universidade de lisboa faculdade de direito ......uma sociedade comercial por quotas, ao conteúdo...
Post on 01-Nov-2020
6 Views
Preview:
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO
Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais
A VINCULAÇÃO DAS SOCIEDADES A ATOS DOS SEUS SÓCIOS
Daniel Gonçalinho Rasteiro
Lisboa
2018
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais
A VINCULAÇÃO DAS SOCIEDADES A ATOS DOS SEUS SÓCIOS
Dissertação de Mestrado, apresentada à
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Direito – Ciências Jurídico
Empresariais, sob a orientação do Professor
Doutor JOSÉ FERREIRA GOMES.
Daniel Gonçalinho Rasteiro
Lisboa
2018
Resumo
O estudo desenvolvido, visa a obtenção do grau de mestre em Direito –
Ciências Jurídico Empresariais e centra-se na análise a um caso concreto.
O caso corresponde a uma situação, na qual dois sócios de uma sociedade por
quotas, aceitaram uma letra de câmbio, apresentando-se perante o sacador como
gerentes da sociedade, criando neste uma expectativa de que seria com a sociedade
que estaria a negociar. A questões colocam-se, quando se tem em conta que os
referidos sócios não exerciam funções de gerência, nem haviam recebido poderes
de representação pela sociedade para realizar um ato dessa natureza.
O objetivo geral do trabalho é que este corresponda a um processo de
investigação e aplicação de um conjunto de preceitos jurídicos aos problemas que
do caso decorrem, nomeadamente, sobre as questões de representação das
sociedades comerciais, a relação intraorgânica nas sociedades comerciais, o
exercício da vontade e dos direitos da pessoa coletiva, a relação da sociedade com
terceiros e principalmente, a vinculação da sociedade por atos praticados pelos seus
sócios, quando estes não possuam poderes de representação.
Versando este nosso estudo sobre um caso concreto, ultrapassa de certa
forma a classificação meramente teórica e analítica, para se situar num domínio
prático e que vise responder a problemas reais decorrentes do tráfego jurídico.
A organização do trabalho assenta, num primeiro plano, no enquadramento
do problema na ordem jurídica, seguida da aplicação de uma metodologia adequada
a responder às questões que se levantam, através do estudo do direito substantivo
e da sua aplicação ao caso.
A análise irá versar sobre a estrutura orgânica das sociedades comerciais,
mais concretamente, do papel do órgão administrativo na atividade da sociedade e
sobre a relação entre este e os sócios. Além disso o estudo versa, também, sobre o
instituto da representação voluntária em processo civil e comercial e de outras
teorias que nos pareceram úteis para a pesquisa na tentativa de responder às
perguntas que inicialmente se colocaram.
Palavras chave: Sociedades comerciais, representação orgânica, representação
voluntária, administrador de facto e procuração aparente.
Abstract
This study regards a mean to obtain a master's degree in Law - Business Law and
focuses on the analysis of a real court case that we encountered by means of our
professional activity.
This case corresponds to a situation in which two partners from a joint-stock
company, accepted a bill of exchange, presenting themselves to the drawer as
managers of the company, creating an expectation that it would be with the
company that he would be negotiating. The problem arises in view of the fact that
said partners did not have managerial functions, nor had they been given powers of
representation by the company to carry out such an act.
The general objective of the study is to establish na investigation process and
application of a set of legal precepts to the problems that arise from the case, namely,
questions regarding representation of commercial companies, the relationship
between the different internal structures of such companies, the exercise of the will
and the rights of the company, the relationship of the company with third parties
and especially the association of society to acts practiced by its members.
Thus, in dealing with a real case, the study goes beyond the mere theoretical and
analytical classification, to be established in a practical field and aimed at
responding to real problems arising from legal traffic.
The organization of this paper, is based on the legal framework of the problem,
followed by the application of an appropriate methodology to answer the questions
that arise, through the study of substantive law and its application to the case.
The analysis will cover the organic structure of commercial companies, more
specifically, the role of the administrative body in the activity of the company and
the relationship between the company and its members. In addition, the study is
also about the institute of voluntary representation in civil and commercial law, and
also about other theories that seemed useful to the research, in an attempt to answer
the questions that were initially posed.
Key words: Commercial companies, corporate representation, voluntary
representation, de facto director and apparent power of attorney.
ÍNDICE
Capítulo I – Enquadramento ................................................................................................................. 1
1. – Apresentação .................................................................................................................................. 1
2. – A realidade como «óculo da teoria» .................................................................................... 3
3. - O caso: o aceite de uma letra de câmbio em nome da sociedade, por dois
sócios .......................................................................................................................................................... 7
Capítulo II – Representação orgânica e vinculação da sociedade .................................... 11
4. – Introdução .................................................................................................................................... 11
5. – Os órgãos sociais e a representação orgânica. A importância da separação da
qualidade de sócio e de gerente ................................................................................................. 13
6. – A vinculação da sociedade por quotas. ........................................................................... 20
7. - O Administrador de facto. ...................................................................................................... 22
7.1. – Introdução. ......................................................................................................................... 22
7.2. - Critérios para a aplicação da fórmula..................................................................... 24
7.3. – A relevância da formula “de facto” para o caso em análise. ........................ 26
Capítulo III – A representação da sociedade pelos sócios. A representação
voluntária. ................................................................................................................................................... 35
8. – Introdução. ................................................................................................................................... 35
9. - A representação em face da ausência de procuratio. ................................................ 37
9.1. – O abuso de representação e a representação sem poderes. ....................... 39
10. - A representação aparente no Direito civil e comercial. ........................................ 41
10.2. – A representação aparente no ordenamento jurídico português. A
extensão do artigo 23º da Lei da Agência e a procuração institucional. ........... 53
Capítulo IV – Conclusões e breve proposta jure condendo. ................................................ 63
11. Conclusões ..................................................................................................................................... 63
12. Proposta juri condendo ............................................................................................................ 67
Bibliografia ................................................................................................................................................. 71
Jurisprudência Utilizada....................................................................................................................... 73
1
Capítulo I – Enquadramento
1. – Apresentação
O presente trabalho corresponde a dissertação de mestrado
profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais, com vista à obtenção do grau
de mestre em Direito, a apresentar e a defender na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa.
Arquitetámos a realização desta tese no momento em que, no âmbito da
nossa atividade profissional, nos deparámos com um litígio judicial, que corre
atualmente em instâncias de execução dos tribunais portugueses.
O desafio que configurou a análise e o trabalho desempenhado sobre o caso,
e a abundância de interrogações com as quais nos íamos deparando sempre que
estudávamos e refletíamos sobre o caso, levaram-nos a acreditar que os contornos
do mesmo teriam o potencial de representarem o objeto de um estudo académico
como este que. Foi com isso em mente, que decidimos partir novamente para análise
do litígio, mas desta vez de uma perspetiva académica e científica. É a essa análise,
que este ensaio corresponde.
Importa explicar qual a situação específica a que se reportam os factos em
causa, mesmo que por agora de uma forma simplificada, já que a apresentação dos
mesmos será realizada com mais detalhe a posteriori.
O thema decidendum da ação gira em torno da possibilidade de vinculação de
uma sociedade comercial por quotas, ao conteúdo de uma letra de câmbio 1.
1 Por letra de câmbio entende-se um documento constitutivo de um direito de crédito,
através do qual o sujeito que o emite, o sacador, dá uma ordem de pagamento de uma quantia pecuniária, o saque, a um devedor, o sacado. Essa ordem de pagamento, é realizada a favor de quem esteja na posse da letra, o tomador. O devedor/sacado, assume a obrigação de pagamento da quantia aposta no título através do aceite, expresso através da sua assinatura no rosto do título, tornando-se dessa forma aceitante da letra. Importa ter em mente estes conceitos, para ideal compreensão dos factos que serão enunciados adiante e que assumem um papel importante para o desenvolvimento desta dissertação.
2
As dúvidas e indefinições que fomos encontrando durante a análise e
interpretação dos factos, e a consequente eclosão do interesse académico nos
mesmos, estão ligadas a uma particularidade específica do caso.
Acontece que, neste caso verídico, foi dado como facto provado que as
assinaturas apostas no aceite na letra, em nome da sociedade por quotas, eram de
dois sócios desta sociedade. Até aqui, estes contornos não despoletam um interesse
excecional, ou pelo menos, um que justifique um trabalho de investigação.
Mas o sentimento é diferente, se se referir que, na altura em que esses sócios
apuseram a sua assinatura no rosto da letra, não exerciam qualquer cargo de
gerência na sociedade, não tendo sido nomeados por qualquer via prevista na lei,
nem lhes tendo sido atribuído, por parte da gerência, qualquer espécie de poder
representativo que lhes permitisse praticar atos cujos efeitos se reproduzissem na
esfera jurídica da sociedade. Não obstante, no momento em que assinavam a letra,
manifestaram expressamente ao sacador, que possuíam a qualidade de gerentes da
sociedade.
Ora, em virtude desta situação, interroga-se se a sociedade em causa estaria,
ou não, vinculada ao conteúdo dessa mesma letra, ou se os sócios, embora provado
que possuíam apenas essa qualidade, de sócios, e não de membros do órgão
administrativo da sociedade, podem, ainda assim, dispor de legítimos poderes de
representação da sociedade.
Nas circunstâncias em que nos encontrávamos anteriormente, de nós era
esperada uma exposição sobre os factos, que traduzisse um posicionamento final
face aos mesmos. Agora, no domínio da investigação académica, as respostas a estas
questões não podem, com certas exceções, ser apresentadas como soluções
absolutas. Não é esse o objetivo que perseguimos, nem queremos que se entenda
que é o que pretendemos estabelecer com o caminho analítico que formos trilhando.
Responder ao problema que do caso emana, pressupõe, neste contexto, um
estudo sobre uma multiplicidade de disciplinas, que considere diferentes institutos,
teorias e normas. Por esse ângulo, acreditamos que, de igual importância das
conclusões que se alcançarem, é o processo de estudo e de experimentação que lhes
3
antecede, e é nele que esperamos que se encontre parte significativa do valor deste
trabalho.
Um trabalho que deverá refletir, assim, um processo de investigação jurídico
analítico e refletivo, desencadeado por, e focado num caso com o qual, nas
circunstâncias que mencionámos, nos deparámos.
2. – A realidade como «óculo da teoria»
Importa, preliminarmente a encetarmos pelo caminho da análise de cariz
técnico-jurídica, perceber quais são as interrogações concretamente manifestadas
por este caso judicial e qual a relação do mesmo com o domínio no qual este estudo
é desenvolvido, o do Direito societário.
Presume-se que a decisão de utilizar um caso judicial verídico como ponto de
partida para um estudo desta natureza, seja algo incomum. Admitimos, conceder
um papel de destaque assinalável a um caso judicial, para que sirva de “bússola” e
orientação para uma análise com a complexidade característica um trabalho com a
essência de uma dissertação de mestrado, tanto pode ser interpretado como uma
decisão original, como estranha.
Aceita-se qualquer uma das leituras, mas não abandonamos a nossa
convicção da vantagem que é possuirmos um “suporte” verídico, que estimule e
sustenha uma análise a ser desenvolvida num plano teórico e abstrato,
especialmente tendo em conta o que se deve procurar com a realização deste estudo.
Para perceber porquê, é importante, primeiro, compreender quais são os
problemas derivados destes factos, quais as questões que irradiam do caso judicial
e qual a relação e utilidade das mesmas para o estudo a desenvolver.
Consubstanciando, há que perceber qual é o problema com o qual nos deparamos, e
ao qual será do nosso interesse dar resposta.
Ora, como enunciámos há pouco, o thema decidendum prendia-se com a
vinculação da sociedade ao conteúdo da letra. A questão é controversa, porque quem
apôs as suas assinaturas no espaço reservado para o aceite da letra, fê-lo agindo,
supostamente, em nome da sociedade, na qualidade de seu representante, sem que
seja evidente que essa posição jurídica seja correspondente à realidade.
4
No nosso entender, poder-se-á dividir a ordem de problemas que daqui
emergem, na forma de duas interrogações. São elas: tendo em conta os factos
apresentados, existe fundamento para considerar que os sócios que assinaram a letra
de câmbio, atuavam como legítimos representantes da sociedade? e: em virtude do
resultado alcançado, é possível concluir pela vinculação da sociedade às obrigações
decorrentes da letra?
Em termos simples, e sem querermos estar a iniciar uma abordagem técnica
ao problema, a resposta a estas interrogações terá que envolver uma análise, em
primeiro lugar, à natureza jurídica das sociedades comerciais, como entidades com
personalidade jurídica reconhecida, mas sem capacidade para praticarem atos da
mesma forma das pessoas singulares, por serem “pessoas fictícias”. Tendo isso em
conta, um tratamento dos institutos da representação orgânica e voluntária, como
formas de resolver a limitação associada à coletividade, no que ao exercício do
Direito diz respeito, será fulcral.
Com base nesta análise, prevemos ter elementos suficientes para apresentar
mais do que uma via de resolução, bem como para classificar e avaliar a validade e
relevância de cada uma delas para o problema do caso.
Se queremos resolver o problema da forma cientificamente precisa conotada
com um estudo deste género, é fundamental examinar as normas legais e institutos
jurídicos adequados, identificando contornos dos quais nos possamos servir para
compreender se, nas circunstâncias encontradas no caso em análise, os sócios que
apuseram a sua assinatura na letra, podem, de algum modo, estar, ou não, a
representar a sociedade, ou se é possível concluir pela vinculação da mesma ao
conteúdo da letra de câmbio.
É a multiplicidade de institutos e teorias, e a sua relação e utilidade para o
problema que deste caso desponta, que serve para nós, aqui na qualidade de
observadores e analistas do Direito, de objeto a este estudo. Igualmente, deve-se à
amplitude institucional e teórica, a justificação para conceituarmos os factos
constitutivos deste caso judicial como parte integral deste estudo, por suscitarem
um problema com esta relevância no âmbito científico, que compele o estudo de uma
variedade de abordagens para o resolver.
5
Por isso se explica a decisão de conferir relevo a um caso judicial em
concreto. Não só por ter sido o confronto com os seus factos que desencadeou a
nossa reflexão acerca do problema, mas, mais relevante de um ponto de vista
analítico, porque este litígio se mostra tão perfeitamente exemplificativo e simbólico
da multiplicidade de abordagens e institutos apropriados ao problema da
representação e vinculação de uma sociedade comercial, quando está em causa a
inexistência de evidentes poderes de representação.
Além disso, o interesse científico associado com este caso concreto decorre,
também, da possibilidade de estudar o problema da representação sem poderes,
com enquadramento na relação entre a sociedade comercial, os sócios e o órgão
administrativo, com a qualidade importante de permitir uma contextualização e
enquadramento na prática jurídica, tendo em conta a origem factual do problema e
considerando que, por isso, demonstra como a questão é tratada numa conjuntura
jurisdicional autêntica.
Portanto, no nosso entender, possui o presente estudo o atributo de oferecer
uma perspetiva prática do problema, não só por ser desencadeado por um litígio
judicial verídico, mas, especialmente, pela maneira como permite demonstrar o
tratamento a que o problema é sujeito num contexto jurisdicional genuíno, sendo-
nos possível apreciar as consequências práticas provenientes, quer da aplicação das
normas positivas do ordenamento jurídico português, quer da forma de interpretar
a lex scripta, quer até da disposição do julgador para valorizar ou não determinados
institutos extralegais.
Desta forma, não limitamos a construção desta dissertação, e principalmente
das conclusões e soluções que dela advenham, a um plano substancialmente teórico
e abstrato, permitindo o desenvolvimento e exposição de conhecimentos numa
perspetiva prático-jurídica e da sua integração numa realidade jurisdicional.
Conforme explicita CARNEIRO DA FRADA, o «óculo é o caso» e é com recurso
a ele que se conhece e vislumbra a ordem jurídica. A análise deste caso verídico,
oferece um plano para estudar e investigar o sistema jurídico e as soluções jurídico-
normativas. Como explica o Professor, «o método do caso é propugnado enquanto
método estruturante, válido e potencialmente pleno, de transmissão e
6
desenvolvimento de conhecimentos; coordenado (…) com a exposição de matérias
de pendor abstrato e generalizador» 2. Não se imagina melhor contexto do que este
para preenchermos este preceito.
Com recurso ao estudo de uma situação verídica, cremos também ir de
encontro aos requisitos estabelecidos pela Faculdade de Direito da Faculdade de
Lisboa para a conceção do grau de Mestre, não só devido à prova de conhecimentos
e capacidade de investigação, mas também por apresentarmos uma base original,
única e verídica, onde possamos integrar os conhecimentos obtidos através da
análise multidisciplinar, confrontando os problemas jurídicos práticos do dia-a-dia
3.
Esclarecemos que não se pretende, de modo algum, assumir um papel de
julgador no exercício da sua atividade jurisdicional. Interessa-nos sim, através do
escrutínio e do exame do ordenamento jurídico português e internacional,
especificamente no domínio do direito civil, comercial e societário, explorar as
melhores formas de abordar e resolver o problema.
Também não pretendemos que se assuma que este trabalho corresponde a
uma extensa crítica à decisão de 1ª instância e aos seus respetivos fundamentos.
Antes, queremos aplicar ao problema a maior variedade possível de soluções que
retirarmos da lei e de outras teorias, nunca prescindido da nossa prerrogativa de
manifestar as nossas convicções a respeito dos instrumentos e institutos
encontrados, valorizando ou censurando a sua aplicabilidade ao problema de
partida, conforme a nossa perceção.
Antes, procuramos a construção de um argumento jurídico-científico, que
classifique conceptual e dogmaticamente o problema, utilizando as soluções que o
Direito vigente oferece, que identifique soluções paradigmáticas compatíveis com o
2 Cit. Manuel A. CARNEIRO DA FRADA – Direito Civil, Responsabilidade Civil, o método do caso,
1ª edição, Coimbra: Almedina, 2006, p. 134. 3 Assim, indo de encontro com o estabelecido pelo artigo 17 º do Regulamento do Mestrado
e do Doutoramento da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Despacho n. º 6322/2016, publicado em Diário da República, 2 ª série – n.º 92 – 12 de maio de 2016.
7
sistema jurídico corrente e que, idealmente, potencie a solução de outros problemas
de qualidades semelhantes ao daquele em exame neste estudo científico 4.
Por outras palavras, pretendemos que este seja um trabalho académico no
qual se teorize para responder, ou seja, onde se possa encontrar uma análise cuidada
e clara a sistemas e instrumentos legais de relevo para o problema no nosso
ordenamento jurídico, recorrendo também, quando acharmos que seja no melhor
interesse do objeto do estudo, a doutrina, jurisprudência e disposições normativas
de outros ordenamentos jurídicos. Em simultâneo com este processo de análise,
elaborar-se-á uma reflexão pessoal sobre os méritos e/ou as insuficiências dos
institutos que se investigam para, em conclusão, exibir as teorias mais adequadas e
os instrumentos com maior capacidade de fornecer resposta ou esclarecimento à
nossa interrogação de partida, bem como a outras que possam surgir com o
desenvolvimento da dissertação 5.
Em resumo, sempre com as perguntas que formulámos em mente,
pretendemos com a presente dissertação, enveredar por um processo de descoberta
de uma ponderada e devidamente fundamentada resposta, ou respostas, às mesmas,
através de um estudo detalhado de todos os institutos jurídicos relevantes para as
encontrar.
3. - O caso: o aceite de uma letra de câmbio em nome da sociedade, por dois
sócios
A ação judicial está relacionada com uma mescla de factos que originaram
um processo judicial executivo, que segue os seus trâmites legais na 1ª Secção de
Execução da Instância Central de Lisboa. Note-se, para efeitos da descrição dos
factos, as firmas das pessoas coletivas e os nomes das pessoas envolvidas que serão
4 Seguindo esta estrutura dogmática, cremos estar a cumprir a via para a edificação da teoria
jurídica, conforme defendida por Claus-Wilhem CANARIS, na qual nos apoiamos para este estudo. Cfr. Claus-Wilhem CANARIS – Función, estrutura y falsación de las teorias jurídicas (Tradução de Daniela BRÜCKNER e José Luis de CASTRO), 1ª edição, Madrid: Editorial Civitas, 1995, p. 28-36.
