subúrbio, demônios e miséria: os três irmãos de dostoiévski
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Subúrbio, Demônios e Miséria: os três irmãos de Dostoiévski.
Ariel David Ferreira, Sebastião Rios
Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil
davidf.ariel@gmail.com, sebastiãorios@terra.com.br
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Sociedade, Fiódor Dostoiévski, Os irmãos karamázov.
1 INTRODUÇÃO
Fiódor Dostoiévski produziu seus romances na segunda metade do século XIX,
quando a Rússia se defrontava com complexas questões históricas de fundo
político, social e moral. O Ocidente capitalista escancarava a porta russa e
devassava a diversidade de mundos e grupos sociais que, de seu lado, não
afrouxaram o seu isolamento frente o processo de avanço gradual do capitalismo.
Neste contexto, a cultura russa palpitava efervescência. Nele, o romance, um
fruto da modernidade que se afasta paulatinamente de sua herança intelectual
clássica e medieval, vai se consolidando como a forma literária que mais reflete uma
inovadora reorientação individualista, ao invés de se conformar a práticas
tradicionais de se produzir literatura. Diferentemente da epopéia clássica e
renascentista, onde, por exemplo, os enredos se baseavam na história ou na fábula
e se avaliavam os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção
tradicional provinda dos modelos aceitos no gênero, o romance ao propor uma
fidelidade a experiência individual ganha a liberdade de fugir as classificações
precedentes.
As obras literárias de Fiódor Dostoiévski se enquadram nesse movimento de
ascensão do romance. Sua arte poética dialoga com o contexto histórico, cultural,
social e econômico da Rússia da metade do século XIX. Nela notamos a inovadora
característica de seu romance realista: a polifonia, exposta por Mikhail Bakhtin, onde
o herói apresenta competência ideológica e independência, sendo interpretado como
autor de sua própria concepção filosófica e plena independente da visão artística do
autor. Isto configura, nos termos de Goldmann (1990) a história do herói degradado,
demoníaco, o herói que é um louco ou um criminoso, um personagem problemático
na busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos em um mundo de
conformismo e convenção.
2 Objetivos
O presente trabalho tem como objetivo uma investigação de como Fiódor
Dostoiévski constrói a representação do contexto social na obra Os irmãos
Karamazov, subsidiariamente serão ainda consideradas as obras Crime e Castigo,
O Idiota, Noites Brancas e Memórias do Subsolo. Com esta investigação buscamos
entender as relações que o romance estabelece com o contexto histórico, social,
cultural e econômico da Rússia na segunda metade do século XIX, sob uma
perspectiva de Sociedade e Literatura. Mais especificamente este trabalho propõe-
se a relacionar sua poética a representações e noções de razão, religião subúrbio e
miséria nas obras selecionadas de Dostoiévski.
3 Considerações Teórico-metodológicas
Como arte ficcional e poética, o romance é capaz de compreender as
questões sócio-culturais por meio da representação e reconstrução de realidade que
ele propicia. Lembrando Engels, os romances de Balzac ter-lhe-iam ensinado mais,
“mesmo no que diz respeito aos pormenores econômicos, [...] do que todos os livros
de historiadores, economistas e estatísticos profissionais da época.”
(Engels,1974:197).
Segundo os estudos de Antônio Candido em Literatura e Sociedade (1976), o
significado e o valor de uma obra não dependem desta exprimir ou não certo
aspecto da realidade, constituindo este aspecto o que esta tem de essencial. A
perspectiva contrária, de que a matéria de uma obra seria secundária e que a sua
importância deriva das operações formais postas em jogo, tornando-a independente
de quaisquer condicionamentos, sobretudo sociais, considerando-os inoperantes
como elementos de compreensão, tampouco é satisfatória. Antes, a integridade da
obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas. A relação entre
literatura e sociedade só será bem entendida ao se fundir texto e contexto numa
interpretação dialéticamente íntegra onde o ponto de vista que explica pelos fatores
externos e o outro crente na convicção de que a estrutura é virtualmente
independente, se combinam como necessidades ao processo interpretativo
(Candido, 1976).
