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Curitiba,Vol.5,nº8,jan.-jun.2017ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

QUELUZ,R.P.UmaParódiaMusical... 237

UMAPARÓDIAMUSICAL:THESOUNDOFHAMLET,deMYA

GOSLING

AMUSICALPARODY:THESOUNDOFHAMLET,BYMYAGOSLING

RebecaPinheiroQueluz1

RESUMO: Este artigo pretende analisar The Sound of Hamlet, uma paródia em quadrinhoselaboradaporMyaGoslingapartirdatragédiashakespearianaHamletedofilmeTheSoundofMusic, dirigido por RobertWise. Nessa perspectiva, usaremos como base a reflexão de LindaHutcheonsobreparódia.Observaremoscomo,deformahumoradaeirônica,acartunistainsereas canções de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II em pontos-chave da narrativa,acrescentandoasuainterpretaçãosobreasobraseatualizandoosdoistextos.Palavras-chave:paródiashakespeariana;quadrinhos;TheSoundofMusic.ABSTRACT:ThisarticleaimstoanalyzeTheSoundofHamlet,acomicstripparodywrittenbyMyaGoslingofShakespeare’stragedyHamletandRobertWise’sfilmTheSoundofMusic.FromthisperspectivewewilluseLindaHutcheon’sreflectiononparodyasatheoreticalground.Wewillobservehowthecartoonistinserts, inahumorousway,thesongsofRichardRodgersandOscar Hammerstein II into key points of the narrative, adding her interpretation about theworksandupdatingthetwotexts.Keywords:Shakespeareanparody;comics;TheSoundofMusic.

INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo apresentar e discutir uma história em

quadrinhos criada porMyaGosling, uma jovem cartunista que até pouco tempo

trabalhavacomobibliotecárianaUniversityofMichiganGraduateLibrary.Hoje,ela

___________________________1DoutorandaemLetras,UFPR.

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sededicaintegralmenteaosseus“stickfigureShakespearecomics”2,graçasaum

sistemadepatronagem—emqueGoslingseapresentaparaopúblicoesolicitao

patrocíniomensalparaoseutrabalho—edavendadeprodutos(comopôsteres,

camisetas,quadrinhoseadesivos)relacionadosaosseuscomics.

Inicialmente,GoslingpublicouseutrabalhonoFacebookpara,depois,criar

um blog específico para seus webcomics, denominado Good Tickle Brain. Esse

título,comonosinformaaprópriaautora,éuminsultoshakespearianopresente

nafaladeFalstaff(HenriqueV,ato2,cena4):“—Peace,goodpint-pot.Peace,good

tickle-brain!”.Noblog,predominamquadrinhosquetematizamaspeçasdobardo

inglês, mas também há espaço para miscelânea. As atualizações, nessas e em

outrasredessociais(comoInstagrameTwitter),ocorrempelomenosduasvezes

nasemana,àsterças-feiraseàsquintas-feiras.

AseçãointituladaThree-panelplayséamaisdifundidapelainternetefoio

trabalho que gerou o reconhecimento de Mya Gosling. Brincando com o

pressupostodequeaspessoasnãotêmtempo3paraleraspeçasdeShakespeare,a

cartunistaresolveuresumi-lasemtirasdetrêsquadros,comosepodeobservarna

figura1.

Figura1:Hamletem3quadros.Fonte: <http://goodticklebrain.com/shakespeare-index/#/three-panel-plays/>. Acesso

em:03/03/2017.___________________________2Disponívelem:<http://goodticklebrain.com/about/>.Acessoem:02/03/2017.3NaspalavrasdeMyaGosling,“notimetoreadallofShakespeare’splays,butstillwanttoknowwhathappensinthem?I’vegotyoucovered”.

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Ao condensarHamlet, a autora destaca o tema da vingança proposto pelo

fantasmadopaideHamlete,também,aindecisãoeainaçãodoprotagonistaque

revela primeiro, pormeio de seus solilóquios, a sua intensa inclinação reflexiva

(alternandoentrea introspecçãoeofuror)e, finalmente,realizaatarefadaqual

foiincumbido.

