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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO E
DOUTORADO)
IBRAHIM ALISSON YAMAKAWA
APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA: AS FORMAS DO
SILÊNCIO E OS SILÊNCIOS DAS FORMAS
MARINGÁ - PR
2017
IBRAHIM ALISSON YAMAKAWA
APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA: AS FORMAS DO
SILÊNCIO E OS SILÊNCIOS DAS FORMAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Estadual de
Maringá, como requisito parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Letras.
Orientadora: prof. Dra. Luzia Aparecida Berloffa Tofalini
MARINGÁ
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)
Yamakawa, Ibrahim Alisson
Y19a Aprender a rezar na era da técnica: as formas do
silêncio e os silêncios das formas / Ibrahim Alisson
Yamakawa. -- Maringá, 2015.
186 f. : il. color., figs., tabs., mapas
Orientador: Prof.ª Dr.ª Luzia Aparecida Berloffa
Tofalini.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letas e Artes,
Departamento de Letras, Programa de Pós-Graduação em
Letras, 2017.
1. Tavares, Gonçalo Manuel de Albuquerque, 1970-
Literatura portuguesa. 2. Literatura portuguesa - Analise.
3. Aprender a rezar na era da técnica - Romance portugues -
Análise critica. I. Tofalini, Luzia Aparecida Berloffa,
orient. II. Universidade Estadual de Maringá. Centro de
Ciências Humanas, Letas e Artes. Departamento de Letras.
Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDD 21.ed.801.95
AGRADECIMENTOS
Realizar esta pesquisa foi uma tarefa muito difícil. Muitos desafios se impuseram, mas
nunca tivemos de enfrentá-los sozinho. Por isso, seguem meus mais sinceros agradecimentos:
A Deus, por me dar forças para concluir esta dissertação.
À minha mãe, Isabel Pila, por seu apoio incondicional e por me escutar
incansavelmente.
À minha orientadora e professora Dr.ª Luzia A. Berloffa Tofalini por ter, desde o
início, confiado em mim, por sua dedicação e por ter me incentivado a querer fazer um
trabalho cada vez melhor.
À professora Dr.ª Evely Libanori e ao professor Dr. Altamir Botoso por suas
prestimosas contribuições no desenvolvimento desta pesquisa.
Aos meus amigos, em especial, à Raquel Cassiano de Freitas, por sua inestimável
ajuda e por seu apoio.
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram, de diversas formas e em
diversos momentos, para que este trabalho pudesse caminhar, com destaque para secretário do
Programa de Pós-Graduação em Letras Adelino Marques.
Sabemos que não existem palavras que possam traduzir tudo o que sentimos neste
momento. O alfabeto é pequeno demais para conter nossa gratidão. Assim, que nesse instante
o silêncio seja muito mais eloquente que as palavras. Que ele possa significar todo o
contingente de reconhecimento que levaremos vida afora. Fica, então, o resto para o silêncio.
Afinal, aprendemos que nada pode “dizer mais” e superar um silêncio significante.
I prefer silence to sound, and the image produced by words occurs in silence. That is, the thunder and the music of the prose take place in silence”.
(William Faulkner)
"Sempre tive muito mais medo do silêncio. O silêncio assusta. No silêncio podem estar todos os ruídos. E isso não é bom. (silêncio prolongado) Das palavras é que não tenho medo nenhum. Blá-blá-blá. Blá-blá-blá. Não adianta nada".
(Gonçalo M. Tavares)
RESUMO
A presente dissertação elege Aprender a Rezar na Era da Técnica (2008), de Gonçalo M.
Tavares, como objeto de análise para investigar e demonstrar o caráter positivo do fenômeno
do silêncio no texto literário. Esta dissertação está fundamentada na hipótese de que o silêncio
significa (ORLANDI, 2007). Para os estudos literários, compreender os sentidos advindos do
silêncio é tão importante quanto compreender os sentidos sugeridos pelas palavras
(TOFALINI, 2012). O silêncio é uma potência que é inerente à obra literária e toda obra
literária, inclusive o romance, é uma arquitetura de silêncios. Logo, a atividade de criação do
texto artístico consiste no equilíbrio entre palavra e silêncio. Em Aprender a Rezar na Era da
Técnica, há uma confluência de palavras e silêncios que se unem na tarefa de significar,
buscando a representação genuína do homem e do mundo. À medida que são decifrados os
significados dos silêncios do texto, amplia-se a compreensão e, consequentemente,
aprofunda-se a mensagem. O aporte teórico necessário para orientar e fundamentar as
discussões sobre o status positivo do silêncio fica a cargo dos estudos realizados por Eni
Puccinelli Orlandi (2007), Santiago Kovadloff (2003), David Le Breton (1999), Bernard
Dauenhauer (1980), Michele Sciacca (1967), Georg Steiner (1988) entre outros autores. Ao
reunir tais autores, buscou-se embasamento necessário em diferentes entendimentos e
concepções para dar suporte ao processo de análise que permitiu realizar a aproximação a esse
fenômeno que é por natureza indizível, intraduzível e inesgotável. Espera-se que a possível
confirmação do caráter fundamental e primordial do silêncio em Aprender a Rezar na Era da
Técnica dê um novo alento às questões relativas ao ser humano e à sua essência frente aos
problemas do mundo. Espera-se, também, que o leitor, em face das descobertas dos
significados dos silêncios no texto artístico, rume em direção ao semblante inexplicável da
linguagem (composta por palavras e silêncios) e descubra o silêncio mais significativo.
Palavras-chave: Aprender a Rezar na Era da Técnica; silêncios, Gonçalo M. Tavares;
Romance; Literatura portuguesa.
ABSTRACT
The present dissertation elects Learning to Pray in the Age of Technique (2008), by Gonçalo
M. Tavares, to analyze and investigate and also demonstrate the positive nature of the
phenomenon of silence in the literary text. This dissertation is based on the hypothesis that
silence means by itself (ORLANDI, 2007). For literary studies, understanding the meanings
of silence is as important as understanding the meanings suggested by words (TOFALINI,
2012). Silence is a power that is inherent in the literary work and every literary work,
including the novel, is an architecture of silence. Therefore, the activity of creating the artistic
text consists of the balance between word and silence. In Learning to Pray in the Age of
Technique, there is a confluence of words and silences that unite in the task of meaning,
seeking the genuine representation of man and the world. As the meanings of the silences of
the text are deciphered, there is the widening of understanding and, consequently, widening
message. The theoretical framework necessary to guide and ground the discussions on the
positive status of silence is in charge of the studies carried out by Eni Puccinelli Orlandi
(2007), Santiago Kovadloff (2003), David Le Breton (1999), Bernard Dauenhauer (1980),
Michele Sciacca (1967), Georg Steiner (1988) among others. When gathering such authors,
we sought the necessary basis in different understandings and conceptions to support the
process of analysis that allowed us to approach the phenomenon that is by nature
unspeakable, untranslatable and inexhaustible. It is desired that the possible confirmation of
the fundamental and primordial nature of the silence in Learning to Pray in the Age of
Technique may give a new impetus to the questions concerning the human being and his
essence in the face of the problems of the world. It is also desired that the reader, in the face
of the discoveries of the meanings of the silences in the artistic text, may turn towards the
inexplicable semblance of language (composed of words and silences) and discover the most
significant silence.
Keywords: Learning to Pray in the Age of Technique; silence; Gonçalo M. Tavares; Novel;
Portuguese literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. Considerações iniciais..................................................................................................... 11
2. Autor e obra .................................................................................................................... 19
CAPÍTULO I .......................................................................................................................... 24
1.1 Silêncio e Linguagem ................................................................................................. 24
1.2 Silêncio e Silêncios ..................................................................................................... 35
1.2.1 O silêncio na filosofia .............................................................................................. 37
1.2.2 O silêncio na psicanálise .......................................................................................... 41
1.2.3 O silêncio na teologia ............................................................................................... 43
1.2.4 O silêncio na literatura ............................................................................................. 45
1.3 Silêncio primordial e silêncio fundante: semelhanças e diferenças ........................... 49
1.4 Política do silêncio: silêncio constitutivo e censura ................................................... 65
CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 73
2.1 Silêncio e discurso romanesco .................................................................................... 73
2.2 A forma do romance: silêncios ................................................................................... 77
2.2.1 Aprender a Rezar na Era da Técnica: entre silêncios e ambivalências ................... 82
2.3 As formas do silêncio nas formas do romance ......................................................... 108
CAPÍTULO III ..................................................................................................................... 125
3.1 Personagens entre censura e silêncios .......................................................................... 126
3.1.1 Lenz e o silenciamento .............................................................................................. 127
3.1.2 O silêncio de Júlia e Gustav Liegnitz ........................................................................ 147
3.1.3 O silêncio de Fredrich Buchmann ............................................................................. 162
3.1.4 Lenz e Hamm: silêncio e o silenciamento ................................................................. 165
3.2 Aprender a Rezar na Era da Técnica rumo ao silêncio Primordial ............................. 167
3.3. Aprender a Rezar na Era da Técnica e leitor â caminho do silêncio. ......................... 173
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 180
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 185
11
INTRODUÇÃO
“Mas todo silêncio humano contém uma fala [...] sentido latente”.
(Octavio Paz)
1. Considerações iniciais
O silêncio é, primordialmente, irrepresentável e definitivamente intraduzível, mas
significa, é o que adverte Eni Orlandi em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos
(2007). O silêncio, portanto, nunca é vazio ou desprovido de sentido, embora, ele, muitas
vezes, seja, erroneamente, associado a essa ideia. Entretanto, o exame pormenorizado dos
fatos da linguagem irá demonstrar que o silêncio é matéria significante por excelência
(ORLANDI, 2007). O silêncio é a possibilidade de existência de sentidos.
A linguagem, dessa forma, reveste-se de silêncio e o silêncio reveste-se de sentido. Por
isso, “a linguagem não existe sem a pontuação do silêncio, que a torna inteligível [...]” (LE
BRETON, 1999, p. 26). A linguagem então parece caminhar pelo silêncio e fazer sentido pelo
silêncio. Com efeito, adentrar o campo da linguagem significa trabalhar dialeticamente a
relação entre silêncio e signo. Pois, conforme afirma Maurice Merleau-Ponty (2006, p. 47),
“temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de
rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se
entremeiam”. Porque, se a linguagem se sustenta sob um fundo de silêncio, este é,
definitivamente, uma instância plena de sentido que não se confunde com a linguagem, que
não pode ser traduzido pela linguagem, pois ele demonstra ser maior que ela.
Segundo Eni Orlandi (2007), o silêncio é um espaço fundamental entre as palavras
para que o dizer possa fazer sentido. Michele Sciacca (1967) acrescenta que o silêncio
corresponde ao fôlego da significação. Além do que, “sem um reverso de silêncio, a
comunicação é impensável, ficaria obstruída num fluxo contínuo de palavras que conduziriam
à impotência da palavra condenada à partida” (LE BRETON, p. 1999, p. 25). Reiterando as
palavras de David Le Breton, o silêncio é o que permite à linguagem ser discernível
segmentável e inteligível. Sem um espaço que se interpusesse entre os signos, os sentidos
jamais se construiriam.
12
Com efeito, não há nada na linguagem que não implique silêncio, pois, estar em
silêncio é estar com os sentidos. “O real da significação é o silêncio” (ORLANDI, 2007, p.
29). Entretanto, o silêncio não é o “tudo” da linguagem, como esclarece Eni Orlandi (2007).
O silêncio não é como uma gaveta onde estão todos os sentidos guardados esperando palavras
serem ditas. O silêncio é um estado incontornável, independente da palavra pronunciada,
portanto, possui sua própria materialidade. Significa pelos seus próprios meios. É evidente
que os sentidos não estão prontos no silêncio esperando serem depreendidos. Pelo contrário,
eles se constroem nesse espaço fundamental e lá significam. Por essa razão, Martin Heidegger
(2002) admite que não é necessário evocar palavra para exprimir sentido, pois o sentido se
constrói no silêncio, pelo silêncio e com o silêncio.
Ao privilegiar o silêncio como elemento significativo por natureza, percebe-se o seu
caráter indispensável à linguagem. Portanto, pensar a linguagem é também pensar o silêncio
fundante e primordial a ela. Essa potência significativa, ubíqua e indefinível perpassa por
todos os caminhos da linguagem, transcendendo-a. O silêncio é dinâmico e errático. E sendo
maior que a linguagem não se deixa aprisionar e se conceituar por ela. A linguagem é, como
Georg Steiner argumenta em Linguagem e Silêncio (1988), limitada e restrita a certos
domínios da representação. A linguagem verbal, para esse autor, demonstra não ser capaz de
expressar e conter toda a realidade. De tal modo que o silêncio se apresenta muito mais
eloquente que a própria palavra.
Daí decorre que essa potência significativa instiga inúmeros pesquisadores de outras
áreas, tais como filosofia, sociologia, psicanálise, análise do discurso, teologia e literatura a
conceberem o silêncio como objeto de reflexão. Reconhecendo o silêncio como modalidade
de sentido, esses diferentes campos de conhecimento empreenderam diferentes métodos com
intuito de operar e aludir a algo que não poderá jamais ser conceituado e definido, dado o seu
caráter fugaz e indômito. Por esse motivo, esse fenômeno tão revelador e ao mesmo tão
misterioso despertou em inúmeros pesquisadores o empenho necessário para lidar com uma
matéria tão complexa e escorregadia. Como consequência, a concepção do silêncio ficou
dispersada em inúmeras áreas de conhecimento. Cada uma, à sua maneira, empenhou e
empenha incontáveis esforços, tentando abranger o máximo de significados possíveis, para
poder compreender uma matéria tão fugidia. Em vista disso, conciliar esses diferentes
entendimentos e áreas do conhecimento no intuito de aprender mais sobre o silêncio torna-se
tarefa crucial para esta dissertação.
13
Evidentemente, a literatura também se ocupou do silêncio. Poetas, romancistas e
críticos literários já se detiveram sobre o texto literário tentando desvendar os segredos que lá
habitam e demonstrando, mais uma vez, que o silêncio significa. Gilberto Mendonça Teles em
a Retórica do silêncio (1979), por exemplo, afirma que “a linguagem comum só se transforma
em linguagem literária renunciando o seu sentido puramente linguístico [...] e refugiando-se
no silêncio da obra [...]” (TELES, 1979, p. 20). Maria Lúcia Homem, em seu estudo sobre a
obra clariceana intitulado No limiar do silêncio e da letra: traços de autoria em Clarice
Lispector (2012), propõe que “não há como escrever um livro com uma só palavra de infinitas
letras” (HOMEM, 2012, p. 34). É que a literatura é palavra e silêncio juntos.
O equilíbrio resultante do conluio entre a palavra e o silêncio erige a obra literária.
Segundo Adam Jaworski (1993, p. 161) 1, “quando as palavras dos poetas falham, quando os
artistas encontram uma linguagem inadequada para se expressar, eles encontram refúgio no
silêncio. [...] A solução para o artista é tentar se libertar e mover para o silencio como a forma
mais adequada e ‘casta’ de expressão artística”. O ensaísta Georg Steiner escreve que, “o
escritor de hoje tende a usar muito menos palavras, e muito mais simples, tanto porque a
cultura de massa diluiu o conceito de instrução como porque diminuiu extraordinariamente o
conjunto de realidades das quais as palavras podem dar conta de modo necessário e
suficiente” (STEINER, 1988, p. 44). Dito de outro modo, o mundo tornou-se grande demais
para caber nas palavras. Qualquer que seja o repertório as palavras não dão conta mais da
expressão da totalidade.
O romance, ao que parece, dá provas da falência da matéria verbal que Georg Steiner
argumentava em seu livro. Admitindo que o romance seja um gênero de representação do
universo burguês e que, portanto, esse gênero é inteiramente marcado pela fragmentariedade e
pela ‘insuficiência’ (LUKÁCS, 2006), torna-se patente a presença do silêncio em suas formas.
O romance, nesse sentido, parece ter se apropriado do silêncio para significar uma realidade
demasiadamente rica e complexa. Constata-se nessa presença a tentativa do escritor de se
soltar das amarras restritivas da linguagem verbal e buscar no silêncio aquilo que não é
verbalizável. Representando o mundo por outro meio que não a palavra.
Ferenc Fehér em O romance está morrendo?: contribuição à teoria do romance
defende que o romance criou dinâmicas de adaptação e que por essa razão esse gênero é plena
1 “When words fail poets, when artists find language inadequate to express themselves, they fund refuge in
silêncio [...] The solution for the artist is trying to get free from the limitations of language is to move on to
silence as the most adequate and “chaste” from of artistic expression” (JAWORSKI, 1993, p. 161 – tradução
nossa).
14
representação da sociedade do qual ele é decorrente. Sob esse enfoque, acredita-se que o
silêncio atua como um importante elemento à emancipação mencionada por Ferenc Fehér. O
silêncio parece operar dentro das dinâmicas de adaptação do gênero romanesco. Assim sendo,
o romance, conforme argumenta Ferenc Fehér, não é um gênero inferior. Ao contrário, esta
dissertação defende que o romance “comporta acréscimos de emancipação” (FEHÉR, 1972, p.
17) graças ao silêncio em suas formas.
Tendo em vista essas premissas, o romance Aprender a Rezar na Era da Técnica de
Gonçalo M. Tavares mostra-se bastante adequado à compreensão do silêncio no texto
literário. Nesse romance, o autor ousa um trabalho inédito com a linguagem. Libertando-se
das formas tradicionais e usuais do romance, busca no silêncio todo espaço e toda força para
alcançar com sua obra a máxima expressividade.
A presente dissertação propõe, portanto, desvelar os modos de construção e operação
dos silêncios, bem como os seus significados presentes na narrativa literária Aprender a rezar
na Era da Técnica, do autor português Gonçalo M. Tavares, observando a maneira como
silêncios manifestam-se na obra e que sentidos eles trazem ao texto no momento da leitura.
Para tanto, tenciona-se investigar minuciosamente as ocorrências dos silêncios na narrativa a
fim de melhor compreender a obra. Para atender a esse objetivo, esta dissertação está dividida
em três capítulos.
O capítulo primeiro desta dissertação intitulado Por uma teoria do silêncio faz um
levantamento de diversos autores e obras que focalizam o caráter fundamental do silêncio
para construção do sentido e para a organização do universo da linguagem. O quadro teórico
deste primeiro capítulo se organiza em quatro seções distintas, com o objetivo de demonstrar
as propriedades expressivas do silêncio.
A primeira seção examina a relação entre silêncio e linguagem. E demonstra que este é
um estado/condição constante que excede o poder de controle do homem. O silêncio, dessa
maneira, é inevitável e indomável. Para corroborar essas afirmações, foi necessário recorrer à
Eni Orlandi em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, cujo trabalho foi essencial
para execução dessa dissertação, pois com a precisão que lhe é característica, essa autora
demonstra que na linguagem o silêncio não é simplesmente acessório, mas fundante. Além
dessa autora, recorreu-se à obra Do Silêncio de David Le Breton que soube explorar as
propriedades do silêncio em uma extensa gama de contextos, permitindo reconhecer o poder
imensurável desse fenômeno e perceber que este não se opõe à palavra, mas alia-se a ela.
Além desses autores, Martin Heidegger em A caminho da linguagem, também se torna peça
15
chave para compreensão desse fenômeno e sua relação com a linguagem e, sobretudo, a sua
relação com o homem.
A segunda seção do primeiro capítulo foi influenciada, sobretudo, por O silêncio
Primordial de Santiago Kovadloff. Foi Santiago Kovadloff que apelou primeiro ao "espírito
interdisciplinar" (KOVADLOFF, 2003, p. 12), apontando para a necessidade de conjugar
diferentes áreas do conhecimento e poder tangenciar2 o silêncio de maneira mais substancial.
Afinal, segundo esse mesmo autor, “todos convergem no final em uma avaliação equivalente
de seu sentido” (KOVADLOFF, 2003, p. 12). E ao fazer um levantamento bibliográfico que
versasse sobre silêncio, enquanto elemento significativo, apareceram livros e teses
anunciando o poder edificante do silêncio em diferentes áreas e empregando diferentes
olhares e com diferentes objetivos. São elas, o silêncio na filosofia, o silêncio na psicanálise,
o silêncio na teologia e o silêncio na literatura.
Considerando o extenso repertório e a multiplicidade de entendimentos sobre o
silêncio na filosofia, busca-se explorar a concepção do silêncio na linguagem a partir de
estudos de Bernard Dauenhauer (1980) e Maurice Merleau-Ponty (1992) e conferir a
contribuição desses estudiosos para essa matéria. Bernard Dauenhauer, cujo estudo intitulado
Silence: the phenomenon and its ontological significance (1980) resultou em uma das mais
bem elaboradas obras sobre a questão do silêncio e sua relação com a linguagem. Nessa obra,
observa-se a significação ontológica do silêncio e a sua relação entre homem e mundo. E,
como não poderia deixar de ser, o clássico ensaio de Maurice Merleau-Ponty intitulado A
linguagem indireta e as vozes do silêncio (1992) também será abordado devido à sua
interpretação luminosa da presença do silêncio na linguagem, pois para ele, a linguagem está
envolta em silêncio. Concepção que vem corroborar os estudos aqui realizados.
No campo da psicanálise, esta dissertação tem como principal componente norteador a
obra de Juan-David Nasio intitulada O silêncio na psicanálise (2010). São louváveis os
esforços desse autor que reúne alguns dos estudos mais relevantes e notáveis realizados sobre
o silêncio em psicanálise. Considerando sua fluência e sua busca pertinaz no entendimento do
silêncio, O silêncio na psicanálise converte-se em uma leitura obrigatória para a compreensão
do silêncio de forma mais ampla e clara. Evidente que não é objetivo deste estudo traçar um
histórico do silêncio em psicanálise, assim como fez Juan-David Nasio (2010), tampouco
2 O silêncio não é imediatamente apreensível. O silêncio é líquido. O silêncio é fugidio. O silêncio é fugaz e
escapa por todos os lados significando e ressignificando de muitas maneiras. Então, ao lidar com uma matéria
tão efêmera o pesquisador apenas resvala no silêncio ou no que restou de sua presença. Por essa razão, o silêncio
torna-se tangenciável, porém, imperscrutável.
16
registrar as ocorrências clínicas do silêncio. Mas explorar a concepção de silêncio neste
campo de estudo significa apenas perceber de que maneira essa concepção se encontra com as
demais concepções aqui discutidas. Portanto, sobre esse aspecto é importante destacar apenas
algumas posições que são cruciais para a compreensão da obra que se pretende para essa
pesquisa.
Finalmente, no campo dos estudos literários procura-se entender os modos de
construção e operação dos silêncios dentro de um texto literário, e discutir alguns estudos
densos e luminosos que trataram dessa questão. Destaca-se assim Maria Lúcia Homem com a
obra No limiar do silêncio e da letra: traços de autoria em Clarice Lispector (2012), Gilberto
Mendonça Teles com Retórica do silêncio (1979) e o notório ensaio de Benedito Nunes
intitulado Linguagem e silêncio (2009).
Considerando que cada um desses autores procurou a melhor forma de compreender
esse silêncio que, segundo Octavio Paz “não é dissolução, e sim resolução da linguagem”
(PAZ, 2012, p. 314, grifo do autor). E ainda conforme Octavio Paz (2012) a atividade
literária, a criação poética, então, “nasce do desespero pela impotência da palavra e culmina
no reconhecimento da onipotência do silêncio” (PAZ, 2012, p. 314). Mediante essa
descoberta, ao potencializar o silêncio em um texto literário, esses autores percebem que,
entendê-lo como procedimento essencial para a literatura significa dar um novo olhar para as
questões propostas pelo autor, além de abrir o texto a um mar de possibilidades.
Ainda no primeiro capítulo também se buscou sublinhar as duas mais importantes
concepções de silêncio para essa dissertação: o silêncio fundante proposto por Eni Orlandi e o
silêncio primordial cunhado por Santiago Kovadloff. Afinal, um dos propósitos deste trabalho
consiste em averiguar as particularidades das concepções kovadloffiana e orlandiana do
silêncio para melhor tangenciá-lo e aludi-lo em Aprender a Rezar na Era da Técnica. Para
tanto, é importante contrastar e aproximar essas duas concepções a fim de ver quais são as
suas contribuições no âmbito literário, no sentido de favorecer e guiar esta pesquisa. Nesse
sentido, a modo de ilustração, o silêncio primordial será discutido mais aprofundadamente na
poesia (entendo-a como linguagem poética em geral) e, sucintamente, os demais modos de
alusão ao silêncio primordial eleitos por Santiago Kovadloff.
Na última seção do primeiro capítulo: Política do Silêncio: Silêncio Constitutivo e
Censura, discute-se a operacionalização do silêncio, ancorando-se, sobretudo, nas
considerações de Adam Jaworski e de David Le Breton a partir das obras The Power of
silence: social and pragmatic perspectives e Do silêncio, respectivamente. Devido ao fato de
17
os autores terem trabalhado com inúmeros aspectos do silêncio no âmbito político e social,
discutindo as estratégias do silêncio e os seus efeitos nesses contextos políticos, seus trabalhos
têm grande relevância para a compreensão do contexto de Aprender a Rezar na Era da
Técnica. Eni Orlandi, por sua vez, descreveu a política do silêncio a partir de uma perspectiva
discursiva proporcionando a esta dissertação uma compreensão mais detalhada dessa outra
face do silêncio: o silenciamento e a censura.
No segundo capítulo intitulado Estrutura formal e silêncios em Aprender a Rezar na
Era da Técnica se discute a dinâmica do silêncio na forma de Aprender a Rezar na Era da
Técnica. Observa-se como o silêncio interfere na fórmula clássica do romance e quais são as
consequências do silêncio na narrativa. Em linhas gerais, o segundo capítulo aprofunda as
discussões sobre a presença do silêncio na literatura, mais especificamente, e discute a relação
entre o silêncio e o romance.
A fim de abordar as formas do silêncio no romance contemporâneo tendo como
principal referência Aprender a Rezar na Era da Técnica – obra do escritor português
Gonçalo M. Tavares – é necessário fazer um percurso entre os principais teóricos acerca do
romance, entre eles Georg Lukács A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre
as formas da grande épica (2006) e Ferenc Fehér O romance está morrendo?: contribuição à
teoria do romance (1972). Estes dois estudiosos foram fundamentais para a observação do
silêncio em Aprender a Rezar na Era da Técnica, pois seus trabalhos ofereceram as condições
necessárias para compreender e analisar os elementos de composição do romance, bem como,
suas formas e poder identificar de que maneira o silêncio é coparticipante nas formas do
romance.
De fato, conforme constatam Georg Lukács e Ferenc Fehér, o século XX promoveu
contundentes mudanças no gênero romanesco que perduraram até a atualidade e entre essas
mudanças destaca-se o silêncio na forma do gênero que surgiu na era burguesa. Diante dessas
considerações, pode-se afirmar que há inúmeros silêncios que fazem parte da constituição do
romance, pois a forma e o conteúdo do romance são produtos históricos que sintetizam um
determinado momento histórico. Sob a luz das discussões sobre as ambivalências feherianas é
possível perceber como o silêncio converte-se em um importante ingrediente para a
manutenção desse gênero literário.
O terceiro e o último capítulo desta dissertação – Desdobramentos dos silêncios de
Aprender a Rezar na Era da Técnica – demonstra como o silêncio se desdobra no romance.
As discussões sobre silenciamento e censura, e sua relação com o conjunto de personagens,
18
são ampliadas. Busca-se, portanto, expor a face do sujeito autoritário que se apropria da
linguagem e, mais ainda, do silêncio para firmar seu poder. Além disso, ao recobrar as
discussões sobre o silêncio fundante e o silêncio primordial, o terceiro capítulo promove um
diálogo envolvendo Aprender a Rezar na Era da Técnica e o silêncio fundante e primordial.
O aporte teórico dessa última seção fica a cargo dos teóricos já mencionados, Eni Orlandi
(2007) e Santiago Kovadloff (2003), entre outros.
A proposta desta dissertação se justifica no meio acadêmico devido à relevância dos
estudos sobre os silêncios no campo literário e a carência de pesquisas realizadas nesta área.
Empreender uma pesquisa acerca deste assunto é de suma importância, visto que, a literatura,
de modo geral, é vazada de lacunas, de não ditos, de interstícios que, por sua vez, são
imprescindíveis à significação. O discurso literário cumpre sua função de representar a
sociedade e todos os fatores a ela ligados. Consoante Antonio Candido (2006, p. 20), "[...] a
literatura, como fenômeno de civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do
entrelaçamento de vários fatores sociais [...]", e a necessidade do silêncio configura-se
enquanto um desses fatores. Além disso, o silêncio está cada vez mais presente na produção
literária contemporânea, que aborda a dificuldade de suportar o silêncio e a tentativa de contê-
lo, por meio do excesso da linguagem gerando ruído.
Questiona-se na literatura, o caráter primordial do silêncio, capaz de inscrever no
homem uma sensibilidade mais profunda que lhe permite confrontar a si mesmo e o mundo. E
é nesse sentido, que a obra do romancista português Gonçalo M. Tavares fora contemplada
para este projeto. A obra selecionada como corpus desta pesquisa intitula-se Aprender a rezar
na Era da Técnica (2008), ela narra a história de um médico, Lenz Buchmann, obcecado pela
técnica, precisão e a disciplina da guerra, fazendo tudo ao seu alcance, inclusive, perdendo a
própria humanidade, para sobreviver em uma sociedade igualmente cruel, fria e insensível.
Repleta de lacunas, interstícios e discursos não ditos, esta obra transborda o silêncio do
horror, da barbárie, do caos, da opressão, da angústia e da humanização, que necessitam ser
lidos e interpretados, pois corroboram para a melhor compreensão do texto.
A proposta em foco alicerça-se na concepção de que o silêncio significa no romance
tanto quanto a palavra. Dito isso, ao ressaltar a potência do silêncio no texto literário espera-
se que a percepção do silêncio possa inscrever no homem uma sensibilidade mais profunda,
permitindo que ele possa confrontar a si mesmo e o mundo. Espera-se que o leitor reconheça
não apenas o explícito, o nítido e o evidente ancorado nas palavras, mas o essencial à
constituição do homem que é, por natureza, irredutível ao verbo.
19
2. Autor e obra
Gonçalo M. Tavares causa espanto aos leitores habituados àquela leitura linear e
estratificada que diverte e encanta. A obra tavariana, pelo contrário, e em especial o romance,
é desconcertante e perturbadora, não só pela forma chocante como ela apresenta o mundo ao
leitor, expondo as mazelas do mundo contemporâneo em pormenores, e quebrando, de tal
maneira, a passividade do leitor diante do objeto lido, mas, especialmente, pela forma como
ela envolve os leitores, transformando-os em coautores e coparticipantes da narrativa. Por
tudo isso, a obra de Gonçalo M. Tavares é simultaneamente bela e sombria. Bela, porque sua
obra tem provado ser geométrica e harmoniosa, repleta de requintes e sofisticação no trabalho
com a linguagem. Sombria, porque ela é capaz de explorar os cantos mais sombrios do “eu”,
sondando sítios que parecem ser insondáveis.
Movendo-se livremente entre os gêneros literários, tais como romance, conto, poesia,
teatro, ensaio, o leitor não deixará de notar o experimentalismo estético e formal, além do
intenso trabalho com a linguagem. É notável, então, o rigor e a precisão técnica dispensadas a
cada obra, criando algo completamente inédito no cenário literário contemporâneo. Sem
dúvida alguma, Gonçalo M. Tavares consagra-se como um novo fenômeno literário mundial,
graças à sua versatilidade literária e, sobretudo, sua genialidade e visão de mundo.
Ora, foi José Saramago que em ocasião do Prêmio Literário José Saramago em 2005,
em Portugal fez a seguinte colocação: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão
bem com apenas 35 anos. Dá vontade de lhe bater” 3. Foi também José Saramago que disse:
“Vaticinei-lhe o prêmio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou
acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder” 4.
Admirado e respeitado no meio literário, por sua obra singular, Antônio Guerreiro também
defendeu que Gonçalo M. Tavares “vale por uma literatura inteira” 5, pela riqueza que o
conjunto de sua obra encerra. Em todo caso, a literatura de Gonçalo M. Tavares, seja ela em
prosa, poesia, ensaio, teatro ou mesmo um gênero completamente novo e, por conseguinte,
3 Texto extraído de Entrevista: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/07/767901-
portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml?mobile>
4 Texto extraído de Entrevista: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/07/767901-
portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml?mobile>
5 Texto extraído de: <http://www.nosrevista.com.br/2013/11/29/antonio-guerreiro-%E2%80%9Cgoncalo-m-
tavares-vale-por-uma-literatura-inteira%E2%80%9D/>
20
inclassificável, ilustra o espírito e desassossega o leitor. Instigando cada vez mais estudiosos a
desvendar os seus mistérios.
Nascido em agosto de 1970, em Luanda, Angola, Gonçalo Manuel de Albuquerque
Tavares, ou Gonçalo M. Tavares, como prefere, estreou na literatura em 2001, com O Livro
da Dança. Uma obra inclassificável que transita entre poesia e ensaio. De lá para cá, publicou
mais de trinta obras inéditas em Portugal e está sendo traduzido para trinta e seis idiomas e
publicado em pelo menos cinquenta e um países. Seus livros compreendem os mais diversos
gêneros: romance, conto, poesia, teatro e ensaio. Além desses, Gonçalo M. Tavares é criador
de gêneros híbridos inéditos e inclassificáveis. Segundo informações fornecidas em seu blog6,
além das inúmeras traduções publicadas ao redor do mundo, a obra de Gonçalo M. Tavares
tem inspirado outras artes. Até agora, da obra desse autor, surgiram peças teatrais, ópera,
peças de artes-plásticas, vídeos de arte, além de teses e dissertações acadêmicas.
Atualmente, aos quarenta e seis anos, considerado pela crítica como um dos grandes
nomes da literatura contemporânea, Gonçalo M. Tavares vem arrebatando leitores ao redor do
mundo com obras de grande expressividade e originalidade. Escritor premiado em mais de 11
ocasiões, com destaque para o Prémio LER/Millennium BCP 2004, o Prémio José Saramago
em 2005, o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores "Camilo Castelo
Branco" em 2007, o Prémio Melhor narrativa Ficcional da Sociedade Portuguesa de Autores,
edição de 2010, em Portugal, e internacionalmente reconhecido com o Prémio Portugal
Telecom 2007, no Brasil, Prémio Belgrado Poesia de 2009, na Sérvia, Prix Du Meilleur Livre
Étranger em 2010 na França. Gonçalo M. Tavares impressiona público e crítica a cada nova
publicação.
O repertório de Gonçalo M. Tavares é bastante vasto. E ele está organizado em:
Canções, Enciclopédia, Poesia, Teatro, Ensaios, Estórias, Investigações, Epopeia, além das
séries O Reino – os Livros Negros –, O Bairro e Bloom Books.
Os Livros Negros – O Reino – chamam especial atenção por sua riqueza e
complexidade. Composto de quatro volumes: Um homem: Klaus Klump (2003), A máquina de
Joseph Walser (2004), Jerusalém (2005) e Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007), esta
tetralogia leva o leitor a confrontar o lado mais escuro da humanidade. Inquietante e
perturbador, na medida em que conduz o leitor pelas veredas da maldade, da violência e do
medo, os quatro romances juntos formam uma impressionante unidade capaz de suscitar no
leitor um imenso desconforto. No entanto, o próprio autor adverte que esses quatro romances
6 Blog de Gonçalo M. Tavares: <http://goncalomtavares.blogspot.com.br/>
21
podem ser lidos separadamente ou por qualquer ordem, pois entre eles não há nenhuma
relação de dependência. Valendo-se de uma prosa intrincada, descontínua e com alto teor
filosófico, Gonçalo M. Tavares constrói uma teia narrativa repleta de interstícios e
intertextualidades.
Aprender a Rezar na Era da Técnica: posição no mundo de Lenz Buchmann é último
romance da série dos Livros Negros – O Reino, publicado inicialmente em 2007, pela
Editorial Caminho em Portugal e em 2008 pela Companhia das Letras no Brasil. Esse
romance narra a trajetória de Lenz Buchmann, um renomado médico cirurgião que abandona
o exercício da medicina para se dedicar à atividade política e, assim, estabelecer a sua posição
no mundo. Dividido em três grandes partes: Força, Doença e Morte, Aprender a Rezar na Era
da Técnica narra episódios insólitos da vida de Lenz Buchmann. Filho de uma família
burguesa tradicional, Lenz é criado sob um rígido código moral estabelecido pelo pai militar:
Frederich Buchmann.
No início do romance, antes de tornar-se um médico cirurgião renomado, o narrador
em terceira pessoa descreve brevemente alguns momentos excepcionais da vida de Lenz
Buchmann. Lenz é conduzido pelo pai até a criada da casa para “fazê-la” (TAVARES, 2008,
p. 18) e, assim, provar a sua masculinidade. Esse momento, no entanto, é traumático para a
personagem e irá influenciá-la no decorrer de toda narrativa. Além disso, a primeira cena é a
chave para compreensão de muita das atitudes de Lenz na vida adulta. Vítima da repressão, da
violência e do medo, Lenz nessa e em muitas outras cenas submete-se à vontade do pai.
Com um misto de reverência e medo, Lenz tenta esconder e lidar com o pânico que a
figura do pai provoca. A cada novo episódio narrado a voz do pai reverbera com força em
Lenz, tal como ocorreu na cena inicial. Os ensinamentos do pai misturam-se às elucubrações
filosóficas de Lenz Buchmann. E estas são frequentemente retomadas pelo narrador, de modo
que, toda fase adulta de Lenz será influenciada pela postura fria e violenta de Frederich
Buchmann. Como médico cirurgião, Lenz, então, imagina-se como um soldado, assim como
seu pai. Um soldado, que na Era da Técnica aliado à máquina e à própria técnica combate
ferozmente a doença.
Tendo a técnica como sua aliada, Lenz acredita que tem a natureza como sua inimiga.
E no entendimento de Lenz, na batalha travada entre homem e natureza existe um complexo
jogo de forças, segundo o qual, o homem se opõe naturalmente à natureza. A imutabilidade da
natureza e a mutabilidade e dinâmica do homem patenteiam diferenças irreconciliáveis.
Segundo Lenz, apenas as emoções e as paixões humanas pareciam imutáveis como a natureza.
22
E como Lenz estava ao lado da técnica e da medicina, não poderia conceber qualquer
sentimento de empatia ou mero sinal de emoção que correspondesse à natureza, porque
naquela conjuntura paixões humanas eram incompatíveis, logo inaceitáveis.
Assim, Lenz cumpre sua função enquanto médico magistralmente. Apenas porque
compete a ele, enquanto médico, combater as doenças que afligem o ser humano como um
verdadeiro soldado em campo de batalha combateria o inimigo. Lenz frequentemente
perturba-se quando sua competência profissional é confundida com um gesto de bondade. A
cada nova frustração da personagem no exercício da medicina, vem acompanhada de
complexas observações e divagações filosóficas que revelam o alto grau de pragmatismo,
frieza e insensibilidade que conduz Lenz Buchmann. O apurado raciocínio lógico que é
conduzido pela personagem para sustentar e, ainda, justificar as suas atitudes com relação a si
próprio e as demais personagens do romance alcança um engenhoso domínio do jogo
intelectual e de sutilezas lógicas que extrapolam a esfera desse romance e permitem ao leitor
estabelecer relações com diferentes textos do cenário literário e filosófico.
Logo após o funeral de Albert Buchmann, o irmão mais velho de Lenz, o último
Buchmann percebe que a sua luta contra a natureza e que sua luta em prol da técnica poderia
ser estendida para toda cidade, que ao invés de tratar de casos individuais e ter a sua área de
influência restrita e limitada, poderia ser um político. E como político teria o poder necessário
para transcender as fronteiras que a medicina não lhe permitiria jamais transpor. Motivado,
então, por uma ambição pessoal, a de determinar a sua posição de centro no mundo, Lenz
converte-se em um dos mais poderosos políticos do Partido.
O Partido sem nome e que parece não enfrentar nenhuma oposição, exceto a dos
homens que se refugiaram na natureza e que, portanto, têm a natureza como sua aliada, é o
Partido que Lenz busca para ampliar a sua luta contra a natureza e estabelecer o seu Reino.
Sua atividade no Partido, embora curta, proporcionou o encontro com Hamm Kestner, o
homem forte do Partido. Hamm Kestner era o homem que foi capaz de despertar e inspirar em
Lenz a confiança necessária para poder operar o organismo da cidade inteira, asssim como
fazia quando era cirurgião, mas agora em proporções maiores, nem que para isso custasse o
equilíbrio e a estabilidade da mesma.
Convencido de seu potencial, sem dizer expressamente, considerava-se a si próprio o
“espírito da cidade”, arrebatado por uma vontade militar de transformação, Lenz tinha planos
junto com Hamm Kestner para a cidade. Mas os seus planos foram ameaçados por uma
doença: um cancro no cérebro. É interessante observar que um homem que vive orientado,
23
sobretudo, por uma perspectiva racionalista e prática da vida, é acometido por um doença no
cérebro que compromete todo o seu estilo de vida. Essa mancha negra cresce e se espalha
afetando suas capacidades mentais e cognitivas.
Certamente, após a evolução de seu quadro clínico, Lenz já não era mais capaz de
assegurar a sua racionalidade, sua independência e sua própria dignidade. A descoberta da
doença, em um primeiro momento, porém, não foi capaz de abalar a Lenz e impedir que ele e
seu colega de Partido arquitetassem planos e fizessem maquinações perversas repletas de
sutilezas lógicas e de um requintado teor filosófico. Lenz plantou uma bomba e explodiu uma
estátua em local estratégico para disseminar o medo na cidade. E mesmo doente, torna-se o
número dois nesse Partido sem nome. Inclusive, Lenz havia cogitado assassinar seu colega
Hamm Kestner, mas a evolução da sua doença impediu que muitos de seus planos se
realizassem.