O elemento social neste trabalho é apresentado, então, não exteriormente,
como uma referencia que permite identificar na matéria do livro a expressão de certa
época ou de uma sociedade determinada, muito menos como um enquadramento
que situe nossas obras historicamente. Diferente disto, este é apresentado como
fator da própria construção artística, situado no nível explicativo e não no nível
ilustrativo. Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para
entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação causal.
Cabe-nos o cuidado de considerar para a análise da obra de Dostoiévski,
portanto os fatores sociais no seu papel de formadores da estrutura literária, sendo
eles tanto quanto os fatores psíquicos decisivos para a análise literária e que
pretender definir sem uns e outros a integridade estética da obra seria absurdo tanto
quanto em um exemplo exposto por Candido sobre As Aventuras do Barão de
Münchhausen compiladas por Rudolph Erich Raspe, ”... como só o barão de
Münchhausen conseguiu, arrancar-se de um atoleiro puxando para cima os próprios
cabelos.” (Candido, 1976, p.14).
Cabe também considerar o lugar do romance na sociedade moderna. O
romance como um filho da modernidade, requerendo uma visão de mundo centrada
nas relações sociais entre indivíduos, o que envolve secularização, afinal até o fim
do século XVIII o individuo não era aceito com um ser inteiramente autônomo, mas
como um elemento em um quadro cujo significado depende de pessoas divinas e
cujo modelo secular provém de instituições tradicionais como a Igreja e Monarquia.
O romance por Georg Lukács através de Ian Watt, é a epopéia de um mundo
esquecido por Deus. (Watt, 1990).
Neste contexto surge o romance degradado apresentado por Lukács, um
gênero literário no qual os valores autênticos, não se apresentam na obra sob a
forma de personagens conscientes ou de realidades concretas. Existindo estes
valores apenas em forma abstrata e conceitual na consciência do romancista, onde
se revestiriam de um caráter ético. (Goldmann, 1990).
A forma romanesca apresenta-se como a transposição para o plano literário
da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado.
Afinal segundo Goldman Lucienn a vida econômica se comporia de pessoas
orientadas exclusivamente para os valores de troca, valores degradados, aos quais
se somariam na produção de alguns indivíduos, os criadores em todos os domínios,
que conservam-se orientados, essencialmente, no sentido dos valores de uso e que,
por isso mesmo, situam-se à margem de uso e que, graças a isto, situam-se à
margem da sociedade e convertem-se em indivíduos problemáticos potencialmente
produtores de nossos heróis demoníacos, loucos. (Goldmann, 1990).
4 Metodologia
Este trabalho apresenta um caráter fundamentalmente teórico, e apóia-se nos
discursos históricos, sociológicos e culturais identificados a partir de análises dos
romances e contos polifônicos de Fiódor Dostoiévski. Constituindo-se o trabalho na
leitura das narrativas de Dostoievski e em fortunas críticas.
Para a análise das narrativas selecionadas de Dostoievski utilizamos como
base alguns avanços da teoria literária, neste ponto entram as obras selecionadas
de Goldmann Lucien, Antonio Candido, Ian Watt e Mikhail Bakhtin, em um estudo
capaz de conciliar as dimensões estéticas e sociológicas das narrativas
apresentadas.
Utilizando destes referenciais teóricos, firmamos a integração indissociável de
elementos subjetivos e objetivos, lembrando que a realidade social, que fornece ao
escritor o impulso para sua realização, não é a única responsável pelo aspecto
histórico e social da obra literária; também o autor o é, porquanto ele não vive
desligado ou desintegrado do seu contexto social, das suas heranças, do seu idioma
e da sua tradição literária e cultural (Salles, 1973: 32) sendo o conhecimento de
todos esses aspectos essencial na construção da análise literária.
5 Discussão
Ultimo romance de Dostoiévski, publicado pela primeira vez em 1880 na
Rússia Czarista, Os Irmãos Karamázov sintetiza vários momentos e aflições da vida
de Dostoiévski. A desgraça pontuada por Lukács vai bem longe neste e é bem fácil
percebê-la deste o inicio no livro, quando o autor pontua em seu prefácio que seu
personagem principal Alieksiêi Fiódorovitch, nada tem de grande e muito menos tem
de herói. Deixando ao leitor se lhe bem vier a calhar que este mesmo resolva esta
questão, pois o autor a muito se decidira por deixar algumas questões sem
resolução.