SegundoBarbaraHeliodora,Hamleté

[...]definitivamente uma tragédia de vingança, gênero de característicasaltamente específicas, de modo senecano. O gênero tem, na dramaturgiaelisabetana, um grande número de exemplos, porém só em A TragédiaEspanhola,deThomasKyd,enopróprioHamletestarãopresentestodososseus aspectos, ou seja, o aparecimento de um fantasma pedindo vingança,umvingadorqueprotelacomhesitaçãoocumprimentodatarefaquelhefoiimposta,loucurafingidae/oureal,planejamentoprolongadoe,finalmente,aexecuçãodavingança.(HELIODORA,2004,p.137).

Apesar de não mencionar personagens como Laertes e Gertrudes, por

exemplo, no terceiro quadro, ao lado da cena em queHamlet assassina seu tio,

percebemosapresençadeseuscorposinerteseensanguentados.Serecordarmos

a segunda cena do quinto ato, emque ocorre umduelo entreHamlet e Laertes,

observaremos que o último, por sugestão de Cláudio, trapaceou ao utilizar uma

espadacompontaenvenenadadurantealuta.Hamletéferido,mastambémfereo

oponente, e ambosmorrem em decorrência do veneno. Gertrudes, por sua vez,

bebe, em honra a seu filho, de uma taça envenenada por Cláudio— que queria

garantiramortedeseusobrinho.

Pode-se deduzir, então, um comentário da cartunista sobre a violência

presente nessa tragédia sangrenta, na qual morreram, além dos personagens

acima citados,Hamlet pai (assassinado),Ofélia (suicídio), Polônio (assassinado),

Rosencrantz e Guildenstern (assassinados). Ainda, é importante notar como se

destacam as expressões faciais e corporais dos personagens, principalmente de

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Hamletque,alémdeapresentarexpressõessignificativas,utilizaumtrajenegro,

evidenciandoseulutoeasuamelancolia.Esseclimaemocionaldedepressãoem

queopríncipeseencontraénotadodesdeamortedoseupai,comoficaevidente

noprimeiromonólogoqueeleenuncia(ato1,cena2).

Asíntesedatragédiadinamarquesaétambémumcomentáriocríticoquea

cartunistafazsobreaobra.Afinal,considerandooconceitodeadaptaçãoproposto

porLindaHutcheon (2011),pode-seafirmarqueGosling realizaumato criativo

queoperaumprocessoespecíficodeleitura,interpretaçãoerecriaçãoapartirde

um trabalho anterior. É uma repetição com diferença, não uma réplica, um

compromisso intertextual como trabalhoadaptado.E,nessaobrapalimpséstica,

quantomaior a familiaridade do leitor com Shakespeare,maior será o proveito

dosquadrinhosdeGoodTickleBrain, presentes tantonessa seçãodas tiras com

trêsquadros,quantonasdemaisseções4.

Neste artigo, abordaremos sob a perspectiva da paródia uma história em

quadrinhosintituladaTheSoundofHamlet(algocomoOprínciperebeldeouOsom

___________________________4 EmGeneral Shakespeare, Gosling apresenta criações que têmalguma relação coma obra dobardo. Podemos citar as Selfies Shakespearianas(http://goodticklebrain.com/home/2013/11/11/shakespearean-selfies) e as AutocorreçõesShakespearianas (http://goodticklebrain.com/home/2014/9/21/shakespearean-autocorrects-part-1),ambasdivididasemseispartes.Naprimeiraseção,Goslingimaginaquetipodefotosospersonagensshakespearianospostariamnasredessociais,propondoatémesmohashtagsparaassituaçõeseapelidosparaospersonagens.Hamlet,porexemplo,vira“princeofden”eemsuaselfie aparece com a caveira de Yorick: “Pic of me and my old jester @DeadYorick#graveyardselfie #depressing #tagforlikes”. Já na segunda, a cartunista imagina as confusõesquetransparecemnasfalastrocadaspelospersonagensviaWhatsappapartirdoautocorretordo aplicativo. Usando o príncipe da Dinamarca mais uma vez como exemplo(http://goodticklebrain.com/home/2015/6/24/shakespearean-autocorrects-part-4), GoslingconcebeumacenaemqueHamletrecebeumamensagemdofantasmadopaiviaWhatsapp,naqual ele se identifica como “thy father’s sprout”. Em seguida, escreve: “SPIRIT. Thy father’sspirit”. Numa terceira mensagem, se justifica afirmando que “Sorry, it’s hard to type whileincorporeal”.Hamletperguntaoquesepassaeopairespondequequerqueofilhovingue“hisfoul and most unnatural burger”, ao que Hamlet indaga “burger?”. O pai, sem se dar conta,repete: “burgermost foul”e,depois, sinalizandoqueentendeuqueamensagemestavaerradaescreveemcaixaaltaapalavra“MURDER”eterminaxingandooautocorretor.

