas sem ser notado.
Ao encontrar a si mesmo ainda menino, o personagem encontra-se
também com a imagem da mãe morta no caixão – tema recorrente na ficção de
Silviano Santiago – depois de ter dado à luz o irmão Bebeto. O menino passa a
32
ter no irmão a imagem do diabo, alguém que espalha o mal. O pensamento
impregnado do imaginário do pecado é compartilhado também por aqueles que
tentam desviá-lo desse pensamento, isto é, na tentativa de fazer o irmão não
pensar em tais assuntos, a irmã mais velha também o ameaça ante a imagem do
mal:
O irmãozinho tem pacto com o Diabo – é o que Antônio diz para as duas irmãs (...). A mais velha responde, dizendo-lhe que não é hora de pensar nessas coisas. Se continuasse pensando assim, era ele que iia direto pro inferno. Pra alma dele não ia ter purgatório, ia ficar penando pela terra até o dia do Juízo final. (SANTIAGO,1999, 92-93)
Nos seus momentos finais, Antônio vê-se diante de presente e
passado, e as imagens da memória reverberam a ponto de lhe trazerem
sensações, inclusive físicas, na recuperação dos momentos de dor na infância:
“Antônio está mergulhado e subindo à tona no sonho da própria vida. Ora nele
vive como criança, ora contempla-o da margem como adulto que examina
velhas fotos num álbum de família”. (SANTIAGO,1999, 110). Termina sua
trajetória depois de ver anjos que vêm para ajudá-lo a desvencilhar-se da dor
física e encontrar a morte, numa espécie de arremate do vivido.
O falso mentiroso é uma narrativa em primeira pessoa, que traz as
memórias de Samuel Carneiro de Souza Aguiar, um pintor e também falsário,
um copista, mas que se encaixa no rol daqueles que não são reles falsificadores:
é um sofisticado copiador. O narrador-personagem, depois de longo preâmbulo
em que discute os limites entre real e ficção, apontando para sua liberdade no
processo da escrita, apresenta-se: “Ainda não me apresentei. Me chamo Samuel.
33
Caí de pára-quedas2 entre os Carneiro, no lado materno, e entre os Souza Aguiar,
no lado paterno. Samuel Carneiro de Souza Aguiar.” (SANTIAGO, 2004, 21).
Como se pode perceber no trecho destacado, Samuel tem um passado
indefinido: ainda na maternidade, foi retirado de seus pais biológicos. Por não
conhecer suas origens, dá a si mesmo a liberdade, nessa espécie de diário, de
criar o próprio passado.
Samuel apresenta-se como uma antítese do que poderia supor
qualquer expectativa: é um pintor profissional, mas que põe seu talento a
serviço de uma atividade ilícita a seu ramo – é um falsificador e seu alvo são as
xilogravuras de Osvaldo Goeldi. Transita sem constrangimento nesse território
do plágio, sob a justificativa de ser impossível valorizar a originalidade nesse
mundo fadado ao fake.
Não podia não ser a favor da cópia. Era a salvação da lavoura. Tinha ojeriza por tu do o que se apresentava ao público como original e autêntico. Puro. Imaculado. Queria macular nuvens, mares, montanhas, rios, campos, animais e pessoas. (SANTIAGO, 2004, 141.)
Samuel narra/propõe algumas versões para seu nascimento,
caminhando na esfera das probabilidades, num desdobramento de tramas que
aponta para a localização dele no presente. Isto é, Samuel tem existência
presentificada, pois sua história se constrói, inclusive para ele mesmo, a partir
das hipóteses levantadas.
Já que voltei a tocar nas circunstâncias do meu nascimento, adianto. Corre ainda uma quinta versão sobre elas. Teria nascido em Formiga, cidade do interior de Minas Gerais. No
2 Grifo nosso
34
dia 29 de setembro de 1936. Filho legítimo de Sebastião Santiago e Noêmia Farnese Santiago. A versão é tão inverossímil, que nunca quis explorá-la. Consistente só a data de nascimento. Cola-se à que foi declarada em cartório carioca pelo doutor Eucanaã e Donana. Diante de padrinhos e testemunhas. (SANTIAGO,2004,180).
Seus pais adotivos são apresentados como sendo Donana e Eucanaã;
ela, estéril e muito religiosa, influência de onde se supõe vir a escolha do nome
do narrador; ele, o maior representante brasileiro na fabricação de camisas-de-
vênus, embora se apresentasse em sociedade como ilustre advogado, cujo
prestígio entra em decadência com a penicilina.
Samuel narra peripécias escolares, em que sempre está envolvido em
situações comprometedoras, nos mais diversos âmbitos: desde as experiências
escolares em que tenta sempre livrar-se das responsabilidades com as notas até
as aventuras amorosas.
Decadente, já amadurecido, resolve reunir lembranças e registrá-las.
Numa atitude zombeteira e parodística, apresenta suas memórias referenciando
as de outros personagens ficcionais, como ele se declara também ser: as de João
Miramar, as de Brás Cubas e as do Leonardo Pataca, o Sargento de milícias.
Imitando autores do passado e propondo-se sem pudores a praticar o plágio
das obras de Goeldi, Samuel especializa-se na estética da cópia.
Histórias mal contadas é o título do livro de contos que se divide em
duas partes: cinco contos intitulados “mal contados” e outros sete chamados de
“apropriados”. As histórias ditas “mal contadas” transitam no universo das
experiências de um professor universitário que vai iniciar suas vivências
35
profissionais fora do país, especificamente na França e nos Estados Unidos.
Embute-se na caracterização um juízo de valor próprio do senso comum
quando se trata de algo cujo conteúdo não foi totalmente clarificado, uma
omissão proposital devido ao teor do conteúdo.
Questões delicadas para a época – década de 60 – estão figuradas aí:
nas cidades do sul dos Estados Unidos, confrontos entre negros, brancos e
latinos, em clima de total intolerância; em Paris, um espírito de loucura total
devido a mudanças rápidas e conseqüentes ausências de parâmetros.
Poderíamos inferir que algumas experiências biográficas parecem ser
ficcionalizadas: “A ficção nos aproxima muito mais da verdade do que o mero
relato sincero do que aconteceu. As histórias mal contadas são relatos escritos
por um falso mentiroso, bem semelhante ao narrador do meu último romance.”
(SANTIAGO, 2005,12). A escrita parece revelar a opção do autor de selecionar
da memória fatos que deveriam ser eternizados via ficção, acreditando que
assim há uma aproximação maior da verdade.
O conto “O envelope azul” tem uma alocação muito adequada no
volume de Santiago: é o primeiro dos contos e traz, antes do desenvolvimento
da narrativa, o conceito que norteará a obra – o de selecionar fatos para serem
ficcionalizados, questionando o conceito de verdade: “Serei mentiroso nato?
Não seremos todos?” (SANTIAGO, 2005, 13).
De estrutura claramente metalingüística, o texto traz a história de
uma rica “pseudoviúva norte-americana”: Mrs. Welson, ou Betty, para os
íntimos, uma milionária excêntrica que absorvia o prazer via olhar, isto é,
36
promovia encontros sexuais para satisfazer-se como espectadora dos casais
enquanto eles mantinham relações sexuais.
O título do conto é a referência ao símbolo da ligação do narrador
com Betty: depois de prestar-lhe serviço, recebia dela o pagamento em um
envelope azul. Na realidade, trata-se do símbolo do tipo de vínculo que
estabeleciam: era uma relação profissional, que se estende até o momento da
morte da mulher.
O conto “Borrão” traz a história de uma viagem de ônibus que um
jovem brasileiro faz de New Orleans até Forth Worth, cujo trajeto é
interrompido várias vezes, devido à distância, para que as pessoas embarquem,
desembarquem e supram suas necessidades fisiológicas. A experiência de
discriminação é vivida justamente nessas paradas: num momento
extremamente delicado de discriminação nessa região, o narrador é levado a
entender, na hora de ir ao banheiro, que seu lugar é a “ala” dos mexicanos,
devido a sua condição de estrangeiro.
“Ed e Tom” traz como epígrafe uma declaração de Michael Jackson à
televisão norte-americana e já anuncia o teor da narrativa – aborda a pedofilia,
além de outro grande desconforto: o alcoolismo. É um texto de forte lirismo que
contorna o submundo numa atitude de tolerância e investigação existencial.
As experiências de um jovem itinerante colocam-no em contato com
Ed, cuja história passa a conhecer na primeira conversa travada: trata-se de um
homem de 42 anos, funcionário de uma multinacional que todos os dias parava
37
em um bar após o expediente. Soube logo que era órfão desde muito cedo e
duas vezes – morreu-lhe também a mãe adotiva.
Algum tempo depois, perdendo contato com Ed, conhece Tom, por
meio de um novo trabalho. Colegas de profissão, sabia dele apenas que era
católico praticante, “um rato de sacristia”(SANTIAGO, 2005,64) e que gostava
de fotografia. Tempos depois, descobre que a ausência do amigo no trabalho
devia-se ao fato de estar preso por prática de pedofilia.
Em “Vivo ou morto”, o narrador vê-se envolvido em uma trama
muito complexa que se inicia com a surpresa da descoberta de que estava sendo
procurado pelo FBI. Envolvimento com grupos terroristas, narcotráfico e outras
afrontas à sociedade americana faziam parte da denúncia a ele dirigida. Depois
de muito tentar se disfarçar para não ser reconhecido, o narrador recolhe-se em
casa e, em meio a muita aflição, acorda, “extraído do sonho a
porradas”(SANTIAGO, 2005,116), como afirma.
Já “Bom dia, simpatia” trata das memórias do início da vida
profissional do narrador, num processo de avaliação dos meandros da busca de
espaço em território estrangeiro. Entre setembro de 1962 e outubro de 1968,
situam-se algumas experiências de um professor universitário que transita entre
Albuquerque (Estados Unidos), Paris e uma cidade no México. As dificuldades
financeiras e de alocação em território estrangeiro tornam-se mote para as
lembranças e reflexões advindas delas.
As outras sete histórias – as “apropriadas” – iniciam-se com “Todas
as coisas à sua vez” – texto que transita no mesmo universo que Em liberdade: é
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uma homenagem aos cinqüenta anos de morte de Graciliano. O poema-conto
dá voz às idéias e principalmente às angústias do romancista alagoano, como o
ateísmo, o marxismo e outras inquietações de cunho político.
“Assassinato na noite de Natal” é o relato de confidências de um ator
de telenovelas, que busca companhia na noite de Natal. Avesso ao assédio dos
fãs, normalmente fugia para uma cidade desconhecida no feriado natalino e lá
cumpria seu ritual de comemoração cristã.
O conto “O verão e as rosas” traz a história de um homem para quem
o dia 20 de janeiro significava conviver com um incômodo. O dia de São
Sebastião é lembrado pelo narrador por ser a data do aniversário de morte de
sei pai, homem com o qual não teve boa convivência. Todos os anos, nessa
ocasião, o fantasma do pai visita-lhe, numa espécie de ato reconciliatório: “Não
tendo sido o mais próximo e o mais amado dos quatro filhos, desconheço a
razão da preferência tardia e do tremendo esforço que faz.” (SANTIAGO,
2005,137).
“Uma casa no campo” trata da história de dois amantes e do desejo
de um deles de ter uma casa no campo. Depois de adquirida a casa, descoberta
ao acaso numa viagem, passam a fazer viagens constantes para o local, onde
fundam um recanto com direito a um belo jardim. Depois da morte do amante,
o narrador mantém a casa como forma de preservação da imagem do primeiro.
Adquire hábitos até então não cultivados, como cuidar do jardim e da casa,
tarefas que cabiam ao outro por representarem o desejo dele.
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O conto “Hello, Dolly” é uma carta endereçada a Walter Benjamin,
em que se tecem reflexões acerca do conceito de cópia sugerido no título. O
narrador dirige-se ao alemão num tom de protesto por ver sua imagem
reproduzida às dezenas pela cidade do Rio de Janeiro – várias pessoas idênticas
a ele entrecruzam-se nas ruas.
A última possibilidade de distinção – já que o nome João da Silva
também se repetia – era a identificação das digitais. Entretanto, comprova-se a
desidentificação quando, no registro civil, o narrador é informado de que todos
os seus iguais têm as mesmas impressões digitais que ele.
O outro conto em formato epistolar, “Conversei ontem à tarde com o
nosso querido Carlos”, dirige-se a Mário de Andrade e constitui uma espécie de
“conversa” sobre Carlos Drummond de Andrade. Mais uma vez, Silviano
assume uma identidade ficcional que atravessa os tempos e encontra o paulista
Mário de Andrade para refletir sobre a dor e sobre o mineiro Drummond.
No último dos contos, “Caíram as fichas”, o ficcionista retoma a
mesma proposta de Em Liberdade, encarnando, dessa vez, a figura de Mário de
Andrade. Refazendo o percurso do paulista na tentativa de escrever uma
palestra que iria proferir, revela os bastidores e as discussões acirradas quando
da Semana de Arte Moderna.
Narrativas que inovam em estrutura se encontram em nuances
temáticas ou na construção de personagens cujas diferenças, embora não
características de sujeitos de centro, fazem soar suas vozes da margem, com a
40
mesma propriedade de uma personagem de uma narrativa tradicional cuja base
está longe das periferias.
41
3 ENTRE-CAMINHOS: O LUGAR DA ESCRITA FRONTEIRIÇA
Mas contar o que, se não há o que contar?Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou
então se conta o que não há para contar. (Sérgio Sant’Anna. Conto (não conto).)
Não é novidade que a literatura contemporânea em muito se
distancia do projeto de Sherazade de manipular tramas na construção do
enredo. Os escritores contemporâneos justapõem, na narrativa, enredos e
artifícios de criação, desdobrando projetos estéticos que resultam em uma
narrativa centrada na perspectiva do sujeito.
A situação primitiva em que se inseria o universo do narrar – um
acontecimento a ser narrado, um público a quem se narra e um narrador que
serve de mediador entre essas duas esferas – contamina-se hoje pela atitude
reflexiva própria do ensaio. Flora Sussekind e Antonio Candido, este em “A
nova narrativa” e aquela em “Ficção 80”3, já anunciavam, há alguns anos, essa
nova perspectiva de que se vale agora o autor no espaço do narrar. E o próprio
Silviano Santiago situa cronologicamente esse novo modo de narrar:
Na história da literatura brasileira, Clarice Lispector inaugura tardiamente a possibilidade de uma ficção que, sem depender do desenvolvimento circunstanciado e complexo de uma trama novelesca oitocentista, consegue alcançar a condição de excelência atribuída pelos especialistas. (SANTIAGO,1999,13).4
3 O texto do Professor Antonio Candido está inserido no volume A educação pela noite e outros ensaios. O texto da Flora Sussekind está no livro Papéis colados. 4 Este texto intitula-se “A aula inaugural de Clarice” e está inserido no livro Narrativas da modernidade, organizado pelo Prof. Wander Melo Miranda.
42
A atitude do narrador diante de seu objeto não é mais distanciada
como na narrativa tradicional e um forte sintoma da onisciência – a antecipação
dos acontecimentos – não ocorre mais em uma narrativa cujo olhar se direciona
para as reflexões privilegiadas a partir de uma seleção subjetiva, acionada pela
memória.
Desde Machado de Assis, na literatura brasileira, o espaço da ficção
teve exemplo rentável de autores que suspendiam a narração dos
acontecimentos para abrir espaço à argumentação, à apresentação e/ou defesa
de idéias que entrecruzam os fatos da narrativa. Paralelamente à narração, ou
sobrepondo-se a ela, o narrador de hoje dá espaço a uma estratégia discursiva
de cunho reflexivo-especulativo sobre um tema cujo dispositivo foi acionado no
plano narrativo, no desdobrar dos acontecimentos.
Em se tratando de estrutura, a literatura de Silviano Santiago vem
desestabilizar, dialeticamente, como o fazem muitos escritores de hoje, a
especificidade e a rigidez do conceito moderno de arte. Centra-se na elaboração
de uma literatura de estruturas abertas e nas formas diversas do fazer literário.
Seus trabalhos transitam em uma esfera fronteiriça: entre o erudito e o popular,
o clássico e o vanguardista, o nacional e o cosmopolita, o popular e a cultura de
massa, extravasando os gêneros literários definidos e, por muito tempo,
definidores de construção.
Entretanto, corre-se um risco ao pensar nessa situação fronteiriça da
escrita de Silviano. Não se pode pensar em trabalho de maquiagem nos textos
críticos, ou ainda de mera aplicação de técnicas no texto literário. O autor se
43
vale de um discurso que caminha limítrofe às duas esferas, sem que a acuidade
e o objetivo estético se percam no percurso. Portanto, a relação entre essas duas
esferas discursivas não pode ser reducionista.
Silviano Santiago situa-se entre esses autores contemporâneos que,
rumando na contracorrente das fronteiras tradicionais do gênero ficcional,
lançam-se, no exercício da ficção, ao empreendimento de transgredir essas
fronteiras, dando especial destaque à atitude crítica do comentário e à exposição
das estruturas de que se valem no processo de criação.
Em liberdade, por exemplo, constitui-se como romance, mas, na sua
estrutura interna, passa pelos caminhos da biografia, quando apresenta dados
da vida de Graciliano Ramos, amparados em pesquisa; do diário, quando
coloca a perspectiva de apresentação dos dados biográficos na responsabilidade
do personagem Graciliano; e do ensaio, quando, em situações várias, o
personagem tece considerações acerca de assuntos relacionados à configuração
do intelectual brasileiro.
O falso mentiroso tem este trânsito como veículo-motor, isto é, ao
intitular-se como memórias, a obra propõe certo escárnio à estrutura da
autobiografia, expandindo os limites entre ficção e real. Apropriando-se do
preceito filosófico de Euclides de Mileto, o paradoxo, o texto trabalha nos
limiares da simulação, questionando, como o faz a Arte Conceitual, a
possibilidade de autonomia da obra de arte, e seu caráter irreprodutível:
A Arte Conceitual, de modo geral, opera na contramão dos princípios que norteiam o que seja uma obra de arte (...). Em
44
vez da permanência, a transitoriedade; a unicidade se esvai frente à reprodutibilidade; contra a autonomia, a contextualização; a autoria se esfacela frente às poéticas da apropriação; a função intelectual é determinada na recepção. (FREIRE, 2006, 8-9)
Assim como na arte conceitual, de cujos preceitos Cristina Freire trata
na citação acima, o texto de Silviano sobreleva as estratégias e os processos de
criação em relação ao produto final. A ênfase se desloca do resultado para os
caminhos da produção. Enquanto a arte conceitual se apropria do conceito de
movimento para conseguir esse efeito, a narrativa de Silviano ampara-se em um
conceito semelhante, o de trânsito: atravessa as fronteiras entre os gêneros e
obtém como resultados textos que transpassam os recortes tradicionais de cada
gênero.
Nas obras de Silviano estudadas aqui, o percurso do crítico
atravessa a atividade do ficcionista, desembocando em um trabalho que transita
na confluência de gêneros. Utilizando-se do discurso do ensaio na ficção, o
autor promove aprofundamento em algumas questões, como por exemplo o
papel do intelectual brasileiro; trava polêmicas em relação a temas de que trata,
como em relação ao conceito de autenticidade; e resulta em um painel de escrita
cuja maior marca é a potência híbrida. Há forte traço de erudição na gama de
referências que constitui a composição que se forma em cada texto.
No discurso ensaístico, a instauração da atitude reflexiva permite
maior mobilidade na atuação do narrador, que transita em diferentes áreas do
conhecimento, cabendo, inclusive, a possibilidade (muito conhecida) de
investigação dentro de seu circuito, o que o conduz à estrutura metadiscursiva.
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Utilizando-se dessa estratégia, Silviano compõe obras que se encaminham,
principalmente, para duas direções: uma é a contextualização da realidade
histórica na ficção, que marca fortemente a obra Em liberdade; outra é a atitude
reflexiva experimentada na esfera da subjetividade, como ocorre em Viagem ao
México, O falso mentiroso, entre outros.
Entretanto, mesmo em Em liberdade, em que a apropriação dos
preceitos da história mais se aproxima do romance histórico que descende da
década de 70, Silviano vai além porque estende ao fato histórico a atitude
reflexiva e utiliza-o como elemento desencadeador do conflito na trama. De
certa forma, distancia-se da possibilidade de apresentar os acontecimentos
envoltos em uma configuração estática em relação ao mundo.
A ficção que se vale do discurso ensaístico tomou corpo e espaço
nas biografias e nos relatos históricos de teor literário. Na narrativa, muito mais
do que o fato, o enredo, o que dá corpo ao relato é o acontecimento e o
desdobramento reflexivo que advém dele a partir do estímulo visual e do
acionar dos dispositivos da memória.
Essa presença crítica inserida nos meandros do discurso ficcional
acaba por ressaltar uma atitude suspeita em relação a ambas as fronteiras: o que
se suspeita ficcional e o que se diz científico atravessam o campo da narrativa
sem estabelecer limites, numa lógica em que a experimentação surge como
estratégia para legitimar as idéias que transitam sem arremates.
Nesse limiar entre crítica e ficção, Silviano recorre a estratégias
discursivas, como criação de imagens, composição de metáforas, promoção de
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digressões, percorrendo diferentes caminhos de conhecimento, como artes
visuais, música, cinema, apropriando-se de conceitos originários de áreas
diversas para inseri-los numa outra perspectiva discursiva, que é a narrativa
ficcional. Define-se assim uma prática que, embora traga a ilusão de puro
intelectualismo, estabelece-se muito mais como interpretação e ressignificação
dos conceitos que transitam em sua esfera.
Em liberdade põe explicitamente em xeque esses limites entre os
discursos crítico e narrativo ficcional, discutindo a posição do intelectual no
cenário brasileiro do período de Getúlio Vargas. Enfatiza a importância da
função social do escritor de ficção e discute as relações que se estabelecem entre
os intelectuais e as questões de seu tempo, expondo metodologicamente o
encaminhamento que devem ter as discussões sobre assuntos diversos no
contexto da ficção:
O romancista ocupa, por isso, uma posição difícil dentro da sociedade e do seu grupo. Ele traz problemas sem solução para os seus semelhantes. Incomoda-os, não os deixando quietos e tranqüilos com a vida que estão levando. (...) Esta crítica, no entanto, não aparece de forma explícita. Seria preferível, neste caso, escrever um ensaio. A crítica na ficção joga com a ambigüidade: reproduz a norma (momento em que o leitor, tendo encontrado um semelhante, simpatiza com ele), mas ao reproduzi-la, começa a instilar gotas de insatisfação, que perturbam o mesmo leitor (tendo simpatizado inicialmente com os personagens, o leitor começa a achar o seu/dele comportamento estranho, deixando, enfim, de simpatizar com o livro. (SANTIAGO, 1994,123)
A teoria explicitada sobre a atitude crítica no romance simula o
percurso de escrita dos escritores da década de 30 – momento em que se insere
Graciliano Ramos – e deixa entrever os artifícios que, ora defendidos como
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propriedades da ficção, que deveriam aparecer apenas sob a forma de alusão,
afloram como material de cunho ensaístico na narração. Isto significa que o
discurso da personagem Graciliano Ramos sobre a forma em que se deve
instaurar a crítica na ficção vai de encontro à construção do texto, que se recheia
de verdadeiros ensaios sobre a condição política do homem intelectual no
Brasil, sem necessariamente, recorrer sempre ao implícito como estratégia.
O aparente paradoxo justifica-se pelo fato de a personagem poder
se permitir isso porque sua escrita é a de um diário e, portanto, a forma estaria
adequada. O romance de ficção é de Silviano Santiago. Ele constrói forma sobre
forma e desestrutura esse discurso que, para o personagem, é tão claro em suas
fronteiras.
Num estilo que muito parafraseia o processo de escrita de São
Bernardo, Silviano recorre à estrutura da metanarrativa para dar lugar à voz
crítica que representa a personagem Graciliano Ramos, desdobrando-se em um
jogo de base intelectual, envolvendo o artifício da linguagem e os conceitos
literários e artísticos engendrados no processo de criação.
Assim como o escritor se interessa pelo alargamento das suas fronteiras lingüísticas, também o leitor tem de trabalhar nesse sentido se quiser acompanhar o romancista, lendo a sua obra. Dessa forma, terá acesso a um pensamento diferente do seu. Terá um melhor conhecimento do outro, do intrincado funcionamento da sua cabeça e da maneira como fabrica soluções e problemas. Tudo isso sem a interferência de uma única subjetividade individual ou de classe. Não concebo uma intriga – num país de tantos falares quanto o nosso – sem antes fazer uma investigação minuciosa da língua em que esta intriga foi vivenciada. Saio à cata do falar dos meus personagens, encontrando por aí uma série de línguas menores que precisam ser dicionarizadas. (SANTIAGO, 1994,122-123)
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Além da discussão sobre o papel do intelectual na sociedade, que
se dá no plano macro, no plano micro, o narrador Graciliano Ramos põe em
discussão a diferença que se estabelece entre a própria escrita e a do escritor
José Lins do Rego. Deixa emergir, na análise que faz da escrita do amigo,
respeito a sua atividade de escritor, embora não esconda séria resistência a sua
postura como intelectual. Mais uma vez, há forte defesa da atitude engajada de
que deveria se valer o escritor, o que revela um narrador fiel a seu projeto
estético na escrita:
A recriação que faz do latifúndio nordestino funciona a contento para a visão do Brasil que querem passar os camisa-verdes. (...) O projeto de nação integralista – porque é feito para convencer as camadas médias da população – não se interessa pelas diferenças. Com isso, também justificam eles a necessidade de um poder único e centralizador no Rio, o executivo, que cobrirá com igualdade e justiça todas as vastas e semelhantes regiões do Brasil. Acaba é o governo sendo entregue a um homem da elite, que assim vê justificada sua tomada de poder. (SANTIAGO, 1994,126)
Num processo de ir e vir que denuncia a proposta de expor as
rasuras e as várias versões do relato, própria de um diário íntimo, o narrador
Graciliano não se abstém da atitude de voltar ao não-relatado. Mas esse retorno
quase sempre se justifica pelo teor de reflexão que se desdobra a partir dele. O
narrar, nesse sentido, é um pretexto para argumentar em relação a uma postura
ideológica. É o que acontece, por exemplo, no relato de 1º de fevereiro, noite,
quando retifica uma afirmação sobre o episódio do encontro com o Ministro da
Educação, que se torna dispositivo para as idéias que defende acerca da
literatura infantil:
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Na história [A terra dos meninos pelados] procurei não cair em três armadilhas comuns nas histórias infantis de que me lembro: nada de tom piegas ou sentimental; nenhuma referência concreta ao chamado mundo real (é um conto “maravilhoso”); nenhuma distinção precisa entre crianças e adultos. O sentimento, o realismo e a diferença de geração estão ao nível das intenções e não ao nível da execução. Joguei constantemente com os dois níveis, e só espero que tenha obtido, no final, um verdadeiro conto maravilhoso que fala de problemas do homem concreto. (SANTIAGO, 1994,144-145)
Questões angustiantes como ser visto como mártir e, portanto,
como ser individual privilegiado, ou ainda o incômodo da premência da escrita
pela lei de mercado oferecem material farto para o desvela mento de um sujeito
propenso à atitude de expor sua condição como a de alguém que não está
indiferente às mudanças e às conseqüências trazidas por ela. A escrita é, assim,
uma forma de denúncia das disparidades e das imposições sociais:
Se todos os praticantes da literatura pensassem um minuto nas implicações do corredor da produção e da indústria do livro, deixariam que a maioria dos seus escritos tivessem a transitoriedade de uma gota de suor na página escrita, em uma tarde de calor insuportável. Como num passe de mágica, as suas palavras escritas desapareceriam quando fossem passadas a limpo pela datilógrafa. (SANTIAGO,1994, 101)
A escrita do início do diário encaminha-se para a construção de um
projeto metanarrativo que conduz o leitor ao conhecimento de uma
personagem reclusa, cristalizada e impotente diante da vida e, por extensão, da
atividade como escritor. Aparece como atividade que se impregna do contexto
em que se insere o escritor, reforçando, de certa forma, a condição de ser social
do homem. Os resquícios da prisão estendem-se à vida do romancista:
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As construções lingüísticas não se organizam de maneira racional na cabeça; saem as frases com o ímpeto de uma rajada de vento, causando mais transtorno do que harmonia. Se transcrevo o que sai – mero escriba de mim mesmo – eu compreendo. Mas quem mais? Fico pensando em como deitar no papel, não as frases que brotam como capim depois da chuva, mas o que está passando pela minha cabeça desde ontem, como um sapateiro pesponta uma sola para que o sapato possa ser usado por outra pessoa. E, ao pensar como transpor os processos mentais, esqueço-me do que tenho a dizer, e fica só a vontade de estudar os processos, comunicá-los como se fossem mais dignos da escuta alheia do que as frases anárquicas que saem com o ímpeto de uma rajada de vento. Onde as botas de sete léguas de José Lins do Rego? (SANTIAGO, 1994, 23)
A estrutura fabulesca, portanto, não é privilegiada em Em liberdade,
que se constitui como uma composição mista, híbrida, formada por muitos
gêneros (diário, autobiografia, romance, ensaio) e balizada em uma estrutura
ensaística que a constitui como um tratado sobre a importância da intervenção
política dos escritores de literatura, sobre a responsabilidade de manifestar, no
imaginário de suas obras ficcionais, seu posicionamento diante das questões de
seu tempo.
Isso se revela como atitude de evidente simulação de um autor,
Silviano Santiago, que, lançando mão de artifícios como o pastiche e a
manipulação de gêneros, retoma o imaginário do tempo do escritor alagoano,
propondo-se a uma retomada multifacetada de uma época, sem se limitar à
simples ficcionalização desse tempo.