A primeira parte do romance inicia com a apresentação dos três irmãos sem
mãe, Alisksiêi ou Aliócha, Ivan e Mítia ou Dmitri Fiódorocitch e seus diversos motivos
para o retorno a casa amaldiçoada do e pelo pai Fiódor Pávlovitch. O encontro dos
quatro por sua vez determina o ápice da polifonia no romance, discursos sobre os
mais diversos temas saem das bocas de cada irmão e se enfrentam do inicio ao fim
do romance.
A miséria feudal do mesmo modo é presente em todo o livro. A esta miséria
Fiódor Pávlovitch entrega seus filhos, e se esta não fosse tão bondosa na face de
seus criados, que apesar de também miseráveis por graça de Pávlovitch cuidaram e
zelaram tanto quanto possível de quesitos básicos como alimentação na infância
dos três irmãos, os irmãos não existiriam até o fim da ficção. Ao se considerar o
modo de organização da casa russa fica obvia a miséria à criadagem, a casa ou
dvor era administrada com cunho autocrático pelo bolchak ou o cabeça que podia
desfrutar de autoridade total sobre todos da casa. No que se refere a miséria por
falta de dinheiro, este é um tema recorrente nos romances de Dostoievski. Segundo
Paulo Bezerra, tradutor de O Idiota, para o romancista, o dinheiro é um fator de
reformulação, desintegração e destruição do psiquismo humano. Bakhtin afirma em
Problemas da poética de Dostoievski que “quanto mais coisificada a personagem,
tanto mais acentuadamente se manifesta a fisionomia da sua linguagem”.
Personagem de O Idiota, Gánia com absolutos fins econômicos aparece como este
personagem coisificado com uma linguagem economicamente cifrada e um objetivo
“capital”.
Nada tão diferente se espera encontrar em um romance de um autor que
enfrentava o drama da problemática financeira todos os dias. Seus livros eram
produzidos por adiantamento, e graças a este por diversas vezes Dostoiévski fora
ameaçado por editores de perder o direito de autoria sobre seus livros se não
concluísse uma encomenda na data prevista, chegando Dostoievski graças a isto ao
recorde maldito de escrever um livro em um mês, O Jogador, a respeito de seu vício.
A noção suburbana de espaços, idéias e personagens são, ao lado da
miséria, tema recorrente em sua obra. Sua mais forte presença é todo um romance
dedicado a isto, o intitulado “Zapíski iz podpólia”, traduzido para o francês como
“Notes d’un souterrain”, em nossa língua,Notas do subterrâneo. Podpólia ou
“subsolo” é, entretanto, também termo que designa atividade clandestina e
subversiva, que a propósito muito ocorre nos romances. A prostituta Sônia de Crime
e Castigo, o quarto mofado de Noites Brancas, a mansão sombria de Rogójin em O
Idiota, o cubículo de Raskólnikov em Crime e Castigo, As crises epiléticas do
príncipe Míchkin em o Idiota e a fúria de Dmítri são alguns exemplos destes diversos
heróis e locais demoníacos, desgraçados, caracterizados por Lukács e Ian Watt, de
Dostoievski.
Para acabar com a miséria ou aliviá-la, na primeira parte do romance é
apresentado o discurso religioso de Aliócha e de seu ídolo religioso o stárietz
Zossima. O monge compreendia que para a “alma humilde do homem do povo
russo, exaurida pelo trabalho e pelo infortúnio e, principalmente, pela eterna injustiça
e pelo eterno pecado, tanto seu quanto do mundo, não havia necessidade e consolo
mais fortes do que encontrar um santuário ou um ou um santo e cair prosternado
diante dele”. (Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov, p.51 Volume 1).