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de Hamlet— tradução da autora). Para tanto, dialogaremos com a perspectiva

teóricadapesquisadoracanadenseLindaHutcheonsobreparódia,apresentando

brevementeesseconceito.

1. PARÓDIA:UMAPERSPECTIVATEÓRICA

EmumaobrachamadaUmateoriadaparódia:ensinamentosdas formasde

arte do século XX, LindaHutcheon teoriza sobre esse gênero que foi descrito ao

mesmotempocomosintomaecomoferramentacríticadoepistemamodernista.

Ela defende que a paródia não é simplesmente parasitária e derivativa, uma

imitação ridicularizadora,mas umprocessode transferência e de reorganização

do passado que tende a desmistificar o “nome sacrossanto do autor” e a

dessacralizar a origem do texto (HUTCHEON, 1985, p. 16). É, a seu ver, um ato

críticodereavaliaçãoeacomodaçãoquecombinaelogioecensuraequeapresenta

umcaráterautorreflexivoeintertextual.

SegundoHutcheon(1985,p.17), “oqueénotávelnaparódiamodernaéo

seu âmbito intencional do irônico e jocoso ao desdenhoso ridicularizador. A

paródia é, pois, uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica,

nem sempre às custas do texto parodiado”. Ela é uma repetição com

distanciamento e consciência crítica, que sinaliza a diferença ao invés da

semelhança. É uma abordagem criativa e concomitantemente um produto da

tradição. Sendo assim, “não se trata de uma questão de imitação nostálgica de

modelospassados:éumaconfrontaçãoestilística,umarecodificaçãomodernaque

estabeleceadiferençanocoraçãodasemelhança” (p.19).Aparódiaseapropria

dasconvençõesdeumperíodoanteriorelhesconferenovossentidos.

Ainda,ateóricacanadenseseservedeumacitaçãodeThomasGreene(1982

apudHUTCHEON,1985,p.20)paradestacarque“todaaimitaçãocriativamistura

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a rejeição filial com o respeito, tal como toda a paródia presta a sua própria

homenagem oblíqua”. Entre os inúmeros exemplos que ela cita em seu texto,

encontram-sealgumasmençõesaparódiasshakespearianas.Aprimeiradelaséa

tragicomédia deTomStoppard,Rosencrantz e Guildenstern estãomortos (1966),

que explora o destino de duas personagens secundárias deHamlet a partir de

fragmentosdecenasdooriginal.Nassuaspalavras,nessapeçaexisteumatensão

entreotexto“queconhecemos(Hamlet)eoqueStoppardlhefaz.Semprequeum

acontecimentoédirectamentetiradodomodeloshakespeareano,Stoppardserve-

sedaspalavrasoriginais.Mas“transcontextualiza-as”atravésdaadiçãodecenas

queoBardonuncaconcebeu”(p.25).Paracontraporesseexemplo,fazmençãoa

Macbett de Eugène Ionesco em que, conforme Hutcheon, ocorre uma inversão

totaldadicçãoedovalormoraldaspersonagens.

SegundoMarinaBentoVeshagem,

Macbett é de 1972 e propõe o que parece, a princípio, uma paródia deMacbeth, peça deWilliam Shakespeare, de 1606. O dramaturgo adapta osnomesdospersonagenseconservaaestruturanarrativabásicadeMacbeth,masapresentaapeçaemumtomporvezessatírico.Achavedeleituraqueescolho, capaz de ver a diferença, de enxergar outras possibilidades alémdaquela do consenso, é a interpretação ‘Patafísica do texto’. (VESHAGEM,2016,p.664).

Hutcheon também cita a obra de Peter Blake, On the Balcony5 (1955), e

assinalaque:

[...] as quatro crianças sentadas seguram um postal ou reprodução de LeBalcon,deManet,umagravuradeRomeueJulieta,sugerindoafamosacenada varanda (também há uma flâmula de Verona noutra parte) e duasfotografiasdafamíliareal.Oclichédosamantesnavarandareecoanasduaspombas fora do pombal. Este tipo de complexidade faz da paródia umavariaçãosobreaquiloqueGarySaulMorson(1981,48-9)designaporuma“obralimite”outextoduplamentedecodificável,emboraestasobraspossam

___________________________5 Essa obra está no museu de arte moderna do Reino Unido, Tate: <http://www.tate.org.uk/art/artworks/blake-on-the-balcony-t00566>.Acessoem:17/03/2017.