5 Deste modo, desempenhando a atividade de criação jurídico-científica nos três planos distintos, embora interligados, conjeturados por João BATISTA MACHADO. São eles o plano da descrição ou captação dos dados, que corresponde à procura e interpretação das normas existentes no Direito vigente, o plano da explicação, que se reporta à construção e sistematização de conceitos e instituições jurídicos fundamentais e o plano da aplicação da teoria contruída à realidade, que não é mais que aplicar os resultados obtidos aos casos concretos. Cfr. João BATISTA MACHADO - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra: Almedina, 2014, p. 359.
8
utilizados não correspondem aos verdadeiros, em prol da privacidade e demais
garantias e direitos dos intervenientes e para asseverar a integridade e
confidencialidade com que o presente estudo será conduzido. Pela mesma razão, as
datas e quantias pecuniárias em causa também serão distintas daquelas envolvidas
no caso verídico.
Para mais, tenha-se em conta que, para efeitos e no melhor interesse do
objeto da nossa dissertação, assumiremos apenas a relação mediata inerente à letra
de câmbio, ignorando as relações imediatas. Daqui dever-se-á entender, que não
serão neste estudo discutidos os negócios e as relações subjacentes à letra que lhe
deram origem, mas o seu conteúdo e exequibilidade 6.
Igualmente no interesse do nosso objeto de estudo, a descrição que faremos
dos factos será amplamente simplificada, para cumprir os efeitos da utilidade
científica e prática da dissertação, que, no nosso entender, se perderia se
elaborássemos uma desnecessária descrição extensa e excessivamente meticulosa
dos eventos. Dito isto, passemos finalmente a enumerar os dados elementares
inerentes ao caso.
O que para os efeitos desta dissertação importa saber, é o seguinte: foi
instaurada uma ação executiva contra A, B e Albatroz Lda., para pagamento de
quantia certa decorrente de letra de câmbio, que, embora tenha sido apresentada a
protesto à executada Albatroz Lda., não foi objeto de pagamento.
Nos respetivos autos de execução, foram dados como provados os factos que
passamos a enumerar:
1) C, exequente no processo, é titular de uma letra no valor de 500.000€
(quinhentos mil euros), datada de de 20/06/2016. C figura nessa letra como
sacador, sendo o sacado a sociedade Albatroz Lda., executada, que tem por objeto a
exploração e gestão de unidades de restauração e similares;
6 Aqui, conforme o princípio de autonomia do título de crédito face ao direito subjacente ou
fundamental. A esse respeito, refere Miguel PUPO CORREIA que o direito cartular é independente da relação mediata subjacente à relação jurídica anterior ao surgimento da letra. Em respeito a esta exigência dos títulos de crédito, e por não possuírem utilidade para o estudo, as relações anteriores entre os intervenientes não serão levadas em conta. Cfr. Miguel PUPO CORREIA – Direito Comercial, Direito da Empresa, 10ª edição, Lisboa: Ediforum, 2007, p. 445-446.
9
2) A letra tem apostas duas assinaturas no aceite, a de A e a de B, sócios,
juntamente com o carimbo da sociedade Albatroz Lda.;
3) À data de emissão da letra a Albatroz Lda. tinha como sócios A, B, D e E.
Nenhum dos sócios exercia o cargo de gerente. Esse cargo competia a F, que não era
sócio da Albatroz Lda.;
4) A não era gerente da sociedade desde 2011. B não era, nem nunca havia
sido, gerente da sociedade. Não foi dado por provado que a algum dos sócios,
houvesse sido conferido um poder de representação da sociedade, quer decorrente
do contrato de sociedade, quer por parte da gerência, quer por deliberação dos
restantes sócios;
5) Na letra consta a frase “Pague-se à ordem da sociedade Magnífica Unip.
Lda.”, sociedade da qual C é sócio-gerente, bem como a assinatura do sacador C e o
carimbo da Magnífica Lda.;
6) Os restantes sócios não tinham, na altura, conhecimento da existência da
letra, só descobrindo através da notificação do protesto apresentado pela
exequente;
7) C e A conheciam-se há 10 anos, tendo durante uma tranche desse período,
A exercido funções de gerente na sociedade. A, quando aceitou a letra, informou o
sacador C que mantinha a qualidade de gerente da sociedade Albatroz Lda.,
omitindo as mudanças ocorridas na gerência;
8) À data de emissão da letra, A e B eram titulares de 90% das quotas da
sociedade Albatroz Lda.;
9) F, gerente da sociedade, confirmou que teve conhecimento da existência
da letra, nunca se opondo ao seu uso, nem tendo questionado os sócios sobre a sua
existência;
10) A Albatroz Lda. obrigava-se, dentro e fora da sociedade, com a assinatura
de um gerente.
Em face destas circunstâncias, o tribunal de 1ª instância, decidiu que, não
tendo a letra sido aceite por um representante legal da Albatroz Lda., a sociedade
não poderia ser demandada, porque nenhuma das assinaturas a vinculava. Em
10
resultado, somente os seus subscritores, A e B poderiam responder pelo conteúdo
da letra, concluindo pela absolvição da executada.
Tendo em conta esta dezena de factos, e a respetiva decisão judicial,
pergunta-se: tendo em conta os factos apresentados, existe fundamento para
considerar que os sócios que assinaram a letra de câmbio, atuavam como legítimos
representantes da sociedade, vinculando-a ao conteúdo do documento?
Segundo um processo de investigação com os contornos e os objetivos que
delimitámos, é esta a questão que pretendemos estudar.
11
Capítulo II – Representação orgânica e vinculação da sociedade
4. – Introdução
Em regra, é o próprio sujeito que transmite a sua vontade e que acarreta os
efeitos que decorram dessa proclamação. Contudo, limitar o exercício dos direitos
de um indivíduo a estes termos é apenas exequível numa sociedade extremamente
simples, com um sistema jurídico, também ele, muito rudimentar. Um corpo social e
jurídico dessa natureza só pode existir, nos dias de hoje, num plano meramente
teórico.
Ao longo da história, assistimos a uma crescente aglomeração de indivíduos,
em números cada vez maiores, em espaços físicos cada vez mais limitados. Em
consequência dessa concentração, as comunidades tornaram-se cada vez mais
complexas e em função disso, as relações interpessoais tomaram contornos,
também eles, mais intrincados. Para além disso, nestas comunidades emergentes
foram concebidas entidades fictícias, que viriam a ser dotadas plenamente de
direitos, as pessoas coletivas. Ora, esta crescente complexidade das nossas
comunidades, das relações interpessoais e do próprio Direito, justificava uma
ampliação na forma de os indivíduos exercerem a sua vontade e os seus direitos.
Assim se explica o surgimento do instituto da representação. Sucintamente,
por representação, entende-se a atuação de alguém, ora representante, em prol de
outrem, ora representado. Essa atuação, se exercida com a capacidade e nas
circunstâncias impostas pelo Direito vigente, vai produzir efeitos na esfera jurídica
do beneficiário, leia-se, representado, e não na esfera de quem age, como seria
normal se uma posição jurídica só pudesse ser exercida pelo seu titular 7. Podemos
falar assim de uma «legitimidade indireta» em agir, de uma ficção jurídica se
quisermos, já que aquele que age, fá-lo como “substituto” do titular dos direitos e
deveres que são exercidos 8.
7 António MENEZES CORDEIRO – Tratado de Direito Civil, Volume V, 3ª edição, Coimbra:
Almedina, 2018, p. 66. 8 José Alberto GONZÁLEZ – Código Civil Anotado, Volume I, Lisboa: Quid Juris, 2011, p.336.
12
O instituto da representação pode ser dividido em três modalidades: legal,
voluntária e orgânica 9.
Na primeira, o âmbito dos poderes de representação emana diretamente da
lei, como é exemplo o poder de representar os filhos que está legalmente confiado
aos pais e tutores, conforme o disposto nos artigos 1878º n. º 1 e 1881º n. º 1 do
Código Civil (CC). No caso da representação voluntária, cabe ao representado decidir
se concede poderes representativos a outrem e qual o alcance desses poderes. Já a
representação orgânica, refere-se à representação das pessoas coletivas pelos seus
órgãos.
É através do estudo e da dissecação dos dois últimos conceitos,
representação orgânica e representação voluntária, que esperamos encontrar
conceitos e teorias jurídicas que nos permitam alcançar, num primeiro plano, uma
decifração do problema de partida, e depois, num delineamento mais amplo, que
permitam, como foi proposto, a apresentação de um elenco dogmático que demostre
utilidade, não só num contexto teórico-científico, mas também numa perspetiva
prática.
Por conseguinte, segue-se a nossa análise, em primeiro lugar, e
incontornavelmente, dado desenvolvermos esta dissertação no plano do Direito
societário, à representação orgânica.
Antes disso, porém, há que referir que é discutível a precisão científica de
qualificar a representação orgânica, tal como a representação legal, como
verdadeiras formas de representação, como é o caso da representação voluntária.
Optamos por ignorar a discussão a respeito da conceção da representação legal
como uma forma de representação em sentido técnico, já que o âmbito do estudo
não abrange a matéria da representação legal.
Contudo, uma querela semelhante, mas acerca da representação orgânica,
desperta em nós uma outra atenção, dada a relevância basilar da mesma para o
trabalho. Por isso, discorreremos, com algum detalhe, sobre a ideia.
9 António MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4ª edição, Coimbra: Almedina, 2016, p.
661.
13
Diga-se que somos do entendimento que, independentemente da posição que
se tome, acerca do grau de exatidão técnica de se considerar a representação
orgânica como verdadeira representação, não cremos estar a incorrer numa
imprecisão por utilizar a expressão representação, para nos referirmos à atuação
das pessoas coletivas.
Isto porque estamos a falar de um esquema de imputação de efeitos que deve,
em termos históricos e dogmáticos, muito ao instituto da representação. Além disso,
a nomenclatura é a mais comumente utilizada, por falta de uma construção
concetual adequada para descrever a forma de atuar da pessoa coletiva pelos seus
órgãos 10.
Como «intérpretes-aplicadores» de normas e teorias, teremos o cuidado de
não alargar o esquema da representação, no correto sentido técnico, a situações
onde não seja aplicável 11. Ainda assim, com base nos argumentos expostos supra,
não nos abstemos de utilizar a denominação representação para nos referirmos ao
regime do exercício de direitos das pessoas coletivas.
Feita esta ressalva, passemos sem mais demora para a análise da
representação orgânica das sociedades, particularmente da sociedade por quotas,
por ser o tipo da sociedade que aqui se discute, e sobre as respetivas formas de
vinculação.
5. – Os órgãos sociais e a representação orgânica. A importância da separação
da qualidade de sócio e de gerente
Qualquer sociedade comercial precisa de uma estrutura orgânica que lhe
permita manifestar a sua vontade. Afinal, as pessoas coletivas, pela sua natureza,
não são capazes de exprimir a sua vontade de forma escrita nem verbal, não são
capazes de agir por si próprias.
Não quer isto dizer, que são completamente incapazes de agir e de exprimir
a sua vontade, muito pelo contrário. São tal como as pessoas singulares, pessoas
reais e completas, capazes de direito, de vontade e de atuação. Embora
10 MENEZES CORDEIRO – Direito Comercial, 4, p. 661. 11 MENEZES CORDEIRO – Tratado…V, 3, p. 82.
14
singularmente não se caraterizarem por uma essência humana, como as pessoas
singulares, possuem uma estruturação interna, dividida em órgãos, cada um deles
com diferentes funções, que possibilitam a sua organização no plano interno e o
exercício dos seus direitos 12. Deste modo, podemos dizer que é através dos seus
órgãos que a sociedade atua, de forma a transmitir a sua vontade negocial, de forma
livre e pessoal.
Importa revisitar a problemática que mencionámos de, ainda que de forma
breve, no ponto anterior, acerca da existência de uma verdadeira representação na
forma de exercício dos direitos das pessoas coletivas.
Ao contrário da relação entre o representante e o representado, que são
consideradas pessoas diferentes, entendemos que a atuação dos titulares dos órgãos
socias corresponde, juridicamente, à atuação da pessoa coletiva. O órgão não surge
como representante da pessoa coletiva, mas sim como elemento integrante da
mesma, sendo que a sua atuação corresponde, para efeitos jurídicos, à atuação da
própria sociedade 13.
Isto significa que, ao contrário do representante, que apenas pode atribuir ao
representado os efeitos dos atos que levou a cabo, se praticados dentro dos limites
estabelecidos previamente, o ato praticado pelo titular do órgão social é
juridicamente imputado à pessoa coletiva, por se captar que foi a mesma que,
materialmente, o praticou 14 15.
12 José FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização das Sociedades, a Obrigação de
Vigilância dos Órgãos da Sociedade Anónima, Coimbra: Almedina, 2017, p. 700. 13 Não é uniforme o entendimento acerca das diferenças entre a representação voluntária e
a representação orgânica, no que toca ao “titular” do ato praticado, gerando disputa a dúvida em saber se quem o pratica é a sociedade ou o titular do órgão administrativo. Suplantando essa contenda, FERREIRA GOMES esclarece que o Direito valoriza os efeitos do ato e não a “titularidade” do mesmo. Citando o Ilustre Professor: «o Direito não necessita de atribuir um facto a um sujeito para lhe imputar os correspondentes efeitos (…) se a imputação de factos (…) se traduz afinal numa imputação de efeitos, tal como na representação voluntária, então a diferença entre uma e outra é de natureza quantitativa e não qualitativa». Ou seja, mais relevante do que precisar se a prática do ato deve ser reconduzida à sociedade ou ao titular do órgão, é compreender a quem os efeitos do mesmo serão imputados, uma posição que subscrevemos, e que tão bem concretiza o escopo deste estudo. Cit. FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização…, p. 708.
14 Ibidem, p. 701-703. 15 Essa parece ser igualmente a posição de MENEZES CORDEIRO, que constata: «A atuação
dos órgãos é a da pessoa coletiva, numa lógica própria do modo coletivo do funcionamento do Direito». Cit. MENEZES CORDEIRO – Tratado…V ,3, p. 82.
15
Esta teoria é importante para a definição de órgão social como um «regime
jurídico», integrado no “corpo” da pessoa coletiva, que se destina a balizar e a
«regular a conduta» das pessoas singulares que integram a sociedade, de forma a
garantir a prossecução do objeto social da mesma. O órgão, demonstra subjetividade
nas relações internas com os restantes órgãos e membros sociais, mas no panorama
das relações externas, é apenas um “veículo” de transmissão da vontade da pessoa
coletiva 16.
Mais do que a imputação dos efeitos de um ato, típico resultado da
representação voluntária, a representação orgânica tem o efeito de imputar
juridicamente o próprio ato à pessoa coletiva. Por outras palavras, a prática do ato
não é exercida por um representante, mas sim pela própria pessoa coletiva, através
dos titulares dos seus órgãos 17 18 19.
Sumarizando, não são os administradores que agem pela sociedade, é a
sociedade que age por meio dos administradores 20.
No caso das sociedades por quotas, como a Albatroz Lda., a sociedade do caso
de estudo, é a gerência o órgão que tem a seu cargo a administração da sociedade,
ou seja, ao qual cabe formar e exprimir a vontade imputável à última.
A composição deste órgão está estabelecida no artigo 252º do Código das
Sociedades Comerciais (CSC). Como se denota imediatamente através da leitura do
n.º 1 do artigo, os titulares do órgão são os gerentes, e é a eles que compete a
representação e a administração da sociedade.
16 Cfr. FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização…, p. 708. 17 Ibidem, p. 703. 18 Acreditamos que a teoria da prática do ato pela própria pessoa coletiva, através da teoria
orgânica, afigura-se mais adequada do que entender, por exemplo, que os administradores ou gerentes da sociedade a representam com base numa relação de mandato com a mesma ou com os sócios e a assembleia geral. Por um lado, pela dificuldade em identificar o mandante (é pouco claro se serão os sócios ou a própria sociedade), por outro lado, a autonomia própria dos administradores e gerentes é totalmente contrária com o regime do contrato de mandato. Ibidem, p.701.
19 Não obstante a se atribuir, para efeitos jurídicos externos, a prática dos atos à sociedade, não quer isto dizer que os órgãos sociais não possam ser também alvo de imputação de normas jurídicas. No plano interno das relações interorgânicas, a cada órgão social podem ser aplicadas normas e imputadas ações de forma individualizada. Cfr. Ibidem, p. 711.
20 Cfr. Ricardo COSTA – Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Coimbra: Almedina, 2014, p. 772,
16
Aos gerentes é concedida a designação para o órgão de administração por
quatro vias possíveis: designação no contrato de sociedade, designação posterior,
eleição pelos sócios ou por nomeação judicial. Sendo nomeados, os gerentes
exercem as suas funções, ou num sistema de gerência singular, composta por apenas
um gerente, ou plural simultânea, se composta por mais do que um gerente 21.
Os gerentes tanto podem ser sócios da sociedade, como não sócios. O facto
do artigo 259º do CSC permitir a nomeação de estranhos à sociedade para o cargo
de gerente, consagra a hipótese de se separar a qualidade de sócio, da qualidade de
gerente. Caso a sociedade escolha pela opção de nomear pessoas externas como
gerentes, é importante, para garantir o regular funcionamento da atividade social,
promover e preservar a clareza da separação das funções e denominações dos
gerentes e os sócios. Essa distinção deve ser cristalina, sob pena de, em caso
contrário, desencadear situações que coloquem em causa a própria organização da
sociedade.
Permitir que não apenas os sócios, mas também indivíduos externos à
sociedade, possam exercer funções de gerência, é uma forma de melhorar a
eficiência das funções administrativas, porque garante a possibilidade de munir o
órgão de profissionalização e especialização. Indo mais longe, é uma forma de
«negação do amadorismo» 22.
Nos primórdios da realidade das pessoas coletivas, aos sócios atribuía-se
uma tripla qualidade: sócios, dirigentes internos e representantes externos. Com a
evolução das sociedades e da atribuição de personalidade jurídica às mesmas, estas
funções foram separadas e distribuídas, numa estruturação mais adequada à
cresceste complexidade da pessoa coletiva.
Por isso, é hoje admitido que os órgãos de administração social sejam
preenchidos por pessoas que não detêm participações sociais na sociedade, mas que
possuem competências técnicas que lhes permitem desempenhar da melhor forma
as funções atribuídas a estes órgãos.
21 João ESPÍRITO SANTO – Sociedades por Quotas e Anónimas, vinculação: objeto social e
representação plural, 1ª edição, Coimbra: Almedina, 2000, p.363-366. 22 Cit. VÁRIOS - Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação Prof. Doutor António
Menezes Cordeiro, Coimbra: Almedina, 2009, p.664
17
Embora ainda seja possível que uma pessoa assuma a qualidade de sócio e de
gerente simultaneamente, ambos esses atributos funcionam em meios orgânicos
distintos, uma noção que não deve ser desconsiderada 23.
Ainda assim, a separação da propriedade da sociedade, que pertence aos
sócios e o controlo da mesma, atribuído aos gestores e administradores, é uma
matéria de interpretações diversas.
Imagine-se uma sociedade comercial onde o capital social esteja
tremendamente disperso. Essa difusão das participações sociais traduz-se numa
dificuldade para os sócios exercerem a sua vontade sobre a administração, ou seja,
será para eles mais custoso “controlar” o órgão administrativo, de forma a garantir
que o último prosseguirá os interesses da sociedade. Neste caso, embora possuam a
propriedade da sociedade, os sócios não têm o seu controlo 24.
Numa situação completamente inversa, concebamos uma sociedade na qual
o controlo societário está visivelmente aglomerado, num número muito reduzido de
sócios. A aglomeração do capital social em apenas um ou dois sócios, significa que o
domínio do sócio, ou sócios, sobre o órgão administrativo, é muitíssimo intenso.
Não se conclua, no entanto, que este controlo acentuado sobre a atividade do
órgão administrativo, se traduz numa maior eficiência da prossecução do interesse
social. A relação de domínio do sócio controlador sobre a sociedade, permite que
este pressione e guie a administração nos termos que lhe aprouver, eventualmente
em oposição dos interesses da própria sociedade e dos restantes sócios 25.
A subordinação do órgão administrativo às instruções e ordens do sócio
controlador, deve-se, precisamente, à posição de domínio que este exerce sobre a
sociedade, e consequentemente, sobre os seus órgãos. Esta posição de obediência
do órgão administrativo, como explica FERREIRA GOMES, é consequência da «
pressão exercida pelo sócio controlador, do qual depende para assegurar a
continuidade do seu mandato à frente dos destinos da sociedade(…)», pelo que «não
23 Pedro Leitão PAIS DE VASCONCELOS – A Preposição, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2018,
p. 397-398. 24 FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização…, p. 40. 25 Ibidem, p.45.