Para a solução de sua condição de miséria o personagem principal de Crime
e Castigo propõe método mais agressivo, mas não menos justificável, Raskólnikov
mata por querer uma velha agiota e, sem querer, a filha desta e justifica o ato com
uma teoria do sacrifício necessário de pessoas insignificantes para o triunfo de
outras com maior importância histórica, algo sintetizado por seu amigo Razumíkhim,
cujo nome significa razão, como o absurdo direito ao crime, fugindo um pouco a
razão de seu amigo razão por Porfiri não tão perto da consciência de Raskólnikov “...
todos os indivíduos se dividiriam em “ordinários” e “extraordinários”. Os ordinários
devem viver na obediência e não têm o direito de infringir a lei porque eles, vejam
só, são ordinários, Já os extraordinários têm o direito de cometer toda a sorte de
crimes e infringir a lei de todas as maneiras precisamente porque são
extraordinários. “(Dostoievski, Crime e Castigo, p.268).
É de se reconhecer no trecho acima a vontade de se racionalizar uma a priori
irracionalidade e o movimento constante de enfrentamento na mesma obra de
irracionalidade e racionalidade apresentadas por Raskólnikov em seu minúsculo
divã. Pode-se somar o mesmo movimento, mas agora cômico em Memórias do
subsolo quando o personagem principal, segundo o mesmo um cara fraco e doente,
que acha que sofre do fígado, se questiona sobre tratar-se ou não. Tratar-se apesar
de ser supersticioso ao extremo, exceto quanto à medicina, conclui que se não se
trata é por raiva mesmo e afirma “Se me dói o fígado, que doa ainda mais”.
(Dostoievski, Memórias do subsolo, p.15). Tais confusões e críticas Dostoiévski
justifica numa carta à amiga, se colocando como um filho do século, filho da
descrença e da dúvida, sendo isto e este até o fim de seus dias.
Outro momento de suma importância é o conflito principal de Os irmãos
Karamazov, dado após o reencontro dos quatro. A disputa da mesma mulher entre
pai e filho e o conflito de direito de bolchak ou cabeça à hierarquia familiar.
No conflito, nota-se a guerra entre Dmítri e Fiódor e a tentativa de resolução
ou apaziguamento do conflito pelos outros dois irmãos, mas principalmente pelo
herói do romance Aliócha, que na primeira parte do romance tenta uma
reconciliação entre pai e filho frente à religiosidade na figura do Starietz Zossima. O
conflito se desenvolve com as diferentes estratégias entre pai e filho para a
conquista da amada Catierina Ivánovna, e é claro com a complexa posição desta na
escolha de um ou outro. Catierina Ivánovna representa bem a mulher desgraçada
dos romances de Dostoievski, a mulher que traz a perdição aos outros e que
também é sua própria perdição. Em O Idiota encontramos uma personagem muito
parecida com Catierina, Nastácia Filíppovna, que também é motivo de conflito, desta
vez entre o príncipe Míchkin, personagem principal do romance, e Rogójin. Esta é
capaz de danar o personagem principal, símbolo da perfeição, reconhecido como a
mescla de Cristo e Dom Quixote, entregando-o a loucura.
A crítica à razão apresentada por Dostoievski em Os Irmãos Karamazov
atinge novamente o ápice na aparição do demônio ao mais racional dos irmãos,
Ivan. Com fortes traços de niilismo - se Deus não existe tudo é permitido - ao notar o
demônio, que é representado de modo cômico, usando calças xadrez fora de moda,
este quase enlouquece. Ainda mais quando o “dito-cujo” parece mais racional que o
próprio Ivan ao afirmar sua existência com a frase célebre “Je pense donc je suis1”
de Voltaire e lhe atestando não saber sobre a existência de Deus e culpando a
ciência terrena pelo atual inferno no inferno,” Lá entre nós, todo mundo anda
perturbado atualmente, e tudo por causa das vossas ciências. Enquanto só havia os
átomos, os cinco sentidos, os quatro elementos, bem, naquele tempo tudo ainda
fazia algum sentido... Mas foi só chegar ao nosso conhecimento que aqui havíeis
descoberto a “molécula química”, e o “protoplasma”, e o diabo sabe o que mais, para
1 Traduzindo do francês para português “Penso logo existo”.
que metessem o rabo entre as pernas. Simplesmente começou a bagunça;...”
(Dostoiévski, Os irmãos Karamásov, p.832 volume 2).