Já em “O envelope azul”, de Histórias mal contadas, o narrador-
escritor traça um projeto de escritura, cujo objetivo se centra em reescrever
histórias já contadas. A estrutura metanarrativa caminha para uma espécie de
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manifesto de como escrever quando a proposta é reescrever. A reciclagem das
idéias atravessa as estratégias de recortar, colar, montar lembranças. O narrador
posiciona-se como um bricoleur que, recolhendo da memória fatos e
pensamentos, dá-lhes outro encaminhamento, a fim de retirar deles a máscara
do não-dito:
De uma semana para cá fiz a listagem das histórias mal contadas. São legião. Que critérios adotar para escolher a primeira que receberá o crivo da verdade? Primeiro mandamento. Não cair no engodo de dar ouvidos ao desembaraço e à extroversão das histórias barulhentas e fétidas. (...) Segundo mandamento. A história escolhida tem de ser a mais silenciosa, intensa e obsessiva. (...) Terceiro mandamento. A escolhida terá de ser uma história que tem batido com constância à porta da minha atenção, sem ter sido pressionada ou pela vontade dela ou pela minha. (...)Quarto mandamento. Tem de ser uma história mal contada que não brinque em serviço.(SANTIAGO, 2005, 11-13)
As estratégias utilizadas pelo narrador são expostas, de modo a
marcar sempre uma atitude de organizador do material a ser narrado, revelada
na constante tentativa de suspender a expectativa do leitor diante dos
acontecimentos. Denuncia-se um “especialista em extravios narrativos”
(2005:13), alguém que narra em “ziguezague” (SANTIAGO, 2005,13),
simulando uma postura que nega a primazia da atividade cerebral no ato de
criação:
Selecionada a primeira história, estender-lhe-ei o tapete vermelho da boa acolhida. Irei deixá-la subir pé ante pé, silenciosamente, as teclas do computador e caminhar ruidosamente por entre elas, pressionando as que julgar necessárias. Entrará às pressas monitor adentro e sairá estampada na telinha com o porte e a dignidade de rainha ou de autoridade estrangeira em visita à terra amiga e hospitaleira. (SANTIAGO, 2005, 13-14)
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A proposta de glamurização das histórias, para que se tornassem
“bem contadas”, é metaforizada pelo narrador na imagem de alguém que
encontra beleza “por detrás dos trapos” (SANTIAGO, 2005, 13-14). A atitude
sarcástica do narrador revela uma humanização dessa tarefa, que se distancia
da prática dos grandes narradores da história da literatura, verdadeiros
construtores de uma realidade plástica:
Não quero que Shaw me sirva de modelo. Por dois motivos. O primeiro. O objeto da minha paixão é a história no estado em que se encontrava antes de ser bem contada. Beleza e formosura nem dão pão nem fartura. O bem narrar, o narrar verdadeiro é uma concessão que faço à consciência e à morte iminente. O segundo. Nasci menos irônico e mais mundano do que permitem os cultores do mito de Pigmaleão e Galatéia. No meu olimpo copacabanense sempre moraram homens e mulheres deslumbrados, de carne e osso. (SANTIAGO, 2005, 15)
O narrador não esconde sua preferência por um universo que seria
considerado submundo aos olhos da literatura clássica. O escárnio pela relação
de afeto com a obra, encarnado no repúdio à figura de Pigmaleão, ressalta a
idéia de que glamurizar uma história é uma questão de contingência, e não um
projeto estético. Mais uma vez, no texto de Silviano, forma e conteúdo vão
caminhar paralelamente: um texto cujo parco enredo trata da vida excêntrica e
promíscua de uma milionária constitui-se também como metaficcional , na
medida em que dá relevo a um apreço por esse mundo localizado fora dos
“salões” literários:
O primeiro exercício na Socila é o de postura. (...) Transponho o primeiro exercício para a frase-modelo da história bem contada. Ela tem de ficar empinadinha na folha de papel (...). Transponho o ensinamento para o parágrafo-modelo. No mundo altamente competitivo do mercado
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contemporâneo de livros, frases com boa disposição para atender ou recusar as necessidades e exigências do outro podem fazer a diferença na disputa pelo leitor. (...) Transponho a lição para o capítulo-modelo. Uma história bem contada não é feita só de palavras. (SANTIAGO, 2005, 16-17)
O tom de escárnio que sustenta a perspectiva metanarracional desse
texto indica que a teoria da analogia da reescritura da história com as lições de
etiqueta constituem uma ironia, que funciona como crítica à literatura
contemporânea, ou, mais precisamente, às leis de mercado, e que culmina com a
rendição do narrador à narração dos fatos: “Chega de lero-lero. Vamos à
história que selecionei.” (SANTIAGO, 2005,17)
As digressões de caráter reflexivo avançam na narrativa de “Bom
dia, simpatia”, também do volume Histórias mal contadas. A partir da proposta
de relatar sua trajetória profissional, o narrador oferece à narrativa o tom
confessional de um diário, que revela os meandros desse caminho (“Nada tenho
a perder. Tudo a ganhar. Foi com esse moto duplo que entrei na vida
profissional.” SANTIAGO, 2005, 73), o perfil de consumo (“Mimoseei-me com
roupas da moda, sapatos caros e gravatas de seda, com perfumes e produtos de
beleza sofisticados, com acessórios e jóias de rara beleza.” SANTIAGO, 2005,
73), a atitude diante das relações sexuais (“O eterno trânsito das relações
humanas na hora do ‘rush’ sentimental não era barrado por nenhum sinal
vermelho” – SANTIAGO, 2005, 78), para enfim desdobrar-se na proposta de
também extraviar o curso da ação:
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Bom-dia simpatia é o título do livro que constrói a mim para o mundo e a vida social a partir dos anos 1960. e também para o anonimato. Caro leitor, rasgue as páginas que já leu. Comecei de maneira errada a história que pretendo narrar. Até agora, tudo mentira. (...) Reparem e ponham fé, amigos de outrora: com a velhice passei a substituir os volteios juvenis da vida airada pela maestria nas reviravoltas narrativas. (SANTIAGO, 2005, 79)
Em estilo machadiano, o narrador interrompe o curso do relato para
seguir outro encaminhamento, decretando uma espécie de falência para tudo o
que já havia sido relatado (“Corrijo a fala desvairada que vinha desembestada
pelo papel. Volto ao começo desta narrativa, sem ter tocado no fato que iria ser
narrado.” SANTIAGO, 2005, 80) e direcionando o leitor a vários subtextos que
emergem por meio do fluxo da memória, em um percurso não-linear, como
num jogo de cartas, manipuladas por este narrador:
No teatro e no cinema o sono é o refúgio. No museu você está de pé, acordado, caminhando com as observações, tendo-as como companhia divagante. Como Nietzsche, você passa a ter medo de quem pensa sentado. De novo me extravio e me perco nos oleodutos da escrita. Esquivo-me da tarefa que a mim me deleguei – narrar os primórdios da minha vida profissional. (SANTIAGO, 2005, 93)
Em outros dois contos, “Conversei ontem à tardinha com o nosso
querido Carlos” e “Caíram as fichas”, Silviano faz o mesmo exercício de
simulação de escrita da obra Em liberdade. Em “Conversei ontem à tardinha com
o nosso querido Carlos”, o narrador Silviano Santiago se diz amigo de Carlos
Drummond de Andrade e escreve a Mário de Andrade, numa espécie de
intervenção na correspondência praticada entre os dois escritores. O tom íntimo
próprio de uma correspondência entre amigos traz à tona uma voz intervém
55
nas críticas de Mário a Drummond, acentuando a acidez com que o paulista
analisa a produção do mineiro, que se desdobra na tentativa deste de adequar-
se aos parâmetros estéticos daquele:
Antes de mais nada, ponha de lado, dear Mário, as sensatas preocupações com as chibatadas que v. anda dando na imaginação provinciana do nosso amigo. A sensibilidade dele tem a consistência da pele de elefante. Alfinete, prego e verruma não entram ali. Só lança atirada por algum herói indiano de Rudyard Kipling, de pé na plataforma dum bonde que trafega pela Rua da Bahia. Posso te assegurar. Por causa das suas cartas, o Carlos já abandonou antigos e amados livros e adentra por outros e diferentes autores, como um morcego que tenta desenhar com os sensores atentos um caminho futurista, a ser trilhado dagora em diante. (SANTIAGO, 2005, 158)
O trabalho deste narrador neste conto-carta consiste em fazer a
crítica da crítica de Mário a Drummond, posicionando-se como alguém que está
no circuito da intimidade, e não no papel distanciado de crítico. Simula a forma
(carta) e o teor (crítica) utilizados por Mário nas correspondências e, por meio
de um discurso argumentativo, aponta a similaridade que emerge das obras de
Carlos Drummond e de sua própria obra:
Ao fim desta carta, já não sei se estive falando de você e do Carlos, ou de mim mesmo todo o tempo. O enigma maior que tentei dramatizar nos meus livros é o mistério da dor inútil. A dor que advém no momento em que a mulher grávida morre das “dores de parto”, para retomar a expressão de Nietzsche, ou seja, no momento em que só ela pode dizer sim à vida através do filho que nasce. (SANTIAGO, 2005,170)
Ainda neste texto, o autor joga com sua identidade de escritor,
promovendo uma interface entre a atitude crítica às correspondências entre os
escritores modernistas e o próprio projeto estético:
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Com o seu sim, com o seu não (desculpe a ironia no jogo de palavras), a descoberta que fiz pesa, vale, a incorporo, já é minha e vou fazê-la render nos meus escritos futuros. Ando pensando em escrever um romance que se chamará Uma história de família. Lá v. virará personagem sob o nome de tio Mário. (SANTIAGO, 2005, 169)
O projeto de escrita de “Caíram as fichas” é, em maior escala,
análogo ao de Em liberdade, uma vez que Silviano Santiago assume o papel de
editor de textos críticos que teriam sido escritos por Mário de Andrade. Como
lá, a escrita é permeada pelos critérios formais que legitimam a aferição da
autoria a Mário de Andrade, com cuidados necessários para provar-lhes a
autenticidade e manter o distanciamento necessário à tarefa de edição crítica,
cujas intervenções são amplamente justificadas, como nas notas de rodapé do
editor: “Em duas cartas dirigidas a Murilo Miranda, Mário fala da homenagem.
As hipóteses que levantamos são, pois, verossímeis.” (SANTIAGO, 2005, 171)
Assim como em Em liberdade, em que o autor simula a escrita de
Graciliano por meio não só da aproximação do estilo deste, mas também do
universo ideológico do alagoano, em “Caíram as fichas”, Mário de Andrade
personagem mostra-se muito próximo do Mário escritor nas posições que
defende em relação à arte e ao Modernismo. Silviano parece situar mais uma
vez a forma e a representação do artista no cenário de sua época na construção
do texto.
O histórico do modernismo terá de ser, acabará sendo um relato comprometido com uma visão autocentrada e libertária do movimento. O perigo é transformar a visão única na visão por excelência. No entanto, o escorregão, o tombo no subjetivo é real e não sei a que armas silenciosas recorrer para evitá-lo. Não há como não transformar o que deveria ser parte inequívoca do múltiplo na egolatria
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irresponsavelmente responsável deste que se transforma em depoente privilegiado. (SANTIAGO, 2005, 184)
Em Uma história de família, a partir de alguns binômios, como
vergonha e culpa, morte e loucura, a narrativa faz-se de idas e vindas no tempo,
lembranças da infância e vivências de um adulto, em busca do passado, da
história de sua família e de sua própria história. Com uma costura enviesada, às
vezes, o narrador parece perder o rumo: tentando compor uma história,
encontra várias histórias e, quando se vê distante de seus propósitos, retoma a
proposta inicial, como acontece no capítulo dezesseis - essencialmente uma
retomada. Revela-se aí a impotência de um sujeito que tenta desconstruir a
história da família e fracassa pelo apego aos moldes tradicionais de construção,
além de se encontrar paralisado pela doença. A escrita é, pois, uma das amarras
que atam esse sujeito ao passado.
O romance regional surge como pretexto para representar também
as contradições e conflitos de um Brasil multiidentitário, que guardava também
traços arcaicos em sua diversidade regional; entretanto, a ênfase está na
repercussão subjetiva dessa diferença, na não aceitação da condição de
imigrante.
A estrutura provinciana de uma cidade do interior, dominada por
uma sociedade patriarcal em decadência, aflora como pano de fundo para
localizar a realidade dos imigrantes que compunham a sociedade local. É
através desta volta ao regional, à estrutura da vida microanalisada, que o
narrador chega à tragédia do tio e à sua. É através da análise da família que o
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narrador desvenda as próprias inquietações existenciais e os conflitos sociais do
geral.
Mas a perspectiva regional revela-se também no discurso entre as
personagens, numa discussão travada pelo Dr. Marcelo, que se mostra crítico à
atitude minimizadora e generalizante dos escritores de romances regionais. A
tendência à condensação das complexidades subjetivas e à aferição de
características generalizantes constituem os piores artifícios atacados pelo Dr.
Marcelo:
Conclui: a vida cotidiana numa cidade do interior, ao contrário do que se pensa, é construída por momentos de silêncio e por vazios de ação. A maior parte dos últimos anos passei a querer preencher de significação esses momentos que pensava ter compreendido. As lacunas do falado e do vivido, eis o essencial. Não é tarefa fácil para quem for representá-las, mesmo porque, na primeira recaída a gente joga a toalha no ringue e reganha forças pedindo água na cuca e mercúrio-cromo aos velhos modelos de compreensão, voltando a acreditar que nos casos contados e recontados, na vidinha pachorrenta, é que está o que se procura. (SANTIAGO, 1993, 74)
A narrativa é entremeada de alguns ensaios, que aparecem sob a
forma de alusão explícita ou implícita a conceitos como loucura e olhar. A
escrita simula um diálogo impossível de um sobrinho com o tio louco e já
morto. Na realidade, esse diálogo tem estrutura de monólogo, uma vez que tio
Mário não passa de vocativo e dispositivo para que os fatos da memória
recuperada atinjam aprofundamento psicológico e, na exposição das idéias,
afloram conflitos que extrapolam o âmbito do sujeito e encontram outros
espelhos.
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Em Viagem ao México, Silviano constrói a narrativa de maior
experimentalismo formal dentre as estudadas. Compõe uma montagem de
formas de escrita, a diversidade textual, passando pelos caminhos do romance,
da biografia, do ensaio, da transcrição e até do roteiro de cinema. É este o
romance de maior experimentalismo de escrita porque representa a proposta
mais radical em relação ao projeto de construir um painel híbrido de formas.
A moldura da narrativa espelha-se na composição da epopéia – a
divisão material em cantos, iniciada por um exórdio e finalizada no epílogo.
Configura-se, entretanto, uma escrita que desconstrói o caminho da epopéia,
porque se distancia do rigor formal desse gênero.
Em relação à estrutura externa, compõe-se de traços constitutivos
do gênero épico: o exórdio expõe os objetivos da obra, assumindo ora a função
da proposição, uma vez que traz o tema do texto, ora a de divisão, visto que
aponta, mesmo que metaforicamente, os caminhos que serão seguidos pelo
narrador; a narração está distribuída em treze cantos e o epílogo constitui a
chegada de Artaud à terra dos índios.
Na estrutura interna da obra, entretanto, diversos são os gêneros de
que se vale o autor: o romance abre espaço a um jogo temporal que localiza
simultaneamente Antonin Artaud nos anos 30 e o escritor/narrador na década
de 90. Como no conceito derridiano de escrita, em que as diferenças não são
vistas como polaridades, a forma epopéia é recuperada e preenchida com
outras formas que, no contexto da composição, não se opõem a ela; constroem
juntas outra possibilidade formal.
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A narrativa se inicia com a proposta do trabalho: a estrutura
metanarrativa apresenta não a metodologia, mas o teor do que será relatado. O
processo de criação é metaforizado na imagem de um monstro imaginário:
“Para escrever este livro, invento-me monstro, da maneira como só os
navegantes sabem inventá-lo durante o transcorrer da viagem da descoberta.”
(SANTIAGO, 1995, 11). E essa metáfora denuncia a precariedade do contorno
inicial da narrativa de ficção: o monstro grandioso – escrita – que dignifica o
esforço do herói – escritor – aparece antes que o narrador tenha tido tempo de
pensar em sua configuração. A criatura antecipa-se ao criador:
Sem que os marinheiros da armada de Vasco da Gama percebam, aparece uma nuvem negra no horizonte do meio-dia branco de luz. Ela se aproxima lentamente da nau capitânia, ganha corpo, faz os ventos crescerem, se agiganta e se desdobra, e de maneira imprevista toma conta dos céus, escurecendo os ares azuis e serenos ao seu redor, e o mar alto, como se estivesse batendo contra rochedos invisíveis saídos do nada das profundezas oceânicas, começa a maquinar ondas e mais ondas (...) cujo barulho ensurdecedor leva os marinheiros portugueses a tapar os ouvidos, ou a cruzar os braços em total impotência (...) (SANTIAGO, 1995, 11)
O projeto audacioso do livro, anunciado no exórdio (“Não existe
audácia humana que não traga no seu bojo o medo” SANTIAGO, 1995,12), é
inventado com tom de megaprojeto de escritura, sublinhando a idéia de que,
para que a narrativa seja grandiosa, é preciso que haja ambição do criador. Em
outras palavras, o efeito de grande narrativa deve ser produzido antes da
recepção. O desafio da escrita/monstro exige coragem de quem se propõe a
transgredir – nesse caminho, o discurso parece direcionar-se para a crítica a
quem questiona esse experimentalismo:
61
Os navegantes, quando não vislumbram no semicírculo aquoso do horizonte o que ainda está para existir para os contemporâneos e conterrâneos, inventam com os olhos monstrengos de primeira mão que descrevem para os escribas, que, por sua vez, os vão passando para outras e imprevisíveis mãos, que, com a ajuda dos olhos, os admiram na folha de papel escrita. O monstrengo, que escorre os medos do mar sem fundo, convive com a tinta negra do tinteiro e com a brancura da folha como um peixe que morre fora d’água. (SANTIAGO, 1995, 13)
O escritor justapõe a proposta da epopéia com a ousadia da escrita
contemporânea. O processo de criação é análogo à viagem da epopéia, em que o
desconhecimento do marinheiro em relação ao trajeto representava a coragem
diante da fragilidade em relação ao monstro. A escrita representa, assim, um
risco e uma atitude de firmeza e energia para quem se lança a ela. Mais do que
isso, significa uma atitude representativa de poder num status de divindade
criadora sobre criaturas.
O modelo divino desconstruído revela que a ficção permite ao autor
a equiparação à divindade, o que, de certa forma, propõe a quebra da
hierarquia, uma vez que modelo pode (e deve, segundo o narrador) ser
superado. Criar ficcionalmente significa assumir status divino, isto é, prescinde
de um posicionamento de austeridade. O princípio maior de originalidade
indica que a criação ficcional deve se instaurar sobre o preceito de que o
aprendiz supera o mestre.
Inventar monstros é o humano ato de criar, de dizer aos deuses que também eu posso criar personagens (...) O desvio do modelo divino instalado no planeta Terra (...) é a forma suprema, raivosa e exasperante, de originalidade do homem. No momento em que crio monstros, sou imagem dos deuses, recuso a condição de criado (...) (SANTIAGO, 1995, 17)
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Logo no início da narração, o leitor se depara com esse plano
simultâneo, e o narrador/escritor deixa marcas no discurso que distinguem sua
dupla tarefa, isto é, na função de narrador, situa a narração dos fatos e justifica
sua atividade; como escritor, assume papel semelhante ao de um ghostwriter,
transcrevendo (ou recriando) as falas recebidas de Artaud. Sua função, assim, é
dupla – dar voz a Artaud e, de certa, forma, contextualizá-la para o leitor:
Fui então anotando e gravando neste computador as frases que começaram a jorrar aos borbotões da boca falastrona de Artaud. (...) Podia finalmente dar início ao projeto de romance que vinha me atormentando por mais de uma década. Ele fala, eu escuto e transcrevo: À saída do cinema, no Quartier Latín, parece que estou enxergando pela primeira vez esta cidade que conheço de cor e salteado por ter caminhado pelas ruas desde os primeiros meses de 1920. (SANTIAGO,1995, 28)
O escritor, ao tomar a figura de Artaud e seus preceitos teórico-
ideológicos como fundamento para articulação ficcional, afasta-se da elaboração
referencial e reelabora esse sujeito na dimensão de personagem. As marcas
discursivas que distinguem narrador de escritor, escritor de Artaud, conferem
ao texto semelhança com o formato de um roteiro – de cinema, por exemplo – e
as transições, cumprindo função de rubrica, apontam a mobilidade, a tensão do
corpo e o grau de emoção de que se reveste a cena, conferindo maior
plasticidade e dramaticidade ao relato:
O real – retoma Artaud, domando as mãos de veias salientes que ameaçam alçar vôo ao ritmo da frase; os braços caem hirtos, paralelos ao corpo delgado e sem energia – me convulsiona, me sufoca e me asfixia, como o esforço matinal das narinas e do aparelho respiratório para extrair o catarro noturno. (SANTIAGO, 1995, 28-29)
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A estrutura da crônica de cunho filosófico, de que Machado de
Assis foi um grande representante, aparece em Viagem ao México , no intuito de
aproximar imagens cuja justaposição não é simples e exige desdobramento
racional. Como Machado, esse narrador apresenta verdadeira tecnologia de
funções para atribuir sentido a cada signo alocado na construção metafórica:
Para explicar esse embrulho de presente que tem nas mãos e não sabe a quem entregar – quero dizer a Artaud (...) adivinhando que você, meu leitor, poderá ler estas minhas palavras algum dia (...) – é que vou me valer da imagem dessas gigantescas prensas que vieram juntas com a sociedade de consumo e que se encontra nos cemitérios de automóveis norte-americanos. O carro velho e inútil – digo a Artaud ou a você, meu leitor – é levado até o interior da gigantesca prensa do mundo (...). O resultado da força compressora da prensa é algo de significado preciso: no monte compactado está tanto o veículo quanto, na ausência presente do motorista, a experiência das paisagens entrevistas e percorridas pelo carro. (SANTIAGO, 1995, 43-44)
A tentativa de manter distanciamento diante do que narra termina
por se mostrar impraticável num processo em que narração, explicação e
reflexão têm suas fronteiras contaminadas, e o fracasso do projeto inicial
redimensiona o transcurso do relato: “Transcrevo as palavras de Artaud ou
simplesmente escrevo?”. A denúncia dessa contaminação retira do narrador/
escritor outras distâncias mantidas entre ele e Artaud até então, como as
questões sociais discutidas pelo francês, ou ainda as opiniões de Artaud em
relação à arte de sua época. A partir da ruptura com a designação rígida de
tempo e espaço de um e outro, Artaud assume a cena e o narrador/escritor
64
privilegia posições polêmicas do francês em relação ao Surrealismo, ao teatro e
ao processo civilizatório.
Recuperando o tom das memórias consagradas de heróis duvidosos
da literatura brasileira, O falso mentiroso traz discussões que vão de encontro à
atitude crítica diante da possibilidade de reprodução da obra literária. O
narrador Samuel, ao assumir sua postura de copiador, assume também uma
atitude de escárnio em relação à crítica. Fazendo analogia entre sua condição –
de filho ilegítimo – e sua atividade profissional – falsificador – chega a pensar a
lógica do ilegítimo. Aponta como corajosa a iniciativa de quem assume copiar na
contracorrente dos valores sociais:
O ilegítimo (não me refiro ao estapafúrdio, aviso aos meus detratores) é o bom. Há uma lógica do ilegítimo que é recato e explosão de vaidade. O recato é o trabalho feito pelo que filósofos e religiosos apelidam de consciência. Um torniquete constrangedor, que o superego impõe ao ego. Torniquete que, semelhante a algemas, correntes, coleiras e outros aparelhos sado-masoquistas, inibe o artista de confessar seus débitos e delitos na praça pública do mercado de arte. Ele tem de colocar a sua personalidade ímpar em primeiro plano, incólume no proscênio do palanque, para que possa ser iluminado pelo spot-light da fama. (SANTIAGO, 2004, 218)
A resposta da crítica ao trabalho de Samuel – não reconhecido como
arte – resulta em árida resistência do pintor e severo ataque à atividade crítica,
sobrepondo, principalmente a disparidade em relação à erudição de um e
outro. Em atitude zombeteira, comenta o atraso dos críticos de arte em relação
aos profissionais das ciências, dando relevo ao anacronismo do olhar que a
crítica lança aos artistas:
65
A fauna dos críticos é multicolorida e assustadoramente medíocre. Julgam-se conhecedores. Apresentam-se nos jornais, revistas e livros como ditadores da moda e pavões do progresso. Quando ciscam com palavras, arranham a crosta das obras de arte que analisam e interpretam. O conhecimento crítico está a léguas da erudição. Se algum dia conseguirem estar lado a lado, a cultura terá uma outra concepção do que é o trabalho artístico. (SANTIAGO, 2004, 219)
Esse trânsito na fronteira dos gêneros também começa a se anunciar
nos últimos textos críticos de Silviano. Em A vida como literatura e As raízes e o
labirinto da América Latina, Silviano presta homenagem a grandes nomes da
literatura – Cyro dos Anjos, Sérgio Buarque de Hollanda e Octávio Paz,
respectivamente – , construindo textos de caráter ensaístico, que se valem
também da elaboração do discurso literário.
A pesquisa científica se apresenta por meio de uma linguagem em
que elaborações estilísticas próprias do espaço literário, como utilização de
linguagem metafórica, desdobram-se em um texto híbrido, em que as análises e
reflexões críticas intercalam-se com a narração das trajetórias das
personalidades. Analisando a obra de Sérgio Buarque, Silviano aponta esse
hibridismo, que também marca seus textos: por detrás da sua escrita ficcional,
está sua atividade crítica e, por detrás da escritura crítica, está também o
ficcionista e seus traços:
Ao endossar a tradição analítica fornecida pela crítica anglo-saxônica, estamos realimentando a suspeita de que, por detrás da escrita ensaística de Sérgio Buarque, estaria o romance setecentista inglês, cujos princípios estéticos serão retomados, no século seguinte e na clave provinciana, pelo gênio Gustave Flaubert. (SANTIAGO, 2006, 62).
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Ficcionista e crítico articulam-se e deixam suas marcas na produção
de Silviano Santiago. Como outros escritores que recorrem a vários gêneros
para construir suas obras, ele compõe uma tessitura híbrida, transitando por
várias possibilidades da criação literária e recorrendo a diferentes campos do
conhecimento na gama de referências de que se vale. Abre, assim, um leque de
representações artísticas, filosóficas, políticas, configurando horizontes de
sentido de diferentes tempos e lugares.
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4 JOGOS DE CENA5 OU O BAILE DE MÁSCARAS
Estão apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois atores avançam pelo palco, saindo das coxias à esquerda para o centro da cena,
um homem entra na sala escura, e com ele uma nesga da luz das cinco pela fresta da porta que entreabriu ao fundo e que separa a platéia do
hall e da rua (...) (Bernardo Carvalho. “Estão apenas
ensaiando”)
As estratégias de representação na literatura têm tomado diversas
configurações na contemporaneidade. A busca pela radicalização da proposta
experimental modernista aponta para um painel em que a descontinuidade e o
hibridismo são tônicas perseguidas para atingir uma atualização dos signos,
numa perspectiva que parece pretender atingir o esgotamento dessa capacidade
de atualização.
Não há como fazer referência ao conceito de representação sem
mencionar Platão. Para o filósofo grego, há uma irrecuperável oposição entre o
mundo captável por meio dos sentidos e o mundo das idéias. À arte serve de
parâmetro o mundo sensível, e seus resultados representam, portanto, a
imitação daquilo que, em si, já não é original. Por isso, a arte é considerada um
desvio em relação à verdade. A imagem da cebola é muito pertinente para
sintetizar a lógica platônica no que diz respeito à arte e à imitação: a cebola não
possui núcleo – é só camadas – por isso, desloca-se do conceito de origem.
5 Referência clara ao título do filme de Eduardo Coutinho, com o qual travarei diálogo.
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Jean Baudrillard é um dos teóricos da contemporaneidade que muito
se aprofundou nas questões da representação e dos simulacros. Em seu livro A
troca simbólica e a morte, o francês traça o que chama de “três ordens de
simulacro”: a contrafação – forma dominante no período clássico, isto é, do
Renascimento à Revolução Industrial; a produção – esquema representante da
era industrial; e a simulação – forma que representa a contemporaneidade.
A contrafação vem pôr fim ao pensamento platônico de maldição da
cópia. Muda aqui a concepção de signo, que deixa de ser visto em uma
condição de existência limitada e cuja condição de reprodução estaria na esfera
da heresia; o signo passa a ser concebido como componente necessário de
produção para atender à demanda de uma nova formação social – a burguesia.
Entretanto, essa mudança não representa transgressão radical, uma
vez que o signo moderno amplia o significado do anterior, mas continua
vinculado a ele no que se refere a desejar o sentido de verdade e ordenação do
mundo vigentes anteriormente. Baudrillard fala de uma “nostalgia de um signo
natural”, que dominou a construção simbólica nesse período:
Nas igrejas e nos palácios, o estuque aceita todas as formas, imita todas as matérias, as cortinas de veludo, as cornijas de madeira, as rotundidades carnais dos corpos. O estuque exorciza a inverossímil confusão de matérias numa só substância nova, espécie de equivalente geral de todos os outros, e propicia a todos os prestígios teatrais, por ser ela mesma substância representativa, espelho de todas as outras. (BAUDRILLARD, 1996, 66)
O estuque – massa preparada com gesso – é a matéria escolhida pelo
francês para melhor representar a idéia de contrafação, uma vez que esta
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matéria era amplamente utilizada para produzir cópias as mais diversas,
principalmente em igrejas. Sobreleva-se nessa forma de copiar uma profunda
ligação com o original e ainda, como conseqüência dessa ligação, uma grande
potencialização da aparência, a qual ignorava o interior do objeto reproduzido,
feito de material ordinário.
Para representar o simulacro de segunda ordem, Baudrillard vale-se
da imagem do autômato, por constituir uma analogia do homem, por ser
equivalente a ele. A preocupação aqui não reside em reproduzir a semelhança
na aparência, mas nas ações. Diferencia-se também do simulacro de 1ª ordem
por não ser produzido artesanalmente. Por isso, preocupação com aparência,
origem e singularidade não encontram sentido nessa forma de simulacro; a
relação similaridade na aparência cede lugar à relação de equivalência.
As fabulosas energias que estão em jogo na técnica, na indústria e na economia não deviam esconder que não se trata no fundo senão de atingir essa reprodutibilidade indefinida que é com certeza um desafio à ‘ordem natural’, mas em última análise, um simulacro de ‘segunda ordem’ e uma solução imaginária bem pobre para o domínio do mundo. [Em relação ao simulacro de primeira ordem], a era serial e técnica da reprodução é, em suma, uma era de menor envergadura. (BAUDRILLARD, 1996, 72)
O francês não esconde sua postura crítica diante dessa forma de
simulacro, considerada por ele “pobre”, além de representativa de ausência de
imaginação, porque prioriza apenas a capacidade de reprodução levada à
exaustão.
A terceira ordem de simulacros – a simulação – funda-se a partir da
condição efêmera dos simulacros de segunda ordem. Importa nela a criação de
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modelos e não a ligação à origem. Também não se vale da tentativa de manter a
pureza de características em uma produção em série. O que distingue essa
terceira ordem de simulacros é a preocupação com as modulações distintivas
em detrimento das “equivalências quantitativas”. Para exemplificar essa
terceira ordem, o autor utiliza-se da imagem do DNA, cuja peculiaridade reside
na perda de semelhança.
(...) trata-se de uma reversão de origem e de finalidade, já que todas as formas mudam a partir do momento em que já não são mecanicamente reproduzidas, mas concebidas a partir de sua reprodutibilidade mesma, difração a partir de um eixo gerador chamado modelo. (BAUDRILLARD, 1996, 72)
Assim, Baudrillard acentua que a peculiaridade dessa terceira ordem
está no fato de não se ligar mais à idéia de contrafação de um original e nem
representar uma série pura, como na segunda ordem. A terceira ordem produz
modelos dos quais vêm as formas de acordo com as diferenças de modelos,
numa estrutura em que o signo sofre constante atualização: “O equivalente da
neutralização total dos significados pelo código é a instantaneidade do
veredicto da moda ou de cada mensagem publicitária ou midiática.”
(BAUDRILLARD, 1996, 81). O autor aponta a era digital como abrigadora do
assombro de todos os signos. Não há, portanto, possibilidade de cristalização
do signo, que tem na efemeridade sua condição de existência:
Para ser puro, o signo precisa duplicar-se a si mesmo: é a duplicação do signo que leva verdadeiramente ao fim aquilo que designa. Todo o Andy Warhol está aí: as réplicas multiplicadas do rosto de Marilyn são por certo, ao mesmo tempo, a morte do original e o fim da representação. (BAUDRILLARD, 1996, 91)
71
Os modelos da simulação são atualizados, segundo o autor, pelos
indicadores de “saturação”. Ou seja, a lei de mercado impõe a satisfação
incondicional do sujeito e acaba por tornar premente a atualização dos modelos
de simulacro.
A definição de real como “aquilo de que é possível dar uma
reprodução equivalente” (BAUDRILLARD, 1996, 96) ou “o que é sempre já
reproduzido” (BAUDRILLARD, 1996, 96) indica a ocorrência de certa
contaminação da realidade por seu simulacro, ou, como o quer o francês, a
hiper-realidade. Nessa hiper-realidade, ocorre um processo que o autor chama de
“satelitização do real”, que seria a existência de um “hisperespaço da
representação” em que cada um já teria posse da possibilidade de “reprodução
instantânea da própria vida”.