18
será de estranhar que a administração privilegie os interesses particulares deste
sócio em prejuízo do interesse comum» 26.
Deduz-se então que uma relação de domínio económico de um sócio sobre a
sociedade, pode converter-se numa posição de comando e de orientação sobre o
núcleo orgânico da representação e administração, e até sobre a própria vontade
social, no caso desta soberania influenciar também os restantes sócios.
Devido à reduzida influência do mercado bolsista e do reduzido número de
sociedades abertas em Portugal, são mais comuns as sociedades com um perfil de
relação entre o controlo e a propriedade, mais facilmente identificável com a última
descrição 27.
Tendo isso em conta, cremos estar logicamente consumada a ligação do tema
da relação entre o controlo e a propriedade da sociedade, e das consequências para
a administração social, e este estudo. Se é assinalável a abundância de sociedades
comerciais onde o controlo e a propriedade estão agregados numa só pessoa, ou
num conjunto limitado de pessoas, diga-se que o case study é um reflexo prático
disso mesmo.
Se bem nos recordamos dos factos, a percentagem das participações sociais
detidas pelos sócios A e B era de 90%. Contemplando esta percentagem, há,
obviamente, lugar a uma presunção de relação de domínio expresso e absoluto de
ambos sobre a administração e os restantes órgãos. E se tivermos em conta que o
gerente da sociedade, mesmo conhecendo da existência da letra, da elevada quantia
associada à mesma e da sua utilização em nome da sociedade, não se opôs em
momento algum, nem sequer tendo indagado junto dos sócios, ou ter sido por eles
informado, acerca desse negócio e da sua relação com a sociedade, essa hipótese
parece manifestamente factual.
Efetivamente, no caso de estudo, o domínio exercido pelos sócios A e B sobre
o núcleo administrativo da sociedade, é de tal forma palpável, que nem sequer está
em causa a tomada do controlo da sociedade pela via da influência e comando sobre
o gerente. Antes, os sócios “substituíram-se” a este.
26 Cit. Ibidem, p. 45. 27 Cfr. Ibidem, p.46.
19
Relembramos que o exercício do poder administrativo, não compete aos
sócios nem à assembleia geral, mas sim aos gerentes. Ignorando essa prerrogativa,
os sócios A e B encetaram atos reservados à gerência, inclusivamente assumindo
perante um terceiro, que perante ele se apresentavam como gerentes da sociedade.
Em causa não está, portanto, uma forma de subordinação da gerência aos
critérios e deliberações dos dois sócios, mas sim um “apoderamento” dos poderes
de gerência por parte destes.
Admite-se que certas decisões dos sócios tenham eficácia externa, e que as
posições negociais de terceiros que com a sociedade se relacionem, possam ser
afetadas por essas deliberações. O que não significa que os sócios possam, tal como
os gerentes, relacionar-se diretamente com o exterior, como “condutores” da
vontade da sociedade.
A atividade deliberativa dos sócios terá impacto sim, na definição da vontade
da sociedade. Mas, de um ponto de vista externo, a vontade social irá desenvolver-
se através da atuação dos gerentes, que previamente foram instruídos a seguir o
arbítrio social 28.
Um preceito explicado nas palavras de João ESPÍRITO SANTO, que refere que
«essas deliberações não são, via de regra, absolutamente auto-suficientes para a
produção dos efeitos jurídicos que a tendem. É que a deliberação, de per si,
corresponde normalmente à formação de uma vontade da sociedade, mas não á sua
declaração perante terceiros» 29.
Aos sócios não cabe, numa sociedade onde sócios não acumulem funções de
gerência obviamente, produzir a vontade social e declará-la externamente. É
necessário que a mesma seja manifestada por um titular do órgão administrativo da
sociedade, leia-se, um gerente ou por alguém a quem um gerente haja conferido
poderes de representação, por via da representação voluntária.
É o gerente que, consciente das decisões dos sócios, expressa a vontade da
sociedade, formada pelos últimos, exercendo assim, a sua competente função
28 João ESPÍRITO SANTO – Sociedade por Quotas…,1, p. 381. 29 Cit. Ibidem, p. 384.
20
representativa. Sintetizando, é através dos gerentes que age a sociedade, não
através dos sócios.
Não se calcule que aqui se retrata alguma forma de transmissão de
competência dos sócios para o órgão administrativo. São sim, órgãos de natureza e
de funções diferentes. Os sócios, sendo também um órgão da sociedade, e assumindo
até um posicionamento de superioridade face aos outros órgãos, têm funções de
caráter deliberativo e a sua atividade é de índole interna 30, cabendo à gerência as
competências externas e representativas 31 32.
Visto isto, chega a altura de questionar se se depreende do ato de A e B um
exercício de representação orgânica. Tendo em conta o que contatámos, a resposta
é, a nosso ver, manifestamente negativa.
Afinal, A e B, no momento em que assinaram a letra, eram apenas sócios da
sociedade. Não foram designados para funções de gerência no contrato social, não
houve lugar a qualquer deliberação social que produzisse esses efeitos, nem se
verifica a ocorrência de qualquer outra forma de designação.
Na qualidade de sócios, não lhes estão atribuídas as competências
necessárias para representar a sociedade, “personalizado” a sua vontade. A eles
caberá formá-la.
6. – A vinculação da sociedade por quotas.
Visto isto, colocamos a pergunta: poderá, ainda assim, a veemência do
controlo que os sócios exerciam sobre o órgão administrativo, ser fundamento para
que a sociedade se vincule ao conteúdo da letra?
30 Interna, como vimos, porque transmitem aos órgãos representativos, internamente, a
vontade da sociedade. Repetimos, embora esta delimitação da vontade social se crie no seio da sociedade, terá obviamente efeitos externos, embora esses sejam resultados dos atos representativos do órgão administrativo.
31 Raúl VENTURA – Sociedades por Quotas, Volume II, 1ª edição, Coimbra: Almedina, 1989, p. 164.
32 Adicionalmente, convém esclarecer que fazer referência ao órgão composto pelos sócios, não é equivalente a falar de A e de B. Tal como um gerente não é um órgão, mas sim um membro do órgão administrativo, dois sócios também não representam em si a qualidade de órgão, independentemente do seu domínio sobre o capital social da sociedade. A qualidade orgânica dos sócios reporta-se à totalidade dos sócios da sociedade, e não apenas A e B.
21
Em princípio, a resposta é negativa.
Vimos como funciona a representação orgânica nas sociedades comerciais,
chegando à conclusão de que a sociedade desempenha o exercício dos seus direitos
e vontades no exterior, através do órgão social de administração, embora se devam
interpretar esses comportamentos, como da própria sociedade.
Nas sociedades por quotas, cabe ao órgão administrativo, a gerência, a
administração e representação da sociedade. Por sua vez, serão os titulares do órgão
administrativo, os gerentes, a cumprir com esses encargos, quer pessoalmente, quer
através da atribuição de poderes representativos a outras pessoas, uma
possibilidade que estudaremos mais à frente.
Vimos também que não se confundem, e é no melhor interesse da sociedade
não se confundirem, as qualidades de sócio e de gerente, apesar de poderem
coincidir, nos casos em que um sócio haja sido designado como gerente no contrato
de sociedade ou através de deliberação social, cenários que não correspondem à
situação de A e de B.
Por fim, em vista do concluímos, não avistamos possibilidade de integrar A e
B num esquema de representação orgânica.
Ora, à luz desta conclusão, parece difícil, com os elementos que possuímos de
momento, concluir pela vinculação da sociedade ao conteúdo de uma letra subscrita
por estes dois sócios.
A vinculação da sociedade por quotas define-se nos termos do artigo 260º
CSC. Nele, fixam-se as circunstâncias em que a gerência vincula a sociedade. De
modo simples, do n. º 1 do artigo conclui-se que, não obstante limitações
provenientes do contrato de sociedade ou de deliberações sociais, a sociedade
vincula-se com terceiros pelos atos praticados pelos gerentes, que devem ser
escritos, com a menção da qualidade de gerente 33.
33 Fala-se de uma ilimitação de poderes representativos da gerência. Isto é, quando os
gerentes atuem dentro dos poderes que a lei lhes confere, as limitações resultantes quer do contrato de sociedade, quer de deliberações sociais, não são oponíveis a terceiros, não se colocando em causa a vinculação da sociedade.
22
Ora, uma vez que A e B não são membros do órgão administrativo da
sociedade, não há lugar a uma atuação que se possa identificar como de
representação orgânica. Logo, por essa via, está afastada a vinculação da sociedade
ao conteúdo da letra.
Porém, como indicámos no enquadramento do trabalho, para alcançarmos o
resultado pretendido com a presente dissertação, devemos analisar, com algum
detalhe, diversas estruturas jurídicas e institutos legais intrinsecamente
relacionados com o caso concreto, mesmo que não os encontremos no Direito
positivo. É com esse objetivo em mente, que explorámos a figura que apresentamos
de seguida.
7. - O Administrador de facto.
7.1. – Introdução.
Como tivemos oportunidade de assimilar aquando da nossa descrição da
representação orgânica, cabe, nos termos da lei, aos administradores e gerentes da
sociedade, definir as orientações da atividade social, e atuar como forma de
exteriorizar a sua vontade.
Mas, na realidade, como é bem visível através do caso de estudo, nem sempre
são os gerentes e administradores que exercem as tarefas de controlo e gestão que
lhes estão legalmente imputadas.
Como vimos, pode suceder que numa qualquer sociedade comercial, a pessoa
que desempenha as atividades que normalmente estão conferidas aos
administradores, ou que dirige as atividades dos mesmos, que, no fundo, possui o
controlo da sociedade, não é, de facto, administrador. É uma situação que se pode
verificar em diversos casos, por exemplo, no caso de o título de administrador ou de
gerente que possui se encontrar caducado, extinto ou inválido.
Mas esse título pode nem sequer existir. Quem atua como administrador
pode ostentar um título relativo à sociedade diverso, que não lhe confira qualquer
A exceção a esta regra está no n. º 2, que estabelece que as limitações de poderes são oponíveis a terceiro, se este soubesse, ou devesse saber, que o ato estava a ser praticado em inobservância de uma limitação imposta pelo pacto social ou pelos sócios.
23
espécie de poderes de administração, mas, não obstante, pratica atos dessa
natureza. Noutros casos ainda, quem exerce o controlo pode até nem ter uma relação
com a sociedade, efetivando-o somente através da influência que exerce sobre os
administradores ou gerentes de direito.
No caso em análise, é claro que quem exercia concretamente o controlo da
sociedade e quem praticava ativamente funções destinadas aos gerentes, não estava
munido de um título formal de gerente.
Por certo, as funções e atividades comuns da gerência ou administração de
uma sociedade comercial, não são necessariamente desempenhadas por quem haja
sido designado administrador ou gerente pela via tradicional da concessão de um
título constitutivo de tal qualidade ou através de nomeações ou eleições dos órgãos
sociais 34.
O que significa que, sem embrago do exercício de administração ou gerência
estar, legalmente, reservado para quem possui a investidura orgânica de um título
válido para o exercer, o que sucede na realidade é que o exercício efetivo das funções
de gerência e administração, não é exclusivamente exercido por quem possui um
título material dessa natureza.
Efetivamente, uma sociedade comercial pode ser gerida por quem atua sem
título de investidura orgânica, por quem atua com base num título suspenso, extinto
ou caducado ou ainda por quem atua com base num título nulo ou que se tenha vindo
a declarar anulado. Em todos estes casos estaremos, perante possíveis
administradores de facto. 35
Embora estas situações sejam comuns, nem a lei societária portuguesa, nem
nenhum diploma legal referente qualquer outro ramo do Direito diga-se, adota um
conceito de administrador de facto. Dada a inexistência de uma descrição legal da
figura da administração de facto, teremos que nos suster nas reflexões da doutrina
sobre este mote.
34 RICARDO COSTA - Administrador de Facto e Representação das Sociedades, in Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XC, Tomo II, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 719.
35 Cfr. Ibidem, p. 719.
24
No nosso entendimento, a mais cabal é a de RICARDO COSTA, que define
administrador de facto como aquele que «exerce concreta e efetivamente os poderes
de gestão-administração de uma sociedade, mesmo que não tenha legitimidade
formal», sendo necessário «surpreender na sua ação uma atividade é de real e
positiva administração» 36.
Ou seja, a administração de facto compreende, na sua génese, o exercício
efetivo de funções e o desempenho concreto de atividades e comportamentos afetos,
tipicamente, a administradores sociais, com a particularidade de que quem os
pratica não é, formalmente, administrador.
Logicamente, uma vez que o legislador não procedeu à construção de um
conceito legal de administrador de facto, não existe de igual modo no Direito
positivo, um enunciação de padrões a identificar para a apreensão do fenómeno da
administração de facto.
Como não é, obviamente, um precito que possamos utilizar
desmesuradamente, há que definir parâmetros.
7.2. - Critérios para a aplicação da fórmula
Se queremos dotar o conceito de alguma utilidade prática, é mister a criação
de uma mescla de requisitos cuja verificação seja necessária para discernir, em
determinada situação, uma que espelhe a existência de um fenómeno de
administração fática.
Relembramos como no início do subcapítulo, ao pronunciar-nos sobre o
exercício efetivo do poder de administração por parte de quem não possui título
formal válido, indicámos a eventualidade da presença de um possível administrador
de facto. O uso da expressão é deliberado, porque antes da análise, sob a “lupa” dos
requisitos indicadores de uma qualidade de administrador de facto, essa qualidade
não pode ser atribuída 37.
36 Cit. Ibibem, p. 719. 37 Por exemplo, condicionar a qualificação da administração de facto à verificação de uma
nomeação por via legal irregular seria uma solução escassa, porque se assim fosse, estaríamos a limitar a aplicação do sistema a administradores cuja nomeação estivesse inquinada de um vício, ignorando o exercício da administração material por parte de quem haja sido destituído, a quem
25
Falta-nos agora encontrar um quadro de requisitos que responda a essa
necessidade.
Foram já elencados inúmeros parâmetros e características da administração
de facto, estejam eles relacionados com a continuidade, efetividade, durabilidade, ou
regularidade do exercício das funções típicas de administração. Nem todos os
requisitos já indicados, quer por doutrina quer por jurisprudência, nos são
particularmente úteis nem são mormente necessários 38.
Mais uma vez, acreditamos que a melhor delimitação desse quadro é da
autoria de RICARDO COSTA 39.
Os requisitos sine qua non elencados pelo autor para atribuição da qualidade de
administrador de facto, são os seguintes:
nunca tenha sido titular do órgão administrativo ou de quem não possua qualquer ligação material à sociedade.
38 Elencamos alguns pressupostos, que, no nosso entender, não parecem essenciais para subsumir a existência de um fenómeno de administração fáctica, embora sejam por vezes referenciados. Por um lado, exigências do ponto de vista do relacionamento com terceiros. Alguma jurisprudência e doutrina defendem a necessidade de existência de uma aparência de qualidade de administrador, perante sujeitos externos que se relacionem com a sociedade. No direito alemão, a jurisprudência e o próprio BGH, fixaram como princípio a necessidade da prática de atos associados à administração, não bastando a influência interna exercida sobre os administradores. Na opinião da autora, tal não deve ser exigível, já que as finalidades da construção do conceito apontam no sentido de proteção de terceiros, mas através da tutela da própria sociedade, de forma a evitar situações potencialmente lesivas para terceiros que se relacionem com a mesma. Tendemos a concordar, porque não nos parece que para exercer uma influência categórica e decisiva, quer no seio da sociedade, quer face a terceiros que com ela se relacionem, terá que existir uma “aparência de administração” aos olhos de terceiros. Como vimos, a tónica da administração de facto passa pelo o efetivo desempenho das funções próprias de administrador, funções que podem englobar o relacionamento com terceiros, ou não. Nas palavras da autora: «As finalidades de proteção tidas em conta pela construção de um conceito de administrador de facto apontam em sentido contrário: não se procura pura e simplesmente, proteger a confiança dos terceiros, mas também tutelar a própria sociedade e os sócios, o que torna incompreensível o requisito adicional em causa». Outro requisito que é ocasionalmente estabelecido, é a exigência de que o potencial administrador de facto seja uma pessoa singular. Novamente, o BGH e a doutrina germânica defenderam esta posição, sustentando que a qualificação de pessoas coletivas como administradoras de facto seria impossível. Mais uma vez, rejeitamos a posição, já que, implica também um privilégio para o qual não encontramos justificação plausível, atribuído às pessoas singulares face às pessoas coletivas. Cfr. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA - Administração de facto: do conceito geral à sua aplicação aos grupos de sociedades e outras situações de controlo interempresarial, in A Designação de Administradores, Coimbra: Almedina, 2015, p. 229-230.
39 Como explica o autor acerca da necessidade da construção deste elenco: «Não basta essa outra condição – e as suas circunstâncias ou outras circunstâncias e situações que favorecem a administração de facto, mesmo que vista como situação fenomenológica potencialmente típica de administração de facto, para qualificar por si só e como que automaticamente o respectivo titular como administrador de facto. Por outras palavras, se assim não fosse, arriscaríamos a introdução do conceito de administrador de facto virtual (…)» Cit. RICARDO COSTA- Administrador de Facto…, p. 724.
26
1) Atuação positiva no círculo de funções típicas de administração,
nomeadamente no patamar da alta administração;
2) Autonomia própria de um administrador de direito;
3) Cariz sistemático e continuado, com a mesma frequência dos atos
administrativos de um administrador de direito;
4) Recetividade e tolerância da sociedade e dos administradores de direito.
É a verificação destes requisitos, que consubstancia, no entender do autor, uma
administração de facto relevante 40 41 42.
7.3. – A relevância da formula “de facto” para o caso em análise.
Para o Professor, a verificação destes requisitos caracterizadores de um
fenómeno de administração de facto fundamenta, em virtude da execução de tarefas
40 Ibidem, p. 723. 41 Análoga à do administrador de facto é a figura do administrador de facto indireto. Embora
não mereça neste estudo um destaque semelhante ao primeiro, por não revelar o mesmo interesse prático, não queríamos deixar de apresentar uma breve definição do conceito. Este tipo de administrador de facto, exerce os seus poderes de administração através da influência e domínio que possui sobre os administradores de direito, ou até sobre administradores de facto diretos, mantendo-se sempre “na sombra” na perceção de terceiros e da sociedade. Dada a particularidade da figura, os critérios sine qua non a observar para a sua qualificação como administrador de facto são ligeiramente distintos. Uma vez mais, encontramos em RICARDO COSTA a melhor delimitação dos mesmos. Da mesma forma que os poderes exercidos pelo administrador de facto direto têm que se equivaler àqueles do patamar da alta administração social, a influência exercida pelo administrador de facto indireto terá que incidir sobre os administradores de direito ou de facto direto, de forma a que se traduza numa influência sobre a alta administração social. A influência de que falamos, sobre os círculos da alta administração, tem que se traduzir em ordens e imposições concretas, e não em meras instruções ou indicações, de forma que se possa considerar que tal influência condicione e obrigue os administradores a atuarem da forma indicada pelo administrador de facto indireto. Por último, a influência exercida sobre a alta administração, traduzida no acatamento de ordens e direções por parte dos membros da mesma, tem que ser exercida de forma sistemática e recorrente, não sendo possível classificar um sujeito como administrador de facto indireto, se exercer uma influência meramente pontual sobre os órgãos sociais e administradores. Assim, e aproveitando os requisitos referentes ao administrador de facto direto, concluímos que o administrador de facto indireto é aquele que, apesar de não possuir título administrativo válido para exercer funções de administrador, e embora não exerça tais funções de forma direta, ou seja, através do exercício de uma atividade típica de administração na primeira pessoa, exerce-as através de uma influência instigadora apontada diretamente ao núcleo da alta administração social. Temos, portanto, uma influência que se traduz num exercício de administração positivo, de imposição e direção sobre os administradores de direito, ou mesmo até sobre administradores de facto diretos, exercido de forma sistemática, e tolerada pela sociedade e por esses administradores, que acatam recorrentemente as suas imposições e ordens. Ibidem, p. 719 ss.