Tal conflito entre pai e filho culmina por fim no assassinato do pai.
Assassinato que tem como principal suspeito o filho Dmítri, que movido por ódio teria
ferido também o criado Gregori, que lhe dera o que comer quanto Dmítri ainda era
uma criança. Tal tipo de tragédia, o crime, é tema recorrente nas obras de
Dostoievski: Raskolnikóv mata a velha agiota e sua filha, Rogójin assassina Nastácia
Filíppovna. Pontua Terry Eagleton, em um artigo intitulado The Grand Inquisitor, que
do inicio ao fim, em Os irmãos Karamázov o romance ofereceria, sobre um frágil
fundamento de narrativa, uma imensa, gigantesca e até descomunal superestrutura
de comentário social, meditação religiosa e ruminação filosófica.
Dostoievski apresenta no decorrer de sua obra um socialismo confuso. A este
respeito, cabe primeiro notar que ele se envolveu em movimentos políticos de
natureza socialista, que acarretaram na sua prisão em 23 de abril de 1849, sendo
após oito meses sentenciado à morte. Os crimes políticos tinham, então, na Rússia,
como pena a morte; diferentemente de assassinatos, o que justifica a prisão de
Raskolnikóv e não sua morte. Mas para a sorte de Dostoiévski, tudo não passou de
encenação e seu grupo foi perdoado e libertado pelo Czar, sendo somente
condenado a quatro anos de prisão num campo de trabalhos forçados na Sibéria.
(1988, Os realistas, retratos de oito romancistas) Desde Crime e Castigo,
Dostoievski comenta o socialismo. O que volta a ocorrer em Os irmãos Karamázov e
O idiota. Neste último, ele comenta o socialismo utópico de Thomas Morus, um
grande humanista inglês.
Pode parecer graças à contraposição entre o romance e a visão secular
provinda de instituições como a Igreja e a Monarquia, visão secular onde o indivíduo
não era concebido como um ser inteiramente autônomo, mas como um elemento
num quadro cujo significado depende de pessoas divinas, que o romance não possa
tratar de questões religiosas. Ao contrário, isto pode sim acontecer desde que,
sejam quais forem os objetivos do autor, seus recursos estarão restritos a
personagens e ações terrenas, devendo o reino do espírito só ser apresentado
através das experiências subjetivas das personagens (Watt, 1990). Dostoiévski
apresenta questões religiosas em seus romances. O autor era católico ortodoxo,
como a maior parte da população russa, apesar disto nunca tê-lo impedido de
criticar o papel desta enorme instituição, principalmente no que se refere a defesa do
estado e legitimação do Czarismo.
Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamázov apresentam como a Divina
Comédia de Dante, uma forte meditação sobre paraíso e inferno, graça e danação.
Em Os irmãos Karamázov, ao invés de Beatriz no céu, aguardando que seu herói
perpasse os diversos desafios para enfim alcança-la, a amada, Catierina, se
movimenta pelos diversos planos, céu, purgatório e inferno, aguardando o herói em
diversos momentos, locais e situações que simbolizam os diversos planos, ao ápice
da graça celeste e a supra danação infernal perpassando o herói a um dos
extremos, céu ou inferno, sempre pelo purgatório. A falha ao tentar conciliar pai e
filho na primeira parte do romance inicia a danação, anunciando a tragédia. Mas isso
por vez não significa a perca do objetivo de graça, o condenado Dmítri espera a todo
momento a salvação, como também a todo momento agressões ao pai. Em Crime e
Castigo o céu e o inferno desenvolve-se na salvação ao crime ou a danação da
captura de Raskolnikóv, envolto ao mesmo movimento a lucidez e a loucura do
personagem sobre a pressão da captura. Em O idiota dá-se o mesmo movimento
pela corrupção do tão puro que até chega a ser idiota, numa crítica de Dostoiévski
aos modos da alta sociedade intelectualizada russa, príncipe Míchkin. A corrupção é
gradual e não se deixa esquecer pela freqüência de suas crises epiléticas,
motivadas tanto pela amada Nastácia quanto pelo demônio também rival Rógojin.