Na última e terceira parte do romance, narra-se a luta de Lenz Buchmann contra a
doença que, gradativamente, consome as suas forças deixando-o complemente dependente e
debilitado. A batalha travada entre Lenz e natureza, nessa última parte, vai dando sinais de
esgotamento, que se materializa no esgotamento físico e psíquico da personagem. A fase final
da vida de Lenz, entretanto, é invadida novamente por uma série de observações, de delírios,
de cogitações filosóficas a respeito da vida, dos outros homens e do mundo.
Aprender a Rezar na Era da Técnica é um desses romances que inquieta o leitor pelo
modo como trabalha meticulosamente com a linguagem. Entretanto, não só o trabalho com a
linguagem, que, por sinal, é impecável e sofisticado, é levado em conta, mas também aquilo
que está além da linguagem, aquilo que excede a dimensão do verbo, mas que ainda assim é
contemplado no romance. Em outras palavras, leva-se em conta o silêncio que o romance
evoca. Tudo isso confere a este romance uma riqueza incomensurável.
24
CAPÍTULO I
POR UMA TEORIA DO SILÊNCIO
“O silêncio é fuga de tudo, sem separação de coisa alguma, porque tudo está dentro do próprio silêncio: nele, vestidas de eternidade, estão todas as palavras despojadas de tempo”.
(Michele Frederico Sciacca)
O primeiro capítulo desta dissertação versa sobre o caráter fundamental do silêncio na
constituição da linguagem. Ao reconhecer a imprescindibilidade do silêncio, considera-se que
ele está presente na linguagem, embora não se confunda com ela. Assim, a linguagem
atravessa o silêncio e caminha por ele. Provando ser maior que a linguagem, o silêncio,
inevitavelmente, perpassa por todas as esferas da linguagem e passa a ser objeto de interesse
das Ciências Humanas e da arte. A atitude das Ciências Humanas – diante de um fenômeno
tão denso e tão complexo – dispersa a concepção do silêncio na linguagem, evidenciando o
caráter fluído dos sentidos dos silêncios e provando mais uma vez ser um fenômeno obscuro e
indômito. Em decorrência disso, uma vasta gama de concepções surgiu tentando abordar o
poder absoluto e edificante do silêncio e observar como essa potência opera diretamente na
linguagem, mas que não se deixa conquistar por ela.
Dessa força, aliás, surgiu uma série de formulações e conceitos que homologam o
caráter constante, fundador e primordial do silêncio. Sob a forma de um silêncio potente e
ubíquo que fala obliquamente, que diz sem dizer, ou sob a forma de um silenciamento que
apaga certos sentidos em detrimento de outros, mas que, ainda assim, não deixa nada sem
significar, este capítulo dedica-se ao exame do silêncio da forma mais abrangente possível: o
silêncio e o silenciamento; com o intuito de que os apontamentos teóricos realizados aqui
possam orientar os capítulos subsequentes.
1.1 Silêncio e Linguagem
25
O silêncio é inerente à linguagem, de modo que ele não está fora, mas dentro dela e
também além. O silêncio revelador, inquietante e obscuro se mostra assim como um elemento
preliminar para tangenciar aquilo que é, por assim dizer, inefável, inexprimível, indizível e
irredutível a qualquer explicação. Isso porque o silêncio é sentido absoluto em si mesmo, ou
seja, o silêncio traduz-se em si mesmo. Eni Orlandi (2007, p.23) esclarece que “se a
linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não dito visto do interior da linguagem”. O
que se pode inferir é que o silêncio trabalha no interior da linguagem, e se a linguagem
significa e expressa algum sentido, é por meio do silêncio que esse sentido se constrói e se
manifesta. Em outras palavras, o silêncio é o caminho da linguagem, caminho este que se faz
necessário para não cair em um abismo e pairar em um nada, no vazio sem sentido.
Na transcendência da linguagem o silêncio também encontra repouso, de tal modo que
o inominável e o intraduzível se fazem ressoar vibrantes e inesgotáveis. O silêncio que
transcende a linguagem é um silêncio maior, completamente incógnito, cujo semblante
sempre permanecerá, em certa medida, ignoto e repleto de reservas para as quais a sua
apreensão total será, definitivamente, impossível e inapreensível. Esse silêncio além da
linguagem consagra-se infinito e originário, sugerindo a ideia de um silêncio absoluto
(KOVADLOFF, 2003). Tal como o silêncio de Aprender a Rezar na Era da Técnica, um
silêncio que nada exclui e que é envolvente e abrangente em sentido, pois para esse silêncio
não existe “[...] um único ouvido surdo ou um único olho cego: tudo seria envolvido”
(TAVARES, 2008, p. 156). O indizível em sua essência, portador de uma atmosfera
infranqueável no entender de Santiago Kovadloff (2003) joga com o real e com o irreal e
transcende o limite da significação e da própria linguagem.
Independentemente de sua manifestação, seja na linguagem ou na transcendência da
linguagem, fica suficientemente claro, até aqui, que o silêncio não é um fenômeno físico em
que há completa e total ausência de som, ruído ou manifestação verbivocal. O silêncio é “uma
modalidade de sentido” (LE BRETON, 1999, p. 141), capaz de alcançar o irrepresentável,
sendo, portanto, ele também irrepresentável. Em Aprender a Rezar na Era da Técnica, por
exemplo, o leitor é confrontado com a incontestável presença do silêncio na linguagem.
Silêncio que é pura potência, evidentemente, não se traduz por palavras ainda que esteja
acompanhado delas. “A sensação era de que, se aqueles dois homens falassem entre si, ela
não entenderia uma única palavra. Mesmo que falassem a língua comum [...]” (TAVARES,
2008, p. 298). Daí reside sua potencialidade e também a dificuldade em administrá-lo, pois
ele não se permite conceituar, pois ele é inapreensível em sua plenitude.
26
Etimologicamente, a palavra silêncio deriva do latim, Silentium, que significa silêncio,
descanso, repouso e quietude. Eni Orlandi em seu célebre livro intitulado As formas do
silêncio: no movimento dos sentidos (2007), diz que Silentium do latim deriva de Silens “que
significa que se cala, silencioso, que não faz ruído, calmo, que está em repouso, sombra, etc.”
(ORLANDI, 2007, p. 33). A autora ainda recorda que os latinos possuíam duas palavras para
exprimir a ideia contemporânea de silêncio; essas palavras eram sileo e taceo.
Embora, os latinos não distinguissem sileo de taceo, cuja distinção mais precisa seria
que o primeiro remete ao que hoje é entendido como silêncio, enquanto que, o segundo
remete ao ato de calar, Eni Orlandi observa que, “primitivamente, sileo não designava
propriamente ‘silêncio’ mas ‘tranquilidade’, ausência de movimento ou ruído” (ORLANDI,
2007, p. 33). Silentium é uma palavra que sugere um estado que o homem tem ao seu alcance,
uma condição que pode ser vislumbrada, ou seja, a vivência de calma e de quietude. Em
contrapartida, taceo sugere uma renúncia da ação do homem de emitir som ou ruído, uma
atitude que tanto pode ser facultativa ou impositiva, mas resultante da ação do homem
(GRÜN, 2010). Enfim, Silentium é, por sua natureza, inevitável, involuntário e essencial. Em
suma, Silentium é um estado necessário, enquanto que taceo é uma atitude ou uma ação em
relação a alguma coisa.
Sileo originou no português a palavra “silêncio”, que faz menção a um estado de
calma, de tranquilidade e de quietude, no espanhol, “silencio” e no catalão “silenci”, ambos
designam o estado de completa ausência de som ou ruído e calma, no inglês “silence”, remete
a “stillness” que é traduzido por tranquilidade, no francês “silence”, é apontado no dicionário
como ausência de ruído em um lugar calmo e, metaforicamente, designa paz, no grego
“σιωπή/ siōpḗ”, frequentemente associado ao verbo latino silentium, figurativamente, remete à
ideia de eloquência ou quando se expressa muito sem dizer nada, e no italiano, “silenzio”,
pode se referir a uma condição ou estado caracterizada pela ausência de ruído, além de que
pode ser agradável e relaxante.
O silêncio é, de fato, para todas essas línguas, um estado ou uma condição de paz e
tranquilidade, além de que para o grego, o silêncio também evoca a ideia de um estado
positivo e significativo. Enquanto que “taceo” originou no português a palavra “tácito”, no
francês “taire”, no italiano “tacere” e no romeno “tăcea” e todas sugerem a ideia de calado,
de apagamento ou de um vazio. Jean Jacques Lacan em seu Seminário, A Lógica do
Fantasma (2008), também tratou de distinguir sileo de taceo, e para o psicanalista francês,
taceo é a palavra não dita, o calar, o emudecimento ou o fato de ser silenciado.
27
Anselm Grün (2010) acredita que calar é um agir. Cala-se para omitir, para cessar o
sentido, para conter o fluxo contínuo de sentidos que se deixam ir pelos caminhos do silêncio
na linguagem. “Calar é um ato humano. O homem exercita-se no sentido de conter a fala, não
apenas exteriormente, mas também se calando internamente [...] parte do princípio de calar os
pensamentos que vêm continuamente à tona” (GRÜN, 2010, p.9). O silêncio, por outro lado,
simplesmente existe entre nós, ele convive conosco. O silêncio não se opõe à condição de
significar, mas o calar sim. Muito embora, o calar oponha-se à condição se significar, ele não
consegue conter o silêncio, de modo que até o calar significa pelo silêncio. De fato, a atitude
de Frederich Buchmann confirma esse poder do silêncio em relação ao calar. Frederich
Buchmann cala o medo existente em seus filhos, mas o medo nunca deixou de significar. O
medo, para Lenz, era um interdito que se manifesta em cada silêncio seu.
A ideia de que o silêncio, portanto, não é uma prática ou uma ação, mas um estado ou
uma condição contínua fica reforçado pelos esclarecimentos feitos por Eni Orlandi (2007) e
Anselm Grün (2010). David Le Breton, em seu renomado livro Do silêncio (1999), também
explora essa propriedade do silêncio apontada por Eni Orlandi (2007) e explica que:
Qualquer meio ressoa com manifestações sonoras características, mesmo que
sejam, por vezes, espaçadas, ténues, longínquas [...] Há sons que se juntam
ao silêncio sem perturbar a sua ordem. Às vezes mesmo revelam sua
presença e salientam a qualidade auditiva que antes não tinha sido percebida.
Ainda que o murmúrio do mundo não pare nunca, conhecendo apenas
variações de grau, com o passar do tempo, dos dias e das estações, há lugares
que não deixaram de dar a impressão da chegada do silêncio [...] A sua
manifestação acentua a sensação de paz que emana do lugar. (LE BRETON,
1999, p.141-2).
E é justamente por isso, que para os latinos “emprega-se sileo para falar de coisas, de
pessoas, e, especialmente, da noite, dos ventos e do mar. Silentium, mar profundo. E aí,
deparamos com o aspecto fluído e líquido do silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 33). À vista
disso, vê-se que o silêncio, em nenhuma dessas designações, remete à ausência de som ou à
mudez, em vez disso, o silêncio é interpretado como um estado. Gilberto Mendonça Teles, em
Retórica do Silêncio (1979), lembra que a própria palavra silêncio exprime silêncio como
também faz transparecer esse aspecto líquido e fluído até em seu significante.
O silêncio é um daqueles ‘vocábulos expressivos’, de que fala J. Mattoso
Câmara Jr., vocábulos cuja estrutura fonológica se apresenta ‘como
apropriada ao significado’: a repetição das sibilantes surdas (si...ci), a tônica
anasalada, o ditongo crescente a prolongar a sibilação reiterada, a consoante
constritiva e lateral da sílaba tônica, situada exatamente entre as sílabas
repetidas, tudo isso concorre para que a significação comum da palavra
28
silêncio se enriqueça de possibilidades rítmicas como se nessa palavras
houvesse ao mesmo tempo, o som e o não-som, a música da fala e a pausa
melodiosa de outra fala em perspectiva. (TELES, 1979, p. 8).
Por isso, acredita-se que o silêncio permeia a comunicação e que se inscreve na
linguagem, de tal maneira que se deixa perceber até em seu significante. Vibrante e inevitável
o silêncio evidencia de uma vez por todas a possibilidade de que a vida se constitui em
harmonia com silêncio. Embora não pareça tão evidente observá-lo por ser inapreensível, a
experiência com o silêncio desperta uma consciência sobre os fatos da linguagem. Além
disso, “em vez de ausência de fala, o silêncio se deixa ler como o espaço de outras ‘falas’, de
outras linguagens, como a pausa na música, como a página branca ou o espaço em branco de
um livro [...] criando tensões e expectações” (TELES, 1979, p.12). Esse silêncio cria uma
atmosfera que, de certo modo, envolve toda linguagem e toda forma de expressão. O domínio
do silêncio é o domínio de todas as linguagens. Não há linguagem que não exprima silêncio.
Tendo observado sua natureza contínua e permanente, fica mais evidente que não é
possível evitar o silêncio de modo absoluto. O silêncio convive com o homem, ele está
presente em nossa realidade de maneira constante. E Aprender a Rezar na Era da Técnica
homologa essa afirmação, pois nesse romance tudo implica silêncio. Destarte, o exercício da
linguagem é marcado pela presença inconteste do silêncio. O silêncio é uma condição
fundamental para o dizer e, por conseguinte, fundamental para a linguagem de modo geral.
Tal teorização tem uma implicação fundamental nos estudos da linguagem, uma vez
que se elege o silêncio como um estado constante e permanente, fica excluída a possibilidade
de ele ser entendido como um mero acidente na linguagem ou como algo circunstancial e que
pode ser evitado. Eni Orlandi (2007) postula que se deve pensar o silêncio como um estado
primeiro, anterior à própria palavra. Segundo a autora, observa-se que essa condição está
representada em expressões da língua como: “estar em silêncio/ romper o silêncio; guardar o
silêncio/ tomar a palavra; ficar em silêncio/ apropriar-se da palavra” (ORLANDI, 2007, p.
31). Expressões tais que evidenciam o estatuto primeiro do silêncio frente à linguagem verbal.
O que consiste em dizer que pensar a linguagem implica considerar o silêncio que nela se
encontra para construir os sentidos, visto que não há nada na linguagem que seja
simplesmente dado e que dispense a necessidade de interpretação.
A construção do sentido impõe sobre o homem o peso do silêncio e da contemplação
silenciosa, não se podendo, portanto, extrair sentido sem o exame inevitável do silêncio. O
silêncio é inaugural e originário para o sentido, sendo que não há sentido sem a sua presença.
Entende-se o silêncio como um lugar ou espaço fundamental que permite à linguagem
29
significar. Então, como não reconhecer a presença indelével do silêncio na linguagem? Ao
indagar acerca do silêncio na linguagem, percebe-se que não se pode escapar do silêncio que
tangencia a linguagem, porque o silêncio é incontornável e a linguagem inaugura em si o
estatuto irrevogável do silêncio. E a linguagem apresenta-se ao homem no caminho do
silêncio, porque ela se encontra assentada em silêncios. A título de ilustração, destaca-se em
Aprender a Rezar na Era da Técnica a seguinte passagem: “Dá-me um nome para te
substituir [...] mas o mundo não parava e o Dr. Lenz Buchmann foi interrompido nestas
considerações mentais [...] com os seus chamamentos sucessivos, o silêncio que se instalara
no hospital” (TAVARES, 2008, p. 50). Patenteando a presença constante desse silêncio.
Muito frequentemente se atribui à linguagem a ideia de que ela é o limite do que pode
ser dito. Restringe-se o poder da linguagem apenas ao domínio verbal. Não obstante, percebe-
se que a linguagem excede a experiência verbal. Nota-se, por exemplo, que, muitas vezes, o
homem é arrebatado por uma sensação que atormenta o seu “eu” ou que o homem é inspirado
por um sentimento que lhe aviva o espírito, e que em ambos os casos essas sensações parecem
ser impossíveis de ser traduzidas. Fato que se torna recorrente entre os poetas e os escritores,
mas também pode o ser para os homens comuns. Homens, cujas vidas impressionantes,
presenciaram ou presenciam situações inacreditáveis, indescritíveis e extraordinárias, e diante
de tais situações, sejam elas traumáticas ou sublimes, parece que a linguagem lhes falta, que
há uma falha na linguagem. Mas se a linguagem é como se diz e como bem lembra Octavio
Paz em O Arco e a Lira (2013, p. 112): “significado: sentido disto ou daquilo”, como poderia
haver uma falta na linguagem?
Vê-se na impossibilidade de verbalizar uma situação, como uma falha da linguagem,
na impossibilidade de a linguagem em dar conta do real. Entretanto, é preciso pensar que
tanto experiências inenarráveis ou sensações inexprimíveis não caem, simplesmente, no vazio
ou no abismo do esquecimento por não haver palavras o suficiente para descrever ou
transmitir essas experiências. Perante momentos inenarráveis ou inexprimíveis, ainda que
faltem palavras e, com certeza, faltarão, não faltará silêncio que manifeste a magnitude
daquilo que se quer transmitir. De fato, não é a linguagem que falha, mas as palavras que se
mostram insuficientes. Tal como acontece ao policial ao lamentar a morte de Maria
Buchmann, a esposa de Lenz assassinada por ele mesmo.
Com a falta de palavras, o silêncio expressa com grande eloquência o que se pretende
dizer sem que se tenha de dizer. “Assim, na ausência do signo verbal, outro signo se impõe: o
do silêncio” (TELES, 1979, p. 9). Nesse sentido, é um equívoco pensar que a linguagem falha
30
ou que a linguagem tem lacunas ou, ainda, que ela não é capaz de suprir e traduzir momentos
únicos e importantes, porque até aqui, a linguagem parece se valer do silêncio. E o silêncio,
por sua vez, parece ser o melhor e o único meio de narrar o inenarrável e exprimir o
inexprimível. Não se deve, dessa forma, culpar a linguagem por supostamente haver uma
lacuna, porque são as palavras que são limitadas e insuficientes. Independente da língua ou do
repertório do sujeito, as palavras sempre faltam, o que não falta jamais é silêncio.
Georg Steiner, em sua obra referencial Linguagem e Silêncio (1988, p.40), afirma que
“a linguagem (verbal) só pode lidar, de modo significativo, com um segmento especial e
restrito da realidade. O resto, e é provável que seja a parte maior, é silêncio” Georg Steiner
(1988, p. 39) chega a essa conclusão, a partir da indagação proposta por Ludwig Wittgenstein,
em que o filósofo alemão se pergunta “se a realidade pode ser expressa pela fala”. A fala, em
sentido estrito, não é capaz de representar a realidade como um todo, mas a linguagem é,
porque ela (a linguagem) se nutre do silêncio. A linguagem não se faz só de palavras, a
linguagem extrapola o universo das palavras. Ao tratar da intrínseca relação entre linguagem e
silêncio, Steiner estabelece o silêncio como elemento fulcral na relação do homem com a
linguagem.
Em vários ensaios, Georg Steiner descreve uma falência da matéria verbal. Para ele "o
mundo das palavras encolheu" (STEINER, 1988, p. 43), não porque o vocabulário tenha sido
reduzido ao longo dos séculos, mas porque as palavras, conforme esse autor, não são mais o
bastante para representar o mundo hoje e, talvez, nunca tenham sido. Assim, a linguagem
verbal demonstra não ser capaz de expressar e conter toda a realidade, mas onde faltam
palavras, vibra silêncio, de modo que o silêncio não deve ser encarado numa perspectiva
negativa, mas positiva, como argumenta Eni Orlandi.
A profusão do conhecimento levou a sociedade, sobretudo, aqueles que trabalham com
a linguagem, os escritores e os poetas, os filósofos e até o analista do discurso a perceber a
existência de uma lacuna entre a realidade empírica e os fatos da linguagem verbal. A palavra,
assim, manifesta a sua limitação frente aos significados e aponta para uma única saída: o
silêncio. O retrato da crise da linguagem verbal traçado por Georg Steiner evidencia que "uma
civilização de palavras é uma civilização atormentada. Palavras criam confusão. Palavras não
são expressão" (STEINER, 1988, p. 72). As palavras, ainda segundo esse autor, mostram-se
inadequadas à revelação e à essência da linguagem.
Georg Steiner cita o filósofo e ensaísta francês Brice Parain que elege a linguagem
como "limiar do silêncio" (STEINER, 1988, p. 72). Visto dessa maneira, é possível admitir
31
que o silêncio não é um aparte da linguagem e que o silêncio não é linguagem. O silêncio está
na linguagem, mas não se confunde com ela. O silêncio cumpre o papel de um “caminho”
pelo qual a linguagem se aproveita para significar. O silêncio é o espaço de significação e de
expressão da linguagem. Mesmo nutrindo a linguagem, não se exclui a possibilidade de o
silêncio também excedê-la.
Entretanto, Eni Orlandi (2007), por exemplo, afirma que dentro de abordagens
formalistas e estruturalistas da linguagem, não há espaço para o silêncio enquanto elemento
significante. Consonante a autora, as noções de meta e ausência não compreendem o silêncio
dentro dos fatos da linguagem. Não obstante, é preciso considerar a linguagem e o silêncio
que é nela constitutivo e fundante (ORLANDI, 2007). A linguagem manifesta a
impossibilidade de dizer tudo de uma só vez e sobre tudo e, assim, esgotar os sentidos. Por
isso, elementos mais significativos em Aprender a Rezar na Era da Técnica não estão
evidentes, eles se deixam descobrir aos poucos nos silêncios, nas lacunas, nas fissuras do
texto. Basta considerar o capítulo “Reflexões sobre a doença” (TAVARES, 2008, p. 61), onde
Lenz associa a doença a uma flor negra. A linguagem na sua relação com a totalidade do
mundo é inconcebível e, portanto, marcada por silêncios e interditos. Convém lembrar
também que a linguagem, para Fábio Elias Tfouni (2008), se organiza não só a partir do
silêncio, mas também pelo interdito. O interdito, para esse autor, é entendido como um
operador de corte fundamental na produção de sentidos que revela a incapacidade de dizer
tudo.
Segundo essa perspectiva, a busca da completude da linguagem – o que
implicaria a ausência do silêncio – leva à falta de sentido pelo muito cheio,
mesmo se, do ponto de vista estritamente sintático, há gramaticalidade [...]
Para falar o sujeito tem a necessidade do silêncio, um silêncio que é
fundamento necessário ao sentido e que ele reinstaura falando. (ORLANDI,
2007, p. 69).
A concepção do silêncio enquanto modalidade de sentido faz supor que sem a
presença do silêncio, a linguagem verbal converte-se em um vozerio, saturado por discursos
vazios e sem sentido. E, ao mesmo tempo, em que se sugere que há muito mais no mundo e
no próprio homem que não é passível de ser verbalizado, nem por isso, é impossível de
significar para o outro além daquele que vivencia. É pelo silêncio do outro que se intui e que
se conhece a magnitude de um evento quando as palavras se mostram insuficientes e
insatisfatórias.
32
É incontestável que a linguagem excede em muito a ordem das palavras, porque para
Eni Orlandi (2007), a linguagem nasce do silêncio e é no silêncio que a linguagem se
desdobra. Além do que é impossível conceber a palavra sem a marca do silêncio. Michele
Sciacca (1967) acredita que as palavras são geridas no silêncio e que morrem no silêncio. O
autor ainda defende que “a palavra nasce do silêncio, vive no silêncio, culmina no silêncio,
última palavra, além de qualquer palavra” (SCIACCA, 1967, p. 23). Como se pode
reconhecer ao final do romance, quando Lenz rende-se ao silêncio e sua última palavra fica
impronunciada. Isso quer dizer que as palavras só são expressivas porque nascem do silêncio
e porque são costuradas por silêncios que se deixam distinguir entre significantes os sentidos.
A partir dessa concepção, pode-se chegar à proposição de que o silêncio é, além de
inevitável, necessário à organização da linguagem. É ele que garante o movimento dos
sentidos. Como se sabe, “a significação não se desenvolve sobre uma linha reta, mensurável,
calculável, segmentável. Os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as direções
[...] entre as quais se encontra o silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 46). Nessa perspectiva,
entende-se que o silêncio infinito e imensurável surge como a possibilidade na linguagem de
polissemia e da multiplicidade de sentidos, porque a linguagem se desdobra através do
silêncio e, gradualmente, deixa-se revelar, mas nunca inteiramente, sempre à tutela do
silêncio. Assim, fica postulado que a linguagem é, indubitavelmente, atravessada por silêncio.
Todas as múltiplas linguagens passam pelo domínio do silêncio.
Adam Jaworski afirma em The Power of Silence (1993) que o silêncio se faz presente
o tempo todo, ainda que se apresente de múltiplas formas e modos, o silêncio sempre significa
pela linguagem verbal e não verbal. Às vezes, “em alguns casos, certos silêncios são mais
facilmente reconhecidos e identificados do que outros que aparecem escondidos em uma
multidão de palavras” (JAWORSKI, 1993, p. 8, tradução nossa) 7, mas ainda que cercado de
palavras, o silêncio sempre está lá. Em decorrência disso, Adam Jaworski (1993) entende que
o silêncio não se opõe ao discurso, ou às palavras, o silêncio, também, não se opõe a
linguagem verbal, mas ambos formam um fluxo contínuo. “A linguagem não é somente
palavras faladas, pictóricas, musicais; é palavra e silêncio juntos” (SCIACCA, 1967, p. 29).
Toda linguagem, para Michele Sciacca (1967), independente de sua modalidade, nasce do
silêncio infinito e intraduzível, cuja potência significativa não pode ser contida, a não ser pelo
próprio silêncio e, tampouco, alcançada plenamente, apenas entreluzida, porque o silêncio é
7 “Some instances of silence are easily recognized and identified than other that appear concealed in a multitude
of words” (JAWORSKI, 1993, p.8 – tradução nossa).
33
força contínua e incessante, e, a não interrupção desse fluxo possibilita a linguagem
(SCIACCA, 1967).
De fato, não se pode contê-lo, mas não seria por isso que não se pode percebê-lo e
estudar seus efeitos, seu(s) sentido(s), sua(s) forma(s). Muito embora, o silêncio seja um fluxo
incessante de sentidos, laivos de silêncio deixam-se perceber na linguagem. Essas marcas
formais do silêncio, que se insinuam na linguagem, permitem que o pesquisador possa intuir
os seus efeitos de sentido. O silêncio, de acordo com Santiago Kovadloff (2003, p. 11), “[...]
tem de residual o que guarda de refratário aos enunciados que se empenham em subjugá-lo”,
restando traços e marcas formais que permitem tangenciá-lo. Sinais e rastros de sua presença
que se manifesta constantemente na comunicação humana.
Essas marcas do silêncio são percebidas e intuídas em toda linguagem e pensar o
silêncio significa propor um mergulho no interior da linguagem e alcançar no silêncio os seus
mais profundos sentidos. Assim, ao refletir sobre a linguagem é importante adentrar em seus
caminhos silenciosos fazendo ressoar o silêncio que nela se encontra e que a nutre, porque no
silêncio a linguagem significa, retomando a hipótese de Eni Orlandi (2007). Então, para
adentrar os caminhos da linguagem, Martin Heidegger, em A caminho da linguagem (2003),
entende que é necessário, primeiramente, fazer uma experiência com a linguagem, na medida
em que essa experiência implica o fato de “deixarmo-nos tocar propriamente pela
reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmonizando”
(HEIDEGGER, 2003, p. 121), a fim de que se possa verdadeiramente adquirir conhecimentos
sobre a linguagem e perceber os sentidos que se guardam em seu âmago.
Por meio de vários escritos, o filósofo alemão considera que pensar a linguagem
significa percorrer pelos seus caminhos, sem pretender alcançar um fim. Os caminhos da
linguagem são em sua essência caminhos que se fazem por ela mesma para explorá-la em seu
próprio meio. Seus desdobramentos sugerem que a linguagem fala, mesmo sem estar
facultada com os órgãos da fala e mesmo sem emitir qualquer som. Simplesmente, a
linguagem fala, no sentido de que ela fala dizendo, ou seja, mostrando-se, desdobrando-se.
Então, pode-se inferir que a linguagem fala enquanto que o silêncio significa. Martin
Heidegger sugere, ao longo de sua obra, a linguagem como propiciadora do homem, de modo
que se o homem fala, ele fala a partir da linguagem. Assim, nessa perspectiva, o homem seria
a grande promessa da linguagem. A linguagem que é propiciadora da fala do homem. É a
linguagem que faculta a fala ao homem.
34
É exatamente esse o pressuposto básico para o filósofo: a linguagem fala, mesmo sem
falar. Ela fala se mostrando. Talvez, por essa razão, Julia Liegnitz compreende o irmão
Gustav, o surdo-mudo. Dessa forma, “o homem fala à medida que corresponde à linguagem.
Corresponder é escutar. Ele escuta à medida que pertence ao chamado da quietude”
(HEIDEGGER, 2003, p. 26). Assim, intui-se que a linguagem, enquanto manifestação do ser
se deixa perceber pela relação entre escuta e silêncio, o que garante a harmonia na linguagem.
Além de tudo, o filósofo afirma que “nossa relação com a linguagem mantém-se
indeterminada, obscura, quase indizível” (HEIDEGGER, 2003, p. 122), o que vem
demonstrar uma consciência de que a relação do homem com a linguagem é atravessada pelo
silêncio, bem como, se evidencia a recusa de que a linguagem é um mero instrumento de
transmissão de informações.
Mas como conceber o silêncio na linguagem se a linguagem fala? É óbvio, que “dizer
e falar não são, porém, o mesmo. Alguém pode falar, falar sem parar e não dizer nada. Por
outro lado, alguém pode ficar em silêncio, não falar e nesse não falar dizer muito”
(HEIDEGGER, 2003, p. 201), porque, para Martin Heidegger, “a linguagem fala como
consonância do quieto” (HEIDEGGER, 2003, p. 24), prescindindo da emissão de sons para
falar. Então, a linguagem fala também no silêncio. O silêncio, dessa forma, no entendimento
de Martin Heidegger, é constitutivo da linguagem. Para ele,
A linguagem, que fala à medida que diz, cuida para que nossa fala,
escutando o não dito, corresponda ao seu dito. Assim também o silêncio, que
se costuma considerar como origem da fala, é prontamente um corresponder.
O silêncio corresponde à consonância do quieto, ela mesma sem som,
inerente à saga do dizer, essa que mostra e apropria. Mostrando, a saga do
dizer, que repousa no acontecimento apropriador, é o modo mais próprio de
tornar próprio. O acontecimento apropria em dizendo. (HEIDEGGER, 2003,
p. 211).
A caminhada empreendida por Martin Heidegger considera que a linguagem fala
também entremeada pelo silêncio. Em Martin Heidegger, ela significa na medida em que se
escuta o que ela está dizendo, deixando ressoar a sua voz não sonora e ouvir o que ela está
mostrando. Deixa-se revelar aquilo que é próprio do silêncio: o sentido.
Mas onde a linguagem como linguagem vem à palavra? Raramente, lá onde
não encontramos a palavra certa para dizer o que nos concerne, o que nos
provoca, oprime ou entusiasma. Nesse momento, ficamos sem dizer o que
queríamos dizer e assim, sem nos darmos bem conta, a própria linguagem
nos toca, muito de longe, por instantes e fugidiamente, com o seu vigor.
(HEIDEGGER, 2003, p. 123).
35
Em vez, portanto, de esclarecer a linguagem tentando olhá-la por fora dela e propor
uma discussão sobre a linguagem, o que se tem na proposta de Martin Heidegger é alcançar a
linguagem a partir da própria linguagem, ou seja, buscar na linguagem aquilo que pertence à
linguagem. Nessa reflexão, destaca-se que para discutir sobre o silêncio e suas propriedades,
deve-se observá-lo a partir dos fatos da linguagem. Não se pode conceber o silêncio
excluindo-o da linguagem. A proposta heideggeriana defende um mergulho nos fatos da
linguagem, a partir de uma busca de uma experiência com a linguagem e permitir que a
linguagem fale mostrando o que foi dito e o que ainda não foi dito.
Mas, o próprio filósofo reconhece que essas concepções de linguagem não se bastam
por elas mesmas, que elas são insuficientes para alcançar a essência da linguagem. Ademais,
tampouco é de seu interesse criar uma concepção de linguagem que possa ser aplicada em
toda a parte esgotando a potência criadora da linguagem, que é fomentada pelo silêncio, sendo
essas mesmas perspectivas marcadas pela passagem indelével do silêncio. Só é possível falar
do silêncio a partir do próprio silêncio, assim como, só é possível falar da linguagem a partir
da própria linguagem porque a linguagem é inspirada pelo silêncio e, de certa maneira, falar
da linguagem implica evocar o seu silêncio. Assim como, para falar do silêncio implica em
evocar a sua manifestação na linguagem.
Situado assim como um dos elementos estruturadores e fomentadores da linguagem, o
silêncio é norteador para compreender as condições para a linguagem significar. Sendo uma
modalidade de sentido, o silêncio da linguagem é inquietante. Assim, em uma sociedade cada
vez mais saturada pela multiplicidade de linguagens, a busca do silêncio na linguagem torna-
se mais do que uma tentativa de alcançar o silêncio na linguagem, mas uma necessidade, uma
obsessão.
1.2 Silêncio e Silêncios
O silêncio é instigante e já desafiou inúmeras áreas do conhecimento a recobrar em
sua plenitude o seu significado. As Ciências Humanas tentaram alcançar em seu âmago a
essência do silêncio e a sua relação com a linguagem. Tanto a filosofia, a sociologia, a
psicanálise, a análise do discurso, a teologia e entre tantas outras áreas do conhecimento se
debruçaram sobre essa matéria e constataram, acompanhadas de muita observação e análise,
que o silêncio é uma abertura na possibilidade da compreensão do homem e do mundo.
36
Atrevendo-se a ir mais além, o silêncio converte-se em uma abertura para vislumbrar o
intraduzível do ser e da linguagem.
Para aquilo que nas Ciências Humanas, na arte e na poesia o homem ainda não
conseguiu representar pelo signo verbal, convocou-se o signo do silêncio para preencher as
lacunas e aparar as arestas, de modo que nada fique desprovido de sentido, nem pelo vazio e
nem pelo muito cheio, inclusive o irrepresentável (TELES, 1979). Sobre o silêncio, pode-se
percebê-lo, pode-se intuí-lo, mas o que não se pode, de modo algum, é capturá-lo. É trabalho
inútil tentar conter o silêncio e fixar-lhe um sentido, tendo visto que o silêncio além de
irrepresentável é fugaz e os seus sentidos são múltiplos e inesgotáveis, pois escapam para
todos os lados, tornando-se, dessa forma, incontroláveis. Fica, assim, suficientemente claro,
que o empenho realizado pelas Ciências Humanas em administrar o silêncio é um trabalho
inesgotável e infindável.
Embora cada área, à sua maneira, empenhe incontáveis esforços, tentando abranger o
silêncio em sua plenitude, por intermédio de diferentes metodologias, esses campos do
conhecimento, ao final, acabam inevitavelmente dispersando a concepção do silêncio através
de diferentes áreas do saber, onde cada uma se ocupa de um fragmento e com um viés
diferente da ideia de silêncio. A ideia sui generis do silêncio, assim, converte-se em um
entendimento plural e diversificado da mesma matéria. Têm-se, desse modo, silêncios
múltiplos e significativos, em um amplo conjunto de imagens mais ou menos equivalentes
que se entretecem e que se interconectam podendo estabelecer relações de contiguidade com
perspectivas diversas.
O que há em comum entre todas essas concepções escolhidas é que o silêncio significa
ou que é essencial à constituição de sentidos. O silêncio permite lançar um olhar para o
interior do sujeito. Crê-se que nesse olhar interior o homem é capaz de vislumbrar mais longe
e despertar sentidos que não podem ser tangenciados pelo domínio verbal. Assim, o que se
tem a seguir é um panorama dos vários silêncios abordados nas Ciências Humanas.
Obviamente, nas linhas que se seguem não há nenhuma pretensão de abarcar tudo que foi
discutido e estudado sobre o silêncio dentro desses campos, além do que, isso é simplesmente
impossível. O que se propõe é apenas um recorte de algumas abordagens que pareceram
interessantes no seu trato com o silêncio e que porventura ajudarão as leituras e as análises
neste trabalho.
37
1.2.1 O silêncio na filosofia
A fascinação do homem gerada pelo silêncio é de grande interesse dos estudos
filosóficos. O silêncio é insondável, desconcertante e se reveste de um ar de mistério e de
potência que inscreve nele uma aura de impenetrabilidade e, ao mesmo tempo, conserva algo
de instigante e de irresistível, que a filosofia se esforça em muito para alcançar, mas parece
ser uma tarefa infactível adentrar o silêncio. A filosofia conta com algumas das obras mais
célebres já produzidas sobre as propriedades do silêncio, que vem confirmar o seu caráter
fundamental, essencial e primordial na linguagem.
Sob muitos aspectos o silêncio já foi observado, por contraste ou por analogia.
Bernard Dauenhauer (1980) e Maurice Merleau-Ponty (1992), porém, se lançam a uma
empreitada hercúlea no sentido de escrever sobre o silêncio e desvelar esse mesmo silêncio
que nutre a linguagem e que se configura como elemento primordial e indispensável para a
produção de sentidos. A sua empreitada permite conceber o significado ontológico do
silêncio, bem como perceber os vários modos que o silêncio se apresenta ao homem, pois
esses modos são repletos de significados em si mesmos corroborando para o alto grau de
significação no discurso.
Escrever sobre o silêncio, então, não significa se opor a ele. Na verdade, escrever
sobre o silêncio significa, ao contrário, propor um exercício de linguagem ao fazer o silêncio
se revelar através das palavras, pois o estudo do silêncio consiste na observação da palavra e
do silêncio em busca de seu sentido mais amplo. Escrever sobre o silêncio é de fato um
exercício, pois equivale a um mergulho na linguagem para se abeirar do limite da
interpretação.
Em se tratando de Bernard Dauenhauer, no primeiro capítulo de sua obra, o filósofo
realiza as primeiras aproximações ao fenômeno do silêncio. E sob a luz da análise
fenomenológica, Bernard Dauenhauer distingue vários tipos e modos de silêncio que são
positivos e significativos em primeira instância. Há o silêncio da intromissão, há o silêncio
anterior e posterior, assim, como há o silêncio profundo que embora não seja tão identificável
quanto os demais modos de silêncio, o silêncio profundo para Bernard Dauenhauer está
intimamente ligado a qualquer elocução e já foi percebido e intuído por outros pensadores.
Sua concepção do silêncio distingue-se inteiramente da noção do silêncio enquanto
ausência de som. O silêncio, para Bernard Dauenhauer, caracteriza-se por ser pleno em
sentido e por ser fundamentalmente necessário em qualquer elocução. Em suas palavras, o
38
“silêncio é um fenômeno rico e complexo. Alguns de seus aspectos são óbvios e largamente
reconhecidos. Outros podem ser detectados apenas através de um exame minucioso [...]”
(DAUENHAUER, 1980, p. 3). Enfim, independentemente da maneira como o silêncio se
apresenta ao homem, obviamente ou obliquamente, Bernard Dauenhauer reconhece que ele
não é uma mera ausência ou uma lacuna de alguma coisa, qualquer interpretação do silêncio
nesse sentido desqualificaria o valor e o estatuto positivo atribuído a ele. Assim como Eni
Orlandi, o silêncio na concepção de Bernard Dauenhauer é um fenômeno positivo e rico em
significados, de maneira que o próprio filósofo admite ser impossível dar um caráter
definitivo e qualificador do silêncio. Contudo, mesmo o silêncio sendo inconquistável, é
válido qualquer empreendimento que procura se lançar a uma compreensão mais profunda do
fenômeno do silêncio (DAUENHAUER, 1980). E é nesse sentido que o estudioso Bernard
Dauenhauer propõe uma série de categorias de silêncio, mostrando que o silêncio cumpre um
papel imprescindível para o discurso.
O primeiro conceito do silêncio a ser pontuado é o silêncio da intromissão como
aquele que se interpõe e pontua as palavras e as frases de um determinado discurso. Apenas
para trazer um exemplo de Aprender a Rezar na Era da Técnica: “– Veja, – insiste Lenz –
duas manchas, enormes. – Lenz aponta para as manchas. – Vou buscar uma régua, vou medi-
las” (TAVARES, 2008, p. 58). Sem a presença desse silêncio, o discurso seria complemente
caótico e inarticulável. O silêncio da intromissão tem um caráter muito distintivo em relação
aos demais silêncios pontuados por Bernard Dauenhauer, pois esse silêncio garante um efeito
rítmico e melódico ao discurso. Outro aspecto interessante a respeito do silêncio da
intromissão, segundo Bernard Dauenhauer, é que ele possui uma estrutura temporal. Tal
estrutura é bastante complexa, mas no instante em que o silêncio A se instaura, segundo
Bernard Dauenhauer, ele é preenchido com o sentido de uma frase A e enquanto o silêncio A
perdura, o sentido da frase A se esvazia, mas não totalmente, de modo que, o silêncio de A
liga-se à frase B e interconecta os sentidos e, assim, sucessivamente. É o que se pode chamar
de um tempo de preenchimento e de esvaziamento do silêncio da intromissão. Na verdade,
O silêncio da intromissão parece ter um objetivo característico de qualificar
as elocuções como “minhas”, “de ninguém” etc. Mas, aparentemente, ele
deve marcá-los de alguma forma. A interpretação pelo público da duração do
silêncio da intromissão empregada pelo autor e da consequente qualificação
do enunciado não envolve menos dificuldades do que a interpretação de
qualquer outro componente de enunciados. Mas também não há nada de
39
particularmente misterioso ou subjetivo sobre ele. (DAUENHAUER, 1980,
p. 9 – tradução nossa) 8.