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sermelhordescritascomosendopossuidorasdeumacodificaçãomúltipla,especialmente por que as convenções, bem como textos particulares, seencontramenvolvidoscomfrequência(HUTCHEON,1985,p.25).

Nessesentido,aparódiaservepararessacralizaroudessacralizarumaobra

ou um autor, ou seja, ressalta uma mudança, mas não uma submissão. Há,

portanto,nesseprocesso,umarelaçãoestruturale funcionalderevisãocrítica.A

paródia,navisãodeHutcheon, “podeserumacríticaséria,nãonecessariamente

aotextoparodiado;podeserumaalegreegenialzombariadeformascodificáveis.

O seu âmbito intencional vai da admiração respeitosa ao ridículo mordaz”

(HUTCHEON, 1985, p. 28). Seria, então, uma mescla de imitação, admiração e

escárnio. Ainda, a autora acentua o poder transformador da paródia por criar

novassínteseseapontaquesetratadeumaformadedialogiatextualnostermos

deBakhtin.NostermosdeGenette,Hutcheonpercebeaparódiacomoumarelação

estruturalou formalentre textosquese inter-relacionam,masmaisdoque isso,

buscam “parodiar outra obra (ou conjunto de convenções) e tanto um

reconhecimento dessa intenção como capacidade de encontrar e interpretar o

textodefundonasuarelaçãocomaparódia”(p.34).

Por fim, a teórica reitera a importância do leitor no processo de

reconhecimento do texto com o qual a paródia dialoga. Dito de outromodo: “o

processodecomunicaçãoécentralparaacompreensãodaparódia”,sendoassim,

“os textos só podem ser entendidos quando situados contra os cenários das

convenções de onde emergem e (...) os mesmos textos contribuem,

paradoxalmente,paraoscenáriosquedeterminamosseussentidos”(HUTCHEON,

1985,p.36).Nesteartigo,veremosaindacomootextodeMyaGoslingparodiaa

tragédia dinamarquesaHamlet e omusical Sound of Music criando uma síntese

dessasobrasapartirdoseupontodedistanciamentocrítico.

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2. LITERATURA,CINEMAEQUADRINHOS:THESOUNDOFHAMLET

TheSoundofHamletfoiumtrabalhodesenvolvidoporGosling,entre31de

março de 2015 e 14 demaio domesmo ano, para celebrar o aniversário de 50

anos da produção cinematográfica de The Sound of Music (A noviça rebelde, no

Brasil)dirigidaporRobertWise.OmusicalcontoucomJulieAndrewsnopapelda

noviça Maria e com o ator shakespeariano, Christopher Plummer, no papel do

capitãovonTrapp.

É válido lembrar que o consagradomusical norte-americanoThe Sound of

Music baseou-se no livro de memórias The Story of the Trapp Family Singers6

escritoporMariavonTrappeéumaadaptaçãodomusicalhomônimoqueestreou

na Broadway em 1959. Com o roteiro adaptado a partir do libreto do musical

escrito por Howard Lindsay e Russel Crouse, o filme vale-se das canções de

Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II. Nele, é apresentada a história da

aspiranteafreiraquesetornagovernantanacasadeumex-capitãodamarinha,

viúvo e com7 filhos. Sua chegada na casa dos von Trappmuda completamente

aquele lugar sem vida, sem carinho, sem amor, sem atenção e semmúsica. De

início, desafiado por Maria, o capitão se rende aos seus encantos e os dois se

apaixonamesecasamapósmuitasconfusões.

EssahistóriasedesenvolvenaÁustrianoiníciodaSegundaGuerraMundial

eculminanafugadafamíliavonTrappparaaSuíça,depoisdaanexaçãodopaís

pela Alemanha nazista (chamada de Anchluss, ocorrida em 1938), devido à

___________________________6 Segundo Roger Lerina, “A Noviça Rebelde é baseado no livroThe Story of the Trapp FamilySingers,emqueMariavonTrapp(1905—1987)contaahistóriadesuafamília,obrigadaafugirdaÁustriadepoisdaanexaçãodopaíspelaAlemanha,em1938,devidoàposturaantinazistadopatriarcaGeorgLudwigvonTrapp(1880—1947).Porcontadasdificuldadesfinanceirascomadepressãomundialde1930,osVonTrappcomeçaramacantarempúblicoparaganhardinheiro—oque lhes trouxe tambémfama,aindaqueoorgulhosooficialdamarinhaaustríaca ficasseconstrangidocomasituação”.Disponívelem:<https://goo.gl/JsBDKj>.Acessoem:03/03/2017.