Com isso, Baudrillard mostra a diferença que representa essa terceira
ordem de simulacro, pois antes representação e referente não se confundiam, e
“o prazer consistia então primordialmente em descobrir o ‘natural’ no que era
artificial e contrafeito” (BAUDRILLARD, 1996, 95). Atualmente, há mais
apreciação pela capacidade de simular do que pela referência:
Hoje, quando o real e o imaginário são confundidos numa mesma totalidade operacional, o fascínio estético é ubíquo: é a percepção subliminar (uma espécie de sexto sentido) da trucagem, da montagem, do cenário, da superexposição da realidade à eliminação dos modelos – não mais um espaço de produção, mas uma faixa de leitura, faixa de codificação e decodificação, faixa magnetizada pelos signos – realidade estética, não mais pela premeditação e distância da arte, mas por sua elevação ao segundo nível, à segunda potência, por meio da antecipação e da imanência do código. Uma espécie de paródia não deliberada paira sobre todas as coisas, uma espécie de simulação tática, de jogo indecidível ao qual adere
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um enlevo estético, o mesmo da leitura e da regra do jogo. (BAUDRILLARD, 1996, 97-98)
Essa apreciação da capacidade de simular, segundo o autor, confere
prestígio a parcela da produção artística contemporânea, cuja atitude estratégia
revela a situação de jogo de que a produção artística se avizinha. Mas o francês
é bastante pessimista em relação ao desdobramento desse processo, pois,
segundo ele, essa superexposição da arte traz uma espécie de esgotamento da
arte em si: se toda realidade é simulável, tudo é arte, ou, pelo menos, tudo se
confunde com arte. Conseqüentemente, esgota-se a possibilidade de
transcendência, porque o real é performático:
Logo, a arte está em toda parte, visto que o artifício se encontra no âmago da realidade. A arte, desse modo, está morta, não só porque morreu sua transcendência crítica como porque a própria realidade, inteiramente impregnada por uma estética que provém de sua própria estruturalidade, confunde-se com sua própria imagem. (BAUDRILLARD, 1996, 98)
Essa espécie de amálgama estrutural que se estabeleceu entre o real e
sua representação aponta para a idéia de aparência como ilusão em relação à
essência das coisas e mostra a condição de simulacro que o mundo representa.
Entretanto, não foi sempre sob olhares de repúdio que o conceito de simulacro
entrou em cena na filosofia. Nietzsche, assim como Oscar Wilde, entenderam o
fundamento do simulacro como a verdade da arte; a potência da máscara
indicava a capacidade de construção do falso. Segundo o Professor Evando
Nascimento, para Jacques Derrida, a potência do falso estabelece-se devido à
possibilidade de rompimento com a referência e não de busca dela:
73
O que Derrida nomeia como a potência do simulacro consiste em não se deixar dominar pelo dogma da Referência, seja ela empírica, seja transcendental. A poesia é o que, desde pelo menos os gregos, não se deixa orientar pelo mito de uma origem simples, auto-referida, a ser teleologicamente reencontrada. Para Derrida, se origem há, esta é desde sempre dividida, dúplice, repetida, jamais pontual ou simples. (NASCIMENTO: 2004, 49)
Michel Foucault, em A prosa do mundo, capítulo da obra As palavras
e as coisas, tece bela reflexão sobre a representação a partir da análise da tela As
meninas, de Velásquez. O filósofo francês aponta para a possibilidade de
múltiplos caminhos trilhados entre a representação e o objeto representado,
mostrando a possibilidade de se abrir espaço a um jogo de representar no qual
o modelo já não é mais o centro dos olhares, ou, ainda, confunde-se com outros
modelos, estabelecendo uma dinâmica de reciprocidade:
Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.( FOUCAULT: 2000, 20-21)
Wolfgang Iser vai estreitar as reflexões sobre representação na arte ao
universo do texto ficcional. Estabelece diferenças entre real e ficção afirmando a
existência de elementos do real no texto ficcional; o que difere é o fato de a
ficção não se ater à simples tarefa de descrever o real. Nessa atitude, o
componente fictício, que emerge dessa relação entre real representado e ficção
74
prepara uma espécie de imaginário que constituirá a obra. Ou seja, opor
realidade a ficção, e definir texto ficcional como tudo aquilo que não é real,
apesar de parecer óbvio, tem muitas limitações, porque:
há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. (...) estas realidades, ao surgirem no texto ficcional, neles não se repetem por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar nesta referência, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. (ISER. In: COSTA LIMA:2002, 958)
Portanto, para Iser, a relação entre real e ficção não é complexa, mas
não pode ser vista de forma simplista: no texto ficcional, há realidade
identificável, que não é ficção e nem se “ficcionaliza” por estar contida no texto
ficcional. Também não há pura repetição da realidade nesse contexto. Há um
processo combinatório cujo mediador é o ato de fingir, donde se constrói um
imaginário da realidade na ficção.
Assim, a realidade puramente repetida é só um signo; o imaginário é
o efeito produzido nessa relação: “o ato de fingir é uma transgressão de limites”
(2002: 958); e essa diluição de fronteiras é a aliança do ato de fingir com a
construção do imaginário. Da relação entre real, fictício e imaginário emerge
um objeto construído na reciprocidade dessa relação.
Os atos de fingir, segundo Iser, tomam faces diversas e uma delas é a
seleção, que tem por finalidade publicar os campos de referência a que
recorrerá o texto, assim como os sistemas contextuais. Portanto, fictícia é a
75
seleção que se faz dos elementos – uma vez que ela delimita os campos de
referência, mesmo que seja apenas para transgredi-los, pois os valores que
integram o texto ficcional não são em si fictícios.
A seleção faz com que os sistemas de sentido tomem uma
consistência que se corporifica em campos de referência do texto, produzindo a
transmutação desses campos de referência para a interpretação do contexto:
“Como ato de fingir, a seleção possibilita então apreender a intencionalidade de
um texto” (ISER, 2002, 962). Afirma ainda que a seleção é uma “figura de
transição entre o real e o imaginário, com o estatuto da atualidade” (ISER, 2002,
963).
A outra forma tomada pelo ato de fingir é a combinação, que consiste
em promover a relação entre significação verbal, contexto e estrutura de
organização dos elementos. É ela a responsável pela criação de
“relacionamentos intratextuais”, pela relação entre forma e fundo (ISER, 2002,
965).
Sobre ficcionalidade na literatura, Iser afirma ainda, citando Rainer
Warner: “o sinal de ficção não designa nem mais a ficção, mas sim o ‘contrato’
entre autor e leitor, cuja regulamentação o texto comprova não como discurso,
mas como discurso encenado” (ISER, 2002, 972). Deixa entrever que a
ficcionalidade não é atributo exclusivo da literatura; a ficcionalidade literária é
peculiar porque nela o processo ficcional se desnuda: “o mundo representado
não é um mundo dado, mas que deve ser apenas entendido como se o fosse”
(ISER, 2002,973).
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Justamente porque o desnudamento do ficcional apresenta-se na
ficção como condição, o texto literário organiza-se de modo a apresentar um
mundo em que a lei é a do “como se”: a realidade é repetida no texto ficcional,
mas há uma transgressão nessa repetição, uma vez que a condicional põe esta
repetição entre parênteses: “a literatura recebe a característica geral de mundo
representado e posto entre parênteses” (ISER, 2002, 974). Estabelece-se aí uma
relação dialética:
Os atos de fingir estabelecem no texto ficcional uma relação dialética entre o imaginário e o real, de que resulta que os atos de fingir que, (...) sempre põem um real para transgredi-lo, oferecem, ao lado deste processo de reformulação, as condições para que ele seja compreendido. (ISER, 2002, 983)
Porque entende a relação entre fictício e real não como opositiva, Iser
afirma que o contrato do texto ficcional pressupõe a aceitação de uma relação
de comutação de real e fictício, uma vez que não considera a possibilidade de
entender o fictício como uma “passagem” na literatura. Aponta sobretudo o
dinamismo existente na relação entre representação e representado, num
processo em que ambos se mostram sensíveis às contradições do outro, muito
embora com propensão à transgressão de fronteiras.
Essa transgressão de fronteiras entre real e fictício tem sido
amplamente discutida e utilizada como estratégia de criação, não só na
literatura, como nas artes de modo geral. Silvia Regina Pinto afirma que o
mundo cada vez mais se distancia da metafísica e se aproxima da
fenomenologia, e mostra a diferença de foco da literatura contemporânea: se no
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século XIX, o foco era a enunciação e no século XX o autor aproximou-se do
enunciado, agora houve visível deslocamento para a recepção:
No transcurso da História, houve um momento em que a maior das verdades já não estava naquilo que o discurso era ou naquilo que fazia, mas sim naquilo que o discurso dizia. Chegou o dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado de enunciação para o próprio enunciado: para o seu sentido, a sua forma, o seu objeto, a sua relação com as referências. Chegou, também,o dia em que o sentido mais uma vez deslocou-se: agora para o receptor. Nesse trajeto, cada vez mais desrelaizam-se as coisas; desreferencializam-se os jogos da mímesis. Encenam-se falsas mentiras. (PINTO, 2004, 114)
Nessa mudança de postura em relação ao conceito de verdade e à
literatura, com a aproximação da recepção como foco, os textos literários
contemporâneos trazem narradores que, na verdade, atuam como
antinarradores, uma vez que promovem um processo esquizofrênico de avanço
e recuo na construção das verdades da narrativa, desautorizando a si mesmos
por meio das próprias falsas mentiras:
(...) é possível analisar a literatura e a arte contemporâneas como expressão de uma estratégia alternativa de representação, em que a tendência experimental modernista de criar formas heterogêneas e híbridas entre os diversos signos expressivos – literatura, arte, fotografia, cinema, etc. – visa ressaltar uma concretude afetiva do signo até o limite da sua representabilidade.6
Os artistas contemporâneos, portanto, apresentam-se como
representantes de uma forma de representar cujo projeto estético é suspensivo,
isto é, eles não são norteadores; ao contrário, deixam as lacunas para que sejam
preenchidas, negando a verossimilhança como forma de preenchimento dessas
6 Não há como referenciar esse texto porque foi extraído de apontamentos de aula ministrada pela Prof. Dra. Silvia Regina Pinto, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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lacunas. A produção de verossimilhanças (no plural) aponta para um processo
em que a mímesis é performática, uma vez que o jogo da representação
pressupõe constante encenação na relação das palavras com as coisas.
O documentário de Eduardo Coutinho, Jogo de cena, citado no título
deste capítulo, traz grandes contribuições para a análise do jogo da
representação nas artes da contemporaneidade. A partir de um anúncio de
jornal, que pedia que mulheres comparecessem a um determinado local para
contar suas histórias de vida, houve uma seleção de candidatas para
participação no documentário. Até aí, nada apontaria para a radicalização da
forma que o filme representou. Escolhidas as candidatas e suas histórias,
Coutinho as apresenta contando suas histórias e entrecorta essas imagens com
atrizes conhecidas e desconhecidas, que interpretam as histórias contadas.
Desnuda-se, diante do espectador, um processo de construção cuja
estrutura não se revela em sua totalidade, embora simule essa revelação, uma
vez que, no palco limpo de um teatro com cadeiras vazias, o espectador é
confrontado com atrizes que não só representam as personagens anônimas
como vez por outra são colocadas em situações reais, ao falar da dificuldade de
interpretar e confessar momentos de suas próprias vidas.
A escolha do cenário – o teatro Glauce Gil, no Rio de Janeiro – e a
posição das pessoas/personagens também é muito relevante para mostrar essa
relação de representação. Entrevistador e entrevistadas estão alocados no palco
– espaço da encenação – mas a perspectiva da câmera está saindo do lugar do
diretor, que pouco aparece, em direção à mulher entrevistada, que se encontra
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de costas para o espaço que seria destinado à platéia. Isso é muito interessante
porque o espectador tem a mesma perspectiva do diretor – ou simplesmente a
ilusão dela.
Confunde-se a fronteira entre o depoimento e a interpretação do
depoimento. Nesse borrar das linhas limítrofes, o espectador tem dificuldade de
identificar se quem narra as histórias é a pessoa que viveu a experiência ou um
ator. O fato de haver atrizes famosas auxilia na identificação de algumas dessas
fronteiras, mas também confunde, uma vez que em alguns casos ou elas estão
representando uma história que não foi mostrada ou estão expondo suas
próprias histórias, condição que as faz ficar na posição fronteiriça entre pessoa e
personagem.
E esse também parece ser o grande filão temático-estrutural da ficção
literária contemporânea. No caso do nosso autor, podemos identificar algumas
formas de simulação que se apreendem das obras analisadas. São três,
principalmente, as formas de simulação presentes nas obras: o simulacro não se
revela como tema no plano da narrativa; há o impasse na impossibilidade de
manutenção da máscara; ou, ainda, a construção do simulacro revela-se e torna-
se estrutura e tema das narrativas.
De cócoras é o romance que mais se aproxima da construção de
simulacro peculiar a uma narrativa tradicional: a verossimilhança está
preservada em uma relação em que a representação não se esgota em si mesma,
uma vez que a busca da manutenção da aparência se faz presente. Não há jogo
de sombras com o real – tudo é ficcional, mesmo em uma narrativa em que
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vestígios de dados biográficos se mostrem como temática recorrente (a morte
prematura, de parto, da mãe de Antônio representa um fantasma que perpassa
várias obras do autor Silviano).
Assim também acontece com Keith Jarret no Blue Note – Silviano
seleciona elementos que vão transitar no território do improviso e do desvio
formal, e parte para um jogo de mimetização com a música com contos que,
assim como acontece no jazz, transbordam a potência de extravasamento de
formas. Mas ainda assim esse jogo se faz no mesmo circuito de De cócoras, pois a
simulação não se revela no primeiro plano.
Nessa mesma linha está Uma história de família. Entretanto, aqui,
Silviano parece brincar mais com a relação com o referente, uma vez que
mistura à ficção dados de sua vida, fazendo claros recortes autobiográficos,
como na origem da família (italianos), no espaço em que transcorre a narrativa
(Formiga e Pains – Minas Gerais), na presença de um tio louco e na morte
prematura da mãe. Porém, assim como em De cócoras, preserva-se o pacto com o
discurso ficcional tradicional.
A simulação se reforça no jogo que o texto estabelece entre a narração
da matéria vivida pela personagem e os fatos lidos e vistos, condição que revela
uma justaposição de olhares. A ilusão de movimento, de mudança de
perspectiva assemelha-se à simulação cinematográfica, em que o espectador
tem a seu dispor diferentes pontos de vista. Mas até aqui, o ato de simular não
tomou corpo de trama, de tema do narrado. Esse conceito de simulacro como
produção de cópias apresenta-se ainda em um plano metafórico:
81
A mulher do seu Onofre repete as palavras que lhe foram ditas à noite pelo marido. O Dr. Marcelo repete as palavras que lhe foram ditas pela sua paciente no leito de morte. Eu repito as palavras que o Dr. Marcelo me escreve na carta. O legítimo proprietário da palavra criminosa é o seu Onofre. (SANTIAGO, 1992, 97).
Em uma narrativa cujas bases estão na oralidade, nos relatos ouvidos
que apresentam diferentes versões para um mesmo fato, a idéia de simulacro
também se revela, só que, em vez de ser tematizada de forma a produzir
reflexões na própria narrativa, ela se mostra nas imagens que evocam
representação e hipocrisia (as fotos, a imagem de Cristo, a avó) nas relações
entre as personagens.
Em liberdade, aparentemente, traz uma estrutura tradicional de narrar
em que a verossimilhança se reforça pelo endosso de um editor que se isenta da
autoria do texto. Assemelha-se até aqui aos textos alencarianos, como Lucíola,
Diva e Senhora, cujos prefácios conferiam a outros a autoria do narrado. Um
editor, Silviano Santiago (o ficcional), apresenta-se em nota como alguém que
recebera manuscritos inéditos de Graciliano Ramos de um amigo do alagoano.
Além disso, há um outro texto introdutório intitulado “Sobre esta edição” que
traz orientações acerca da metodologia utilizada pelo editor, além de apresentar
justificativas que legitimam a “veracidade” do relato:
O enigma perdura: por que Graciliano mandou queimar os originais de Em liberdade? Tentemos uma explicação: os textos de Em liberdade e das Memórias do cárcere não se casavam, não podiam coexistir simultaneamente no seu espírito. Era com o sacrifício de um que escrevia o outro, e vice-versa. Lembremos algumas datas: em 1937, tem de recalcar completamente a experiência da cadeia para escrever Em liberdade. Em 1946, quando escreve os primeiros capítulos de Memórias do cárcere, desfaz-se do diário, dando-o de presente
82
a um amigo. Em 1952, tendo nas mãos os futuros quatro volumes das memórias, só pode querer sacrificar, pelo fogo, Em liberdade. (SANTIAGO, 1994, 15)
Entretanto, se o artifício da simulação não se revela na estrutura
interna da narrativa, como ocorrerá em outros textos, ele ainda assim se revela
na própria obra, uma vez que o subtítulo do romance, na folha de rosto, é Uma
ficção de Silviano Santiago. Mesmo que depois, já nas páginas iniciais da narrativa
o subtítulo passe a ser Diário de Graciliano Ramos, e que a escrita de que se vale o
narrador seja similar à do Graciliano Ramos, a encenação já foi revelada.
Ainda assim, não se pode negar que essa revelação se mantém fora da
narração: lá, não restam dúvidas quanto à autoria ficcional do relato: é
Graciliano Ramos quem fala, ainda que um Graciliano construído por Silviano
Santiago, como desejara Otto Maria Carpeaux, citado como epígrafe de Em
liberdade: “Vou construir o meu Graciliano Ramos”.
O editor/personagem Silviano apresenta o que chama de anotações
feitas a lápis, justifica ausências de data, traz explicações históricas que clareiam
as referências a que recorre o narrador. Enfim, cumpre efetivamente o trabalho
de editor; simula, sem deixar vestígios na estrutura interna da narrativa, a
função de editor de um diário inédito do escritor alagoano:
Graciliano faz alusão, aqui, ao artigo 52º da Constituição de 1934, que diz: “O período presidencial durará um quadriênio, não podendo o presidente da República ser reeleito senão quatro anos depois de cessada a sua função, qualquer que tenha sido a duração desta”. (N. do E.) (SANTIAGO: 1994: 207).
83
O personagem Graciliano Ramos, narrador do relato, mantém a
mesma relação com a escrita do escritor Graciliano: uma forma enxuta, com
sentenças curtas, uma busca constante de manter-se fiel à proposta de relatar,
reforçando o propósito de dar veracidade ao texto:
Esforço-me para não fazer ficção a partir dos acontecimentos que narro neste diário. Normalmente, teria emprestado à moça um estoque de pensamentos ocultos, de intenções não reveladas, de sensações experimentadas no seu íntimo. É a maneira que encontro para criar a intriga e os personagens nos meus romances a partir de experiências concretas e vividas. (SANTIAGO, 1994, 98)
Mesmo na estrutura interna, um outro baile de máscaras se
depreende na construção de personagens. Silviano parece distribuir espelhos
como a imagem de figuras em abismo, alternando grandes personalidades
engajadas, a começar por Graciliano Ramos, que se desdobra em Cláudio
Manuel da Costa, cuja história se confunde com a de Wladimir Herzog. A
aproximação dessas imagens constitui uma construção de cópias em diferença,
pois a cada representante desse sentido de indivíduo social, de sujeito político uma
história toma corpo, acrescenta-se à moldura maior, por meio sempre de uma
estratégia de aproximação e deslocamento.
Assim, este texto tem duas perspectivas em relação à construção do
simulacro: em uma delas, o relato mantém-se similar ao das narrativas
tradicionais, em que o pacto da verossimilhança não é quebrado ou posto em
xeque. Já o objeto-livro, que contém o relato, denuncia o jogo ficcional e os
artifícios a que recorre o autor Silviano Santiago para compor essa construção
de duas vias.
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Sem dúvida, as experiências mais radicais em relação à revelação da
construção de simulacros são O falso mentiroso e Histórias mal contadas. O falso
mentiroso traz como subtítulo o termo memórias, que poderia indicar o gênero
sob o qual se desenvolve o texto. E, se memórias, tratar-se-ia de um relato
autobiográfico, o qual pressupõe para a personagem uma existência histórica
anterior à narração. No caso desse texto de Silviano, esse pressuposto não passa
de um contorno delineado a partir de falsas pistas deixadas pelo narrador.
O relato de memórias de Samuel é uma narração que se constrói
diante dos olhos do leitor e do próprio Samuel. Sem histórico claro de origem –
adotado em condições obscuras – utiliza-se das memórias para construir para si
o passado do qual não traz comprovações, ou simplesmente para desconstruir o
gênero e estilhaçar o conceito de veracidade peculiar a um relato
autobiográfico.
Muitas são as máscaras que se sobrepõem a esse sujeito, que encarna
com perfeição a imagem da cebola, síntese do simulacro para Platão: por trás de
uma camada identitária, há sempre outra, e o núcleo inexiste. Sem origem,
Samuel supõe algumas versões para seu nascimento, construindo sua história
na ficção.
Cada personagem de O falso mentiroso encarna uma gama de papéis,
oscilando sempre entre falsos e verdadeiros, públicos e privados. Nesse clima
de impossibilidade de enxergar a verdade, a narrativa ficcional encontra
ambiente propício. Cada personagem representa um universo identitário em
que os papéis representados se alocam na conveniência da situação. A imagem
85
que se apreende é a de uma caixa com vários compartimentos dobráveis,
acionados conforme as circunstâncias.
O próprio Samuel encontra na ficção a única possibilidade para
materializar sua história, afinal, como seu passado se faz de fragmentos falsos e
verdadeiros, sua trajetória pode alcançar legitimidade apenas quando
registrada por meio do discurso ficcional. Assim, traça múltiplos caminhos e
leva o leitor a enxergá-lo como uma multiplicidade de referências. As hipóteses
que vão compor esse relato são mimetizadas a partir de dados biográficos do
próprio Silviano, que lhe dá de empréstimo como parte de processo de
distribuir pistas com abundância, para despistar o leitor. Essa existência apenas
discursiva é posta em evidência pelo próprio Samuel, que se vê em desatino
diante de tantas esquinas: “será que existo?” (SANTIAGO, 2004, 59)
Não se pode negar, entretanto, que a existência ficcional de Samuel
traz vestígios muito concretos de um século XX impregnado por inquietações
de doenças e valores: doenças sexualmente transmissíveis e questões éticas
graves, como cópia ilícita. Tudo isso em uma composição que se nega à ação e
se entrega à ficção. Ou seja, não há tramas, não há fatos ou ações em
desdobramento – há, antes, avaliações sobre os fatos, o que mais uma vez
poderia afirmar (pista falsa) a forma do relato biográfico.
Copiar e criar são os caminhos buscados por Samuel para dar
autenticidade à própria vida. Caracterizando a si mesmo como muitos –
portanto, um ser com duplicatas – o personagem revela sua apreciação pela arte
86
de forjar, caminho que o desincumbe da tarefa de encontrar a verdade sobre seu
nascimento e história:
Não sei por que nestas memórias me expresso pela primeira pessoa do singular. E não pela primeira do plural. Deve haver um eu dominante na minha personalidade. Quando escrevo. Ele mastiga e massacra os embriões mais fracos, que vivem em comum como nós dentro de mim. A teoria genética diz que toda grávida carrega no útero gêmeos, trigêmeos e até quadrigêmeos. Somos concebidos como múltiplos. É o gene dominante que – constrangido a ser imperador, primeiro e é unico – estrangula e come os genes recessivos, ou débeis, para poder, sozinho e endemoninhado, sair da caverna materna para a claridade do mundo. (SANTIAGO, 2004, 136)
Mesmo as revelações escusas de dados que apontariam para a
precisão da origem de Samuel – como data, local e circunstâncias do nascimento
– apontam para a construção de um borrão em que camadas identitárias se
alternam ou até mesmo se justapõem:
Nasci (eu, o original) na maternidade, no dia 10 de setembro. Tenho certeza. O bebê original é dezenove dias mais novo do que a cópia. É o que não dizem os documentos pessoais. A certidão de idade, que tenho arquivada no escritório, diz que não minto. São eles que mentem. Um dia ainda pego um atestado na maternidade. Para provar a verdade aos autores de verbete de enciclopédia. Meu nome já aparece na Larousse Cultural. Insistem em datar equivocadamente o meu nascimento. (SANTIAGO, 2004, 49)
Pelas mãos de Samuel, o leitor adentra um labirinto em que tudo é
espelho e ilusão ao mesmo tempo. Radicalizando o potencial de relativização
dos conceitos de verdade e mentira, usa o ensinamento do pai, que se vale da
imagem de um mendigo, na orla de Copacabana, com um balão vermelho e um
guarda-chuva verde na mão: “A lógica do mendigo é correta. A contradição
está na cabeça do observador.” (SANTIAGO, 2004, 74)
87
Interessante também é a grande semelhança que se instaura na
diferença, com relação a Samuel e seus pais falsos. Do Doutor Eucanaã, herda a
apreciação pela simulação e dele apreende a estratégia para representar um
papel de prestígio social:
[Papai] desenhava a si como personagem dum quadro épico, digno da paleta de Vítor Meireles. Empunhava a lança do santo contra a serpente da ignorância, assim como a tinha empunhado contra o dragão da mamadeira na minha infância. E vencido. Quando me tornasse adulto – dava-me uns tapinhas carinhosos no cocoruto – , quando fosse um profissional, que eu me inspirasse no seu exemplo! Me preparasse para substituí-lo à frente dos negócios familiares. (SANTIAGO, 2004, 85)
A identidade do pai constituía-se também de máscaras sobrepostas,
que atendiam à conveniência de mantê-lo como empresário de sucesso, apesar
de socialmente se apresentar como advogado. As máscaras com que Samuel
caracteriza a ambigüidade por meio da qual se configura o pai representam-no
como um homem cuja vida pública se distinguia muito da vida privada: para o
meio social, representava papel semelhante ao do economista Malthus7, um
humanista; o outro paradigma – usado apenas nos bastidores – era o do italiano
Gabriel Falópio, inventor do preservativo. O narrador marca muito bem esses
territórios distintos em que desfila o pai falso:
Papai não se valia de Falópio nem de Malthus. Valia-se dos dois. Dependia da ocasião. Papai ganhava dinheiro, e muito. Por baixo do pano. Por baixo do pano de Malthus. Era dono de uma indústria que só ousei dar o nome através das alusões à gravura de Falópio. Indústria localizada no bairro de São Cristóvão, bem longe do luxuoso escritório de advocacia da Avenida Rio Branco. (SANTIAGO, 2004, 105)
7 Autor da teoria malthusiana da população. Mostrava-se indiferente ou até mesmo avesso ao crescimento econômico das massas.
88
A máscara de Falópio não resiste à invenção da penicilina: “Malthus
dava o troco a Falópio” (SANTIAGO, 2004, 126) e contrapõe-se a ela o fantasma
de Alexander Fleming – cuja imagem causa grande prazer em Samuel, por
representar a derrocada do pai: “Fleming, meu primeiro herói de carne e osso.
Meu idolatrado mártir.” (SANTIAGO, 2004, 125). A máscara utilizada para
preservação da austeridade apesar da derrocada é a do moralismo, para
preservação da imagem de homem de bons valores:
Papai vestiu a máscara de moralista. Donana a vinha modelando desde o casamento. Caía como luva no seu rosto. O moralismo se abrigava sob a bandeira da camisinha. Contra o reino da permissividade. Instituído pela descoberta científica do doutor Fleming. (SANTIAGO, 2004, 127)
Samuel, porque se constituía como personagem sem substância
familiar biológica nem adotiva (“Tinha vivido no engodo. No engodo prefere
morrer” SANTIAGO, 2004, 130), vê no fracasso do pai a opção por viver
múltiplas identidades, legitimando o seu gosto por um caminho pela margem:
“O filho crescia tão impostor quanto o pai, o falso” SANTIAGO, 2004, 134).
Vida e obra de Samuel, assim, misturam-se a partir da manutenção
da cópia, do falsear, como um conceito sedutor. O narrador procura a
justificativa para o apreço que tem por uma vida de desvio, apesar de
socialmente prestigiada. Mãe e pai falsos enveredam-no pelo caminho fake.
Donana também demonstra estreita relação com a capacidade de falsear. Dela o
narrador não conhece o rosto, porque a mãe – falsa – endossava o gosto pela
máscara na maquiagem que lhe criava outro rosto:
89
Desde criança espreitava Donana diante do espelho da penteadeira. Do lado de fora da suíte paterna. Minha primeira e legítima professora Ensinou-me a gostar mais do panqueique do que do rosto limpo. Mais da cor transparente. Avivada artificialmente pelo ruge e pelo batom. Mais da transparência do que da cor acabrunhada e baça, oferecida de mão beijada pela natureza. Mais do uso de esponjas de passar pó-de-arroz e de pincéis que acentuam com rímel a curvatura dos cílios, do que de água e sabão. Mais de me vestir do que me desnudar. Mais de calçar meias e sapatos, do que de tirá-los. Mais da representação do que da realidade. (SANTIAGO, 2004, 140-141)
Conclui, apostando na legitimação da cópia e desobrigando-se da
responsabilidade do falsear: “A cópia é platônica. Reino do belo, do bem e do
bom. (...). Substitui o que é original e o que, ao nascermos, nos é dado de
presente pelo sêmen que fecunda o óvulo. Pelos deuses, melhor dito.”
(SANTIAGO, 2004, 143)
Como visto, a ex-centricidade de Samuel revela-se em muitas esferas:
na vida pessoal, na carreira profissional e até na forma como escreve – homem
de cultura primorosa, fruto de estudo em boas escolas, opta por um discurso às
vezes chulo, agressivo à academia que o rejeita. Na posição de quem tem posse
de um discurso privilegiado, lança mão dele para utilizar-se de uma forma mais
agressiva, colocando em destaque uma outra oposição que se apreende do
distanciamento dessas leituras, que é a lacuna existente entre as chamadas alta e
baixa cultura.
A atitude do personagem diante do mundo consiste em tentar
desreferencializá-lo, como acontece a si mesmo. Projeta no mundo sua condição
90
de “sem origem”: “Meu lema. Farei do mundo uma gioconda. (...) O mundo é
significado pelo tamborete e por mim, que nele toma assento.” (SANTIAGO,
2004,166-167).
A defesa da cópia por Samuel segue critérios que o afastam de um
mero copiador sem categoria. Ele é profissional e muito bem estruturado em
seus propósitos. Faz valer a afirmação de Baudrillard de que há mais apreciação
pela capacidade de simular do que pela remissão ao referente. Samuel elabora
argumentos sólidos para mostrar a superioridade da cópia em relação ao ato de
criar. As questões de repertório e estilo apontam o copiador como alguém que
tem mais análises e não propriedade do estilo. Na margem, Samuel busca o
endosso para sua atividade, que lhe exigia muito e não oferecia prestígio:
Quem copia sabe que a liberdade humana é tão limitada quanto a flor o é pela haste que a sustenta no ar. Frente às intempéries. Como a fruta o é pelo cabo. Onde se dependura e não cai. A não ser de madura. Belas imagens! Quem copia não corta o cordão umbilical. Pelo contrário. Coleciona cordões umbilicais ao ar livre da imaginação. (...) O similar é tão igual ao original quanto é diferente dele. Somos todos similares.(SANTIAGO, 2004, 184)
Além da justificativa de ter sido criado entre falsários e de ser
especialista em uma arte difícil, Samuel encontra no objeto a ser copiado um
chamado à cópia: a xilogravura, em seu processo semelhante ao do carimbo,
seduz o copiador pela sua potência de reprodução:
A xilogravura corta pela raiz a presunção do artista de querer fazer obra única e singular. Ela já anuncia na madeira como é talhada, trabalhada e reproduzida a existência da cópia. Anuncia a cópia necessária e indispensável – prova do artista –, e as muitas outras cópias seguintes. Todas similares. (SANTIAGO, 2004, 191)
91
A simulação que contorna toda a estrutura dessa obra de Silviano
Santiago passa ainda por um processo de mimetização de autores e estilos,
compondo um amálgama de referências literárias, acionadas para serem
desconstruídas. As memórias de Samuel aproximam-se das de Brás Cubas e
Leonardo Pataca, e seu herói, além de ser similar a estes mencionados, justapõe-
se com propriedade a Macunaíma. O tom de inventário da vida assumido no
capítulo “Das negativas”, da obra citada de Machado de Assis, estende-se ao
encerramento do relato das memórias de Samuel:
Desde o meu duplo (triplo, quádruplo e até quíntuplo) nascimento, soube que tinha vindo ao mundo com um propósito – o de botar no mundo uma família a menos. Chega de mentiras. Não serei um falso pai falso, como o doutor Eucanaã. Não me casei com Esmeralda. Não tive filhos com ela. Se me colocarem contra a parede deste relato, confessarei. Tive dois filhos virtuais. Não poderei tê-los tido. Não os tive. Inventei-os. (...) Lego ao mundo as minhas telas. À história, uma família a menos. (SANTIAGO, 2004, 222)
Em Histórias mal contadas, Silviano segue a mesma linha de O falso
mentiroso. “O envelope azul”,o primeiro dos contos, apresenta-se como uma
espécie de teoria para compreender a estrutura do volume. O narrador se
mostra com disponibilidade semelhante à do narrador de O falso mentiroso –
objetiva recontar histórias que foram mal contadas. Essa ambigüidade do termo
revela duplo projeto: recontar histórias que já foram escritas, aprimorando-as na
forma e no conteúdo, ou ainda recontar, na ficção, o que não foi muito bem
esclarecido nas experiências vividas.