O silêncio anterior e posterior, por sua vez, foca no discurso como um todo, em vez de
se concentrar no discernimento entre uma frase e outra. Este silêncio evidencia que qualquer
elocução é cercada por silêncio, que no silêncio está o seu limite e a sua origem. Então, uma
elocução é antecedida por silêncio e também sucedida por silêncio. Essa modalidade de
silêncio atesta que o silêncio é início e fim dos sentidos. Embora, esse silêncio se assemelhe
ao silêncio da intromissão em sua função, Bernard Dauenhauer, esclarece que:
O silêncio anterior e posterior está envolvido em fazer uma elocução
particular distinta de outras elocuções. O silêncio da intromissão está
envolvido em fazer uma determinada frase distinta de todas as outras frases.
A semelhança das suas funções aponta para uma unidade básica que engloba
esses dois aspectos do silêncio. (DAUENHAUER, 1980, p. 15 – tradução
nossa) 9.
Tal afirmação ainda vem corroborar a ideia de que a concepção do silêncio é, nesse
sentido, indivisível e que as linhas traçadas em torno dele, com o intuito de qualificá-lo e
contê-lo, são tênues e de maneira alguma definitivas. O estudo do silêncio para Bernard
Dauenhauer não é transparente. O que quer dizer que o silêncio não se deixa aprisionar.
Assim, pode-se afirmar que o silêncio transborda além dos limites de qualquer classificação.
E por isso, essas reflexões sobre as formas do silêncio permitem multiplicar e agregar
sentidos a um determinado discurso. O silêncio é livre e trabalha com os sentidos
independentemente do discurso. Há, por assim dizer, uma primazia do silêncio sobre o
discurso (DAUENHAUER, 1980). O silêncio profundo por sua vez, evidencia essa
característica, de modo que o silêncio profundo se divide em mais três subcategorias: o
silêncio íntimo, o silêncio litúrgico e o silêncio a ser dito (um tipo de silêncio normativo).
Mas, o que mais interessa sobre o silêncio profundo é que:
O silêncio profundo é encontrado como o silêncio que permeia um
enunciado. Atravessa um enunciado [...] o silêncio profundo não está
8 Intervening silence appears to have the objective characteristic of stamping utterances as “mine”, “anyone’s”
etc. But apparently it must mark them somehow. The interpretation by the audience of the duration of the
intervening silence employed by the author and of the consequent stamping of the utterance involves no fewer
difficulties than does the interpretation of any other component of utterances. But neither is there anything
peculiarly mysterious or subjective about it. (DAUENHAUER, 1980, p. 9 – tradução nossa).
9The fore-and-after silence is involved in making a particular utterance distinct from every other utterance.
Intervening silence is involved in making a particular sound phrase distinct from every other sound phrase. The
sameness of their functions points to a basic unity which embraces these two aspects of silence.
(DAUENHAUER, 1980, p. 15 – tradução nossa).
40
intrinsecamente relacionado a algum enunciado determinado. Ocorrências de
silêncio profundo, portanto, não se equiparam com qualquer outra coisa que
não seja as pessoas que incorrem no profundo silêncio. (DAUENHAUER,
1980, p. 21– tradução nossa) 10
.
Assim, a questão crucial levantada pelo autor de Silence: the phenomenon and its
ontological significance (1980), ao apresentar esses distintos modos de silêncio, mas que em
última instância também são correlatos um do outro, tende a mostrar que todo enunciado,
“Requer o uso da palavra certa, no momento certo, para a pessoa certa, sobre o tema certo,
pelo motivo certo. Fala autêntica é a fala adequadamente adquirida a partir do silêncio ou, em
outras palavras, fala que atende ao princípio da limitação que separa a fala do silêncio”
(DAUENHAUER, 1980, p. 111 – tradução nossa) 11
. O discurso, portanto, deriva do silêncio
e retorna ao silêncio e é no silêncio que encontra o seu propósito, bem como o seu equilíbrio.
“Ficou demonstrado que o discurso sem o silêncio seria meramente uma linguagem atemporal
e que o silêncio sem o discurso colapsaria em qualquer mudez vazia ou visão não
significativa” (DAUENHAUER, 1980, p. 96-7 – tradução nossa) 12
. Por isso, o silêncio não se
opõe ao discurso, mas estabelece e mantém a oscilação entre os vários níveis de discurso.
Além disso, o filósofo concebe o silêncio como fundador para qualquer enunciado.
Maurice Merleau-Ponty acrescenta que o discurso se faz discurso muito antes da
palavra dita; o discurso é considerado ainda no silêncio que precede a palavra. Com isso, o
filósofo francês, quer tão somente dizer que o sentido não está na frase ou no enunciado
propriamente dito, nem que há um sistema de significações reservadas à linguagem esperando
para ser traduzida por palavras. O que ele quer dizer é que a linguagem fala por meio do
silêncio, porque a linguagem trabalha obliquamente. O silêncio é operador da linguagem. “A
ausência de signo pode ser um signo” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 44). O signo do silêncio
está sempre no discurso, entretanto, o signo do silêncio sobressai, especialmente, quando o
signo linguístico não se faz presente. Isto é, a linguagem também se faz pelo silêncio. De
10
“Deep silence is encountered as the silence which pervades utterance. It runs through utterance [...] deep
silence is not intrinsically related to some determinate utterance. Occurrences of deep silence are thus not
measured against anything other than the persons participating in deep silence” (DAUENHAUER, 1980 – p.
21, tradução nossa).
11
“It requires the use of the right word at the right time to the right person about the right topic for the right
motive. Authentic speech is speech properly procured from silence or, in other words, speech which observes the
principle of limitation separating speech from silence [...]” (DAUENHAUER, 1980, p. 111 – tradução nossa).
12
“There it was shown that discourse without silence would be merely atemporal language and silence without
discourse would collapse into either empty muteness or nonsignitive vision” (DAUENHAUER, 1980, p. 96-7 –
tradução nossa).
41
modo que, a linguagem é alusiva e fala indiretamente (MERLEAU-PONTY, 1992), destaca-
se o caso dos textos literários que trabalham o limite da significação deixando muito mais
sentidos nas entrelinhas e no signo do silêncio do que nas próprias palavras.
Não há, nesse caso, significados prontos que se fixam aos significantes. A palavra é
sempre provisória e parcial. Todo signo é cifrado de silêncio. Portanto, a lição reflexiva de
Maurice Merleau-Ponty refere-se à ideia de que “a linguagem vai além do signo rumo ao
sentido deles” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 43). A partir dessa perspectiva, um exemplo
privilegiado para a compreensão dessa proposição de Merleau-Ponty, é justamente a pintura.
A pintura, para esse autor, é comparável à linguagem literária; “um romance exprime
tacitamente como um quadro” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 80). O que tem de
insubstituível na literatura e que pode ser comparado a uma pintura, segundo Maurice
Merleau-Ponty, é que a linguagem literária coloca o sujeito diante de um pensamento que
nunca está absolutamente desenvolvido e acabado. Essa perspectiva conduz a um pensamento
crucial para compreensão da linguagem e sua relação com o silêncio: “a linguagem não é
como uma prisão onde estejamos presos, ou como um guia que precisamos seguir cegamente”
(MERLEAU-PONTY, 1992, p. 85), a linguagem é caminho de possibilidades múltiplas. O
signo do silêncio confirma essa possibilidade; não pela sobreposição de um sentido por outro,
mas pela possibilidade de coexistir um sentido com o outro, sentidos equivalentes da mesma
estrutura.
1.2.2 O silêncio na psicanálise
A psicanálise, segundo Theodor Reik (2010), comprova o poder das palavras, mas
também comprova o poder do silêncio. Sábias são as palavras de Theodor Reik, porque nesse
campo de pesquisa, o silêncio cumpre um papel fundamental. Reconhecendo, portanto, que o
silêncio é uma presença obrigatória e incontestável em sessões de psicanálise e que ele, além
de tudo, é “entidade teórica fundamental” (NASIO, 2010, p. 7). Isso quer dizer, tão somente,
que o silêncio é tão instigante para o psicanalista quanto o é para o estudioso da linguagem,
porque ao invés do vazio que o senso comum atribui ao silêncio, o psicanalista sabe e
reconhece que o silêncio carrega em si sentidos que não podem ser simplesmente traduzidos
por palavras. Juan-David Nasio (2010) entende que o silêncio é originário à palavra e que, por
conseguinte, aquele pode ser tão expressivo e significativo quanto ela.
42
O conjunto de conceitos usados para representar a ideia do silêncio alarga-se a cada
nova área de estudo, na psicanálise não é diferente. No sentido em que é tratada a questão do
silêncio em psicanálise, entendem-se os silêncios como produtos da própria verdade que se
pronuncia no sujeito. O silêncio é uma instância plena de sentido. Provocador, implacável,
apavorante ou, simplesmente, harmonizador. Seja como for, o silêncio é caminho para
compreender as profundezas do sujeito, para descobrir o que estava encoberto.
Evidentemente, a psicologia distingue muitas espécies de silêncio; há o silêncio do analista,
há o silêncio do paciente, há o silêncio que impera entre ambos durante a sessão e antes,
durante e após a análise, mas para efeito deste trabalho serão discutidas apenas três
concepções, são elas: o silêncio da escuta, o silêncio da pausa e o silêncio transferencial
propostas por Juan-David Nasio em seu ensaio intitulado Crônica Psicanalítica de um
Silêncio (1989).
O primeiro aspecto a se observar antes de tudo é que há uma proposição lacaniana que
diz que “o inconsciente é estruturado como linguagem”, no entanto, isso não quer dizer que o
inconsciente seja estruturado de palavras e de sons. Obviamente, “o inconsciente não é uma
língua, ainda que nasça por meio de uma língua” (NASIO, 2010, p. 7). O inconsciente é, na
verdade, “discurso sem palavras” (NASIO, 2010, p. 8). A rigor, o discurso sem palavras
proposto por Jean Jacques Lacan não é um discurso mudo, vazio que compete ao registro do
sonoro. Pelo contrário, o “sem palavras” remete às formações do inconsciente que se realizam
na transferência. O discurso sem fala é feito também de palavras, mas, sobretudo é feito de
escuta. A escuta (do analista) que possibilita ir além das palavras (do paciente) e faz ressoar a
voz silenciosa que gradualmente se silencia no interior do paciente. A escuta dessa voz que é
capaz de confrontá-lo com o real. Então, é possível afirmar que o íntimo do sujeito se exprime
primeiramente por silêncio e as palavras vêm depois, elas são acessórias.
Por isso, Juan-David Nasio destaca o papel fundamental do silêncio em psicanálise.
Consonante esse autor, há o silêncio da escuta, que para ele, se concentra em absoluto no
ouvir. O silêncio é o espaço potencial da escuta que permite ouvir o que está entre as palavras
e também aquilo que as palavras silenciam. Como em Aprender a Rezar na Era da Técnica,
em que Júlia interpreta Lenz a partir de seu silêncio. “Percebia que ele apenas não dizia uma
palavra, estava em completo silêncio, o que para ela significava que era para continuar”
(TAVARES, 2008, p. 303). Porque não há palavra que fique sem resposta, como acredita
Lacan, mesmo que a resposta seja silêncio. Conquanto que haja alguém que se dedique à
escuta da voz silenciosa desse Outro, ela jamais ficará desprovida de significado.
43
Para Juan-David Nasio, há um segundo silêncio, o silêncio da pausa “que pontua o
relato do analisando e toma o valor significante de determinar em ato a posição subjetiva do
paciente e, correlativamente, a do psicanalista” (NASIO, 2010, p. 204). O silêncio é a pausa
da palavra. A pausa que habita na sessão pode assumir diferentes significados, ela tanto pode
incomodar como ela pode tranquilizar. As pausas que pontuam o chamado de Lenz para
morte “ela tranquilizava-o e chamava-o” (TAVARES, 2008, p. 356). Enfim, qualquer que
seja a sua dimensão, “o silêncio que habita a sessão não é um silêncio de espera, mas um
silêncio de esperança” (VIVES, 2012, p. 61). As pausas denotam ser fundamentais para o
ritmo e a harmonia do discurso. O que mais importa para o analista, dessa forma, não são as
palavras ditas, mas como elas são ditas e marcadas por certa harmonia e musicalidade.
Sobre o terceiro silêncio, conforme Juan-David Nasio, “trata-se de um silêncio muito
particular, alojado no seio da relação transferencial e que, para ser acolhido, requer uma
orelha esticada até os limites do sentido” (NASIO, 2010, p. 204). Em suma, esse silêncio é
um silêncio aberto ao acolhimento dos sentidos na relação entre analista e analisando. Trata-
se de um silêncio que possibilita ao analista a interpretação do silêncio do paciente, no sentido
que ao incorporar o silêncio do paciente o analista será capaz de ressignificá-lo.
Nos limites dessa exposição, surge a percepção de que o silêncio não se opõe à
palavra. O silêncio diz mais do que se pode apreender por meio das palavras. O silêncio
impressiona. “Os processos inconscientes agem em silêncio, insistem silenciosamente em se
fazerem ouvir” (VILLA, 2010, p. 184). Em sua dimensão fundamental, o silêncio é a
promessa da palavra inédita. A compreensão do silêncio em psicanálise é bastante
contundente, no sentido de que o silêncio se apresenta para significar e resignificar as
formações do inconsciente.
1.2.3 O silêncio na teologia
O cristianismo está comprometido com o silêncio. A tradição religiosa cristã assume o
silêncio como parte de sua herança judaica. O silêncio, dentro da perspectiva teológica, vem
confirmar tudo aquilo que já foi discutido até aqui sobre a propriedade significativa e
indispensável do silêncio. German Doig Klinge (1991) defende o silêncio não como uma
atitude em relação a alguma coisa, mas como um estado harmônico, contínuo e permanente.
No âmbito dos estudos teológicos de orientação cristã trabalha-se com a possibilidade de que
44
o silêncio é ascese. Não só os cristãos, mas grupos religiosos de diferentes denominações,
culturas e de crenças inteiramente distintas atribuem ao silêncio o poder de se comunicar com
a divindade (LE BRETON, 1999). Trata-se, enfim, de um silêncio que é caminho para a
expressão genuína com a divindade, em outras palavras, trata-se de um silêncio que remete a
uma ascensão espiritual.
Assim como as demais perspectivas que já foram apresentadas até aqui, o silêncio na
teologia não se refere ao seu uso corrente, cujo significado é a ausência de ruído ou
manifestação verbi-vocal. Ao contrário, a teologia entende-o como “presença de paz, de
harmonia, de equilíbrio exterior. O silêncio nos faz, em primeiro lugar, presentes a nós
mesmos; e nos faz logo presentes a Deus [...]” (DOIG, 1991, p.19). Esse silêncio que coloca o
homem diante da divindade não se opõe à palavra. “A palavra (o Filho) traduz todo o Silêncio
(o Pai); adequam-se perfeitamente; um só Deus, duas Pessoas” (SCIACCA, 1967, p. 23). Há
harmonia entre ambos. A palavra é fruto do silêncio. Segundo Michele Sciacca, “qualquer
palavra nossa gera-se do silêncio, da nossa interioridade, que é a sua matriz” (SCIACCA,
1967, p. 23). A palavra que não nasce do silêncio é palavra vazia; palavra que vem do vazio e
volta ao vazio, sem efeito, sem sentido. É uma palavra inautêntica (SCIACCA, 1967). “O
silêncio, pai da palavra: do Silêncio divino procede a Palavra criadora do universo; a geração
do Verbo, a Palavra redentora [...]” (SCIACCA, 1967, p. 25). A palavra que procede do
silêncio é Palavra Criadora, isto é, palavra autêntica, operante e viva. O silêncio habita a
palavra, porque ele também nesta perspectiva não está fora da linguagem.
Michele Frederico Sciacca (1967) explica também que a linguagem é constituída na
relação dialética entre palavra e silêncio. Toda palavra que nasce do silêncio retorna ao
silêncio, porque ela tem necessidade de silêncio. Ela própria está revestida de silêncio. A
palavra em si não é nada, ela precisa do silêncio, mas mesmo revestida de silêncio, ela é
incapaz de conter em si tudo aquilo que o silêncio expressa porque o silêncio se dispersa. De
maneira alguma a linguagem consegue contê-lo. Excelso da significação, o silêncio fermenta
as palavras para que elas vão significando uma a uma (SCIACCA, 1967). Qualquer palavra
que chega ao conhecimento do homem invade seu silêncio e no silêncio significa. Portanto,
não há palavra que baste. Só o silêncio cria e só o silêncio basta. “Encantador ou insuportável,
aceito ou rejeitado, sofrido ou evitado, o silêncio tem uma potência tão infinita quanto o
infinito da nossa interioridade” (SCIACCA, 1967, p. 35). Por isso, o silêncio é entendido
como revelação. Acesso à interioridade do homem. Em “Diálogo sem testemunhas. De que se
terá falado? Quem falou?” (TAVARES, 2008, p. 297), é possível compreender como o
45
silêncio dá acesso à interioridade do homem. Quem se descobre nele encontra-se a si mesmo.
Eis o silêncio gerador e frutífero, que permeia a vida do homem e que inunda o seu interior.
Se o interior do homem é silêncio, então a dor profunda e interior não se faz de
palavras. A dor verdadeira é silêncio. A dor interior e a angústia são recatadas, conforme
sugere Michele Sciacca. Segundo ele, “nos sofrimentos essenciais, nas esperanças
desiludidas, nas tristezas radicais, as palavras que urgem e premem sufocadas na garganta são
retidas pelo silêncio” (SCIACCA, 1967, p. 44). O que torna a dor silenciosa é porque ela se
guarda no mais profundo do ser. E Michele Frederico Sciacca citando Kierkegaard arremata:
“o silêncio grita até o céu” (SCIACCA, 1967, p. 45), porque o silêncio é o meio pelo qual o
homem se manifesta a Deus.
Por tudo isso, pode-se dizer que o silêncio é plena expressividade, pois ele excede a
palavra mundana e vazia. O silêncio é a língua de Deus, é o que afirma David Le Breton,
porque assim como a concepção de Deus, o silêncio é o inesgotável; o princípio e fim. Ainda
de acordo com esse autor, o silêncio é busca de um encontro genuíno com Deus, que não fala
com o homem por meio de palavras, mas pelo seu silêncio. Assim, é no seu silêncio que o
homem encontra Deus. E havendo aprendido estar em silêncio, medir a palavra, saber escutar,
saber falar e saber estimar o silêncio, o homem finalmente alcançará o caminho da retidão, da
serenidade e do equilíbrio interior. No desenvolvimento dessa ideia, Le Breton entende que o
pleno estado de silêncio, recolhimento e harmonia é a pedra fundamental da espiritualidade
em que o homem exercita a virtude da prece da oração e da mediação que visa proporcionar a
ascese espiritual e, consequentemente, ampliar sua relação com Deus.
1.2.4 O silêncio na literatura
Há um vínculo indissolúvel entre linguagem e silêncio. Na medida em que se
constroem os sentidos, há simultaneamente a presença indelével do silêncio na linguagem. À
medida que o sujeito significa, ele estabelece uma relação primordial com o silêncio. Por isso,
é extremamente importante para os estudos literários considerar o silêncio como parte do
processo da criação literária, pois o silêncio ocupa um lugar privilegiado. Ora, se a literatura
tem como princípio o trabalho com a linguagem, tem também como princípio o trabalho com
o silêncio, visto que ambos são constituídos por uma relação necessária e mútua. Na
literatura, linguagem e silêncio representam uma unidade que é o texto literário. O texto
46
literário transpira silêncio. A partir dessa perspectiva, a linguagem literária deixa de ser
simplesmente palavra e passa a ser um conjunto harmônico de palavras e silêncios, ambos
operando concomitantemente para produzir o mais alto grau de significação.
O silêncio para Gilberto Mendonça Teles é um espaço de possibilidades que
transcende o homem. O silêncio no campo literário é fértil e rico em significados, portanto, o
estudo do texto literário precisa partir do exame da palavra e do silêncio. O que está dito e o
que não está dito são extremamente relevantes para a compreensão da obra literária, que
muitas vezes diz alusivamente e fala obliquamente assim como o silêncio, porque o silêncio é
um dos seus caminhos de expressão. Em síntese, o texto literário fala silenciosamente e pelo
silêncio deixa escapar mais sentidos que se complementam na obra literária. Assim, o
desmembramento do texto literário põe em evidência o silêncio que o alimenta.
Uma face particularmente importante sobre a questão do silêncio na literatura é que
existe na arte literária uma estreita relação entre palavra e silêncio e, estendendo essa
proposição para o campo dos estudos literários, entre literatura e silêncio. A literatura é
constituída por uma dialética entre silêncio e palavra e a linguagem literária trabalha nesta
dialética a produção dos sentidos. Entretanto, não se pode deixar de negar que o silêncio se
revela muito mais eloquente do que a própria palavra, embora a literatura tenha como matéria
prima a linguagem literária, há no texto literário uma primazia do silêncio sobre a palavra,
porque as palavras literárias são alimentadas pelo silêncio e, consequentemente, são frutos do
silêncio. Assim, o silêncio que se manifesta no texto é tão intenso e vivo que atravessa a
linguagem, não fora dela, mas dentro dela, permitindo assim, a convergência dos sentidos
para o silêncio. Assumindo que a literatura está ancorada no silêncio, Octavio Paz afirma que,
Apaixonado pelo silêncio, o poeta não tem outro recurso senão falar. A
palavra se apoia num silêncio anterior à fala - num pressentimento de
linguagem. O silêncio, depois da palavra se ancora numa linguagem - é um
silêncio cifrado. O poema é a passagem de um silêncio e outro - entre o
querer dizer e o calar que funde querer dizer. (PAZ, 2012, p. 315).
Assim, está assente que o silêncio é tão ou mais importante que a palavra para a
compreensão de um texto literário. Contudo, assim como nos demais campos do
conhecimento, o silêncio na literatura é indomável. Nem autor nem leitor são capazes de
administrar o silêncio do texto. Os sentidos que preenchem a narrativa não são estanques, pelo
contrário, exploram outros sentidos que estão muito além do domínio verbal ou do signo
linguístico. Conforme defende Luzia A. B. Tofalini (2012):
47
Na literatura, o silêncio é tão importante quanto a palavra. Assim como a
palavra, ele é pleno de significação e se configura como uma forma de
expressão, não raro mais eloquente que o discurso verbal. Há situações em
que a própria palavra se apresenta sob os véus do silêncio, sob a sombra da
mudez. O escritor, as personagens e o próprio leitor sabem que se existem
coisas que se podem dizer apenas através das palavras, há outras que só
podem ser sugeridas, ditas ou intuídas, por meio do silêncio (TOFALINI,
2012, p.1-2).
O silêncio preenche várias instâncias do texto literário, sendo fundamental à sua
estrutura, há silêncios entre palavras e palavras entre silêncios. A primeira página, a página
em branco assim como as divisões entre os capítulos já pertencem ao espaço literário e o
branco das páginas é marcado pelo silêncio. No corpo do texto sua presença torna-se notável
pela fragmentação do eu, especialmente no caso de uma obra lírica, pela fragmentação do
processo narrativo, especialmente no caso de uma obra narrativa, e a fragmentação da ação
das personagens, no caso de uma peça dramática, além da presença de lacunas, de interstícios,
de vazios e de capítulos organizados em fragmentos que realçam o semblante do silêncio
como integrante estrutural do texto literário independente do gênero.
Na dispersão de seus fragmentos o texto literário projeta incontáveis possibilidades de
leitura e significados admiráveis, isso porque tanto o escritor quanto o leitor agrupam e
reagrupam sentidos durante o processo de composição e leitura da obra. As vozes literárias
falam pelos silêncios. A escrita literária consiste, portanto, na condensação desses fragmentos
repletos de silêncios porque busca exprimir o máximo de sentidos possíveis.
Pode-se dizer que o texto se constrói em silêncio e sua relação com o leitor também se
dá no silêncio, assim como os sentidos depreendidos do texto literário também se formulam
no silêncio. É na liberdade concedida pelo silêncio que o leitor de um texto literário pode
conceber um objeto por diversos ângulos sem reduzi-lo ou limitá-lo, mas apenas estendendo-o
ao máximo a sua significação. Leitor e texto se entretecem no silêncio. A leitura é um dos
breves momentos do dia a dia em que é possível mergulhar no silêncio, a leitura proporciona
um encontro do leitor com o silêncio, pois “ler é fazer falar os silêncios da linguagem”
(TELES, 1979, p. 10). Diante de tais ponderações, pode-se chegar à conclusão que se há uma
relação indissolúvel entre literatura e silêncio, o silêncio interfere não apenas na relação entre
texto e leitor, mas interfere igualmente ou mais na relação de construção do próprio texto.
Esse caráter não deve obscurecer o fato de que o silêncio continua indômito e as formas que o
silêncio adquire no texto literário são apenas parcialidades, que orientam o leitor durante o
processo de análise literária.
48
No limiar do silêncio e da letra (2012), Maria Lúcia Homem confronta uma questão
fundamental para os estudos literários: a relação entre palavra e silêncio. A autora crê que
existe uma tensão insolúvel entre esses dois fenômenos e que a tensão entre eles é o que
conforma o texto literário. Segundo essa autora, “A própria literatura é estruturalmente
presença e ausência, letra e espaço, categorias que forjam palavras, palavras que, por sua vez,
forjam frases e assim sucessivamente. Não há como escrever um livro contendo uma só
palavra de infinitas letras” (HOMEM, 2012, p. 34). O silêncio é inerente à obra literária.
Porque se a própria escrita literária prescinde do silêncio para que lhe pontue o ritmo, a obra
literária implica outro silêncio em uma dimensão que remete ao seu caráter de incompletude,
ou seja, na incapacidade de o texto literário ser definitivo e acabado. O texto literário, ainda
segundo Maria Lúcia Homem coteja o inacabado, porque a escrita literária lida com a
“impronunciável, com significantes vizinhos, tais como indizível, inefável, inexprimível,
impalpável, insondável, volátil..., marcando a relação de oposição entre a escrita e aquilo que
ao mesmo tempo anima e norteia” (HOMEM, 2012, p. 20). De tal modo que a literatura joga
com o irrepresentável o tempo todo. A literatura adere ao silêncio e o silêncio converte-se em
um dos seus vetores.
Sobre a questão da inevitabilidade do silêncio, recorre-se a Benedito Nunes (2009),
que retoma importantes considerações propostas por Ludwig Wittgenstein, quando esse autor
se pergunta se a linguagem verbal é capaz de conter toda a realidade e, a partir de sua
resposta, Benedito Nunes chega a seguinte conclusão: “o romancista fracassa com a
linguagem, isto é, com a experiência levada ao seu último limite, à sua extrema consequência,
do confronto decisivo entre realidade e expressão” (NUNES, 2009, p. 132). Disso resulta, a
impossibilidade do artista expressar com palavras toda a complexidade de sua realidade e a
realidade de sua obra, que o obriga a um encontro com o silêncio. “É preciso falar daquilo que
nos obriga ao silêncio” (NUNES, 2009, p. 134). É preciso fazer com que a linguagem literária
seja o veículo do silêncio por excelência.
O silêncio, independentemente da modalidade sob a qual se apresenta, possui um
poder fundador e edificante. Ele será sempre potente e ubíquo, no sentido de que seu status é
primordial ou fundante. Ao tomar-se o texto literário como objeto de estudo, percebe-se que a
leitura, a compreensão e a interpretação do fenômeno do silêncio exigem a investigação de
todo o seu processo, seus efeitos e o modo como ele se insinua na linguagem, para então
vislumbrar essa atmosfera densa e rica em sentidos que envolvem toda a obra.
49
1.3 Silêncio primordial e silêncio fundante: semelhanças e diferenças
Inúmeros são os estudiosos que demonstraram sobejamente o valor e o estatuto
positivo do silêncio. De dois modos diversos, porém correlatos, os estudiosos Santiago
Kovadloff e Eni Orlandi procederam, por assim dizer, um esplêndido e vasto estudo sobre o
silêncio resguardado de sentido desde a sua primeira concepção. Ambos os autores
preocuparam-se em observar o silêncio, em como observá-lo, para assim, discutir o seu papel,
a(s) sua(s) formas(s), e os meios necessários para aludir a esse silêncio refratário e irrefreável.
Daí a relevância de justapor duas concepções de silêncio distintas, mas que em certa medida
se encontram, observando sempre as limitações e as conquistas de cada uma. Dito isso, é
válido discutir a seguir as especificidades de ambas as acepções do silêncio, visto que a
concepção do silêncio primordial e a do silêncio fundador pertencem a diferentes campos do
conhecimento, a diferentes contextos histórico-sociais e, por isso, têm objetivos específicos
diferentes em sua relação com o silêncio. Assim, o que se tem a seguir, não é uma
comparação a fim de invalidar uma ou outra proposta, mas aproximá-las e refletir sobre a
natureza do silêncio e o seu caráter revelador.
Santiago Kovadloff em sua brilhante coletânea de ensaios intitulada O silêncio
primordial (2003), percebeu que há um silêncio que é, por sua natureza, extremo e absoluto,
elevando o silêncio à categoria de um silêncio originário. Trata-se de um silêncio maior:
inominável, inalcançável, insuperável e irredutível ao verbo. Tangenciável, embora
intransponível. Referível, ainda que inconcebível. Inteligível, embora inexplicável. O silêncio
primordial é o silêncio extremo que possibilita uma abertura para a compreensão do silêncio
na transcendência da linguagem. Eni Orlandi, por sua vez, em seu livro As formas do silêncio:
no movimento dos sentidos, com uma precisão que lhe é característica, propõe o conceito de
silêncio fundador que, por sua vez, é condição crucial de significação para o discurso.
Superando a velha dicotomia entre dito e não dito, presença e ausência, sentido e vazio, Eni
Orlandi, destaca-se, principalmente, por explorar os entremeios da linguagem e perceber
como esse contínuo significante se articula ao discurso e se converte em “fôlego” necessário à
significação.
Ambos os autores buscaram tratar do silêncio que não encontra equivalência em
nenhum outro meio que não seja o próprio silêncio. Buscaram investigar as raízes da
significação e dos sentidos que se guardam tão somente no silêncio e em nenhum outro lugar.
Eles também destacaram o papel crucial do silêncio na configuração do homem enquanto
50
sujeito. O trabalho consistente e claro empreendido por Santiago Kovadloff e Eni Orlandi
demonstra que embora o silêncio, quando se manifesta ainda permanece silêncio, ou seja, o
silêncio não se traduz, ele deixa marcas de sua presença na linguagem e no homem. Assim,
tanto o silêncio primordial quanto o silêncio fundante se permitem observar por caminhos
variados. O silêncio é o caminho das possibilidades múltiplas. Dito isto, não há sentidos
fixados ao silêncio. O silêncio na proposta desses autores é imprescindível ao sentido. Os
silêncios, dentro da perspectiva do silêncio primordial e do silêncio fundante, sobressaem no
trabalho de perceber e de alcançar os sentidos.
Santiago Kovadloff propõe-se a alcançar o silêncio por via alusiva. Ele se dispõe a
sondar esse silêncio que é inaugural e derradeiro à linguagem. Sinalizando que “o resto é
silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p. 11). Que quer dizer, o início e o fim, retomando as últimas
palavras de Hamlet antes de se entregar à morte. De resto não se deve confundir com o
silêncio da morte ou o silêncio dos mortos, o resto ao qual Santiago Kovadloff se refere é
aquilo que excede à palavra, que remete ao silêncio, ou melhor, à palavra proveniente do
silêncio primordial. Refere-se àquilo que é capaz de exceder a linguagem. O princípio e o fim,
o originário e o inaugural, tal é o resto a que ele se refere. “O silêncio primordial é um
suposto ‘nada de sentido’ e a palavra uma suposta ‘totalidade de sentido” (KOVADLOFF,
2003, p.44). Esse resto ao qual o filósofo se refere remete ao “vazio que nada esconde, que
nada guarda nem nada nega e que nessa palavra, no entanto, acumula a memória de sua
poderosa revelação” (KOVADLOFF, 2003, p. 49). Nesse resto, afirma Santiago Kovadloff, o
homem se encontra e se vê refletido. Ao se vislumbrar, o homem depara-se com uma parte de
si irreconhecível e dada a sua impenetrabilidade o silêncio extremo é o único capaz de
alcançá-lo.
Contudo, é preciso assinalar que o filósofo argentino destaca que a concepção do
silêncio não é indivisível. Pelo contrário, logo de início, o autor sugere a presença de outro(s)
silêncio(s), lançando-o no campo da dualidade e da dicotomia. Para o filósofo, há,
primeiramente, “o semblante explicável do silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p. 9), que o autor
já descarta ser o seu objeto de interesse e se lança para “falar de um fundo irredutível”
(KOVADLOFF, 2003, p. 10) e é aí que reside o que ele denomina como o resto: o silêncio
primordial.
O semblante explicável do silêncio opõe-se ao silêncio primordial porque ele se
configura como ausência de som, mudez, omissão, ocultação e interdição. É o que se pode
chamar de modo tacitífluo da linguagem. Os dizeres, nesse ângulo, são interditos e os
51
sentidos, por sua vez, tornam-se ausentes. É o que se pode dizer, mas não se diz. Evita-se o
dito para se evitar os sentidos. O silêncio traduzível e explicável recorre à interdição de
sentidos e à interdição de palavras, por isso, remete-se à mudez, à omissão e à ocultação. Esse
processo de subtração dos sentidos, para Santiago Kovadloff, corresponde a um efeito de
mascaramento ou uma simples ocultação. Seria tudo aquilo que pertence à palavra e que
ficaria silenciado, mas sugerindo que esse silêncio “poderia ser dito alguma vez”
(KOVADLOFF, 2003, p. 9), ainda podendo revelar-se futuramente. Ademais, esse silêncio é
explicável porque é passível de encontrar equivalência na palavra, na verdade, é a palavra não
dita. O silenciamento, independentemente da conjuntura, inscreve-se na linguagem como
parte essencial constitutiva e estruturadora da linguagem a partir dessa perspectiva.
Por outro lado, o interesse de Santiago Kovadloff recai no silêncio "que constitui o
substrato ontológico do próprio homem, essa tela de fundo, jamais atingível a não ser pela
alusão [...]" (PEREIRA, 2009, p. 62). O que ele defende é o silêncio primordial que remete ao
"silêncio de uma ausência originária: a que impede que o homem se sinta totalizado”
(KOVADLOFF, 2003, p. 45). O silêncio primordial é aludido por esse autor como uma
imagem sem forma que o homem é capaz de contemplar sem se ver: uma totalidade
vislumbrada, porém jamais alcançada, que permite ao homem ver além da imagem refletida
de si mesmo. O silêncio que não pode ser traduzido pelas palavras. É o inefável.
O silêncio primordial diferencia-se daquele semblante explicável do silêncio no
sentido de que não se trata de mudez ou de apagamento. Trata-se de um silêncio maior que
não pode ser alcançado, mas que pertence ao mais íntimo do sujeito, constituindo-o e
fundando-o. É um silêncio que nada tem de negativo, porque é condição necessária em
qualquer elocução. Essa substância sem forma, irredutível ao verbo equivale ao absoluto.
Como já foi dito anteriormente, o silêncio aqui proposto não se trata da inexistência de
fenômeno verbi-vocal. “O silêncio extremo, então, não cresce no lugar onde a ausência de
som se expande; cresce, em compensação, onde irrompe a presença do inqualificável, graças
ao som” (KOVADLOFF, 2003, p. 77). O silêncio primordial não se limita na presença do
som, pelo contrário, o som o prolonga.
É claro que por não se referir a um fenômeno físico, esse silêncio não pode ser
representado. Seria fácil registrar a não presença do som, mas registrar a presença do silêncio
primordial é simplesmente impossível. A sua não representatividade, no entanto, realça a sua
eloquência. Como atributo da existência do homem, o silêncio extremo é o que anuncia a não
totalidade do ser. “Essa falta primordial é a condição fundamental de sua identidade. O
52
homem só é possível como projeto porque é incompleto como realidade” (KOVADLOFF,
2003, p. 42). Assim sendo, o silêncio primordial é essencial à configuração do homem
porque, de certa forma, o silêncio originário, vem preencher essa ausência.
Fato que não se pode olvidar é que o silêncio proposto pelo filósofo argentino
Santiago Kovadloff encontra na subjetividade o seu solo radical (KOVADLOFF, 2003).
Assim, o reconhecimento do inominável não exige objeto, apenas sujeito. Ao que tudo indica,
o sentido do silêncio está no esforço que se faz para compreendê-lo, o esforço empreendido
pelo sujeito protagonista dessa experiência com o silêncio originário.
Portanto, se é verdade que o silêncio expressa, também é verdade que aquilo
que expressa nem sempre é igual, nem vale a mesma coisa. O silêncio pode
ser, então, tanto o corolário excelso da lucidez, como a bruma irremediável
na qual se dilui a aptidão – e às vezes a necessidade – de articular uma ideia
ou uma emoção com a qual deixar para trás o mundo do previsível e do
codificado. (KOVADLOFF, 2003, p. 23).
Qualquer que seja a interpretação do silêncio primordial deve-se considerar “examinar
seus matizes por pressupostos, além de variados, profundos” (KOVADLOFF, 2003, p. 23), no
sentido de que qualquer leitura do silêncio é parcial e, inevitavelmente, acaba produzindo
mais leituras fracionárias e incompletas do mesmo fenômeno. É nesse ponto, que Santiago
Kovadloff anuncia sete caminhos que levam o homem a conceber a transcendência do silêncio
primordial. São eles: a poesia através da metáfora; a psicanálise por meio do real; a
matemática pelo zero; a música pela melodia; a pintura por meio do movimento; a mística
através da fé e o amor, cujo silêncio primordial é consignado pela amada.
Naturalmente, em cada caminho há uma proposta diferente, aludindo ao silêncio de
maneiras diferentes, mas, como foi dito anteriormente, todas essas propostas convergem e se
complementam mutuamente. Enveredar pelos caminhos do silêncio originário implica a
evocação do "espírito interdisciplinar". Em outras palavras, procura-se conjugar diferentes
áreas do saber para realizar a aproximação ao silêncio no intuito de apreender os seus
sentidos. Não obstante, a evocação do silêncio primordial por quaisquer que sejam os
caminhos trilhados são sempre impotentes em conceber a profundidade do assunto em sua
plenitude. A pluralidade desses caminhos a serem tomados apenas é válida na medida em que
o seu repertório analógico e alusivo permitem estabelecer uma relação de correspondência e
“registrar uma emoção partilhada: a do inconcebível” (KOVADLOFF, 2003, p. 13), por meio
da aproximação de cada uma dessas disciplinas.
53
No fazer poético, parte-se de um silêncio para outro, como um movimento contínuo.
Há “o silêncio do qual o poema parte, o silêncio do qual se arranca ao constituir-se como
poema, é fruto de uma trama verbal, de uma linguagem [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 23). E
há “um segundo silêncio. É aquele ao qual chega o poema: o silêncio onde ele desemboca.
Trata-se, neste caso, de um silêncio que o poema ajuda a preservar como presença”
(KOVADLOFF, 2003, p. 24). Essa é outra qualidade de silêncio. À diferença do anterior,
aquele que precede o poema e o hostiliza, esse segundo silêncio o nutre e o fomenta. Estar
diante desse silêncio é estar diante do significado que significa muito mais do que se pode
dizer. O próprio ato poético realiza-se na expressão de um silêncio que vai do apagamento do
real quotidiano e de um silêncio que se realiza na expressão mimética. Dito isso, pode-se
inferir que há silêncios que se fundam como matéria da composição poética, e eles são: o
silêncio da oclusão e o silêncio da epifania.
O silêncio da oclusão que, de uma maneira ou outra, está atrelado ao silenciamento,
consiste na “[...] palavra encoberta, palavra rejeitada, enunciação possível, mas evitada [...]
pelo medo, pelo hábito ou pelo preconceito. E desse silêncio, invariavelmente, afasta-se a
poesia” (KOVADLOFF, 2003, p. 26). Já o silêncio da epifania consiste no silêncio do qual a
linguagem poética nasce: “O silêncio da epifania situa o homem diante da totalidade indizível
que, como tal, o silêncio encarna” (KOVADLOFF, 2003, p. 26). Esse silêncio, para Santiago
Kovadloff, é maior porque nada tem a ocultar, mas sim a exceder. É um silêncio
imprescindível à transcendência da linguagem poética, cujas margens instáveis também
transcendem quaisquer limites, pois nada quer dizer em particular a não ser tangenciar o
incógnito e o inapreensível: o silêncio primordial.
O segundo modo de aludir ao silêncio primordial, segundo Santiago Kovadloff, é
através da psicanálise. O silêncio da cura, conforme este autor, evidencia-se através do
encontro com o real. “O real, essa totalidade que por ser inconcebível acaba sendo
inabordável, se deixa, porém, pressentir, embora não se deixe manipular” (KOVADLOFF,
2003, p. 39). O silêncio quando remete ao inabordável, a partir dessa perspectiva, denota ser
um silêncio revelador daquilo que não pode ser enunciado. O paciente na sua relação com o
psicanalista se vê mudo. A sua incapacidade de enunciação não se trata de uma resistência, de
uma palavra subtraída e subjugada, o seu silêncio é, na verdade, o silêncio primordial e o seu
processo de cura, “consiste em ajudá-lo a perceber que o silêncio, que em primeira instância
acredita ser estranho a ele, é, na verdade, seu mais íntimo silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p.
41). A jornada do paciente, a caminho da cura, leva-o a perceber que ele é um sujeito
54
inacabado e que sua totalidade jamais foi concebida. Trata-se de uma totalidade ilusória. Ter
consciência de sua incompletude configura um passo preliminar para realizar uma experiência
com o silêncio primordial, porém, a falta de consciência a respeito da incompletude que
caracteriza o “eu” afasta o homem de poder realizar uma experiência com o silêncio
primordial. O silêncio do paciente mudo “não remete à palavra que falta e sim ao que falta à
palavra; ao seu resto dissonante” (KOVADLOFF, 2003, p. 44). O trabalho do psicanalista,
assim, consiste em recobrar esse silêncio extremo.