42 Neste ponto, citamos de novo o autor, que refere: «É justamente a natureza e a fisionomia do exercício das funções e atribuições que se realizam pelo sujeito oficiosamente administrador que se configuram como instrumento para chegarmos a uma condição jurídica adicional e distintiva sempre que o sujeito apresente essa outra condição, qualificação ou denominação jurídica na sua relação com a sociedade». Cit. Ibidem, p. 722.
27
administrativas e do usufruto dos poderes de administração, uma conjuntura de
relevante administração social, o que por sua vez, é razão para a atribuição de um
título de natureza funcional, que habilite a participação do administrador de facto
na exploração da atividade social e ao acesso às tarefas administrativas.
No fundo, pretende-se legitimar uma atividade, que já é de efetiva
administração, expandindo a aplicabilidade comum da figura, como dispositivo a
aplicar no âmbito das relações internas da sociedade, ou como um instrumento
meramente sancionatório, de prevenção de atividades fraudulentas 43.
O maior impacto desta proposta, e o que apresenta manifesta pertinência
para o nosso estudo académico, é a redefinição extensiva do conceito de
administrador, expandindo-o para além do modo clássico da designação formal do
administrador de direito, para passar a abranger também sujeitos que
desempenham comprovadamente funções e poderes de administração, embora não
possam ser considerados administradores de jure.
Consubstanciando, atribuir ao administrador de facto um papel
juridicamente relevante, facultando-lhe um título administrativo legitimador da sua
atividade, implica uma igualdade de trato no plano jurídico, dos administradores de
facto e dos administradores de direito 44. Nessa perspetiva, admitiríamos a
existência de duas formas de reconhecimento de uma relação de administração:
uma fundada na existência de um título formal válido e outra comprovada através
da verificação dos requisitos de legitimação do administrador de facto.
43 Digamos que limitar a utilização da figura do administrador de facto a técnica
sancionatória para prevenção de violação de normas, não só é uma perspetiva limitada como também contraditória. Senão vejamos: por um lado rejeita-se a aplicação da noção de administrador, ao sujeito cuja atividade no seio da sociedade preenche os requisitos que identificámos, por outro implica-se a vinculação dos mesmos a obrigações que incumbem, por lei, sobre os administradores de direito. Como explana RICARDO COSTA: «(…) essa linha acaba, contraditoriamente, por inutilizar em parte deveras eloquente o alcance dogmático de não se considerar indefetível a designação formal para identificar os sujeitos a quem se imputam as funções e as responsabilidades gestórias e, de outra banda, a individualização dos critérios de identificação e aplicação da disciplina societária a esses sujeitos que ilegitimamente exercem tarefas análogas às dos administradores formalmente legítimos (…)» - Cit. Ibidem, p. 731
44 O que não significa que se defenda a equiparação total do administrador de facto ao administrador de direito, não estando em causa uma relação de igualdade plena com a correspondente figura de direito. O que sucede é: dada a verificação de uma real e efetiva atividade de administração, dispensa-se a tarefa de selecionar as normas aplicáveis aos administradores de facto, e evita-se a aplicação de normas e preceitos diferentes, a situações que são muito semelhantes, ou mesmo idênticas.
28
A teoria de equiparação da qualidade de administrador de facto ao
administrador de direito tem o potencial de produzir, aqui num plano meramente
teórico, relevantes consequências se aplicada ao caso em análise.
Uma das questões mais intrinsecamente relacionadas com a figura da
administração de facto é, precisamente, a vinculação da sociedade pelos atos destes
administradores 45.
A indefinição da questão, que tem relevância, é reflexo da posição, a nosso
ver, pouco acertada, do legislador não consagrar a figura no ordenamento jurídico,
especialmente onde faria mais sentido, no domínio societário 46.
A solução, não se encontra, pois, englobada num qualquer preceito legal
diretamente direcionado para o administrador de facto e para a possibilidade de
vincular a sociedade. Pode estar, antes, na exploração do conceito do administrador
de facto jus societariamente relevante, e da consequente extensão da capacidade de
vincular a sociedade destes administradores.47
Propor a equiparação legal do administrador de facto ao administrador de
direito, teria reflexos na capacidade de do primeiro atuar e manifestar a vontade da
sociedade, que se equipararia aquela detida pelo titular de jure do um órgão de
administração, já que relação orgânica com a sociedade seria equiparável, e a
capacidade de “representação” e vinculação também.
Pode questionar-se se o carácter fáctico da posição do administrador, não
constituiria causa de oponibilidade para alegar a ineficácia do ato. Não cremos que
assim seja.
Como vimos no anterior capítulo, aludindo ao princípio de ilimitação dos
poderes representativos dos gerentes e administradores, a lei prevê a eficácia de
atos praticados sed contra das limitações impostas pelo contrato social, das direções
dos órgãos de gestão ou de deliberações dos sócios, que tenham impacto direto na
45 PAIS DE VASCONCELOS – A preposição,2, p. 406 46 Assim ibidem, p. 408 e RICARDO COSTA – Os Administradores de Facto das Sociedades
Comerciais, Coimbra: Almedina, 2014, p. 84. 47 Ou então, como indica PAIS DE VASCONCELOS, através da aplicação dos artigos 248º e
249º do Código Comercial (C. Com). – A preposição,2, p. 406
29
esfera jurídica de terceiros de boa-fé que se relacionam ou que se relacionaram em
algum momento com a sociedade.
Acreditamos que a aplicação do princípio de ilimitação de poderes dos
titulares dos órgãos sociais, é igualmente incidente sobre os administradores e
gerentes de fato, se adotarmos a teoria da sua equiparação legal aos gerentes de
Direito.
Para além disso, não vemos motivos que possam fundar a oponibilidade ao
ato, quer por terceiros quer pela própria sociedade.
Por um lado, «aos terceiros (…) não interessa o motivo pelo qual um sujeito
assume (de direito ou de facto) uma determinada posição jurídica, mas o facto
objectivo da assunção de um determinado tipo de atividade (…)». Ao terceiro «pouco
importará (…) sob qual veste tenha sido realizada uma determinada actividade
gestória, mas antes que essa actividade tenha sido realizada por um determinado
sujeito e em determinadas condições» 48.
Menos motivos vemos, para a oponibilidade da sociedade aos efeitos de atos
praticados por administradores de facto. Se estamos recordados, um dos critérios
de verificação obrigatória para revelar uma situação de administração de facto é a
tolerância que a superintendência levada a cabo pelos sujeitos a quem é atribuído o
título funcional de administrador de facto, colhe no seio da sociedade. É ponto
assente que o administrador de facto jus societariamente relevante age com a
anuência total, ou pelo menos manifestamente significativa, da sociedade e dos seus
órgãos. Se assim é, que razão existe para propor o despreendimento entre o sujeito
que pratica o ato, da sociedade 49?
Na realidade, o administrador de facto, por todas as razões que vimos a priori,
exteriorizaria o seu comportamento, como se o da sociedade com a qual se relaciona
organicamente se tratasse, assim como um administrador de direito. É por essa
razão que, hipoteticamente, o sujeito titular do título funcional e legitimado como
administrador jus societariamente relevante, representaria e vincularia a sociedade
48 Cit. RICARDO COSTA – Administrador de facto…, p.741. 49 Há que dar relevância ao facto de o administrador de facto com legitimação jus societária
ser aceite pela sociedade e não atuar como um qualquer usurpador de funções, mero representante sem poderes ou falsus procurator. Cfr. Ibidem, p. 738 e 739.
30
nos termos comuns da representação e vinculação associada aos administradores
de direito.
Por isso deve «a sociedade deve ficar vinculada ao reflexo externo perante
terceiro que a sua tolerância ou aceitação acerca da sua própria organização», não
podendo recorrer à situação fática do administrador, que, de uma forma ou outra,
ajudou a criar, para se distanciar da sua atuação 50.
Por descuramento consciente da teoria do administrador de facto, ou por
irreflexão sobre ela, a representação externa e vinculação da sociedade pelo
administrador de facto não colhe particular aquiescência junto da lei e da
jurisprudência em Portugal, o que não surpreende, uma vez que administrador de
facto é raramente alvo de atenção por parte do administrador português 51.
50 Cit. Ibidem, p. 743. 51 O legislador, apesar de consagrar a figura do administrador de facto em alguns diplomas,
nunca o concretiza. Encontramos referências ao conceito na Lei Geral Tributária, no Código Insolvência e da Representação de Empresas, até no Direito penal se discutindo a figura (sobre uma possível aplicação do artigo 12º do Código Penal ao instituto). Não obstante, embora as referencias existam, ainda não se vislumbra uma definição legal do conceito. A possibilidade de apor um preceito no CSC relativo à figura foi avaliada pela CMVM em 2006, no âmbito do processo de consulta pública n.º 1/2006, foi entendida como desnecessária. Como explica ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, «No caso da legislação societária, ter-se-á entendido que os arts. 80. º, 83. º e 84. º do CSC permitiriam dar resposta a um conjunto de situações que cairiam no âmbito da figura. Além disso, a responsabilização por via dos arts. 72. º ss. não estaria excluída, pois a tarefa de explorar a figura do administrador de facto sempre haveria de ser deixada aos tribunais e à doutrina, sendo, afinal, um problema de interpretação do direito vigente». Cit. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA - Administração de facto…, p. 228. Estranhamos esta posição. Afinal, o fenómeno de administração e gestão de facto é comum no meio societário, pelo que não se compreende a razão para que o legislador, tendo consciência da relevância da figura no círculo do direito comercial, ignore o instituto, logo com particular desdém, na lei base do direito societário, o CSC, onde, em princípio de razão, será o campo de aplicação mister do conceito. Além disso, colocar na jurisprudência a responsabilidade de definir o conceito, não foi, por ventura, a melhor escolha. Como expõe JOÃO CABRAL: «Efectivamente, se há uma nota que paute o tratamento que a figura do administrador de facto tem recebido em sede casuística é a total falta de critério. Podemos, na verdade dizer que o único dado seguro e previsível com que os titulares dos corpos sociais podem contar é que a sua responsabilização apenas estará excluída se não se tiver verificado qualquer ingerência – independentemente da sua intensidade – na actividade social». Cit. JOÃO DOS SANTOS CABRAL - A responsabilidade tributária subsidiária do administrador de facto, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Vol. I, Coimbra, 2009, p. 261. Noutros ordenamentos jurídicos, contudo, o legislador não se coibiu de estabelecer conceitos e critérios para definir o administrador de facto. O caso mais simbólico, é a secção 251 do Companies Act de 2006, a principal fonte de matéria legislativa de sociedades comerciais do Reino Unido. Aqui, o shadow director é definido como «a person in accordance with whose directions or instructions the directors of the company are accustomed to act», em tradução livre: «uma pessoa cujas intruções e direções os administradores da sociedade estão habituados a seguir». Na common law o destaque dado ao de facto e ao shadow director é significativo e a concretização dos conceitos é comum. Veja-se por exemplo, nesta obra de 1987: «A person who has not been duly appointed a director, or who has become disqualified from being a director, is not a de jure a director, but since a person in such a position may actually act as a director, he may be a director de facto» Cit. C.M. SCHMITTHOFF - Palmers Company Law, Volume I, Londres: Stevens&Sons, 1987, p. 893.
31
Mas no caso que nos propusemos a analisar, são levantadas problemáticas
que, na nossa perspetiva, podem ser abordadas com recurso a estas ferramentas. O
elenco de ideias que fomos exibindo, da administração de facto e a sua relevância no
contexto jus societário e consequente asserção de uma equiparação da figura à
administração de direito, pode ser de utilidade assinalável, não só para este estudo,
como para o direito societário.
Temos bem presente que de identificar os sócios não gerentes como
administradores de facto, de equiparar a figura à administração de direito e de
garantir pela via legal que a sociedade se encontra vinculada ao conteúdo da letra,
com base na equiparação implícita de todas as mesmas regras legais e estatutárias
respeitantes aos administradores de direito aos administradores de direito (sem
exceção, claro está, das que dizem respeito aos poderes representativos e ao modo
de exercer os poderes de representação da sociedade) é uma possibilidade que é,
por enquanto, apenas colocada num plano meramente abstrato, ainda para mais na
ordem jurídica nacional, onde o conceito não recebe a atenção que deveria.
Como refere RICARDO COSTA: «falta, manifestamente, norma expressa que,
ao menos para certos efeitos, equipare a posição de quem exerce de facto a função
administrativa à do administrador regular e validamente nomeado» 52.
Subscrevemos a frase, mas ainda assim, julgamos que mesmo expondo estas
ideias num quadro teórico-analítico, podemos mostrar como esta teoria pode,
potencialmente, ajudar a resolver uma situação verídica, que tantas dificuldades
pode suscitar. Vejamos como se aplicariam estes critérios, ao caso em análise.
Aplicando os requisitos que enumeramos para depreender uma
administração de facto jus societariamente relevante a posição e atividade dos
sócios A e B, que obteríamos as seguintes conclusões.
Em primeiro lugar, a sua atividade depreende-se claramente como uma de
positiva administração e não uma que se baste na mera influencia no gerente
formalmente designado, como é o caso para os administradores de facto na sombra.
Como vimos, a atuação é de tal forma real que os sócios chegam a substituir o papel
52 RICARDO COSTA – Os administradores…, p.84.
32
e a agir como se tivessem os poderes de um gerente de jure. Isto é de tal modo
evidente, que esta dissertação se baseia num caso onde, tal como um gerente de
direito, dos sócios apresentaram-se a um terceiro como representantes da
sociedade, e apuseram a sua assinatura mencionando essa qualidade numa letra, de
fora a vincular a sociedade. A virtude positiva do comportamento destes dois sócios
é inegável.
Por outro lado, também parece certa a autonomia com que agiam, não nos
sendo relatado qualquer limitação imposta por outros sócios, o que acaba por ser
lógico, tal o domínio económico e a disparidade no controlo do capital social de A e
B para os restantes sócios.
A natureza sistemática e continuada da atividade de A e de B é aqui, o ponto
que levanta mais dúvidas, por termos um conhecimento limitado da sua atividade
na sociedade. Ainda assim, dados os contornos deste caso em específico e da
natureza da relação com o órgão administrativo e com os restantes sócios, não
parece ser uma inferência demasiado arriscada afirmar que comportamentos como
o aqui em análise, ocorriam com muita, ou pelo menos, com assinalável frequência.
Por último, é obvio que a atividade destes sócios colhia a aceitação e
tolerância dos restantes órgãos, pelas razões que expusemos supra.
Visto isto, parece-nos ser possível confirmar uma atuação típica de
administração de facto relevante de A e de B, passível de resultar na conclusão pela
sua equiparação a um gerente de direito.
Em resultado desta conclusão, os atos de A e B entrariam, agora sim, no
âmbito da representação orgânica e a possibilidade de vinculação da sociedade por
essa via, já seria uma hipótese a considerar.
Admitida esta hipótese no plano experimental, como concluíamos acerca da
questão acima?
Sabemos que os gerentes devem praticar atos integrados na sua esfera de
competência, necessários e convenientes á realização do objeto social da sociedade
e com respeito pelas deliberações dos sócios, como estabelece o artigo 259 º.
33
Este artigo não visa delimitar a competência da gerência, mas sim estabelecer
o caráter funcional dos seus poderes e a sua subordinação às deliberações dos
sócios, o que representa a ideia que transparecemos anteriormente, de que o poder
de representação dos gerentes é inicialmente fundado através do exercício do poder
de decisão dos sócios, na assembleia geral. Por sua vez, a formação dessa vontade
será transmita aos terceiros, na forma de indicações e instruções, e estes irão formar
e manifestar essa vontade de acordo.
Contudo, os gerentes podem, mesmo assim, agir a contrario, das deliberações
da assembleia geral ou do próprio contrato social, hipótese prevista no art. 260 º n.º
1 do CSC.
Contudo, essas limitações aos poderes representativos por deliberação ou
contrato social, têm uma eficácia meramente interna. Não se depreende que os
gerentes que ajam em contrário das deliberações dos sócios o façam numa atuação
sem poderes. Ou seja, a sociedade considera-se vinculada ao ato em causa, mesmo
que tenha sido realizado em situação como a descrita, não obstantes a exceções de
possível oponibilidade, prevista a partir do previamente referido 260º n.º 2 53.
A relevância da norma, prende-se sobretudo com a «fronteira» demarcada
para os poderes administrativos dos gerentes, por parte dos sócios.
A violação das decisões do órgão deliberativo, por parte dos titulares do
órgão representativo, cria indefinições na determinação da vinculação da sociedade
aos atos praticados pelo gerente que foi contra a posição social demarcada pelos
sócios. É essa indefinição que o artigo 260 º do CSC visa regrar 54.
Contudo, o problema da vinculação já não se coloca se estes poderes se
reunirem na mesma pessoa ou pessoas, ou seja, se quem pratica o ato em
representação da sociedade é a mesma pessoa que possui o poder decisório de
direcionar e estabelecer a vontade da sociedade. Nestes casos, os obstáculos à
vinculação são nulos, por ser absurdo falar que o poder representativo vai contra
53 João ESPÍRITO SANTO – Sociedades por Quotas…, 1, p. 430. 54 Ibidem, p. 430.
34
alguma disposição do órgão decisório, uma vez eu estão reunidos na mesma
pessoa.55.
Ora, como vimos, o domínio do poder decisório reunido nos sócios A e B é
expresso, de tal forma que acabam por se sobrepor á própria gerência, agindo no
lugar dela, com uma intensidade tal que nos levou a abrir a possibilidade de lhes
atribuir o título funcional de administrador.
Assim sendo, admitindo pela equiparação de A e B à qualidade de gestores, e
consequentemente, da capacidade de ambos para agirem em representação da
sociedade, aliada ao expresso controlo do poder do órgão decisório, levam-nos a
concluir que, nestas circunstâncias, seria possível concluir que a sociedade estivesse
vinculada ao conteúdo da letra de câmbio.
Para a parte final deste estudo, e na perspetiva da sua natureza prática,
guardamos uma pequena proposta juri condendo que, a nosso ver, é de relevante
discussão, especialmente no domínio societário.
55 Ibidem, p. 431.
35
Capítulo III – A representação da sociedade pelos sócios. A representação voluntária.
8. – Introdução.
Embora tenhamos concluído que a vontade da sociedade comercial se
manifesta por meio dos seus órgãos, cuja atividade corresponderá a uma atuação da
própria sociedade, fizemos referência a que nada impedia a pessoa coletiva de, tal
como uma pessoa singular, constituir representantes.
Se a sociedade, através dos seus órgãos, decidir, voluntariamente, atribuir a
outrem determinados poderes representativos, entra-se no domínio da
representação voluntária.
Numa definição simples, podemos descrever a representação voluntária,
como uma declaração de vontade de um representado, ou dominus, expressa através
de um representante, ou procurator, que não é o titular do interesse, sendo que o
efeito dessa declaração produzirá efeitos na esfera jurídica do dominus, e não do
procurator 56.
É um fenómeno que, para ocorrer corretamente, não se encontra livre de
pressupostos. Em primeiro lugar, deve o representante manifestar objetivamente a
sua qualidade como tal, ou seja, deve transparecer que a sua atuação é no interesse
de um representado e produzirá efeitos na esfera jurídica do último. Em adição, ao
representante devem ter sido atribuídos, pelo representado, poderes que lhe
permitam agir em seu nome. Por fim, deve o representante atuar nos limites
estabelecidos para os poderes de representação e nunca para além dos mesmos 57.
Os poderes conferidos pela representação voluntária fundam-se na
procuração, um negócio jurídico pelo qual alguém cede a outrem, de forma
voluntária, poder para o representar, definindo previamente o âmbito e os limites
dos poderes de representação que atribui 58.
56 Maria HELENA BRITO – A Representação Sem Poderes – Um Caso de Efeito Reflexo das
Obrigações, in Revista Jurídica, n º 9 e 10, Lisboa: Associação Académica de Lisboa, 1988, p. 19. 57 Ibidem, p. 17-18. 58 Por procuração pode entender-se, por um lado o ato do representado conferir ao
representante poderes de representação, por outro, o documento respeitante à exoneração do negócio. Cfr. MENENEZES CORDEIRO – Tratado…V,3, p.128.
36
A vontade do dominus em ser representado, é transmitida e marcada pela
procuração, o alicerce do poder de representação de natureza voluntária, como
denota o artigo 262º do CC. Sem a verificação de uma anterior manifestação de
vontade em ser representado da parte do dominus, expressa através da procuratio,
o comportamento de quem age em nome de outrem não se considera ratificado, não
se podendo concluir uma situação de representação voluntária.