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convocaçãodocapitãopelamarinhaalemã.Ao longodanarrativa,amúsica tem

um poder humanizador que confronta esse ambiente sombrio e militarista do

filme e é tida como o agente transformador do mundo em que vivem os

personagens. Canções como Do-Re-Mi, My Favorite Things, So Long, Farewell,

Maria,ClimbEveryMountaineSixteenGoingonSeventeensãolembradasatéhoje

porseudestaquenessapelícula.

Postoisso,naquadrinizaçãodeMyaGosling,atragédiadeHamletédividida

em 23 partes em que se distribuem as músicas do filme e os episódios que

ocorrem nos cinco atos da peça shakespeariana. Os temas abordados são os

mesmos da tragédia: assassinato, usurpação, vingança, loucura, inação, morte,

desejo. A linguagem utilizada pela cartunista é coloquial7, ainda que recupere

algumasdas falasmaisconhecidasdos leitores(como“Tobeornot tobe” [parte

10],“Gettheetoanunnery”[parte11],“Arat!Dead,foraducat”[parte13])eque

acrescentepronomesutilizadosnaspeçasdobardo(como thee, thou e thy). Isso

fazcomquehajaumaaproximaçãoentreopúblicoeaobraapresentada.

Alémdisso,Goslingrevisitaasduasobrascomumolharcontemporâneoe

insere o seu olhar crítico, por exemplo, em relação ao papel dasmulheres8 nas

sociedadespatriarcaiseconservadorasemqueviviam,aomesmotempoemque

___________________________7Na1ªparte,porexemplo,Hamlet,enojadocomoqueestáacontecendoaoseuredorexclama:“Yuck!”.Na2ªparte,Gertrudessedirigeaofilho:“Comeon,Hamlet,cheerup!”.Ofélia,naparte4,ironiza: “Thanks, dad. Thanks, Laertes. That was super helpful”. Disponível em: <http://goodticklebrain.com/home/2015/3/30/the-sound-of-hamlet-part-1>. Acesso em:06/03/2017.8Existeminúmerostrabalhosquepontuamopapeldasmulheres,sobretudodeOfélia,naspeçasdeShakespeare,taiscomo:“AmulherOfélia—umcontrasteentreonaturaleosocial”,deMeireLisboa Santos Gonçalves (http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/vertentes/v.%2019%20n.%202/Meire_Lisboa.pdf), “A imagem damulher emHamlet”, de Ana Maria da Silva Nunes e Algemira de Macedo Lima(http://www.sbpcnet.org.br/livro/62ra/resumos/resumos/2808.htm), “A condição da mulhernastragédiasshakesperianas:HamleteRomeueJulieta”(http://www.humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/files/2015/02/cASSIANA-CANASHIRO.pdf).

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propõeumasubversãodessesvaloresatravésdafaladepersonagenscomoOfélia

(figura2).

Figura2:TheSoundofHamlet,parte5.Fonte: <http://goodticklebrain.com/home/2015/4/1/the-sound-of-hamlet-part-2>.

Acessoem:18/03/2017.

Nesse episódio, que remete à terceira cena do primeiro ato deHamlet, a

Ofélia de Gosling se revolta porque já tem idade suficiente para tomar suas

própriasdecisões,semprecisardaopiniãodeseupaiedeseuirmão.Elasequeixa

de que está presa numa sociedade patriarcal emasculina e se pergunta se para

Hamlet ela é apenas uma mercadoria (commodity), ou se ele, de fato, a ama.

Tambémobjetaofatodeterquepermanecervirgem,ou,casonãopermaneça,ser

considerada apenas uma mercadoria danificada (damaged goods), e antecipa a

loucuraquetomarácontadelaantesdoseusuicídio(“Thismightdrivememad”).

Sua canção subvertea letraoriginal, “SixteenGoingonSeventeen”9, cantadapor

___________________________9 A letra dessa música está disponível em:<https://www.stlyrics.com/lyrics/thesoundofmusic/sixteengoingonseventeen.htm >. Acessoem28/03/2017.