O silêncio extremo, ao ser vivenciado em sua nudez, aniquila tanto a palavra
encobridora como o silêncio encobridor. E só então devolve a palavra ao
paciente. Palavra expurgada. Palavra limpa que se gesta na intimidade do
silêncio primordial e que, mais que interromper o silêncio alcançado,
prolonga seu influxo, em outra ordem complementar e contígua a da alusão
(KOVADLOFF, 2003, p. 49).
Por outra perspectiva, o silêncio da música, para Santiago Kovadloff, carece de forma
e fundo, mas mesmo dotado de certa insubstancialidade se faz notável na consagração de sua
experiência. À semelhança do silêncio da psicanálise, a música em si é uma forma de silêncio
que devolve a quem ouve a “palavra expurgada” (KOVADLOFF, 2003). A música é um
arrebatamento de silêncio. Ao contrário do que se pode imaginar, “a música não designa o
silêncio: o prolonga” (KOVADLOFF, 2003, p. 64). Assim como na poesia, a música vive
uma experiência direta com o silêncio, porque tal como a poesia, ela é alimentada pelo
silêncio. “O silêncio revela a voz inaudível da ausência, que recobre o estrondo ensurdecedor
das presenças” (KOVADLOFF, 2003, p. 69). Semeia-se silêncio por meio da música. De
forma que a música impõe a condição da escuta e a escuta, como se sabe, está intimamente
ligada ao silêncio. E nisso, o silêncio da música encontra-se com o silêncio da psicanálise; a
percepção do silêncio primordial na música possibilita ao homem reconhecer a sua ausência.
A música constitui-se na presença do silêncio – nos sons e nas notas contidas no silêncio –
assim como o homem se constitui na presença do silêncio e se reconhece como
fundamentalmente marcado por uma ausência originária que é o silêncio primordial. E a
verdadeira experiência com a música conduz o homem a uma experiência genuína com o
silêncio primordial.
Entretanto, a experiência com o silêncio primordial na música não tem relação com a
ausência de som ou mesmo com o silêncio intersonoro que marca a cadência e o ritmo da
música através de pausas, “porque se o silêncio não é necessariamente ausência de som, e sim
presença de um sentido que excede nossa compreensão, então a música pode ser expressão do
55
silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p. 75). Ao passo que, escutar música é fazer alusão
metafórica ao silêncio, aproximar-se do silêncio e no silêncio descobrir somente aquilo que no
silêncio se encerra. A música força o homem a reconhecer-se como um sujeito inacabado,
invisível. O ato de escutar provoca um descentramento do sujeito e ao prestar atenção à
música o sujeito deixa de prestar atenção em si mesmo, fazendo-o perceber uma falta que lhe
é inerente. “A música nos restitui ao silêncio que nos constitui” (KOVADLOFF, 2003, p. 80),
de modo que esse parece ser o papel da música com relação à transcendência do silêncio
primordial.
Até aqui, viu-se que o silêncio primordial pode se manifestar de múltiplas formas. A
matemática, por exemplo, que é um dos caminhos escolhidos por Santiago Kovadloff para
alcançar a transcendência do silêncio primordial, concebe através do conceito de zero a
magnitude dessa transcendência. “O zero, ao que tudo indica, é a expressão matemática do
silêncio primordial [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 98). O zero sinaliza que há muito mais
além da linguagem verbal, e os números entram nesse conjunto, do que se é capaz de
enunciar. O que o zero incorpora é a capacidade de enunciação do incalculável e do
inexequível. O zero, assim como o silêncio primordial, está no campo do impossível. O zero
não é antecedente nem precedente do um. O zero transcende os numerais. Os numerais
ordenados são infinitos, o zero não. Portanto, o silêncio primordial não pode ser confundido
com infinito, sugerindo de tal maneira um movimento inesgotável. No silêncio primordial não
há movimento, ele está no campo do impossível, do intransitável e do irremediável. O zero,
nesse sentido, serve muito ao propósito da analogia ao silêncio primordial, porque não há
nada na matemática, ou melhor, no campo do enunciável capaz de registrar o valor de zero.
Zero é ausência. “O zero denuncia uma falta, encarna uma ausência irremediável, um silêncio
intransponível” (KOVADLOFF, 2003, p. 109). Por isso, o filósofo entende que o zero é
compatível com a ideia do silêncio primordial, ou seja, o silêncio que transcende da
linguagem.
Para ter condições mais seguras para tratar do silêncio que ele chama de monástico, as
considerações precedentes foram essenciais e esclarecedoras no que diz respeito a uma
compreensão mais ampla do silêncio primordial, e, complementar àquelas, Santiago
Kovadloff, no quinto caminho escolhido para aludir ao silêncio primordial, distingue duas
modalidades de silêncio cruciais: o silêncio de Deus e o silêncio diante de Deus. Para o
filósofo:
56
O silêncio de Deus impera onde a sede de poder converteu o homem em um
ser hostil ao mistério de sua própria criação. O silêncio diante de Deus, por
sua vez, reina onde o homem, liberado de sua despótica ânsia por deter a
supremacia, consegue se reconhecer como criatura e recupera, assim, a
presença de seu Criador. (KOVADLOFF, 2003, p. 115).
Santiago Kovadloff acredita que a parábola do silêncio se desdobra entre esses dois
silêncios. Na parábola referida por esse autor, um peregrino cansado da agitação da cidade e
desejoso de paz e quietude decide abandonar a celeuma do mundo urbano e caminhar em
direção a um monastério afastado. O peregrino queria experimentar a quietude, a solidão, em
suma viver o silêncio extremo. Ao chegar ao monastério, o peregrino encontrou um monge à
beira do poço coletando água; foi então que o peregrino perguntou ao monge: o que ele
poderia aprender com o silêncio. O monge, então, lançou o balde na água e perguntou ao
homem o que ele conseguia ver. O peregrino respondeu que não era capaz de ver nada. O
monge, após alguns instantes, pediu ao peregrino que olhasse novamente para a água
refazendo a mesma pergunta: o que ele era capaz de ver? O peregrino admirado se viu
refletido na água tranquila e pode ver a si mesmo. Tal é o silêncio primordial, descrito por
Kovadloff. O silêncio de Deus, nessa perspectiva, é o falso silêncio, é a presunção do homem.
O silêncio diante de Deus é “aquele que pressupõe ter superado a identificação do real e da
verdade com o superável e puramente inteligível” (KOVADLOFF, 2003, p. 126). Do ponto
de vista teológico metafísico, conforme Anselm Grün (2010), o homem foi criado à imagem e
semelhança de Deus e se se admitir que Deus é invisível, o homem em seu contato real com o
ser também o é. Desse modo, o silêncio monástico é entendido como uma acepção do
encontro com Deus e do encontro consigo mesmo.
Se um destino possível à pintura é ser uma referência ao silêncio primordial, ou seja,
“pintar uma experiência inclassificável. De valer-se das formas para insinuar nelas o que não
consegue ser formalizado. E, para isso, o ponto central é que os elementos plasmados se
convertam em manifestação paradoxal não mais daquilo que se pode ver, mas sim daquilo que
não se pode ver” (KOVADLOFF, 2003, p. 134), tem-se, assim, a estética do inqualificável,
em que se suscita na tela a impressão do invisível a partir do que é visível. Vislumbrar o
silêncio primordial exige exceder as formas que surgem apenas para extralimitar o alcance do
homem na transcendência do silêncio primordial. Por isso, Santiago Kovadloff projeta dois
caminhos possíveis: afastar-se do limite das formas ou forçando o seu limite e aproximando-
se delas. Porque o reconhecimento do silêncio primordial na pintura é um repertório de
possibilidades cujas formas sugerem que aquilo que não pode ser representado, também é
57
expressivo e cheio de sentido. Exceder as formas se faz necessário, de modo que Santiago
Kovadloff sugere que:
Toda formalização é uma imposição de limites que segmenta o absoluto.
Mas, por sua vez, neste segmento chamado forma, o ausente – o absoluto em
questão – se faz evidente ao menos como falta. É aquilo que se nota como
ausência. Estamos, em outros termos, diante do silêncio primordial [...] O
homem não pode abandonar o mundo das formas para chegar ao fundamento
do real – amorfo por excelência. Mas, através do mundo das formas por ele
produzidas ou interpretadas, pode remeter àquilo que as ultrapassa.
(KOVADLOFF, 2003, p. 144).
Nessa proposta se encara a forma como movimento e o movimento como princípio
gerador do silêncio primordial. Leia-se movimento como algo que ganha dinamicidade e
fluxo ao transcender o universo das formas, movimento este que projeta uma ruptura com o
objeto natural e se abre a múltiplas leituras. Nesse processo, o traço, a combinação das cores
não conduz a uma forma pronta e acabada, conduz o homem à percepção do movimento que o
faz recordar de uma falta que não pode ser preenchida: uma presença que homologa a não
presença. A impressão causada pela imagem da pintura deixa vestígios do inalcançável pelo
mundo das formas e das limitações. O não movimento, neste caso, seria uma limitação
imposta pelas formas, em outras palavras, um refreamento dos sentidos inspirados pelo
silêncio primordial. Na sugestão do silêncio primordial, o artista constrói a sua obra a partir
de um descentramento ou de um paradoxo em que o invisível que se faz visível a partir de
fronteiras imprecisas e inacabadas asseguradas pelo movimento.
Algo análogo ao que se tem discutido até agora no que se refere a uma ausência
originária, Santiago Kovadloff vê a amada como uma possibilidade para a concretização do
silêncio primordial através do amor. Em última instância, a amada, na medida em que ela
cumpre o papel de preenchimento do vazio que é inerente àquele que ama, pode-se admitir
que “para o amante, a amada encarna esse outro que é silêncio primordial, que é sentido
irredutível a um significado” (KOVADLOFF, 2003, p. 162). O amante projeta na amada uma
totalidade inconcebível. O desejo pelo outro se converte, em última instância, no
reconhecimento de um vazio em si próprio. Para Santiago Kovadloff, o amor está além do
inteligível, então, a expressão do amor recaí no domínio do impossível, do atemporal. Assim
como o silêncio matemático, o silêncio amoroso não é infinito e inesgotável; as palavras do
amante convertem-se em restos, fragmentos. “É que amar implica atrever-se a suportar uma
presença naquilo que ela tem de indecifrável; a suportar o indecifrável naquilo que tem de
revelador; a suportar o revelador naquilo que tem de angustiante” (KOVADLOFF, 2003, p.
58
165). O ato de amar desloca o sujeito de si mesmo, ele não se reconhece, porque o que ele tem
diante de si é o semblante do silêncio primordial.
Muito se tem falado e escrito sobre o silêncio até aqui, mas diferentemente do que foi
proposto até agora, Eni Orlandi em seu livro As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos, com a precisão que lhe é habitual, situa no campo do discurso a concepção de
silêncio fundante. Para essa autora, essa concepção de silêncio implica em considerá-lo
independente à linguagem. O silêncio para ela atua por meios próprios e, portanto, possui a
sua própria materialidade. Com efeito, o silêncio simplesmente significa. De tal modo, seria
possível defendê-lo como condição determinante para as produções de sentido no discurso
(ORLANDI, 2007). Sendo assim, o silêncio de As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos possui sentido próprio, ou melhor, sentidos próprios.
Ao conferir ao silêncio o status de elemento positivo e significante por natureza, Eni
Orlandi lança o silêncio como um espaço necessário à significação. Os silêncios, na proposta
dessa autora, são cruciais na produção de sentidos. Quer tão somente dizer que o silêncio tem
um caráter próprio, portanto, ele simplesmente significa. Assim, ela rompe com os modelos
estruturalistas e positivistas da linguagem que encaram o silêncio como matéria secundária ou
que consideram o silêncio como "resto", e lança o silêncio como espaço da significação na
linguagem. Visto desse modo, o silêncio é necessário e a linguagem verbal é um excesso. O
silêncio, além de tudo, atravessa a linguagem e garante a ela sentidos múltiplos que apontam a
todas as direções. Portanto, não há silêncio que seja desprovido de sentido como não há
sentido que não tenha sido concebido do silêncio.
Sabendo que os sentidos se originam no silêncio e para o silêncio retornam, Eni
Orlandi, busca compreender as formas dos silêncios, bem como o seu modus operandi, a sua
funcionalização. O silêncio para Eni Orlandi, assim como para Santiago Kovadloff não é
diretamente observável. Ambos os autores propõem a concepção de um silêncio fugaz,
inapreensível, impalpável e inobservável. E por tudo isso, ambos também concordam que o
silêncio se revela na linguagem através de traços e pistas que ficam ao alcance do pesquisador
que podem intuir os seus sentidos. Cabe ao pesquisador, assim, observar indiretamente o
silêncio. Contudo, à diferença do silêncio primordial, os sentidos dos silêncios são intuídos
através do seu modo de funcionalização, que consiste na observação das formas dos silêncios
no discurso (ORLANDI, 2007).
Semelhante ao entendimento de Santiago Kovadloff, Eni Orlandi também divide a
concepção do silêncio em duas. Visto dessa perspectiva, Eni Orlandi, demonstra que há um
59
espaço de silêncio que se interpõe entre o sujeito e a linguagem, permitindo ao sujeito assumir
diferentes formações discursivas, o que possibilita a elaboração de múltiplos sentidos no
discurso, e há um espaço de silêncio no discurso que determina os sentidos da linguagem por
meio do processo de interdição, ocultação e apagamento.
No primeiro caso, “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de
estar no sentido [...]” (ORLANDI, 2007, p. 11). De um silêncio que está antes das palavras,
entre as palavras e também depois das palavras. Essa modalidade do silêncio é denominada de
silêncio fundante. É fundante porque é capaz de edificar toda linguagem e estabelecer a
significação. Como fundante deve ser entendido como aquele que é basilar à linguagem;
matéria significante por excelência que perpassa por todo o discurso e instaura o sentido, ou
seja, "princípio de toda significação" (ORLANDI, 2007, p. 68). Com isso, coloca-se essa
modalidade de silêncio como uma instância produtora de sentidos, cujos modos de significar
são determinantes à linguagem e ao sujeito.
Por outro lado, há outro silêncio, conforme Eni Orlandi, que indica a insuficiência da
linguagem e denota o seu caráter de incompletude. A impossibilidade de dizer tudo no plano
verbal manifesta a presença de um silêncio, bem como, reforça o estado de constância e
permanência do silêncio na linguagem, (embora a autora não considere o silêncio como
linguagem, é válido ressaltar que ela entende o silêncio como instância atuante permanente e
imprescindível à organização da linguagem). Portanto, o silêncio remete à ideia de
silenciamento, de apagamento, de ocultação, de interdição etc. A autora ainda subdivide esse
conceito em duas concepções: o silêncio constitutivo e o silêncio local que serão discutidos
mais adiante neste trabalho.
A rigor, a divisão proposta por Eni Orlandi relaciona-se com a divisão proposta por
Santiago Kovadloff, inclusive no papel que cada um dos silêncios desempenha. A possível
correspondência entre essas duas propostas é que ambas lançam o silêncio no campo da
dicotomia. Distinguindo o silêncio inexplicável do silêncio explicável. De maneira que há um
silêncio repleto de sentidos, porém inapreensível e intraduzível, cuja característica
fundamental é a multiplicidade de sentidos, enquanto que há outro silêncio fugaz como o
primeiro, embora esteja no domínio do explicável e do traduzível, cuja característica
fundamental se dá no plano do apagamento de sentidos. Qualifica-se essa modalidade de
silêncio em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos como política do silêncio.
Assim como o semblante explicável do silêncio a que Santiago Kovadloff se refere, a política
60
do silêncio também trabalha com o efeito do mascaramento, por meio de cortes do plano da
linguagem verbal.
Em linha análoga à proposta de Santiago Kovadloff, Eni Orlandi também diz que não
se pode encarar o silêncio como linguagem. O silêncio, para ela, assim como para ele, não é
linguagem, pois este pertence a outro domínio e possui uma materialidade significante distinta
da linguagem. O silêncio sempre permanece silêncio. O silêncio não se traduz pela linguagem
verbal. “Com efeito, a linguagem é passagem incessante de palavras ao silêncio e do silêncio
às palavras” (ORLANDI, 2007, p. 70). A linguagem, como já foi dito, caracteriza-se pela
presença irrevogável do silêncio. O silêncio nutre a linguagem, mas não é linguagem. A
compreensão do silêncio não quer dizer que o silêncio precisa ser colocado no âmbito do
verbal e traduzido por palavras. O sentido do silêncio, para a autora, consiste em reconhecer
os processos de significação que ele põe em jogo (ORLANDI, 2007).
Detendo-se um pouco mais sobre a relação entre silêncio e linguagem, ambos os
autores também concordam que o silêncio atesta uma relação de incompletude constitutiva da
linguagem, além disso, o próprio sujeito também tem uma relação fundamental com essa
incompletude. Embora a “falta” para Santiago Kovadloff seja fundamental à constituição da
identidade do sujeito. Para Eni Orlandi (2007, p. 68), a noção de falta é compreendida
ligeiramente diferente: “O silêncio não é o vazio, ou o sem-sentido; ao contrário, ele é o
indício de uma instância significativa. Isso nos leva à compreensão do ‘vazio’ da linguagem
como um horizonte e não como falta”. O que significa que o silêncio que está ligado à noção
de incompletude da linguagem é visto como um espaço de possibilidades múltiplas por onde o
sujeito se move, construindo significados. É pelo silêncio que o sujeito se movimenta entre
diferentes formações discursivas. Nesse sentido, fica evidente que cada uma dessas
modalidades de silêncio apresentadas até aqui correspondem a dois sistemas diferentes.
Quando Eni Orlandi (2007, p. 23) elege o silêncio como princípio de significação do
discurso, a autora esclarece que se refere apenas ao silêncio que trabalha no interior da
linguagem, ou melhor, “o não-dito visto do interior da linguagem”. Em termos concretos, o
silêncio de Eni Orlandi distingue-se totalmente do silêncio primordial, porque este não se
configura como uma ausência originária, mas como um espaço de possibilidades para a
significação. Muito embora, Wania de Souza Majadas (2007) afirme que o silêncio fundador
e o silêncio primordial são sinônimos, é preciso destacar a perspectiva que orienta o estudo de
Eni Orlandi e, em que sentido, os estudos de ambas acerca de silêncio se distanciam e se
diferenciam.
61
O trabalho da análise do discurso da escola francesa, pelo viés de Eni Orlandi,
consiste em compreender o discurso como lugar de contato entre o linguístico e o ideológico.
E o silêncio entra, justamente, nesse movimento que existe no discurso entre o “um” e o
“múltiplo”, entre língua e ideologia e entre reduplicação e deslocamento. De modo que o
silêncio caracteriza um movimento contraditório “tanto do sujeito quanto do sentido, fazendo
o entremeio entre ilusão de um sentido só [...] e o equívoco de todos os sentidos” (ORLANDI,
2007, p. 17). Esse movimento ou esse deslocamento então é o que possibilita os sentidos.
Além disso, sujeito e sentido são constituídos mutuamente a partir da sua relação com o
silêncio. E tanto o sujeito quanto o sentido são dispersos no silêncio. Os sujeitos e os sentidos
movem-se pelo silêncio, mesmo que a identidade do sujeito se conforme com uma ilusão de
unidade e linearidade. O sujeito, entretanto, é fragmentado e disperso e, por conseguinte, sua
identidade é atravessada por múltiplos discursos fazendo o sujeito tão errático quanto os
sentidos. Portanto, a relação do sujeito com os sentidos, nessa perspectiva também é movente,
dispersa e divergente, o que significa que os sujeitos não estão fechados dentro de uma
formação discursiva específica, eles, ao contrário se movem entre diferentes regiões
produzindo sentidos múltiplos.
Essa caracterização é importante, porque, dessa forma, o sujeito pode atribuir
diferentes sentidos a um mesmo objeto simbólico e ele mesmo pode ser constituído de
diferentes sentidos. E nisso, o silêncio primordial é significativamente diferente do silêncio
fundante proposto por Eni Orlandi em seu livro As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos. Porque para Eni Orlandi (2007), o silêncio é concebido a partir de uma perspectiva
discursiva e se converte em um espaço de possibilidade à significação, enquanto que o
silêncio primordial “não conforma um discurso, o silêncio primordial insinua o indizível, mas
sem cruzar as margens do enunciável” (KOVADLOFF, 2003, p. 167). Mais precisamente, o
silêncio do qual Eni Orlandi fala é o não dito que estabelece laço entre sujeito, história e
discurso, que não fala, mas que significa.
Há, portanto, algo de incontornável e misterioso em qualquer uma dessas concepções
de silêncio, porém para alcançar o silêncio fundador, diferentemente do silêncio primordial
que implica um mergulho na subjetividade, o silêncio fundante, por sua vez, exige refazer
toda a trama discursiva e desconstruir todos os processos de construção dos sentidos. Para
tanto, requer rever como se elaboram as formações discursivas e ideológicas para que, dessa
forma, possa transparecer a historicidade inscrita no tecido textual (ORLANDI, 2007). É
apenas desse modo que é possível salientar os silêncios e os processos oriundos do silêncio na
62
construção dos sentidos. Partindo desse pressuposto, observar o silêncio fundante implica em
“observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas
[...] sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção dos efeitos de
sentidos, é impossível compreender o silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 45). O que é comum nos
estudos dos signos, conforme aponta Eni Orlandi (2007, p. 30), é que se considera que toda
linguagem está “repassada de linguagem verbal, ou como se diz, todo sistema de signos (de
qualquer natureza) é atravessado (interpretado) pela linguagem verbal”. Obviamente que isso
não é possível quando se atribui ao silêncio o estatuto de elemento significante por
excelência. Tal é precisamente a compreensão do silêncio nessa acepção, como o recuo
necessário que existe nas e entre as palavras e que possibilita a elas significar, que se
distingue de outras modalidades de silêncio.
Para Eni Orlandi, “é nessa perspectiva que consideramos a linguagem como
categorização do silêncio, isto é, ela é gregaridade, a possibilidade de segmentação, ou
melhor, recorte da significação em unidades discretas” (ORLANDI, 2007, p.71). O mais
importante é que, mesmo o silêncio resistindo à domesticação e à representação, é possível,
através da linguagem, perceber pistas e traços de silêncio no discurso. Eni Orlandi distingue
figuras retóricas do silêncio e que são presenças do silêncio no plano textual. A autora elenca
cinco figuras fundamentais para a compreensão da categorização do silêncio, ou seja, uma
forma retórica em que o silêncio se manifesta.
A primeira delas é denominada por Eni Orlandi como elipse. Elipse é omissão ou
supressão de uma ou mais palavras que não comprometem a clareza da frase. A autora ainda
menciona a descontinuidade temática como outra figura retórica de silêncio que se caracteriza
por rupturas súbitas no plano temático e quebra de linearidade. Subdeterminação semântica
seria aquilo que é dito e tem o significado subdeterminado, ou seja, elas não exprimem uma
proposição completa (VARGAS, 2014). Acrescentam-se às figuras já mencionadas, as
reticências como omissão voluntária do que se podia dizer. E, finalmente, Eni Orlandi coloca
a preterição como última figura retórica do silêncio que se define, por o sentido estar além
daquilo que é dito. Dessa maneira, a retórica demonstra ser muito relevante para o estudo das
formas do silêncio.
A bem dizer, quando Eni Orlandi propõe que a linguagem é categorização do silêncio,
a linguagem verbal como domesticadora dos sentidos, ou seja, a identidade na sua relação
com a linguagem é disciplinada, coerente, avizinhando-se da unicidade, por outro lado, na sua
relação com o silêncio, a identidade remete à divergência, à multiplicidade, à contradição, ao
63
absoluto etc. Por isso, o silêncio, assim como na perspectiva de Santiago Kovadloff, não tem
objeto, na perspectiva do silêncio fundante também não. Não havendo objeto, cabe observar o
sujeito para o primeiro e observar e analisar as formações discursivas para o segundo.
Certamente, fica claro que o silêncio não é diretamente observável, conforme já foi
dito anteriormente, então o silêncio também não é o objeto ideal para compreendê-lo. “Em
consequência, é preciso deslocar a análise do domínio dos produtos para os processos de
produção de sentidos” (ORLANDI, 2007, p. 55). A aplicação desse critério é de extrema
relevância para se alcançar o silêncio fundante, pois se permite trabalhar a noção de
incompletude da linguagem, bem como a necessidade do silêncio é expressão, além do que
permite também trabalhar com as figuras retóricas do silêncio como “’sintomas’ da
marginalização do silêncio dos processos de significação” (ORLANDI, 2007, p. 55). Assim,
salienta-se a necessidade de trabalhar o silêncio através de sua funcionalização e levar em
consideração a sua materialidade histórica.
Com isso saltam aos olhos duas questões fundamentais que distinguem o silêncio
fundador do silêncio primordial: primeiramente o silêncio fundador deve ser observado
levando em conta a sua historicidade, os seus modos de construção, bem como a relação entre
as formações discursivas e ideológicas que comprometem os significados do discurso. A
segunda questão fundamental, que caracteriza o silêncio fundador, é a questão do movimento
que caracteriza este e o caráter absoluto e originário daquele. “No silêncio [fundador] o
sentido se faz em movimento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a relação e sua
identidade (e da sua diferença)” (ORLANDI, 2007, p. 153). Como já foi expresso, o
movimento ao qual Santiago Kovadloff se refere é completamente distinto do movimento
atribuído ao silêncio fundador de Eni Orlandi.
A fórmula básica do silêncio fundante é que ele sempre significa: “com ou sem
palavras, diante do mundo, há uma injunção à “interpretação”: tudo tem de fazer sentido
(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o
simbólico” (ORLANDI, 2007, p. 29-3). Portanto, o silêncio é fundador, na proposta de Eni
Orlandi, porque tem caráter próprio. “Fundador não significa aqui ‘originário’, nem o lugar do
sentido absoluto” (ORLANDI, 2007, p. 23). Fundador significa apenas que o silêncio é o
espaço que garante ao sujeito deslocar e realocar sentidos dentro de uma determinada
formação discursiva, o que permite a um determinado objeto simbólico significar de múltiplas
formas.
64
Eis o silêncio que confirma a relação contraditória entre historicidade e materialidade
linguística. Esse é o silêncio fundador, “princípio de toda significação” (ORLANDI, 2007, p.
68), equivale dizer: essencial à linguagem. Eni Orlandi ainda destaca que o silêncio fundador
é entendido como um continuum absoluto. E como continuum absoluto entende-se que ele
trabalha nessa constante movência de sentidos. Para a linguista,
Essa possibilidade de movimento, de deslocamento de palavras em presença
e ausência, leva-nos a fazer um paralelo que mostra ao mesmo tempo uma
relação fundamental entre linguagem e tempo. Em latim, o tempo marcado
(tempus) tem uma relação com o “evo” (aevum), que é o tempo contínuo. O
tempo é que marca o “evo”. A definição do tempo medieval (em São Tomás)
é numerus motus secundum prius et posterius, ou seja, o número do
movimento segundo o que vem antes e depois (medioevo = evo médio).
Assim é que vemos a relação entre palavra e silêncio: a palavra imprime-se
no contínuo significante do silêncio e ela o marca, o segmenta e o distingue
em sentidos discretos, constituindo um tempo (tempus) no movimento
contínuo (aevum) dos sentidos do silêncio. Podemos enfim dizer que há um
ritmo no significar que supõe o movimento entre silêncio e linguagem.
(ORLANDI, 2007, p. 25).
Essa relação do silêncio com o movimento contínuo reflete a sua condição intemporal,
que subtrai a sucessão, porque o silêncio é o que vem antes e o que vem depois. Já para
Santiago Kovadloff, o silêncio primordial está no domínio do atemporal. “Na atemporalidade,
pelo contrário, a quietude não implica realização e sim ausência. Nada culmina ali porque ali
nada se inicia, nem está precedido por indício algum” (KOVADLOFF, 2003, p.103). Para Eni
Orlandi, o silêncio fundador não é uma ausência, mas o real do discurso, o real da
significação. “Quando o homem em sua história percebeu o silêncio como significação, criou
a linguagem para retê-lo [...] A linguagem estabiliza o movimento dos sentidos” (ORLANDI,
2007, p. 27). O que Eni Orlandi salienta é que o silêncio fundador é movimento e a linguagem
como segmentadora desse movimento é que assegura pelo movimento os sentidos à
linguagem. Os sentidos, assim, não param nunca. Eles estão sempre em movimento e mesmo
que se tente conter os sentidos pelo silenciamento, recorrendo à política do silêncio, eles se
rearranjam e tomam outro caminho.
Então, para compreender em que sentido o silêncio primordial se distancia do silêncio
fundante é preciso ressaltar algumas dessas características já mencionadas. Não é apenas o
movimento que coloca o “um” em relação ao “múltiplo” e que produz o sentido em sua
pluralidade, que separa uma concepção da outra, a diferença entre essas duas concepções é
plural, como se pode perceber. O silêncio fundador intervém como parte da configuração do
silêncio, do sujeito e do sentido, tal como o silêncio primordial. No entanto, o silêncio
65
primordial não conforma o mesmo movimento em que possibilita espaço para o sujeito
deslocar-se, assim como no silêncio fundador. Por outro lado, o silêncio fundador não
transcende a categorização do silêncio imposta pela linguagem, mas apenas observa os limites
que segmentam o absoluto. Isso implica considerar uma distinção fundamental entre as duas
concepções, o silêncio fundador sendo dotado de forma, é observável a partir de suas formas
visto do interior da linguagem. Santiago Kovadloff se propõe a sondar o silêncio sem rosto
que carece de forma e de fundo.
Outro fator concorre para a distinção entre essas duas concepções, é que a identidade
do sujeito se firma no silêncio, segundo Eni Orlandi. Estar no silêncio é ser capaz de
significar em silêncio. Enquanto que esse silêncio “fundamenta o movimento de
interpretação” (ORLANDI, 2007, p. 156), assim, o silêncio converte-se em um “lugar em que
o sujeito ‘se’ significa para significar” (ORLANDI, 2007, p. 156). No entanto, o silêncio
primordial revela na identidade do sujeito um vazio inevitável, uma ausência originária de seu
próprio ser que não se configura como espaço de interpretação e atribuição de sentidos, mas
reflete uma carência em sua condição básica enquanto sujeito. É de encontro com esse vazio
arrebatador que o eu se vê colocado diante de um nada de sentido determinante à sua
identidade.
O que se tem percebido e intuído nos trabalhos desses dois estudiosos são as
diferentes, porém, ricas formas com as quais eles concebem o silêncio, sejam como ausência e
resto, ou como real e necessário ao discurso. Levando em conta as particularidades de suas
disciplinas e traçando um paralelo entre suas semelhanças e diferenças, percebe-se que os
aspectos levantados até aqui são capitais para a compreensão do funcionamento do silêncio,
dos seus modos de alusão e aproximação a esse silêncio que é refratário e fugaz. Permitindo,
dessa maneira, desnudar suas formas e meios de significação, com o intuito de compreender
os sentidos que se guardam no silêncio, sem a necessidade de subjugá-los à linguagem verbal.
Em todas essas concepções, nota-se um deslocamento de interesses e de objetivos, mas todas
essas modalidades, como se pode notar, são legítimas e fecundas ao se referir ao silêncio sem
ignorar, no entanto, a sua potencialidade criadora.
1.4 Política do silêncio: silêncio constitutivo e censura
66
Há uma instância do silêncio que é reconhecida por um modo particular de
operacionalizar o silêncio. O silêncio deixa de ser encarado como um estado contínuo e
permanente e passa a ser visto como uma atitude ou ação em relação a alguma coisa. Essa
instância do silêncio está intimamente ligada ao exercício e manutenção do poder. O exercício
do poder é marcado pelo domínio da linguagem. É sabido que “a linguagem é poder” (LE
BRETON, 1999, p. 78), e se ela é potência, o silêncio – componente intrínseco da linguagem
– é poder também. O tamanho do poder de alguém depende, basicamente, do tamanho do
controle que esse alguém exerce sobre a linguagem. E esse controle está na capacidade que o
sujeito tem em administrar o silêncio que habita na linguagem, na administração do silêncio
que é inaugural para os sentidos.
A autoridade do sujeito se manifesta a partir do silêncio que se dá por meio do
controle que o sujeito exerce sobre o fluxo contínuo de sentidos oriundos do silêncio. O poder
assemelha-se, dessa forma, a uma válvula de silêncio que regula o movimento fluido dos
sentidos. A habilidade em administrar o silêncio se confirma na habilidade de controlar os
sentidos de si e do outro, seja pela retenção do silêncio ou pela retenção da palavra, o cultivo
do silêncio e a imposição de um calar fazem parte do que se pode chamar aqui de política do
silêncio.
Em linhas gerais, Adam Jaworski compreende que a política do silêncio se dá de
múltiplas formas e em múltiplos contextos, mas, especialmente, como ferramenta
sociopolítica de opressão, controle e manutenção do status quo. Esse autor pressupõe que a
política do silêncio opera por dois caminhos: seja por meio da ausência de palavras ou da
saturação de palavras que é o caso da repetição. Aprender a Rezar na Era da Técnica ilustra
ambas as modalidades. No que diz respeito à suspensão da palavra para manutenção do poder
destaca-se a seguinte passagem: “Depois de uma discussão Lenz rasga o contrato quando
estava precisamente a meio da sua assinatura [...] O nome interrompido e a negociação
interrompida” (TAVARES, 2008, p. 24). Em se tratando da saturação da palavra, basta
destacar o seguinte exemplo: “[...] e Lenz respondia: Não. Não, não. Sim, sim, sim”
(TAVARES, 2008, p. 43). Firmando dessa maneira o seu poder, se deixar que os outros se
manifestem. Impede-se a manifestação da palavra do outro. Ambos os procedimentos,
quaisquer que sejam, correspondem a um conjunto de estratégias que canalizam os sentidos e
ou os apagam.
Naturalmente, a política do silêncio torna-se um elemento chave para o
empoderamento, mas evidencia a tirania, o infortúnio e o crime, porque ela se impõe sobre o
67
indivíduo a contrafeito. O silêncio e o silenciamento dentro da perspectiva da política do
silêncio trabalham juntos. A imposição, a consolidação do poder é sustentada pelo silêncio
assim como também pelo controle da informação. Daí decorre a ideia de que o silêncio pode
ser opressor, no sentido de que ele é operado para dominar um determinado grupo. “O
silêncio da opressão é um estado desejável para todos os grupos de poder que têm medo de
que a mera expressão e troca de opiniões ou livre fluxo de informação irá ameaçar o status
quo existente” (JAWORSKI, 1993, p. 116 – tradução nossa) 13
. Os mecanismos dessa
opressão ocorrem de várias maneiras. O grupo dominante altera a percepção clara da
sociedade sobre o grupo dominado para uma percepção ambígua e obscura. A imagem do
grupo silenciado se distorce e se enfraquece frente ao grupo dominante e este se vê subjugado
pelos discursos do grupo dominante. Fica explícito esse mecanismo ao observar a maneira
pela qual Lenz trata o mendigo que frequenta sua casa.
David Le Breton define a política do silêncio como “[...] o fato de, se certas coisas são
próprias para serem ditas, outras são menos, ou nem são, em função das situações e dos
protagonistas” (LE BRETON, 1999, p. 20). Em essência, a política do silêncio, para esse
autor, trata do controle exercido por um determinado sujeito ou grupo sobre a linguagem.
Esse controle é exercido, certamente, na comunicação do outro, mas também em si próprio. O
autor crê que as relações de poder são baseadas no controle do fluxo de palavras e de silêncios
assim como define Adam Jaworski. Mas em David Le Breton, a política do silêncio pode ser
entendida de duas formas, ampliando a perspectiva de Adam Jaworski: o silêncio da oposição,
aquele silêncio que é empregado como forma de resistência, contra o sujeito que em
determinada conjuntura parece deter o poder, e o silêncio da opressão, que foi abordado por
Adam Jaworski, que trata do silêncio que encobre a palavra e retém os sentidos.
O silêncio da oposição ou da recusa, por sua vez, manifesta-se como uma forma de
domínio da linguagem e resistência frente a um poder coercitivo que visa a poder realocar e
reorganizar o discurso do indivíduo dominado. O silêncio da recusa implica uma atitude de
calar como forma de defesa, com o intuito de poder equilibrar as relações de poder. “Calar-se
é um forma extrema de defesa, em que se equilibram vantagens e inconvenientes. Aquele que
se cala, sem dúvida que não se entrega, mas dá a impressão de ser mais perigoso do que é”
(LE BRETON, 1999, p. 84). Sob essa perspectiva, acredita-se que o calar torna-se um
importante mecanismo de manter a estabilidade, bem como, assegurar o equilíbrio de poder.
13
“The silence of oppression is a desirable state for all power groups that are afraid that the mere expression
and exchange of opinions or free flow of information will threaten the existing status quo” (JAWORSKI, 1993 –
p. 116, tradução nossa).
68
O silêncio desafia a estrutura dominante e o envolve com um ar de mistério e de força àquele
que é subjugado. O silêncio autoimposto é demonstração de poder, podendo ser, também,
uma marca de violência e hostilização. Nesse último caso, por exemplo, interromper
subitamente a partilha da comunicação e cessar a alternância de silêncios e palavras na
comunicação é banir aquele que fala de interagir com aquele que está em silêncio, portanto,
restringindo o alcance do poder daquele que fala.
O fechamento sobre si pode se referir não somente a uma relação desproporcional de
poder em que o outro se obriga a adotar o silêncio como forma de resistência, mas também
pode refletir o desprezo e o rancor. “Uma súbita abstenção de palavra entre indivíduos que
têm o hábito de conversar entre si marca uma ruptura de relações, aumenta o ‘frio’ que surgiu
com uma recusa de comunicação” (LE BRETON, 1999, p. 86). Em síntese, esse silêncio
supõe a completa exclusão daquele que fala. E por não se permitir sua inserção na partilha da
comunicação, apaga-se o outro e recusa-se em reconhecer o outro enquanto sujeito negando-
lhe o direito de representação.
No que diz respeito ao silêncio da opressão, este elimina a dúvida, apaga os sentidos e
não deixa espaço para a polissemia do discurso. Em suma, reduz-se o outro ao silêncio do
vazio e do apagamento. David Le Breton (1999, p. 88) lembra que o “o silêncio é um
instrumento de resistência, mas também de poder, de terror, uma forma de controlar uma
situação com mão de ferro”. Trata-se de uma violência que se reveste do poder oficial e
institucionalizado e impõe sobre a sociedade a univocidade, a unilateralidade e a
uniformidade do pensamento. Nesse caso, recorre-se à censura como meio mais eficaz de
restringir o uso da palavra. “A censura produz silêncio em negativo, um defeito de
comunicação, retira-se o valor à palavra, privando-a de consistência, por não ter ninguém para
ouvir e transmitir” (LE BRETON, 1999, p. 88). Apagando-se, assim, os sentidos indesejáveis
e instalando a desconfiança mútua. Mas além da censura, há outras formas de reduzir os
indivíduos ao silêncio.
As práticas sociais da linguagem pressupõem doses equilibradas de palavra e silêncio.
A falta de conversa, porém, rompe com o equilíbrio da linguagem e reduz o indivíduo ao
ostracismo. Tal atitude configura-se como uma forma coercitiva de impor o silêncio, e esse
golpe pungente na linguagem nega ao individuo o direito de se inserir no vínculo social, tal
como ocorre com Gustav Liegnitz em Aprender a Rezar na Era da Técnica. Aliás, a recusa da
escuta impõe o status negativo do silêncio. Um silêncio poderoso que como uma névoa densa
encobre os sentidos. Paulatinamente, o indivíduo que fala é relegado ao vazio da linguagem e
69
condenado ao mutismo e isso se dá por duas razões: ou porque o que se está sendo dito é
incompreensível para os falantes dentro de uma determinada comunidade linguística, ou
porque, o que está sendo dito é, supostamente, irrelevante e, por conseguinte, não digno de ser
ouvido. “A impossibilidade de ser ouvido, por falta de valor próprio, conduz ao mutismo ou
então à inflação de uma linguagem que ocorre como uma hemorragia de existência sem
nenhum ouvido que consiga parar” (LE BRETON, 1999, p. 102). David Le Breton demonstra
que a política do silêncio se manifesta de múltiplas formas e em múltiplos contextos.
Independentemente dos agentes serem políticos, sujeitos institucionalizados ou não, a política
do silêncio, de qualquer forma que ela se manifesta, se mostra arrebatadora e coloca o
indivíduo subjugado em confronto com a linguagem, perante palavras e silêncios em excesso.
Sem dúvida, essas reflexões ampliam a concepção da política do silêncio e conduzem
a um aprofundamento dessa questão. Eni Orlandi dedicou páginas luminosas e esclarecedoras
sobre a política do silêncio e expande essa concepção. A autora reconhece que essa concepção
deve ser compreendida a partir de sua perspectiva discursiva e que para compreender a
política do silêncio deve-se contextualizá-la sócio-historicamente.
Conforme a autora, “a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo
apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação
discursiva dada” (ORLANDI, 2007, p.73). Com precisão e aspecto distintivo, Eni Orlandi,
distingue a política do silêncio da concepção do silêncio fundador. A diferença capital entre
um e o outro é que o silêncio fundador, discutido já em páginas anteriores, significa por si
mesmo e não estabelece nenhuma divisão. Enquanto que a política do silêncio, ao observar o
termo político, remete à divisão que reincide sobre a linguagem, à divisão de sentidos, à
divisão de sujeitos entre eles, à divisão do sujeito nele mesmo. A política do silêncio então se
caracteriza por um recorte entre aquilo que é dito e aquilo que não é dito e se divide em dois
planos: o silêncio constitutivo e o silêncio local. Além do mais, a autora também aprofunda as
relações entre censura, opressão, resistência e discute o importantíssimo papel das vozes
sociais.