Na origem da procuração está, na grande generalidade dos casos, uma
relação anterior à celebração do negócio, entre representado e representante. A essa
relação, à qual o legislador se refere no artigo 264 º, n.º 1 do CC, como a relação
jurídica que a determina (a procuração, entenda-se), chamamos relação de gestão 59.
59 É amplamente discutida a dependência da procuração da sua relação de gestão. Pode
argumentar-se a tese defensora da abstração e autonomia da procuração, admitindo que esta possa existir como um ato isolado sem necessidade de relação subjacente encontramos por exemplo. Por um lado, não se encontra na lei, especificamente, no artigo 262 º, n. º 1 do CC., uma disposição que preveja algo mais do que estritamente a vontade expressa do dominus para a validade da procuração, nunca estabelecendo como validade, os termos ou a existência de uma relação subjacente à procuração. Esta escolha pelo descuro da relação subjacente tomada pelo legislador será o reflexo legislativo de uma perspetiva abstrata da procuração e de uma forma de assegurar a segurança e a certeza no tráfego jurídico, uma vez que obrigar o terceiro a certificar-se da validade da procuração, indagando acerca da existência e validade de uma relação anterior entre o representante e o representado, seria completamente inoperante para com o correto fluxo do tráfego jurídico Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária em Direito Civil, Coimbra: Almedina, 2004, p. 515- 523. O argumento da desconsideração da relação subjacente com suporte na decisão do legislador não nos convence, de todo. O facto de o legislador não prever explicitamente a importância da relação subjacente, não implica minimamente que a mesma não tenha importância, já que, afinal de contas, também não declara explicitamente que para a procuração só tem relevância em si mesma, na sua natureza abstrata, e tudo o que a precede é irrelevante. PEDRO DE ALBUQUERQUE, refere que o silêncio do legislador, no que à relação subjacente à procuração diz respeito: «em nada abona a favor da tese da total separação entre o acto de concessão dos poderes de representação e a relação interna a ela subjacente», sendo por isso o preceito normativo «perfeitamente compatível com a negação da abstracção da procuração». Cit. Ibidem, p. 527. Aliás, em oposição, é possível identificar disposições normativas que parecem apontar para a necessidade de associação da representação ao negócio gestório, como é o exemplo do artigo 1178º, n. º 2 do CC. Quanto ao argumento seguidor do sentido da defesa da tutela do tráfego jurídico, parece-nos levantar questões mais relevantes. De facto, concordamos com a defesa dos interesses de terceiros, garantindo a segurança e tutela do tráfego jurídico, sem os obrigar a depender da diligência insuportável de conferir a verdade da situação de representação, um tema ao qual daremos mais destaque adiante. Refere o PEDRO DE ALBUQUERQUE, que, se existir mesmo uma natureza ou essência da procuração, essa vai no sentido da sua ligação como a relação gestória, isto porque a representação se concretiza como um modo de um gestor e um dominus se ajudarem, a procuração está intrinsecamente ligada a uma relação interna entre ambos, não é abstrata. A teoria da abstração revestirá um excessivo caráter positivista, ignorando a própria origem da representação, que sempre se configurou como um reflexo e uma projeção da vontade das partes, no âmbito e contexto das relações externas. A relação de representação não é, por isso, indissociável da relação subjacente. Cfr. Ibidem, p. 529-534. Se não fosse o caso, como se justificaria o princípio do artigo 265º, n. º 1 do CC, que determina uma causa extintiva da procuração, a relação jurídica que lhe serve de base. Esta previsão, mostra uma dependência vital entre a validade da procuração e a existência de uma relação saudável e em vigor entre representante e representado. Por isso, entende-se que para existir procuração tem que haver,
37
São várias as realidades fundamentadoras de relações de gestão inerentes ao
poder de representação. Uma procuração forense que confira poderes a um
advogado para representar o seu constituinte numa variedade de atos, ou um
contrato de trabalho subordinado que confira ao trabalhador poderes para
representar o empregador, são exemplos de relações de gestão. Desses contratos
nascerá a relação jurídica que permite que uma das partes desenvolva uma
atividade a favor da outra, vinculando-se esta última aos efeitos da atividade que o
primeiro desenvolva no âmbito desses poderes.
Essas relações, na maioria dos casos, fundamentam-se numa relação de
mandato, o negócio tipicamente subjacente à procuração 60. Mesmo que não o sejam,
a relação de gestão subjacente a qualquer situação de representação voluntária
aproxima-se sempre da relação de mandato 61. Por um lado, uma das partes obriga-
se a praticar atos jurídicos em nome de outra. Por outro, o representante
(mandatário) deve agir no interesse e na posição jurídica do representado
(mandante).
9. - A representação em face da ausência de procuratio.
Como se aplicam estes preceitos ao caso de estudo?
Vimos que para concluir por uma situação de representação voluntária, é
necessário identificar, cumulativamente: que o representante aja em nome do
representado, e que lhe hajam sido atribuídos, poderes de representação, através,
não só de uma declaração de vontade do dominus, mas de formalidades
antes de tudo, uma relação identificável entre representado e representante, que fundamente a emissão da vontade do dominus em ser representado. No mesmo sentido, também Pedro Leitão PAIS DE VASCONCELOS defende o papel da relação subjacente como indissociável da procuração, argumentando que, e cita-se, «É na relação subjacente que se encontra o conteúdo, onde está estabelecido ou de onde resulta o critério do comportamento de cada um, dominus e procurador (…)». Cit. PAIS DE VASCONCELOS – A Procuração Irrevogável, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2016, p. 59. Também António MENEZES CORDEIRO parece dar esta relevância à relação gestória: «A efetiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio base (…) a extensão da procuração, as suas vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por que eles devam ser exercidos dependerão, também, do contrato-base». Cit. MENEZES CORDEIRO – Direito Comercial,4, p. 666.
60 MENEZES CORDEIRO, Tratado…V,3, p. 95 61 MENEZES CORDEIRO - Tratado…V, 3, p.113. Também MENEZES CORDEIRO - Direito das
Obrigações, Volume III, 2ª edição, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, p. 298-299.
38
preliminares, levadas a cabo pelo mesmo, informando o representado do alcance
dos seus poderes 62 63.
Ora, analisando os factos, verificamos que o primeiro requisito está, sem
dúvida, preenchido. Os sócios afirmaram que estavam a assinar a letra em nome da
sociedade, e que inclusivamente, possuíam poderes para o fazer, enquanto gerentes
da sociedade.
Não somos capazes, contudo, de depreender dos factos que enunciamos,
qualquer forma de manifestação da sociedade, enquanto representada, no sentido
de atribuir a A e B, poderes de representação.
Não há qualquer menção a um negócio anterior subjacente a uma concessão
de poderes de representação, nem é possível depreender uma relação semelhante à
do mandato.
Sabemos que o funcionamento da representação voluntária depende de um
negócio jurídico, através do qual um dominus confira a um procurator poderes para
atuar eficazmente em seu nome, negócio que é dominado pela procuração.
Vista a ausência de procuratio, não nos parece possível concluir que entre a
Albatroz Lda. e os sócios A e B, exista uma relação de legítima representação
voluntária.
Aqui chegados, temos, mais uma vez, que procurar no sistema jurídico
instrumentos que possam ser aplicados à problemática que emerge desta conclusão,
ou seja, a possibilidade de concluir pela vinculação, ou não, da sociedade, desta vez,
tendo em conta a falta de procuração e de poderes representativos, de forma a
encontrarmos possíveis decifrações que se afigurem adequadas e lógicas, para o
caso em análise.
62 MENEZES CORDEIRO – Tratado… V, 3, p.115. 63 Citando o Acórdão da Relação (Rl.) do Porto, Processo nº 604/04.2TBMMV-A.C1: «A
validade da representação pressupõe os seguintes requisitos: a) - Uma actuação em nome e por conta de outrem – o representante deve agir esclarecendo a contraparte que os efeitos da sua intervenção se reflectem na esfera do representado, logo terá que invocar expressamente essa qualidade, actuando como o próprio representado o poderia licitamente fazer; b) - Dispor o representante de poderes de representação (…)» Cit. Rl. do Porto, 29-mai-17, (Jorge Arcanjo), Proc. nº 604/04.2TBMMV-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
39
9.1. – O abuso de representação e a representação sem poderes.
O problema pode ser, em primeira instância, reconduzido às previsões legais
da representação sem poderes e do abuso de representação. Estes institutos,
embora diferenciados, articulam-se com as disposições relativas à modificação,
cessação ou inexistência de procuração 64. Assim sendo, vejamos que conclusões
podemos retirar da análise a ambos.
Antes de tudo, é importante não confundir os conceitos. Embora se
aproximem, representam situações diferentes e a sua distinção deve ser esclarecida
65.
Como estabelece o artigo 268º do CC, falamos em representação sem
poderes, ou falta de poderes de representação, quando alguém leva a cabo
determinada atividade representativa, sem que para tal lhe tenha sido atribuído o
respetivo poder de representação.
Em princípio, o negócio deve ser considerado nulo, uma vez que não se
verifica a fundamental legitimidade para representar e produzir efeitos na esfera do
dominus. É possível que, ainda assim, se conclua pela vinculação do dominus, se ele
ratificar o negócio. Por ratificação deve-se assim entender, o ato jurídico através do
qual o “representado” escolhe acolher o negócio concluído pelo falsus procurator, na
sua esfera jurídica 66.
No caso do abuso de representação, previsto no artigo 269º do CC,
pressupõe-se a existência formal de poder representativo e a atuação do
representante dentro dos limites formais da procuratio. Contudo, apesar de o
representante agir no quadro formal dos seus poderes, abusa deles, isto é, agindo
materialmente contra os fins da representação.
64 MENEZES CORDEIRO – Tratado…V, 3, p. 150. 65 Verifica-se o cuidado desta distinção, nos acórdãos do STJ de 23-set.-09, (Salvador da
Costa) Proc. 04B2716, STJ de 2-jun.-15, (Hélder Roque), Proc. 505/07.2TVLSB.L1.S e Rl. de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc. 164/05.7TBVLF.C2, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt.
66 Não se deve depreender que a ratificação representa um modo do dominus, aprovar o ato e o comportamento do “representante”. O dominus, mesmo que reprove a conduta do agente que em seu nome agiu, pode mesmo assim, entender que os efeitos do negócio efetuado pelo falsus procurator lhe possam traer algum benefício, e por isso ratifica-o, mesmo que censure a conduta do agente. Cfr. MENEZES CORDEIRO – Tratado…V,3, p. 151.
40
Diferente, portanto, da representação sem poderes, que se aplica aos casos
em que o “procurator”, não possua qualquer poder representativo.
No caso do abuso de representação, a eficácia do ato dependerá do terceiro
conhecer, ou dever conhecer, da situação de abuso 67 68. O abuso de representação
é, pois, o exercício de inerentes poderes de representação, mas de uma forma que
vai contra a relação subjacente ou em violação do contrato que dela resulta.
Por sua vez, no que à representação sem poderes diz respeito, estipula o
Acórdão da Relação de Coimbra de 10-fev.-15, com o número 164/05.7TBVLF.C2,
relatado por Isabel Silva, que: «a lei sanciona-a com a ineficácia do negócio em
relação ao dominus; contudo, e porque o representado pode até ter interesse no
negócio, a lei prevê a possibilidade de este o ratificar; fazendo-o, o negócio adquire
total eficácia, desde o momento da atuação do representante, como se nunca tivesse
havido qualquer vício» 69. Ou seja, em princípio, o negócio é ineficaz em relação ao
dominus, embora, como já dissemos, caso o ratifique, ele cairá na sua esfera jurídica
70.
Não havendo ratificação, o negócio mantém-se, mas é ineficaz quanto ao
“representado”, ficando apenas o terceiro a ele vinculado. No caso do abuso de
representação, a eficácia do negócio dependerá de se apurar que o terceiro conhecia,
ou devia conhecer do abuso.
Feita esta breve exposição compreende-se que , como patenteia o Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 23-set.-09, com o número 04B2716,
relatado por Salvador da Costa, independentemente da classificação conceptual pela
67 Cfr. Rl. de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc. 164/05.7TBVLF.C2, disponível em
www.dgsi.pt
68 O grau de diligência do terceiro, deve segundo PEDRO DE ALBUQUERQUE, encaminhado com as teorias de TANK e Raúl GUICHARD ALVES, apurar-se de modo «abstrato» e «objetivo», isto é, em consideração à relação com o representante e à do último com o principal, indagando-se se o terceiro possuía ou não, meios viáveis para controlar a veracidade da relação de representação. Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A representação voluntária…, p.800-801. 69 Cit. Rl. de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc. 164/05.7TBVLF.C2, disponível em www.dgsi.pt.
70 MENEZES CORDEIRO explica que a ratificação permite a eficácia do ato na esfera jurídica da pessoa por conta da qual foi praticado, não se devendo confundir com uma forma de concessão de poderes de representação. MENEZES CORDEIRO – Tratado… V,3, p. 120.
41
qual se conclua , em princípio, salvo uma disposição específica, o negócio é sempre
ineficaz face ao principal 71.
Ou seja, a presunção inicial é a da não vinculação do “representado” ao
negócio, não se partindo do princípio que o negócio produz efeitos na sua esfera
jurídica. As formas para a vinculação do “representado” passam pela sua ratificação
do negócio, no caso de o “representante” atuar sem poderes de representação, ou no
caso do abuso de representação, a falta da boa-fé do tertius, caso conhecesse ou
devesse conhecer da situação de abuso.
Não quer isto dizer que se defenda que a qualificação por uma ou outra
designação é indiferente. Como chamámos há pouco à atenção, são duas figuras
diferentes, com pressupostos distintos e que devem ser diferenciadas.
O que se refere é que, independentemente da figura aplicável, que no nosso
caso, parece não levantar grandes dúvidas, será a da representação sem poderes, já
que concluímos pela ausência de poderes representativos, o que impede a
possibilidade do abuso de poderes de representação, o resultado é a conclusão de
falta de legitimidade representativa para agir de uma determinada maneira.
Em resultado dessa ilegitimidade, o “representado”, neste caso a sociedade,
só se vinculará aos efeitos do negócio se o ratificar. Não é presumível a sua
vinculação, mas o seu desprendimento do negócio.
Ora, tendo isto em conta, nova interrogação surge. Existirá alguma forma de
concluir pela vinculação da sociedade, sem que a mesma tenha que a receber
propositadamente na sua esfera jurídica? É a pergunta que pretendemos responder
no ponto seguinte.
10. - A representação aparente no Direito civil e comercial.
Mesmo numa situação de ausência de poderes de representação, existe, na
lei, forma de vincular a sociedade aos atos destes sócios, que não pela via da
71 Como explana o douto tribunal: «Assim, a representação com falta de poderes por parte do
representante para a prática do acto respectivo, tal como o abuso de representação, neste caso se a outra parte o conhecia ou devia conhecer, têm o mesmo efeito de ineficácia em relação ao
representado». Cit. STJ, de 23-set.-2008 (Azevedo Ramos), Proc. 08A2239, disponível em
www.dgsi.pt.
42
ratificação do negócio concluído por representante sem poderes? Os interesses de
terceiros e a vinculação social, encontram-se garantidos mesmo numa situação onde
inexista procuração e poderes representativos?
Colocando a questão de forma diversa, de uma perspetiva jus positiva,
podemos considerar os institutos e princípios estabelecidos pela lei portuguesa
como suficientes para servirem de resposta, ou, caso contrário, pode-se entender
que a lei, da forma como está construída atualmente, demonstra insuficiências para
tratar com clareza de um problema desta natureza?
Vejamos se através de uma análise às disposições legais do CSC, CC e outros
diplomas legais, poder-se-ia concluir pela vinculação da sociedade ao conteúdo da
letra.
A resposta parece ser negativa. De uma primeira leitura da lex escrita, não
encontramos fundamento para sustentar positivamente a possibilidade de um
negócio levado a cabo por um falsus procurator sem poderes de representação
atribuídos e sem o conhecimento do dominus, consagrar, não obstante, a validade do
negócio.
O artigo 268º n. º1 do CC, é nesse sentido claro, quando estabelece que o
negócio que uma pessoa sem poderes de representação celebre em nome de outrem
é ineficaz em relação a este. Interpretando a norma, conclui-se que,
independentemente das circunstancias, não há lugar à apreensão de legítimo poder
representativo, muito menos de produção de efeitos na esfera jurídica de outrem,
no caso em que não tenham sido atribuídos poderes de representação pela normal
via voluntária, legal ou orgânica 72.
Como já tivemos a possibilidade de estudar, no que à sociedade por quotas
diz respeito, o CSC, no seu artigo n. º 260º, estabelece que os atos praticados pelos
gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere,
vinculam-na para com terceiros, embora possa a sociedade ser igualmente
representada por procuradores ou mandatários nomeados, sem que exista uma
72 Cfr. Paulo MOTA PINTO – Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros,
reflexão a propósito do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de Julho, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1993, p.613.
43
cláusula contratual expressa nesse sentido. O artigo 252º, n. º 6 do CSC é, nesse
aspeto, esclarecedor.
Como concluímos previamente, em qualquer dos casos, por via de um
fenómeno de representação orgânica ou voluntária, os efeitos do negócio
repercutem-se, não na esfera do representante, quem de facto concluiu
pessoalmente negócio, mas sim do representado. Esse é, aliás, o princípio fundador
do poder de representação, conforme a previsão do artigo 258 º do CC: «O negócio
jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos
poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último».
Contudo, será que encontramos na lei civil e comercial, uma referência à
vinculação do “dominus” a obrigações contraídas em seu nome, por sujeitos que não
possuem poderes de representação.
Já que o presente estudo brota de uma relação cambiária, comecemos a nossa
investigação por aí, e vejamos se no diploma legal regulador das letras e livranças, a
Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças (LULL) encontramos resposta à nossa
interrogação 73.
Estabelece como segue, o artigo 8º da LUUL: «Todo aquele que apuser a sua
assinatura numa letra, como representante duma pessoa, para representar a qual
não tinha de facto poderes, fica obrigado em virtude da letra e, se a pagar, tem os
mesmos direitos que o pretendido representado. A mesma regra se aplica ao
representante que tenha excedido os seus poderes».
Ora, de uma primeira apreciação da norma, percebemos que a mesma, visa
regular a possibilidade de sujeitos, não possuindo poderes suficientes para
representar outrem, aporem a sua assinatura na letra, intervindo na relação como
representantes de quem não tinha poderes para representar. Neste caso prevê-se a
vinculação do conteúdo dos falsos representantes 74.
73 Lei Uniforme relativa às letras e livranças, estabelecida pela Convenção assinada em
Genebra, em 7 de junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de junho de 1934.
74 Explicando a estatuição da norma, cite-se o acórdão do STJ de 1 de abril de 2008, referente ao processo n.º 08A246, relatado por MÁRIO MENDES:
«Sem qualquer margem para dúvida o artigo 8º da LULL cria um regime imperativo de responsabilidade do pseudo-representante, nas expressivas palavras de Ferri “é a lei que considera
44
Sem embrago, não encontramos aqui a resposta ao problema. Pelo
estabelecido na redação do artigo, conclui-se pela vinculação ao conteúdo da letra
de quem se arrogou como representante sem o ser. Em virtude da norma, no caso
concreto A e B estarão vinculados ao conteúdo do documento cambiário, o que
corresponde, aliás, à conclusão alcançada pelo julgador de primeira instância.
Ora, a conclusão a que chegamos através dos conceitos manifestados no
acórdão supra, é a seguinte: no âmbito do artigo 8º da LULL, e para efeitos de
vinculação ao conteúdo da letra, é indiferente a qualidade em que a assinatura é
aposta, se como gerente, se como representante da gerência, não sendo necessário,
para a produção normal dos efeitos decorrentes do título, que se exponha em qual
das qualidades se intervém 75.
Da passagem por estas normas, não encontramos, em primeira análise, uma
previsão que preveja especificamente a possibilidade de um negócio levado a cabo
como não escrita a indicação da representação e mantém firmes os efeitos da subscrição pelo pseudo-representante” (…)”» Cit. Acórdão do STJ, de 1-abr.-2008 (Mário Mendes), Proc. 08A246, disponível em www.dgsi.pt.