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Rolf e Liesl, que afirmava que a filha mais velha do Capitão von Trapp,

despreparada,estavacomeçandoasetornarumamulherequepoderiaconfiarem

Rolfparaguiá-la,porserelehomemeumanomaisvelho.Jánomusical,sedetecta

certaironiaemrelaçãoàmúsica,dadoqueamaturidadedaspersonagensseopõe

àssuasfalas10.OsquadrinhosdeGoslingintensificamessaironiaereveemtantoo

papel deOfélia comoo de Liesl (comomulheres submissas, obedientes, doces e

ingênuas)apartirdaperspectivafeminista.

Outromomentomarcantedahistóriaemquadrinhosocorrequandoaparece

océlebremonólogoproferidoporHamlet:“Serounãoser”(ato3,cena1).Gosling

combinouosmomentosmaisesperadostantodomusicalcomodapeçaatravésda

canção“Do,Re,Mi”.Nomusical,MariaensinaàscriançasvonTrappasnotasda

escala maior e, por consequência, ensina-as a cantar. Nos quadrinhos, Hamlet

encontra crianças dinamarquesas que não foram previstas por Shakespeare e

“despeja”nelassuasangústiaseseusanseios(figura3).

___________________________10Apesarde afirmar ser ingênua, tímidae assustadadianteda atitudedoshomens, Liesl estámuitomaispreparadaparalidarcomasituaçãodecortejodoqueRolf.

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Figura3:TheSoundofHamlet,parte10.Fonte: <http://goodticklebrain.com/home/2015/4/13/the-sound-of-hamlet-part-6>.

Acessoem:18/03/2017.

Esseéuminstantefulcralnanarrativa,poisHamletestárefletindosobrea

legitimidademoraldosuicídioemummundoinsuportavelmentedoloroso.“Serou

não ser” é interpretado como “viver ou não viver”. Em seguida, pensa sobre as

consequênciasdasduasaçõesechegaacompararosonoàmorteeaosonho.O

problemaadvémdoqueocorredepoisdamorte,queé incerto.Taldiscursoune

muitosdos temasquepercorremapeça, comoa ideiado suicídio edamorte, a

dificuldade de conhecer a verdade num universo espiritualmente ambíguo e a

ligação entre pensamento e ação. Ao selecionar palavras para substituírem as

notas musicais Gosling resume os pontos-chave do monólogo: ser, vida, dor,

morte, dormir, sonhar, temer. Aomesmo tempo emque ela ameniza o discurso

(poisHamletseencontradiantedecrianças),abordaumtemasérioepesado.As

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expressõesfaciaisecorporaisdapersonagemreforçamatribulaçãoporquepassa

oprotagonista.

Além das características já citadas, podemos perceber outras

particularidades.Emdeterminadospontosdahistória,porexemplo,Goslingexpõe

Hamletcomoumadolescentemimadoereclamão(comonaparte3,queserefere

aoato1,cena2dooriginal).Emoutros,maisreflexivoesensato(comonaparte9,

em que fala sobre sua inação). Há, ainda, situações engraçadas nos quadrinhos,

como na primeira parte, em que os guardas estão com medo da aparição do

fantasmadeHamletpai,ounasegunda,emqueClaudiuscantaapartirdamelodia

de “Ordinary Couple” (num tom ameaçador) e revela seus planos políticos

enquantoHamlet faz caretas ao lado. Há tambémpersonagens cômicas, como o

caricatoPolônioeoscolegasdafaculdadedeHamlet,RosencrantzeGuildenstern.

Gosling também parece se referir a filmes como Todo mundo em pânico

(2000),deKeenenIvoryWayans,quedebochamdefilmesdeterror.Issoaparece

nosquadrinhos,porexemplo,quandoHorácio fala: “There’snosuch thingas...[a

ghost]” e “...I probably shouldn’t turn around, should I?” e o fantasma está logo

atrásdele.E,emseguida,elescantam“TheSoundofMusic”,queiniciaomusicale

quenãotemnadadotomdetensãodoiníciodeHamlet.