O silêncio constitutivo representa a concepção de que todo dizer implica não dizer
alguma coisa, que todo dizer apaga necessariamente outros sentidos. A correspondência entre
o silêncio fundador e o silêncio constitutivo não é mera coincidência, já que este é
indispensável à produção dos sentidos. A indispensabilidade do silêncio constitutivo imprime
a ele um papel primordial na linguagem. O silêncio constitutivo é, assim, essencial à
estruturação da linguagem. O mecanismo de operação do silêncio constitutivo é definido por
70
Eni Orlandi como o “antimplícito” (ORLANDI, 2007, p. 73). Ora, se o implícito é aquilo que
não está dito, mas que remete ao dito, o anti-implícito é o fenômeno contrário, que apela ao
silêncio em que o que está dito nega outros dizeres. “se diz ‘x’ para não (deixar) dizer ‘y’, este
sendo o sentido a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído” (ORLANDI,
2007, p. 73). Para clarificar essa proposição, é preciso considerar que o dizer e o
silenciamento são indispensáveis um para o outro, que há, de fato, uma relação de
incompletude com a linguagem. Assim,
[...] o esquema "dizer x para não dizer y" aponta para a necessidade da
enunciação em se constituir a partir da exclusão de outros sentidos possíveis.
Se fosse possível dizer tudo, não se diria nada. Assim, podemos ir além, e
até dizer que, paradoxalmente, se fosse possível dizer tudo seria impossível
dizer qualquer coisa (TFOUNI, 2008, p. 363).
Ao afirmar que a linguagem se estrutura a partir da noção do silêncio constitutivo e,
nesse sentido, o não dito é essencial para a constituição do discurso. É importante não
confundir o papel do silêncio constitutivo e do silêncio fundante. O silêncio fundante é
indivisível e permanece silêncio, ou seja, não se traduz em palavras, porque, inclusive, ele
está entre elas e as atravessa, de modo que ele apenas significa. O silêncio fundante não
promove apagamentos de sentido, mas é condição da produção de sentidos. E o silêncio
fundante tem sempre sentidos a dizer, decorrendo daí a noção de polissemia do discurso.
Em contrapartida, o silêncio constitutivo se afirma a partir do não dito. O silêncio
constitutivo é incontornável, muito embora o silêncio constitutivo suponha uma divisão na
linguagem. É quando não se diz algo, em determinada conjuntura, justamente para apagar
certos sentidos que, naquele contexto, parecem indesejáveis. No mundo judaico, por exemplo,
prefere o termo Shoah, que significa catástrofe em hebraico a Holocausto, para não recorrer a
conotações sacrificiais (SELIGMANN-SILVA, 2003). E, no contexto latino-americano, por
muito tempo referiu-se à ditadura como Regime Militar, para apagar o sentido negativo que a
palavra ditadura implica. Inclusive, Eni Orlandi recorda que após a redemocratização adotou-
se o termo Nova República. A ideia de uma Nova República apaga os sentidos de que a Nova
República foi precedida por uma ditadura. Assim, o sentido depende justamente do
apagamento necessário que promove o silêncio constitutivo. O silêncio constitutivo
caracteriza-se, dessa forma, pela escolha que está relacionada ao contexto sócio histórico e à
impossibilidade de dizer tudo, reincidindo na incompletude que caracteriza a linguagem
verbal.
71
O silêncio como procedimento político guarda no silêncio local “a manifestação mais
visível dessa política: a interdição do dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74), que se manifesta,
especialmente, através da censura, que se caracteriza pela proibição de dizer algo em uma
determinada conjuntura. No silêncio local o sujeito é impedido de dizer o que pode ser dito.
Eni Orlandi procura entender a censura como um fato da linguagem, de maneira que se
possam observar os seus mecanismos de funcionamento e de operação do silêncio na
linguagem. Consonante tal autora:
A censura tal como a definimos é a interdição da inscrição do sujeito em
formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos
porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares, certas posições. Se se
considera que o dizível define-se pelo conjunto de formações discursivas em
suas relações, a censura intervém a cada vez que se impede o sujeito de
circular em certas regiões determinadas pelas suas diferentes posições
(ORLANDI, 2007, p. 104).
Por isso, a autora concebe a censura enquanto silêncio local, porque ele é discernível e
é possível detectar as suas marcas e formas no interior da linguagem. Em linhas gerais, a
censura, de forma localizada e ostensiva, atua no cerceamento das formações discursivas do
indivíduo, de modo que aquilo que pode ser dito, não deve ser dito quando o indivíduo fala. O
esquema da censura obriga o sujeito a dizer x para não dizer y. De tal modo, a censura tenta
vetar que o sujeito ocupe diferentes lugares e diferentes posições discursivas.
Sabe-se que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo, então, ao interditar
que o sujeito ocupe determinadas posições discursivas, tal atitude afeta imediatamente a sua
identidade. De forma que para a autora, é possível traçar um paralelo entre a relação de Poder
(censura) e a relação de Desejo (Narcísea) (ORLANDI, 2007). No autoritarismo, a censura
fixa um sentido e não concebe outros sentidos possíveis, criando uma espécie de “narcísea
social” (ORLANDI, 2007, p. 80), no qual um sentido só é imposto para toda sociedade.
O conceito de língua de espuma proposto por Eni Orlandi tem muito a acrescentar à
noção de retórica da opressão que advém do silêncio local. A noção de língua de espuma
corresponde a “uma língua ‘vazia’, prática, de uso imediato, em que os sentidos não ecoam. É
uma língua que os sentidos batem forte, mas não se expandem [...] Na língua de espuma os
sentidos se calam” (ORLANDI, 2007, p. 99). A língua de espuma não compromete nenhuma
realidade e, nesse sentido, ela também opera em favor do silenciamento. No autoritarismo os
sentidos manifestados e permitidos pela censura se enquadrariam dessa maneira à concepção
de língua de espuma. Ao instituir um único discurso, o regime autoritário perde a força
porque se fecham os caminhos da linguagem e se interditam as posições discursivas que o
72
sujeito pode assumir para preencher esse discurso de significados. Por isso, o autoritarismo
recorre à repetição. Sem a repetição e a saturação de palavras, a língua de espuma se esvanece
e com ela a sua mensagem.
Entretanto, em relação à censura por mais que se tente interditar os caminhos da
linguagem não se é capaz de conter o fluxo de sentidos. Ainda que a censura tente impedir
determinada formação discursiva, os sentidos tomam outro caminho e significam de outras
maneiras. Segundo Eni Orlandi (2007, p. 80), “os sentidos são erráticos e podem migrar de
uma região para a outra”. É assim que se dá a produção dos sentidos, pelo movimento que
também constitui sua identidade.
Com efeito, a censura é o lugar da negação e ao mesmo tempo da
exacerbação do movimento que institui a identidade. Por isso é um lugar
privilegiado para ‘olhar’ a relação do sujeito com as formações discursivas.
Porque nos faz apreciar melhor os processos de identificação do sujeito ao
inscrever-se na região do dizível para produzir(-se) sentido. Essa situação
corresponde a uma forma direta e sem sutilezas da política do silêncio, ou
melhor, do silenciamento: se obriga a dizer ‘x’ para não deixar de dizer ‘y’.
No entanto, pela natureza dispersa do sujeito pelo movimento que constitui
sua identidade veremos que esse ‘y’ significará por outros processos
(ORLANDI, 2007, p. 81).
Assim, têm-se os discursos de resistência indicando deslocamentos de sentido,
possibilitando um fenômeno que Eni Orlandi qualifica como retórica da resistência. Os
sentidos não ficam parados. Eles sempre tomam outros caminhos. Ao retomar a concepção de
que o silêncio simplesmente significa e que o sujeito desenvolve uma relação necessária com
o silêncio, não há censura que seja capaz de conter os sentidos. Então, no entender de Eni
Orlandi, a retórica da resistência é uma resposta necessária e inevitável à retórica da opressão.
Os sentidos silenciados, portanto, arrumam outros meios para significar. Eles migram.
“Aquilo que não dissemos durante a censura – bem ou mal, de um modo ou de outro –
significou” (ORLANDI, 2007, p. 129), muito embora, os sentidos passem por transformações.
Entretanto, os sentidos são incontidos. Assim, de acordo com a autora não há censura
completamente eficaz na medida em que ela não pode conter os sentidos. O que fica
demonstrado é que a censura não procura impedir que determinados sentidos viessem à tona,
mas impedir que esses sentidos sejam trabalhados historicamente promovendo uma
identificação com os sujeitos. A censura, assim, procura distorcer essa identificação. No
entanto, qualquer forma de censura pressupõe uma forma de resistência. Além disso, fica
patenteado que, independente da interdição, há silêncio e o silêncio significa.
73
CAPÍTULO II
SILÊNCIOS E ESTRUTURA FORMAL EM APRENDER A REZAR NA ERA DA
TÉCNICA
“Onde cessa a palavra do poeta, começa uma grande luz”.
(Georg Steiner)
A característica distintiva do silêncio, como ficou demonstrado no primeiro capítulo, é
que o silêncio se confirma como elemento significativo por natureza, prescindindo de
qualquer outra materialidade para significar. Por isso, o silêncio é essencial à linguagem. Esse
seu lado intrínseco à linguagem suscita três importantes questionamentos a respeito da relação
entre silêncio e o romance Aprender a Rezar na Era da Técnica, do aclamado escritor
português Gonçalo M. Tavares, que serão discutidos neste segundo capítulo.
O primeiro questionamento é que, partindo do pressuposto de que o silêncio é inerente
à linguagem, em que medida esse silêncio se incorpora e se impregna à linguagem literária e
se constitui como elemento estético e literário? Em segundo lugar, admitindo que o silêncio se
desdobra na linguagem literária e que ele cumpre um papel não apenas primordial a esta, mas
cumpre, inclusive, um papel estético, como o silêncio se apresenta ao gênero romanesco e
como ele interfere nas formas do romance, mais especificamente, nas formas de Aprender a
Rezar na Era da Técnica? E finalmente, quais são os efeitos que se podem verificar e quais as
consequências desses efeitos no plano geral da obra?
Muito embora, nenhum desses questionamentos possa ser respondido em caráter
absoluto, o segundo capítulo desta dissertação detém-se na difícil tarefa de analisar a
manifestação do fenômeno do silêncio no texto literário, a partir de Aprender a Rezar na Era
da Técnica, e discutir as formas do silêncio nas formas do romance, além de observar, em
suas ocorrências, os seus efeitos de sentido.
2.1 Silêncio e discurso romanesco
74
O romance, que chegou aos leitores do século XXI, tem uma longa trajetória de
transformações em seu conteúdo e em sua forma. A história do romance remonta à
Antiguidade Clássica e tem na epopeia a sua origem. Evidentemente, o tempo não poupou
mudanças no gênero clássico e deu lugar a uma nova forma de expressão literária mais
compatível com a nova realidade: o romance. Ao contrário do que foi o mundo helênico, o
mundo burguês do qual o romance é decorrente, não conservou o equilíbrio de uma estrutura
fechada e de uma linguagem totalizante, o mundo burguês rompe com essa harmonia e a
totalidade de outrora é apenas um projeto a ser pretendido (LUKÁCS, 2006). Diferentemente
do seu antecessor – a epopeia –, o romance refugia-se no silêncio para significar. Dito de
outro modo, o silêncio instaura-se em suas formas e inaugura o seu sentido.
Após seu resplendor entre os séculos XVIII e XIX, o romance nos séculos XX e XXI é
marcado pela crise e então passa a ser saturado pela informação e rodeado por uma
multiplicidade de linguagens e mundividências. No entanto, o silêncio jamais abandonou as
formas do romance. O silêncio sempre esteve com o romance, permeando as suas estruturas.
Mas consonante Eni Orlandi (2007), na atual conjuntura, o silêncio é relegado a uma posição
subalterna. Assim, o silêncio presente no romance não tem a devida atenção que merece.
Paulatinamente, o silêncio vem sendo posto em adjacência à ideia de vazio, de tácito e de sem
sentido e, gradativamente, subordinando-se à verbalização.
A comunicação, que tece interminavelmente os seus fios na malha da trama
social, não tem lacunas, apresenta-se no modo da saturação, não sabe calar-
se para poder ser ouvida, falta-lhe silêncio, que lhe daria um peso, uma
força. E o paradoxo deste fluxo interminável é que ela encara o silêncio
como sendo seu inimigo principal: não há espaços vazios na televisão ou na
rádio, por exemplo, é impossível deixar passar, por batota, um instante de
silêncio, impõe-se sempre um fluxo permanente de palavras ou de música,
como que para esconjurar a ameaça de ser finalmente escutada. (LE
BRETON, 1999, p. 15).
Nesse cenário, muito frequentemente, “coloca-se o ‘império do verbal’ em nossas
formas sociais: traduz-se o silêncio em palavras” (ORLANDI, 2007, p. 30 – destaques da
autora). Diante dessas constatações, João Batista Ferreira (2009, p. 18) sugere que “a riqueza
que o silêncio encerra é de difícil administração; daí o pânico que provoca, gerando o ruído
como escape, calando com o barulho a voz. Essa fuga ruidosa é uma prática que se alastra no
contemporâneo”. E o que vem sendo percebido e intuído por vários estudiosos
contemporâneos da linguagem além dele é que, muito embora, o mundo esteja cada vez mais
75
saturado por barulho e por múltiplos discursos, o silêncio ainda resiste à urgência da palavra
(ORLANDI, 2007).
Não obstante, o gênero romanesco resistiu à pressão das múltiplas linguagens que
tentaram conter o silêncio a todo modo significando de outras maneiras. E entre essas novas
maneiras de significar, refletiram-se, na forma do romance, silêncios que deixaram marcas
indeléveis, de modo que ninguém poderá contestar a presença do silêncio no romance,
qualquer que ele seja. O silêncio é uma potência, e se a proliferação da palavra não consegue
contê-lo e refreá-lo, é porque então mais potente e mais profundo o silêncio se manifesta no
meio literário.
O silêncio está intrincado às formas do romance. Não é por menos, quando se
considera que o mundo é fragmentário, é estilhaçado, é rarefeito e grande demais para o
registro verbal. Assim é o romance: fragmentário, estilhaçado, rarefeito e, além disso, é
repleto de silêncios em sua estrutura como jamais se viu, demonstrando ser representante por
excelência do mundo burguês. O equilíbrio e a estabilidade inerentes à poesia épica dão lugar
a uma série de interstícios, de não ditos, de lacunas que transbordam silêncios e que se
entretecem às instâncias narrativas. Referindo-se a essa constatação, acredita-se que o
romance, à diferença do seu antecessor, a epopeia tem no silêncio seu fundamento e o seu
equilíbrio.
Georg Lukács (2006) defende que “o romance é a epopeia de uma era para a qual a
totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do
sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”
(LUKÁCS, 2006, p. 55). Através da forma, o romance tenta recobrar a totalidade perdida e o
romancista vê-se obrigado a reconfigurar as técnicas de composição do romance buscando
novos experimentos formais capazes de abarcar o novo mundo, bem como, expressar o novo
paradigma social.
O romancista, assim, explora caminhos ainda inexplorados, buscando representar seu
mundo de maneira plena, expondo toda contradição dos ideais burgueses, além de todas as
fissuras e ambiguidades que compõem a sua realidade. As circunstâncias históricas que
condicionavam os ideais de completude e segurança esvaneceram-se e em seu lugar pairou a
incerteza sobre todas as crenças e suposições dos homens.
Tal desorientação denuncia que o mundo e quase tudo que rodeia o homem é
irrealizável sem a presença do silêncio, e que o signo garante uma estabilidade ilusória. Mas,
o mais importante, é que a multiplicidade de linguagens que segmentou e dispersou a
76
experiência com o real, pôs em xeque a crença paralisante sobre o poder irrefutável da
linguagem verbal, sinalizando, na verdade, que a experiência com o real se dá por meio de
uma massa de fragmentos inominada e que a sua compreensão é, indubitavelmente, pontuada
pelo silêncio que envolve a sua forma.
No caso do romance, o obstáculo do romancista consiste, justamente, em lidar com
uma massa proteiforme de fragmentos da linguagem atravessada por silêncios. Essa
linguagem verbal estilhaçada se mostra completamente insuficiente para conceber a nova
realidade plural e multifacetada. Incapaz, destarte, de recorrer à espontaneidade da linguagem
para representar esse novo mundo imensurável, que, na verdade, se tornou grande demais para
caber na linguagem verbal, o romancista refugia-se no silêncio. É pelo caminho do silêncio
que o romancista tenta abranger o novo mundo em toda sua diversidade.
O trabalho do romancista equivale, portanto, ao trabalho de um artesão que com
persistência, dedicação e dotado de precisão e rigor técnico experimenta ao máximo a sua arte
e recria a linguagem a partir de fragmentos. Tornando a linguagem cada vez mais
significativa, cada vez mais eloquente. Sem se deixar seduzir pelo furor da multiplicidade de
linguagens, o romancista empreende a incrível tarefa de transformar a realidade em signo,
porém consciente da impossibilidade da representação da liberdade humana a partir do signo
linguístico. E diante desse caos sígnico que se encontra o romancista, o silêncio apresenta-se
como o signo ideal para a forma romanesca. O que se pode presumir é que o romancista reúne
e arranja artisticamente esses fragmentos de linguagem regados de silêncio que vem
harmoniosamente, em fim, compor a forma do romance.
Forma e conteúdo, assim, são atravessados por uma série de silêncios e hiatos na
narrativa com funções múltiplas e significados distintos que serão tratados mais adiante.
Ambos, no entanto, sintetizam a percepção de uma comunicação imperfeita e dilacerada e que
requer silêncio para poder forjar a representação de uma realidade complexa, dinâmica que
está em permanente transformação. Em relação à linguagem romanesca, forma e o conteúdo
são produtos históricos que representam um determinado momento e que, portanto, também
registram uma força dinâmica complexa. A crescente presença do silêncio na forma
romanesca é um indício de que o romance também se transforma e que cada vez mais
necessita não só da palavra, mas especialmente do silêncio para existir.
Embora a forma, muitas vezes, não acompanhe as transformações de conteúdo, pois
mais lentamente se transforma e se ajusta à nova realidade social, é inegável que a forma do
romance contemporâneo manifesta uma estrutura mais compatível com a mudança no
77
paradigma ideológico e social. Sem dúvida, a forma do romance está cada vez mais impactada
pela velocidade, pela dinamicidade e pela imprevisibilidade das estruturas sociais. A forma do
romance adquire novos contornos e reveste-se de silêncio para poder significar em um mundo
cada vez mais carente de silêncio.
Além de sua expressiva manifestação na estrutura narrativa, na medida em que
desempenha um papel primordial para a configuração do gênero literário, o silêncio desperta
fascínio no sentido de que ele permanece refratário. Eis que o poder encantatório dos silêncios
na forma do romance fundamenta-se no fato de os silêncios conterem uma imensa variedade
de sentidos irrefreáveis que permitem que a pluralidade e dinamicidade do mundo burguês
contemporâneo continuem sendo representadas na forma desse gênero literário. Pois, o
silêncio, plausivelmente, indica que não há um limite do que pode ser dito, que o silêncio é
um anúncio de uma realidade impensável que jamais poderia ser assegurada em sua
completude. “Porque nem sempre haverá palavra adequada para dar conta de uma
experiência, porque nem tudo é passível de ser expresso, há interstícios que não alcançamos
por meio da linguagem, entrelinhas que se sobrepõem às linhas” (PEREIRA JÚNIOR, 2007,
p. 49). E sendo o romance o veículo de expressão de uma era para o qual a totalidade e a
completude configuram uma visão infactível, o silêncio surge como seu principal vetor.
Então, sem o silêncio o romance não existiria.
E é precisamente esta a visão de Georg Lukács, proposta em sua obra referencial A
teoria do Romance (2006), perpassada pela ideia de que o romance é um produto típico do
mundo burguês. Consequentemente, essa forma de expressão literária reflete o novo
paradigma ideológico e social marcado pela fragmentariedade de suas estruturas. Apesar de
todo o conhecimento acumulado pela sociedade burguesa, o homem do romance ainda não é
capaz de apreender toda a dimensão que configura sua realidade e os elementos que, na sua
totalidade, determinam as formas do romance na atualidade. Pois a civilização burguesa
fragmentou-se e com ela surgiu uma imensa pluralidade de experiências que se torna, em
última instância, impossível para o leitor se identificar com elas, tornando-se imperativa a
presença do silêncio para as formas desse gênero literário. De tal forma que o leitor se
encontra e se identifica nas fendas e nos silêncios do romance.
2.2 A forma do romance: silêncios
78
Influenciado, sobretudo, pelos escritos de Georg Hegel, Georg Lukács (2006) inicia
sua discussão do romance a partir de gêneros clássicos, sendo eles; a tragédia e a epopeia –
esta última da qual o romance é decorrente, conforme o autor. O percurso empreendido por
Georg Lukács (2006) consiste em entender o romance através de sua forma e sua história
transcendental. O estudioso ao contrapor a grande épica com a epopeia moderna, evidência
uma série de características primordiais no gênero romanesco que traduzem, no seu entender,
uma crise.
Ao afirmar que no mundo helênico – pautado pelo equilíbrio perfeito entre matéria e
substância, homem e mundo, onde tudo era conhecido e pleno – a existência se fazia essência,
cada realização na existência do herói da epopeia sintetizava sua essência. Nesse mundo
governado pelos deuses tudo estava pré-estabelecido. A cultura fechada, o equilíbrio e a
segurança – dos quais fazia parte o herói helênico – deixaram de existir. A epopeia também
foi destronada para dar lugar a uma nova forma de expressão literária mais compatível com a
nova realidade conturbada, caótica e plural: o romance.
Diferentemente do modelo clássico, o romance está inserido em um mundo
fragmentado. A distância entre existência e essência não pode ser mais suprida. Enquanto que
o herói da epopeia constitui sua essência a partir de sua existência, o herói romanesco, que
nada mais tem de heroico – pois está estabelecido no seio da vida quotidiana, recolhido em
sua própria individualidade –, converte-se em um herói problemático. O herói do romance,
para Georg Lukács (2006), é cindido com o próprio mundo e busca constantemente restaurar
a imanência do sentido à vida. Confrontado com a própria realidade, refugia-se na
subjetividade e, a partir dela, procura resignificar o seu mundo. A questão primordial, que se
coloca em relação ao herói problemático, é que ele jamais conseguirá redimir a cisão existente
entre o eu e o mundo, pois ele se opõe ao seu próprio mundo. Surge daí o problema da forma
do romance. De fato,
Nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico
em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido
positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. Pois, totalidade como prius
formador de todo fenômeno individual, significa que algo fechado pode ser
perfeito [...] A totalidade do ser só é possível quando tudo já é homogêneo,
antes de ser envolvido pelas formas quando as formas não são uma coerção,
mas somente conscientização [...] (LUKÁCS, 2006, p. 31).
É incontestável que a totalidade espontânea do ser é inconcebível na medida em que a
noção de unidade e de uma linguagem totalizante se esvaneceu. O mundo do qual o romance é
79
decorrente é repleto de mundividências que abalam sua forma. A saturação da nova realidade
sobrecarregou as formas do romance e o romancista se vê diante de uma realidade plural e
completamente estilhaçada e, em certa medida, irrealizável. De tal maneira, o romance
moderno promove maior fragmentação das estruturas narrativas, tornando mais patente a
presença do silêncio que vem preencher de sentidos as fendas da forma romanesca. Portanto,
nessa linha de raciocínio, a forma do romance cumpriria um papel coercitivo, limitador e
restritivo. Ao contrastar a grande épica com o romance, Georg Lukács afirma:
Ora, esse exagero da substancialidade da arte tem também de lhe onerar e
sobrecarregar as formas: elas próprias têm de produzir tudo o que até então
era um dado simplesmente aceito; antes, portanto, que sua própria eficácia
apriorística possa ter início, elas têm de obter por força própria suas
condições o objeto e o mundo circundante. Uma totalidade simplesmente
aceita não é mais dada às formas: eis porque elas têm de estreitar e
volatilizar aquilo que configuram, a ponto de poder sustentá-lo, ou são
compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidade de realizar seu
objeto necessário e a nulidade intrínseca do único objeto possível,
introduzindo assim no mundo das formas a fragmentariedade da estrutura do
mundo. (LUKÁCS, 2006, p. 36).
Postulado que o romance é inteiramente marcado pela fragmentariedade e
“insuficiência” e que as formas do gênero vem cumprir um papel essencial, no sentido de que
a apropriação do objeto e do mundo se dá pela forma, há nele, necessariamente, a marca do
silêncio, pois em conformidade com a proposta de Eni Orlandi (2007), o silêncio está muito
mais evidente, pois ele reage às múltiplas linguagens e significa. Indiferente às circunstâncias,
o silêncio sempre irá significar. Então, não há forma que seja capaz de conter o absoluto. Em
contrapartida, Santiago Kovadloff (2003) defende que: “Toda formalização é uma imposição
de limites que segmenta o absoluto. Mas, por sua vez, neste segmento chamado forma, o
ausente – o absoluto em questão – se faz evidente ao menos como falta. É aquilo que se nota
como ausência” (KOVADLOFF, 2003, p. 144). Não obstante, é válido propor que o mundo
das formas não é apenas coercitivo ou que a forma apenas detém e aprisiona o silêncio.
Ao contrário, a forma torna-se uma experiência obstinada do romancista em recobrar a
totalidade perdida. Pode-se entender que o silêncio, nesse sentido, também é dado pela forma.
As formas são o limiar do silêncio. Através do silêncio contido nela, o romancista busca
transcender os significados (KOVADLOFF, 2003). Definitivamente, o silêncio na forma do
romance não decorre da incomunicabilidade apenas. O silêncio não é para o romance senão
outra instância de significação repleta de sentidos vivos, cuja potência significativa jamais
80
poderá ser absolutamente apreendida. Além de ser um indício do silêncio, a forma do
romance é, indiretamente, uma referência a ele.
Também sobre a forma do romance, Ferenc Fehér (1972), discípulo de Georg Lukács,
viabiliza uma nova maneira de entender como o romance na modernidade trabalha com a
fragmentariedade partindo de uma perspectiva sociológica. Ao contrário de seu mestre,
Ferenc Fehér (1972) rejeita a tese de que A teoria do romance propõe a epopeia como
superior à forma literária burguesa enquanto que, ao mesmo tempo, decreta a esta o seu fim.
Em seu livro intitulado O romance está morrendo? (1972), o filósofo e estudioso húngaro da
Escola de Budapeste, defende o romance enquanto gênero e postula que a fragmentariedade
dele é indício de sua plasticidade.
E podemos resumir deste modo a constatação final antecipada de nossa
análise: com sua ‘informidade’, seu prosaísmo, seu caráter não-canônico, o
romance não ocupa uma lugar inferior nesta escala de valores das formas
artísticas estabelecida a propósito da substancialidade humana. (FEHÉR,
1972, p. 10).
O romance, consonante Ferenc Fehér (1972, p. 10) “é uma expressão adequada de sua
época, que serve à autoexpressão da sociedade burguesa”. Isso significa que o romance está
ajustado à essência de uma sociedade que é puramente social, que experimenta. O progresso
caótico, a evolução desigual, a emancipação humana, a fragmentação das instituições e o
desagregamento da família e que projeta tudo isso em suas formas sob a regência do silêncio.
O autor também acredita que o romance está em posse de uma liberdade inimaginável e tal
emancipação garante ao romance uma orientação para o futuro, ou seja, o romance está em
plena evolução.
Deste modo, o romance exprime uma etapa de emancipação do homem não
somente em seu ‘conteúdo’, isto é, nas noções coletivas estruturadas por suas
categorias, mas também em seu ‘continente’, a forma. Essa forma do
romance não poderia aparecer sem o surgimento das categorias de sociedade
‘puramente social’; ora o nascimento desta sociedade significa um
enriquecimento, mesmo levando em conta sua evolução desigual. [...] O
romance não é problemático, é ambivalente. Entendemos por esta distinção
que o conjunto de suas estruturas comporta, em parte, traços que derivam do
mimetismo da construção de uma ‘sociedade social’ concreta (o capitalismo
no qual se enraíza) e, por outro lado traços que caracterizam todas as
sociedades desta espécie (FEHÉR, 1972, p. 11- 12).
Entende-se aqui que a liberdade da qual Ferenc Fehér (1972) propõe em seu magnífico
ensaio é concedida e consolidada pelo silêncio e que a fragmentariedade, as lacunas, o
estilhaçamento das estruturas narrativas por onde os silêncios entretecem-se então, não dão
81
sinais do fim do romance, mas garantem-lhe liberdade plena na forma e liberdade plena para
construção dos sentidos. E o que é especificamente próprio do romance é ter uma
correspondência formal e estrutural compatível com a realidade do mundo o qual ele
representa que é em si fragmentado e, por conseguinte, assaltado por uma profusão de
linguagens ineficientes e inexpressivas, diante do potencial significativo do silêncio. Nada
mais natural à forma do romance contemporâneo do que acomodar, portanto, esse princípio
transformador que no meio do clamor de uma multidão de vozes, signos ou linguagens
ineficazes convoca o silêncio para se libertar.
O romance, dessa maneira, é produto de uma sociedade puramente social ambivalente
e está em constante transformação, mantendo, no entanto, as características primordiais da
épica (FEHÉR, 1972). O romance leva ao conhecimento de seu leitor o máximo de
possibilidades de humanização que essa sociedade é capaz de absorver. Imaginar a
transformação das formas épicas e pensar como o romance conseguiu sobreviver ao longo dos
anos em uma sociedade marcada pela fragmentação da ordem social, pelo desenvolvimento
caótico da técnica, pelo estilhaçamento do “eu”, das instituições – enfim, do mundo, significa
levar em consideração o silêncio presente na forma como elemento imprescindível à
construção romanesca, uma vez que o silêncio não trata de um paradoxo ou um empecilho ao
escritor, mas um recurso inestimável para a representação dessa sociedade pautada pelo
movimento ininterrupto e perseverante da linguagem.
Não há dúvida de que o romance está em constante evolução. Dito isto, deve-se
entender que o silêncio, em certa medida, está contido nessa linha evolutiva; quando se
evidencia a fragmentação da narrativa, a intensificação da subjetividade, o recolhimento no
“eu” da personagem, bem como as dinâmicas de adaptação do romance, tais como: na criação
de uma meio artificial, na humanização do espaço humano, mostrando que as instituições são
apenas humanas, e no desagregamento do caráter público do homem do romance.
Essas são as dinâmicas que, na sociedade moderna, se valem os romancistas em seu
intento para a representação de uma sociedade, que segundo Ferenc Fehér (1972), é
puramente social. Diante de tudo isso, os romancistas se obrigaram a reconfigurar as técnicas
de composição do romance buscando, através de novos experimentos formais, abarcar o novo
mundo e expressar o ideal da sociedade burguesa, bem como explorar as suas falhas e as suas
contradições. Evidencia-se nesse novo século uma narrativa ladeada de silêncios que se
instauram nas formas do romance e, cada um à sua maneira, desempenha um papel
fundamental para o conjunto da obra.
82
Em face disso se compreenderá que a realização do romance no silêncio está tanto
mais ligada à latitude de suas formas, quanto à possibilidade de seu encaminhamento além
das margens, onde não se reconhece nem o seu princípio e tampouco seu fim. Eis, portanto, o
desconhecido para onde o romance caminha, onde toda experiência inenarrável encontra o seu
meio. O romance, de tal modo, é um gênero que está em constante desdobramento e tal
afirmação confirma-se com a crescente manifestação do silêncio em suas bases.
Aprender a Rezar na Era da Técnica, nesse sentido, é um gênero prometido ao
silêncio, pois o romance está, sem dúvida, comprometido com a pluralidade e vastidão do
mundo burguês e oferece ao leitor o máximo de possibilidades de significação cuja totalidade
só os silêncios podem encerrar. Esse romance tavariano, assim, explora essa possibilidade e
lança-se à amplidão do silêncio para dar espaço às vozes que não têm mais espaço no mundo
contemporâneo.
O texto de Aprender a Rezar na Era da Técnica põe em operação uma sofisticada e
dinâmica experiência com o indizível, na medida em que torna inteligível o absurdo da
experiência humana. A palavra falada ou a palavra escrita são, de toda forma, insatisfatórias,
para a construção de um romance comprometido com o inenarrável, com o dizível e que flerta
com o absurdo necessitando assim mais de silêncio. E este se manifesta por meio de uma
linguagem despojada, porém capaz de expressar com mais sensibilidade a natureza humana,
do que uma linguagem carregada e incapaz de alcançar em profundidade a dimensão da alma
humana. A palavra, assim, mostra-se antes como impossibilidade que como alternativa de
expressão. É nesse sentido, que se crê que Aprender a Rezar na Era da Técnica tem o silêncio
como parte de procedimento literário e estético, no sentido de que esse romance desenvolve o
que se pode chamar de uma arquitetura do silêncio.
2.2.1 Aprender a Rezar na Era da Técnica: entre silêncios e ambivalências
A arquitetura do romance tavariano está empenhada em um diálogo silencioso que
intervém na forma do romance e manifesta o sempiterno silêncio que se incorpora à narrativa.
Prenhe de silêncios, o romance aspira assumir um significado transcendental às suas formas.
As formas, por sua vez, apesar de darem a ligeira impressão de que elas são coercitivas e que,
portanto, buscam conter o projeto de transcendencialidade do romance e com ele os silêncios,
muito pelo contrário, elas aliam-se aos silêncios e somam-se ao projeto do romancista no
83
sentido de recobrar uma totalidade irrecobrável e de representar um mundo irrepresentável,
fazendo falar o indizível através da forma romanesca.
Tendo isso em conta, Aprender a Rezar na Era da Técnica é um romance, aliás, que
em todos os sentidos, trabalha com o inexprimível e com o inenarrável tanto no plano
estrutural quanto no plano conteudístico. As formas desse romance se empenham em
expressar pelo silêncio aquilo que não é possível mais de ser expresso pelo domínio verbal.
Tal empreendimento resultou, talvez, em um dos mais ousados romances do século XXI,
porque esse romance encontrou na forma a liberdade da qual necessitava para comunicar uma
experiência que é, precisamente, incomunicável.
Aprender a Rezar na Era da Técnica explora os mais sombrios e recônditos anseios e
medos de uma alma atormentada pela violência e pela barbárie, tornando-se, possivelmente,
um romance do absurdo, cuja matéria prima não poderia ser outra coisa a não ser o silêncio.
Eis então o que faz com que esse romance estabeleça um equilíbrio assimétrico obtido através
do contraste entre palavra e silêncio nas suas formas. O silêncio demonstra, dessa maneira, ter
tanto peso quanto a palavra e isso se confirma na constatação das formas desse romance.
Basta averiguar a maneira como o silêncio interfere na obra e abala as formas da narrativa
tradicional.
Há, por parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica, um notável esforço de
representação do mundo e do homem pelo silêncio. Contudo, o mergulho no subjetivismo
parece destoar da realidade e ir à contramão do mundo burguês moderno. Justamente em um
contexto onde o imperativo é comunicar, pois absolutamente, tudo aquilo que demanda
silêncio profundo, recolhimento do “eu”, ou introspecção, vem sendo, gradativamente, banido
de nossas formas sociais. O autor de Aprender a Rezar na Era da Técnica tenta alcançar
aquilo que tanto o homem e o mundo têm de mais profundo; aquilo que não pode ser
verbalizado, o que não é passível de ser expresso por arte alguma sem recorrer ao silêncio.
Assim, sabe-se apenas que a palavra não basta para tal empreendimento, porque ela é
limitada e de todo modo incapaz de representar a pluralidade do mundo burguês e a
complexidade de seus agentes. Consciente disso, o escritor Gonçalo M. Tavares busca então,
na profundidade do silêncio, recursos para uma representação plena do homem e do mundo
burgueses que são, por sua natureza, extremamente complexos e plurais e, por assim dizer,
indizíveis e inexprimíveis.
Essa complexa diversidade que caracteriza o mundo burguês, no entanto, esconde-se
atrás de uma multiplicidade de linguagens e formas que, inutilmente, buscam uma
84
representação total e definitiva. Não obstante, esse fluxo interminável de discursos não
consegue conter a potencialidade do silêncio que funda a significação e instala-se nas formas
do romance suprindo no romance aquilo que falta na palavra. O romance, nesse sentido,
parece ser uma das últimas guaridas do silêncio, destacando-se, sobretudo, o silêncio que
instaura as formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica.
A técnica romanesca em Aprender a Rezar na Era da Técnica traduz o terror do
homem diante do progresso caótico da técnica e da turbulência da palavra, fazendo falar
experiências inexprimíveis e, assim, no silêncio, dá acesso a novas possibilidades de
significação que decorrem de uma nova compreensão do “eu” dilacerado pela realidade
caótica que age sobre o homem. Nesse romance o narrador joga com o efeito devastador da
cultura tecnocrática que se abate sobre a sociedade e, especialmente, sobre o indivíduo,
impondo, violentamente, um comportamento mecânico e pragmático, levando o leitor, muitas
vezes, a questionar a sua humanidade.
Ligando os fios de uma cadeia não simétrica, observando conjuntamente o caráter
ambivalente das formas do romance e evidenciando o desequilíbrio imanente da sociedade e
das personagens representadas, a trama de Aprender a Rezar na Era da Técnica alia-se ao
silêncio para encontrar a força necessária para reconstruir um mundo completamente
estilhaçado e inenarrável, pondo à mostra um homem completamente dilacerado pelas suas
estruturas. Desse modo, a interpelação da palavra e a interpelação do caos das múltiplas vozes
que se manifestam nesse romance respondem ao chamado do silêncio do gênero romanesco.
Com efeito, a obra apresenta-se carregada de silêncios que se incorporam às suas formas e
transformam as instâncias narrativas, apresentando um aspecto rígido e despojado, inspirando
silêncio desde a primeira linha e retrata com excelência a experiência humana diante do
absurdo e do horror.
Centralizado na figura de Lenz Buchmann – o filho caçula de uma família burguesa
tradicional que almeja conquistar o seu lugar no mundo, primeiramente, através do exercício
da medicina e depois através da dedicação à vida pública e à atividade política – o romance
retrata a trajetória de ascensão e de decadência de um homem adepto e promotor da cultura
tecnocrática. Sob uma malha de fragmentos, delineia-se um homem pragmático, calculista e
frio, vivendo em situações-limite que acabam expondo, paulatinamente, entre fissuras, o seu
verdadeiro eu. A sua essência é, gradativamente, revelada assim como suas experiências
primordiais também se desnudam lentamente diante do leitor a cada página, porém não
85
através de palavras, mas por meio de silêncios que habitam entre essas palavras e que cifram o
caráter inumano e desumano dessa narrativa.
Esse conjunto de experiências inexprimíveis, com as quais o romance Aprender a
Rezar na Era da Técnica parece lidar, exerce um poder incomensurável sobre toda a
narrativa, pois se percebe que todas as suas estruturas têm uma relação irrevogável, inevitável
e imprescindível com o silêncio que está atrelado ao projeto de emancipação das formas do
romance, segundo aquele proposto por Ferenc Fehér (1972). Entende-se, então, que as formas
do romance “não podem mais atingir uma realização artística de alto nível” (FÉHER, 1972, p.
15), sem recorrer ao silêncio. Daí a importância da compreensão das técnicas de composição
do romance a partir do silêncio.
É consabido que conforme se radicaliza a linguagem mais se identifica o silêncio na
forma desse romance. Procedendo dessa maneira, o autor de Aprender a Rezar na Era da
Técnica, na esteira do experimentalismo estético e formal, propõe soluções específicas
capazes de construir um romance tendo como matéria prima o silêncio e como inspiração um
mundo carente dele. Parte-se, portanto, de uma linguagem pulverizada, de um herói
dilacerado pelo horror e pelo medo, estilhaçado, cindido, especialmente, pelo seu próprio
meio para representar “a decadência do Reino humano” (TAVARES, 2008, p. 78) e tecer
algumas considerações indispensáveis sobre a natureza humana. Em uma inovadora e, talvez,
inédita operação com a linguagem, o autor de O Reino, Gonçalo M. Tavares, recusa as
limitações impostas pelas formas dos gêneros literários e deixa-se livre para poder desnudar o
mais intimo do ser apropriando-se de todos os recursos que a linguagem, inclusive que o
silêncio pode oferecer para tal, possibilitando ao leitor perceber como funciona o ser humano
além do gesto e da palavra.
Gonçalo M. Tavares, então, crê que está antes de tudo escrevendo um texto e não
propriamente um romance, pois o texto não se prende a rótulos, não se prende às formas de
um gênero em particular. Para ele, o texto é aberto e franqueável por outras vozes e outros
sentidos que não aqueles do romance tradicional. Citando suas próprias palavras: “eu nunca
penso: ‘Agora vou escrever um romance’. Eu gosto muito da palavra ‘texto’, que não tem
essa marca do gênero literário, que eu acho que é uma marca limitadora do potencial enorme
do alfabeto” (TAVARES, 2011, s/p). De fato, etimologicamente, a palavra texto que deriva
do latim, textum guarda o sentido de entrelaçamento, de tessitura, de tecido ou teia verbal, o
que remete à ideia de que o processo de escrita é mais complexo e ousado em relação às
formas usuais. Tudo sugere que Gonçalo M. Tavares recorre a múltiplas formas e múltiplos
86
textos e, especialmente, ao silêncio porque seu projeto de representação e de denúncia da
decadência do Reino humano é grande demais para a palavra e grande demais para as formas
tradicionais do gênero romanesco. Por isso, o que parece é que esse autor busca transcender as
formas do romance tradicional e nessa busca se encontra com o silêncio.
Pela sua ruptura inevitável com as formas do romance tradicional, Aprender a Rezar
na Era da Técnica tem uma relação especial com o silêncio que opera na linguagem.
Desconstrói-se, assim, por meio do silêncio que se incorpora às formas do romance tavariano,
a lógica perversa e alienante do sistema representado na epopeia burguesa bem como o culto à
cultura tecnocrática. Ora, se a missão funcional do romance de Gonçalo M. Tavares, Aprender
a Rezar na Era da Técnica, é de destruir a tranquilidade contemplativa, por meio da forma,
essa ideia coincide com a afirmação de Ferenc Fehér (1972, p. 82) de que no romance se
“rompe a harmonia passiva e, desse modo, sustenta o progresso humano”. Com efeito, em
Aprender a Rezar na Era da Técnica constata-se essa ruptura, e tanto progresso quanto
emancipação estão assegurados.