92
E nessa corda bamba oscilará o leitor até o fim do conto: ao lado de
uma espécie de confissão (“Serei mentiroso nato? Não seremos todos?”-
SANTIAGO, 2005, 13), em que afirma a atitude de ficcionista, está o discurso do
memorialista, que tem compromisso com a verdade: “O bem narrar, o narrar
verdadeiro é uma concessão que faço à consciência e à morte iminente.”
(SANTIAGO, 2005, 15).
Em “Borrão”, o narrador, depois de muito hesitar em relação à forma
mais adequada de contar uma história, denuncia a própria máscara, enxertando
o início da narrativa de idas e vindas, numa espécie de realização ao vivo do
relato. A importância da seleção do que vai ser contado cede espaço à seleção
da melhor ou das melhores formas de narrar:
Quero chegar ao fato que jaz recoberto pelos pêlos da memória, lá chegarei através das lembranças magoadas que cercam a cicatriz, através do seu corpo vivo, que reluz e não é ouro. (...) Narrativa a ser escrita por cima dos lábios da chaga, que se fecharam, abrindo-os. A ser escrita de dentro do esquecimento do fato. Borrando esquecimento e expulsão. Borrando o fato. Uma narrativa = um borrão. (...) Esta narrativa é o primeiro rascunho do acontecimento vivido. (...) a versão final terá a forma de um mata-borrão. (...) Desenharei frases que devem ser mais incisivas para que sejam mais convincentes junto ao leitor. (SANTIAGO, 2005, 38)
Toda a estrutura se desnuda numa espécie de projeção dos bastidores
sem que, entretanto, o leitor se certifique de que aquela estrutura que se mostra
já não é em si encenação. O narrador justapõe temporalmente narração e
experiência, numa perspectiva enviesada em que não se pode apreender se o
relato vem a partir da experiência ou se ele significa a criação/representação
desse vivido.
93
A frase inicial do conto “Bom dia, simpatia” (“Nada tenho a perder.
Tudo a ganhar”) simula um desnudar do narrador diante dos olhos do leitor,
mas que, na realidade encena o mesmo processo de falseamento de propósitos
dos contos anteriores. Depois de muito encenar a tentativa de iniciar o relato,
que é sempre reiniciando a cada encaminhamento indesejado, com perspectivas
completamente diferentes das anteriores, o narrador recorre ao sentido de
rasura e, portanto, de escrita sobreposta, sem necessariamente estabelecer
compromisso com a veracidade do relato, revelando que o sentido íntimo das
revelações feitas pode estar no plano apenas da invenção, intensificando o jogo
de simulação na narrativa:
No plano inicial desta narrativa, depois da minha apresentação em 3x4 ao leitor, as duas histórias vinham engatilhadas. (...) Como reabrir a porta da narrativa se só me lembro da primeira história? Fixo minha atenção na sobrevivente, enquanto escrevo outras e mais verdadeiras palavras para compor o meu 3x4. Quem sabe se a segunda história não pinta depois no pedaço? Crer para ser. Se pintar, será bem vinda. Se não, o acaso deu-lhe o piparote definitivo. Da capo. Vamos ao verdadeiro 3x4. (SANTIAGO, 2005, 80)
Neste conto, Silviano expõe o jogo da simulação, como fizera em O
falso mentiroso. A recuperação dos fatos da memória que deveriam ser
eternizados pela ficção, pelo narrador, passa por uma seleção em percurso
labiríntico em que certezas, verdades e mentiras são suspeitas de representarem
apenas ilusão. E o que fica do conto é, substancialmente, a discussão travada
acerca do processo de narrar:
Bastou que se abrissem as duas portas (enganosas, enganadoras) de entrada para a minha vida profissional, bastou que você, leitor, e eu descortinássemos o que poderia estar por detrás delas, para me dar conta de que estava
94
fazendo você entrar por labirintos sucessivos que não representavam o caminho trilhado por mim no passado e a ser trilhado no futuro. (...) A ilusão não esparramou pistas totalmente mentirosas pelo caminho, embora afogueasse, aqui e ali, o rosto da vaidade daquele que narra. O prazer de se ver narciso na prosa. (SANTIAGO, 2005, 94)
“Hello, Dolly” também traz a discussão sobre simulacro para a
narrativa. O conceito de cópia, como algo cujo controle já não existe, é discutido
com Walter Benjamin, na simulação de uma comunicação epistolar, colocando
em xeque a perda de identificação/identidade numa era em que a ausência de
original significa capacidade/possibilidade de criar:
Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem, depois desse falimento? Não é a minha própria identidade que está sendo manuseada por profissionais incompetentes? Será que outro que não eu conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises de angústia, na montanha-russa da minha depressão e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta sua, e não me chame de retrógrado, por favor. Sou benjaminiano e pós-moderno, graças a Deus. (SANTIAGO, 2005, 156)
De maneira explícita ou não, o simulacro se mostra sempre na obra
de Silviano Santiago, entretanto as estratégias para a simulação assumem
diferentes percursos. Se acompanhadas segundo a cronologia, as obras
mostrarão que o autor acompanha as nuances de estilo no tempo percorrido por
ele.
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5 MODOS DE (NÃO) USAR: A DIREÇÃO DA NARRATIVA
o romance (...) nasce no momento em que se
começa a duvidar do critério de imitação como motor para o novo.
(Silviano Santiago. Nas malhas da letra.)
Muito já se escreveu sobre a obra de Silviano Santiago, mas, se são
diversos os encaminhamentos de leitura de sua ficção, um elemento se faz
presente na voz crítica: transita-se, nessa produção, no campo da instabilidade,
do jogo de criação de artifícios narrativos. Se as formas de apresentação deste
jogo constituem a instabilidade e revelam a dificuldade do olhar crítico em
definir uma poética de Silviano, dada a sua capacidade metamórfica, a presença
do jogo em si revela a constância.
A narrativa contemporânea, de que a ficção de Silviano é exemplo
rentável, é atravessada pela influência de elementos midiáticos, por projeções
de imagens e descontinuidade, flashes, cortes bruscos, tudo, enfim, sob forte
influência do cinema, e de outras artes visuais, numa relação que se constitui
como responsável pela acentuada fragmentação da narrativa, acarretando uma
diluição de papéis, uma vez que, diante da proliferação de identidades e (não-)
ações das personae ficcionais, o leitor se vê como espectador e também como
alguém que vivencia aquelas experiências, dado o grau de proximidade e de
capacidade metamórfica que assumem.
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Olhando em conjunto a produção ficcional de Silviano, obtém-se, a
princípio, a impressão de potencialização de um narrador que se configura pelo
caráter metamórfico, praticando, a cada obra, um exercício de contar/criar
ficcionalmente. São narradores, entretanto, que mimetizam o trajeto crítico e/ou
projeto estético do autor. Algumas correntes teóricas de estruturas artísticas e
linguagens diversas aparecem na obra do autor de maneira explícita ou não.
Analisarei a estrutura das obras segundo a teoria do cinema
principalmente. A teoria de Sergei Eisenstein é a principal fonte do
encaminhamento dado à análise, a qual se desdobra em duas possibilidades
(que vez por outra se estrecruzam): o modo de organização é análogo ao do
filme; ou ainda os textos têm conceitos e campos imagéticos que se constroem a
partir da aproximação com filmes e estrelas cinematográficos. Portanto, as bases
estruturais da produção ficcional do escritor serão alvo de investigação aqui.
Em entrevista concedida a Helena Bomeny e Lúcia Lippi Oliveira,
publicada pela Revista da Fundação Getúlio Vargas8, Silviano Santiago declara
“ter escolhido a metáfora como elemento organizador do texto literário”.
Complementa dizendo que a metáfora cumpre a função de “organizar a
ideologia do texto”.
Pensando nessas considerações acerca da metáfora e analisando os
textos ficcionais de Silviano, podemos sim apontar a metáfora como recurso
organizador da ideologia, mas que se configura materialmente como elemento
estrutural. A construção dessa estrutura faz-se de maneira muito criteriosa e
8 Entrevista disponibilizada em meio digital, pela Fundação Getúlio Vargas.
97
sua metodologia pode ser percebida na maioria das obras do autor: apontam-se
redes de referência que se originam de diferentes campos semióticos, a saber
artes plásticas, cinema, teatro, música, literatura e até a História.
Vistas em conjunto, as referências intertextuais parecem assumir uma
feição de mosaico, ou de caráter quase enciclopédico, uma vez que há
verdadeiras apresentações de filmes e outras obras. Um exemplo claro é a
minuciosa descrição da cena do filme Gilda, de que se vale o autor em De
cócoras. A erudição do crítico parece se revelar no ato da ficção. No entanto, a
composição dessas referências não se faz de maneira aleatória; ao contrário,
comunicam uma síntese conceitual que perpassa a obra e confere unidade
àquilo que parecia constituir apenas um agrupamento de citações.
Grande estudioso, intelectual de renome, Silviano lança mão de
apropriações das artes e parece conseguir, com essa estratégia, uma
aproximação coerente entre as diferentes manifestações artísticas e seus
processos de construção.
Para entender o trajeto estrutural de que se vale o ficcionista, busco o
conceito de montagem, recurso primordialmente cinematográfico, de que Sergei
Eisenstein é um dos maiores teóricos. Para Eisenstein, dois aspectos são
particularmente importantes para o cinema, embora também se estendam a
outras artes: o plano e a montagem. Segundo ele, à gravação cabe a tarefa da
captação de imagens e à montagem o papel de combinar os elementos captados.
A montagem, assim, consiste na construção de um produto, tendo como base a
aproximação de imagens descontínuas.
98
A montagem de elementos artísticos vai iluminar a grande metáfora
das obras: Silviano estabelece, com a aproximação dessas referências, um
conjunto de símbolos sensoriais sem aparente conexão. Sobre a aproximação
dos conceitos de metáfora e montagem, Modesto Carone Neto afirma, ao
analisar a obra do poeta Georg Trakl:
É nesse momento que se pode pensar na afinidade entre a metáfora e a montagem, pois não só a primeira é, em certo sentido, uma junção de elementos incongruentes que aponta para um ‘terceiro termo’ que deles se diferencia, como também a montagem é uma metáfora, na medida em que se apresenta como ‘idéia’ que salta da colisão de signos ou imagens justapostas. (CARONE, 1974, 15)
Carone refere-se a Trakl como um “poeta eminentemente construtor”.
O mesmo conceito pode ser aplicado a Silviano Santiago em sua prosa ficcional,
uma vez que sua capacidade de relacionar conceitos e imagens leva à
construção de obras cujo processo metafórico resulta da montagem de signos
semióticos diversos, pois a junção das referências cumpre a função de
substancializar a base conceitual da obra, a grande metáfora, como já afirmado,
que se apresenta como resultado de cuidadosa pesquisa de signos que,
justapostos e manipulados no plano de seus significados individuais, colocam
em evidência uma atualização semântica que se origina da colisão de
elementos, de que tratou Carone, tendo como resultado o terceiro elemento: o
conceito metaforicamente representado.
A construção desses conceitos norteadores dá-se de forma reveladora
de uma perspectiva fundamentada na identificação de imagens metafóricas,
atualizando as potências simbólicas que representavam aquelas referências
99
isoladamente. Dessa forma, a organização de que o ficcionista se utiliza revela
sua condição de crítico e intelectual, uma vez que os instrumentos de que se
utiliza e a forma de montagem deles demonstra conhecimento aprofundado do
tema de que está tratando.
Em Uma história de família, por exemplo, as referências utilizadas
pertencem à obra de Arthur Bispo do Rosário, que serve de capa ao livro, além
de a epígrafe ser do mesmo artista. A capa do romance já antecipa ao leitor um
dos temas-chave abordados na obra. Escolhida pelo próprio Silviano, ela é um
trabalho de Arthur Bispo do Rosário, artista plástico, interno muitos de seus
anos na Colônia Juliano Moreira, que se dizia instrumento de Deus, com a
tarefa de reconstruir o universo e depois retornar ao céu.
Nessa capa, sobreleva-se a capacidade de criação de um homem que,
embora artista, era interno e, portanto, excluído da sociedade. A história
daqueles que tiveram suas trajetórias cruzadas por alguma forma de
intolerância se mostra por meio do diálogo que estabelece com a composição do
artista, que dizia querer reconstruir o universo.
A epígrafe, "Cada louco é guiado por um cadáver", também é do
Bispo. A presença do artista plástico como referência em Uma história de família
parece apontar para a loucura como única alternativa de sobrevivência em uma
comunidade que se dividia entre a vergonha em casa e a culpa em público.
Portanto, o binômio loucura/morte constitui fato e conseqüência: sendo tio
Mário louco, a única saída enxergada pelos familiares como solução para o
problema era a morte.
100
Assim como o Bispo, o tio era um indivíduo marginalizado por sua
doença, mas que, a seu modo, acabou por descobrir o segredo para o viver bem.
A fórmula, tão buscada pelo sobrinho, tio Mário não revelou, mas mostrou que,
mesmo excomungado por todos e tendo escapado à morte e levado muitos dos
seus ao túmulo, como Sísifo, viveu "feliz, feliz". Isto é, Tio Mário escapava quase
impune para si mesmo dos olhares odiosos de quem nele enxergava um
espectro que deveria ser expurgado.
Nesta obra, o recurso de montagem é utilizado como estratégia
narrativa explícita. Recorrendo à fotografia como forma de recuperação de
memória, o narrador utiliza-se da analogia da técnica de fotogramas do cinema
russo para estabelecer as relações de sentido do inventário que faz de sua
família. Busca a teoria, entretanto, não apenas para usá-la como artifício, mas
principalmente para fazer caminho oposto ao que ela propõe.
Os teóricos do cinema russo descobriram desde os anos 20 que o significado da expressão de um ator depende do fotograma anterior e do fotograma posterior. (...) Revendo a comadre Marta no fotograma anterior e a sua mãe no posterior, armo a descontinuidade absoluta no filme da lembrança para ficar só com o seu rosto, só com ele projetado na parede branca do quarto. Quero a verdade dele, não me interessa agora dar sentido à sucessão das cenas.( SANTIAGO, 1993, 19-20)
Partindo da teoria do cinema russo, numa perspectiva brechtiana, em
que prima o estímulo ao senso crítico do espectador, de modo a tornar claros os
artifícios da representação cênica, o narrador orienta a leitura que se deve ter
dessa família. Para construir essa história, baseia-se na teoria russa, sabendo
que "o significado da expressão de um ator depende do fotograma anterior e do
101
posterior" (SANTIAGO, 1993, 20), já que a expressão humana é ambígua: "Por
isso os grandes diretores do cinema não pedem ao ator que expresse
sentimentos. Estes lhe serão dados de empréstimo e de maneira definitiva pela
montagem." (SANTIAGO, 1993, 20).
Para que o espectador não se contamine com o excesso e, com isso,
tenha uma ilusão da realidade, o narrador desloca a imagem do tio, em uma
"imensa e invisível fotografia 3x4" (SANTIAGO, 1993,19). O zoom a que recorre
tem como função aproximar personagens isoladamente para apreender-lhes
melhor a essência; descontextualizá-los, individualizá-los era importante para
enxergá-los melhor e expor-lhes nuances que poderiam não ser notadas à
distância. A seqüência que se faz lembrar é a de três fotogramas: D. Marta, tio
Mário e a matrona, respectivamente. D. Marta aparece como a conselheira que
tenta convencer a matrona a aceitar os desígnios divinos. É a pessoa que vem
conferir legitimidade, a partir do discurso cristão, ao desejo de expurgar a
loucura. Em seguida, vem o tio Mário, sempre sorridente e alheio ao contexto.
Por último, vem a matrona, emoldurada por um rosário que circunda o coração
de Cristo.
A montagem das cenas é importantíssima, pois, numa leitura
seqüencial, o encaminhamento seria de que tio Mário representava um estorvo,
pois as duas senhoras endossam seus discursos nos preceitos do cristianismo:
D. Marta era a "bondosa conselheira" e a matrona estava sempre próxima a
imagens religiosas, pedindo perdão por sua impaciência e desejando o fim do
"sofrimento" do filho. Para revelar os artifícios dessa interpretação e denunciar-
102
lhes a hipocrisia, o narrador desloca a imagem do tio e arma a "descontinuidade
absoluta no filme":
Quero a verdade dele, não me interessa agora dar sentido à sucessão de cenas. No seu sorriso, só nele, isolado de todos os outros comparsas, nessa imensa foto 3x4, é que estou buscando a alegria dos meus dois dias de férias em Pains. (SANTIAGO, 1993, 20)
Desvinculado dos fotogramas anterior e posterior, o sorriso do tio
Mário tem outro sentido que não é aquele que as duas mulheres viam e
queriam que os outros vissem: onde elas liam "morte iminente", o narrador
traduzia "viagem, férias, deslumbramento". Na leitura impressa pelo olhar das
duas mulheres, revela-se a mesma função que a moldura teria no cinema – a
definição do campo de visibilidade e seus limites variam conforme a
perspectiva de quem olha, como afirma Ismail Xavier: “A combinação de
imagens cria significados não presentes em cada uma isoladamente” (XAVIER,
1998, 369). Conclui o crítico que a leitura de uma imagem se faz por meio da
mediação do olhar de quem produz a imagem e de quem a recebe. É nesse
sentido que o narrador retira a moldura do quadro em que está Tio Mário, para
enfim conhecê-lo sem filtros que propõem um caminho vicioso de identidade
para aquele homem.
Numa perspectiva em que poderia ser lido o sofrimento de uma mãe
com o filho doente, o narrador traz a denúncia de uma narrativa sórdida, em
que o objetivo pretendido era a eliminação daquele que humilhava e
envergonhava a todos. Porque representava vergonha para a família, causando-
lhe constrangimentos, a solução parecia simples: "Todos querem a sua morte,
103
tio Mário" (SANTIAGO, 1993, 7). Ele não passava de um "cadáver adiado" e o
desejo de vê-lo morto vinha da maioria daqueles que o cercavam:
(...) os mais broncos respirariam aliviados, trocando entre eles olhares de satisfação mas rasos de arrependimento por terem conseguido a sua morte. Arrependimento curto e rasteiro, mais certeza da justiça perpetrada pela impiedade do que arrependimento pelo remorso, porque a sua morte, tio Mário, para eles era necessária e, na necessidade, ninguém comete uma ação má. As coisas se justificam por si mesmas e se apagam da memória com o correr dos anos. (SANTIAGO, 1993, 25)
Sem defender o ponto de vista daqueles que tramam a morte do tio, o
sobrinho acaba por deixar transparecer sua tese sobre bem e mal: bondade e
maldade têm limites tênues; ambas enraízam-se em motivos. A teoria de que o
fim justifica os meios emerge nesse sentido em tom irônico para expor a
corrosão de um discurso que se pretendia fundar em boas intenções.
A frase inicial ("Todos querem a sua morte, tio Mário") é o elemento
em torno do qual se estrutura o discurso do narrador. Sendo o sobrinho o
diretor do filme da memória, sem dúvida, este constitui seu argumento.
Atormentando a memória desse sobrinho, essa frase-eco revela dois pólos que
se opõem e posicionam-se claramente acerca do estorvo: de um lado, está o
partido daqueles que camuflam a realidade, numa tentativa insana de
adaptação ao meio, representado, principalmente, pela avó e seu amante, o
farmacêutico Onofre. No outro, estão aqueles que tentam levantar o véu da
hipocrisia - grupo representado principalmente pelo sobrinho que busca as
raízes da família e pelo Dr. Marcelo, revelador de muitos ardis daquela família.
104
A memória materializa-se diante dos olhos do narrador por meio da
projeção das imagens que lhe vêm das fotografias. O ângulo de projeção, cujo
eixo ótico parte do sobrinho e tem como plano de referência a parede do quarto,
revela o estado de imobilidade do sobrinho. Sendo o narrador alguém que está
irremediavelmente preso ao leito, não podendo ter uma participação mais
efetiva, resta-lhe apenas a denúncia pela palavra escrita. Para resgatar a
história, revela o recalque e resgata a culpa que nutria a família:
Penso que teria muito o que fazer, mas sei que realmente nada tenho para fazer: a empregada me serviu o almoço, liguei o rádio da mesinha de cabeceira, desliguei, liguei a televisão pelo controle remoto, desliguei, daqui a pouco a noite vai cair entre as cortinas abertas no horizonte azulado da janela. (SANTIAGO, 1993, 13)
Na ausência do tio que já morrera, a lembrança vem em episódios,
por meio do exame das fotografias. Nesse processo de olhar e buscar o
significado da expressão, o narrador reconstrói aquele homem que, absorto em
si mesmo, parecia sempre feliz: "Olha fixo, sem piscar, dessa maneira absorvida
como você sempre olha, parecendo que quer enxergar alguma coisa que,
mesmo visível, se furta aos olhos." (SANTIAGO, 1993, 19). A expressão grotesca
de tio Mário era-lhe atribuída mais pela hipocrisia familiar do que pela
natureza. Enquanto se projeta o filme da recordação, o narrador observa e busca
conversar com tio sobre o que vê. Às vezes, tenta dar uma pausa na projeção, na
tentativa de ver melhor, de compreender as ações, mas o filme não pára:
Ilumino melhor o quadro da sala do refeitório que a recordação projeta na parede branca do meu quarto de dormir (...). O filme da recordação se projeta fotograma após fotograma na parede branca do quarto. Não posso mais
105
rebobiná-lo ou deixá-lo depositado, lacrado e intocável em alguma prateleira do tempo. (SANTIAGO, 1993, 12)
Em sua busca pela história nas fotos da família, o narrador encontra
uma fotografia de Formiga e mergulha nas lembranças: revê a cidade natal, mas
sente que nela, ali pela reprodução, falta vida, falta pessoalidade. O olhar de
quem fotografou não flagrou as mesmas peculiaridades que o menino viu e
viveu na infância:
Esta é e não é a paisagem de Formiga que vi quando criança nas minhas crises de coqueluche e que agora vejo sustentada pelas minhas duas mãos, em cima da minha barriga. Faltam muitas coisas na cidade lá embaixo, mas aqui em cima falta o vento fino que zune cantando no capinzal e assovia nos meus ouvidos (...). (SANTIAGO, 1993, 16)
Refazendo percursos que lhe eram comuns em seus dias de menino, o
narrador tem, na fotografia, um ponto de partida e de chegada na caminhada
pela reconstrução da memória. À foto, o narrador traz suas impressões de vida
e mistura seu olhar ao de quem flagrou aquela imagem:
E mais refaço o caminho pela fotografia, mais o refaço pela lembrança e mais perto vou chegando dos olhos do fotógrafo, dos olhos do menino, misturando os dois diante da lente da máquina e nos oito cartões postais à minha frente. (SANTIAGO, 1993, 16)
Assim, esse romance constitui-se como uma montagem de elementos
que remetem ao conceito de solidão como análogo ao de isolamento, como
imposição externa de um grupo que rejeita a diferença. A grande metáfora da
exclusão constrói-se por meio de um processo que mimetiza a montagem do
cinema como resgate de memória a partir de fragmentos.
106
As imagens que inicialmente o narrador manipula acabam por tomar
conta dele e, se por um momento ele acreditava poder manipular o curso das
lembranças e recortar, à sua maneira, uma das histórias de família, percebe
depois que seu trabalho de edição nem sempre é possível:
O filme da recordação se projeta fotograma após fotograma na parede branca do quarto. Não posso mais rebobiná-lo, ou deixá-lo depositado, lacrado e intocável em alguma prateleira do tempo.( SANTIAGO, 1993, 12)
Os recursos cinematográficos de que se utiliza o narrador estão
localizados na narrativa em uma espécie de prévia, ou preâmbulo, da narração
da epopéia familiar. É no momento de explícita metanarrativa que o sobrinho
enumera/ justifica os recursos e conceitos de que dispõe para construir um
retrato daquela família de imigrantes, na tentativa de enxergá-lo sob a maior
possibilidade de perspectiva. A montagem daquele filme é a ferramenta de que
o personagem se utiliza para materializar e atualizar suas memórias.
Recorrendo explicitamente à teoria da montagem, trabalhando com
fragmentos e não com a “realidade”, o narrador posiciona-se como um diretor
que enquadra a figura do tio Mário para, a partir da perspectiva dele, construir
a saga daquela família. Se a teoria do cinema, defendida por Kulechov nos anos
20, fala da necessidade de contextualização para que aquele simulacro se
aproxime o máximo possível do que seria o real, nesse romance, Silviano faz o
oposto: desloca o tio de seu contexto familiar, montando uma espécie de close
não previamente interpretável. O objetivo é construir a história da família na
perspectiva da loucura, do desvio, do olhar enviesado, não contaminado pelo
107
vício das máscaras sociais, relativizando aquilo que no cinema equivaleria à
moldura: as expressões do entorno, que viriam dos membros da família.
Já em Keith Jarrett no Blue Note, além do piano de Keith Jarrett,
especificamente do CD gravado no Blue Note, que, conforme é indicado nas
páginas iniciais do romance, constitui a inspiração para a construção dos textos,
há freqüentes diálogos com filmes, revelando serem os protagonistas grandes
admiradores desta arte. Outros músicos, além de Jarrett, são lembrados, como é
o caso de Vinícius de Morais, na epígrafe do conto "Days of wine and roses".
Os cinco contos fazem explícita referência ao CD de Keith Jarret,
como é afirmado pelo próprio autor também em uma espécie de prólogo, em
que revela que os contos surgiram depois de ele ter ouvido o CD do pianista.
Na epígrafe, porém, deixa claro que o diálogo vai para além da música e se
estabelece também com a estrutura dela – o conceito de improviso do jazz é
desejável para a composição dos contos.
A escolha do pianista Keith Jarret é muito pertinente no contexto da
obra de Silviano Santiago. Nascido nos Estados Unidos, Jarret é um dos maiores
representantes do jazz, especialmente o foi na década de 60. A peculiaridade
deste músico reside no fato, entre outros, de que ele não restringe a técnica do
improviso ao jazz: estende a outros estilos. Essa “brincadeira” com a forma
também pode ser encontrada na obra de Silviano Santiago.
São textos aparentemente descomprometidos com a forma, sem que
implique ausência de apuro estético. Ao contrário, assim como no jazz, em que
as elaborações a partir da estrutura (improvisos) constituem o ponto alto da
108
composição, os contos desse volume não apresentam, na liberdade de forma,
ausência de formatos. Inauguram um paradigma em cujo eixo está a
justaposição de imagem e harmonia musical. A estrutura da obra pode ser
considerada análoga à do jazz. Sobre a forma jazzística, esclarece Marc
Sabatella:
A maior parte do jazz desde a era do bebop é baseada numa forma que é na verdade bem similar à forma sonata da teoria clássica: uma introdução opcional, a exposição ou tema (possivelmente repetido), a seção do desenvolvimento e a recapitulação, possivelmente seguida de uma coda. A introdução, se presente, dá o tom para a peça; a exposição é a melodia principal; a seção de desenvolvimento é onde o compositor estende as idéias da exposição; a recapitulação é uma reafirmação do tema; e a coda é um encerramento. Na linguagem do jazz, essas seções de uma peça seriam chamadas introdução, tema (possivelmente repetido), a seção de solo, a repetição do tema, e possivelmente uma coda ou encerramento. A introdução estabelece o clima; o tema é a melodia principal; a seção de solo é quando os solistas improvisam sobre a melodia e/ou a progressão de acordes da música; a repetição do tema é uma reafirmação da melodia; e a coda ou encerramento é uma conclusão.(SABATELLA, 2000:13)
Assim como no jazz, os contos estruturam-se de forma semelhante a
uma narrativa mais próxima do tradicional. As digressões, apresentadas sob
forma de divagação onírica ou ainda oriundas de um fluxo não-linear de
memórias, cumprem o papel dos improvisos, mas, como no jazz, a base está
preservada e o tema é retomado. Isso confere ao texto um caminho cíclico na
maioria dos casos. Portanto, a fragmentação aparente e a forma despreocupada
escondem grande rigor de construção, como acontece com o citado gênero
musical.
109
Personagens solitários e nômades, cidades-metrópoles, todos esses
ingredientes desfilam diante dos olhos do leitor num processo de sucessão de
imagens às vezes até sobrepostas. Os blocos imagéticos que nos fazem assistir a
esse desfile não dão espaço para aprofundamentos, dada a velocidade em que
transcorrem. Ainda assim, a profusão de sentimentos e as nuances líricas
caminham à revelia do narrador.
Essa velocidade de apresentação de imagens sucessivas, aliada à idéia
de que a música também ali está presente, pode nos fazer remeter esse conjunto
à forma de composição e mesmo ao conceito de videoclipe, que associa imagem e
música e se apropria das técnicas do cinema para montagem , agregação das
linguagens utilizadas e estabelecimento do conceito pretendido. Arlindo
Machado afirma:
[No videoclipe] tudo muda na passagem de um plano a outro: a indumentária dos intérpretes, o lugar onde se ambienta a canção, a luz que banha a cena, o suporte material (filme ou vídeo de bitolas distintas) e assim por diante. Os planos de um videoclipe (...) são unidades mais ou menos independentes, nas quais as idéias tradicionais de sucessão e linearidade já não são mais determinantes, substituídas que foram por conceitos mais flutuantes, como os de fragmentação e dispersão. (MACHADO, 2001, 180)
O videoclipe conta, em sua estrutura, com o processo da colagem,
inserção de imagens advindas de naturezas várias, formando um todo híbrido e
descontínuo, como afirma Thiago Soares:
Aspectos como divisão e simultaneidade nas imagens videoclípticas geram a fragmentação da narrativa e do significado, podendo acarretar em adiamento de sentido ou um ‘soterramento’ desse sentido. (SOARES, 2004:78)
110
Num processo inverso ao tradicional, em que a música era escolhida
a partir das imagens a serem apresentadas, no videoclipe hoje as imagens
partem de uma música que se quer promover.
Analogamente ao processo constitutivo do videoclipe, o volume de
contos de Silviano é uma forma plural, onde acontece o encontro de muitas
linguagens: cinema, televisão, música, literatura, regidos sob o princípio da
instantaneidade. Imagens e referências justapostas e descontínuas, expostas em
planos fragmentário, guiados pela memória, constituem o universo dos contos e
mostram grande sintonia com a forma dos conceitos midiáticos.
Há, em todos os contos, referências a filmes e estrelas
cinematográficas, como Marlon Brando, Cornel Wilde, Pedro Armendariz,
Marilyn Monroe, entre outros, além dos filmes Dom Juan de Marco, Cantando na
chuva e Suplício de uma saudade. As epígrafes dos contos são trechos de falas de
filmes, com exceção do primeiro em que não há epígrafe e do segundo que é um
trecho de uma letra de Vinícius: "Bop be" traz Paradiso; "You don't know what
love is/ Muezzin" é introduzido com um trecho de Uma vida por um fio; e "When
I fall in love" traz as palavras de uma das personagens nas cenas finais de O
morro dos ventos uivantes. O filme, com Willian Holden e Jennifer Jones, Suplício
de uma saudade, é lembrado em "When I fall in love", pois foi depois de uma
sessão desta película que os dois amantes se conheceram e, a partir de então,
começaram a se relacionar. Cantando na chuva tem uma de suas seqüências
relembrada pelo protagonista de “Autumn leaves”.
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Nesses contos, portanto, a referência ao cinema se faz pela
apropriação de cenas e conceitos emergentes de alguns filmes, que, a partir da
técnica da montagem, compõem o cenário dos contos e a identidade de sujeitos
solitários, cujas dimensões psicológicas são reveladas por meio da justaposição
com situações e personagens cinematográficos. Embora muitas sejam as
linguagens que se tornam referências nessa obra, duas certamente se destacam:
o cinema, pelas menções já discorridas, e a música – o jazz de Keith Jarrett
compõe esse quadro.