Neste caso a Nastácia cabe a escolha dos dois caminhos, a pureza de Míchkin ou a
danação de Rogójin, restando ao fim do romance a corrupção do puro e um pouco
de graça ao impuro.
Dostoiévski propõe em Os Irmãos Karamázov em um episódio intitulado O
Grande Inquisidor uma enorme crítica a hierarquia da igreja católica. Este episódio
consiste no retorno de Jesus à Terra desta vez na cidade de Sevilha durante a
Inquisição Espanhola. Em meio a vários milagres chega-lhe um velho, O Grande
Inquisidor, já chegando aos seus 90 anos e ordena-lhe a prisão, com fins de
queimar-lhe vivo no dia seguinte como o mais vil dos hereges. Após prender o
Salvador este vai à cela onde Jesus está preso para explicar o porquê de tal
sentença. Daí em diante uma muito bem construída apologia do despotismo
religioso é apresentada como sátira desse tipo de autocracia. O velho ironicamente
lhe pergunta “És tu? Tu?” (Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, p.347 Volume 1),
acrescentando logo após isto “Não respondas, cala-te. Ademais, que poderias dizer?
Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito de acrescentar nada
ao que já tinhas dito.” (Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, p.347 Volume 1).
Com seu retorno, segundo o velho, Jesus atentaria a liberdade que tanto
defendera em sua primeira vez na terra, liberdade esta alcançada pela a Igreja no
direito que o salvador ter-lhes-ia atribuído. A igreja, portanto portaria a verdadeira
liberdade, fazendo da liberdade que o Salvador propõe algo até indesejável pelos
homens, tal noção de liberdade seria impossível. Melhor seria oferecer ao povo
aquilo por que o povo mais suplica o pão da terra, em vez de oferecer-lhe só o
etéreo pão da bem-aventurança eterna. Privais os homens do pão da terra e “o
espírito da Terra se levantará contra ti, combaterá contra ti e te vencerá...”
(Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, p.351 Volume 1). Os seres humanos seriam
fracos demais para carregarem o peso da liberdade, estes prefeririam rastejar a
sombra de um mestre benigno que lhe manteria vivo o corpo e o aliviaria da aflição
da escolha proporcionada pela liberdade. No fim, o grande inquisidor beija o rosto de
Jesus e lhe perdoa por seu retorno estúpido, condenando-o somente ao exílio.
O grande inquisidor, no final das contas, atesta o status do criador, afirmando-
o estúpido por retornar naquele momento. Exila-o após o perdão convencido a
ignorância do condenado. Ao colocar a grande figura da Igreja como possível atéia
Dostoievski afirma a redenção de seus condenados. Em Crime e Castigo,
Raskolnikóv em trabalho forçado se redime à ajuda de sua amada e a Bíblia, e até
mesmo o príncipe Míchkin parece descansar em paz após a loucura. Torna-se
possível em Dostoiévski aos desgraçados a sua própria moda, melhor entenderem
Deus que toda a instituição religiosa.
6 Considerações Finais
Tendo como objetivo apresentar uma interpretação de Dostoiévski da Rússia
do século XIX em suas narrativas selecionadas, buscando relacionar a poética da
narração de Dostoiévski a discursos históricos, sociológicos e culturais este trabalho
foi realizado.
Pressupor a necessidade em um trabalho sobre o tema Literatura e
Sociedade de se valorizar na análise tanto a narrativa em si quanto a representação
social que esta apresenta mostrando que ficção e realidade estão muito próximas,
sendo a primeira mais uma forma de se captar a segunda, propondo junto à poética,
idéias do próprio autor, no caso graças ao caráter polifônico muito mais as
concepções de seus personagens, afirmando a crítica fundamentada destes
personagens ao invés de simples imaginação ou alienação do autor, tornaram este
trabalho possível.
Dostoiévski nos aparece, portanto não somente um grande escritor de
romances. Suas obras foram estudadas e serviram de matéria para outros grandes
teóricos, como Sigmund Freud e Nietzsche. Dostoiévski e seus personagens se
apresentam como grandes intérpretes dos temas de fundamental importância para
seu período e até mais para os períodos que se seguem.
Referências Bibliografias
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