O ponto de partida para confirmação dessa afirmação consiste em perceber que, forma
e o conteúdo confluem em uma impressionante unidade capaz de representar, em ambos os
níveis, a maneira pela qual a personagem protagonista lida com a realidade e as pessoas ao
seu redor, além de que, a organização interna do romance reflete tanto a obsessão de Lenz
Buchmann, pela precisão e técnica, quanto o desdobramento da personagem na ordem natural
da vida. Aliás, essas duas palavras, precisão e técnica, vibram ao longo da obra como um
mote contendo toda verdade do mundo onde as personagens estão inseridas e configura a
maneira pela qual a personagem protagonista reage ao silêncio. Essa relação, inclusive, pode
ser detectada claramente no plano formal.
Fruto de uma visão profunda sobre a crise da representação do mundo burguês e do
dilaceramento do “eu” da personagem, a tônica do romance tavariano é excepcionalmente
marcada por fragmentação e enormes lacunas, especialmente no que diz respeito à divisão do
romance entre as três partes, Força, Doença e Morte que se instalam entre silêncios.
Na maioria dos casos, a crise conduziu a um impasse acompanhado por uma
transformação perfeitamente amorfa da forma original; em outros alimentou
iniciativas que representaram, conjuntamente, a recriação específica de
vastas possibilidades antigas da forma e inovações indo além do gênero
épico da primeira ‘sociedade social. (FEHÉR, 1972, p. 14).
Essas iniciativas encontraram alento nas formas de Aprender a Rezar na Era da
Técnica. O que se percebe é que há certa progressão do silêncio nas formas desse romance. E
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essa constatação está expressa tanto no plano estrutural do próprio capítulo como na forma de
intervenção do silêncio na narrativa. Isso quer dizer que as técnicas de apropriação e de
representação do silêncio são dinâmicas e ao longo da obra movem-se e enriquecem as formas
do romance. É preciso reconhecer que, portanto, o silêncio cumpre um papel fundamental no
que diz respeito às ambivalências feherianas do romance. O silêncio tem engendrado
dinamicidade, possibilidades de leitura múltiplas, o que justifica de tal modo o seu caráter
ambivalente. E, acima de tudo, o silêncio tem possibilitado um caráter renovador e libertário
para as formas do romance.
Enfim, tendo isso em conta no romance, o herói é a primeira instância a demonstrar
esse “acréscimo de emancipação” (FEHÉR, 1972, p. 14). E em Aprender a Rezar na Era da
Técnica, Lenz Buchmann corresponde em todos os sentidos a essa aspiração de liberdade.
Lenz Buchmann é um herói que luta por si. As suas ações não são “diretamente dadas,
assimiláveis, utilizáveis”, (FEHÉR, 1972, p. 15), mas ainda assim, o herói desse romance
tavariano é, geralmente, representado em situações que exigem o máximo de si e pelos seus
próprios meios supera os obstáculos e as adversidades de seu mundo. Entretanto, ele não age
segundo vontades superiores. Lenz age segundo os seus próprios desígnios.
O herói do romance é um herói solitário, um homem sem a companhia dos deuses ou
de Deus, o homem individual que se faz sozinho. O homem desse romance tavariano
experimenta o silêncio de Deus referido por Santiago Kovadloff. “Não há dúvida alguma de
que Ranke não tinha razão: todas as épocas não são igualmente próximas de Deus” (FEHÉR,
1972, p. 11). O papel de Lenz Buchmann homologa essa afirmação. Lenz rejeita qualquer
noção da existência de Deus ou de que Deus tem controle sobre sua vida em absoluto. Lenz
crê estar no controle “avançava assim lentamente, com passos decididos, transmitindo a
informação de que domina a situação [...]” (TAVARES, 2008, p. 225). E sua convicção sobre
tal ideia sustenta-se no fato de que ele, antes de cada passo, calcula, avalia, mede precisa e
sistematicamente suas atitudes.
Orientado por uma visão pragmática e calculista, “Lenz não tinha ilusões acerca da
terra que pisava: havia entre a natureza e o homem um ponto de ruptura que há muito fora
ultrapassado [...] Lenz não confiava na natureza” (TAVARES, 2008, p. 46). O equilíbrio
imanente existente entre homem e natureza na épica clássica agora, no romance e observado
em Lenz, parece irreconciliável. Ao contrário, Lenz confiava apenas em si mesmo e no
domínio que ele tem da técnica. Os artifícios humanos são os únicos que ele reconhece como
88
genuínos para realizar os seus propósitos. Para Lenz não há destino tampouco sorte, há apenas
vontade, atitude, precisão e domínio da técnica.
O entendimento de que existe algo além do alcance de Lenz é simplesmente
perturbador para ele. Lenz rechaça ao longo de todo o romance a ideia de Deus, pois nada
pode estar além do seu controle. Muito embora, no final do romance ele questione novamente
a possibilidade de ele estar no controle total da situação. Mas “desde cedo se apercebera que o
sistema de crédito que a cidade havia criado ao redor de Deus começava a esgotar-se”
(TAVARES, 2008, p. 207). A figura de Deus não se fazia presente para Lenz. Em outras
palavras, a voz de Deus, para Lenz, não se apresenta, ela não é apreciável, ela não é
discernível em meio à multidão de vozes que o rodeia. Pelo exposto verifica-se que a voz de
Deus está no silêncio. Nessa obra, a voz de Deus não abandona o silêncio. Ela não se
verbaliza no romance e Lenz, em um primeiro momento, não está disposto a buscar no
silêncio a voz de Deus, por isso há o que se pode chamar de “ausência”. Muito embora, tal
“ausência” não represente um vazio em absoluto. Na seguinte passagem, por exemplo, o herói
questiona, portanto, a necessidade de Deus, já que Deus está “ausente” e que a sua voz não se
apresenta a ele.
Claro que afundar ou eliminar o Espírito Santo que alguém, sem autorização,
colocara no seu organismo, não era fácil quanto a decisão de nunca mais
entrar numa igreja. É que no fundo se tratava de um mecanismo concreto
debaixo de um nome sugestivo: o Espírito Santo fora transformado pelos
filósofos da Igreja numa espécie de proteína da fraternidade, proteína não
humana, pelo contrário, feita de uma outra substância, de uma outra
qualidade, feito de um raciocínio perfeitamente humilhante para os humanos,
mas que estes, pensava Lenz, estupidamente agradeciam com sorrisos vagos.
O que em ti é mais digno, não te pertence, tinha dito a Igreja, com a
invenção desse espírito não humano que Frederich Buchmann dizia ocupar
um espaço onde antes nada faltava. O Espírito Santo era um excesso, uma
substância especializada numa substância que não era indispensável a sua
existência. (TAVARES, 2008, p. 165).
Segundo Lenz, Deus é acessório e, portanto, desnecessário; um excesso. A ideia de
Deus é relegada a um segundo plano. A mera menção a Deus revolta a Lenz que compara o
sinal da cruz a um “gesto do dono do boi” (TAVARES, 2008, p. 143) marcando o rebanho
para conduzi-lo; privá-lo da liberdade. A presença de Deus aniquila a liberdade que Lenz
tanto almeja. A “ausência” de Deus, ou melhor, a presença de Deus no silêncio, nesse sentido,
possibilita a liberdade apreciada e desejada então pelo herói desse romance.
Lenz, por sua vez, passa quase toda a sua existência recusando o silêncio, recusando
ouvir o que o silêncio tem a dizer e opondo-se, por conseguinte, ao silêncio de Deus. Então,
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de certa forma, o Gottverlassenheit (o abandono de Deus) na forma do romance, não se dá de
maneira absoluta. O romance não expulsou Deus de suas formas, mas o destinou ao silêncio.
A sociedade puramente social, não obstante, expulsou Deus de suas estruturas e daí decorreu
um imenso vácuo onde o silêncio acomodou-se, o que possibilitou, de fato, uma liberdade
incomensurável, no que diz respeito às ações do herói. Entretanto, como se verá esse silêncio
não implica ausência, porém conteúdo; sentido pleno.
Lenz, na primeira parte da narrativa, procura reafirmar essa liberdade por meio da
exclusão completa da figura de Deus. No subcapítulo intitulado “Os pés na Igreja”, lê-se o
seguinte: “[...] ficara-lhe a noção clara de que matar os vestígios do Espírito Santo que
existem no corpo de cada um era o inicio de uma existência [...]” (TAVARES, 2008, p. 164).
Uma existência que implica liberdade total e abandono de zonas neutrais. Apagar os vestígios
de Deus e alcançar finalmente a liberdade. “Claro que afundar ou eliminar o Espírito Santo
que alguém, sem autorização, colocara em seu organismo, não era tão fácil quanto a decisão
de nunca mais entrar em uma igreja” (TAVARES, 2008, p. 165). Observa-se, nitidamente,
nessa passagem, que Lenz se sente violado com a presença “sem autorização” do Espírito
Santo. Excluí-Lo, em princípio, é, pois uma libertação. Deixá-Lo é uma violação a sua
liberdade, um impedimento à emancipação humana. Fica nítido, portanto, que o herói nesse
romance rejeita o poder da divindade, mas a sua rejeição não implica que Deus está
completamente excluído, pois a própria personagem admite a dificuldade de excluir a figura
de Deus em caráter absoluto.
O Gottverlassenheit na forma do romance não se dá de forma concreta. A voz de Deus
manifesta-se no silêncio do romance. Em certa passagem de Aprender a Rezar na Era da
Técnica, Lenz está a olhar por uma janela e admirar a multidão que passa. Nesse momento de
silêncio e contemplação o narrador explica:
E Lenz sentiu-se aquele momento novamente observado. Viu-se como o
padre que abençoa ou perdoa, de modo magnânimo, uma multidão de
crentes, mas que agora tem, atrás de si, sem se aperceber, um outro homem
que o abençoa e perdoa; e este homem tem ainda outro atrás de si, e este
outro ainda um outro; e assim até ao fim dos dias e do espaço numa linha
que coincidia com a sucessão das gerações que haviam antecedido e o
haveriam de seguir. Alguém fará sobre ti o gesto da cruz, pensou Lenz, e a
imagem concreta deste pensamento de novo o revoltou. (TAVARES, 2008,
p. 142-3).
Esse gesto infinito, como se pode perceber ao final da citação, insinua a presença de
Deus que se mostra, consequentemente, inevitável, já que se trata de algo que perdurará “até
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ao fim dos dias e do espaço” como algo que escapa à condição humana e que excede o âmbito
do enunciável, pois traz consigo a marca do indizível. Segundo, Santiago Kovadloff (2003,
p.102) “o infinito consigna o caráter inesgotável da sucessão” que “coincidia com a sucessão
das gerações” (TAVARES, 2008, p. 142) sugerindo, assim, um movimento possível e
sugerindo a presença de Deus como parte desse movimento. Santiago Kovadloff (2003, p.
107) também supõe que “o infinito só prospera onde prospera a formalização [...]”. E é, pois,
essa forma que só se realiza no silêncio, no infinito silêncio que se converge a presença de
Deus nas formas do romance.
O Gottverlassenheit absoluto é o silêncio de uma ausência originária, o silêncio sem
atributos e sem forma, ou seja, “o campo do impossível; o insondável campo do impossível”
(KOVADLOFF, 2003, p. 102). Quer dizer, onde o infinito não é possível. Onde a presença de
Deus é nula, pois “nada falta a Deus, ou, em todo caso, lhe falta nada, que é, justamente, o
que sobra ao zero. Conceito de Deus conota capacidade de conter, de contenção, de conteúdo”
(KOVADLOFF, 2003, p. 105). A progressão aludida pela personagem não se confunde com o
vazio, mas com esse silêncio repleto de conteúdo que a apavora e a angustia. Esse silêncio se
constitui enquanto presença e não enquanto falta. Trata-se de um silêncio infinito inteiramente
significativo que reflete a incompletude do “eu”.
Após a morte de seu irmão, Lenz vai à biblioteca dele recolher os livros que haviam
pertencido a seu pai. Naquele momento, Lenz sentia-se realizado, pois estava diante de um
legado só seu e que de alguma forma também representava a força da família Buchmann. A
morte de Albert Buchmann, definitivamente, representava outro nível de libertação para Lenz
Buchmann – ele tornara-se, finalmente, o último Buchmann. “Lenz podia utilizar em
exclusivo o nome que publicamente apresentava o sangue forte de onde nascera”
(TAVARES, 2008, p. 92). Lenz, assim, parecia portador de uma liberdade incomensurável,
porque não estava ligado a mais ninguém e a mais nada; o seu nome era todo seu e só a si
pertencia.
No entanto, durante a tarefa de separação dos livros, ou como ele preferia chamar,
distinguir “o trigo do joio” (TAVARES, 2008, p. 127), Lenz sente-se incomodado por outra
presença. “Poderia sorrir assim, não tinha espectadores, senão Deus, e neste ele desconfiava
da competência de observador. Algo não funcionava nesse Deus. Uma espécie de totalidade
incompleta [...]” (TAVARES, 2008, p. 128). Essa “totalidade incompleta”, a qual se refere
Lenz, corresponde em grande medida à incompletude da personagem. A respeito do
“observador” que Lenz “desconfiava” de sua presença, pois este nada mais é senão uma figura
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silenciosa que nada fala, que não intervém e que se deixa perceber enquanto silêncio, reafirma
a noção de incompletude que caracteriza o homem burguês. E é justamente na biblioteca um
espaço de culto à palavra e ao signo e em um momento em que a personagem está
enaltecendo os livros que a fortalecem é que Lenz é confrontado com o silêncio.
Há também um silêncio místico que assola Lenz e o persegue, inclusive na hora de sua
morte. Esse silêncio reascende a presença de Deus nas formas do romance. Trata-se de um
silêncio que carece de forma, mas um silêncio de outra natureza que não é o silêncio
primordial que se caracteriza enquanto ausência. Esse silêncio que também é uma potência se
manifesta na qualidade de presença e de sentido; enquanto presença encaminha-se em direção
à voz de Deus que se refugiou no silêncio das formas do romance, esse “silêncio habitado
pela presença de Deus é o inefável” (LE BRETON, 1999, p. 199) e enquanto sentido, “o
silêncio torna-se então a maneira menos desajeitada de preservar a imensidão de sentido” (LE
BRETON, 1999, p. 199), possibilitando, de tal forma, a emancipação do homem viabilizando
a pluralidade de ações do herói.
O silêncio assinala a sua presença com extraordinária pujança. De dentro do silêncio,
Lenz ouve chamarem o seu nome e é no silêncio que Lenz entrega sua vida. O silêncio da voz
de Deus – que em um primeiro momento é angustiante e parece transtorná-lo – conforta Lenz
em seus últimos momentos. Ao final da vida, percebe-se que o herói procura cada vez mais no
silêncio algum Deus; o herói que passa grande parte de sua existência combativo e hostil ao
silêncio, na verdade, pouco antes de sua morte se rende ao poder encantatório do silêncio. Na
última cena do romance, Lenz agoniza sozinho em seu quarto e ele experimenta o silêncio
como nunca havia feito antes.
Estava, pois, só: Lenz Buchmann, deixado para trás, sozinho, com seus
olhos. A luz, essa não parava de o chamar. Queria sentir ódio, mas não
conseguia. Ela tranquilizava e chamava-o. Depois talvez tenha existido uma
pausa e de novo da televisão veio uma luz forte que o chamou pelo nome. E
agora ele foi; deixou-se ir. (TAVARES, 2008, p. 356).
O fato de estar só reforça a ideia de ambiente quieto e sereno, acentuando a presença
do silêncio. Conforme Lenz perde forças, o silêncio se fortalece. Todavia, o silêncio se
fortalece não a partir da fraqueza da personagem, mas devido à sua força interior e sua
capacidade de entregar-se ao silêncio. Então nesse quarto onde está o leito de morte de Lenz,
o silêncio parece reinar. Nesse ponto, o silêncio demonstra ser a última instância para se
referir a Deus plenamente. David Le Breton (1999, p. 199) afirma que “Deus está além das
palavras ou do pensamento [...]”. É no silêncio, portanto, que o homem encontra-se com
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Deus. Assim, o reino de silêncio que se estabelece em seu quarto não é um silêncio vazio ou
um vácuo, mas se trata de um silêncio pleno de significado e possibilidade de ascese.
Conteúdo, substância, essência é o que caracteriza o silêncio que se instala ao redor de
Lenz antes da morte. Esse rico silêncio chama insistentemente pelo seu nome três vezes. O
silêncio paradoxalmente chama, não com palavras, mas com sentido pleno. “E, aliás, o que
estava a acontecer agradava-lhe; da televisão vinha uma tranquilidade nada habitual”
(TAVARES, 2008, p. 355). A tranquilidade que emana da televisão chama pelo nome de
Lenz. É interessante perceber que a tranquilidade emana de um aparelho que é transmissor de
múltiplas linguagens, de sons e de imagens. Mas: “Não havia qualquer som e, de qualquer
maneira, estava tão concentrado naquela luz que mesmo que alguém, do interior da casa,
gritasse, ele não ouviria” (TAVARES, 2008, p. 355). Nesse momento o tempo desacelera e
tanto leitor quanto personagem parecem ser transportados para outro plano; um plano onde o
silêncio impera e os elementos da técnica ao invés de produzirem ruído, somam-se ao
silêncio.
O último chamado do e no silêncio é marcado por uma pausa, outra modalidade de
silêncio. Uma pausa, porém, que não é uma ausência. Essa pausa está no âmbito do
explicável; caracterização da linguagem. A bem dizer, essa pausa circunscreve o silêncio
fundante. Muito embora, independente da modalidade que se apresenta, percebe-se que o
silêncio encarna na personagem e se inscreve nela assim como se inscreve nas formas do
romance.
O silêncio, nessa cena final, confirma, além de tudo, o caráter dinâmico e excelso do
silêncio nas formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica. O silêncio de antes da morte não
assusta e não perturba Lenz. Na verdade, esse longo silêncio, conforme aponta o narrador,
tranquiliza-o. E enquanto o tranquiliza, chama-o. Esse poder encantatório do silêncio fascina
Lenz, pois ele simplesmente se rende ao seu poder e se deixa ir. Encaminha-se para o silêncio
da morte, que é plena expressividade por onde a voz de Deus se manifesta. Afinal, o silêncio é
o meio pelo qual Deus e homem se encontram. O romance, assim, não excluiu Deus de suas
formas, mas reserva Deus ao silêncio. Apartado de Deus pela profusão ruidosa de múltiplas
linguagens, o herói do romance encontra no silêncio a possibilidade de transgredir os limites
de seu mundo e de superar as fronteiras limitadoras das sociedades naturais.
O isolamento transcendental do herói, em parte caracterizado pelo Gottverlassenheit
ou o “abandono” de Deus parcial das formas do romance acentua-se também no sentido do
herói do romance fundar seu próprio mundo e se entregar a seu próprio individualismo e
93
fundar em torno de si um imenso silêncio. E, por isso, conforme aponta Ferenc Fehér (1972,
p. 19) “[...] o homem do romance, suporta cada vez menos [...] os poderes dominantes do
universo [...]”. Lenz, por exemplo, está ciente de que em seu próprio universo só se pode
recorrer a ele mesmo. Como se pode constatar na obra: “Lenz era já o famoso portador dessa
mão direita que destrói para depois construir à sua maneira” (TAVARES, 2008, p. 205).
Destaca-se a expressão utilizada pelo narrador “construir à sua maneira” como imagem de
vontade, de força e, sobretudo, de liberdade.
Assim, Lenz edifica o seu mundo e constrói para si os seus dias. Lenz isola-se e reduz
os outros ao silêncio e instaura sua própria linguagem e o seu próprio regime de silêncio.
Lenz impõe, por meio do hábil domínio do silêncio, o silenciamento. Edifica o seu mundo
edificando a sua própria linguagem com seu próprio turno de silêncio. No tocante a essa
questão, o narrador afirma: “Lenz Buchmann gostava de estar vivo, orgulhava-se mesmo do
modo violento e não negociado de tomar posse dos seus dias e até dos dias dos outros [...]”
(TAVARES, 2008, p. 182). Acentua-se o individualismo da personagem e demonstra a busca
por emancipação e liberdade. “Lenz Buchmann exigia, cada vez mais, a presença dessa
liberdade excitante [...]” (TAVARES, 2008, p. 233). Liberdade plena capaz de transpor
qualquer obstáculo pela não negociação e pela falta de palavra, o que implica o aniquilamento
de outras liberdades e de outras vozes. Recorre-se ao apagamento e ao silenciamento a partir
do “modo violento” de impor sobre si e sobre os outros certos sentidos.
Fica evidente, então, o monopólio da palavra que aniquila a palavra do outro, a partir
de uma linguagem autossuficiente que se alimenta de silêncio e silenciamento. Naturalmente,
a emancipação proporcionada pelo silêncio nas formas do romance confere ao herói certo
empoderamento e com isso a tirania. A partir do silenciamento, Lenz constrói um mundo todo
seu a contrafeito, onde ele rege os sentidos. Evidentemente, o universo criado pelo herói de
uma sociedade puramente social corresponde em todos os sentidos à gama de valores dessa
sociedade.
A técnica romanesca em jogo em Aprender a Rezar na Era da Técnica, a fim de
corresponder aos valores morais da sociedade burguesa recria, portanto, todos os sistemas de
valores e os processos de produção burgueses. Admirado e respeitado pelos colegas de
trabalho, Lenz – o médico na Era da Técnica –, no terceiro capítulo da primeira parte da
narrativa, é visto em ação por seus colegas. De fato, este é um dos raros momentos em que é
registrado o doutor Lenz Buchmann exercendo sua atividade profissional.
94
O registro do trabalho e de outras atividades práticas que satisfazem às necessidades
do quotidiano é gradativamente banido do romance. Essas atividades impregnam-se de tal
modo na forma romanesca que se tornam cada vez mais etéreas. Assim, logo que Lenz se
converte em um renomado político do Reino, a personagem já não é mais retratada exercendo
atividade alguma. A atividade concreta desaparece e em seu lugar há mais espaço para a
abstração e para a exploração de caminhos não verbalizáveis.
Mas a cena a seguir ainda retrata um homem de capacidades extraordinárias
desenvolvendo, com muita técnica e habilidade o seu ofício, porém, entrecortado por silêncios
e marcado por divagações. O silêncio, mesmo em momento que Lenz exerce sua atividade
profissional, permeia as suas formas.
O Dr. Lenz é recebido por duas enfermeiras solícitas à entrada da sala de
operações. O médico na Era da Técnica é encarado como um habilidoso
condutor de automóveis [...] Lenz é cirurgião, o Dr. Lenz B., e sua
habilidade contida, concentrada na sua mão direita, bem apoiada por uma
mão esquerda que faz de observador especializado, ganhou fama em poucos
anos. A sua mão direita tem uma aura, uma cintilação não científica um dedo
suplementar, digamos, dedo invisível que dá o toque último que nos casos
extremos salva. O Dr. B. já salvou muitos homens e muitas mulheres.
(TAVARES, 2008, p. 29-3).
Lenz é esse herói que enfrenta as adversidades de seu quotidiano por seus próprios
meios e por suas próprias forças, já que ele é detentor de habilidades extraordinárias e que
prescinde de auxílios superiores. E por essa razão, também se enfatiza que:
Fazer era o grande verbo humano, aquele que claramente tinha separado o
homem da formiga, do cão ou das plantas: os seus fazeres eram gigantescos,
poderosos; nunca imortais mas bem mais permanentes que qualquer outra
construção de qualquer outra espécie. O fazer tornara o homem digno de um
grande inimigo, de um outro inimigo que ainda estava por surgir, já que
todas as espécies animais há muito haviam baixado a guarda e se rendido.
Tinha sido esse fazer, aliás, que destruíra os vínculos que inicialmente
haviam existido entre homem e paisagem. (TAVARES, 2008, p. 53).
Esse excerto destaca o papel do homem livre. “Fazer”, conforme afirma o narrador na
passagem anterior, é verbo humano, no sentido de que o homem constrói, destrói e transforma
o mundo ao seu redor por seus próprios meios, sem necessidade de qualquer intervenção
externa, ou melhor, sem o auxilio de forças superiores. O fazer fundara o homem. O fazer
libertara o homem, inclusive de seus laços naturais com a natureza. Apesar da importância
que a personagem destaca para o “fazer” como parte essencial da constituição humana, Lenz,
raramente é retratado fazendo algo concreto. Na verdade, suas atividades dissipam-se diante
95
de tantas divagações e conjecturas. Quando Lenz abandona a medicina para ingressar na
política Lenz é retratado fazendo nada de concreto. Assim, o fazer por ele enaltecido também
é destinado ao silêncio.
Mas com frequência o narrador assinala a atitude ativa do herói: “A janela do gabinete
do já importante elemento do Partido Lenz Buchmann era uma janela para um homem de
ação, não para um espectador” (TAVARES, 2008, p. 141). Mas: “naquela tarde de clima
ameno, encostado à janela, depois dos inúmeros afazeres transferidos para sua secretária Julia
Liegnitz [...]” (2008, p. 141), Lenz continuava à mesma janela apenas observando o
movimento da cidade como um simples espectador. Há de se considerar que o não dizer ou o
ficar em silêncio sobre as realizações concretas do herói é, em certa medida, uma atitude que
exprime o afastamento do universo natural onde o herói cumpriria as suas atividades
imediatas para determinar a sua posição no mundo. No entanto, nesse universo social, o herói
do romance isola-se para fundar o seu próprio mundo. Há, dessa maneira, um esforço de
autocriação que se mostra longamente nos reflexos morais da atividade objetiva dessa
sociedade que Lenz representa.
Esses vínculos naturais já não mais existiam. O romance põe no silêncio o fazer do
herói que, gradativamente, é representado reproduzindo valores da sociedade burguesa, porém
em quase nenhuma atividade concreta. O narrador representa-o como um firme representante
da precisão e da técnica, tendo o seu bisturi como seu principal instrumento.
Na sua mão direita o bisturi brilha; há um mais na combinação do
instrumento médico com a mão de Lenz que provoca nos assistentes de
qualquer operação um direccionar do olhar em exclusivo para aquela mão
direita. Numa situação de frio intenso, aquela mão, segurando o bisturi, seria
o fogo [...] O bisturi dentro do organismo procurava reinstalar uma ordem
que fora perdida. Trazia de novo as leis: conhecendo-se sua causa
adivinhavam-se os efeitos; tratava-se – Lenz por vezes dizia-o – de implantar
uma nova monarquia; o bisturi anunciava o novo Reino [...] (TAVARES,
2008, p. 30-1).
Entretanto, a representação concreta e objetiva da atividade profissional de Lenz
Buchmann se esvanece na forma do romance e em seu lugar paira silêncio. Lenz Buchmann
não é pintado realizando tarefas que visam cumprir necessidades imediatas do quotidiano, ao
contrário, Lenz é retratado reproduzindo os “reflexos morais” (FEHÉR, 1972, p. 24) da esfera
da produção econômica e do modelo burguês; seja por meio de uma atividade profissional
definida, seja por meio da transmissão do dinheiro e de vínculos contratuais, mas
especialmente pela reprodução dos valores e dos ideais da sociedade burguesa (FEHÉR,
96
1972). Nesse diapasão, a abstração da condição humana fomentada pelo silêncio e permeada
pelos valores dominantes da sociedade burguesa facultam questionamentos centrados
basicamente na compreensão da tensão existente entre o Eu e o mundo.
Assim, tem-se a necessidade de criar um meio artificial, que se opõe ao meio natural
da épica clássica, para representar uma atmosfera social em que o trabalho se incorpora à vida
e cumpre um fim em sim mesmo. Nesse sentido, “relegadas a segundo plano” (FEHÉR,
1972), as atividades de subsistência aparecem indiretamente nas formas do romance como
reflexos do silêncio e não constituem elemento fundamental à representação romanesca.
Sobretudo, o seu individualismo exemplar exige do romancista a criação de um meio artificial
que se traduz pela “capacidade que permite criar uma ambiência humana autêntica num meio
excepcional” (FEHÉR, 1972, p. 25). Recorre-se, assim, a um intenso psicologismo para
“emprestar-lhes um ar natural” (FEHÉR, 1972, p. 58) e, especialmente, ao silêncio para
assegurar a representação do herói isolado, rumo à emancipação.
Seguindo o percurso do silêncio nas formas do romance, constata-se o “abandono” de
Deus das formas da epopeia burguesa que se caracteriza por um imenso silêncio, além do
isolamento transcendental do herói romanesco que também se fundamenta em silêncio.
Destaca-se outro importante aspecto debatido por Ferenc Fehér (1972): a desagregação das
instituições humanas. Segundo Ferenc Fehér (1972, p. 26), “o romance rejeita a autoridade de
qualquer Olimpo e considera as instituições humanas”. E a partir dessa constatação, o homem
do romance cria suas próprias instituições e fica claro, portanto, que estas são entidades
meramente humanas, frágeis e efêmeras.
Aprender a Rezar na Era da Técnica trabalha inclusive com a humanização do espaço
que antes era divino, o que de fato, colabora para emancipação das formas do romance. É
flagrante, pois, a maneira pela qual o homem do romance dessacralizou seu mundo. O
seguinte excerto manifesta claramente a ruptura existente entre sagrado e profano.
A igreja já não tinha a antiga força. As pedras sagradas, que a publicidade da
Igreja dizia serem portadoras daquela energia incorruptível dos primeiros
tempos, estavam a muito cobertas de panos fabricados pelas máquinas mais
recentes, tecidos feitos não para durar um século, mas para brilhar de forma
intensa apenas alguns meses. A Igreja transformara-se – ou deixara que o
mundo a tivesse transformado – em apenas mais uma associação, como no
país existiam não centenas mas milhares. (TAVARES, 2008, p. 212).
Pelo exposto verifica-se que a igreja, nesse romance, é uma instituição humana e
arcaica. A Igreja perdera o seu status e se confundia com qualquer outra mera “associação”,
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como se pode perceber na citação anterior. A Igreja é apenas mais uma em meio a milhares de
outras “associações” de modo que o caráter excelso e divino da Igreja também se esvanecera.
As referências sagradas e atemporais que a Igreja portava agora se misturam às coisas
mundanas como os “panos fabricados pelas máquinas mais recentes” que servem tão somente
para brilhar por “apenas alguns meses”. No excerto seguinte, Lenz, desenvolve um
interessante raciocínio sobre a condição humana da Igreja.
A Igreja, pensava Lenz, não pertencia ao grupo de aliados orgânicos dos
homens, pertencia ao grupo daqueles a quem exigiremos apenas uma mudez
bem comportada; as armas deles só enfraqueceriam o nosso arsenal, somos
de outro Reino e as batalhas políticas não utilizam o método de caminhar
por cima da água para impressionar. (TAVARES, 2008, p. 169 – grifos do
autor).
Destaca-se nesse excerto a necessidade de a Igreja ser muda para Lenz. “Uma mudez
bem comportada”, uma voz submissa e inexpressiva, uma voz silenciada por outros. De
acordo com David Le Breton (1999, p. 90), “o vencido é reduzido ao silêncio. Os deuses não
são poupados, quando derrotados, calam-se”. E a Igreja há muito tempo havia sido derrotada.
Para Lenz, a Igreja era uma associação de homens que se enfraquecera frente a outras
instituições humanas, por isso, Lenz considerava a Igreja como uma criança: “de força
dispensável” (TAVARES, 2008, p. 214), mas ele ainda observa: “deixemo-las estar”
(TAVARES, 2008, p. 207). Para Lenz Buchmann a Igreja “têm armas que só disparam depois
de nos ouvirem” (TAVARES, 2008, p. 207). Indicando que esta poderia estar sob seu controle
ou dos homens de forma geral. Sugerindo ainda que essa instituição apenas existe enquanto
cumpre os interesses da sociedade onde ela está inserida. Em outro excerto destaca-se o
seguinte:
Não se tratava de um edifício, a Igreja não fora construída por homens tão
estúpidos que dissessem: este edifício é o nosso Deus. Eles sabiam bem que
um edifício que vive num século que ainda não tem tecnologia que o
derrube, sobrevivendo, acabará por ser derrubado pelas armas mais certeiras
do século seguinte. (TAVARES, 2008, p. 207).
Aqui se compreende perfeitamente o sentido humanizado e efêmero das instituições
humanas do qual fala Ferenc Fehér (1972). Há nesse excerto a comprovação de que o homem
é o princípio que faz com que essa instituição exista. O homem cria meios de manter essa
instituição e também cria meios de derrubá-la “pelas armas mais certeiras”. Está claro que ela
foi construída por homens não “tão estúpidos”, mas de todo modo por homens. É evidente
que as instituições são uma criação humana que reflete o homem livre em seu sentido mais
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pleno. Essa liberdade inventada é uma possibilidade genuína da representação do universo
burguês. E nesse universo, “os castelos começavam a desmoronar-se e os Reinos perdiam as
forças e multiplicavam os reis até ao ponto em que estes se confundiam com empregados de
mesa. [...] Lenz percebia-o finalmente” (TAVARES, 2008, p. 78). Compreendia o quão
frágeis são as instituições humanas que representavam o seu mundo.
Essa declaração corrobora o fato de que elas são essencialmente humanas e por isso,
são mais suscetíveis ao silenciamento e ao controle da palavra. Ora, é definitivamente, por sua
vulnerabilidade e por permeabilidade ao silêncio, ao silenciamento e ao controle da palavra
que as instituições humanas se tornam frágeis e efêmeras. No entanto, para Lenz, “Deus, esse,
não era derrubável. Daí o seu poder” (TAVARES, 2008, p. 207). A Igreja, como instituição
humana é frágil e derrubável, porém Deus “os homens jamais conseguirão derrubar um
edifício que não chegou a ser construído. Para Lenz estava aí o truque” (TAVARES, 2008, p.
207). Não se pode imaginar como derrubar o que nunca foi enunciado e o que nunca foi
construído. Mas é certo que o que fora construído pelo homem é vulnerável à fluidez do
silêncio e não alcança o grau de intangibilidade que se observa no silêncio do
Gottverlassenheit.
Percebe-se que a entrada de Lenz no Partido tem um impacto crucial na vida da
personagem e acentua a ruptura entre o Eu e o mundo exterior que mostra de maneira mais
contundente a dimensão frágil e efêmera das instituições humanas representadas no romance.
O ingresso de Lenz no Partido proporcionou o encontro e a convivência com Hamm Kestner,
o homem forte do Partido. Esse homem foi capaz de despertar e inspirar em Lenz a confiança
necessária para poder operar o organismo da cidade inteira como fazia quando era cirurgião,
mas agora em proporções maiores, nem que para isso custasse o equilíbrio e a estabilidade da
mesma. Convencido de seu potencial, sem dizer expressamente, considerava-se a si próprio o
“espírito da cidade” (TAVARES, 2008, p. 154). Arrebatado por uma vontade militar de
transformação, Lenz tinha planos junto com Hamm Kestner para a cidade. E entre esses
planos Lenz “[...] lançara a ideia-base da campanha de Kestner: «É necessário forçar o
movimento.» [...]” (TAVARES, 2008, p. 206). Transformando a cidade e o espaço humano a
seu bel prazer, acentuando o caráter dinâmico e efêmero desse espaço humanizado.
A grande vantagem nesta mudança de sistema era sem dúvida o número de
pessoas que conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no sentido físico,
no sentido do bisturi que interfere no tecido. De facto, Lenz sentia-se o
militar que pousa a pistola – pistola que guarda uma espécie de eficácia
circunscrita, efeito único de um ódio individual – e se senta depois ao
99
comando de um bombardeio que pode transformar em ruínas, num só
segundo, uma cidade inteira e dez ou vinte séculos. (TAVARES, 2008, p.
106).
Na qualidade de médico, é fato que ele tinha poder de decisão sobre a vida ou a morte
de seus pacientes, mas esses eram indivíduos sem nome, com pouca ou nenhuma importância
social e esse fato comprometia a grandeza da tarefa de Lenz, transformando-o em um mero
homem individual. Nivelando-o no meio social. Embora ele tivesse o controle sobre o destino
de seus pacientes, isso não era o bastante, pois ele era o homem individual, “estava cansado
de tratar com homens individuais e de ele mesmo ser um homem individual; aquela não era
sua escala; queria operar a doença da cidade inteira e não de um único e insignificante ser
vivo” (TAVARES, 2008, p. 93). Lenz queria poder que alcançasse todo o Reino. Centrado em
sua individualidade, Lenz queria transcender esse domínio. Lenz queria libertar-se totalmente
e exercer poder sob o espaço que é definitivamente humano vencendo suas limitações.
Ainda sobre essa questão, o contraponto feito pelo narrador ao comparar o espaço
humanizado e o espaço natural reforça a ideia de que o espaço humano é marcado pela
velocidade, pela mudança e pela transformação caótica enquanto o espaço natural, embora
movente, é lento demais para o homem. “A natureza, aliás, não tinha história, tudo se repetia
[...]” (TAVARES, 2008, p. 47). E essa imutabilidade da natureza ofendia Lenz e ao mesmo
tempo o assustava. Enquanto os homens já haviam inventado a roda e o fogo, a natureza
permanecia estável. A natureza que está em um estado de silêncio, opõe-se à condição ruidosa
e caótica que caracteriza o espaço humano.
Não havia uma única diferença histórica entre o vento que ele podia perceber
agora da janela do hospital e o vento que tocara no rosto de um imperador
romano. E esta imutabilidade não era um sintoma de fraqueza. Pelo contrário
a impermeabilidade à historia, à mudança das condições era a grande arma
da natureza e, nesse sentido, aí residia o seu perigo: a ponta que
queimava.(TAVARES, 2008, p. 47).
E no Reino Humano, Lenz detém o controle e determina a sua posição no mundo
fazendo oposição à Natureza. A personagem opõe-se ao silêncio da natureza. Esse tal poder
capaz de influenciar o Reino a partir de um enfrentamento direto à natureza e ao mesmo
tempo de “transformar em ruínas” (TAVARES, p. 106) o espaço e o tempo mostra o quão
mais fecundo está a humanização do espaço humano e quanto mais patente torna-se a
presença do silêncio e do silenciamento. O desencadeamento da separação entre homem e
natureza fica confirmado na seguinte passagem e essa ruptura faz emergir outras vozes. Vozes
100
não verbalizáveis. Vozes que reacendem uma crise da condição humana marcada pelo
abandono e pelo isolamento.
Lenz não tinha ilusões acerca da terra que pisava: havia entre a natureza e o
homem um ponto de ruptura que há muito fora ultrapassado. Existia uma luz
nova nas cidades, a luz técnica, luz que dava saltos materiais que antes
nenhum animal conseguira dar; e essa nova claridade aumentava o ódio os
elementos mais antigos do mundo pareciam ter guardado, desde sempre, em
relação ao homem. [...] Sabe-se bem para onde cada coisa vai. Mas o que era
ordem para a natureza era estranho para a cidade [...] Lenz não confiava na
natureza” (TAVARES, 2008, p. 46).
O processo civilizatório isola cada vez mais o homem e em decorrência disso fica
evidente em todo o romance a impossibilidade da conciliação entre homem e natureza e a
seguinte passagem ilustra isso: “Sozinho e errando por sítios estranhos e sem um único
vestígio de metal nas proximidades, Lenz sentia-se um soldado, de outro país que, perdido,
vai parar ao meio de um exército que fala outra língua e que avança em formação de ataque
em direção a uma cidade” (TAVARES, 2008, p. 66-7). Entende-se que pelo fato de a natureza
falar outra língua, uma língua não audível e não compreensível para Lenz, porém perceptível,
é que se reconhece o silêncio da natureza. É que o “silêncio da natureza tem a profundidade
do homem que a escuta” (SCIACCA, 1967, p. 42). O silêncio da natureza é intangível e
magistral, mas Lenz Buchmann parece incapaz de escutá-lo, pois o silêncio da natureza
embora vibrante e inevitável só se faz inteligível na medida em que o homem se exercita na
tarefa de conter a fala, exercitando o ato da escuta. Só o silêncio pode aproximar o homem da
natureza, mas Lenz tem confiança apenas nas palavras. E Lenz sabe que o silêncio da natureza
não é indiferente a ele.
Para o homem da cidade cuja vida é essencialmente ruidosa, a experiência com o
silêncio da natureza implica ausência. Ainda segundo David Le Breton (1999, p. 144), “em
oposição à vida ruidosa do citadino, o silêncio apresenta-se como ausência de ruído, como um
horizonte que a técnica ainda não penetrou com seu poder, como uma zona em descanso, que
a modernidade não absorveu [...]”. Por isso, para o homem na era da técnica, a experiência
com o silêncio é combatível. Por oposição à atitude silenciosa da natureza Lenz, ainda na
primeira parte do romance, sente-se como um soldado que vem transformar aquilo que está
além de seu controle em algo controlável.
Ao afirmar que “não há ordem na natureza” (TAVARES, 2008, p. 96), admite-se uma
espécie de caos irreproduzível, incomunicável que faz com que a natureza seja, para Frederich
Buchmann, “nos seus dias comuns, uma máquina lenta, uma máquina que parecia igual a
101
qualquer outra das que o homem havia inventado [...]” (TAVARES, 2008, p. 97). E ainda
para Frederich Buchmann “o erro, precisamente, era ver a natureza semelhante a um museu
que cresce. Museu cujas peças mudam de posição de modo quase imperceptível, parecendo
fruto da timidez ou simplesmente da fraqueza desses elementos” (TAVARES, 2008, p. 97). É
esse, justamente, o silêncio da natureza que perturbava Lenz. Ao desenvolver o seu raciocínio
sobre a natureza, Lenz propõe o seguinte: “A natureza está à espera, lá fora, mas mantém
exatamente a mesma força: recuou, é certo, mas não está sequer prisioneira. Está num outro
sítio, num outro ponto de batalha, e afia as lâminas; não reza, não suplica, não pede piedade.