Além disso, é interessante a solução criada por Gosling ao desenhar o

fantasma com pontilhados, dando a impressão de que ele é transparente. A

quadrinistatambémfoi felizaosinalizaro inícioeofinaldascançõesatravésde

notasmusicais.Ainda,chamaaatençãoo fatodequeGoslingpressupõequeseu

leitor está familiarizado coma tragédiahamletiana, por exemplo,naparte9 em

que Hamlet assiste a um ator que entoa uma fala sobre Hécuba e o texto que

aparece no balão de fala é: “blah, blah, blah,Mobled Queen, blah, blah, Hecuba,

blah, blah”. Finalmente, destaca-se a última parte que através da música “My

favorite things” apresenta um resumo da peça. Uma a uma, cada personagem

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lembradasuaprópriamorteatéquenofimtodassejuntamnumcoroecantam:

“whenthedogbites,whenyour friends fuss,whenyou’re feelingsad,remember

thatyoucouldbedead,justlikeus,andthenyouwon’tfeelsobad”.Essaéatônica

geraldanarrativaconstruídaporGosling:ohumor,aironia,asubversãoeoriso

estãosemprepresentesenosfazemrepensarasobras.

3. CONSIDERAÇÕESFINAIS

Aobuscarumcontextonovoparaomusical,Goslingaproveitaasmelodias

que são asmesmas, todavia, altera as letras, introduzindo o enredo hamletiano.

Ela faz uma abordagem criativa/produtiva da tradição. Podemos recuperar as

palavrasdeStockhausenmencionadasporHutcheonparaexplicaraconcepçãode

Gosling, que parece querer “ouvirmaterialmusical familiar, antigo, performado

comnovosouvidos,penetrá-loetransformá-locomumaconsciênciamusicaldos

nossosdias”(STOCKHAUSEN,1980apudHUTCHEON,1985,p.19).

Nesse trabalho,elautilizacomo ferramentasohumorea ironiaparacriar

sua narrativa. Nota-se nesses quadrinhos um confronto entre o texto

shakespearianoeomusical,aomesmotempoemquesepercebenitidamenteum

distanciamento crítico entre os textos parodiados e a nova obra. Não há uma

intençãodedepreciarnenhumdostextoscomosquaisGoslingdialoga,esim,de

fazer uma crítica construtiva, uma interpretação, de apresentar um olhar da

artista sobre esses dois trabalhos. E o prazer obtido na leitura dessa paródia

advémdograudeempenhamentodoleitorno“vaievem”(bouncing)intertextual

entrecumplicidadeedistanciação”(HUTCHEON,1985,p.48).

Curitiba,Vol.5,nº8,jan.-jun.2017ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

QUELUZ,R.P.UmaParódiaMusical... 251

REFERÊNCIAS

GOSLING, Mya. Peace, Good Tickle Brain: an eclectic collection of mostly Shakespeare-relatedcomics and other miscellany. Disponível em: <http://goodticklebrain.com/>. Acesso em:02/03/2017._____.TheSoundofHamlet.Disponívelem:<http://goodticklebrain.com/home/2015/3/30/the-sound-of-hamlet-part-1>.Acessoem:06/03/2017.HELIODORA,Barbara.ReflexõesShakespearianas.ComilustraçõesdeHelenPotter;organizaçãodeCéliaArnsdeMirandaeLianadeCamargoLeão.RiodeJaneiro:Lacerda,2004.HUTCHEON, Linda.Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora daUFSC,2011._____.Umateoriadaparódia:ensinamentosdasformasdeartedoséculoXX.Trad.TeresaLouroPérez.Lisboa:Edições70,1985.THE SOUND OF MUSIC. Direção e Produção: Robert Wise. Intérpretes: Julie Andrews,Christopher Plummer, Richard Haydn, PeggyWood, Eleanor Parker. Roteiro: Ernest Lehman.Música:RichardRodgers eOscarHammerstein II. EstadosUnidos: 20thCentury Fox, 1965. 1DVD(174MIN),Color.VESHAGEM, Marina Bento. O absurdo em Eugène Ionesco: uma releitura a partir de suadramaturgia. Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Estudos de LiteraturaComparadaIIIdoEixoTemáticoEstudosdeLiteraturaComparadado4ºEncontrodaRedeSulLetras,promovidopeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasdaLinguagemnoCampusdaGrandeFlorianópolisdaUniversidadedoSuldeSantaCatarina(UNISUL)emPalhoça(SC).2016.Disponível em:<http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/eventos/sulletras/PDF/Marina-Veshagem.pdf>.Acessoem:17/03/2017.Recebidoem:20/03/2017Aceitoem:04/04/2017

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