75 Neste acórdão do STJ, de 16-mai.-1991, relatado por Pereira da Silva, o tribunal debruça-se sobre a “qualidade” do gerente que apõe a sua assinatura na letra, admitindo a validade da assinatura de procurator ao qual a gerência atribua poderes de representação. Ainda assim, não deixa a validade do ato estar dependente de concretos e válidos poderes de representação. “O artigo 8 da Lei Uniforme de Letras e Livranças estabelece o principio de que ficara individualmente vinculado aquele que, em representação de outrem, apuser a sua assinatura em qualquer letra ou livrança, desde que não tenha poderes para o efeito. Mas tal normativo, embora não se dirija directamente a permitir a assinatura por procuração, pressupõe claramente a sua admissibilidade. No entanto, para que os efeitos da representação se produzam, e indispensável, - segundo os diversos autores, (…) "que o representante aponha a sua assinatura na letra como tal, isto e, que ele declare assinar em nome do representado, claramente especificando a pessoa deste ultimo", (…) A partir daqui entendeu-se na primeira instancia que a pessoa que assinou a livrança como gerente da embargante devia declarar que o fazia por procuração e não o fez, e, por isso a sociedade não ficara vinculada. (…) Poder-se-ia dizer que a pessoa que assinou a livrança como gerente da sociedade embargante não o era, ou melhor, não era nenhum dos seus sócios gerentes, e, nessa medida, tinha de fazer a indicada declaração. - Nada disso. O problema situa-se no campo da representação das sociedades e da responsabilidade das mesmas perante terceiros pelos actos dos seus gerentes. Quem contrata em nome da sociedade, invocando a sua qualidade de gerente, não tem que especificar se e gerente nomeado no pacto social, se e gerente eleito na assembleia geral ou se e gerente por procuração. Apenas tem que provar que e gerente, e ainda, (se lhe for exigido), que tem poderes para o acto. Ora no caso presente interveio um individuo que se intitulou gerente da embargante. Resta saber se o era, ainda que por procuração. Se o era, e tinha poderes para o acto, a embargante não pode deixar de estar vinculada». Cit. Acórdão do STJ, de 16-mai.-1991 (Pereira da Silva), Proc. 080549, disponível em www.dgsi.pt.
45
por um falso representante, sem o conhecimento ou a posterior ratificação do
negócio por parte do representado, ter efeitos na esfera jurídica do último.
Ainda assim, vejamos se as nossas conclusões sobre o problema da
vinculação da sociedade, nos termos do caso de estudo, são diferentes se focarmos
a nossa atenção nas normas relativas à proteção de terceiros
Encontramos no 266 º CC, o preceito formulado pelo legislador para proteger
a confiança de terceiros de vicissitudes internas da relação entre representado e
representante que possam afetar o negócio. O artigo começa por estabelecer no n. º
1, que «As modificações e a revogação da procuração devem ser levadas ao
conhecimento de terceiros por meios idóneos, sob pena de lhes não serem oponíveis
senão quando se mostre que delas tinham conhecimento no momento conclusão do
negócio». Para além destas, «As restantes causas extintivas da procuração não
podem ser opostas a terceiro que, sem culpa, as tenha ignorado» 76.
Quanto à tutela de terceiros que se relacionassem com um falso procurador,
está essa situação regrada pelo artigo 260º do CC, cuja epígrafe é “justificação dos
poderes do representante”.
Da análise da previsão normativo, parece-nos estar implícito um ónus que
denominamos de “autotutela”. Atribuímos esta designação ao conteúdo da norma,
porque a mesma, visando a proteção de terceiros que se deparem com uma
procuração viciada, limita-se a conferir ao terceiro de boa-fé o direito de exigir do
representante a prova dos seus poderes, caso contrário correrá por sua conta o risco
da invalidade do negócio 77.
76 Na sua base, a norma baseia-se numa teoria de aparência jurídica, que tenta explicar a
produção de efeitos da procuração que se encontra extinta. Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado…V, 3, p. 141.
77 Portanto se conclui que a possibilidade dada ao terceiro, que se relaciona com outra pessoa através de representante, de exigir a demonstração da existência de poderes representativos suficientes para prática do ato em questão, é a forma que o legislador oferece para prevenir situações de representação sem poderes ou de abuso de representação. Cfr. JOSÉ ALBERTO GONZALEZ – Código Civil… I, p.338. Somos da opinião de que, mais do que uma “possibilidade” conferida ao terceiro, este dispositivo assume-me quase como uma “obrigação” para um terceiro precavido, já que é a única proteção que lhe será conferida em caso de situações de falsa representação. Atente-se, não falamos deste instrumento de proteção como uma obrigação para o terceiro no sentido técnico. Mas, em virtude da limitação de aplicação de outros institutos, ela assume um papel fundamental, de cariz simbolicamente incontornável, para o terceiro que se queira defender de situações de aparência.
46
Podemos entender que, com a limitação da proteção de terceiros a estes
preceitos, o legislador terá intencionalmente e expressamente excluído quaisquer
outras formas de tutela de terceiros e de admissão de procuração não representativa
78, de forma a privilegiar e defender o «interesse fundamental do representado em
não lhe serem impostas vinculações (…)» 79.
O interesse do terceiro pela execução do negócio, com justificação na boa-fé
do mesmo, não justificaria, na perspetiva do legislador, a prevalência sobre os
igualmente importantes interesses do representado em não ver produzidos na sua
esfera jurídica, negócios que o mesmo não subscreveu 80.
Uma posição que denotaria um claro interesse do legislador em proteger o
princípio da autonomia privada, que oferece às partes envolvidas em determinada
relação, o poder de regular a sua própria vontade, através da liberdade de
estabelecer o conteúdo e a disciplina da relação 81.
Pode conceber-se, em defesa da opção do legislador, que, para além da
preferência pelos efeitos do representado, e do entendimento pela suficiência da
literalidade da lei, esta rigidez normativa da tutela de terceiros, é a forma de
construir um regime propositadamente limitativo do alcance dos poderes de
representação e vinculação envolvidos num ato subscrito por um falsus procurator,
que se apresentasse como representante a um terceiro de boa-fé 82.
Confessamos que todos estes argumentos denotam, na nossa opinião,
fragilidades.
Atente-se, por exemplo, à defesa do regime estabelecido pelo CC com base no
princípio da defesa da autonomia privada e dos direitos do representado.
Manuel CARDEIRO DA FRADA constata que, embora a autonomia privada
tenha vindo tradicionalmente a prevalecer, a intervenção do legislador em sentido
adverso a esse interesse, não é apenas admissível, como é por vezes fundamental
78 PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 992-995. 79 Cit. Ibidem, p. 995. 80 Ibidem, p. 994. Também MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 614. 81 PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 995. 82 PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 992-993.
47
para o normal crescimento ideológico e de segurança do ordenamento jurídico 83.
Achamos que, no âmbito da “representação” por falsus procurator, uma intervenção
desse género se justifica.
Como já reconhecemos, posicionamo-nos contra a limitação à “autoproteção”
por parte do terceiro, como forma de tutela. Por exemplo, no domínio onde é estudo
se conduz, no contexto de tráfego comercial, não se pode esperar que o terceiro
intervenha junto de todos os procuradores com que se deparar, pedindo-lhes a
justificação dos seus poderes de representação, sem que isso afete de forma
manifestamente negativa o fluxo das relações e das boas práticas comerciais 84.
Para além desse aspeto incontornável, também há que colocar em causa a
hipótese de o dominus não ser merecedor de proteção sob o princípio da autonomia
privada, nos casos em que, por exemplo, tenha contribuído para a situação de
aparência ou de ausência de representação 85.
Além disso, propor uma maior amplitude da tutela de terceiros não implica
uma salvaguarda total de todos os seus interesses negociais, independentemente da
sua própria posição face ao negócio. Tampouco se defende a automática vinculação
do representado, quando se evidencie uma situação de aparência jurídica.
Não entendemos que o terceiro, mesmo de boa-fé, esteja livre de encargos,
nomeadamente quanto à diligência que deve mostrar, para conhecer da
legitimidade do procurador e da validade da procuratio. Ainda assim, entendemos
que, em certos casos, há lugar, e deve haver lugar, a uma proteção especial da
posição do tertius face à do dominus 86.
83 Como explica o autor: «Há, de facto, um mínimo de justiça e/ou de decoro de
comportamento que é irrenunciável para qualquer ordem jurídica. Está aí um cerne de ordem pública (contratual), sem a qual o sistema jurídico português igualmente e não pode compreender. Perante situações extremas, há proibições e exigências de comportamento a que todos se hão de ater». Cit. Manuel CARDEIRO DA FRADA - Autonomia Privada e Justiça Contratual. Duas questões, nos 50 anos do Código Civil, in Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017, p. 239 ss.
84 Também para essa perspetiva aponta MOTA PINTO: «No domínio mercantil, por exemplo, a possibilidade de confiar nos poderes de representação de outrem é um elemento importante para a “segurança dinâmica” da actividade comercial (…) não sendo exigíveis a este (terceiro) delicadas e morosas investigações sobre a legitimação representativa das pessoas com quem tem de contratar (…)». Cit. MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 616.
85 Cfr. Ibidem, p. 618. 86 Cfr. Ibidem, p. 618.
48
No respeitante aos argumentos da suficiência da interpretação literal da lei e
da adequação da rigidez da mesma ao problema da tutela de terceiros, não os
reputamos, de todo, como argumentos válidos.
Subscrevemos na totalidade a posição de MOTA PINTO, quando refere que, e
citamos: «O argumento literal é consabidamente limitado, tendo sido ultrapassadas
as orientações interpretativas que amarravam o intérprete ao leito de Procusta da
letra da lei (...)» 87 88 89.
Já quanto à exclusão de uma atenção especial à tutela de terceiros e da
representação sem poderes por parte do legislador, é uma posição que, nas palavras
de MOTA PINTO, não se compreende se se traduz numa «lacuna oculta», ou antes
um «silêncio eloquente» 90. Face a essa indefinição, podemos muito bem seguir, em
concordância com a posição PEDRO DE ALBUQUERQUE, o entendimento de que a
ausência no ordenamento jurídico nacional de um regime de tutela de terceiros que
se relacionem com um falsus procurator, poder ser entendida como uma forma do
legislador «deixar a via aberta a um ulterior aperfeiçoamento do tráfego» 91.
Assumindo essa possibilidade, não vemos impedimento em explorar fórmulas que
o alcancem, já que as disposições normativas que vimos, denotam limitações no
âmbito da tutela de terceiros em situações como aquela que se verifica no caso
análise.
Neste ponto da análise podemos até presumir que, antes da tutela de
terceiros, o legislador esteve mais preocupado em regular a justificação dos poderes
87 E em particular, da insuficiência desta limitação à interpretação literal no que toca ao tema
em discussão: «Sem dúvida que, pela natureza do conflito de interesses em causa, se impõe cautela nesta matéria, mas a simples formulação do artigo 268 º não nos permite excluir in limite formas de tutela de terceiros face à procuração diversa das resultantes, sobretudo, do artigo 266 º» Cit. MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 614.
88 Também parece concordar PEDRO DE ALBUQUERQUE, que aponta para uma cada vez mais distinta insuficiência do elemento literal da lei, como princípio orientador mister da interpretação jurídica, afirmando inclusivamente que foram, e citamos: «ultrapassadas, em grande parte, as orientações interpretativas que amarravam o aplicador do direito à letra da lei (…)» Cit. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 1000.
89 Igualmente segue BATISTA MACHADO: «É claro que a interpretação das normas se torna indispensável para a sua aplicação. É também claro que a construção e legitimação são meios indispensáveis para fazer transparente e apreensível a uma visão global o complexo do ordenamento jurídico». – Cit. BATISTA MACHADO - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 9 ª Edição, Coimbra: Almedina, 1996, p. 360.
90 MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 614-615 91 Cit. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 999.
49
do representante, justificação alicerçada na possibilidade que tem o terceiro de
exigir que o procurador mostre a prova dos seus poderes 92 93 94.
Mas para nós, na persecução do objeto desta dissertação, a maior limitação à
aplicação de qualquer uma destas normas, prende-se com a total ausência de
procuração e de poderes de representação por partes dos sócios A e B.
Recorde-se como, no caso do artigo 260 º, a aplicação do artigo se destina,
pelo n. º 1 a situações de modificação ou de revogação de uma procuração, ou por
aplicação do n. º 2, aos restantes casos de extinção da procuratio.
A norma visa proteger os interesses de terceiros de modificações ou da
cessação repentina de uma procuração. Pode-se até dizer que o artigo 260 º nem
sequer prevê uma verdadeira tutela do terceiro da aparência, mas antes uma
inoponibilidade da revogação ou outras causas de extinção da procuração. Ou seja,
assenta numa pré-existência de certos poderes de representação atribuídos por via
da representação voluntária ou orgânica 95.
Contudo, como já concluímos em relação ao caso em análise, não foi conferida
aos sócios, procuração atributiva de poderes de representação, nem pela via da
representação voluntária, nem pela via da representação orgânica (salvo a
possibilidade de depreender um fenómeno de administração de facto dos sócios, e
consequentemente equiparação da sua qualidade à da qualidade de administrador
de jure).
O problema que do caso decorre não se prende com a extinção ou revogação
de uma procuratio e requer uma solução diferente do que a simples oportunidade
conferida ao terceiro de pedir a justificação dos poderes representativos. Neste caso
de estudo, a proteção do terceiro e a vinculação da sociedade dependem de uma
situação de confiança depositada numa aparência jurídica, criada por falsos
92 Paulo MOTA PINTO - Aparência de Poderes de Representação…, p.605-606. 93 Para além do domínio civil, também no regime do direito comercial a tutela de terceiros
que se relacionem com um falsus procurator parece seguir a premissa da justificação dos poderes do representado, como denota, por exemplo a disposição do artigo 249º do CSC. Cfr. MOTA PINTO - Aparência de Poderes de Representação…, p.609-610. 94 Veja-se por exemplo como no caso do 266 º do CC, «(…) a diferença reside no ónus da prova; na hipótese do n.º 1, o representado terá de provar que os terceiros conheciam a revogação; no segundo, a invocação da boa-fé caberá aos terceiros» Cit. MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4, p. 670.
95 Ibidem, p. 618.
50
procuradores, que não possuíam poderes de representação, embora isso
manifestassem.
Ora, alargar o artigo 266 º a situações onde, simplesmente, falte procuração
é impossível. O que temos é um instrumento de proteção de terceiro, que não foi
informado da cessação do instrumento de representação. Na falta desse
instrumento desde o início, nada permite a aplicação do 266º CC 96 97.
Para além disso, e como já fizemos menção, as disposições do 260 º CC são
insuficientes quanto as situações em que o dominus tenha fundado a situação de
aparência, uma possibilidade que, neste estudo, teremos de levantar 98.
Deparados com este problema, questiona-se: mesmo em face da ausência de
procuração e de poder de representação, pode o representado (no nosso caso a
sociedade Albatroz Lda.), ainda assim, vincular-se aos atos do representante (os
sócios)?
Para responder, há que fazer referência aos esforços de outros
ordenamentos jurídicos, como o alemão, espanhol, italiano, francês e até mesmo na
common law, para desenvolverem sistemas de tutela da confiança de terceiros,
bastante mais amplos do que o criado pelo legislador nacional, com base na
confiança depositada por esses, numa situação de aparência 99. Todos reconhecem
que é mais útil não restringir a tutela de terceiros a modificações ou à extinção da
procuração 100.
96 Nas palavras de MENEZES CORDEIRO: «a previsão protetora assenta num instrumento de
representação efetivamente existente, cuja cessação não foi comunicada ao terceiro (…) Na falta de procuração e mesmo em situações de tolerância ou de aparência, nada há que, objetivamente, faculte a aplicação do referido artigo 266 º» MENEZES CORDEIRO Cit. Tratado… V, 3, p. 144.
97 Também nesse sentido segue PEDRO DE ALBUQUERQUE: «quando a atribuição dos poderes de representação está ligada, segundo as conceções do tráfego, à concessão de determinada posição admite-se estar-se, em regra, na presença de uma comunicação concludente segundo a qual teria sido concedida uma procuração ao proposto. Naqueles casos nos quais isso não aconteceu,de facto, e o proposto não goza de quaisquer poderes, depara-se com uma Scheinvollmacht (procuração aparente)». Cit. PEDRO DE ALBUQUERQUE - A representação voluntária…, p. 1021.
98 Cfr. MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 618. 99 Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE - A representação voluntária…,, p. 1002 e MOTA PINTO,
Aparência de poderes…, p. 622 100 Refere MOTA PINTO, que esses ordenamentos jurídicos, de uma ou outra forma, não
esgotaram a tutela de terceiros que se relacionam com um falsus procurator na proteção contra modificações ou contra a extinção da procuratio, nem na capacidade do terceiro em pedir justificação dos poderes do representante. MOTA PINTO, Aparência de poderes…, p. 626.
51
Podemos aproveitar algum destes esforços jurídicos para aplicar no nosso
mosaico jurídico? A resposta é positiva.
Olhando para o ordenamento jurídico tudesco, em particular para o Código
Civil alemão, vemos nos artigos § 170, § 171, § 172 e § 173, uma estrutura jurídica
de tutela de terceiros, distinta daquela prevista pelo legislador português, no artigo
266 º do Código Civil. Superficialmente, digamos que essas normas preveem que o
poder de representação, uma vez conferido pelo representado, só deixará de
produzir efeitos até que a sua cessação seja comunicada ao representado. Estabelece
o § 173, que não aproveitam da aplicação dessas regras, os terceiros que
conhecessem, ou devessem conhecer, da cessação da procuração 101.
Estas normas compõem um esquema de tutela de proteção de terceiros,
diferente daquele presente na lei portuguesa, com uma atenção particularmente
dirigida para a aparência de representação 102, teoria jurídica que pretende explicar
a eficácia dos efeitos decorrentes de atos de representante, cuja procuração se tenha
extinguido, sem o conhecimento do terceiro 103. Essencialmente, a teoria prediz que,
mesmo que a procuração deixe de conservar validade, por extinção ou qualquer
outro facto, a sua eficácia mantém-se, com o fito de salvaguardar os melhores
interesses de terceiros, que possam ser ludibriados com situações de aparência de
representação 104.
Como vimos anteriormente, não é possível integrar no artigo 266º do Código
Civil, um princípio de proteção de terceiros, nos termos tratados acima, porque os
preceitos do CC não são compatíveis com um esquema de tutela da confiança em
“representante” em ausência de poderes representativos. A confiança é apenas
101 Baseando-nos na tradução de Carlos Melon INFANTE – Código Civil Alemán (BGB),
Traducción directa del Alemán al Castellano acompanhada de notas aclaratórias, com indicación de las modificaciones habidas hasta el ano 1950, Barcelona: Bosch, 1955, p.33.
102 Como explica MENEZES CORDEIRO, o artigo 266º não se aproxima das disposições do BGB, por derivar do artigo 1396º do Código Civil Italiano, correspondendo até a uma reprodução quase literal do mesmo. MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4ª edição, p. 671.
103 Ibidem, p. 671 ss. 104 Nas palavras de MENEZES CORDEIRO «No essencial, ela entende que a procuração se
extinguiu efetivamente; todavia, mercê da aparência e para tutela de terceiros, ela mantém alguma eficácia» Cit. Ibidem,4, p. 671.
52
protegida no Direito Português, como vimos, através da boa-fé do terceiro e no
abuso de direito 105.
Há que recorrer a outros institutos, conciliáveis com uma tutela de interesses
de terceiros em situações, como a do nosso caso de estudo, em que não exista
procuração.
No Direito alemão, dois institutos decorrem do princípio de tutela da
confiança de terceiros, princípio com expressão nos artigos do BGB que enunciámos
e na doutrina e jurisprudência 106. Falamos das figuras da procuração tolerada e da
procuração aparente.
Ambas, como dissemos, caracterizam-se como instrumentos derivados do
princípio da tutela da aparência de representação no domínio comercial, e visam
proteger terceiros de boa-fé. Esses, em resultado da estruturação naturalmente
complexa das empresas com as quais se relacionam, facilmente são iludidos pela
criação de situações de aparência, que os podem induzir em presunções erróneas,
podendo estes institutos valer como forma de salvaguardar os seus interesses.