Não reza, afia as lâminas” (TAVARES, 2008, p. 77). É preciso, portanto, mencionar que esse
silêncio em que opera a natureza não é a ausência da manifestação de som. “A percepção do
silêncio num lugar não tem a ver com som, com ausência de manifestações de ruído, mas com
sentido [...] O silêncio é uma das emanações temporais da natureza” (LE BRETON, 1999, p.
147). E na seguinte passagem se ilustra a presença desse silêncio da natureza:
E isto porque aquelas armas não eram entendidas: a tempestade que ativara
árvores e pessoas contra o chão, devorava casas e animais domesticados, o
mar que iluminando por movimentos que pertenciam ao domínio do não
razoável afundava barcos e homens, esses sons grotescos dos relâmpagos,
sons reveladores de uma indisposição fundamental, de uma inconformidade
com a calma e a segurança da cidade, onde edifícios como instrumentos de
defesa contra cataclismos se tornavam ridículos quando verdadeiras forças
desse museu falso se libertavam, a sensação, enfim, de que o homem, nessas
alturas, envolvido pelo absurdo pegaria até num martelo para combater o
fogo, não como um louco mas parecendo simplesmente ter ficado
desprovido de raciocínio técnico, não percebendo, minimamente, o
mecanismo das forças de ataque. Em suma: nada era entendido pelos
homens que se defendiam. E daí a manifesta posição de fragilidade face à
natureza indisposta. (TAVARES, 2008, p. 98-9).
Do ponto de vista de Lenz, os “sons reveladores” da natureza insurgiam-se contra a
falsa calma e a pseudo segurança das cidades. As “armas” da natureza operavam de tal forma
que nada ficava inteligível para os homens. Por isso, Lenz identifica-se tão perfeitamente com
as salas de cirurgia, apenas porque naqueles espaços tudo é controlável. E motivado com essa
ideia de exercer controle em larga escala, Lenz assume um posto no Partido. No Partido, Lenz
percebera que o poder decorrente de sua posição de destaque assegurava-lhe liberdade
inimaginável, pois permitia a ele estar não acima da lei, mas ser, de certa forma a lei. De
modo que lei alguma pudesse se antepor a ele e ao seu projeto. Portanto, não há divindade e
coisa humana que Lenz não esteja disposto a exceder com intuito de assegurar sua
emancipação.
102
Todos os homens estavam sob a mesma lei, e a cidade e cada um dos seus
habitantes orgulhavam-se disso. Porém era evidente que a lei mais
importante, a lei básica, era outra que não a das frases que no papel tentavam
criar equilíbrio entre dois homens. Havia uma hierarquia prática que
esmagava por completo a hierarquia teórica que as leis tentavam impor.
Aliás o problema das leis, para Lenz, era precisamente este: não se
impunham, argumentavam. As leis da cidade, em tempo de paz, haviam
substituído as ordens pelos argumentos como se no limite uma boa conversa
fosse suficiente para convencer um violador a ir para a prisão durante seis
anos ou um assassino a cumprir a pena de morte, pelo seu próprio passo,
saindo de casa de manhã e chegando com pontualidade à parede de
fuzilamento [...] Lenz não pôde mesmo deixar de pensar que até nas
sociedades mais equilibradas e aparentemente mais justas, os homens
poderosos só não matariam na rua, à frente de todos, um vagabundo, com as
próprias mãos ou com uma arma, porque não queriam humilhar em público
as leis do país, já que de certa maneira eram estas que, em alguns
pormenores, os protegiam. (TAVARES, 2008, p. 196-7).
De fato, as leis da cidade estavam à sua disposição. Lenz não se sentia nivelado a
outros homens. No mundo de Lenz, a força era a lei. O domínio da linguagem assegurava o
poder de Lenz e essa era a sua lei. A capacidade de suscitar no homem palavra e silêncio e
poder abalar esse equilíbrio fascinava-o. Lenz que “parecendo um predador imóvel e
silencioso” (TAVARES, 2008, p. 228) tinha plena consciência do poder de dizer e de poder
silenciar. “Suspender era o verbo por excelência do poder [...]” (TAVARES, 2008, p. 221).
Assim, Lenz pertence a um mundo onde a força faz-se imprescindível para firmar a sua
posição no mundo. A forma como Lenz e Kestner manobravam as instituições para alcançar
os seus desígnios reforça a noção dinâmica e volátil das instituições humanas. Lenz havia
matado em sua casa, mas estava protegido pela força de seu nome. “Ilibado de consequências
penais pelo assassinato do louco Rafa por ater agido «provadamente em legítima defesa»,
Lenz Buchmann não só não viu atingida a sua reputação como, pelo contrário, ganhou a
dimensão humana «de quem sofreu muito»” (TAVARES, 2008, p. 244). As leis, assim, não
só o protegiam como legitimavam suas ações.
Ao discutirem seus planos para a cidade, Lenz conclui: “São surdos e mudos, o que
não é bom se queremos conversar com eles – concluiu” (TAVARES, 2008, p. 189), referindo-
se, pois, aos homens da cidade. Dito isto, Kestner replica: “Podemos apenas dar ordens, não
precisamos de conversar” (TAVARES, 2008, p. 190). Sugerindo, nessa passagem, a
imposição da censura e do silenciamento como princípio para conduzir as instituições
humanas e cumprir o seu projeto de emancipação e de controle. Dizia Lenz: “o meu pai
repetia várias vezes que a articulação que antes unia a população aos reis antigos está há
103
muito partida” (TAVARES, 2008, p. 188). Essa articulação que antes havia já não é mais
concebível.
A harmonia consignada de outrora já não existe e a ruptura entre o Eu e o mundo se
manifesta patentemente. Certo é que os desígnios superiores que antes controlavam o coletivo
explicitamente e regulavam o seu destino deram lugar a um imenso silêncio. “Havia a
sensação de que as massas, se as deixassem à solta, não tomariam qualquer palácio [...]”
(TAVARES, 2008, p. 187-8) e não tomariam lugar algum, porque “o homem do romance não
sabe mais o que fazer com as instituições de seu mundo” (FEHÉR, 1972, p. 29). O homem do
romance está livre de vozes do Olimpo e de vontades superiores, para ele resta apenas
silêncio.
De certa maneira, a terceira ambivalência feheriana que caracteriza a emancipação da
forma romanesca complementa-se às duas anteriores. Inspirada pela fratura entre o Eu e o
mundo externo, a separação do herói do romance da esfera pública para refugiar-se na esfera
privada vivifica o silêncio como parte de um procedimento técnico formal em que o Eu do
romance mergulha em silêncio e institui o seu próprio regime de silêncio de modo que este se
converte em seu principal meio de expressão.
O fato de o público estar excluído das formas do romance “favoreceu ainda mais a
separação definitiva do herói do romance do domínio da atividade realizada entre as
objetivações” (FEHÉR, 1972, p. 33) e “a qualidade ilusória, comunitária e pública da família
estava fundada, em grande parte, na proteção que oferecia face ao mundo exterior hostil”
(FEHÉR, 1972, p. 33). A esse respeito, vê-se no aniquilamento do público no romance e o
desagregamento da família como uma força libertária, capaz de comportar a imensa
diversidade de elementos que caracteriza o universo burguês. Ainda segundo Ferenc Fehér:
“[...] o desagregamento da família monogâmica é um dos fenômenos mais notáveis e mais
amplamente analisados do século passado, ainda que, na verdade, suas consequências só se
tornassem flagrantes em nosso tempo” (FEHÉR, 1972, p. 34). A construção da dissolução
familiar em Aprender a Rezar na Era da Técnica dá-se gradualmente no silêncio e no
silenciamento que se deixa entrever no isolamento do Eu.
O ideal de família nesse romance torna-se opaco, indistinguível, oscilante; não é
possível encontrar contornos nítidos da esfera íntima familiar em suas objetivações. Cada
acontecimento é solitário e irredutível e nesse microcosmo “a família monogâmica burguesa
tinha se transformado em um pseudolaço consanguíneo [...]” (FEHÉR, 1972, p. 25-6). A
família Buchmann está em uma zona de indeterminação, pois em nenhum momento revelou-
104
se como princípio motivador das ações do herói, Lenz Buchmann. Os membros da família
Buchmann são como fantasmas na vida de Lenz. O que significa que o reino de Lenz é um
reino individual.
O fato é que Lenz “não sofreria pela espécie da mesma forma que não sofreria se o seu
bisturi, por acidente, se partisse” (TAVARES, 2008, p. 66). Por conseguinte, o herói reduz a
sua família ao silêncio, limitando as suas possibilidades de atuação, fundando o seu próprio
silêncio e isolando-se do mundo externo, com o intuito de privilegiar sua própria
emancipação. As vozes externas dificilmente rompem o reino de silêncio erigido pelo herói
em seu isolamento.
No entanto, Lenz cedo percebera que era necessário um suporte, um sítio ao
qual o corpo se encoste sem medo de ser atraiçoado; no fundo, uma parede
que não corra o risco de desabar. A família seria sua parede, o ponto a que
poderia encostar a nuca (pois mesmo num ataque vigoroso quem ataca tem
nuca, e essa fragilidade jamais poderia ser esquecida). (TAVARES, 2008, p.
21).
Apenas aparentemente a família Buchmann representa um abrigo “em face ao mundo
hostil” (FEHÉR, 1972, p.33) ou “enquanto refúgio da humanidade” (FEHÉR, 1972, p. 35),
mas, na verdade, a família é para Lenz apenas um obstáculo para sua ascensão. O caminho
para o progresso da emancipação de Lenz Buchmann consiste, primeiramente, em superar
essa condição de dependência e de submissão ao meio familiar. Os membros da família
Buchmann, nesse sentido, cumpriam um papel ilusório. Nesse trecho de excepcional
importância para o esclarecimento da dissolução da família burguesa no romance fica claro o
ideal do “herói do romance como produto da sociedade burguesa, e não da família” (FEHÉR,
1972, p. 35). No capítulo intitulado “Um episódio com uma doente terminal”, Lenz divaga
sobre a força do nome Buchmann, tornando nítido ao leitor o verdadeiro papel da família
Buchmann em sua constituição.
E para Lenz era fundamental o nome de família: Buchmann. Lenz
Buchmann só não o exibia e só não exigia ser tratado pelo nome de família
porque Albert, Albert Buchmann, irmão alguns anos mais velho, bem antes
de si, havia começado a exibi-lo, parecendo pousá-lo numa mesa antes de
iniciar qualquer diálogo. Lenz jamais aceitaria ser o segundo Buchmann, até
porque considerava que no seu irmão o nome Buchmann se tornara um nome
defensivo e, pelo contrário, nas suas mãos, a anteceder as suas ações, o nome
Buchmann tomava inegavelmente feições guerreiras, de ataque. E por isso,
ele era simplesmente Lenz, tratando também o seu irmão pelo primeiro
nome, recusando-se a explicitar o apelido de família. (TAVARES, 2008, p.
74-5).
105
Observa-se nas entrelinhas o verdadeiro valor de um nome Buchmann que certamente
não tem nenhum compromisso com a família, mas com o homem individual, com o homem
que é produto de sociedade burguesa. Lenz perturba-se com o fato de ser o segundo
Buchmann. Para ele a importância do nome não recai sobre a família, mas sobre suas próprias
atitudes. O que tudo indica é que nem Albert tampouco Frederich, seu pai, enriquecem e
fortalecem o nome Buchmann. Buchmann, para ele, é um nome individual.
Por isso, como ele poderia ser o segundo ou o terceiro Buchmann? Para o sujeito
isolado do romance, a família não representa empoderamento. Ao contrário, são atitudes
individuais que tornam o nome Buchmann como um nome de força singular. Lenz não é
representante da família Buchmann, mas representante de si mesmo, representante do homem
individual fruto da sociedade puramente social. E isso se confirma quando Lenz propõe
“estancar a produção de fracos”, pois ele crê que a força do nome individual morre junto com
o indivíduo que o carrega.
Na verdade, Albert não casara e não tivera filhos e para Lenz os filhos eram
também uma aplicação desnecessária da energia, um método ingênuo de
baixar o fuzil [...] Diga-se que a sua mulher Maria Buchmann, já há vários
anos se conformara com a decisão – nas palavras de Lenz – de estancar a
produção de fracos. Não quero que um médico da geração seguinte venha a
salvar a vida de uma criança com o meu nome. Numa família, e Lenz
sentira-o na pele, formava-se um amplo sistema de hierarquias, protecções e
compaixões que repetia, por vezes até de um modo mais intenso, a ligação
de intensidades de poder que existem num Reino completo. Mas, por ele, o
Reino iria terminar ali. (TAVARES, 2008, p. 83-4).
O valor da linhagem desaparece. O indivíduo em seu isolamento transcendental anula
os poderes da família; e assim se dá progressivamente o processo de aniquilamento da família
burguesa. Em sua aspiração de emancipação e liberdade, o homem do romance gradualmente
reduz o papel da família através do silenciamento e no romance amplia-se o silêncio
decorrente da construção da dissolução familiar. São pequenos gestos simbólicos que Lenz
recorre para reduzir o papel da família em seu campo de atuação. Talvez o mais importante
deles seja o episódio que Lenz pede à Gustav Liegnitz, o surdo-mudo, que apague o nome do
irmão mais velho – Albert Buchmann, de uma placa de bronze que continha o brasão da
família.
Nessa mesma cena, a personagem também decide sobre os outros nomes que se
encontravam no brasão Buchmann: “o nome da mãe era um nome fraco, sem dúvida, mas a
mistura com o sangue do pai demonstrara que havia sido, pelo menos, um nome capaz de
gerar a ele. Fraco, mas que deixa a força continuar forte [...]” (TAVARES, 2008, p. 209) e por
106
essa razão, o nome de sua mãe foi poupado. Entretanto, cabe lembrar que o nome da mãe
nunca fora dito e Lenz jamais a mencionara durante toda a narrativa. Por outro lado, o nome
de sua esposa, Maria Buchmann, sequer precisou ser apagado. Eis diferença entre o nome da
mãe de Lenz que jamais foi silenciado, o nome da esposa de Lenz fora completamente
apagado: “Não fora necessário apagar o nome da sua mulher Maria Buchmann, pois esse
nome não fora sequer inscrito” (TAVARES, 2008, p. 273). O nome da mãe era um silêncio;
um silêncio que significa de muitas maneiras, apenas por ser silêncio, por ser não dito e por
ser uma instância positiva que traduz uma presença. O nome Maria Buchmann, contudo, não
é um silêncio; é palavra que ruma ao silenciamento e ao vazio; um apagamento sem dúvida. O
lugar que Maria Buchmann ocupava na escala de valores de Lenz era do vazio, do que jamais
existiu. O silêncio para onde Maria Buchmann é condenada não é o mesmo silêncio para onde
a mãe de Lenz é destinada. “Com clareza: desde sempre ela ocupara um lugar insignificante e
tal ficara ainda mais visível com a recente tarefa de Gustav na placa de bronze da família”
(TAVARES, 2008, p. 273). Nessa perspectiva, nota-se o alheamento de Lenz às coisas
relativas de sua esposa na seguinte passagem:
Em nenhum objecto do mundo que ocupasse realmente espaço apareceria o
nome da mulher de Lenz. Certamente em muitos documentos – em inúmeras
folhas de papel – estaria o nome da mulher; e até, a altura da sua morte, do
seu assassinato, em muitos jornais o seu nome, Lenz recordava-se bem,
ocupara a primeira página e, nos dias seguintes à tragédia, página interiores.
Mas como se chamava ela? (TAVARES, 2008, p. 273).
Naturalmente, nessa citação pode-se se identificar inúmeras estratégias do silêncio
com o intuito de apagar a imagem de Maria Buchmann. Os mecanismos que envolvem esse
processo, apesar de estarem operantes em todo romance com relação à Maria Buchmann,
apenas nesse trecho se tornam totalmente evidentes. Consonante Adam Jaworski (1993),
existem meios bastante efetivos de regular sentidos e controlar informação pelo silêncio.
Entre esses meios se destaca o silenciamento sutil onde se cria uma imagem distorcida; a de
um sujeito submisso, inferior, impotente, de modo que não haja nada de relevante para ser
dito sobre esse indivíduo.
De fato, há em jogo um silêncio opressor que desconstrói a imagem de Maria
Buchmann progressivamente até chegar ao ponto de seu nome nem ao menos ser digno de
constar nas páginas do jornal ou de lugar algum. Essa censura, embora sutil, proíbe Maria
Buchmann de ocupar certos lugares de sentido, proíbe que ela se inscreva em formações
discursivas e que “consequentemente a identidade do sujeito é imediatamente afetada [...]”
107
(ORLANDI, 2007, p. 76). A sua morte representa o estágio final de um processo de
apagamento e silenciamento que ocorreu durante toda sua vida. “Qual era mesmo o nome
dela?” (TAVARES, 2008, p. 275), perguntava novamente Lenz, que havia conscientemente
apagado o nome de sua esposa para sempre.
Apenas o nome do pai permanece vivo em suas lembranças, mas não porque entre
Frederich e Lenz havia um vínculo indissolúvel de pai e filho. Na verdade, tal vínculo jamais
existiu. Frederich Buchmann mantém-se vivo nas lembranças de Lenz, por causa do medo e
do terror que aquele lhe incutira durante a infância e durante a adolescência de Lenz. “Nesta
casa o medo é ilegal – era uma das frases mais marcantes de Frederich Buchmann”
(TAVARES, 2008, p. 94). E nesse ambiente dominado pelo medo, Lenz cresce sob o domínio
do silenciamento e aprende a ter medo.
Ainda sobre a família Buchmann, lê-se o seguinte: “Nesse pequeno Estado
monárquico que era aquela família, Lenz era de longe o mais talhado para receber a coroa, no
momento de sua transmissão. Aliás, Albert nem sequer a desejava” (TAVARES, 2008, p.
100). Mas, Lenz também não desejava ser senhor da família Buchmann, pois “por ele, o
Reino iria terminar ali” (TAVARES, 2008, p. 84). E Frederich Buchmann também parecia
saber disso. Sobre os dois filhos, ele concluíra: “Tenho um cão e um lobo” (TAVARES,
2008, p. 101). O cão era Albert, o filho mais cauteloso, precavido e manso. O lobo era Lenz
que era dotado de um singular instinto de luta e sempre em posição de ataque. “O cão não
poderá proteger o lobo porque não tem força para isso, e o lobo nunca poderá proteger o cão
porque tal não está na sua natureza” (TAVARES, 2008, p. 101). A supressão definitiva dos
laços de sangue assim, já era esperada pelo próprio chefe da família Buchmann que via nos
dois filhos tanto a impossibilidade quanto a incapacidade de manter a unidade familiar.
Com efeito, a tese de Ferenc Fehér (1972) demonstra que a distância do indivíduo em
relação ao mundo exterior leva a duas importantes constatações; primeiramente, nota-se que
nome e genealogia nada acrescentam a esse indivíduo isolado; “o indivíduo se realiza através
dos acidentes da concorrência e da luta que esta acarreta [...]” (FEHÉR, 1972, p. 62). E “o
ponto de partida das condições das relações no romance é um conjunto de pessoas privadas
burguesas que vivem em casas ou apartamentos isolados um do outro, que não podem se
considerar senão como reciprocamente desconhecidos” (FEHÉR, 1972, p. 86). E como
consequência disso, a representação do exclusivamente privado, do fortuito, do acidental
permite para além do imprevisto um direcionamento para o futuro. Observa-se a constante e
108
progressiva atuação do silêncio como parte de um procedimento formal de solução no
aniquilamento da esfera pública do romance a partir da esfera privada.
É possível então, no silêncio, escapar à condição humana, buscar em sua essência
ascese e libertação, tão almejada pelo herói do romance, a fim de renunciar a exploração da
realidade perversa que se impõe sobre o homem? Diante do exposto, pode-se dizer que sim,
se se considerar que as concessões feitas pelo silêncio na forma do romance possibilitaram ao
gênero burguês ter maior compatibilidade de representação desse universo caótico, hostil,
estilhaçado e sobrecarregado por múltiplas vozes, assim como auxiliou, sobremaneira, na
conservação da universalidade da obra. O romance, a partir do silêncio, mostra-se como
produto de sua sociedade puramente social fundamentada pela pluralidade que encontra no
silêncio o princípio de sua potência. Encontram-se no silêncio os processos de construção dos
sentidos, salientando, dessa maneira, formações discursivas e ideológicas que permitem ao
homem reflexionar e, assim, libertar-se.
2.3 As formas do silêncio nas formas do romance
Examinando mais de perto esse romance, o leitor, consequentemente, é conduzido por
um emaranhado de fragmentos organizados, aparentemente, dentro de uma lógica temporal
em que as ações das personagens são sucedidas por uma ordem de causalidade estável, porém,
o que na verdade ocorre é rememoração do passado, recordação de traumas e de medos,
elucubrações filosóficas que fazem uma avaliação do presente, marcadas todas elas por
grandes intervalos de silêncio. A organização do romance, porém, cria uma ilusão de uma
progressão temporal retilínea e uma estabilidade inexistente. Cada fragmento, no entanto, é
marcado por um hiato temporal, ou seja, uma lacuna que não é preenchida por nada a não ser
pelo silêncio causando, assim, uma grande ruptura na trama.
A técnica romanesca em jogo sugere que os episódios narrados são, na verdade,
inenarráveis, indizíveis e que, portanto, precisam transcender a linguagem discursiva. Nesse
sentido, o silêncio não está apenas entre fragmentos e lacunas; o silêncio não está às margens
da linguagem. O silêncio é primordial e fundante à linguagem e, portanto, ele está presente
enquanto fundamento da narrativa, no que diz respeito à constituição das formas do romance
que modelam a figura do narrador, que tangenciam as personagens, que colaboram com a
construção do tempo e do espaço e preenchem de sentidos cada linha do romance. Enfim,
109
subentende-se que as formas do romance carregam um fardo pesado demais para confiar à
linguagem verbal, necessitando assim do silêncio para transpô-las. Constrói-se o sentido no
silêncio. E assim, o romance inspira-se com o silêncio em suas formas e expira silêncio em
suas estruturas.
O narrador de Aprender a Rezar na Era da Técnica caminha, deste modo, por entre
silêncios e recompõe através de fragmentos a vida e a morte de Lenz Buchmann,
precisamente nessa ordem. Há três grandes blocos narrativos – Força, Doença e Morte –
dispostos meticulosa e rigidamente dentro de uma suposta ordem temporal que, por um lado,
procura dar a falsa ideia de completude e linearidade sobre toda a dimensão de vida de um
homem burguês representando os ciclos da vida, e, por outro, reforça o caráter fragmentário
da narrativa, bem como reflete uma crise na representação do mundo marcada indelevelmente
pelo signo do silêncio. Investe-se, portanto, em uma estabilidade que não é a da palavra.
Impõe-se o silêncio como senhor soberano das formas desse romance.
Certamente, sem a presença do silêncio encadeando os episódios do romance, as três
partes da narrativa assim como os seus respectivos capítulos fragmentados dispersariam
totalmente e a narrativa deixaria de fazer sentido, ou seja, deixaria de ser um romance, pois, o
que separa e o que une cada parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica é simultânea e
paradoxalmente o silêncio. Em outras palavras, o silêncio é o elo e é a ruptura da trama.
O silêncio estabelece um espaço vital de diálogo e de sentido entre cada uma das três
partes desse romance constituindo assim uma unidade narrativa. Daí, também, decorre uma
mobilidade impressionante no tocante à figura do narrador e das demais personagens e a
ambiguidade em relação ao tempo e ao espaço. Constata-se isso à medida que as formas da
narrativa mostram-se fragmentárias e líquidas; acresce-se a isso o ritmo galopante, bem como
o seu estilo fleumático e paratático.
O projeto de Gonçalo M. Tavares realiza-se, uma vez que o conflito do romance
desenrola-se no silêncio, libertando-se das amarras restritivas da linguagem discursiva e
possibilitando ao leitor encontrar no silêncio o espaço necessário para poder encarar a tensão
existente entre homem e mundo, racionalidade e absurdo, técnica e natureza, convicção na
ciência e confiança na fé. O engenhoso processo ao qual o autor recorre, equilibra
assimetricamente palavra e silêncio. Gonçalo M. Tavares parece conseguir encontrar
harmonia no encontro do silêncio com a palavra ao representar a tensão entre duas forças
aparentemente opostas, mas que se equilibram dentro da totalidade da obra e se
complementam mutuamente na dialética da linguagem.
110
Concebido com perfeição formal, Aprender a Rezar na Era da Técnica propõe a
recriação da linguagem na medida em que equilibra palavra e silêncio e se consagra como um
romance que tem plenas condições de representar o homem e o mundo burgueses
posicionando-se de maneira crítica e reflexiva. O texto rejeita aquela linguagem retilínea,
estável e uniforme. Dinamizam-se as formas da narrativa por meio do emprego de uma
linguagem que guarda em si as marcas da violência e da brutalidade. A rigor, apela-se para
uma linguagem impassível. Convocam-se silêncios que apagam, consequentemente, as
fronteiras do romance tradicional.
Por meio de um acurado tratamento conferido à linguagem, o alto grau de
desumanização e indiferença do homem para com o seu semelhante resulta em uma
linguagem fleumática, seca, paratática, entrecortada, metonímica, fria e híbrida, sinalizando
na forma a organização do mundo burguês contemporâneo, cuja configuração é marcada pela
desigualdade, pelo estilhaçamento e pela saturação de múltiplas linguagens, onde o
imperativo é comunicar. A linguagem de Gonçalo M. Tavares permite ao leitor reconhecer a
importância daquilo que está além das palavras e lançar um olhar para o subtexto: o silêncio.
Admite-se, então, uma progressão que se desenrola no silêncio e apenas no silêncio.
Quando esses mesmos fragmentos são observados sem se considerar o silêncio que os
atravessa, tudo que resta são episódios incompletos da vida de Lenz e que pouco contribuem
para o desenvolvimento da trama, pois retardam o desenrolar da ação, no sentido de que há
alguns episódios dessa narrativa que estão completamente deslocados e desconexos.
Evidentemente, o estilhaçamento persiste em toda a narrativa e se acentua gradualmente ao
longo das três partes que compõem Aprender a Rezar na Era da Técnica, reforçando o caráter
dinâmico das formas do silêncio nas formas do romance.
Na primeira parte do romance – Força –, há maior alternância de palavra e silêncio, o
que fragmenta o fluxo narrativo tendo maior incidência de lacunas e de cortes no plano
espacial e temporal. A personagem central é forte e enfrenta o silêncio impondo o seu próprio
silêncio. Lenz Buchmann estabelece um regime de gestão de sentidos de si e dos outros a
partir do silenciamento. Em função disso, o silêncio na primeira parte do romance aparece de
maneira mais intensa e autoritária; como uma linguagem mutilada. A ideia de conferir à
linguagem o poder de representação de uma sociedade devastada pela violência, pelo caos e
por múltiplas linguagens só é possível à medida que o romance resiste à barreira interposta
pela linguagem retilínea e tradicional e se mantêm firme na potência silêncio.
111
Em Doença, a segunda parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica, à diferença da
primeira parte, convoca-se o silêncio para desacelerar o tempo narrativo e se aprofunda mais
no interior das personagens, sobretudo Lenz. Há menos tempo para combater o silêncio e
mais tempo para deixar-se levar pelos caminhos dele. Com efeito, o silêncio no decorrer da
narrativa torna-se menos opressor e menos autoritário. Ao contrário, a segunda parte do
romance dá lugar a um silêncio mais contemplativo e compenetrante, porém, não menos
significativo. Provavelmente, conforme a personagem se torna debilitada e frágil e sua relação
com o silêncio se altera, é possível que a forma do silêncio também se altere na forma do
romance.
Por fim, na última parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica, concentrando-se no
modo como o silêncio opera na linguagem, há mais ênfase na dimensão subjetiva da
personagem, o silêncio proporciona ao leitor um encontro com uma realidade desfigurada que
se traduz no eu da personagem. Abre-se ao leitor a possibilidade de contato com um silêncio
tanto mais profundo e que nada tem de transparente; silêncio então que se entrelaça ao
romance e ruma a um caminho irresolúvel (DAUENHAUER, 1980). Talvez rumo ao silêncio
primordial. A fascinação pelo silêncio ao final do romance permite compreender que o
silêncio, embora se ocultando atrás de uma cortina de palavras, tem o poder de desintegrar as
frágeis palavras e colocá-las frente ao inefável, ao inexprimível, ao indizível.
Para que seja representada a unidade do romance é necessário silêncio. Sobre essa
questão é preciso retomar um conceito proposto por Bernard Dauenhauer (1980) que é o
silêncio anterior e posterior. Segundo a classificação desse autor, o silêncio anterior e
posterior é aquele silêncio que antecede e precede qualquer elocução. Ele é inaugural e último
em toda realização da linguagem (DAUENHAUER, 1980).
Então, definitivamente, essa modalidade de silêncio pode ser constatada nas três
grandes partes que compõem Aprender a Rezar na Era da Técnica. A estrutura desse silêncio
é expressa da seguinte maneira: “[...] se a descrição anterior da estrutura temporal do silêncio
anterior e posterior está correta, o sentido do enunciado A é mantido em um silêncio do
depois A’, qualquer que seja o conteúdo do enunciado A, este já chegou ao fim”.
(DAUENHAUER, 1980, p. 14). 14
O que significa que o enunciado é como uma figura e o
silêncio além dele o fundo; o limite do que pode ser dito. Nada pode ser enunciado, sem antes
partir do silêncio e voltar para ele. Na primeira parte do romance, por exemplo, intitulada
14
if the foregoing description of the time structure of fore-after silence is correct, the sense of the utterance A is
retained in after-silence A', whatever the content of the utterance A, has now come to an end. (DAUENHAUER,
1980, p. 14 – tradução nossa).
112
“Aprendizagem” e subintitulada “O adolescente”, Lenz conhece a crueldade, narra-se um
episódio em que a personagem principal é obrigada pelo pai a ter relações sexuais com a
criada da família como um gesto de afirmação da sua masculinidade e demonstração de poder
e de força. As primeiras linhas narram o seguinte: “O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de
uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa” (TAVARES, 2008, p. 17).
Evidentemente o silêncio é quebrado, mas as linhas iniciais do romance não renunciaram
totalmente ao silêncio. Enfim, há muito silêncio ainda nessas poucas linhas.
Há um não dito sobre a ação que antecede essa ação, outro não dito sobre o “eu” que
sofre a ação; “O pai agarrou nele e levou-o”, pois, quem é esse que o narrador não pode
revelar nas primeiras linhas? E para onde o levou? Há outro não dito sobre a identidade do pai
etc. Há muitos não ditos e muitos silêncios. E assim, fica confirmada a impossibilidade de
começar qualquer enunciado sem a presença do silêncio ou a impossibilidade de enunciar
tudo de uma só vez e de esclarecer tudo ao leitor. E nesse momento, é válido recordar a
metáfora de Gilberto Mendonça Teles, em Retórica do Silêncio (1979), afirmando que as
palavras parecem flutuar em um mar de silêncio e, quando são ditas espirram silêncio.
O silêncio não termina ali. Na segunda frase que inicia esse romance, diz-se o
seguinte: “– Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente” (TAVARES, 2008, p. 17). A entrada de
um travessão é um sinal visual de que uma personagem fala, mas sem qualquer indicação do
narrador. De qualquer forma, rompe-se o silêncio do espaço. Tem-se o discurso direto. A voz
do narrador volta ao silêncio por um breve instante e traz do silêncio outra voz: a voz do pai
que ainda não se manifestara. E tanto o narrador quanto o pai deixam que o silêncio fale por si
mesmo. Não há preocupação em momento algum em traduzir esse silêncio.
Além disso, outros elementos chamam a atenção no momento da leitura desse
primeiro capítulo: o primeiro deles é a linguagem empregada pelo pai: “–Vais fazê-la à minha
frente – repetia” (TAVARES, 2008, p. 17); “– Despe as calças – foi a segunda frase do pai. –
Despe as calças” (TAVARES, 2008, p. 18) e “– Avança – disse o pai com rudeza”
(TAVARES, 2008, p. 18). A ausência de diálogo é em si um silêncio; o silêncio do outro
através do apagamento dele. Só o pai de Lenz fala e ninguém mais. A repetição que reverbera
em todo capítulo e persegue Lenz durante toda sua vida e não dá espaço à contestação. As
ordens de Frederich recusam-se a voltar ao silêncio, pois logo se nota a repetição insistente
das ordens nesse primeiro capítulo.
Em suma, são palavras que calam e que apagam a presença do outro e que reificam a
presença de Lenz e, especialmente, da criada. “[...] e os gestos seguintes foram os gestos de
113
um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais
experiente, neste caso o seu pai [...]” (TAVARES, 2008, p. 18). As ordens de Frederich, em
última instância, tentam proibir outras palavras, outros silêncios, outros sentidos. “E todas as
ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma
única frase a criadita [...]” (TAVARES, 2008, p. 18). O silêncio diante da empregada e o
silêncio da empregada que, simplesmente, assiste à cena passivamente confirmam o processo
de reificação: pressupõe-se a descida do homem-sujeito ao extrato de homem-objeto. É, pois
flagrante, a maneira como a narrativa parece incorporar os elementos da violência e da
rudeza, criando um ambiente impressionante, usando os recursos da linguagem.
O segundo elemento que chama bastante atenção, nesse primeiro momento, é a forma
como o narrador apresenta a cena criando um expediente híbrido em que a presença da
narração e os recorrentes comentários do narrador dão mais “voz” ao silêncio. No contexto
dessa interpretação, acredita-se que os comentários tecidos pelo narrador permitem ao leitor
estender a sua compreensão sobre o fato narrado, ou seja, se vai além dos limites da esfera
verbal construindo no silêncio outras relações de sentido.
A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela
estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um
adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a
disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de
sair. O pai queria ver. (TAVARES, 2008, p. 17- grifo nosso).
Os comentários feitos pelo narrador nesse excerto exemplificam como a palavra dele
direciona ao silêncio. Porque se a palavra significa o silêncio significa muito mais sem
dúvidas. O narrador pela palavra quebra a tranquilidade contemplativa do leitor forçando-o a
ir além do que é dito, direcionando o leitor para o silêncio. “A criadita estava assustada,
claro” (TAVARES, 2008, p. 17): o emprego do advérbio destacado significa algo que não
desperta dúvidas, que está evidente, sem ambiguidades, mas a frase que se tem a seguir revela
que: “mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai”
(TAVARES, 2008, p. 17). Então, a razão de seu medo não é evidente; ela não se manifesta
claramente, surpreendendo até mesmo o narrador.
O narrador abre as portas para o silêncio. Palavras e silêncio misturam-se nessa cena.
Confundem-se inclusive com o medo da empregada. As ordens do pai parecem intimidar e
amedrontar a empregada, mas não é o que ele fala que a assusta, mas aquilo que ele não fala.
O pai, que até aqui, é uma figura sem rosto, inibidora, símbolo de autoridade, impõe silêncio.
Suas palavras calam e tentam conter outros sentidos, mas suas palavras (ou ordens) também
114
despertam silêncios. É, justamente, o seu silêncio e o silêncio que ele impõe a Lenz que
assusta a criada.
Mas o mais interessante é o comentário do narrador, que expressa não somente o
sentimento de empatia em relação ao sentimento confuso da criada que é oferecida a Lenz
Buchmann, como uma escrava que seria oferecida ao seu senhor ou como um objeto de pouco
valor que é oferecido a outrem, mas acima de tudo, o seu imenso desconforto sobre tudo isso.
O narrador desloca-se entre múltiplos silêncios e envolve o leitor com a narrativa e harmoniza
suas estruturas estabelecendo outros silêncios, criando uma unidade na qual coexiste tanto o
silenciamento quanto o indizível.
A par da técnica incomum assumida pelo narrador, o romance, muitas vezes, guarda
um ritmo paratático através do encadeamento de construções paralelas que sintetizam a ação,
por exemplo: “Primeiro o ritual do domínio sobre os pequenos objectos imóveis: as botas, a
arma, o colete pesado” (TAVARES, 2008, p. 19). Assim, economizam-se palavras e o
silêncio predomina. Ao invés de: “calçar as botas, carregar a arma e vestir o colete pesado”;
as orações tornam-se mais breves e mais impactantes dando dinamicidade e velocidade à
narrativa.
O estilo usado pelo escritor traduz a violência que não pode ser posta em palavras; a
violência narrada evoca outros traumas da personagem. No próximo excerto lê-se o seguinte:
“Lenz levanta a saia da mulher, vira o rabo dela para si, empurra-a contra o lavatório, baixa as
suas calças, baixa-lhe as cuecas (ela ajuda) tira o pénis e com rapidez penetra a mulher”
(TAVARES, 2008, p. 28). Com a mesma violência que o pai lhe impusera na adolescência,
Lenz impõe a violência à mulher na vida adulta à frente de um “vagabundo, que mal levanta
os olhos para eles” (TAVARES, 2008, p. 28). E essa violência consiste de uma violência
física e moral, cujos resultados não são evidentes porque são mascarados pelos silêncios.
O estilo paratático, cadencial e fragmentado das frases que dinamizam a ação e
aceleram os movimentos: os gestos soam mais brutos. Na sequência: “o homem, sem se
dirigir a ninguém, parece falar sozinho; murmura algo, imperceptível” (TAVARES, 2008, p.
28). A ocorrência dessas construções segmentadas, repletas de silêncios cumpre um papel
estilístico fundamental porque traduz a violência do gesto. A presença de frases incompletas
caracterizado por um estilo fleumático transmite a ideia de incapacidade de narração dos fatos
narrados.
Eventos que representam atos cruéis, absurdos e de todo modo violentos requerem a
presença do silêncio para traduzi-los. É consabido que o absurdo é inassimilável, portanto,
115
indizível, silêncio. O silêncio, nesse sentido, apenas sugere e alude a determinado evento
absurdo, mas não o reconstrói, pois a impossibilidade de enunciá-lo recai na impossibilidade
de compartilhá-lo com o outro em sua plenitude.
Não se transmitem ao outro as sensações e as impressões de forma clara e discernível.
Talvez seja por isso que o vagabundo, que está diante de Lenz e Maria Buchmann, murmura
algo que é imperceptível tanto para o narrador, quanto para o casal Buchmann e também para
os leitores, porque o que ele tem diante de si é, simplesmente intraduzível: o indizível.
Pode-se observar ainda, alguns traços que Eni Orlandi (2007) chama de figuras do
silêncio e que são caracterizadas por elipses, descontinuidade temática, subdeterminação
semântica e também preterição. Além dessas figuras, as lacunas no texto, os vazios deixados
pelo narrador e os significados escondidos nas entrelinhas realçam a presença do silêncio
dentro da obra. E o leitor tem toda possibilidade de identificar essa tal presença. Em uma
análise específica dessa presença, deve-se considerar a seguinte passagem.
Lenz, furando por completo os seus hábitos, decidiu naquela noite deixar
entrar um pedinte. Lenz ria-se.
– Dou-lhe o seu pão.
A pedido de Lenz, a mulher trouxe o jornal do dia. Enquanto o entregava,
disse-lhe:
– Por favor, dá-lhe o que ele quer e manda-o embora.
Lenz acariciou ao de leve o rabo da mulher e riu-se para o vagabundo. Pediu
que ela saísse:
– Conversas de homens – e sorriu de novo.
– Já viu estas notícias? – perguntou Lenz ao vagabundo, enquanto lhe
estendia o jornal com a primeira página virada para cima.
– Estou com fome – disse o homem. (TAVARES, 2008, p. 22).
A maneira como Lenz conduz a conversa é bastante significativa, pois há ausência
completa de diálogo e o silêncio se manifesta nas frestas. As falas das personagens são
marcadas por descontinuidade temática. Enquanto a esposa de Lenz pede ao marido que
mande o mendigo embora, ele simplesmente responde: “Conversas de homens” quando,
simplesmente não há nenhuma conversa. Há, pelo contrário, silêncios. Em “Conversas de
homens”, por exemplo, há omissão de palavras sinalizando a presença de elipse. Para o
mendigo faminto Lenz pergunta: “Já viu estas notícias?”. É claro que Lenz não esperava que
o mendigo faminto respondesse à sua pergunta. Este apenas afirma que está com fome. E, em
contrapartida, “Lenz não respondeu. Tinha ainda o jornal na mão” (TAVARES, 2008, p. 22).
Entretanto, Lenz continua:
116
– Veja isto: o presidente diz que a população finalmente começa a ter algum
sossego. Vê? Que sossego é este? Conhece-o?
– Por favor... – repetia o homem.
Lenz continuou a ler os títulos da primeira página [...]
– Não me humilhe – disse o homem.
Lenz pediu-lhe para não ser ridículo.
– Deve respeitar o país. Sabe o hino? Vou dar-lhe comida. Quer? E dinheiro?
O vagabundo mexeu-se ligeiramente. Estava em pé: Lenz ainda não
permitira que ele se sentasse no pequeno banco que estava vazio, ao seu
lado. (TAVARES, 2008, p. 23).
A fala do mendigo é interrompida por reticências. Sabe-se que as reticências são uma
omissão voluntária do que se pretende dizer: um sinal gráfico da presença do silêncio. Mas
também, essas reticências indicam uma oclusão. Afinal, Lenz não permite que o mendigo fale
consigo. As palavras do mendigo são premidas pelo silêncio e constantemente esvaziadas de
sentido. “Não me humilhe”, repete o mendigo, mas Lenz despreza completamente o pedido
deste. Ao dizer para ele não ser ridículo, fica subentendido que o silêncio e palavra expressos
pelo mendigo são insignificantes para Lenz. O “por favor” e o silêncio do pedinte para Lenz
correspondem ao vazio. Entretanto, sabe-se que após esse “por favor”, há o silêncio de um
sofrimento que não cabe em palavras. E o silêncio persiste em formas de elipse: “Sabe o
hino? Vou dar-lhe comida. Quer? E dinheiro?” e em forma de subdeterminação semântica: “–
Mas cante primeiro o hino – pediu Lenz. – Em qualquer situação... Não perder o sentido da
existência, percebe?” (TAVARES, 2008, p. 23). O que o hino representa, senão uma ideia
vazia de coletividade, onde o canto coletivo apaga a diferença e silencia o outro (o mendigo).