Da mesma forma, contos de Histórias mal contadas têm referências a
filmes e personagens cinematográficas que aparecem na narrativa como
parâmetro de comparação com personagens e situações. No conto “Borrão”, o
filme High noon é citado para que o narrador estabeleça uma comparação entre
si mesmo e o xerife do filme, aproximando-os no sentido de fragilidade a que
estavam sendo submetidos; as similaridades com personagens do cinema não
param por aí: a dupla de policiais do filme Máquina mortífera tem seus pares no
texto.
Em outro conto do mesmo volume, “Bom dia, simpatia”, as
referências a filmes e estrelas do cinema conferem ao texto a localização
temporal, o emblema de um momento de mudanças, no caso, a irreverência da
Nouvelle vague, um movimento de ruptura e contestação do cinema francês nos
anos 60. Personalidades dão o tom do movimento da Contracultura na década
de 60:
112
O biquíni de Brigitte Bardot, o iate de Onassis e a voz de Maria Callas. Lado a lado. Na rabeira os cineastas da nouvelle vague. Jean-Luc Godard perdia o fôlego na Paris dos pilantras e François Trffaut recebia as quatrocentas surras da infância desamparada. Quem não se lembra do filme Plein soleil, de René Clement, que pôs em voga Alain Delon e o atirou para os braços de Luchino Visconti? (SANTIAGO, 2005, 79)
A sociedade americana é analisada, neste conto, a partir dos filmes
que produz. A mecanização com que os alunos estrangeiros tinham que
aprender o idioma dos americanos é comparada à repetição dos drills pelos
soldados aos sargentos, e o filme Born to kill, de Stanley Kubric, é citado como
exemplo disso. Os filmes policiais da década de 50 dão o tom da intolerância
com o desvio a que se viam submetidos os estrangeiros no território dos
Estados Unidos: “A sociedade norte-americana nunca deu uma segunda chance
ao incapaz. Na próxima escorregadela, cadeia. Que o digam os filmes policiais
dos anos 1950.” (SANTIAGO, 2005, 97)
A paisagem do México, quando da visita que o narrador vai fazer a
um amigo de Chihuahua, não lhe causa estranheza exatamente porque já fora
conhecida nos filmes de bangue-bangue: “Nada era muito diferente do México
que tinha visto nos filmes de bangue-bangue. Como esquecer as imagens
surpreendentes e exóticas de O tesouro de Sierra Madre?” (SANTIAGO, 2005, 99).
Ainda em “Bom dia, simpatia”, a narrativa, em sua construção, será
justaposta ao processo de simulação do cinema. A recuperação dos fatos, pela
memória, mais uma vez, passa por um processo de seleção e montagem, em que
o resultado significa muito mais uma reelaboração dos fatos do que
113
simplesmente relato. E a memória tem grande apelo ao dado visual, dada a
construção de cenas que se faz nas projeções mentais:
Não sei o que essas experiências intermitentes significam. Quando narradas, são tão ridículas quanto as cartas de amor, de Fernando Pessoa. No entanto, como as cartas de amor que ridículas são, elas calam fundo no lusco-fusco da madrugada solitária. Tão fundo quanto um poço em terras áridas. Dele se tira água límpida para os devaneios de semanas e semanas em que os protagonistas de carne e osso reganham a condição imaginária e grandiosa da tela de cinema, atuando num filme mental, de imagens soltas e vaporosas, sem começo nem fim. Um filme curto, tipo conto. Une tranche de vie, como gostava de dizer Guy de Maupassant. (SANTIAGO, 2005, 85)
Esse processo de recuperar e reelaborar o vivido por meio das
estratégias do cinema é utilizado pelo narrador do conto “Ed e Tom”.
Entretanto, neste, a montagem dá especial atenção aos fatos que não cabiam no
cotidiano profissional do narrador. Ou seja, na solidão, construía para si o filme
proibido ao setor público, destravava a censura a que era obrigado a se
submeter em território não privado:
Sei que, em poucos anos de convivência com os gringos, meu inconsciente alfandegário lingüístico. Passei a não saber o que dizer, ou a só dizer o que poderia ser dito. A filmagem da realidade pelos olhos era uma coisa. Bem diferente a descrição em palavras das cenas filmadas. Inventei um cineminha privado no recesso no recesso dos sucessivos apartamentos alugados, onde exibia as cenas censuradas pelo fiscal do inconsciente. Montava filmes, exibia-os para mim, com vistas a um futuro expectador, solitário e anônimo. (SANTIAGO, 2005, 56)
Em De cócoras, Silviano oferece à produção ficcional contemporânea,
incluindo a si mesmo, uma narrativa que se constrói aos moldes tradicionais da
novela e parece resistir, assim, a uma certa tendência presente em parte de sua
114
ficção a um fracasso/esgotamento do narrar. O narrador desse romance
caminha na fronteira entre a crônica do cotidiano e a narração dos fatos
reveladores da memória da personagem, numa espécie de inventário das
imagens, resultante da edição das cenas do percurso de Antônio, o qual se
revela como uma radiografia do comum, da simplicidade densificada pelo
modo de olhar.
Levantava. Ia até o guarda-roupa. Tirava o edredom do inverno da prateleira de cima. Estendia-o, dobrava ao meio, no chão encerado. Ficava ali deitado, de olhos pregados no teto, até o dia iluminar as janelas. Antônio põe de volta o pedaço de maçã no prato à sua frente. Antônio deixa a cozinha. (SANTIAGO, 1999, 56)
Como pode ser observado no fragmento acima, o trânsito entre os
fatos que cumprem a função de rememorar a história de Antônio e seu
momento presente marcam-se não só pelos tempos verbais, mas também por
meio de um dispositivo que, acionado, desloca a atenção para um retorno à
narração do presente. No caso deste fragmento, a maçã é o dispositivo do
presente. É uma espécie de take que ora emoldurava um plano geral e, na cena
seguinte, passa a um plano específico, preenchido de significação aglutinadora
de esferas diversas. A maçã, por exemplo, estava situada antes fora do campo
de visão da narrativa da memória, mas liga-se aos acontecimentos pelo fio
narrativo cuja unidade é dada por Antônio. Sua presença inicial corresponde a
um implant que “no momento em que é colocado pode não ter nenhum
interesse próprio”, conforme definição de Jacques Aumont e Michel
Marie.(AUMONT & MARIE, 2003, 168)
115
Também este romance pode ser lido à luz da teoria da montagem do
cinema. Eisenstein estende este conceito à arte em geral, inclusive à literatura e
faz uma análise de Madame Bovary, de Flaubert, como exemplo daquilo que
chamou de montagem cruzada de diálogos. Pode-se pensar em uma análise
análoga nesse texto de Silviano, no que diz respeito aos planos de narração: a
montagem cruzada desses planos permite ao leitor um olhar sobre o romance
que posiciona Antônio no limiar entre história/memória e presente, entre a
vida e a morte.
Ainda pensando a estrutura, De cócoras constrói-se em três quadros-
cenários reveladores da condição de solidão de Antônio: cozinha, alpendre e
quarto de dormir. A experiência vivida por Antônio em seu último dia de vida
acontece dentro de casa e cada um desses ambientes revelará uma perspectiva
de olhar os outros e a si mesmo. A composição que se faz desses quadros-
cenários é simples: o último percurso de Antônio começa no pragmatismo da
cozinha, passa pelo “último adeus” ao mundo exterior no alpendre e recolhe-se
à intimidade da dor no quarto.
Gaston Bachelard, em A poética do espaço, considera a casa como o
espaço privilegiado da intimidade, uma espécie de universo particular. Afirma
ainda que a noção de casa tem como marca a essência da habitação de um
espaço. Nesse sentido, o espaço assume a identidade de quem o ocupa: “na
mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu
abrigo.” (BACHELARD, 2000, 25). Esclarece ainda que o espaço interno oferece
maior possibilidade de expansão onírica em relação ao espaço externo:
116
As lembranças do mundo exterior nunca hão de ter a mesma tonalidade das lembranças da casa. Evocando as lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida. (BACHELARD: 2000, 25-26)
A casa de Antônio revela-se como essa potência de identificação com
a personagem, na medida em que lhe denuncia a solidão. Mesmo a cozinha,
espaço tradicional de uso coletivo, revela a ausência de vida que habitavam o
corpo e o espaço de Antônio. O sentido de despedida, de último adeus, confere
unidade à montagem desses três quadros-cenários. A cozinha e sua atualidade
factual carregada de funções pragmáticas é o início do percurso. O alpendre
cumpre a função de localização de Antônio no mundo e ressalta-lhe a solidão
diante da presença de vida da rua. O olhar da personagem para fora de sua
cosmocasa revela a ótica de quem faz uma espécie de balanço do vivido. A
figura do cachorro esquecido na rua remete a narrativa ao sentido de abandono
traçado desde o início do romance.
Gama é hoje em dia um cachorro velho e solto no mundo, que inventa os caminhos na rua. Passeia por ela com o focinho altivo, sem nunca pôr as patas na esquina da rua das Laranjeiras. Ao cruzar com os moradores apressados, não os incomoda. Ao passar pelos porteiros sonolentos, não os desperta. Observa a uns e aos outros sem se valer dos costumeiros truques caninos para chamar a tenção para si. (...). Os moradores e os porteiros da rua não o enxergam, do mesmo modo como não enxergam moleque de rua. (SANTIAGO, 1999, 75)
No quarto de dormir, Antônio encontra o abrigo maior para a
solidão, recolhendo-se para despedir-se da vida. É este o espaço da intimidade,
onde encerra sua trajetória em reclusão, na condição de sobrevivente em relação
117
aos outros, inclusive ao cachorro, com preservação de dignidade nessa atitude
de isolamento.
Esses três cenários, antes planos independentes, colidem-se no
processo de montagem estruturada no princípio de justaposição, a fim de
reconstituir a história de uma personagem que se caracteriza
fundamentalmente pelo isolamento. Assim também acontece com as referências
semióticas. Elementos dispersos, como o rock de Cazuza, o filme Gilda e a tela
de Guignard encontram-se também para construir um jogo de linguagens que
tem seu ponto alto na continuidade, que se estabelece no desdobramento
daquilo que, na superfície, representaria a descontinuidade.
O Blues da piedade, de Cazuza, cujo refrão serve de epígrafe ao livro
aparece como o anúncio do anjo torto de Drummond. Parece já denunciar a
miséria, a precariedade de que se contornará a personagem, e que será motivo
de crítica do anjo grandioso, o qual lutava para um final de pompa para alguém
que fora tão apagado na vida, como o nosso protagonista. Antônio
corresponderia, assim, ao que a personagem Laura, de “Imitação da rosa”, de
Clarice Lispector, chamou de “pessoa marrom”. Essa neutralidade de Antônio,
sua não-ação encontra em alguns versos de Cazuza perfeita tradução:
Vamos pedir piedade Senhor, piedade Pra essa gente careta e covarde Vamos pedir piedade, Senhor, piedade Lhes dê grandeza e um pouco de coragem Quero cantar só para as pessoas fracas Que tão no mundo e perderam a viagem. (Cazuza, 1988)
118
Antônio, que “não era rapaz ambicioso, não seria homem de ação”
(santiago,1999,62) não se distingue senão pela sua grande capacidade de
conservação de traços, que o afasta da ousadia pedida em forma de prece na
canção de Cazuza. O filme Gilda tem claramente a função de representar a
fantasia de Antônio, seu desejo de proximidade com a beleza. Gilda, o símbolo
sexual do cinema americano da década de 40, confunde-se com a mulher de
Antônio, na perspectiva dele mesmo, revelando que o personagem de De cócoras
permite-se o sonho, o desejo do transcendente, apenas no plano da idealização.
A capacidade de Antônio de se deslocar daquele cotidiano simplório,
sem grandes emoções se dá em um plano muito distanciado da possibilidade de
concretização, revelando assim a resignação dele em permanecer em sua
condição de afastado do convívio social. A referência ao filme corrobora com o
clima lírico que permeia o texto.
O São Sebastião, de Guignard, que serve de capa ao livro, vem também
encontrar as outras referências para com elas compor a grande metáfora desse
texto. Este santo é símbolo de sofrimento e resistência, de sacrifício. Antônio,
assim como São Sebastião, sofre duas mortes: a primeira quando se aposenta e
fica viúvo e a segunda quando é levado pelo anjo. O que fica principalmente
dessa possibilidade de analogia entre ele o santo é o sentido que o narrador
chama de “condição de sobrevivente”:
Antônio nunca gostou da condição de sobrevivente. Desde menininho odeia a condição de sobrevivente que, uma vez mais, há seis meses a morte da mulher o deixou.
119
Depois da morte dela, cama de casal e corpo dele passaram a conviver em total estado de desarmonia. (SANTIAGO, 1999, 55)
Já Viagem ao México, como Uma história de família, estabelece diálogo
explícito com a arte cinematográfica. A partir da figura de Artaud, que vê na
ida ao cinema a possibilidade de viver o conflito que se instaura na travessia do
real para a ficção, a referência ao cinema começa a ser exposta: “A
profundidade intensa do sentimento humano explode na tela do cinema de
uma maneira até então impensada pelo homem.”(SANTIAGO,1995, 32). O
olhar do narrador sobre o protagonista é cinematográfico: ele dirige o filme de
Artaud: “coube a mim, isolado por alguns anos na ilha de edição, montar o filme da
vida, selecionando as melhores cenas, jogando na lata de lixo da história as curtas ou
longas seqüências”.(SANTIAGO, 1995, 307)
Tanto como em Uma história de família, a plasticidade da descrição
constrói-se a partir da imagem em movimento e da imagem estática. No caso da
descrição estática, a fotografia é o recurso a que recorre o narrador.
A simultaneidade de planos – o de Artaud, na década de 30, e o do
narrador, na década de 90 – justapõem-se, alternam-se, estabelecendo um
diálogo com o leitor, revelando a estrutura de uma narrativa que se configura
como um projeto de construir um romance aos moldes épicos. As marcas são
explícitas e revelam o interlocutor do discurso e o respectivo tempo:
De repente, uma outra frase de Artaud, solta no ar, e ansiosamente esperada, foi o prenúncio de que nem tudo estava perdido. A frase me dizia muitas coisas, mas principalmente me assegurava que ainda estávamos mantendo contato, ele lá em Paris em 1935, eu aqui no Rio de Janeiro em 1992:
120
Preciso sair de dentro de mim: a vida me sufoca, carboniza a minha vontade, esteriliza a minha arte. Escrevi a frase escutada na tela do computador. (SANTIAGO, 1995, 27)
A montagem feita em base não-seqüencial utiliza-se de outros meios,
que não a ordenação cronológica e contínua, para estabelecer a coerência do
filme. A tradição européia do segundo meado do século XX apresentou e
aprofundou essa tendência, que se difundiu mundialmente, chegando a
estabelecer revisão por parte dos mais conhecidos dos diretores
cinematográficos, como os americanos. Prova cabal disso é a recente produção
dos Estados Unidos, que traz filmes como Crash, no limite e Babel.
Nesse princípio de fragmentação e descontinuidade aparente,
alternância temporal não-cronológica e sucessão de núcleos não-interligados
diretamente, estrutura-se Viagem ao México, cuja narrativa atém-se mais à
estruturação aparentemente ilógica, remetendo à teoria da escrita automática
surrealista, do que à estrutura da narração biográfica de Antonin Artaud.
O estranhamento experimentado por Artaud na sensação de
assincronia, vivido ao sair do cinema e lançar-se às ruas parisienses revela a
mesma descontinuidade existente no cinema mudo, que tem um desencontro
entre imagem e legenda. Assim também Artaud sente-se desterritorializado
diante de uma realidade que não lhe é contemporânea. Há nesse romance uma
estreita relação entre a experiência no cinema e a vida cotidiana.
121
As imagens são coladas em dissonância, e a responsabilidade pela
tarefa de montar fica a encargo do narrador-editor, o qual se utiliza do diálogo
com Artaud e da pesquisa que faz às cartas do francês como guia:
Coube a ele impressionar bobinas e bobinas de película; coube a mim, isolado por alguns poucos anos na ilha de edição, montar o filme da vida, selecionando as melhores cenas, jogando na lata de lixo da história as curtas ou longas seqüências, que estão maculadas não só pela exposição excessiva à luz ou pela iluminação deficiente, como também pelo desempenho medíocre dos atores secundários ou pelo baixo nível das falas ditas pelos figurantes. Até mesmo um mestre na arte do cinema consome película à toa. (SANTIAGO,1995, 307)
Além de editor, o narrador cumpre também a função de câmera, uma
vez que seu olhar é responsável por flagrar e registrar tudo o que acontece com
Artaud e a forma como este reage diante dos fatos. Viagem ao México estabelece
um jogo de olhares para construir a metáfora do olhar: “A lente é o outro do
olho.” (SANTIAGO,1995, 234). E não é menos pretensioso o fato de que a
escolha do modo de olhar se faça a partir de uma perspectiva desfocada, fora do
lugar comum, no caso representado pela loucura na figura de Antonin Artaud –
estrato já explorado em Uma história de família.
O personagem central – Artaud – é responsável por conferir unidade
a esse painel de diversidade de planos e tempos. Nesse universo de diferentes
trajetos, caminha-se em direção ao fragmentário, de maneira que se estabelece
visível diálogo entre o jogo de armar ficcional e a estética desconfortante e
ruidosa de Antonin Artaud. A teoria do cinema é utilizada como objeto de
análise e também como metodologia:
122
Aqui de longe entrevejo o corpo de Artaud decepado ao meio, com as duas partes separadas: ao alto, colado ao tronco, o rosto imperturbável em perfil, e bem mais abaixo, as canelas e os pés, que se locomovem com rapidez. Sustentada pelo lado direito e responsável pela divisão do corpo em duas partes distanciadas, está a nova mala de papelão (...). Aqui de longe, achatado como numa foto, o conjunto escuro e saliente de homem-e-mala é entrevisto contra uma superfície composta por sucessivos andares, o todo camuflado a esta hora da manhã por uma volátil bruma matinal: no primeiro plano, andar e térreo, paredes e portas de armazéns; no segundo plano e andares médios, guindastes gigantescos; e bem ao fundo, altas chaminés negras. (SANTIAGO,1995,139)
A descrição acima, que retrata a partida de Artaud rumo às viagens,
vale-se do conceito cinematográfico de plano9 para estabelecer a visão do
personagem, a partir de um distanciamento que torna possível situá-lo em um
contexto mais amplo. O narrador abandona o plano restrito, cujo foco é Artaud,
para localizá-lo em um plano aberto de apresentação. Deste modo, a apreensão
de deslocamento do personagem pode ser vista de modo a contextualizá-lo no
cenário de Paris.
No romance Em liberdade, Silviano Santiago articula o enredo em
torno da manipulação de personagens históricas – ele mesmo, Silviano,
Graciliano Ramos, Cláudio Manuel da Costa e o jornalista Vladimir Herzog –
que têm suas histórias cruzadas em uma narrativa em que o discurso político se
apresenta sem máscaras.
A capa da primeira edição do livro remete com clareza ao conceito de
engajamento político que norteará a obra: é um detalhe da tela 1937, de João 9 O conceito de plano utilizado aqui é o de quadro, enquadramento, do livro de Jacques Aumont e Michel Marie que se encontra nas referências.
123
Câmara Filho, que faz parte de uma série intitulada Cenas da vida brasileira –
1930-54. A figura de Getúlio Vargas, no detalhe, tem duas perspectivas: uma é a
do jovem revolucionário, que aparece de frente; a outra é a de um Getúlio mais
velho, relembrado em sua volta ao poder em 1950. Além disso,1937 é o ano de
instauração do Estado Novo e também o marco temporal para início do relato
no romance. O romance traz, portanto, forte laço referencial com esse período
histórico.
Ao se colocar como personagem, o escritor Silviano Santiago oferece a
si o encargo de editor, responsável pelo diário (ficcional) que Graciliano
escreveu quando deixou a prisão. Seria uma espécie de continuação das
Memórias do cárcere. Nesse diário, Graciliano revelaria impressões que vão desde
observações acerca do governo de Getúlio Vargas até reflexões sobre questões
pessoais, sobre literatura e outros assuntos, além de uma série investigação que
se propunha a revelar a causa mortis do poeta Cláudio Manuel da Costa, se seria
suicídio ou homicídio.
Em liberdade é um romance em que o comprometimento com
discussões de cunho político se revela claro, principalmente pela escolha das
personagens: desde o escritor alagoano e seu interesse por uma figura que teve
grande representação nas lutas brasileiras por independência, Cláudio Manuel
da Costa, até o jornalista morto sob tortura.
O subtítulo do romance já denuncia o caráter ficcional e a construção
de simulacros na obra. Por se tratar de “uma ficção de Silviano Santiago”, este
autor assume duplo papel na obra: é o autor da ficção e também personagem.
124
Como personagem secundária, é o editor do diário em que Graciliano Ramos
assume papel central. Há, portanto, algumas camadas ficcionais em que
transitam as personagens, permitindo ao editor um recorte em que outras
tramas não contemporâneas são vislumbradas. Dentro da ficção de Silviano,
está a trama de Graciliano, que investiga outra história: a de Cláudio Manuel;
Silviano, editor, traça um paralelo entre as suspeitas da causa da morte de
Cláudio e o caso do jornalista Wladimir Herzog.
Esse romance, como outros do autor, tem como artifício a construção
de uma narrativa a partir de um jogo de referências, no caso específico, políticas
e literárias. Assim, a obra contorna-se a partir da estrutura de uma pesquisa
científica que mimetiza a escrita do alagoano, numa reflexão explícita acerca do
lugar do escritor na sociedade de Graciliano, que se estende à realidade de
quem escreve na contemporaneidade.
Em Em liberdade, a montagem das trajetórias dos personagens
acontece como uma estrutura em abismo, pois as figuras se revezam –
Graciliano Ramos se desdobra em Cláudio Manuel da Costa e revela Wladimir
Herzog, montando um quadro a partir da criação/apresentação de figuras
individuais, que têm como unidade de percurso o fato de serem transeuntes das
margens.
Assim como em O falso mentiroso, a utilização da fragmentação como
estratégia narrativa, bem como suas idas e voltas ao passado, se mostram como
recursos que aproximam as narrativas da estrutura da autobiografia, pois
encenam a fragmentação da memória.
125
Silviano demonstra erudição na construção de seus textos quando se
mostra profundo conhecedor de teorias e bases modulares de estrutura.
Entretanto, seu trabalho ficcional apresenta-se sempre como uma tentativa de se
afastar dessas bases; isto é, mostra o rol de teorias, mas não as usa efetivamente,
a não ser quando se propõe a ressignificá-las. Sua obra perdeu o caráter
histórico e representativo – como o bem exemplifica Em liberdade – para se
tornar auto-referente, num sentido em que se constrói em toda obra uma teia de
significações não raro retomada em obra posterior.
Numa montagem intelectual, aquela de que fala a teoria do cinema,
que trata de estabelecer relações de idéias abstratas, Silviano desvencilha-se das
formas tradicionais da arte literária, dirigindo-se para além dos modelos, numa
crítica desafiadora ao objeto tradicional do fazer literário. E nesse sentido, o
fazer literário parece impregnar-se dos conceitos da arte conceitual, que
problematiza o olhar da tradição para o fazer artístico:
É o processo criativo do artista, e não o seu resultado, que se coloca em primeiro plano. Conceitos, processos e informações são as expressões dessa arte que se pauta na vivência. (FREIRE, 2006, 22)
O princípio da metanarrativa colabora para a ênfase no processo e,
mais ainda, para a possibilidade de desnudamento da figura do autor:
É justamente a partir do final dos anos 50, e mais sistematicamente nas duas décadas seguintes, que se passa a perguntar não mais o que é arte, mas onde ela está. O objeto de arte materializa-se, confunde-se com a vida cotidiana, revela-se em processo, ocupa espaços expandidos e indiferenciáveis. (FREIRE, 2006, 25)
126
A fala de Modesto Carone na análise que faz da poesia de Trakl,
mencionada no início deste capítulo, como já afirmado, pode ser estendida a
nosso autor: Silviano é um ficcionista eminentemente construtor. Arquiteto na
ficção, manipula conceitos, enredos, personagens e subjetividades a serviço da
organização de um painel narrativo em que as figuras dos personagens e dos
narradores/diretores revezam-se e confundem-se.
127
6 JOGOS DE ARMAR: SUJEITOS E IDENTIDADES
Sou a dobra de mim sobre mim mesmo Nesse afã de ganhar de quem me ganha Tento andar no meu passo e vou a esmo Tento pegar meu pulso e ele me apanha
Eita,sombra rival que me acompanha (Contenda. Guinga e Thiago Amud)
Este capítulo pretende focalizar a construção da subjetividade em
algumas obras de Silviano Santiago. O interesse por esse tema advém de
leituras da obra do autor e identificação de alguns estratos que se camuflam/
expõem, num processo de construção simultânea diante dos olhos atentos do
leitor.
Os escritos de Silviano Santiago parecem se constituir povoados por
situações provocadoras, muito mais que “vanguardistas”, são, acima de tudo,
desconfortáveis. Não são raros em seus textos os dilemas típicos desse sujeito
que ainda hoje carece de definição e colheu, durante algum tempo, no nome
pós-moderno a ausência de identificação mais precisa.
Nesses idos tempos, muitos são os teóricos que tentam, mesmo que
pela negação, traçar um perfil desse sujeito que se apresenta tão diluído nessa
modernidade tardia. Janice Caiafa, em seu livro Nosso século XXI: notas sobre
arte, técnica e poderes, endossando Foucault, afirma que vivemos numa nova
era da curiosidade, em que a criatividade advinda das inovações tecnológicas
contribui para um novo delineamento desse sujeito contemporâneo. Nízia
Villaça aponta a efemeridade e multiplicidade de signos e valores,
128
caracterizadores desse pós-momento, como estratos desse sujeito insípido, mas
paradoxalmente, muito presente. Acrescenta Villaça:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (VILLAÇA, 1996, 37)
Muitos são os escritos que se propõem, em nosso tempo, a tratar
das narrativas contemporâneas. De uma visão menos pessimista, como a de
Nízia Villaça ou Compagnon10 - que apontam a tendência como não apenas
mais uma das crises que vêm pontuar a história da modernidade, mas
simplesmente um dos desdobramentos que não pretende superar nem repetir a
tradição – a um olhar mais rigoroso, como o de Terry Eagleton, que não vê
muita construção nesse momento. Segundo Nízia, estaríamos vivendo o
“desenlace da epopéia moderna”, num sentido que recupera a idéia de
Habermas, citado por ela: “o sujeito moderno nunca estará terminado”.
Se são múltiplos e até divergentes os pensamentos acerca dessa
produção, as caracterizações de sujeito trazidas pelas linhas teóricas não
seguem caminho diverso, mas em um aspecto elas se encontram: esboçam um
humano que sobrevive em meio a um turbilhão de identidades, cuja formação é
a da cultura devastadora de valores que não sejam os de consumo, um sujeito
levado a caminhar no ritmo da velocidade voraz que não abre espaço à reflexão.
Não tem as grandes pretensões revolucionárias; portanto, convive com o estado
de medianidade “adequado” à formação híbrida da sociedade e das personae. 10 Os textos a que me refiro dos autores mencionados são respectivamente Os paradoxos do pós-moderno e Os cinco paradoxos da modernidade.
129
Jair Ferreira dos Santos, citando Donna Haraway, afirma ser este um indivíduo
que “acata as identidades fraturadas ou o vazio de identidade que vagueia ao
sabor de personificações pontuais”(SANTOS, 2003, 36).
Pensando nessa categorização do pós-humano, Ana Lígia Matos de
Almeida, em sua dissertação de Mestrado, desdobrando as idéias de Jair
Ferreira dos Santos, tece reflexões acerca desse sujeito híbrido, pautado sob a
égide do paradoxo, num processo de busca de identidade sem referência:
(...) enquanto o homem aguarda o seu desaparecimento... o que Jair Ferreira deseja é substancializar o impacto das tecnologias informacionais sobre o sujeito e a cultura no momento em que o corpo e o psiquismo humanos são atravessados pelas máquinas e pelas próteses. Em suma, é mais uma polêmica que se anuncia na secular discussão sobre a definição do humano e/ou simples conjecturas que podem ser lançadas no catálogo das extravagâncias. (ALMEIDA, 2003, 38)
Partindo da reflexão de Baudrillard acerca da clonagem como o
suplantar da mortalidade, Ana Lígia Almeida aponta para uma reversão do
estado de mortalidade para a remodelação do universo que seria caracterizado
por homogeneidade e continuidade:
Isso significa que haverá então a reversão do estágio atual de seres mortais, sexuados e diferenciados para a reconstrução de um universo homogêneo e contínuo, um “continuum artificial”, não somente pela revolta viral das células, mas também pelos meios técnicos e maquinantes, através do imenso sistema de comunicação e de informação. Em outras palavras, é a construção de um duplo idêntico do mundo, uma réplica virtual do mundo que se abre sobre uma reduplicação sem
fim. (ALMEIDA, 2003, 40)
130
Na contramão de um cético Baudrillard, está Janice Caiafa, que em
seu livro Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes não prevê como
inevitável a possibilidade de as novas configurações da tecnologia e da
comunicação reconfigurarem a identidade humana. Afirma que mesmo que a
internet, por exemplo, seja uma forma de falseamento/camuflagem de
identidade, esse meio não será suficientemente revolucionário para que se
vivam outras personae, uma vez que os participantes dessa rede constituem um
grupo muito específico. Não acredita numa mutação da subjetividade em um curto
período de tempo, sem que haja transformações profundas:
É só se exercemos a criação como um processo – uma duração em que várias singularidades e acontecimentos entram e se engajam – e não na dimensão autoral ou na relação de consumo, que ela poderá se conjugar a outros fluxos na tarefa de transformação (...) Um ‘fora’ ou uma exterioridade em que a escritura se conjuga com outros fluxos – a esfera discursiva não se autonomiza, mas se agencia com outras experimentações e outras singularidades. Só assim há produção de um campo criador que vai provocar mutações subjetivas e, portanto, interferências políticas.(CAIAFA, 2000, 70)
O conceito de subjetividade proposto por Caiafa aproxima-se da
concepção de subjetividade política de Rancière, no livro O desentendimento, que
afirma ser a política algo muito raro de acontecer, uma vez que implica uma
transformação estrutural, numa perspectiva que nasce nuclear, partindo do
interior do segmento ou do sujeito social. Na política, a diferença introjeta-se
como desconstrutora da ordem estabelecida, uma identificação não identificada
socialmente.
131
É nesse sentido que se pode pensar um entrecruzamento da
conceituação de Rancière com a de Caiafa, pois esta não acredita no ineditismo
ou na mudança desconstrutora desse sujeito. Assim como para Rancière a
subjetivação política pressupõe uma desidentificação, uma realocação dos
estratos – que não pode ser a mesma dos estratos sociais em que esse sujeito
estava inserido; como um processo de desterritorialização, para Caiafa não há
uma remodelação estrutural da subjetividade contemporânea, apenas um
desdobramento sem grandes pretensões.
Não há, para Caiafa, indicadores de efeitos negativos ou positivos
na construção desse sujeito contemporâneo, mas a autora não deixa de
mencionar, citando Foucault, algumas considerações que caem no senso comum
do pensar a subjetividade pós-moderna: o que se tem hoje é um sujeito
fragmentado, multifacetado, que não se rende às grandes aspirações
pretendidas por aqueles que profetizaram o século XXI. Um diálogo claro pode
ser estabelecido aqui com o pensamento de Lyotard, em A condição pós-moderna,
texto de que se origina a tese de uma visão ultrapassada do conceito de
“grandes narrativas”.
Nízia Villaça, em seu texto Paradoxos do pós-moderno, argumenta que
o conceito de subjetividade adentra o território da crítica literária vindo da
psicanálise e da filosofia, e não nega a dificuldade de circunscrever o sujeito no
contexto da obra literária. Propõe que o mapear da subjetividade deva ser
esboçado a partir da análise de algumas categorias narrativas: a visão do
narrador/ narradores; as personagens; o espaço/tempo. A subjetividade, nesse
132
sentido, produz-se por meio de um encontro, um atrito entre os elementos
estruturais do texto:
(...) o sujeito é uma categoria interdiscursiva interpretada de formas diversas. Transposto para o campo crítico da literatura ou da teoria literária, o sujeito não pode, senão com dificuldade, adquirir um estatuto autômato textual. (VILAÇA,1996,38)
O sujeito ficcional contemporâneo configura-se, muitas vezes, por
meio de um jogo de disfarce/exposição, numa atitude quase esquizofrênica, em
um processo que joga com as possibilidades da autoria, do ser biográfico, ora
afastando-se ora aproximando-se da realidade da ficção, criando papéis, como
afirma Costa Lima11, criando possibilidades de afastamento de seu ser
biográfico e transmutando papéis entre personagem, narrador e expectador
dentro da estrutura diegética: “Desloco-me de meu papel para que eu seja meu
próprio voyeur.” (LIMA, 1990: 127).