Na procuração tolerada, alguém admite, repetidamente, que um terceiro se
arrogue como seu representante. Caso se verifique esta situação, ao representante
reconhecem-se verdadeiros poderes de representação, mesmo sem procuração
válida. Alerte-se, isto não implica a concessão de uma verdadeira procuração, é antes
uma forma de tutela de terceiros que, por força da confiança, é imputada ao
“representado” por força do comportamento do “representante” 107. Diga-se que
este esquema só dispõe de validade quando o terceiro que se relaciona com a
sociedade se encontre de boa-fé, ou seja, quando não fosse exigível que conhecesse
ou que devesse conhecer a falta de procuração 108.
105 MENEZES CORDEIRO – Tratado…V, 3, p. 144. 106 Sobre o progressismo do Direito alemão, nomeadamente em alusão ao princípio da
aparência, citamos OLIVEIRA ASCENSÃO: «É mais uma vez o direito alemão a comandar a evolução do direito comunitário. É sabido que naquele país os princípios da aparência e da confiança vigoram muito para além do que acontece nas outras ordens comunitárias. Neste caso, há mesmo um princípio de tutela do tráfego, como entidade abstracta que leva até nesse país a tornar irrelevante a boa fé de terceiros no domínio das sociedades de capitais, no que respeita a actos ultra vires» Cit. OLIVEIRA ASCENSÃO - Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, Lisboa, 1993, p. 316.
107 Cfr. MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4, p. 672. 108 Cfr. RICARDO COSTA: “(…) De todo o modo, o terceiro não poderá ver a sociedade vinculada
se, mais uma vez de acordo com as circunstâncias do caso, se concluir que conhecia ou devia conhecer
53
Já a procuração aparente, é semelhante à procuração tolerada no ponto em
que pressupõe que alguém se arrogue “representante” de outrem, com a
particularidade de o fazer sem o seu conhecimento e aceitação explícita e prévia 109.
O reconhecimento de poderes de representação está, neste instituto, baseado
na presunção de que o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível e de um
comportamento cuidadoso, nomeadamente na vigilância dos seus subalternos,
deveria ter a capacidade de impedir a situação 110. Aqui teremos então dois
elementos, um primeiro sendo subjetivo, a aparência de representação e um
segundo, objetivo, que será a negligência do “representado” 111. No caso de
verificação de ambos os elementos, estaríamos perante uma situação de
representação aparente.
Há que mencionar que, tal como para a procuração aparente, estes princípios
só valem caso o terceiro esteja de boa-fé, ignorando, sem culpa, a falta de
legitimidade do representante, confiando na situação de aparência que não
corresponde à realidade. A existência de negligência, ou a falta dela, do terceiro em
desconhecer da situação de falta de poderes bastantes de representação é, aliás, um
requisito básico para a imputação do ato ao “representado”.
10.2. – A representação aparente no ordenamento jurídico português. A
extensão do artigo 23º da Lei da Agência e a procuração institucional.
Existe no Direito português vigente, um dispositivo que reúne em si a
capacidade de transpor a teoria da aparência para o nosso ordenamento jurídico.
a ausência de legitimidade ou a legitimidade bastante para o acto e, não tendo chamado a si os passos necessários para esclarecer a situação, mesmo assim (ou seja, negligentemente), contratou” – Cit. RICARDO COSTA - Administrador de Facto…, p. 756.
109 Cfr. PINTO MONTEIRO: “(…) não andará, assim, porventura, a “representação aparente” muito longe da “representação tolerada ou consentida” (mas não necessariamente, até porque, apesar do seu comportamento, que contribui “para fundar a confiança do terceiro”, pode faltar ao principal a consciência da declaração, caso em que nos termos do artigo 246º do Código Civil, não poderá recorrer-se à ideia da de declaração tácita, relevando autonomamente o problema da “representação aparente”” - Cit. PINTO MONTEIRO - Contrato de Agência, anotação ao Decreto-Lei Nº 178/86, de 3 de Julho; 5ª edição, Coimbra: Almedina, 2004, p. 108.
110 Cfr. MENEZES CORDEIRO: “Porém, o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível, designadamente na vigilância dos seus subordinados, poderia (e deveria) prevenir a situação” – MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial 4ª edição, p. 673.
111 Vide MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial 4ª edição, p. 673.
54
Falamos do artigo 23º n. º1 do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, relativo
ao contrato de agência, de seu título, precisamente, “Representação aparente”, que
dispõe como segue:
«O negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz
perante o principal se tiverem existido razões ponderosas, objetivamente
apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança
do terceiro de boa-fé na legitimidade do agente, desde que o principal tenha
igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro».
Deste preceito, conclui-se que, para obtermos a eficácia do negócio celebrado
pelo agente, face ao principal, é necessário que exista uma relação com um terceiro
de boa-fé, protagonizada através de uma atuação aparente, isto é, sem autorização
prévia do principal, da qual o terceiro, justificadamente, depreenda a representação
como sendo legítima. Ademais, para a existência dessa relação de aparência, terá
que ter contribuído o principal, sob pena da norma não se aplicar.
O artigo 23º do Contrato de Agência vem então responder, de uma forma
decisiva, comparativamente com o restante panorama jurídico existente, à
necessidade de abordar os efeitos de atos praticados por falsus procurator 112.
Como explana MOTA PINTO, «este artigo concretizou uma evolução de louvar
constituindo um rasgo do legislador no sentido de preencher a necessidade, deixada
em aberto pelo CC, de dispensar a tutela aos intervenientes no comércio jurídico que
tratam com um falsus procurator» 113.
Descoberto o potencial prático da norma, considera-se viável uma aplicação
generalizada do disposto no artigo 23º da Lei da Agência, da figura da procuração
aparente, a situações exteriores ao foro do regime do contrato de agência,
designadamente, de forma a admitir a procuração aparente como um instituo
integrante do Direito comercial?
112 «é exactamente essa necessidade de tutela de terceiros, especialmente acentuada no
domínio mercantil, que (…) o artigo 23º visa satisfazer» Cit. MOTA PINTO – A aparência… p. 591. 113 Ibidem, p. 645.
55
A opinião generalizada é no sentido positivo, que se justifica a aplicação da
norma, a todos os contratos de cooperação ou de colaboração 114.
Em sentido lato, podemos retirar do artigo 23º da Lei da Agência, os
seguintes requisitos necessários para depreender uma situação de aparência que
justifique a tutela de terceiros de boa fé: uma atuação em nome alheio, um terceiro
de boa-fé, uma situação de confiança justificada por parte deste na legitimidade
representativa do agente e que essa confiança possa ser, de alguma forma,
reconduzida ao principal 115.
A doutrina, idealizando a aplicação extensiva do artigo, criou a figura da
procuração institucional. A procuração institucional acaba por ser como que uma
forma de transposição da teoria da aparência para o ramo onde mais influência tem,
o comercial, onde a natural «opacidade» das relações entre representados e
representantes é particularmente confusa para terceiros 116.
O conceito parte do princípio que, tendo em conta que, como concluímos, não
admite o direito português uma direta e expressa tutela da confiança de terceiros na
aparência, nos casos em que falta procuração, pode, numa situação de relação
institucional, isto é, enquadrada numa organização complexa e permanente, por
representar uma realidade sociocultural diversa, justificar-se a integração da tutela
da aparência.
MENEZES CORDEIRO refere que, perante situações meramente individuais,
em que o tertius contrate com um representante de outra pessoa individual, a
previsão do artigo 260º, que se recorde, confere ao terceiro a possibilidade de exigir
ao procurator a prova dos seus poderes, garante ao terceiro de boa-fé que se
resguarde de situações de modificações ou e extinção da procuração. Mas no caso
em que esse terceiro se relacione com uma organização, em cujo nome o agente atue
114 Assim António PINTO MONTEIRO – Contrato de Agência, Anotação ao Decreto-Lei Nº
178/86 de 3 de Julho, 5ª edição, Coimbra: Almedina, p. 109-110, MENEZES CORDEIRO – Tratado… V,3, p.145. e também PEDRO DE ALBUQUERQUE – A representação voluntária…, p. 1054-105, que refere doutamente que «apenas se deverá aceitar como ponto de partida a ideia segundo a qual as regras excepcionais não comportarão aplicação analógica. Porém, quando for possível descobrir uma maior proximidade, efectiva e concreta, entre determinada situação a regular e a norma excepcional do que entre aquela e a norma geral, deverá deixar-se a porta aberta para uma eventual aplicação da norma excepcional». Cit., PEDRO DE ALBUQUERQUE – A representação voluntária…, p. 997.
115 MENEZES CORDEIRO – Tratado V…,3, p. 145. 116 Cfr. Ibidem, p. 1061.
56
e que, dadas as circunstâncias, se justifique a crença nos seus poderes de
representação, terá lugar a procuração institucional 117.
O exemplo representativo desta situação, oferecido pelo autor, prende-se
com a absurdidade que seria se, qualquer um de nós, invocasse perante um
empregado de caixa do supermercado, que justificasse os seus poderes, de modo a
salvaguardarmos as nossas expectativas de não estarmos a lidar com um falsus
procurator e de não estarmos dependentes de uma posterior ratificação do dominus
para alcançar os efeitos normais e previsíveis do negócio 118.
Nesse caso, não será o terceiro a ter que empenhar tentativas de averiguação
de legítimos poderes de representação, a confiança é «imediata, total e geral»
presumindo-se que cabe ao principal «manter a disciplina na empresa,
assegurando-se da legitimidade dos seus colaboradores» 119.
A sua designação é, portanto, presságio do âmbito no qual opera. Num
contexto em que uma pessoa, de boa-fé, contrate com um terceiro que garante atuar,
com poderes de representação, em nome de determinada organização que, pela sua
natureza, não permite que seja viável que a tutela dos interesses de terceiros se
regre pela prorrogativa de pedirem provas de poderes dos seus representantes 120.
Como já transparecemos, a complexidade estrutural inerente à pessoa coletiva, é
propensa a criar, na perspetiva de terceiros, constante dubiedade e incerteza acerca
de existência efetiva de legítima capacidade representativa. O que,
costumeiramente, leva os terceiros a confiar, de forma leviana, na autenticidade
dessa capacidade.
117 Ibidem, p. 146. 118 Ibidem, p. 146. 119 Cit. Ibidem, p. 146. 120 Nas palavras de MENEZES CORDEIRO: «Perante um pretenso representante isolado, a
pessoa que, com ele, contacte deve tomar precauções, inteirando-se da existência e da extensão dos seus poderes. Mas quando depare com uma organização na qual se integre o pretenso representante, a confiança legítima é imediata: ninguém, na caixa de um supermercado, vai interpelar o empregado no sentido de este comprovar os seus poderes de representação. Nesta área, especialmente relevante para o Direito comercial, opera uma procuração institucional eficaz, independentemente da sua qualidade intrínseca», conclui descrevendo a teoria como institucional «que uma procuração aparente limitada a esse circunstancialismo», entenda-se, o da relação do terceiro de boa-fé com uma estrutura organicamente complexa. Cit. MENEZES CORDEIRO – Direito Comercial 4ª edição, p. 674-675.
57
De facto, num contexto como este, a figura da procuração institucional faz
todo o sentido, ainda para mais tendo em conta a posição tomada, quer pelo
legislador, quer em seguimento, da jurisprudência, em defender os terceiros que se
relacionam com este tipo de coletividades.
O legislador e a jurisprudência, têm seguido a via da proteção de terceiros,
em situações de incerteza quanto à vinculação da sociedade, para com obrigações
decorrentes de atos violadores das regras da representação. Veja-se por exemplo,
do que nos dá conta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n. º de processo
08A2239, relatado por AZEVEDO RAMOS:
«Verifica-se uma forte corrente doutrinal e jurisprudencial no sentido de
atribuir primazia aos interesses de terceiros de boa fé, relegando-se para as relações
internas as consequências inerentes ao eventual desrespeito das regras de
representatividade constantes do pacto social. (…) Na composição abstracta dos
conflitos de interesses que podem derivar do exercício ilegítimo de funções de
representação, em caso de gerência plural, o legislador inclinou-se para a protecção
de terceiros, por serem eles que se defrontam com maiores dificuldades no
conhecimento concreto das regras de representatividade da sociedade» 121.
É uma inclinação lógica, porque os terceiros que contratam com a sociedade
não têm, nem devem ter, que se preocupar com a existência de limitações
estatutárias ou de vícios formais que limitem ou impeçam o exercício de poderes de
representação. Não podem, pois, as consequências decorrentes de tais limitações,
afetar os terceiros que contratem com a sociedade.
Nesse sentido, valorize-se a posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, quando refere
o seguinte: «Considera-se que o tráfego mercantil não é compatível com a
repercussão sobre os terceiros das anomalias dos órgãos sociais. Os terceiros que
contratam com a sociedade não têm que conhecer semelhantes limitações: não se
lhes pode impor um ónus exaustivo de informação, que prejudicaria a fluidez do
121 Acórdão do STJ, de 23-set.-2008 (Azevedo Ramos), Proc. 08A2239, disponível em
www.dgsi.pt.
58
comércio jurídico. Nem interessa afinal perguntar se conheciam ou não que o órgão
atuava ultra vires.(…)» 122.
Sendo esse o panorama jurisprudencial e doutrinário em que nos
mobilizamos, não encontramos razão impeditiva de experimentarmos, no melhor
interesse do estudo, fazer uso adequado da figura da procuração institucional, e
também da procuração aparente, como teoria originadora do primeiro conceito,
justapondo-a ao que ao caso efetivo diz respeito.
Mas estará a tutela de terceiros que se relacionem com sujeitos sem
procuração, á teoria da representação institucional? Como há pouco dissemos,
MENEZES CORDEIRO explica que, numa situação negocial individual comum, o
terceiro pode sempre recorrer às previsões dos artigos 260º e 266ºdo CC. Já em
casos em que se insira uma estrutura empresarial complexa, para o ilustre
Professor, aí sim se justifica que o terceiro não tenha que se preocupar com a
existência ou não de procuração, estando protegido por uma proposição decorrente
doa artigo 23º da lei da agência.
Embora, como frisámos, o julgador de primeira instância tenha optado por
uma elementar aplicação do disposto no artigo 260º do CSC, encontramos na
jurisprudência, sentenças que não hesitaram em invocar a figura da procuração
aparente, ou distintivamente, da procuração institucional.
Para demonstrar esse facto, citamos o seguinte acórdão, proferido pelo
Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de novembro de 2011, relatado por Maria
Manuela Gomes:
“Dispondo o art. 23º do DL 178/86, sob a epígrafe “Representação
aparente” que: “1. - O negócio celebrado por um agente sem poderes de
representação é eficaz perante o principal se tiverem existido razões ponderosas,
objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem
a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do agente, desde que o
principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro”, deve tal
cláusula geral ainda que prevista para o contrato de agência, ser aplicada
122 Cit. Direito Comercial, Vol. IV, Sociedades Comerciais, p. 316.
59
extensivamente à generalidade dos casos em que esteja presente a mesma razão de
ser, isto é, em todos os casos em que se justifique a tutela da confiança de terceiros que
contratem com empresas cuja moderna organização interna, regra geral complexa,
foge, de todo, ao conhecimento e controle desses terceiros”. 123
Mas a teoria da aparência, a transpor-se para o nosso ordenamento jurídico,
só poderá ser utilizada num contexto deste género? Para descobrir, vejamos como
se poderia aplicar esta teoria ao nosso caso em análise, descobrindo se os seus
precitos cabem na sua factualidade.
A verdade, é que esta situação parece, a nosso ver, demonstrar distinções
com uma situação tipicamente associada à aplicação da figura da procuração
institucional.
Voltemos ao exemplo do funcionário de caixa do supermercado. A verdade é
que essa pessoa com as quais nos deparamos e da qual esperamos algum tipo de
relação com o dominus, possui, normalmente, claros sinais distintivos que permitem
tomar essa decisão (uniforme, o exercício de funções tipicamente conotadas com um
empregado caixeiro de supermercado).
Não cremos que neste caso, isso se depreenda. Como já referimos, a
aparência de poderes de representação num contexto institucional depende dos
dados socioculturais vigentes e a inserção orgânica do representante. Ambos os
requisitos são enunciados partindo do princípio que devem ser apreendidos,
obviamente, pelo tertius. Neste caso, C poderia depreender uma situação de
representação com base destes fundamentos?
A verdade, é que C, como qualquer pessoa, quando se dirige ao supermercado
e se dirige aos balcões de pagamento, depara-se com uma pessoa que utiliza os sinais
distintivos do comerciante e que está visivelmente inserida no estabelecimento
físico do empresário, a exercer funções típicas de um caixa de supermercado.
123Acórdão da RLx, 25-nov.-2011 (Maria Manuela Gomes), Proc. 1062/2001.L1-6, disponível
em www.dgsi.pt.
60
Face a essa situação, não parecem existir grandes possibilidades que C,
deparado com isto, duvide que aquela pessoa não esteja inserida na estrutura
orgânica daquela sociedade.
Diferente, é o case study. Neste caso, a inferência de C em acreditar que A e B
possuíam poderes de representação, por exercerem funções no órgão
administrativo da sociedade, prende-se, como provém dos factos, de uma relação
anterior com A, quando este era gerente.
Não cremos que se assemelhem. Os dois sócios não se apresentaram perante
C com sinais nem títulos ou documentos dos quais se depreendessem poderes de
representação e funções de gerência, mas apenas com a menção de que eram
gerentes.
Visto isto que conclusões se retiram?
Aplicar os preceitos da aparência a este caso mostra-se complexo e as
interpretações podem ser diversas.
Em primeiro lugar, não acreditamos que se possa defender que A e B se
insiram numa estrutura orgânica permanente, associada a uma realidade
sociocultural como aquela exemplificada por MENEZES CORDEIRO, de um
supermercado.
Porém, no interesse do caso, se admitirmos que a tutela da aparência possa
operar fora desta realidade institucional, é possível a aplicação dos requisitos
desfibrados do artigo 23º da Lei de Agência. Afinal, os requisitos são os mesmos, a
procuração institucional é simplesmente uma teoria que defende que estes
preceitos apenas têm lugar numa situação de relação de um terceiro com boa fé com
uma complexa estrutura orgânica, com vários trabalhadores, agentes e serviços.
A verdade é que podemos admitir que não se subsume por aqui a utilidade
da teoria da aparência. Afinal, vemos uma situação que, potencialmente demonstra
uma situação de aparência, mas que não surge integrada num contexto institucional,
a nosso ver.
61
Para os efeitos teórico-académicos que perseguimos, admitamos a aplicação
destes critérios aos factos, para verificar como se aplicariam os requisitos ao caso,
um por um.
Em primeiro lugar, não há dúvida que A e B atuaram em nome da sociedade,
um facto que já por diversas vezes repetimos.
Chegarmos a uma definição quanto aos outros requisitos, contudo,
demonstra-se mais complexo. O segundo e o terceiro requisito podem fundir-se num
só, ou seja, a existência de um terceiro que possua razões justificativas para confiar
nos poderes de representação de A e B.
Como vimos, não pode C afirmar que se deparou com uma situação, como
com uma caixa do supermercado, em que a posição orgânica dos representantes
fosse evidente. É relevante, contudo, e poderá levar-nos a conclusões diferentes, se
tivermos em conta que os dois sócios utilizaram o carimbo da sociedade no
momento de assinar a letra. Ora, é verdade que a posse de carimbos da gerência da
sociedade é um sinal de que existe uma relação entre A e B e a sociedade.
Se bem que não estaríamos inclinados para assegurar a tutela dos interesses
de C através da teoria da aparência, com base na mera confirmação da qualidade de
sócio de A, a verdade é que a posse do carimbo da sociedade é motivo gerador de
confiança.
Por último, para a confiança nos poderes de representação de A e de B, deve
ter contribuído o principal, isto é, a sociedade.
O preenchimento deste requisito é uma decisão difícil. Por um lado, é verdade
que os sócios da Albatroz Lda., excetuando A e B claro, apenas tiveram conhecimento
da existência da letra através do protesto, apresentado por C. Representará isso um
desconhecimento e “inocência” da sociedade na fundamentação da situação de
aparência? Como vimos, o “órgão” societário constituído pelos sócios, é contribuído
por todos os sócios, não apenas A e B. Portanto, a concluir por um conhecimento da
sociedade desta circunstância, e mais ainda para um contributo da mesma para a
criar, é de considerar se não teriam todos os sócios, como proprietários da sociedade,
conhecer essa criação da situação de aparência.