Dentre os escritores que ressaltam a descentralização, de que trata
Linda Hutcheon em seu texto Poética do Pós-Modernismo, destacamos Silviano
Santiago. Numa análise panorâmica do conjunto em estudo (Em liberdade, Uma
história de família, Viagem ao México, Keith Jarret no Blue Note e O falso mentiroso e
Histórias mal contadas), a construção da subjetividade passa por representações
definidas, embora possa assumir nuances diversas em cada texto. Trata-se de
um sujeito esquivo, substancializado pela solidão e definido pelo traço de
11 O texto se intitula Persona e Sujeito Ficcional e está inserido em uma publicação do 2º Congresso da ABRALIC, realizado em Belo Horizonte.
133
estado periférico sem que isso represente alocação socioeconômica
desprivilegiada.
Todos os personagens das obras analisadas podem ser pensados a
partir do conceito de estrangeiro, no seu sentido mais amplo. O estrangeiro é
aquele que não tem alocação de origem onde está, é o que se situa em uma
posição de desconforto em relação à identidade circundante, alguém que não
está em si, mas numa realidade alheia a ele mesmo. Percebe-se como “outro”,
sendo este um ser diferente, estranho, que não compõe a figura homogênea
daqueles que pertencem ao local. Nesse sentido, vale a referência ao texto de
Julia Kristeva:
Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondável. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. (KRISTEVA, 1994, 9).
São diferentes as configurações de sujeito na obra de Silviano, mas
em todas as que analiso o conceito de estrangeiro se faz presente, embora sob
diferentes representações: o intelectual não inserido entre os seus; o nômade e,
portanto, estrangeiro, no sentido de nacionalidade; o homossexual; o
casmurro12. São sujeitos que caminham à margem, são ex-cêntricos na
12 Relutei antes de decidir por este termo. Esclareço que ele é usado aqui no sentido de caracterização de alguém que é solitário, sorumbático, que deseja o isolamento por se sentir estranho em relação aos que o cercam. É usado pelo narrador de um dos contos de Histórias mal contadas.
134
perspectiva de Linda Hutcheon, mas que têm suas trajetórias marcadas para
constituírem o centro das narrativas, sem que isso represente a mera mudança
de papéis em um mundo polarizado. Ao contrário, a obra de Silviano resgata
binômios que propõem a problematização de conceitos arraigados
tradicionalmente, pensados a partir da ótica da heterogeneidade.
A subjetividade funda-se a partir da relação que se estabelece entre
corpo e mundo, num processo de exposição e reclusão das vísceras que
compõem o indivíduo em confronto com os valores e o meio social. A
consciência da corporidade e o sentido, às vezes violento, para manter-lhe a
identidade revelam o desconforto e a necessidade de auto-exílio e exclusão para
expansão e descortinação do eu.
Em Viagem ao México, Silviano encontra em Antonin Artaud um
elemento indiscutivelmente rico para representar o sentido de estrangeiro que
atravessa sua obra. O poeta dramaturgo francês é apontado em sua fortuna
crítica como um trangressor incorrigível, alguém que se propunha à
modernização do teatro francês, que não encontrou espaço para que suas idéias
fossem dialogadas e, por isso, empreendeu uma viagem ao México em busca do
sentido de primitivo e de original, ao encontro da tribo dos tarahumara.
No relato, a existência de Artaud é desconfortante para os franceses
intelectuais de seu tempo, assim como a dos tarahumaras – povo com o qual o
poeta se identificou – ou a de qualquer dos povos indígenas que compõem
parte da população do México, é incômoda para uma sociedade que se quer
135
branca e contemporânea, e essa esquizofrenia cultural na obra Silviano engloba
um outro componente – a realidade desse narrador do final do século XX.
A obsessão de Artaud pela busca do sentido de origem na existência
revela-se claramente no romance nos relatos das idas do poeta ao cinema.
Assistir a filmes mudos representava estabelecer o confronto entre uma
realidade anterior e a contemporânea. Dentro do cinema, em produções ainda
tão rudimentares, o francês experimentava a sensação de ser outro, e a saída do
cinema reportava-o à violência do encontro do primitivo com o processo
civilizatório:
Como um selvagem, vivera horas numa caverna de signos e agora, no momento em que transpunha a porta da sala de projeção e ganhava a luz em pleno dia, era tomado pela excitação e a alegria. (...) Eu tinha virado um homem das cavernas, transportado por um ato milagroso para o meio daquela rua parisiense, atirado para dentro do canal de edifícios, ensurdecido pelas vozes e gritos dos passantes. (...) A sala de cinema me joga para fora do tempo e do espaço. (SANTIAGO, 1994, 25; 28; 29)
O Artaud prolixo que se desnuda diante do narrador-escriba,
paradoxalmente, questiona a eficiência do discurso: “Para ele, as palavras de
toda e qualquer língua européia tinham se tornado um instrumento fracassado
de comunicação.” (SANTIAGO, 1995, 34). A potencialização das palavras
buscada por Artaud consistia numa tentativa esquizofrênica de preencher-lhes
o significado com materialidade, e não apenas com abstração; daí vinha sua
ânsia pelo retorno a uma forma primitiva de comunicação:
Se essa língua criada por mim existisse socialmente, não entraria mais na tabacaria da praça de Denfert-Rochereau para pedir cigarro com a palavra cigarro, para pedir fósforo com a palavra fósforo. Dito do lado de cá do balcão de zinco,
136
café com leite e pão com manteiga poderia virar uma combinação inusitada e mirabolante de três sílabas, todas elas fricativas, sedentas e famintas, que explodiriam nos ouvidos do garçom e se irradiariam por músculos e tendões como a manifestação absoluta da sede e da fome que eu experimentava. A força espiritual das palavras tinha de ser idêntica à necessidade física da sede e da fome. (SANTIAGO, 1995, 36)
Paralelamente a um Artaud ex-cêntrico, o sujeito narrador revela-se
também como estranho, porque configura-se na condição de múltiplo, além de
apresentar-se como interlocutor ideal para o poeta francês. Identifica sua
responsabilidade de narrar e reconhece as dificuldades embutidas nela:
Tenho as feições de um polvo anfíbio. Uma só cabeça e vários tentáculos, várias pernas-tentáculos que se assentam em terras diversas e variados mares, deles sugando o que podem oferecer e ofertando o produto à cabeça de um olho ciclópico, montada em um dorso gigantesco de onde saem braços, de onde saem mãos que selecionam caminhos pelas teclas do computador. (SANTIAGO,1995, 20)
Em liberdade, como já afirmado, é uma obra que se constitui quase
como um tratado sobre o intelectual brasileiro. Algumas camadas de
representação vêm configurar a intelectualidade nacional, desde a figura central
na narrativa – Graciliano Ramos – passando pelo editor, o intelectual Silviano,
até chegar às referências que constituirão o amálgama da construção de um
retrato do sujeito político, do intelectual engajado, cujas responsabilidades
passam primeiro pela condição de ser social.
Se a obra espontânea existe pela cumplicidade que estabelece com o livro e o leitor, impossibilitando um verdadeiro questionamento das posições que este sustenta, é preciso falar também de uma outra cumplicidade mais triste: a do romancista com os seus próprios valores sociais e políticos. (SANTIAGO, 1994, 123)
137
O sujeito intelectual aqui ainda se formata aos moldes do
engajamento político, em que a noção de futuro se evidencia e determina as
ações do presente, que culminam em lutas e outras formas de protesto, num
universo em que o modo de inserção dos artistas no meio social baseia-se no
conceito de autonomia do pensamento e autonomia da arte – pensamento em
vigor até meados do século XX. O intelectual aqui ainda é formador de opinião,
pensamento que se sustenta no dito século sob forte influência do Comunismo.
É a figura de que trata Marilena Chauí:
A fala pública e a ação pública dos intelectuais, justamente porque balizadas pela afirmação da autonomia, assumem dois traços principais: a defesa de causas universais, isto é, distantes de interesses particulares, e a transgressão com referência à ordem vigente. (CHAUÍ, 2006, 20) 13
Esse sujeito é exposto muito mais a partir de sua configuração
pública, esboçado no relato como um Graciliano injustiçado e humilhado. O
olhar do sujeito político sobre ele mesmo, no romance, contrasta-se em elevado
grau em relação ao olhar do outro; a imagem que tem de si não está apenas no
âmbito da projeção social.
A intersecção de visões das imagens de Graciliano estabelece-se
apenas no âmbito de reconhecimento da função de escritor como profissional a
serviço também de questões sociais. O desdobramento dessa imagem de
intelectual, entretanto, sofre divergências no que diz respeito à percepção dele
mesmo e a do outro. Graciliano constrói uma subjetividade arraigada no
sentimento de inferioridade e na negação ao sentimentalismo:
13 O texto está inserido no volume O silêncio dos intelectuais, organizado por Adauto Novaes.
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Tento analisar por que me incomoda tanto ser considerado “diferente” nessas circunstâncias. (...) Ser diferente, nas minhas circunstâncias atuais, é outra coisa. É aceitar, acatar, como verdadeira e justa, uma condição de inferioridade. É claro que, aparentemente, acenam com a possibilidade de a condição minha ser superior. Mas só o é caso aceite o sentimentalismo, caso aceite a vida eterna na prisão do passado. (SANTIAGO, 1994, 62)
O fato de ter sido preso promoveu em muito a obra do escritor
alagoano. E essa popularidade, fruto de sacrifício e violência é dispositivo de
angústia no personagem. Há certa rejeição de aceitar esse amálgama entre vida
pública e vida privada.
O motivo que levava a maioria das pessoas a visitar-me não era tanto o melhor conhecimento do homem que havia escrito alguns livros que admiravam, homem este que, agora, passava por maus momentos. Diversos visitantes não conheciam a minha minguada produção literária; não demonstravam menor interesse em conhecê-la. Queriam as chagas. Deixe-me vê-las! Apoiavam-se em um lugar-comum – dos piores – para o artista na nossa sociedade: eu sofria, por isso devia ser bom. O estigma do sofrimento separa o homem do artista, o joio do trigo. Não interessa a obra, era bom. Só o homem marcado estava destinado aos mais belos e sublimes cantos, como diria um poeta romântico. (SANTIAGO,1994, 58-59)
Esse sujeito marcado pelo sentimento de inferioridade e pela
repulsa à emoção apresenta-se em situação defensiva e parece ter muito apreço
pela luta. Conflitos povoam seu interior e revelam uma subjetividade que se
mostra esquiva à exposição, embora reconhecendo-se no impasse de não ter
como não posicionar-se como sujeito histórico-social se sua vida pessoal fora
atravessada por esses caminhos:
Quero tanto escapar da morte do meu corpo; mais e mais acato um mundo onde ele estará morto. Construo um espaço para ele, onde transitará morto-vivo. É uma pena. Impossível conciliar o meu desejo ardente de prazer e vida com o meu
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desejo político de uma sociedade justa e igualitária. Queria tanto conciliá-los. Seria tão importante. (SANTIAGO,1994, 195)
A composição desse sujeito passa pelo reconhecimento – e
conseqüente angústia – de sua condição de ser partido entre as esferas pública e
privada. Há uma identificação de que a prisão impõe-lhe um duplo, com o qual
se identifica e estranha-se:
Assim como ando fugindo de todo e qualquer estigma que seja marca da adversidade, fujo também de uma imagem de mim mesmo que seja propiciada pela sombra da cadeia. Que os outros esculpam em palavras o meu duplo, é inevitável; que caia nessa arapuca e julgue-me superior, por ter sofrido e quere continuar a sofrer, ou inferior, por ter sido castigado e fique à espera de novos castigos, é ridículo. (SANTIAGO,1994, 63)
A identidade de prisioneiro político exerce muito fetiche nos
intelectuais em torno da sua figura: “Arre! Cansei de ser fera de jardim
zoológico. Quero que abram as jaulas, deixem-me respirar ar livre e ver novas
paisagens.”(SANTIAGO, 1994, 64). O incômodo de ser alvo do espetáculo de
olhares e manter-se aprisionado contrasta com certa consciência da necessidade
de não esquivar-se da função social que exercia por meio da literatura.
A nódoa de que se formava o duplo de Graciliano Ramos extrapola
o âmbito externo, do homem público que representava, e atinge a dimnsão
privada o relacionamento com a mulher, Heloísa, sofre abalos exatamente por
haver descontinuidade entre os dois momentos de representação do homem
Graciliano:
[Heloísa] Atacava-me às vezes, acreditando que, com isso, levantaria o meu moral, soerguendo das cinzas o seu antigo Gráci. Mas a influência da prisão e da tortura física e moral sobre o ex-preso é mais forte do que ela podia imaginar. Era irremediavelmente um outro homem. (SANTIAGO,1994, 114)
140
Há conflitos de outra ordem na configuração da subjetividade em
Em liberdade. O sujeito escritor Graciliano Ramos não encontra paralelismo entre
seus pares, especialmente quando se trata da comparação que estabelece entre
José Lins do Rego e ele mesmo. Enquanto para Zé Lins o ato de escrever
assemelha-se a furar um barril, do qual “sai o vinho copioso que se derrama
sem que o escritor possa conter ou controlar o seu fluxo furioso” (SANTIAGO,
1994, 119), a escrita para Graciliano representava um grande esforço de
elaboração:
De maneira alguma poderia escrever como Zé Lins. Tremo só em pensar que poderia mostrar um original meu em que houvesse graves erros de gramática. Se escrevi alguma coisa que pode parecer incorreto, foi proposital. Dificilmente posso aceitar uma sugestão lingüística feita por um leitor antecipado de livro meu. Não é por orgulho besta. Penso cada frase, pesquiso cada palavra, cada expressão. Leio a frase e releio-a diversas vezes. (...) Se não sai boa é porque não posso fazer melhor. (SANTIAGO, 1994, 120)
O combate à construção de personagens por José Lins que, diante
do conflito, resignam-se e não são aprofundadas em sua condição trágica,
sobreleva na configuração do sujeito escritor Graciliano uma postura de atitude
defensiva e de ataque, dado que contribui para acentuar-lhe a rigidez e a
dificuldade de lidar com a tolerância quando isso significa anular a postura
ideológica:
Zé Lins não trabalha o potencial dramático que impregna as relações. O menino sofrido não enfrenta o “ladrão da mãe”; interioriza o conflito sob a forma de doença, para melhor negá-lo. Descreve-se a doença. (SANTIAGO,1994, 124)
O sujeito escritor conclui suas reflexões afirmando que “existe
cumplicidade entre o homem e o romancista” (SANTIAGO, 1994,125). Revela
141
certa impossibilidade de desvencilhar o escritor e sua postura ideológica de sua
produção ficcional, deixando clara a função engajada de sua literatura:
Se não existe conflito psicológico entre os personagens da classe dominante, não o há também – de caráter sócio-político e racial – no jogo dos superiores com os inferiores. Zé Lins não tem o sentido da hierarquia, ou o tem de maneira a dar impressão de que ela não existe. Minto. A hierarquia existe, não existe é o peso da hierarquia. Eis como pode explicar-se o fato de ele nivelar todos os personagens – tanto os da casa grande quanto os da senzala – em um universo que caminha em equilíbrio e harmonia. (SANTIAGO,1994, 125)
A construção da subjetividade é complexa porque passa por um
entrecruzamento de discursos e das identidades de um sujeito que é escritor,
preso político, ser social e indivíduo, e tem muita dificuldade em lidar com o
trânsito de diferentes atuações de si mesmo:
Contra a minha afirmação otimista de romancista experimentado, tenho a tradição da literatura ocidental: ao leitor culto interessam muito mais as experiências de um homem na cadeia do que as do homem em liberdade. Pode-se dizer que no ambiente “de fora” estamos todos nós e, por isso, não temos curiosidade. O “de fora” para quem esteve “lá dentro” não é o mesmo, tanto não o é que, por mais que queira ficar “cá fora”, os meus melhores amigos querem que eu continue “lá dentro”, revivendo o período através das memórias. (SANTIAGO,1994, 135)
A condição de estrangeiro encaixa-se com perfeição em um
Graciliano Ramos, que se sente inadequado tanto na postura de quem
incomoda certo setor da sociedade, quanto na de quem é acolhido por outro.
Sua firmação de identidade passa pela negação ao esgotamento de si na marca
do preso político, numa recusa ao traço de mártir como condição para ser
artista, depondo contra o clichê de vítima. A estagnação das imagens
142
clicherizadas constitui uma paralisia social renegada pelo romancista-
personagem:
Entendo que o mártir é uma figura passageira no processo de construção de uma estrutura de poder que seja justa e igualitária. Não estou convencido, no entanto, de que seja uma figura convincente, chegando a arregimentar pessoas para o seu grupo. Assusta mais as pessoas do que lhes agrada. É funeral, não é vida. (SANTIAGO,1994, 198)
O sujeito escritor encontra seus pares nas figuras do editor –
Silviano Santiago – na do poeta em cuja imagem busca também a similaridade
nas questões revolucionárias (Cláudio Manuel da Costa) e ainda no jornalista
Vladimir Herzog. Em todos os casos, o engajamento político faz-se evidente. O
intelectual Graciliano desdobra-se em atos – mesmo que no sonho – na figura
do rebelde poeta mineiro, e em discurso, esse mesmo poeta prolonga-se em
Vladimir Herzog.
As identidades que constituem esse sujeito de Em liberdade
caminham, portanto, ao encontro do conceito de intelectual, cujos preceitos se
fundam na autonomia do pensamento em relação aos poderes religioso,
político, econômico, dentre outros. É um sujeito construído nas bases do
intelectual definido por Marilena Chauí:
A fala e a ação pública dos intelectuais, justamente porque balizadas pela afirmação da autonomia, assumem dois traços principais: a defesa das causas universais, isto é, distantes de interesses particulares, e a transgressão com referência à ordem vigente.14 (CHAUÍ, 2006, 30)
Outras representações de intelectual perpassam a obra de Santiago.
O volume Histórias mal contadas tem alguns textos que trazem essa figura,
14 In: O silêncio dos intelectuais, organizado por Adauto Novaes.
143
embora já não como representativa do universo do século XX: sob forte
influência das idéias neoliberais, a alocação desse intelectual pressupõe o
encurtamento do espaço público e o alargamento do espaço privado. As
grandes questões sociais foram substituídas por discussões a serem travadas
por especialistas. O professor universitário que vez ou outra se faz representar
nos contos vive situações de discriminação, de desvalorização profissional, mas
isso não corresponde mais ao motivo para uma luta em âmbito público, como
fora em Em liberdade:
Despreocupado em relação ao tecido delicado que as questões étnicas entreteciam no país do norte, minhas observações de antropólogo amador eram consideradas racistas. Ao relatar num jantar semiformal a curta viagem que tinha feito a Chihuahua, ao norte do México, o latino-americano que sou foi desancado por gringos em manga de camisa e europeus engravatados. Ao final da refeição, o café amargo da tolerância desceu como o lombrigueiro da infância. (SANTIAGO, 2005, 54).
O estrangeiro recluso, sem proporções de engajamento social,
também compõe a obra do nosso autor. Um bom exemplo é o narrador de Uma
história de família, texto que tem o tom de um grande projeto – ser uma epopéia
familiar que focaliza os grandes dramas humanos recalcados pela hipocrisia
cristã.
Desenrolando-se dentro de um pequeno e cerrado universo,
distingue-se também por não se alocar no universo que dialoga com a História.
A conotação política engajada, de que Em liberdade é grande exemplo, cede
lugar à representação dos grandes dramas individuais. O narrador desse
romance movimenta-se em torno de construções do passado e tem como guia o
144
cadáver do tio excluído da família. A memória é construída a partir de
fotogramas que dão corpo ao drama familiar, do qual esse "eu" ficcional
impregna-se, por meio de imagens e de vozes.
Nessa prosa com recortes autobiográficos, Silviano traz um
narrador que encontra na mudez de um tio louco a conflagração de seu próprio
discurso. A partir dessa escavação, constrói-se um espaço textual que busca no
passado as razões, as histórias de uma família e, principalmente, o sentido da
exclusão, de que ele vê o tio e a si mesmo como representantes.
O conceito norteador desse sujeito funda-se em um estado de
estranhamento e solidão premente, advindo da doença do narrador-
personagem e do estado de paralisia decorrente dela. O desdobramento desse
estado encontra-se na exclusão enfrentada pelo moribundo, a qual lhe oferece
subsídios para uma identificação com aquele que seria a grande mancha de
uma família tradicional – o louco, que impedia a neutralidade pretendida pela
família de imigrantes, já marcada pela diferença, e que, portanto, rejeita o
espelho da marca, que se mostra diretamente na figura do tio Mário e
indiretamente na do sobrinho doente. Estrangeiros/ estranhos, aqueles
imigrantes despem-se de suas identidades em um plano social, isto é, nas
aparências, para apresentarem-se adequados.
Em Uma história de família, o princípio de busca errante passa, como
já afirmado, pela busca da identidade do narrador, oriundo de uma família que
oscilava sempre entre o ser e o parecer. Nessa tentativa de mapeamento, o
protagonista-narrador vê-se na impossibilidade de traçar o retrato de uma
145
família que buscava a descaracterização dos atributos. Em outras palavras,
remonta uma história de família, por se enxergar impotente diante da tarefa de
contornar a história de um grupo que se apresentava sempre em uma postura
de negação em relação à própria essência; apresentavam-se a partir de uma
identidade construída, e o sentimento do não-pertencimento, invariavelmente,
ressaltava-se.
A abertura de Uma história de família faz-se de maneira semelhante a
uma carta: o narrador, distante de seu destinatário, dirige-se a um tio morto.
Paulatinamente, ele destece os fios da memória, revivendo as cenas que
presenciou quando menino, na pensão da avó. A história da família é o que
pretende reconstruir e, em flashback, revê as imagens do filme mental. Esse
narrador-personagem e sua perspectiva de rememoração, como uma espécie de
fuga à realidade em busca da origem da família, aproxima-se do conceito de
sujeito errante, proposto por Mafessoli, em sua obra Sobre o nomadismo, idéia que
compartilha afinidades com o conceito de estrangeiro de Julia Cristeva, a que
recorri antes:
[Na errância] a fuga é necessária, ela exprime uma nostalgia, ela lembra a fundação. Mas, porque tem um sentido, é preciso que essa fuga se opere a partir de alguma coisa estável. Para ultrapassar o limite, é preciso que ele exista (...). Todo mundo é de um lugar, e crê, a partir desse lugar, ter ligações, mas para que esse lugar e essas ligações assumam todo o significado, é preciso que sejam, realmente ou fantasiosamente, negados, superados, transgredidos. (MAFESSOLI, 2001, 79)
Nesse texto, Mafessoli conceitua errância como “o estado de
impermanência de qualquer coisa. Faz de todo mundo viajante sempre em
146
busca da outra parte.” (MAFESSOLI, 2001, 80) . Esse estado de impermanência
é veículo-motor em muitas perspectivas nessa obra: é o motivador da família e é
a razão da busca do sobrinho.
O início desse diálogo impossível traz um anúncio de morte: a
eliminação da vergonha que tio Mário representava, e o alívio que isso traria à
família. A morte do tio louco era a forma de livrar a família do estorvo que ele
representava, sob a falsa bandeira de que o desejo era o fim do sofrimento dele.
Nessa busca das reminiscências do tempo, vem à cena o narrador ainda
menino, que traz ao narrador já adulto as cenas que presenciou e que só agora
assumiam significação. O adulto usa o menino que aparece em sua memória
para visualizar melhor a cena:
Eu menino vejo a sua mãe que te observa homem feito.(...) Observo a sua mãe que te observa: suspira sem tirar os olhos de cima de você, suspira com ternura assassina (...). Esqueço o gosto do café com leite e do pão com manteiga, fecho os olhos, aguço a percepção direcionando o olhar do menino para todos os cantos do refeitório, e ali, de pé, está a comadre Marta ao lado da vovó.( SANTIAGO, 1993, 11)
O narrador, ao desvendar a hipocrisia, rompe o silêncio que
encobria aquela família de imigrantes e, assim, acaba por promover um ajuste
de contas com o passado, num tom intimista, num estilo que se assemelha ao
epistolar ou ao de alguém que, à beira da morte, faz revelações. Suas
impressões da infância, entretanto, são rarefeitas, traídas pelo esquecimento
infantil. Mas uma carta de alguém confiável acaba por ratificar e esclarecer as
reminiscências da história daquela família. Dr. Marcelo é uma duplicação do
narrador, em figura suplementar. Ele fora médico da mulher do senhor Onofre
147
e a ele ela fez as revelações acerca das relações de seu marido com a matrona da
família de imigrantes. Assim, o médico é a voz que se interpõe para trazer a
verdade e, por isso, elemento ligação entre passado e presente do moribundo,
herdeiro daqueles segredos, o que traz confirmação ao estranhamento do
narrador diante da relação que a família estabelecia com a diferença.
A carta de Dr. Marcelo contribui para o resgate da memória do tio
morto. Resgatada a dignidade, recupera-se o direito à diferença, o respeito à sua
loucura, a liberdade de se viver à margem do que se chama normalidade.
Denunciados os crimes encobertos daquela família que se escondia sob o véu da
religiosidade, a história de tio Mário acaba por ser liberada da culpa e da
vergonha a que fora condenada. Libertando a memória do tio do limbo, o
narrador liberta-se da própria dor, tendo como guia a lição daquele a quem
escolhera como interlocutor: a dor é suportável, pois ele era um doente que não
se queixava e, inconscientemente, traduzia um sentido de alegria por meio da
afirmação da vida, e de aprendizado através da dor.
Uma história de família não se estrutura a partir de uma ordenação
hierárquica. Sua estrutura está calcada, principalmente, em dois valores:
vergonha e culpa. Deslocados de identidade, os imigrantes italianos de Uma
história de família, por serem diferentes, não se permitiam apresentar-se do jeito
que eram, por isso, introjetavam a vergonha. Assim, para se exporem em
público, revestiam-se de uma máscara uniformizadora. Até o sotaque, flagrante
imediato de identificação do estrangeiro, era inibido pelo avô.
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Esse excesso de zelo [do avô] era o modo como buscava uma certa invisibilidade para a família em Pains. Todos tinham de ser corretos demais para dar a impressão de que não eram diferentes e opacos. Ele voltava o olhar reprovador da comunidade para si e para a família imigrante e buscava as regras do aprimoramento e da perfeita transparência nas criticas e admoestações alheias. Se estas silenciassem, teria atingido o ideal. (SANTIAGO, 1993, 31)
Morto o avô, a matrona continuou a sina: a casa era estruturada a
partir da vergonha e esse fator era revelador do motivo da aversão que sentia
pelo filho louco: ele representava uma bandeira que denunciava e aumentava a
diferença daquela família em relação a outras da comunidade:
Você era um constante perigo para a tranqüilidade da família. Nunca era o caso de te cercar de cuidados pelo carinho. Pelo contrário. Era preciso cercar de cuidados e carinho os lugares e as posses. (SANTIAGO, 1993, 43)
As ações de trânsito livre das identidades estrangeiras restringiam-
se, portanto, ao espaço privado. Ao espaço público, reservava-se a
homogeneidade. O estreitamento do espaço privado – a casa da avó era
também uma pensão – aprisiona as identidades e impõe-lhes o imperativo da
máscara.
A cidade pequena, com seu olhar de censor, agia de forma que a
família sentisse culpa. Se a vergonha não conseguia coibir as ações, a família
introjetava a culpa, à luz de valores cristãos, em que a diferença é sinônimo de
necessidade de penitência e exprobração. Mais uma vez, a presença de tio
Mário funcionava como alarme que sinalizava a diferença.
Na segunda tentativa de assassinar o louco, a família se viu exposta
aos comentários e aos olhos críticos: tio Mário foi socorrido, levado ao hospital e
149
voltou sozinho para casa, enquanto todos o procuravam. Não foi possível, para
a matrona, camuflar o crime, como o fizera antes. A presença de alguém insano,
para os familiares era vista como a de um pecado no seio cristão: era preciso
extirpá-lo para atingir a transparência.
Como já afirmado, a identificação do narrador com o tio louco
vinha da diferença que ambos sinalizavam. Tudo indica que o sobrinho possuía
uma doença grave e já não conseguia locomover-se. Enclausurado pela
vergonha da doença, para não enfrentar o público que lhe traria culpa, tenta um
diálogo impossível com o tio, por achar-se também, como aquele o fora, um
furúnculo em um corpo saudável.
Tio Mário era uma figura excêntrica em muitos sentidos: como os
outros, era um imigrante e, portanto, um estranho; mas, até esse ponto, não
havia muita diferença entre ele e os outros que povoavam a pensão. Entretanto,
havia alguns fatores que contribuíam para que sua existência, aos olhos dos
próprios familiares, constituísse uma aberração. A principal causa de sua
transgressão era o fato de ser louco. A loucura, em sentido lato, é uma alteração
de personalidade que leva o indivíduo a um comportamento dissociado de sua
realidade, contrariando os padrões culturais do meio em que está inserido.
Sendo louco, incapaz de controlar-se e monitorar-se nos padrões de vigília de
comportamento exigidos pela família que queria livrar-se da opacidade,
constituía uma constante ameaça.
Em sentido estrito, o termo não define um conceito apenas
psiquiátrico. Qualquer pessoa que tenha uma conduta em que se denote "perda
150
de razão", transgressão aos padrões, pode ser tachada como louca. A
valorização da loucura depende do contexto e do momento histórico.
Em muitas culturas antigas, o louco era tido como possuído por
uma divindade e, na Idade Média, a loucura era aceita como um fato normal da
vida cotidiana, com conotação maléfica ou benéfica. Foi a partir do
Renascimento que se iniciou a marginalização da loucura, como algo contrário à
ordenação equilibrada. Modernamente, algumas correntes artísticas
defenderam a total liberdade de criação do artista e o trabalho de doentes
psiquiátricos passou a ser enxergado e valorizado.
Em um olhar sobre o grupo humano e a ambientação, Uma história
de família pode ser pensado como romance regional. O romance regionalista
tradicional tenta retratar os expoentes de uma comunidade em ordem
hierárquica, reconstituindo-lhes a história. Em Menino de engenho, por exemplo,
a narrativa é estruturada a partir do dono do engenho, mesmo sendo aquele um
espaço em decadência.
A proposta de Uma história de família é o oposto disso: é uma
alegoria da migração - qualquer imigrante poderia enquadrar-se nela; com
facilidade, um brasileiro nos Estados Unidos, por exemplo, identificar-se-ia com
a questão da diferença discutida no romance. É um retratar de figuras
"estranhas" que chegam a uma comunidade para ali viver, obrigadas que foram
a deixar sua terra natal, onde eram conhecidas.
A narrativa sórdida da família de imigrantes ocupa-se com um
intento: eliminar o elemento da diferença, aquele que causa humilhação e
151
vergonha: o tio louco. Sobre essa diferença, canalizam-se valores próprios
daquele grupo, com o objetivo de aderir à norma e deixar de levantar a
bandeira da diferença.
Assim, esse romance de Santiago retrata uma travessia: o
deslocamento acontece e adaptação ao novo meio faz-se urgente. A pensão,
nesse sentido, torna-se muito importante: é o lugar do estranho, do estrangeiro,
do indivíduo sem laços, sem vínculos com a comunidade. A figura da matrona
como dona desse espaço denota sua liderança sobre os outros, seus iguais. Ela
não era uma hóspede, era a dona do espaço onde se acumulavam estrangeiros,
e, por isso, sua voz tanto se sobrepõe, até mesmo na formação de opiniões,
principalmente no que diz respeito ao julgamento da situação do tio Mário.