62
Não cremos, porque, para este efeito, achamos incontornável a já conhecida
relação de domínio, demonstrada pela titularidade de 90% do capital social detido
por A e B. Além disso, titular do órgão responsável por executar externamente a
vontade da sociedade, o gerente, conhecia a letra, optando por não se opor à sua
emissão.
É caso para referir que se denota uma confusão de esferas jurídicas entre a
da sociedade, e a dos sócios. O controlo formal e material e a relação de domínio que
exercem sobre a sua sociedade é tão intenso que a separação de esferas jurídicas se
torna pouco clara.
Por este motivo, somos da opinião que os dados do caso podem ser
considerados como uma situação passível de ser abrangida pela tutela da aparência,
embora que não surja, no nosso entender num domínio institucional.
Apesar disso, dadas as circunstâncias do caso, é subsumível ainda assim uma
situação de procuração aparente, por preenchimento dos pressupostos.
Relembramos, esta não deve ser entendida como uma resposta absoluta e
necessariamente estabelecida. Como vimos, a aplicação destes pressupostos ao caso
não foi feita livre de dúvidas. Mas, ainda assim, por existirem a nosso ver
fundamentos para que, propondo a possibilidade de aplicar os princípios da
procuração aparente a este caso, se conclua pela vinculação da sociedade ao
conteúdo da letra, a hipótese tem, num plano académico que parte do prático,
interesse.
63
Capítulo IV – Conclusões e breve proposta jure condendo.
11. - Conclusões
O problema em análise, baseou-se num caso judicial específico. Nesse, dois
sócios de uma sociedade por quotas, apuseram a sua assinatura no aceite de uma
letra de cambio, juntamente com o carimbo da sociedade. Esses sócios, na altura em
que assinaram a letra de câmbio, não exerciam funções de gerência na sociedade,
nem lhes haviam sido conferidos poderes de representação.
Não obstante, os dois sócios informaram expressamente o sacador que eram
gerentes da sociedade, e que por isso a representavam. Vimos também que os sócios
detinham entre si 90% do capital social. O gerente da sociedade, embora soubesse
da existência da letra, nunca se opôs.
O tribunal de primeira instância decidiu no sentido da não vinculação da
sociedade, com o fundamento de que, uma vez que os sócios não possuíam poderes
representativos, a sociedade não podia estar vinculada;
Para tecermos as nossas considerações sobre o caso, abordámos os institutos
da representação orgânica e da representação voluntária, como vias de vinculação
da sociedade por atos de pessoas individuais.
Concluímos que as pessoas coletivas manifestam a sua vontade através dos
seus órgãos, que agem não em representação destas, mas como sua parte integrante.
Em resultado, os atos dos órgãos são diretamente imputados à pessoa coletiva.
Nas sociedades por quotas é à gerência que que cabe a administração da
sociedade.
Vimos como nem sempre essas delimitações funcionam na vida real. O caso
em estudo é demonstrativo de como as relações de domínio no seio da sociedade
podem viciar por completo a face da organização societária.
Explicámos como não cabe aos sócios a prática de atos com direto impacto
externo, devendo caber a cada órgão as suas atribuições. Por isso concluímos que
não havia lugar a uma situação de representação orgânica por parte de A e B.
64
Ainda assim, esta relação de domínio dos sócios sobre a sociedade, levou-nos
a concluir que nem sempre são os gerentes os verdadeiros titulares do controlo da
sociedade. Pode verificar-se que alguém exerça funções de real e positiva
administração, como neste caso, sem que tenha legitimidade para o fazer.
Daí, abordamos a figura do administrador de facto, a nosso ver, um instituto
que, particularmente no âmbito do direito societário, possui extrema relevância,
embora não seja esse o entendimento do legislador.
Com base na teoria do administrador de facto jus societariamente relevante,
compreendemos o verdadeiro alcance e utilidade da figura para o direito societário.
Em especial, porque se presume que um administrador de facto possa ser
equiparado a um administrador de direito, dadas as semelhanças no que ao
exercício de funções de administração diz respeito.
Se aplicada ao caso em análise, vemos como poderíamos, por estes critérios,
depreender pela atividade de gerência de A e B, que de facto existe, mas que, com
base no Direito vigente, não é possível concluir.
Concluindo pela qualidade fática da gerência de A e B, seria possível integrar
os seus atos numa conduta de representação orgânica da sociedade que dominam e
de que são, de facto, administradores.
Assim, se denota como a aplicação desta figura poderia, salvo opinião em
contrário, resultar em soluções mais justas e mais de acordo com a realidade.
Enquanto o legislador decidir ignora-la, embora exista e tenha aplicabilidade,
situações como estas não podem contar com mais esta via de solução, uma que até
pode ter preponderância.
Esperamos que, conforme grande parte de outros ordenamentos jurídicos, o
legislador português adapte a figura e a concretize no nosso ordenamento jurídico,
em especial no ramo do Direito societário.
Para além da via da representação orgânica havia a explorar a via da
representação voluntária.
Dos factos que compõe o caso, não conseguimos depreender uma situação de
relação de representação voluntária entre os sócios e a sociedade. Visto isso, vimos
65
como a lei portuguesa está contruída para responder a situações do género. Da
análise da previsão normativa, parece-nos estar implícito a preferência pelo ónus do
terceiro de exigir do representante a prova dos seus poderes, em caso de situações
onde se suspeite a ausência de poderes representativos.
De facto, parece que, antes da tutela de terceiros, o legislador esteve mais
preocupado em regular a justificação dos poderes do representante, do que em
proteger situações de aparência de representação. A maior limitação à aplicação de
das normas de tutela de aparência do Direito Civil e comercial, prende-se com a falta
de previsão para lidarem com total ausência de procuratio. Recorde-se como, no
caso do artigo 260 º, a aplicação do artigo se destina, pelo n. º 1 a situações de
modificação ou de revogação de uma procuração, ou por aplicação do n. º 2, aos
restantes casos de extinção da procuratio.
A norma visa proteger os interesses de terceiros de modificações ou da
cessação repentina de uma procuração. Ou seja, assenta numa pré-existência de
certos poderes de representação atribuídos por via da representação voluntária ou
orgânica.
Os preceitos do CC não são, então, compatíveis com um esquema de tutela da
confiança em “representante” em ausência de poderes representativos. A confiança
é apenas protegida no Direito Português, como vimos, através da boa-fé do terceiro
e no abuso de direito.
Dada esta assinalável limitação do Direito português nesta matéria, há que
recorrer a outros institutos, conciliáveis com uma tutela de interesses de terceiros
em situações, como a do nosso caso de estudo, em que não exista procuração.
No Direito alemão, dois institutos decorrem do princípio de tutela da
confiança de terceiros, princípio com expressão nos artigos do BGB que enunciámos
e na doutrina e jurisprudência. Falamos das figuras da procuração tolerada e da
procuração aparente.
Na procuração tolerada, alguém admite, repetidamente, que um terceiro se
arrogue como seu representante. Caso se verifique esta situação, ao representante
reconhecem-se verdadeiros poderes de representação, mesmo sem procuração
válida. Já a procuração aparente, é semelhante à procuração tolerada no ponto em
66
que pressupõe que alguém se arrogue “representante” de outrem, com a
particularidade de o fazer sem o seu conhecimento e aceitação explícita e prévia.
O reconhecimento de poderes de representação está, neste instituto, baseado
na presunção de que o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível e de um
comportamento cuidadoso, deveria ter a capacidade de impedir a situação.
Existe no Direito português vigente, um dispositivo que reúne em si a
capacidade de transpor a teoria da aparência para o nosso ordenamento jurídico.
Falamos do artigo 23º n. º1 do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, relativo ao
contrato de agência.
A opinião generalizada é no sentido que se justifica a aplicação da norma, a
todos os contratos de cooperação ou de colaboração. Vimos como, no interesse do
caso, é possível a aplicação dos requisitos decorrentes do artigo 23º da Lei de
Agência.
Voltando à nossa pergunta de partida “tendo em conta os factos apresentados,
existe fundamento para considerar que os sócios que assinaram a letra de câmbio,
atuavam como legítimos representantes da sociedade, vinculando-a ao conteúdo do
documento?, concluimos que:
1. Pela via da representação orgânica em primeira análise a resposta parece
ser negativa. Vimos que a representação das sociedades comerciais está reservada
ao seu órgão de representação, a gerência;
2. Contudo, existe um instituto que aplicado ao caso pode levar-nos a concluir
de forma diferente, acerca da representação orgânica. Falamos da administração de
facto que neste caso se pode colocar a hipótese de que os dois sócios preenchem os
requisitos necessários de uma administração de facto relevante;
3. Na tentativa de resposta à pergunta inicial abordámos também a
possibilidade da representação da sociedade por parte dos sócios por via da
representação voluntária. Concluímos que essa via não seria adequada por evidente
ausência de procuração.
4. Contudo, a vinculação da sociedade ao conteúdo da letra poderia estar
garantida se se entender que existe uma relação de procuração aparente. Nesse caso,
67
por via da aplicação extensiva dos preceitos do artigo 23 da Lei da Agência, a
sociedade poderia estar vinculada ao conteúdo da letra, por força da aparência
criada em terceiro de boa-fé.
12. - Proposta juri condendo
Para finalizar este trabalho, achámos que teria interesse apresentar uma
forma de resolução nossa, de um problema que encontrámos no decorrer do nosso
estudo: a falta de concretização do administrador de facto no ordenamento jurídico
português.
Uma via de incorporar o administrador de facto na lei, passaria pela aposição
de cláusulas de equiparação do administrador de facto ao administrador de direito,
através de transformações e/ou adaptações à atual redação de normas legais
dirigidas, ou com implicações sobre, os administradores de direito. Com a criação de
cláusulas desta natureza, garantiríamos a incorporação do estatuto do
administrador de facto relevante societária e juridicamente no ordenamento
jurídico português, além de se estabelecer legalmente, a equiparação prática do
instituto ao da administração de direito, como consequência da sua relevância jus
societária.
Esta transformação legislativa, traduzida através de disposições legais novas,
ou através da modificação de normas já existentes, poderia ser alcançada com a
criação ou alteração de disposições normativas, para que previssem a equivalência
dos administradores de facto aos administradores de direito, ou por cláusulas
especificamente dirigidas à aplicabilidade do estatuído na norma, ao administrador
de facto.
Independentemente da forma levada a cabo para alterar a lei, o resultado
seria idêntico, e seria o pretendido. Deste modo, não seria necessário a leitura e
interpretação do disposto na norma, por via de uma interpretação normativa
específica e extensiva, para que as normas produzissem o efeito desejado, nem
tampouco, a aplicação da figura estaria restringida a algumas situações balizadas
por determinados preceitos normativos já em vigor. Antes, a aplicação e definição
da figura dependeria, direta e inequivocamente, da lei escrita, que admitiria a sua
68
relevância na realidade do direito societário, estabelecendo os parâmetros para a
sua caracterização e estipulando os contornos da sua aplicabilidade.
Colocando tudo isto em prática, exemplifiquemos como poderíamos alcançar
este desígnio através da introdução da fórmula “de facto” a normas relativas a
administradores. Imagine-se, por hipótese, a seguinte redação do artigo 260 º, n. º 1
do CSC:
“1- Os atos praticados pelos gerentes, ainda que de facto, em nome da sociedade e
dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não
obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos
sócios”.
O resultado jurídico em concreto desta norma modelo, seria, naturalmente, a
garantia legal de que os administradores de facto vinculariam a sociedade, nos
termos exatos da vinculação associada aos administradores de direito. Extraímos
essa informação da norma, não através de uma interpretação extensiva condizente
com a realidade jurídica atual, mas sim de uma interpretação simples, direta e
restrita 124.
Outra possibilidade, com fins idênticos, passaria pela introdução de um item
específico para o administrador de facto, em disposições que incidissem sobre a
administração e sobre a gerência social. Um exemplo disto, seria a seguinte
composição do artigo 409º do CSC, este relativo também à vinculação, mas nas
sociedades anónimas:
“1- Os atos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos
poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as
limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos
acionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.
124 Podemos considerar a hipótese de a sociedade invocar que, dada natureza meramente
funcional da sua relação com administradores ou gerentes de facto não estar sujeita a uma obrigação de registo para efeitos de formalização, a ausência da qualidade de administrador é oponível a terceiros. A essa alegação, poderia o terceiro responder que inexiste essa inevitabilidade de constatação da qualidade de administrador de facto para efeitos registrais, uma vez que esse estatuto jurídico-funcional se adquire diretamente pela lei, quer através da interpretação de normas inclusivas do conceito, quer pela identificação do concurso de requisitos. Cfr. RICARDO COSTA, Administrador de Facto…, p. 743.
69
2- (…).
3- (…).
4- (…).
5- Vinculam igualmente a sociedade, nos termos do n. º 1, os atos praticados por
administrador de facto” 125.
Como se depreende, apenas com o acréscimo de uma alínea relativa ao
administrador de facto, fica estabelecida a equiparação do instituto administrativo
fático à administração de direito, permitindo, tal como no exemplo acima, que a
vinculação da sociedade por administrador de facto seja assegurada por lei.
A determinação legal e objetiva da aplicação de disposições normativas
específicas ao administrador de facto, extinguiria a necessidade de refletir acerca de
que dispositivos legais do administrador de direito seriam ou não transferidos para
o administrador de facto, uma vez que essa identificação estaria já estabelecida pela
lei.
Contudo, continuaria a existir a inevitabilidade de depreender um fenómeno
de administração fática quanto a um sujeito, previamente à aplicação dos
dispositivos legais correspondentes. Não cremos que realizar esse reconhecimento
fosse para nós um obstáculo significativo, uma vez que já possuímos o concurso de
pressupostos necessário para responder a essa necessidade. Falamos,
naturalmente, do concurso relativo à apreensão do título executivo-funcional de
administrador de facto jus societariamente relevante.
Esse concurso de requisitos, sobre o qual anteriormente discorremos,
assume, portanto, um papel fundamental para a consagração legal do administrador
de facto, independentemente da forma escolhida para a incorporação na letra da lei.
Afinal, de pouco serve criarmos normas especialmente dirigidas à atividade
administrativa e gestória de facto, se depois, devido à falta de um elenco claro de
características de exigível apreensão, não sejamos capazes de identificar, com
certeza e convincentemente, um administrador ou gerente de facto. É, por
125 Cfr. RICARDO COSTA, Administrador de Facto…, p. 733.
70
conseguinte, primordial, a criação de uma cláusula explicativa da definição e do
conteúdo incorporado no conceito de administrador de facto, para efeitos legais.
Uma vez que já possuímos os preceitos necessários, na forma dos requisitos
substanciais da atuação do administrador de facto jus societariamente relevante,
estamos aptos a conceber um arquétipo normativo, que permitisse a introdução de
uma cláusula dessa espécie no CSC.
Com isso em mente, imaginamos que uma norma que alcançaria esse escopo
seria, aproximadamente, algo da seguinte variedade:
“Para efeitos do disposto no presente Código, considera-se administrador ou
gerente de facto quem, desprovido de nomeação formal regular ou carente de título de
administrador ou de gerente válido, atue, de forma positiva e acentuada, no círculo de
funções típicas de administração ou de gerência, com a vontade e intencionalidade de
agir nesse sentido, beneficiando da autonomia própria do administrador ou gerente,
de forma sistemática e continuada e com a complacência dos sócios e/ou dos restantes
administradores ou gerentes.”
Efetivamente, este protótipo normativo não é mais do que a transposição
para a letra da lei, do conjunto de requisitos cumulativos que descrevemos
anteriormente. Cremos que desta forma, estaria garantida uma descrição
suficientemente precisa do conceito, asseverando que o administrador de facto de
jure se manifestasse corretamente como uma mais valia para o direito societário.
71
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Pedro de – A Representação Voluntária em Direito Civil, Coimbra:
Almedina, 2004.
ASCENSÃO, Oliveira – O Direito, introdução e teoria geral, 3ª edição, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
ASCENSÃO, Oliveira – Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, Lisboa,
1993.
BRITO, Maria Helena – A representação em poderes – um caso de efeito reflexo das
obrigações, in Revista Jurídica, nº 9 e 10, Lisboa: Associação Académica de Lisboa,
1988.
BRITO, Maria Helena – A Representação Sem Poderes – Um Caso de Efeito Reflexo das
Obrigações, in Revista Jurídica, nº 9 e 10, Lisboa: Associação Académica de Lisboa,
1988.
CABRAL, João dos Santos – A responsabilidade tributária subsidiária do
administrador de facto, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique
Mesquita, Vol. I, vários, Coimbra Editora, 2009.
CANARIS, Claus-Wilhem – Función, estrutura y falsación de las teorias jurídicas
(Tradução de Daniela BRÜCKNER e José Luís de CASTRO), 1ª edição, Madrid: Editorial
Civitas, 1995.
CORDEIRO, António Menezes – Direito Comercial, 4ª edição, Coimbra: Almedina,
2016.
CORDEIRO, António Menezes – Direito das Obrigações, Volume III, 2ª edição, Lisboa:
Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991.
CORDEIRO, António Menezes – Tratado de Direito Civil V, 3ª edição, Coimbra:
Almedina, 2018.
CORREIA, Miguel Pupo – Direito Comercial, Direito da Empresa, 10ª edição, Lisboa:
Ediforum, 2007.
COSTA, Ricardo – Administrador de Facto e Representação das Sociedades, em
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XC, Tomo II,
Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014.
COSTA, Ricardo – Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Coimbra:
Almedina, 2014.
FRADA, Manuel A. Carneiro da – Direito Civil, Responsabilidade Civil, o método do
caso, 1ª edição, Coimbra: Almedina, 2006.
72
FRADA, Manuel Cardeiro da – Autonomia Privada e Justiça Contratual. Duas questões,
nos 50 anos do Código Civil, in Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código
Civil, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017.
GOMES, José Ferreira – Da administração à fiscalização das sociedades, a obrigação
de vigilância dos órgãos da sociedade anónima, 1ª Edição, Coimbra: Almedina, 2017.
GONZÁLEZ, José Alberto – Código Civil Anotado, Volume I, Lisboa: Quid Juris, 2011.
INFANTE, Carlos Melon – Código Civil Alemán (BGB), Traducción directa del Alemán
al Castellano acompanhada de notas aclaratórias, com indicación de las
modificaciones habidas hasta el ano 1950.
MACHADO, João Batista – Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra:
Almedina, 2014.
MONTEIRO, António Pinto – Contrato de Agência, Anotação ao Decreto-Lei Nº
178/86 de 3 de Julho, 5ª edição, Coimbra: Almedina.
OLIVEIRA, Ana Perestrelo de – Administração de facto: do conceito geral à sua
aplicação aos grupos de sociedades e outras situações de controlo interempresarial, in
A Designação de Administradores, Coimbra: Almedina, 2015.
PINTO, Paulo Mota – Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros,
reflexão a propósito do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de Julho, in
Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, 1993.
SANTO, João Espírito – Sociedades por Quotas e Anónimas, vinculação: objeto social e
representação plural, 1ª edição, Coimbra: Almedina, 2000.
SCHMITTHOFF, C. M. – Palmers Company Law, Volume I, Londres: Stevens&Sons,
1992.
VÁRIOS – Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação Prof. Doutor
António Menezes Cordeiro, Coimbra: Almedina, 2009.
VASCONCELOS, Pedro Leitão Pais de – A procuração irrevogável, 2 ª edição,
Coimbra: Almedina, 2016.
VASCONCELOS, Pedro Leitão Pais de – A Preposição, 2ª edição, Coimbra: Almedina,
2018.
73
Jurisprudência Utilizada
Supremo Tribunal de Justiça, de 23-set.-2008 (Azevedo Ramos), Proc. 08A2239;
Supremo Tribunal de Justiça, de 16-mai.-1991 (Pereira da Silva), Proc. 080549;
Supremo Tribunal de Justiça, de 23-set.-09, (Salvador da Costa) Proc. 04B2716;
Supremo Tribunal de Justiça, de 2-jun.-15, (Hélder Roque), Proc.
505/07.2TVLSB.L1.S;
Tribunal da Relação de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc.
164/05.7TBVLF.C2;
Tribunal da Relação do Porto, Proc. nº 604/04.2TBMMV-A.C1, de 29-mai-17,
relatado por Jorge Arcanjo;
Tribunal da Relação de Lisboa, 25-nov.-2011 (Maria Manuela Gomes), Proc.
1062/2001.L1-6;
top related