Em algumas entrevistas, Silviano Santiago revela que ousou pintar,
nesse romance, uma Quarta Minas Gerais: a dos imigrantes italianos. Assim,
retrata uma Minas que ainda não fora flagrada pelos grandes nomes de nossa
literatura. O sujeito apresenta-se, assim, fortemente arraigado ao espaço,
mesmo que dele não se veja como parte, mesmo que com ele não se identifique
plenamente.
Entretanto, mesmo estranho ao local, a referência à Minas dos
imigrantes se faz presente na caracterização dele, apontando para a construção
de uma subjetividade que se funda no estranhamento. É uma Minas sem
profundidade histórica, pois os imigrantes não trazem para a nova comunidade
a sua história; ao contrário disso, fazem o máximo para apagá-la, a fim de
dissipar a diferença.
152
Sem história, vivem uma situação de vácuo e, assim não há como
esperar deles uma trajetória tradicional de família. Não integrados à sociedade e
sem tradição, o que se retrata dessa família são fragmentos, desencontros,
desenredos. Ser diferente em uma cidade pequena, onde todos são visíveis,
assume proporções gigantescas. Mas uma vez, o foco de Santiago é em uma
minoria marginalizada.
Entretanto, há na obra uma tentativa de construção, por parte de
um sobrinho moribundo, de uma epopéia familiar, sem a busca da conotação
heróica própria dos textos épicos. Para conseguir seu intento, o narrador
percorre as cidades interioranas de Minas, Formiga e Pains, onde viveram
familiares seus, a fim de coletar depoimentos para escrever a história. Em uma
de suas buscas pela "verdade" sobre seus antecessores, encontra o Dr. Marcelo
que, a despeito de falar sobre a enganosa idéia que as pessoas alimentam de que
em cidade pequena não há segredos e de revelar os ardis da diabólica matrona e
seu amante, faz severas críticas à produção de romances regionais simplistas:
(...) muito romancista acha fácil escrever romance passado no interior do país porque pensa que é só ficar parado na praça principal conversando e anotando casos saborosos e anedotas picantes , é só complementar as linhas gerais do drama com muito nome de árvore e de bicho (...) Ironiza: ‘Com um ouvido se escreve um conto, com dois ouvidos se escreve um romance.' Ironiza mais: ‘Com um bom gravador se escreve uma epopéia.’ (SANTIAGO, 1993, 74)
Com os duros ataques de Dr. Marcelo aos escritores regionalistas, a
ponto até de chamá-los de "psicólogos de meia-tigela", que acabam por
construir personagens superficiais em tramas exacerbadamente plásticas,
153
Santiago usa o mesmo artifício de Alencar, que cria uma pseudocarta de uma
leitora, Elisa do Vale, para enaltecer seu romance Senhora. É uma espécie de
endosso intratextual, que defende a proposta do romance; no caso de Santiago,
a idéia sustentada é a de que romance regional, muito além do pitoresco, pode
também retratar os mistérios, os momentos de solidão e os vazios da vida de
indivíduos interioranos, pois sendo humanos como os citadinos, não pode ser
surpresa que não vivam apenas uma "existência palavrosa" como a que os
escritores regionais normalmente os atribuem.
Enfim, numa narrativa em que um sobrinho moribundo tenta um
diálogo com um tio morto, Santiago traz, como o faria mais tarde em Keith Jarret
no Blue Note e De Cócoras, um mundo em que são flagrados indivíduos
marginalizados, absortos em suas reflexões acerca da dificuldade de
relacionamento quando se trata de ser diferente.
Na busca da história de sua família, o narrador, na verdade, busca a
si mesmo, quando se projeta em um tio que, assim como ele, fora um mal no
seio familiar. A busca desse ente morto traz uma grande reflexão revelada pelo
narrador: nem sempre quem está mais próximo e é tão prestativo é o
interlocutor ideal. Além disso, algo mais contava a favor de tio Mário – ele era
possuidor de um saber, almejado pelo sobrinho, e não enxergado nos outros
que se culpavam: suportar a dor.
A grande ironia que o sobrinho revela está na frase que se faz
constante: "Todos querem a sua morte, tio Mário. Os mais próximos e os que
mais te amam." Revela, com essa assertiva árida sobre os possuidores da
154
"máquina do mundo", a hipocrisia de uma família que via na diferença uma
nódoa a ser retirada. Um grupo que tentava, a todo custo, transparecer-se
convencional e convenientemente. Essa frase perpetua a idéia de que aquela era
uma família tradicional e harmoniosa, que, portanto, não seria capaz desejar aos
seus o mal; a morte era uma bem; era necessária, pois era o fim do sofrimento
do louco.
Como o poema de João Cabral, o capítulo final é um "catar feijão". A
metáfora da seleção do que iria para a posteridade como herança daquele
moribundo vem da lembrança da cozinheira Etelvina catando feijão,
selecionando os bons grãos e lançando ao lixo aqueles que para nada serviam.
Assim também faz o narrador: seleciona as pessoas cuja memória gostaria de
ver preservada, como o tio Mário, e descarta aquelas que, apesar das doces
palavras e dos constantes clamores ao céu, deveriam ter a máscara arrancada –
a matrona é a principal representante deles.
Além da seleção das pessoas, ele escolhe também as histórias que
deseja contar: é impossível pensar em uma história de família em tempos pós-
modernos, em que esta é constituída de subgrupos e não é mais aquela unidade
que já se denunciava decadente no inicio do século vinte. Vivendo em conflito
com a própria identidade, esse narrador transfere para seu projeto de história
da família a mesma atitude fragmentária.
Como consolo por seu estado vegetativo, ao narrador fica o direito
de fazer-se dono de sua narrativa, nesse processo de autoconhecimento por que
passa. Questionando valores e montando a sua seqüência para os fotogramas
155
da memória, revela submundos não raros, mas geralmente camuflados sob a
imagem da sagrada família. Entretanto, não se pode negar que, ao rejeitar a
estrutura explicitamente provinciana daquela cidade, de que sua família era
grande representante, esse narrador rende-se ao gosto provinciano de
necessitar, mesmo que impelido por sua obrigatória estagnação, construir
explicações para estabelecer para si mesmo o conceito de família que insiste em
desconstruir.
O mesmo sentido de exclusão pode ser encontrado em outras obras
do autor. Embora não premente, mas por escolha, os personagens de Keith Jarret
no Blue Note transitam na esfera da margem. Silviano Santiago traz, nessa obra,
cinco contos assumidamente gays, que correspondem às faixas do CD do
pianista: "Autumn leaves" ("Folhas secas"), "Days of wine and roses" (Dias de
vinho e rosas"), "Bop be", "You don't know what love is/ Muezzin" ("Você não
sabe o que é o amor/ AImuaden") e "When I fall in love" ("Quando me
apaixono").
A classificação da obra Keith Jarret no Blue Note, de Silviano
Santiago, publicada em 1996, é, na crítica em geral, a de contos gays, adjetivação
endossada pelo autor da obra, numa entrevista a Luiz Antônio Ryff, da Folha
de São Paulo, afirmando que, como se pode falar em literatura feminina ou
literatura negra, há espaço para a literatura gay, que seria uma literatura
engajada, no sentido de que há uma tentativa de se trazer, via literatura, a
realidade dos homossexuais afastada da idéia de vulgaridade e promiscuidade
e próxima ao sentido de dignidade independente da preferência sexual.
156
São personagens que recorrem a uma espécie de auto-exílio, numa
representação de, se não mais no clichê do simplesmente discriminado, uma
configuração pautada em um discurso politicamente correto, mas, na prática,
ainda envolto em rejeição. Denílson Lopes trata dessa representação na
literatura:
Diferente de certa ficção gay contemporânea em língua inglesa, como nos trabalhos de Michael Cunningham e David Leavitt, parece estar muito pouco visível, na literatura brasileira, uma ressignificação da casa e da família como espaços não mais de opressão mas de afetividade e criação de novos tipos de relação. (LOPES, 2002, 147)
A construção desse perfil na literatura assume, para Denílson, a
importância de definição textual, indo muito além das questões ideológicas,
biográficas ou das práticas eróticas. Isto é, apresenta-se uma identidade que não
se deseja marcada por clichê, nem tampouco se quer marginalizada ou
ignorada: “a construção de memórias alternativas se constitui em um
referencial político central para a construção de uma sociedade multicultural”
(LOPES, 2002, 122). Não deixa de ser coerente (e, ao mesmo tempo, previsível)
que a literatura se proponha a resgatar a memória de grupos oprimidos
historicamente, em um momento em que as ciências humanas e sociais assim o
fazem como condição para o estabelecimento de um novo parâmetro que não se
funda em hierarquia.
Nesse sentido, este volume de Silviano Santiago poder-se-ia inserir
no que Linda Hutcheon (1991:84) chama de "perspectiva descentralizada".
Segundo ela, a identidade do sujeito pós-moderno é construída a partir da
157
diferença, mas essa diferença é contextualizada em pequenos grupos:
preferência sexual, classe social, identidade étnica, educação, etc. A atenção foi
se deslocando do centro (representado pela estrutura patriarcal) para as
margens. É de lá, das margens, que se fala do marginalizado, embora em uma
perspectiva diferente não mais do lugar da degradação, comum ao
Naturalismo, por exemplo.
Heloísa Buarque de Holanda, na apresentação da obra, afirma que
não se tratam de "contos gays estricto senso. Nele não existem papéis sexuais
muito definidos. São improvisos que têm como leitmotiv o ethos gay de uma
permeável disponibilidade para o sexo". A busca do amor, do eu no outro,
encarnada na disponibilidade sexual são, portanto, o motivo que conduz os
contos. Denílson Lopes fala de uma representação literária que visaria ao
contorno de “processos de diferenciação simultâneos à maior segmentação da
sociedade e do mercado.” (LOPES, 2002, 125)
A maior parte dos textos ambienta-se em uma cidade dos Estados
Unidos, embora haja também narrativas que transcorram no Rio de Janeiro, em
Ipanema ou Copacabana. Tratam de personagens solitários, da intimidade de
um eu que se diz você, uma inovação trazida pelo autor. No primeiro dos
contos, "Autumn leaves" ("Folhas secas"), o narrador-personagem, depois de
uma saída pelas ruas molhadas e frias da cidade americana, chega a casa com
um jornal, uma revista pornográfica e o CD de Keith Jarret. A música do
pianista é pano de fundo para as recordações que permeiam o pouco enredo
desta narrativa. Neste primeiro conto, a referência à música do pianista se faz
158
de maneira evidente, se comparada aos outros em que não há indicação clara. O
protagonista compra o CD e inicia, em casa, o ritual necessário para ouvi-lo:
Você rasga o celofane que protege o CD, abre a caixa, retira o disco e o coloca no aparelho de som. Aperta o botão. O piano de Keith Jarret entra firme e delicado, pausado, abrindo e medindo silêncios, para daí a pouco ir ganhando galeio, anunciando notas mais fiéis à melodia de Autumn leaves...(SANTIAGO,1996, 17).
A música de Keith Jarret assume, portanto, papel de companhia,
uma resposta à solidão do solteirão descontextualizado, isto é, habitante de um
país que não é o seu. A personagem trava um diálogo com a música e o estilo
do pianista, questiona o que chama de "exibicionismo" de Jarret, recordando
uma conversa com um amigo sobre o assunto.
Em Keith Jarret no Blue Note, há uma voz que fala de si mesma
usando, ao invés do eu, um você, o que faz lembrar a inversão do mito de
Narciso, de Oscar Wilde. Em ambos, como afirma Ana Maria de B. C.
Edelweiss15, em sua tese de doutorado, há uma reduplicação de sujeitos, pois,
em vez de eu, o narrador-personagem diz você, num jogo de olhar e ser olhado;
um pseudodistanciamento para construir a subjetividade: "A esquizofrenia é a
câmera-eye que segue este eu [...], como um voyeur, dizendo a si mesmo o que é,
como se outro fora, portanto, como um outro, também se exibe." (SANTIAGO,
1997, 136).
O voyeur é alguém que especula, é um observador clandestino, não
autorizado, que adentra a intimidade alheia. O narrador aqui é um voyeur de si
15 Esta é uma tese muito importante sobre a obra de Silviano Santiago. Chama-se 6x4 -Máscaras do narrador na obra de Silviano Santiago.
159
mesmo: viaja pelas próprias intimidades e recordações como se fora uma outra
pessoa que, de longe, observa a cena; tenta distanciar-se de si próprio, para falar
de si com a imparcialidade de quem tudo assiste de fora.
Em todos os contos, há o uso deste recurso, num processo de
diálogo consigo mesmo, como se outro fora, o que, de certa forma, facilita a
auto-avaliação de seus atos e sentimentos, diálogo que se faz constante, seja no
questionamento de um amor que não correspondera à altura, como em "Days of
wine and roses" e "When I fall in love", seja na crítica à frieza em relação ao
sofrimento alheio, como em "You don't know what love is/ Muezzin, ou ainda
em sua revolta contra uma sociedade hipócrita e opressoramente heterossexual.
A escrita que se utiliza desta técnica do uso deste você, sem dúvida,
torna a obra mais acessível, uma vez que ao leitor cabe não só o papel de
confidente, mas também o de um espelho no qual o protagonista se faz refletir.
É um artifício que aproxima narrador e leitor, convidando-os a um diálogo.
Muito mais do que características que levem a identificar os
personagens de Keith Jarret no Blue Note como homossexuais, o que se evidencia
nos contos é o trânsito que têm nas relações afetivas. Em "Autumn leaves", ao
lado do que reconhece como boa intenção para o fim de semana (ler jornal e
ouvir Keith Jarret), a busca pelas revistas pornográficas assumem o papel de
algo proibido, que deveria ser escondido para não ser condenado.
Ser fácil demais e cometer excessos sexuais levam o protagonista de
"You don't know what love is/ Muezzin" a quase temer o fato de receber o
telefonema de uma mulher, que o conhecia bem e de quem não conseguia se
160
lembrar, desesperada à procura do marido desaparecido. O álcool associado à
orgia sexual em demasia, algo freqüente na vida da personagem, levará a ter
dificuldade de identificar uma pessoa dentre as muitas com as quais se
relacionara.
Os protagonistas dos contos revelam-se personagens de gosto
refinado e certa bagagem cultural; alguns são professores, amantes de cinema,
da ópera e de boa música. Esses sujeitos de personalidades fortes, assim como
os da coletânea Histórias mal contadas, vêm trazer uma configuração mais ou
menos típica da condição homossexual em sociedade: sofrem forte marca do
preconceito e lutam pela firmação de identidade, sem que isso signifique
atitude panfletária.
Os protagonistas dos contos de Keith Jarret no Blue Note
apresentam uma forte característica comum: quando localizados fora do país,
nutrem um sentimento de estranheza e solidão próprios de um exilado. A
solidão da personagem é regra em todos os contos deste volume de Santiago:
não têm nome, são todos habitantes solitários de um apartamento e não há
referência à família ou a alguém muito próximo que não seja um amante de um
caso que, quase sempre, já tivera um fim.
Em “Autumn leaves”, assim como em "Days of wine and roses" e
"Bop be", contos que transcorrem em uma cidade dos Estados Unidos, o clima
de solidão está associado à idéia de ser estrangeiro e aos dias frios, nos quais as
pessoas são levadas a permanecer sob o refúgio de suas casas. A saída do
enclausuramento, quando acontece, é precedida de um ritual de munição de
161
casacos, sobretudos, capas de chuva, tudo para escapar à monotonia de um de
semana que prometia ser longo, como se dá em "Autumn leaves": "... da longa
caminhada que você fez pelo centro da cidade para fazer algumas compras
inúteis que encurtariam as longas horas do fim de semana..." (SANTIAGO,
1996, 20). O consumismo, a saída de casa e a compra de algo que servisse à
distração vêm como auxiliar em dias que prometiam ser infinitos.
Em "Days of wine and roses", mais uma vez, a solidão é articulada a
partir dos ícones cidade americana (é, portanto, um estrangeiro) e frio (o
inverno, que obriga as pessoas a ficarem mais em casa), além de a narrativa
desenrolar-se também em um fim de semana em que o ócio reina na vida da
personagem. 0 sentimento de solidão é flagrante, pois não há referência a
alguém que espere ou que seja esperado pelo protagonista, e essa falta de
perspectiva (ter algo a fazer ou alguém com quem dialogar) alimenta a conversa
interior dele consigo mesmo, num questionamento da existência do mundo ao
seu redor: "Você imaginou que não havia casas na cidade. Não há casas. Só
ruas. Você imaginou que não havia famílias na cidade. Não há famílias"
(SANTIAGO, 1996, 55), como se ele fora o único habitante daquele lugar. Sente-
se estranho, pouco à vontade em um quarto com cujos móveis e decoração não
simpatiza: "Você e os móveis se entreolham de perfil, como bandido e polícia se
estranham um ao outro no filme que está sendo exibido a esta hora da
madrugada" (SANTIAGO,1996, 54).
O mesmo estado de insulamento atinge o protagonista de "You
don't know what love is/ Muezzin", que vê no telefone a única companhia para
162
o seu fim de semana: "O som é apenas uma matraca de sábado de aleluia, que
fica girando, girando, girando, enquanto se espera a malhação do judas"
(SANTIAGO, 1996,116). Dormir com a luz acesa e a televisão ligada constituem
um artifício para não se sentir só no caso de acordar durante a noite. Estes e
outros artifícios são uma forma de fazer o tempo fluir mais rápido e chegar logo
o dia de trabalhar, para que os vazios sejam preenchidos ou, pelo menos,
disfarçados durante a rotina e a falta de tempo para os devaneios.
O estranhamento, em "Autumn leaves", atinge também o próprio
protagonista, uma vez que ele revela um certo asco de si mesmo quando trata
de seu problema de saúde - um resfriado e o medo do fantasma da tuberculose
que volta a atacar nos dias de hoje. Analisando o que fazer com os lenços
usados para assoar o nariz, constrói um perfil de si e da cidade onde mora: uma
cidade suja, mas em cujo lixo não há lenços de papel usados; há, sim, um lixo
"patriótico", revelado pelas cores da bandeira americana, exploradas no culto
exacerbado dos nacionalistas a sua pátria: "garfos, facas e colheres de plástico,
em especial nas cores branca, azul e vermelha" (SANTIAGO,1996,23).
O aspecto sujo e repugnante dos lenços de papel pertencentes a ele
não cabem naquela cidade. Pensa que seu lixo poderia ser a sua marca no
caminho, como no conto infantil João e Maria em que João usa as migalhas de
pão para sinalizar o caminho percorrido, o que revela, mais uma vez o seu
sentimento de solidão , de estar perdido em um local que não é o seu, sem
referências e proteção, como se encontravam aquelas crianças.
163
Na falta de neve para deixar as marcas dos sapatos, o protagonista
via como solução o abandono dos lenços sujos pelas ruas, para que visse,
naquele território estranho, algo seu: "matéria servil e pegajosa, tão sua! e tão
estranha! que macula a brancura do papel" (SANTIAGO, 1996, 22). É uma
tentativa narcisista de se familiarizar com o local, de se enxergar ali,
desencorajada pelo temor de ser identificado como "estrangeiro depredador dos
bons costumes nacionais" (SANTIAGO,1996, 25) por algum cidadão americano.
O protagonista não consegue, portanto, desvencilhar-se da idéia de ser
estrangeiro, o que significa, principalmente em relação aos latinos nos Estados
Unidos, ser marginalizado e inferior.
Listando o lixo que encontra em seu trajeto para o trabalho,
vislumbra um cadáver num banco de jardim - é a vida humana coisificada, sem
identidade, como mais uma peça a ser descartada, paisagem que não é
incomum nas grandes cidades:
Um colchão esburacado, ao lado de umas cadeiras aos frangalhos, imprestáveis, que ficaram por uma semana à espera do caminhão de lixo em frente de seu edifício de apartamentos. Um cadáver humano deitado num banco público de jardim. Sacos de papel amassados de mcdonald's, burger kings e dunkin'donuts. (SANTIAGO,1996, 24)
A consciência de ser estrangeiro revela-se, ainda, pelas constantes
referências ao olhar que se fazem nos contos. Como o estrangeiro, os
personagens vez por outra fazem a leitura do que vêem, transformando fatos
em eventos, particularizando o local: o que é paisagem comum aos habitantes
do lugar, é revelação ou estranhamento aos olhos daquele. Assim também é o
164
modo como os protagonistas vêem algumas situações, como em "Autumn
leaves", em que a personagem olha os galhos das árvores sem folhas prevendo
o nascimento dos brotos.
Revela-se um excelente observador da cidade e de seus habitantes,
além de não se deixar de fora dessas observações: não passa de um estranho,
ignorado, o que não lhe impede de pôr sua autenticidade em prática; sua
personalidade não se molda para agradar às pessoas daquele lugar: "você foi
sempre em frente. Aceito, rejeitado, escorraçado, espancado, paparicado,
xingado, esnobado, ridicularizado, amado." (SANTIAGO,1996, 38). A relação
deste protagonista (como os outros dos demais contos) com os objetos que
observa é uma relação definida pelo olhar, pelo modo especial de ver o outro e
(não) enxergar a si mesmo.
Os cinco contos tratam de amor, da busca desse sentimento por
protagonistas que são homossexuais, mas acima disso, são pessoas sensíveis,
não pertencentes aos estereótipos que se formam nas mentes quando se sabe
que se tratam de contos gays. São protagonistas nômades, solitários e não
adequados ao local onde vivem. Sujeitos sensíveis, vêem-se distantes e
sozinhas, que dialogam consigo mesmos como se outras fossem.
Espelhando-se no outro, nos relacionamentos amorosos, as
subjetividades fundam-se no conhecimento de si mesmas, num jogo narcisista
de se construir a partir do que é observado no outro. Embora as letras das
músicas de Keith Jarret não mantenham uma ligação direta com o conteúdo de
165
cada um dos contos, os títulos delas, tomados como empréstimo das faixas do
CD, vão se relacionar com o conto a que cada um se refere.
A memória, assim como em Uma história de família, é uma fiel aliada
dos protagonistas. Na solidão de seus apartamentos, divagam, experimentando,
na. vivência do dia-a-dia, o sabor de uma recordação que os ajudar a preencher
o ócio do fim de semana e o insulamento a que os obriga o inverno e a eterna
sensação de ser estrangeiro.
O estrangeiro que percorre terras outras e, da violência do
confronto étnico-cultural, resgata suas memórias está também presente em
Histórias mal contadas. Mesmo que não haja menção explícita ao fato de alguns
personagens serem homossexuais, não se pode negar a que a identidade gay,
como pode ser observado em Keith Jarret, firma-se em algumas narrativas.
Esse conceito de identidade gay tem sido muito discutido, e pesquisas
recentes, como a de Adriana Nunan16, mostram que ele se substancializa a partir
da diferença; isto é, há uma identidade que se distingue da heterossexual por
ter sido fundada em uma atitude defensiva, em decorrência do preconceito e da
marca rotulatória com a qual foram discursiva e indistintamente configurados.
A tendência a uma vida autônoma e, às vezes, preenchida de
solidão e independência revela-se como forte dispositivo à atitude de transitar
m vários lugares, de migrar, devido à ausência de laços institucionais, como
casamento (“Na melhor das hipóteses, os cacos do amor e da camaradagem
16 O texto da Adriana Nunan chama-se Do preconceito aos padrões de consumo. A psicóloga realizou extensa pesquisa sobre a subcultura gay, que inclui questões identitárias, mercado e consumo homossexuais.
166
formam uma bela e multicolorida figura de fundo, abstrata, como num
caleidoscópio.” SANTIAGO, 2005, 61).
Na maioria dos textos, os sujeitos orientam suas vidas a partir da
esfera profissional: “Se a seqüência lógica dos números trabalhava a favor do
meu aprimoramento profissional, funcionavam de maneira negativa no plano
de vida social.” (SANTIAGO, 2005, 60) . Devido às muitas mudanças, sofrem
aquilo que Michel Mafessoli chama de “desconfiança do ‘corpo
organizado’”(MAFESSOLI, 2001,43). A tendência à formação de guetos que
configurariam a tal subcultura vem de uma necessidade de alocação.
É impossível definir melhor a desconfiança em torno das ‘aves migrantes’. Para o filósofo que deseja fortalecer a ‘corporação organizada’ do poder político e o seguro social que isso gera, o viajante apresenta um risco moral inegável, e isso por ser portador de novidades! (...) O viajante é testemunha de um ‘mundo paralelo’, no qual o sentimento, sob suas diversas expressões, é vagabundo, e no qual a anomia tem força de lei. (MAFESSOLI, 2001, 43).
Essa desconfiança pela diferença de ser estrangeiro é experimentada
por personagens dos contos de Histórias mal contadas, como acontece em “Ed e
Tom” e “Vivo ou morto”. No primeiro texto, o personagem central, um
professor brasileiro que vai trabalhar nos Estados Unidos, passa por situações
de constrangimento que flagram constantemente sua condição de estranho
àquele lugar (“Palavras matreiras de estrangeiro sobre política e religião nem
sempre são bem interpretadas pelos gringos.” SANTIAGO, 2005, 54), com o
agravante de ter sua competência profissional posta em xeque devido a sua
forma conduzir as análises que fazia das obras literárias:
167
Ao discutir em sala de aula o romance Macunaíma, de Mário de Andrade, costumava exagerar na crítica ao nacionalismo literário, valendo-me da pimenta e do azeite de dendê do sarcasmo. Fui acusado pelos alunos de lesa-pátria. Não merecia representar (davam enorme peso ao verbo) aquela cultura e, por isso, deveria ter a cabeça de professor decepada. (...) Moderei os comentários irônicos em sala. (SANTIAGO, 2005, 54)
As experiências de uma vida itinerante trazem desconfortos das
mais diversas ordens aos sujeitos das narrativas, desde acusação de racismo até
ser acusado, mesmo que só em sonho, de ser um fora-da-lei. Havia um
descompasso entre o personagem professor de “Ed e Tom” e as questões étnicas
que envolviam os Estados Unidos na década de 60: “Despreocupado em relação
ao tecido delicado que as questões étnicas entreteciam no país do norte, minhas
observações de antropólogo amador eram consideradas racistas.” (SANTIAGO,
2005, 54).
Essa ausência de sentido para o brasileiro que se revertia em
intolerância para os americanos denunciava uma camada identitária no
professor que destoava em muito dos nacionalistas: a resistência em representar
o próprio país. O sentido de indivíduo fala mais alto e o sujeito não encontra
eco na responsabilidade de ser a voz de um grupo, munido de um sentimento
de impotência diante de uma tarefa tão múltipla:
O que significava para eles aquilo que exigiam de mim – ser representante dos brasileiros. O que significava representar um grupo, uma comunidade, uma cultura ou uma nação? Será que me dava conta dos pequenos grandes acontecimentos que aconteceram e aconteciam ao meu redor, cuja representação era de responsabilidade dos universitários com quem convivia? (SANTIAGO, 2005, 55)
168
O nomadismo, decorrente das contingências profissionais ou ainda
da tentativa de obter invisibilidade diante do assédio, faz-se presente em alguns
textos do volume Histórias mal contadas. No primeiro caso, há uma consciência
do dilaceramento das relações, como conseqüência da impossibilidade de
estreitar relações em decorrência das constantes mudanças:
Se a seqüência lógica dos números trabalhava a favor do meu aprimoramento profissional, funcionavam de maneira negativa no plano da vida social. Tenho uma das vidas sociais mais anárquicas, fragmentadas e precárias do planeta. Feita de carinho amoroso desperdiçado pelas contingências a que obedeci. (SANTIAGO, 2005, 60-61)
Diferentemente do sujeito que se vê impelido a transitar em espaços
diversos (“Durante grande parte da minha vida adulta, não cheguei a conviver
com ninguém por mais de dois anos” SANTIAGO, 2005, 61), a vida nômade, na
tentativa de fuga ao assédio, torna-se marca de um sujeito para quem a
exposição da própria imagem representa certo grau de invasão.
No conto “Assassinato na noite de Natal”, o isolamento é uma
estratégia, nesse período em que as culturas promovem os encontros. Trata-se
de um sujeito cuja fama advém do meio televisivo, o que o traz muita
popularidade e, consequëntemente, torna-o alvo de especulações dos olheiros
da vida privada: “Minha confissão vai direto para as mãos do Nelson Rubens,
da Sônia Salomão e do Ratinho. E vai virar rango para as noites quentes das
macacas de auditório.” (SANTIAGO, 2005, 131)
O duplo revela-se em estado de conflito na constituição desse
sujeito. A dimensão pública nutre-se da popularidade e da especulação; na
169
esfera privada, essa configuração é rejeitada, sobretudo pelo desejo de solidão.
A vida pública é uma representação e, para livrar-se dela, o sujeito recorre a
disfarces, o que o faz, de certa forma, dar continuidade à prática de representar:
Hospedo-me com o nome de Nelson, é claro. Meu passaporte não me denuncia. Não uso óculos escuros. Para não dar bandeira. Uso óculos de míope. Sem as lentes que corrigem a miopia. Uso óculos que não uso. Que usei na minissérie Lampeão. Me escondo por detrás deles. (SANTIAGO, 2005, 133)
Um outro estranho/estrangeiro representado na obra de Silviano é
aquele que recorre a uma espécie de auto-exílio, numa atitude sorumbática
frente ao convívio social. É assim que firma sua trajetória – num estado de
solidão premente, cuja companhia é quase sempre a atitude memorialística.
Contorna-se dessa forma a imagem do nosso poético Antônio, de De cócoras.
A similaridade com São Sebastião, naquilo que chama de “condição
de sobrevivente”, faz de Antônio um estrangeiro no sentido da restância em
relação à passagem do tempo: viúvo, aposentado e sem filhos, conserva apenas
memória de convívio social constante. É um transeunte nas relações de
contingência, sem laços ou desdobramentos afetivos.
Não faz parte da constituição desse sujeito uma atitude ofensiva
diante da vida. Sua configuração passa, desde muito cedo, pela contemplação,
pela atitude conformada e pela obediência, nunca pelo desbravar de
acontecimentos. Não havia em Antônio a ambição da transformação, o que lhe
ressalta a atitude resignada:
Não era rapaz ambicioso, não seria homem de ação. Na meninice, nunca brincou de construtor e, na juventude, não
170
lhe passou pela cabeça que um dia iria planejar e supervisionar construções de edifícios, pontes ou barragens. Gostava da casa onde crescia, do bairro em que morava, da cidade em que vivia. Não tinha vontade de transformá-los pelo uso racional da imaginação. Gostava da casa, do bairro e da cidade do jeito que eram. (SANTIAGO, 1999, 62)
A imagem que guarda do pai é a de alguém cumpridor de
responsabilidades, mas não acessível ao código de afetividade. O não
conhecimento do modo de organização da família ressalta uma estrutura muito
mais fundada na hierarquia de papéis do que na afetividade das relações:
Antônio nada sabe sobre os modos desmazelados da rapariga da vida e a cara de doente da mãe. Não sabe se a magreza do corpo, a palidez da pele e as olheiras profundas são causadas pela falta de sono, se pelo excesso de sono, se pela falta de remédios, se pelo excesso de remédios. Tem vontade de perguntar a ela. Tem vontade de perguntar ao pai. O pai é médico, tem de ter uma explicação. Sufoca a vontade de perguntar. Não pergunta. (SANTIAGO,1999, 91)
O pensamento religioso reinante na infância reaparece como motor
de uma atitude reprimida diante do mundo – chega a associar o irmão mais
novo ao diabo pelo fato de a mãe ter morrido de parto. E essas marcas
perseguem-no até o momento da morte – é para lá que o personagem se
desloca, junto às memórias. Sua condição de sobrevivente impele-o à busca do
sentido de origem, e seu comportamento nesse retorno é o mesmo do menino
Toninho: recolhe-se diante da dor. Seu duplo é na verdade a matriz da qual não
conseguiu se desvencilhar ao longo da vida.
A construção da subjetividade nos textos de Silviano Santiago passa
por vias que não transitam na referencialidade, na perspectiva do centro, mas se
encontram numa elaboração múltipla de identidade, descentrada, num
171
processo em que alcançar o sujeito significa chegar a uma via de mão dupla, em
que as possibilidades de identidade apontam para caminhos diferentes, sem
que sejam, necessariamente, opostos.
172
PALAVRAS FINAIS
O universo ficcional de Silviano Santiago constitui-se a partir de uma
ação privilegiada do olhar, que revela imagens constituintes do simulacro do
mundo. Até aí, não haveria muita novidade em relação à literatura produzida
por seus contemporâneos. Ocorre que, no caso deste ficcionista, a seleção dessas
imagens percorre campos semióticos diferentes e pressupõe trabalho minucioso
de montagem, a fim de que dos recortes se construam e se desdobrem os signos
construtores da metáfora.
A escrita de Silviano Santiago é novelar, isto é, forma-se a partir de
painel multilinear de referências e estratégias, oriundos de sistemas diversos, e
essa composição de base heterogênea segue um curso multifacetado, uma vez
que os efeitos em desequilíbrio produzidos por essa diversidade
paradoxalmente chegam também a uma nuance harmônica a partir da
manipulação dos signos e sua conseqüente ressignificação. Um trabalho
minucioso de edição aproxima códigos que, fora do conjunto, poderiam
parecer contraditórios.
Em relação ao elenco que se apresenta, seus textos são
economicamente povoados; em vez de um rol de personagens, encontramos nas
obras analisadas narradores cujas existências preenchem o espaço ficcional,
primordialmente, com suas reflexões acerca de questões contemporâneas a eles.
Todas as personagens que aparecem são fruto da seleção desse narrador, que as
apresenta a partir da própria ótica.
173
Os sujeitos não possuem contornos bem definidos, embora se possa
demarcá-los com o traço condição de ex-cêntrico, acima de tudo pelo fato de
serem muito solitários: preso político, idoso, doente terminal, louco,
homossexual, estrangeiro, falsário povoam uma obra em que estar longe do
centro não significa necessariamente estar em condição desprivilegiada.
A literatura de Silviano Santiago traz à cena uma atitude que não está
isolada no campo das artes – promover o hibridismo entre os discursos ficcional
e ensaístico e transitar nas diferentes áreas do conhecimento – essa atitude não é
atributo apenas da literatura : cinema e artes plásticas recorrem a esse artifício,
num embate em que real e superação do real se intercalam e se mesclam
dialeticamente.
Esse hibridismo de formas se revela também nos últimos ensaios do
autor, em que a pesquisa acadêmica se configura por meio de um discurso
elaborado em feitio próximo ao literário, mesclando real e histórico à elaboração
discursiva da literatura. A composição híbrida, apesar de simular fragmentação
e dispersão de referências, é articulada de modo a compor uma tessitura
harmônica, exigindo, por isso, atitude empreendedora do leitor, que
necessitará, em alguns casos, buscar conhecimentos dispostos esparsamente no
texto para aprofundamento no conceito da obra.
A natureza ensaística e atitude sarcástica de alguns textos de Silviano
Santiago causam impacto no circuito crítico não-especializado, principalmente
porque sua obra crítica constitui espelho de um trabalho construído
solidamente e, portanto, torna-se parâmetro para comparação. A escrita
174
ficcional desse autor parece querer o desvencilhar-se do discurso acadêmico
próprio do intelectual ensaísta.
Circunscreve personagens e fatos no contexto ideológico em que se
inserem lançando mão de artifícios próprios da linguagem literária. Nos textos
em que a tônica da biografia representa uma das formas de apropriação do
discurso ensaístico, como em Em liberdade e Viagem ao México, o ficcionista
manipula a identidade dos sujeitos históricos no contexto da ficção e esse
processo de inauguração de interidentidade acaba por (con)fundir personagem e
pessoa, originando um outro sujeito, uma identidade cuja existência se limita ao
interstício entre uma configuração e outra.
A metáfora, de que Silviano fala na entrevista citada no quarto
capítulo desta tese, como sendo norteadora de sua produção literária, encontra
nos escritos de Derrida grande afinidade conceitual. Como a concepção de texto
para Derrida, a produção ficcional de Silviano constitui um tecido composto
heterogeneamente, que implica a passagem pelas diferentes camadas de leitura.
A bricolagem de signos atribui sentidos outros aos elementos da
composição e cada conjunção remete a uma possibilidade de significação. E esse
conteúdo metafórico de muita potencialidade de sentido permite leitura
verticalizada, num processo que implica recortes na textualidade.
A escrita de Silviano Santiago apropria-se de teorias e estratégias
relativas à literatura e a outras linguagens (cinema, teatro) como ponto de
partida, para que sirvam ao confronto com outros discursos, explorando-lhes
possibilidades de sentido que, isoladamente, não teriam. Caracteriza-se, assim,
175
pela desconstrução dos princípios estabelecidos tradicionalmente para cada
gênero. Como simulacro, sua escrita recupera formas e autores para manipular-
lhes as especificidades e apontar outros caminhos de representação.
Uma literatura que ora se distancia ora se aproxima da narrativa
tradicional em muitos aspectos, encontra no processo de criação de João Cabral
de Melo Neto também proximidade em relação à atitude construtora – forma e
fundo caminham de modo harmônico, pois o sobrelevo da forma vem sublinhar
o trabalho de construção, em diálogo com a própria narrativa.
Entretanto, a sensação de estar diante de todos os andaimes da
construção artística de Silviano Santiago, às vezes, não passa de ilusão: a
simulação de formas nem sempre seguidas aproxima o olhar do leitor para uma
miragem. Com esse suposto adentramento na intimidade estrutural da ficção,
fica ao leitor o sentimento de onipotência, que não passa de ação performática
do narrador, pois o que se impõe diante dos olhos é apenas a sensação de
conhecer os meandros construtores da narrativa. Esse ilusionismo se verifica,
principalmente, nos últimos textos ficcionais: O falso mentiroso e em alguns
contos de Histórias mal contadas.
Silviano Santiago apresenta uma diversidade muito interessante em
relação às formas de simulação. Num jogo de aproximação e distanciamento do
objeto, os jogos de simulação são manipulados ora com muita discrição, ora aos
olhos do leitor, como forma de sedução, podendo implicar, não raramente, uma
forte ilusão de ótica com relação ao que se mostra tão evidente, como em um
jogo de falsas pistas.
176
As formas de simulacro que aparecem nos textos de Silviano Santiago
estudados nesta tese seguem uma gradação que se articula com a posição
assumida pelo narrador em relação ao objeto narrado: as narrativas mais
próximas das tradicionais em relação ao aspecto citado (De cócoras, Keith Jarret e
Uma história de família) têm um jogo de simulação que ainda pode ser
considerado próximo ao da tradição no sentido de haver preservação da
verossimilhança e o olhar sobre a realidade construída ser mais distanciado.
Em outras narrativas, como Em liberdade e alguns contos de Histórias
mal contadas, apesar de aparentemente o relato se justapor à construção de
simulacros das obras citadas como mais tradicionais, o jogo que se estabelece no
plano externo à narração revela a encenação de que o autor se valeu para
composição da obra. Nesse caso, objeto narrado e escrita do narrado transitam
paralelamente, entretanto, encontram-se para composição de um jogo de
simular em que representação e representado são postos em xeque.
No caso de O falso mentiroso e outros contos de Histórias mal contadas,
o olhar do narrador sobre o objeto está longe do distanciamento de textos como
De cócoras, por exemplo. Essa proximidade causa embaçamento na capacidade
de discernir as fronteiras entre forma e fundo, e o exposto é muito mais a
capacidade de representar do que a narração. O jogo performático da arte de
representar é levado à exaustão nestes textos.
Silviano Santiago não é um escritor comum, esta é a conclusão a que
chego, depois deste percurso, na tentativa de também entender as críticas que
se dirigem a sua obra ficcional. Subjetividades diversas emergem no território
177
de sua construção, como a de crítico literário, professor, crítico de cinema. Isto
não significa, entretanto, que a literatura do autor esteja “fora dos padrões”;
significa reconhecer que ao leitor desavisado cabe a advertência de que um
painel multifacetado o espera.
178
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Silviano Santiago está presente em minha vida acadêmica há
quatorze anos, desde os tempos da Graduação em Letras, na UERJ de São
Gonçalo. Naquela ocasião, o Professor Dr. Armando Gens, em seu curso sobre
Regionalismo na Literatura Brasileira, indicou a leitura do romance então
recém-publicado Uma história de família.
Para fazer o trabalho de final de curso, liguei para o Professor
Silviano Santiago e pedi que me concedesse uma entrevista. Muito solícito,
Silviano me recebeu na Universidade Federal Fluminense e parte desta
entrevista foi transcrita aqui.
Em 1995, quando fui morar em Rondônia, um livro do Silviano
Santiago foi leitura recomendada para o vestibular: Stella Manhattan. Como
havia dificuldade de divulgação de algumas editoras na cidade, consegui um
contato, por meio do próprio autor, para a distribuição dos livros na cidade de
Porto Velho – RO.
No ano 2000, já de volta ao Rio de Janeiro, cursando o Mestrado na
UFRJ, fiz um curso de conto contemporâneo e resolvi trabalhar, na monografia,
com os contos de O banquete e Keith Jarret no Blue Note. Como a obra O banquete
estava esgotada, pedi ajuda mais uma vez ao Silviano, que me deu um
exemplar.
Hoje, no fim do Doutorado, pedi a ele que me concedesse mais uma
entrevista. E ele, prontamente, se dispôs a fazê-lo. Mais uma vez, deu uma aula
sobre Literatura e Crítica Literária. A entrevista que segue contempla perguntas
feitas agora em 2008.
189
Entrevista com Silviano Santiago
1. Silviano Santiago é um nome que remete a um ser plural: professor, crítico, ficcionista. De que forma essa pluralidade interfere (ou não interfere) na sua escrita de ficção? E que face desse sujeito múltiplo mais se revela hoje? Para o escritor, todas as formas de saber e de conhecimento são bem-vindas e benéficas. Por definição, a literatura – tanto a reflexão teórica e a docência, quanto a prática crítica e a criação – é predisposta à multidisciplinaridade, já que o que esteve e está em questão é a condição humana, e não determinado conhecimento disciplinar (no sentimento universitário da palavra) sobre esse ou aquele aspecto da vida social, política, econômica, etc., do ser humano em certa nação ou continente. Mais do que um conhecimento (knowledge, para usar a terminologia anglo-saxã), a literatura é portadora de uma sabedoria (wisdom, idem). Seu compromisso fundador – pelo menos nos países do Ocidente – se deu no momento histórico da expansão da tradição filosófica e literária greco-latina. Portanto, aproximações recentes da literatura às disciplinas das chamadas ciências sociais apenas empobrecem seu escopo. Há que tomar cuidado com o verbo empobrecer. Tome, por exemplo, o caso da medicina, muitas vezes o empobrecimento no plano da totalização do conhecimento médico, de que é exemplo o médico generalista, pode redundar num aprofundamento do conhecimento particular, de que é exemplo o médico especialista. Muitas das formas modernas de literatura, ou de crítica literária, repousam no aprofundamento de questões sobre a condição humana que se passam no plano das reivindicações de cunho particular, ou seja, social, político e econômico. Um romance como Vidas Secas, de Graciliano Ramos ou uma coleção de poemas como A rosa do povo, de Carlos Drummond, apesar de mais especializados disciplinarmente, não são menos ambiciosos do que Memórias póstumas de Brás Cubas e Libertinagem, de Manuel Bandeira. Faço a comparação para acrescentar que chega um determinado momento da avaliação da obra de arte em que o que conta é a genialidade do escritor. Todas as demais teorias bem intencionadas caem por terra. Falando em particular do romance – um gênero desprovido de poéticas, como dizem os anglo-saxões, um gênero lawless, sem lei, bandido – tudo é permitido e graças a Deus. O progresso do gênero se dá pela transgressão às regras estabelecidas. O Guarani, Memórias sentimentais de João Miramar e Grande Sertão: Veredas são bem ou totalmente diferentes e, no entanto... Estabelecido esse patamar mínimo para a resposta, acrescento que me sinto muito bem sendo polivalente. E tive a sorte de poder ambicionar a polivalência no momento em que a literatura é julgada como produção de discursos, e não mera expressão em um único gênero da personalidade do autor. Tenho uma boa formação em literatura – isto é, minha curiosidade intelectual foi devidamente satisfeita por determinado conhecimento, determinada erudição −, e o que faço é eleger um dos discursos literários que estão à minha disposição
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para expressar-me artisticamente do modo que julgo mais conveniente, habilidoso, agradável e convincente. O discurso reflexivo, por exemplo, requer que o aparato teórico-metodológico adquirido ampare a paciente análise textual a ser feita. O problema é saber se me julgo competente para enfrentar aparato e análise, e movimentá-los com palavras na folha de papel em branco. A experiência didática deu-me a segurança indispensável para tal tarefa. Ela veio de sucessivos experimentos com estudantes em sala de aula. Por outro lado, o exercício do discurso ficcional/poético proporcionou-me um saber que é o de padeiro, ou seja, de quem “já pôs a mão na massa”. Sinto-me, pois, apto a produzir um ensaio. Se dedicar a ele o tempo indispensável à boa realização, publico-o como tal. Não terei vergonha, mais tarde, em juntá-lo a outros e reuni-los em livro, é o caso recente de O cosmopolitismo do pobre. Ponhamos que tenha elegido o discurso ficcional. Minhas leituras da ficção e da teoria poética no período de formação e as demais feitas no período de exercício da profissão como professor universitário me dão a garantia de ter certo domínio da matéria. Logo depois dos anos 1976, abandonei a análise de romances, contos e poemas, e comecei a trabalhar nos cursos da PUC autobiografias, memórias e correspondência literária – o que se chamou a literatura do eu, recentemente recoberta pelo neologismo autoficção (autobiografia ficcionalizada, ficção autobiográfica). Se quisesse escrever algo nesses gêneros, não me sentiria um escritor espontâneo a pôr em ordem na folha de papel os fatos da vida vivida. Estaria menos próximo de Meus verdes anos, de José Lins do Rego, e mais próximo de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Este se transforma, por assim dizer, em modelo, com tudo o que a palavra contém de positivo (emulação) e de negativo (filiação), que se traduz afinal pela expressão vitoriosa de “a ansiedade da influência” (Harold Bloom). Por outro lado, não posso deixar de viver o momento que vivo. Naquela mesma época, informava-me e me enriquecia com o knowledge, que me chegava através da leitura sobre a realidade sócio-política e econômica do Brasil e da América Latina. Bem lá no fundo da formação, havia a tese sobre André Gide e um paradoxo. Não era ele que dizia que somos mais sinceros quando fazemos ficção do que ao escrever autobiografia? Pois é, misturemos tudo isso numa coqueteleira e teremos o drinque que idealizei, pesquisei e produzi, intitulado Em liberdade, uma ficção. Ainda nessa linha, mas já no novo milênio, senti-me à vontade para aceitar a encomenda da Bem-te-vi e organizar a correspondência de Carlos Drummond & Mário de Andrade. Os laços se atam e se desatam e se reatam. Veja você, por uma questão estratégica posso dedicar-me um ano ou mais a tal ou a tal outro discurso, mas isso não significa preferência. Significa, antes, as contingências da soma de tempo e dinheiro. Um se perde e o outro se ganha. Isso se chama sobrevivência. 2. Com uma vasta publicação ficcional e crítica, já poderíamos pensar em ousar a pergunta: qual é a sua grande obra? Por quê?
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Pelo rabicho da resposta anterior, você já viu que, em matéria de preferência, sou a favor da obra mais próxima. Por motivos que não vêm ao caso aqui, desde os doze anos de idade fui jogado contra os muros da vida prática. Sobrevivo, trabalhando. Não consigo ser saudosista (ou de maneira brutal: não tenho tempo nem dinheiro para ser saudosista). Tenho memória razoável e com constância revisito o passado. Não tenho prazer em viver no passado nem em revivê-lo no presente. Sigo ao pé da letra a “errata pensante”, de que falou Machado de Assis num de seus romances: “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. Uma tradução aproximada da metáfora machadiana se encontra no livro de poemas Cheiro forte, e a versão irônica correspondente em De cócoras. No momento, minha grande obra é Heranças, romance que será publicado daqui a dois ou três meses pela Editora Rocco. Aguardo sua leitura. 3. Seus textos ficcionais apresentam, especificamente os dois últimos, narradores que se constituem muito mais como antinarradores, dada a reflexão que tecem acerca do processo de criação. Duas perguntas: o que é narrar para você hoje? E o que motiva esse processo de avanço e recuo na narração, muitas vezes até desfazendo o que foi construído: é uma tendência da literatura contemporânea ou é um processo do escritor Silviano? Respeito sua observação, mas não sei se os chamaria de antinarradores. Em termos de narratividade, performam a ação de maneira semelhante a dos narradores que conhecemos tradicionalmente na ficção ocidental. O romance é narrado de fio a pavio. Tem começo, meio e fim. Os contos são também narrados na integridade da proposta de cada um. O que choca num caso e no outro é o título de cada uma das obras, dicas de novas poéticas da ficção. O falso mentiroso e Histórias mal contadas, respectivamente. O narrador do primeiro deles perdeu a certeza sobre a própria verdade. Ele constrói ficções dentro da ficção. Estamos acostumados a narradores que têm absoluta certeza sobre o episódio que narram. Quando o escritor (e não mais o narrador) quer passar ao leitor a incerteza do que lhe foi dito pelo narrador X, cria um segundo, terceiro, quarto... narradores. É o caso clássico do filme japonês Rashomon, de Akira Kurosawa, onde temos várias versões para o estupro duma mulher e o possível assassinato do marido. A mesma estória é narrada de quatro ou cinco pontos de vista diferentes, levando o espectador cauto ou incauto a optar por uma das versões ou se naufragar nelas. É o caso ainda de alguns romances de William Faulkner, entre eles e mais sintomaticamente The sound and the fury. O narrador de O falso mentiroso não delega a outro narrador o desmentido da própria palavra. Ele só não tem absoluta certeza sobre a veracidade, por exemplo, duma versão sobre o episódio de seu nascimento (sobre sua filiação, em suma). Em lugar de questioná-la, inventando/propondo um segundo narrador, prefere “inventar” (no sentido de: partir para) uma segunda versão, uma terceira versão. A ficção
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em estado larvar. Não é o que acontece no trabalho de análise? O trabalho feito por mim é diferente do que acontece no romance de Alain Robbe-Grillet, La jalousie, por exemplo, onde é a lembrança (a memória) do narrador que se julga incapaz de reproduzir exatamente o que aconteceu – veja-se o episódio clássico da centopéia que é esmagada contra a parede. É através do lento trabalho do leitor que se pode chegar a uma decifração (precária, talvez) do episódio A decifração é feita pela justaposição – agora, pela memória do leitor – das diferenças na repetição do episódio. As versões que se repetem do episódio não são idênticas. Não é a soma das semelhanças que traz ao leitor a verdade sobre o esmagamento, mas antes a soma das diferenças – se é que se podem somar diferenças. Como não se podem somar as diferenças, a verdade é um buraco na narrativa. Ao leitor é oferecida uma lacuna. A literatura do nada (néant), de que tanto se falou. Minha experiência talvez esteja mais próxima do narrador ficcional beckettiano. Se você resolver o enigma proposto, te dou um doce. Em O falso mentiroso o leitor pouco pode fazer para ajudar/aconselhar o narrador. Por mais que ele tente justapor/compor as várias versões expressas pelo narrador fica sempre o gosto de cada versão não lhe ter sido bem contada. Não adianta, portanto, reuni-las, analisá-las em conjunto, nas semelhanças ou nas diferenças. Não há buraco, não há lacuna a ser oferecida ao leitor. O mal contado é a essência (se me permite o palavrão) da literatura ficcional. Já aí passamos para os narradores dos vários contos de Histórias mal contadas. O buraco é mais embaixo, se me permite agora a expressão grosseira, mas feliz. O problema da narratividade (e do narrador) em literatura ficcional é mais complicado do que apresentava o narrador do citado romance. Todas as estórias são mal contadas. Caso não o fossem, seriam chatíssimas e, por isso, deixariam de ser ficção. A graça duma estória está no fato de ser mal contada, competindo ao leitor dar-lhe o significado que lhe escapa. Tradicionalmente – e falo da crítica literária antes do advento da psicanálise – os grandes críticos, aqueles que se destacaram para a posteridade, agiam dessa forma sem terem consciência do que faziam. Em termos analíticos, quero dizer que toda estória literária (e talvez toda narrativa subjetiva, independente do esforço de torná-la artística) parece dizer mais do que aparentemente está dizendo. Isso porque existe um significado latente que é mais poderoso semanticamente do que o significado manifesto. Dou o exemplo mais contundente. Freud ao descobrir que Hamlet era uma história mal contada conseguiu extrair da peça shakesperiana o compromisso da trama com o complexo de Édipo. Sem que o soubéssemos cientificamente, o complexo já estava latente na arte dramática desde a Grécia e o período elisabetano. Depois dessas palavras, talvez se evidencie de maneira mais clara a razão pela qual não me agrada a qualificação de antinarradores para os meus últimos livros de ficção. Deixo claro, no entanto, que não sei o que você entende por antinarrador. Faço-lhe a pergunta.
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4. O senhor assistiu ao documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho? Sua obra também faz, em alguns casos, esse jogo entre o real e o ficcional. Em sua opinião, isso é uma tendência da arte em geral? Não consigo comparar o trabalho ficcional que faço com o trabalho que os documentaristas brasileiros (ou não) realizam. Partimos de premissas muito diferentes – opostas, talvez − sobre o estatuto da realidade e do real em arte. Estamos mais para o acirrado do jogo entre times diferentes, do que para o empate de dois a dois, ou zero a zero. 5. Acredito ser De cócoras sua narrativa de maior nuance lírica, assim como os contos “Ed e Tom”, “O verão e as rosas”, entre outros. O senhor teme sentimentalismos em seus textos? (Que fique claro que não acho piegas nenhum dos textos citados. Ao contrário, eles têm forte aprofundamento lírico e são todos muito bem construídos nesse sentido. A pergunta vem apenas da curiosidade do porquê de não haver muitos textos assim hoje.) Acreditava que tinha dado a mais plena vazão a um narrador lírico em Keith Jarrett no Blue Note. Será que me engano? Meus livros de ficção anteriores eram muito compostos, trabalhados que tinham sido na cabeça e em sucessivos planejamentos e rascunhos antes de serem trabalhados anarquicamente pelo próprio trabalho de escrita (não há simetria perfeita entre forma imaginada e forma realizada − alerto − mesmo em romances como Em liberdade). No caso de Keith Jarrett deixei que o narrador fosse conduzido pelo andante da música popular norte-americana, sentimental por natureza, pelo improviso que representa o jazz e que o pianista Keith Jarrett representa dentro do improviso no jazz. A letra (the lyrics) da canção não contava, não tinha importância para cada narrador, até mesmo porque estava a escutar um disco instrumental. Contava apenas num importantíssimo detalhe. Falavam todas as letras do amor heterossexual, algo que é consensual na arte popular ou pop. Os contos seriam sobre o amor homossexual. Depois de livro tão trabalhado quanto Stella Manhattan, com personagens tão sofridos na busca da satisfação amorosa (para contraste, com o outro livro veja as inserções poéticas no primeiro capítulo, a ser catalogadas por No money, no fuck, no love), pensei em sublimar as questões propriamente práticas que envolvem o surgimento do amor, e deixá-las serem compensadas pela pobreza/riqueza do sentimento de solidão – dominante em todo o livro. A solidão é o ponto de vista que deixa a descoberto a plenitude da experiência amorosa – paradoxalmente? Qualquer coisa no gênero “esquecer para lembrar”, título de livro de Carlos Drummond. Experimentar o sexo, esquecê-lo para lembrá-lo como amor. O ponto alto da abstração musical do texto escrito está ao meio do livro, no conto “Bop be” (be bob de trás para diante). Se quisesse trabalhar a letra das canções, o narrador teria que evocá-las. Como se trata de canções muito conhecidas, verdadeiros hits internacionais, pode haver aqui e ali lembranças ocasionais de um ou outro verso. Mas o importante era dar continuidade em palavra ao mistério do improviso de Keith Jarrett
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(pensava também no “Concerto de Colônia”, dele também). O narrador lírico é, portanto, um narrador em total liberdade (pelo menos para mim), daí também o tom confessional da escrita (se pseudo ou verdadeiro, pouco importa). Certamente, esse é também o caso de De cócoras, onde deixo que meus temas clássicos sejam contaminados pela questão da experiência lírica na tela (o filme Gilda) e a espiritualidade anti-rilkiana (em especial os dois anjos ao final do romance). Minhas narrativas tendem a ser pão pão queijo queijo. Não é o caso do romance em questão e não é o caso do conto “O verão e as rosas” (em segredo, te digo que é uma homenagem a Clarice Lispector). Já o conto “Ed e Tom” escapa ao narrador lírico, pelo menos da maneira que acreditava estar concebendo-o. É um libelo a favor de colega meu, que teve a carreira cortada ainda nos anos 1960 (a não ser o episódio em si, todos os detalhes na caracterização dele foram modificados). Está vendo que nem sempre é bom dar a palavra ao autor. Não é a melhor palavra e muito menos a última. A palavra do autor é semelhante ao andaime, de que se valem os pedreiros para levantar um edifício de apartamentos. Habitado o edifício, qual é o morador que se lembra da importância dos andaimes? Quem se lembra do trabalho incansável e mal remunerado dos pedreiros? 6. São muitas as referências do cinema, da literatura, do teatro em sua obra. O senhor acha que um texto que se valha de tais recursos tende à erudição? Isso pode ser empecilho para o grupo que o mercado chama de “leitor comum”? Toda referência ou alusão é um entrave para o chamado leitor comum (se é que podemos juntar a vasta gama de leitores ingênuos, naïfs, debaixo da única etiqueta leitor comum). A solução para o problema não está em evitá-las. Está antes em torná-las palatáveis, isto é, assimiláveis como uma espécie de alusão a amigo ou a caso notoriamente conhecido, em conversa mole. Se não se pode deixar o leitor entrar na referência ou alusão, há que buscar uma maneira de deixá-lo pelo menos feliz (ou presunçoso) às margens do rio da narrativa. O mesmo problema existe na leitura do poema, como também na leitura do ensaio. No meu caso, quantas referências e alusões me escapam/escaparam ao ler os notáveis ensaios de Jacques Derrida, para ficar com um exemplo? Quantas referências e alusões me escaparam/escapam na leitura de As flores do mal, de Baudelaire, para citar outro exemplo? Apesar de me faltar erudição filosófica ou erudição poética, tenho a impressão de que chego a penetrá-los com relativa segurança. Aliás, acredito que nenhum leitor tem total segurança sobre o texto que lê. Por isso é que relemos os que julgamos notáveis. Há gradações na aproximação dos leitores ao texto, dos espectadores à peça de teatro, ao filme, às obras de artes plásticas. Cada um faz do texto lido o que pode. Às vezes alguém que acredita estar desencavando mistérios num romance está na verdade cada vez mais à flor da pele, a dizer sandices de bom
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sandeu. Ao passo que um crítico dito impressionista, como Augusto Meyer, flertando aqui e ali com a obra de Machado de Assis, acaba por enunciar verdadeiras pérolas, que até hoje nos encantam e nos enriquecem. Nesse particular, por que não refletir sobre o quinto capítulo de Esaú e Jacó, intitulado “Há contradições explicáveis”. Lá se lê: “Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção”. Desde que apresentada de maneira palatável, todo bom leitor engole a seco qualquer referência ou alusão. 7. A técnica do cinema – a montagem, a direção – encontra na sua obra paralelos estruturais. O senhor lança mão de estruturas muito diferentes de composição a cada texto. O senhor foi crítico de cinema, não foi? Esse recurso estrutural nos romances vem dessa experiência? Inicia-se lá no Centro de Estudos Cinematográficos (BH), sem dúvida, embora o gosto pela imagem tenha origem mais remota. Já mencionei em entrevistas o fato de que, na infância formiguense, tinha verdadeira loucura pelos gibis. Pelos gibis e pelo cinema que então nos chegava de Hollywood e tratava de temas relacionados à Segunda Grande Guerra (nasci em 1936), eduquei-me como cosmopolita numa cidade interiorana de menos de trinta mil habitantes. Esse tipo de experiência, de experiência da leitura no sentido semiológico do termo, foi trabalhado à exaustão nos poemas iniciais de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, que na verdade faz pendant com Em liberdade e, certamente, com os vários cursos sobre autobiografia e memorialismo que dei na PUC, para não mencionar o livrinho sobre Drummond, que saiu em 1976 na Vozes. O primeiro poema analisado no livrinho é sintomaticamente “Infância”, o segundo em Alguma poesia. Informado isso, acrescento que sempre me senti à vontade na cultura da imagem, tão à vontade quanto na cultura da palavra. Aliás, seria ridículo tentar separá-las em alguém que cresceu e se formou no século 20, o século por excelência da imagem. Como querer ser artista sem freqüentar as salas de cinema e os museus? Como diz ou dizia o mote da revista semanal, “veja e leia”. É claro que na cultura da imagem cinematográfica é de enorme importância a questão da montagem. Desde cedo, fui apaixonado por ela. Seja pela montagem por atração, cujo teórico maior foi o soviético Eisenstein (há exemplo flagrante dela no romance Uma história de família), seja pela montagem pelo plano-seqüência, cujo grande teórico foi André Bazin da revista Cahiers du cinéma. Tenho dificuldade em aceitar a montagem que se tornou standard nos clipes musicais, ou a montagem pelo recurso à sucessão de close-ups, de que é exemplo a telenovela (devo dizer que Kar Wai faz maravilhas com esta e me causa muita inveja). No entanto, a possível diversidade na composição de meus livros não advém de minha familiaridade com o cinema, ou com as artes plásticas, ou melhor, advém em parte. Advém, antes, de detalhe muito pessoal (quem sabe original) de minha personalidade criadora. Não gosto de repetir o feito. Não
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gosto de transformá-lo em receita. Para mim, cada obra é um experimento (a não ser confundido com o mero experimentalismo formal). Se por acaso reclamo para mim a condição de vanguardista é porque ponho fé nas graças, mistério e loucura do experimento, à semelhança do doutor Silvana, dos gibis, ou de algum cientista em sofisticado laboratório de pesquisa europeu ou norte-americano. Estou mais perto do doutor Jekyll, ao criar Mr. Hyde, do que da maioria dos nossos escritores que se apegam com unhas e dentes a uma fórmula de romance, ou a um estilo que julgam ser ultra pessoal. 8. A formatação de um gênero literário não encontra muita facilidade de adequação em seus textos: eles parecem constituir uma reelaboração do conceito de gêneros. Viagem ao México, por exemplo, promete-nos uma epopéia e transita por diário íntimo, ensaio, biografia e romance. O senhor pensa a arquitetura de um livro com o rigor que se mostra depois da realização? Tinha pressentido atrás a iminência dessa pergunta. A forma pensada, planejada, posta em rascunhos, não apresenta simetria perfeita com a forma realizada, embora muito daquela esteja nesta. Uma não existe sem a outra, é verdade (a não ser no caso muito especial de Keith Jarrett, onde a forma pensada não existiu, e existiu de maneira mais violenta a correção depois do texto já escrito). Por ser um experimentalista (veja a resposta anterior), não teria sentido que seguisse ao pé da letra as noções de gênero, tal qual expostas nas poéticas. Aliás, atrás também alertava para o fato de que o gênero que elegi com mais freqüência, o romance, é por falta de poéticas e por definição, lawless. Em meus experimentos, procuro levar até as últimas conseqüências esse aspecto do gênero. A tal intensidade levo o experimento, que Heranças, meu último romance, representa o fracasso. Tenta se enquadrar perfeitamente às regras do gênero. Quem vai acreditar? Criei um romance de personagens, com uma dicção realista. No mais, a pergunta está perfeitamente formulada. 9. De onde vem o conceito de auto-ficção de que o senhor fala ao se referir a sua obra? Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe − não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição. Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e de menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram
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confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo em público. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional. O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido – o auto-ficcional. Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo. Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico, no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala. Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe − e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional − verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso, narrava histórias mal contadas. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”. 10. Loucura é um tema que atravessa sua obra. Existe uma razão para isso?
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A razão está num poema de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina. Transcrevo-o: Loucura Eram muitos os loucos então: Em cada quintal, Correntes para o acesso. Em cada fundo de quintal, Uma sombra suja, entre árvores, Sombra adulta pastando, Armando arapuca De pegar passarinho. A família o protege E só não o esconde dos íntimos.
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