Além disso, é bastante interessante reparar que o mendigo não poderia sentar no banco
que estava vazio ao lado de Lenz. Primeiramente, porque o banco, segundo o narrador era
pequeno. Lenz teria que dividir um espaço escasso com alguém que está abaixo de si na
escala social e para Lenz tal ideia é inaceitável. Ademais, sentar ao lado de Lenz, colocaria o
mendigo à mesma altura deste. Lenz, então, ficaria nivelado ao mendigo. Mas esse excerto
não esconde a sensação de superioridade que domina Lenz nesse encontro com o mendigo.
Aliás, são inesgotáveis os mistérios guardados do silêncio da linguagem, porque a
linguagem, como se tem afirmado até aqui, tem como princípio fundador o silêncio. Não há
nada que seja enunciado nesse romance que não implique silêncio. Toda linguagem implica
silêncio (ORLANDI, 2007). Fábio Elias Tfouni (2008), em seu ensaio intitulado Interdito e o
silêncio: duas abordagens do impossível na linguagem, propõe o seguinte: “Antes da
enunciação, onde não há movimento, todos os dizeres são possíveis. Já, no movimento da
enunciação, o que é dito é uma “escolha” contingente do enunciatário [...]” (TFOUNI, 2008,
117
p. 357). De outro modo, qualquer enunciação implica um conjunto de escolhas e, certamente,
evidencia a presença de uma forma de silêncio no discurso.
Na última parte do capítulo intitulado “O Médico na Era da Técnica”, Lenz que havia
tratado de uma mulher no hospital com bastante perícia, precisou silenciá-la. Pois, para
expressar certa imagem é preciso silenciar outras. E a moribunda, após o sucesso da operação,
conduzida por Lenz em um gesto de gratidão e reconhecimento afirma: “Você é um homem
bom!” (TAVARES, 2008, p. 36). Lenz, ao invés de aceitar o cumprimento e acolher as
palavras da mulher, coloca-as no silêncio.
Apaga-se o registro daquilo que foi dito. Afinal, ele não poderia aceitar um
cumprimento que menosprezasse a sua técnica. Por isso, Lenz responde-lhe friamente:
“Desculpe, não sou nada disso. Sou médico” (TAVARES, 2008, p. 36). Lenz reduz a mulher
ao silêncio e com isso reduz também o final do capítulo ao silêncio, no sentido de que
nenhuma palavra é mais bem-vinda.
Todo desenrolar narrativo implica de certa maneira um silenciamento estrutural e
constitutivo. Por isso, Eni Orlandi (2007, p. 74) entende que: “o silêncio trabalha assim os
limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer”, mas
não apenas isso, ainda segundo essa autora, o silêncio “[...] põe em funcionamento o conjunto
do que é preciso não dizer para poder dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74). Ora, a disposição
fundamental do silêncio é a pulsante paralisia da linguagem discursiva diante de fatos que
são, por natureza, grandes demais para linguagem comum. Esta não é capaz de transmitir as
ações, as sensações e as impressões do sujeito que vê.
No último capítulo de Força, intitulado, “O diagnóstico a doença”, Lenz tem um
encontro com o seu médico, pois ele fora diagnosticado com uma mancha negra no seu
cérebro. Visivelmente transtornado, a cena que se segue é uma breve conversa que Lenz tem
com o seu médico após a confirmação do diagnóstico.
– Já vi vezes sem conta imagem destas – disse, irritado, Lenz Buchmann,
enquanto segura nas mãos as radiografias da cabeça.
– Senhor Buchmann, sim... – disse o médico – mas agora é na sua cabeça.
– Isso não me assusta! – disse Buchmann.
– Nós não podemos fazer nada. A única coisa...
– Não me interrompa – disse Lenz –, ainda não tinha terminado.
– Peço desculpa, doutor Buchmann. (TAVARES, 2008, p. 250).
A estrutura aplicada nesse capítulo se assemelha ao esquema do silêncio anterior e
posterior e o silêncio da intromissão proposto por Bernard Dauenhauer (1980). É preciso não
118
perder de vista de que esse capítulo, seguindo o raciocínio do silêncio da intromissão é
paulatinamente esvaziado para que os próximos capítulos também possam fazer sentido.
Constrói-se uma trama baseada no silêncio de cada capítulo e entre cada capítulo. Dessa
forma, o silêncio que se interpõe entre cada capítulo da trama alimenta de significados o
capítulo seguinte.
O diálogo entrecortado cede espaço ao silêncio e tem o significado prolongado para
preencher de sentido a próxima fala. A estrutura das frases que antecedem as reticências é
pontuada pelo silêncio. As reticências, nesse caso, representam graficamente o silêncio, uma
modalidade específica que se interpõe entre cada fala de cada uma das personagens. As falas
entrecortadas do médico que faz o diagnóstico de Lenz complementam-se com as falas de
Lenz. Percebe-se o esquema do silêncio da intromissão de Bernard Dauenhauer onde: “o
sentido da primeira frase é orientado para o da segunda e o sentido da segunda remonta o
sentido da primeira” (DAUENHAUER, 1980, p. 7) 15
. Entretanto, esse capítulo não deixará
de demonstrar que há muitos silêncios em jogo.
O próprio subtítulo desse capítulo transcrito anteriormente sugere silêncio: “Olhar para
o mesmo de maneira diferente”. Ora, o que é o silêncio senão conferir diferentes sentidos a
um mesmo objeto e reconhecer a fluidez dos sentidos? Eni Orlandi (2007), brilhantemente,
propõe que os sentidos migram para diferentes objetos simbólicos, que há na linguagem
movimento dos sentidos. “Uma vez estancado um processo de sentidos, numa posição em sua
relação com as formações discursivas, o sentido emigra (e se desloca) para qualquer outro
objeto simbólico possível” (ORLANDI, 2007, p. 124). Benedito Nunes, em seu ensaio
intitulado Linguagem e silêncio (2009), reconhece que a linguagem poética, a linguagem
criadora, “[...] dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais
coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos
o mundo em sua complexidade e profundidade” (NUNES, 2009, p. 125). Na segunda parte do
romance, Lenz já não é mais o mesmo e o silêncio também não é. Lenz não é mais capaz de
impor o silêncio, de reduzir os outros ao silenciamento, como ele fazia quando ainda tinha
pleno controle de suas forças.
Em Doença, Lenz perde o controle sobre a linguagem e, consequentemente, perde o
controle sobre o silêncio. A habilidade que antes ele demonstrava em operacionalizar a
linguagem e pôr as demais personagens em completo silêncio, parece ter se esvaído depois da
15
“The sense of the first sound phrase is oriented to that of the second and the sense of the second harks back to
that of the first” (DAUENHAUER, 1980, p. 7 – tradução nossa).
119
cirurgia. “Está sem força [...] ainda sem as suas capacidades por completo” (TAVARES,
2008, p. 254) é o que constata o narrador. A decadência física de Lenz, portanto, era
acompanhada por uma gradual perda de capacidade e destaca-se, sobretudo, a capacidade que
a personagem tinha em administrar o silêncio. E essa mudança radical que se observa em
Lenz, pode ser percebida inclusive no plano estrutural.
Lenz, por exemplo, teme o seu encontro com o silêncio, pelo menos o silêncio
profundo que o levaria de encontro com o silêncio primordial. Logo se percebe esse medo,
pois Lenz não deixa que o silêncio do seu médico seja maior que o seu. Ao ser notificado pelo
médico sobre o cancro no cérebro, Lenz, naturalmente, sabe das consequências e as suas
constantes interrupções demonstram certo pavor e medo do protagonista. E, sobretudo,
demonstram um desejo intenso de reforçar o seu poder que se manifesta na capacidade de
fundar o seu próprio silêncio, um silêncio encobridor que apaga os sentidos do médico e o
afasta da sua realidade trágica. Lenz estabelece turnos de sentido entre ele e o seu médico. Ele
é quem decide quando o médico deve falar, mas a cada pequena sentença pronunciada pelo
seu médico, provoca em Lenz uma sensação de fraqueza e de vulnerabilidade.
Depois desse breve diálogo entre Lenz e o médico lê-se o seguinte: “O que deveria,
pois, dizer naquela situação? Isso nunca Lenz Buchmann havia aprendido” (TAVARES,
2008, p. 250). O esquema do silêncio de Bernard Dauenhauer (1980) fica nítido ao se lançar
um olhar com atenção para o final desse capítulo. A própria personagem provoca o seu
próprio silêncio e esse silêncio se prolonga até a segunda parte do romance: “Doença”.
A primeira coisa a se observar na passagem da primeira para a segunda parte, cujo
capítulo inicial é intitulado “Acordar no meio de máquinas e ficar agradecido”, é a distância
que o silêncio impôs entre “Força” e “Doença”. Houve um corte no plano da ação e eventos
importantes deixaram de ser narrados, confiando, assim, apenas no poder de expressão do
silêncio. Apenas um exemplo:
Rodeado de tubos que à primeira vista e à primeira sensação parecer partir
do interior de si mesmo e não vir de fora, envolvido ainda por diversos
outros apetrechos mecânicos, com luzes vermelhas e verdes que assinalam
estados que num primeiro olhar ninguém poderia interpretar com rigor, Lenz
Buchmann acorda, meio estremunhado, na cama do hospital, várias horas
depois da operação na cabeça. Não percebe de imediato onde está nem o que
lhe aconteceu e o único instinto nasce de um acontecimento que ele localiza
de forma vaga, no lado direito do corpo. (TAVARES, 2008, p. 253).
Lenz acorda no meio de máquinas e fica agradecido logo após realizar uma cirurgia.
Entre o diálogo de Lenz e seu médico e o momento que ele acorda um pouco desorientado na
120
cama de um hospital há apenas silêncio: um silêncio radicalmente irredutível e necessário
para estabelecer a relação entre essas duas grandes partes “Força” e “Doença”.
Diferentemente do silêncio que encerra a primeira parte do romance que é hostil,
repleto de interrupções, pausas, reticências, o silêncio que se complementa ao capítulo final
de Doença e transcrito logo acima é, definitivamente, menos hostil e com ares de
grandiloquência. O próprio fazer do silêncio, nesse capítulo, implica o reconhecimento de
finitude. Conforme, Bernard Dauenhauer (1980, p. 25) 16
, “o silêncio anterior e posterior
vincula a elocução dentro de uma unidade”. Contudo, por mais impermeável que se revele o
silêncio nessa passagem, é possível em seus desdobramentos reconhecer o seu modo de
funcionamento.
O teor enigmático e visceral do silêncio na segunda parte do romance intensifica-se no
decorrer de suas páginas. Como se sabe, a doença de Lenz tem caráter incapacitante e
progressivo. Ele perde, assim, a firmeza no seu trato com a operacionalização da linguagem.
Consequentemente, essa personagem é confrontada com o silêncio maior. Há uma passagem
do romance em que Lenz se perturba quando ouve o barulho dos homens que recolhiam o
lixo. Os ruídos no meio da noite eram demasiado altos.
O que mais o irritava naquilo tudo era o facto de aqueles homens agirem
com total indiferença em relação ao seu estado. Certamente saberiam que
aquela era a casa de Lenz Buchmann e certamente saberiam – toda a gente
sabia já – que ele estava doente, com uma doença grave, e por isso era
inconcebível aquela descontracção, aqueles ruídos constantes e repetidos;
acima dos mais, aquelas vozes que se ouviam, manifestando um total
distanciamento em relação ao seu sofrimento. Por que precisavam eles falar?
O que tinham a dizer uns aos outros? O que tinha a dizer um homem que
carrega às costas um saco de onde sai um fedor absolutamente não humano,
ou humano de mais, ou o fedor que resta depois do humano se saciar, o que
tinha afinal a dizer um homem desses a outro homem desses – homens que
carregavam lixo? Que contariam eles uns aos outros?, pensava Lenz.
Anedotas? Comentariam uma notícia do jornal? Falariam dos filhos? Por que
tinham eles de falar? Por que é que aquele ofício não era feito, pelo menos,
por surdos-mudos? Gustav, o pobre do Gustav Liegnitz seria perfeito para
aquele ofício. Para que precisa de falar e ouvir um homem que carrega lixo?
Um homem que tem, primeiro de, com os olhos, localizar os sacos pretos à
entrada dos edifícios e que depois simplesmente os tem de levar de um ponto
para outro – fazê-los desaparecer da vida normal das pessoas e enxotá-los
para não se sabe onde, mas para um local que, pelo menos, tem a qualidade
de ser distante: não suportaríamos menos o cheiro que uma única semana da
nossa vida deixa atrás. Que bom, sim, para longe; deitem o lixo para o longe,
mas façam-no em silêncio! (TAVARES, 2008, p. 279-0).
16
“Fore-and-after silence binds the utterance into a unit” (DAUENHAUER, 1980, p. 25 – tradução nossa).
121
As palavras de Lenz provam que ele quer silêncio. Mas o que o silêncio contido nessas
palavras grita? Lenz pede silêncio tentando encobrir o próprio silêncio. É evidente nesse
entrecho narrativo o ritmo galopante e incessante observado nesse excerto. Há, claramente,
uma tentativa fracassada de conter o silêncio. O que esse excerto demonstra é, na verdade, a
dilatação do silêncio da intromissão de Bernard Dauenhauer (1980). As perguntas acumulam-
se umas sobre as outras reduzindo o espaço do silêncio entre elas, porém sem eliminar o
silêncio de todo modo. É evidente a insatisfação de Lenz com relação ao barulho produzido
pelos homens do lixo, mas o que o silêncio nessa passagem permite constatar é que não é a
falta de silêncio que incomoda Lenz, mas a possibilidade real de vivenciá-lo.
Lenz sozinho em seu quarto tem um momento quase inédito. Quando ele tinha saúde
esses momentos eram praticamente inexistentes. Doente, ele tem oportunidade de ter uma
experiência real e profunda com o silêncio, aquele silêncio profundo capaz de alcançar a
dimensão mais substancial da existência humana e, assim, levar Lenz ao conhecimento, cada
vez mais aprofundado, de si mesmo. Diferente daquele silêncio ao qual Lenz estava
acostumado desde criança que apaga sentidos.
Definitivamente esse silêncio assusta Lenz. Por isso, a personagem usa o ruído como
mero pretexto para sair do estado de silêncio em que ele se encontrava. Afinal, se é de silêncio
que a personagem precisa por que então suas perguntas são basicamente a mesma coisa? “Por
que precisavam falar [...]”; “O que tinham a dizer [...]”; “Que contariam eles [...]” e “Por que
tinham eles de falar [...]”. Confrontado com essa modalidade de silêncio mais profundo e
contemplativo, Lenz, gradualmente, rende-se ao poder do silêncio e tudo isso não deixa de
transparecer na forma desse romance.
De maneira análoga ao procedimento adotado no movimento da primeira para a
segunda parte, pode-se reparar esse mesmo movimento do silêncio ao relacionar a segunda
com a terceira parte desse romance. No último capítulo da segunda parte, o leitor é informado
sobre a real condição de saúde de Lenz Buchmann e o primeiro dado que se pode extrair é a
dilatação da ação. O médico dá instruções pontuais à Lenz, porém, nada é dito sobre ele. O
narrador não pode retratar Lenz seguindo as instruções médicas, porque Lenz não é capaz de
segui-las. Lenz era puro silêncio deitado em sua cama.
– Faça uma forte inspiração – pedia já o Dr. Selig – e, depois, com toda a
força que tiver, expulse o máximo de ar cá para fora. O Dr. Selig pedia isto a
Lenz e, ao lado da cama, em pé, a uns metros deste exame implacável, deste
exame que, como se disse já, parecia de escola, colocando questões básicas,
mas, ao mesmo tempo, julgado com um rigor neutro e impenetrável,
122
enquanto este exame decorria era, então, Júlia que, parecendo um aluno
melhor a sussurrar a matéria ao aluno mais fraco, ao lado da cama e em pé,
sem disso ter consciência, inspirava com o máximo de profundidade e
expirava depois, fazendo com a contenção possível mas desnecessariamente,
o que o Sr. Buchmann já não era capaz de fazer. (TAVARES, 2008, p. 330).
O narrador, por sua vez, insere descrições (“ao lado da cama, a uns metros”, “ao lado
da cama e em pé” “inspirava com o máximo de profundidade e expirava”); introduz
novamente comentários no discurso narrativo (“julgado com um rigor neutro e impenetrável”,
“fazendo com a contenção possível, mas desnecessariamente”), faz comparações (“como se
disse já, parecia de escola”, “Júlia que, parecendo um aluno melhor”) com o intuito de
administrar o silêncio que assalta o final desse capítulo. O capítulo ruma ao silêncio, mas um
silêncio diferente daquele identificado na primeira parte do romance, como se pode observar.
O início da terceira parte é marcado por uma lacuna na relação da ordem dos
acontecimentos da narrativa. Há, como se pode perceber, uma concentração maior de silêncio
entre Doença e Morte. Todavia, não há incongruência entre os fatos narrados, mas
intensificação do silêncio na obra. Por se tratar da morte, o silêncio assume outra
configuração. Conforme David Le Breton (1999, p. 247), “A morte vem mostrar que, para
além do silêncio que por vezes afoga a fala da vida quotidiana, se estende um outro silêncio,
ainda mais profundo, relacionado com o próprio sentido da presença do homem no mundo”. E
esse silêncio tem consequências notáveis para a compreensão da narrativa. No capítulo “O
suicídio prepara-se”, lê-se o seguinte:
Os pequenos momentos que ainda tinha de consciência haviam permitido a
Lenz Buchmann tomar uma decisão. Falara a Julia, como não podia deixar
de ser, e ela, embora chocada, não reagiu de forma irracional [...] O pai,
Frederich, suicidara-se com um tiro na cabeça e para ele, um Buchmann, a
ideia de que tinha o dever de só morrer sob a força do metal era uma ideia
fixa e inegociável. Mas Lenz, naquele momento da doença, já precisava de
ajuda para a cumprir. (TAVARES, 2008, p. 333).
O cuidado do narrador manifesta um tanto de espanto e hesitação. Pois tanto o
narrador quanto a personagem tentam retardar a ação e assim suspender o avanço da morte.
Observa-se a manobra narrativa encontrada pelo narrador para poder dar conta da expressão
do silêncio da morte que se aproxima: um retrospecto fragmentado da vida da personagem
além de questionamentos sobre sua trajetória até ali.
Como chegara ele ao ponto de não conseguir, exclusivamente, pelos seu
meios, com o seu corpo, cumprir uma determinação antiga? De facto, para o
jovem Lenz, com dezoito anos, para o depois conceituado médico, como
123
depois ainda para o político, nunca a dúvida se instalara. Pela educação que
recebera do pai Frederich e depois, mais tarde, pelo próprio exemplo prático
deste, ficara claro que nenhum verdadeiro Buchmann poderia morrer de
doença, de forma gradual. (TAVARES, 2008, p. 334).
É uma escolha bastante razoável dizer “determinação antiga” ao invés de suicídio.
Apesar do pedido de Lenz, o suicídio é um interdito. Lenz parece temer a morte que se
aproxima e o narrador reproduz esse temor retardando a ação. Tentando adiar o inevitável: a
morte de Lenz. Evita-se dizer suicídio. “Nunca a dúvida se instalara”, mas agora, Lenz parece
hesitar sobre essa decisão, talvez seja por essa razão que o pedido só é feito no final desse
capítulo, duas páginas depois entre reflexões, retrospectos e questionamentos. A esperança de
sua melhora sinaliza um desejo não verbalizado de que quer viver e de que, além de tudo, ele
teme a morte. “Fora então este o seu erro: a sensação falsa de que ainda conseguia, de que isto
ainda não estava terminado” (TAVARES, 2008, p. 335). Lenz não consegue cometer suicídio.
Depois dessa cena, o narrador assume o controle da voz de Lenz. Ele não se
manifestará mais pelos seus próprios meios. Na verdade, após esse episódio nenhuma
personagem falará diretamente. O silêncio condensa-se. O narrador traduz o ambiente, o
tempo e o espaço em seu próprio ritmo e por seus próprios meios. A visita do sacerdote na
casa de Lenz, embora intitulada: “Ultima tentativa para a Palavra ser ouvida” (TAVARES,
2008, p. 347), Lenz e leitor não ouvem nada. “[...] o padre já estava em pleno processo,
mergulhado num discurso ininterrupto, discurso de tal forma sólido que parecia constituído
por uma única palavra” (TAVARES, 2008, p. 349). Mas Lenz está compenetrado em silêncio
e o seu silêncio subjuga a palavra:
No entanto, Buchmann, sem saber bem o que estava naquele momento a
dizer o sacerdote – ele parecia ter na boca a palavra ou o vocábulo mais
longo do mundo –, sem o ouvir já, Buchmann pensava em dizer Não, Não
em voz alta. Porém, sentiu logo que tal era um esforço inconsequente. Não
conseguiria. (TAVARES, 2008, p. 351).
Assim, muito sutilmente o narrador suprime a voz de Lenz e a encaminha a um
silêncio profundo inquietante. O silêncio, nesses momentos finais da narrativa, goza de uma
primazia sobre o discurso verbal. O silêncio aproxima o leitor da experiência narrada. Embora
a morte do protagonista seja inundada por palavras, o narrador por sua atitude demonstra que
a palavra é frágil e se desfaz perante o inefável.
Nessa direção, o romance é, definitivamente, a forma literária da era burguesa. Sendo
assim, esse gênero é sobrecarregado por múltiplas linguagens e por múltiplas vozes que visam
uma representação total e definitiva do mundo e do homem burgueses. No entanto, ao analisar
124
as formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica consta-se que esse romance carrega um
fardo pesado demais para confiar à linguagem discursiva. É aí que o surge o silêncio como
possibilidade de representação de um mundo e de homens extremamente complexos e
heterogêneos. O silêncio é, muito provavelmente, o único fenômeno capaz de traduzir o
indizível e o inefável.
Aprender a Rezar na Era da Técnica é o romance da desumanização que se sustenta
sobre o indizível. A sociedade representada nesse romance celebra um parlapatório no qual a
verborragia carece de sentido. O romance sugere, de certa maneira, que há de ter que aprender
a rezar e recobrar o silêncio na era em que a técnica alija o silêncio. É, portanto, pela
proximidade inquietante com o silêncio ao incorporar o silêncio em suas formas, que se
confere a Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares, um caráter mais
abrangente e pleno na representação de um mundo cruel. Ainda que o mundo contemporâneo
seja arrebatado pela multiplicidade de linguagens e celebre com grande fervor o poder da
palavra, em Aprender a Rezar na Era da Técnica, por outro lado, assiste-se ao triunfo do
silêncio.
125
CAPÍTULO III
DESDOBRAMENTOS DOS SILÊNCIOS DE APRENDER A REZAR NA ERA DA
TÉCNICA
“O silêncio é uma via em direcção a nós próprios, à reconciliação com o mundo".
(David Le Breton)
O processo de composição de Aprender a Rezar na Era da Técnica obedece, de certa
forma, aos contornos do silêncio. Muitos dos seus aspectos formais e estéticos são, como se
pode observar no capítulo anterior, influenciados e transformados pelo silêncio. O terceiro
capítulo desta dissertação detém-se, predominantemente, na análise do desdobramento desses
silêncios. No segundo capítulo, pode-se observar como as formas do romance cedem ao poder
encantatório dos silêncios e como esse fenômeno irredutível se prende ao gênero. Enquanto
que o silêncio se incorpora à forma, o conteúdo converge para o mesmo ponto (o silêncio) e lá
dá forma a novos sentidos.
Observa-se, nesse último capítulo, o combate feroz e vivificante das personagens de
Aprender a Rezar na Era da Técnica ao silêncio. Para dar a conhecer as formas tirânicas do
silêncio, aprofundam-se, assim, as discussões sobre silenciamento e censura. É consabido que
a representação da violência, do autoritarismo e da censura pede registro de uma linguagem
igualmente fria, autoritária e, é claro, repleta de interditos. Ao lançar um olhar mais apurado
às personagens de Aprender a Rezar na Era da Técnica ficam evidentes as formas de silêncio
que caracterizam as relações entre as personagens.
E, muito provavelmente, essas formas brutas e tirânicas de silêncio têm um efeito
arrebatador no leitor. A fim de cumprir o último objetivo dessa dissertação, será necessário
recobrar as discussões sobre silenciamento, política do silêncio, além de fazer um paralelo
entre silêncio fundante, silêncio primordial e Aprender a Rezar na Era da Técnica de Gonçalo
M. Tavares. De tal forma, propõe-se o encontro do leitor com o aquilo que é
fundamentalmente e primordialmente essencial à linguagem e, por conseguinte, ao homem: o
silêncio.
126
3.1 Personagens entre censura e silêncios
Aprender a Rezar na Era da Técnica é um impressionante painel da violência e da
maldade. Uma originalidade sem precedentes que desponta no cenário literário
contemporâneo com uma linguagem instigante e ao mesmo tempo obsessiva com relação ao
silêncio. É que de fato, o silêncio é a pedra fundamental de Aprender a Rezar na Era da
Técnica, por isso não se pode conceber esse romance sem recorrer ao silêncio. E o leitor,
desde a primeira página, é defrontado com um silêncio provocante e perturbador. Como
reação ao tecnicismo, ao parlapatório e ao ruído que se alastraram no mundo contemporâneo,
Gonçalo M. Tavares concede maior espaço ao silêncio significativo, que é, sem dúvida,
irredutível ao verbo e inquebrantável ante o ruído e ao barulho sem sentido que imperam na
contemporaneidade.
A radicalização desse procedimento resulta em uma linguagem equilibrada e
geométrica, porém repleta de silêncios e lacunas; cirúrgica e dura, porém, ao mesmo tempo,
profundamente subjetiva. Essa obra investe, portanto, radicalmente nessa subjetivação
prescindindo da palavra e caminhando em direção ao silêncio. Não obstante, o silêncio não é
apenas um ingrediente para descobrir a subjetividade humana e lá encontrar a libertação e,
consequentemente, alcançar a iluminação (DAUENHAUER, 1980). O silêncio é sim paz e
tranquilidade que permeia a vida do sujeito de diferentes formas e acarreta diferentes sentidos,
mas também é expressão de poder. O exercício do silêncio é, sem dúvida, uma forma de
influenciar e de determinar os rumos da linguagem (DAUENHAUER, 1980).
Sabe-se que controlar o silêncio é, incontestavelmente, demonstração de poder. O
silêncio, como se tem defendido até aqui, é um fenômeno amplo, cujos efeitos são, entre
outros, opressão e controle sociopolítico, partindo da perspectiva política do silêncio
(JAWORSKI, 1993); (LE BRETON, 1999); (ORLANDI, 2007). Do controle do silêncio, é
possível determinar os sentidos da linguagem e estabelecer relações de imposição e de
submissão. E a partir da operacionalização da linguagem é possível gerenciar os sentidos das
personagens e interferir na percepção que o leitor tem sobre toda a narrativa.
Aprender a Rezar na Era da Técnica é, entre todos os livros de Gonçalo M. Tavares,
quiçá, o mais comprometido com a representação do silêncio da opressão, o silenciamento e a
censura. Há, pois, silêncios que fazem parte da linguagem, que expressam a dor, o medo, a
complexidade do ser, frente às angústias do quotidiano. E, por outro lado, há outros silêncios
que derivam de um ambiente sociopolítico com características muito específicas, e esses
127
silêncios caracterizam-se opressores e políticos. De acordo com Adam Jaworski (1993), são
condições necessárias para despontar esse silêncio opressor: 1) a existência de uma crise
externa que justifique a concentração de poder; 2) a identificação de um inimigo comum; 3) o
alastramento do medo; 4) a confiança geral na capacidade da figura do líder de resolver o
problema (JAWORSKI, 1993). Tudo isso confere a uma determinada conjuntura o
surgimento de atores na tarefa de reprimir e controlar os sentidos manifestados por um
determinado grupo social.
Em um ambiente com essas características, é incontestável a presença de uma força
dominadora que combinada a um silêncio opressor procura apagar certos sentidos e
estabelecer dominância. No Reino de Gonçalo M. Tavares, essa força dominadora é
representada por duas personagens: Lenz e Frederich Buchmann. A primeira personagem, sob
o efeito do medo e da repressão sofrida pela segunda leva o seu projeto de repressão de
sentidos e de censura até as últimas consequências. Para dar a conhecer as formas despóticas e
tirânicas de Lenz Buchmann é preciso entender que esta personagem amplia a sua rede de
censura e opressão a todo universo do romance, valendo-se de algumas estratégias que ficarão
mais claras ao longo deste capítulo.
Frederich Buchmann, por sua vez, à diferença do filho – Lenz –, continua exercendo
controle sobre ele e censurando as atitudes dele mesmo após a sua morte. Assim, todas as
personagens, com exceção de seu pai, sofrem com a censura da protagonista. Frederich
Buchmann é o único resistente ao poder de Lenz, porque ele é, de certa forma, responsável
pela maneira como o filho reage ao silêncio. Sempre em “posição de ataque” (TAVARES,
2008, p. 226). Daí decorre que quase todo desenrolar de Aprender a Rezar na Era da Técnica
advém de um silenciamento; um ataque de Lenz à manifestação dos sentidos.
No entanto, onde há silêncio há sentido. Qualquer que seja sua modalidade, o silêncio
significa. Por essa razão, censura e silenciamento não podem, de maneira alguma, ser
entendidos como a antítese do silêncio, opostos ao sentido, pois os sentidos censurados
significam por outros meios e por outras formas. Em outras palavras, o silenciamento e a
censura não invalidam os sentidos, mas produzem outros sentidos e guiam o leitor por novos
caminhos. Assim, esta dissertação passa a discutir os significados do silenciamento e da
censura em Aprender a Rezar na Era da Técnica, a partir da perspectiva da política do
silêncio focalizando a reação e a relação de cada personagem ao e com o silêncio.
3.1.1 Lenz e o silenciamento
128
Lenz Buchmann é uma personagem dominadora com perfil autoritário, cruel e
megalomaníaco. Médico renomado substitui as atividades clínicas para se entregar com total
dedicação à atividade política. E como político, ele demonstra ser um homem com inclinação
para o terror, para a violência e para crueldade. A fim de realizar o seu plano de firmar a sua
posição no mundo e estabelecer o seu próprio Reino, Lenz desconsidera totalmente quaisquer
limites morais para dar cabo de sua monstruosa intenção. Todos os homens que o rodeiam
convertem-se em meros instrumentos (objetos) para que ele possa realizar os seus projetos
arbitrários e egoístas. Disposto a tudo, inclusive a matar, Lenz destaca-se das demais
personagens por essa e por outras características exclusivas.
Lenz domina a linguagem e domina, especialmente, o silêncio contido nela. Sua
habilidade na administração dos sentidos por meio do silêncio é singular, visto que não há
nenhuma personagem que demonstre ter tanto domínio do silêncio quanto ele. Como
protagonista da narrativa e em posição de poder, Lenz tem certamente o controle do tamanho
do seu silêncio e do silêncio do outro. Seu controle excede inclusive o poder do narrador. A
sua capacidade de controlar o fluxo de sentidos dos outros e de si próprio é, justamente, o que
distingue Lenz das demais personagens que compõe Aprender a Rezar na Era da Técnica.
Analisar a estratégia da política do silêncio empreendida pela protagonista de
Aprender a Rezar na Era da Técnica consiste em levar em conta o que David Le Breton
conclui sobre a linguagem. Para ele:
A linguagem é poder, poder de obrigar o outro, de lhe impor idéias, de lhe
dar ordem de se calar ou de falar. A palavra não é inocente naquilo que
implica que um outro se cale e se subordine a ela, principalmente às suas
consequências que podem ser mais ou menos pesadas. É muitas vezes um
monopólio ou uma prioridade que aproveita ao detentor do poder ou da
autoridade hierárquica. Numa instituição, a distribuição do tempo de palavra
ou de silêncio depende da distância social que separa os diferentes membros.
(LE BRETON, 1999, p. 78).
No hospital, Lenz “ganhou fama em poucos anos” (TAVARES, 2008 p. 30), porque
dominava a linguagem mais que qualquer outro. Médico habilidoso no manejo do bisturi
impressionava todos os colegas e deixava os enfermeiros à sua volta espantados com tanta
concentração e domínio de técnica. Lenz era um artista nessa: “[...] arte de procurar estilhaços
de metal no meio do corpo [...]” (TAVARES, 2008, p. 42). E sendo excelente nessa arte “[...]
Lenz por vezes dizia-o – de implantar uma nova monarquia [...]” (TAVARES, 2008, p. 31)
onde ele seria ou estaria no centro do Reino. Para determinar essa posição, cada palavra
129
pronunciada era repleta de silêncio que minava e arruinava a palavra do outro e, sobretudo,
arruinava os sentidos produzidos pelo outro.
O uso abundante do silêncio está, de certa maneira, ligado ao contexto de repressão e
de medo do pós-guerra. Muito antes de conhecer Hamm Kestner, colega de Lenz no Partido,
que aconselhava: “Podemos apenas dar ordens, não precisamos de conversar” (TAVARES,
2008, p. 190), Lenz sabia-o bem. Estava plenamente consciente disso, pois só a sua presença
bastava para se instalar um silêncio insistente e rigidamente sólido. No hospital, Lenz só
pronunciava ordens monossilábicas, frases breves e cortantes, que traduziam no plano da
linguagem a assimetria de poder. Naquela instituição não existia conversa em absoluto.
O silenciamento aparece sob a forma da falta de diálogo. Negar ao outro o direito de
resposta, de intervenção ou mesmo de participação naquilo que se diz reduz o poder daquele
que está condenado apenas a ouvir. Aquele que só ouve, demonstra submissão àquele que
fala. Diante disso, para aquele que fala, está outorgado o direito de manifestar sentidos quase
que exclusivamente ou pelo menos o direito de dirigir os sentidos. Assim, o individuo que
apenas ouve assume uma postura passiva e derrotada. David Le Breton esclarece que “o
vencido é reduzido ao silêncio” (LE BRETON, 1999, p. 90). Aquele que tem menos poder
tem mais chances de ser censurado, pois, muitas vezes, ele se exime de concorrer com os
sentidos produzidos por aquele que tem mais autoridade, no caso, Lenz Buchmann.
A presença de Lenz já provoca quase que instantaneamente o enxugamento das
palavras dos demais funcionários no hospital. Não existe passagem que represente outro
médico ou mesmo outro enfermeiro falando entre si. O narrador intervém por essas
personagens. No hospital, só aparecem sob a forma de um discurso implícito ou de um
discurso indireto. As personagens do hospital são personagens sem voz. Nessa circunstância,
leem-se as personagens sem voz como figuras que não tem capacidade de articular sentidos da
mesma forma que a personagem protagonista. A voz corresponde em grande medida, como a
voz do próprio silêncio que se traduz na sua capacidade de expressão.
Para contribuir com essa caracterização considera-se a seguinte passagem: “[...] Lenz
gritou para a enfermeira: Não! E com um gesto rude apontou-lhe o caminho para fora da sala”
(TAVARES, 2008, p. 44). A enfermeira expulsa da sala por Lenz não diz uma única palavra.
Sabe-se apenas que “nela havia um nervosismo tal que a fazia esquecer tudo o que aprendera
[...]” (TAVARES, 2008, p. 44). E o final desse mesmo capítulo encerra com os seguintes
dizeres: “Que vá rezar lá para fora. Ali não [...]” (TAVARES, 2008, p. 44). A tensão da cena
fica por conta do não dito da enfermeira e de todos que trabalham freneticamente na sala.
130
Ao olhar atentamente para o silêncio contido nessa cena, o leitor verá que a enfermeira
foi expulsa porque os sentidos que ela produzia no silêncio concorriam com os sentidos do
Dr. Buchmann. E esses sentidos, por sua vez, manifestavam-se contra a vontade do doutor. A
enfermeira não estava na condição de silenciada, mas de silenciosa, embora dominada por um
nervosismo tal que perturbava Lenz.
Na ausência de um silêncio alinhado ao seu e de uma postura adequada aos olhos do
devotado representante da técnica, ele expulsa a enfermeira. O fato de ela estar nervosa e de
não compartilhar da mesma postura fria e impassível dos demais funcionários presentes na
sala, faz com que ela se torne, imediatamente, uma ameaça ao seu poder. Por não ter se
rendido ao poder encantatório e opressor daquele que fazia da sala um Reino e por,
justamente manifestar sentidos livremente, ou seja, na contramão dos sentidos produzidos por
Lenz que ele “não precisava dela, da sua irracionalidade” (TAVARES, 2008, p. 44). Não
podendo controlá-la, os sentidos da enfermeira precisavam ser interditados; ela precisava ser
expulsa.
Isso explica porque Lenz repele a assistente dizendo: “quer rezar lá fora”, porque ela
continua produzindo sentidos e porque sua atitude é incompatível com a postura exigida por
um fiel representante da técnica. "O silêncio da censura não significa ausência de informação
mas interdição” (ORLANDI, 2007, p. 107). Lenz impede que os sentidos, considerados por
ele subversivos, ocupem certas posições discursivas, mas não consegue apaga-los. “Manter
silêncio sobre determinadas questões é uma grande ferramenta política de controle e de
imposição do status quo” (JAWORSKI, 1993, p. 110) 17
. Entretanto, trata-se de silenciamento
apenas e não de apagamento.
E, para Lenz, ao agir descontroladamente em um ambiente onde se exige técnica,
precisão e concentração, se compromete toda técnica e todo esforço “extra-humano”
(TAVARES, 2008, p. 66) empreendido pela personagem com o intuito de canalizar os
sentidos e centralizá-los em si mesmo. A enfermeira, por outro lado, ao produzir outros
sentidos destoantes do poder central ameaça tanto a posição quanto o poder de Lenz naquela
sala. Ora, o que significa rezar, nesse contexto senão enfrentar os sentidos produzidos por
aquele que é incapaz de fazê-lo na Era da Técnica?
Quando a posição de um grupo de poder é potencialmente ou efetivamente
ameaçada, este grupo muitas vezes opta por não manter um diálogo genuíno
17
“Mantainning silence over certain issues is a major political tool of control and imposing the status quo”
(JAWORSKI, 1993, p. 110 – tradução nossa).
131
com os grupos dominados (a fonte do perigo real ou potencial para o status
quo) para defender a sua posição. Em vez disso, a voz da oposição é
reprimida (silenciada). (JAWORSKI, 1993, p. 124). 18
Outro elemento bastante relevante para compreensão da estratégia de silenciamento
empregada por Lenz são as suas ordens que aparecem sempre em discurso direto, tal como no
excerto seguinte. “Lenz gritou para a enfermeira: Não!” (TAVARES, 2008, p. 44); “– Sim –
respondeu Lenz, sem levantar a cabeça [...]” (TAVARES, 2008, p. 45); “Lenz respondia: Não.
Não, não. Sim, sim, sim” (TAVARES, 2008, p. 43). As palavras da personagem protagonista
fluem no texto impedindo que outras palavras e outros sentidos a não ser as dele sejam
construídos. As palavras pronunciadas por ele não precisam de mediação. Elas não precisam
ser narradas, elas bastam por si. Elas não precisam ser acompanhadas de outros silêncios. As
ordens de Lenz não enfrentam oposição. Em uma análise específica sobre essa condição da
linguagem leia-se o seguinte:
Lenz estava vivo, em pé, com a sua razão intacta, e domina ainda a
linguagem: era ele que naquela sala determinava cada Sim e cada Não – e
ele há muito sabia que dominar essas duas palavras extremas era a mais
incontestada manifestação de poder. (TAVARES, 2008, p. 42).
Na verdade, o sim e o não considerados isoladamente não representam, de modo
algum, “a mais incontestada manifestação de poder” (TAVARES, 2008, p. 42). O que Lenz
ainda não havia percebido é que o silêncio era, de fato, o elemento que garantia o seu poder. É
como se Lenz colocasse palavras na boca dos enfermeiros e ajudantes a sua volta e essas
palavras viessem repletas de silêncio opressor que impedia que os funcionários formulassem
suas próprias ideias. O doutor não esperava por resposta. Cada ordem ou cada pergunta era
pontuada por um silêncio que não se abre ao diálogo. Por essa razão, os comandos de Lenz
prescindem de intervenção do narrador.
Ele nem mesmo olha no rosto daqueles que estão ao seu redor. Conforme se lê, ele
trata com os seus auxiliares “sem levantar a cabeça” (TAVARES, 2008, p. 45), pois, para o
doutor Buchmann eles não são dignos de atenção. A única coisa digna de atenção é a
atividade exercida por ele “[...] que provoca nos assistentes de qualquer operação um
direccionar do olhar exclusivo para aquela mão direita” (TAVARES, 2008, p. 30). O poder
18
“When the position of a power group is potentially or actually threatened, this group often chooses not to
engage in genuine dialogue with the dominated groups (the source of the actual or potential threat to the status
quo) to defend its position. Instead, the opposition's voice is suppressed (silenced)” (JAWORSKI, 1993, p. 124 –
tradução nossa).
132
exercido pela protagonista distorce e engana aquilo que os seus subordinados devem
realmente ver.
Sem dúvida, “sendo um mestre naquela linguagem que não levantava a cabeça”
(TAVARES, 2008, p. 67), o silêncio dentro do hospital torna-se cada vez mais intenso,
porém, esse silêncio tem apenas um objetivo: apagar o outro e ressaltar a presença do doutor.
A equipe de Lenz é hipnotizada pelo silêncio opressor durante a cirurgia. “As enfermeiras
assistentes e os médicos mais jovens fixavam o seu instinto de observação mais digno e
suspendiam a respiração como se assistissem a um filme” (TAVARES, 2008, p. 30). E
enquanto toda força hospitalar concentra sua atenção em Lenz, este transforma os outros em
meros espectadores ou em meros objetos. O grupo de jovens médicos e enfermeiros assume
uma postura passiva e se torna impotente, submisso e o seu papel, de certa maneira, mostra-se
irrelevante sem a presença de Buchmann.
Com relação aos pacientes, Lenz procedia da mesma forma. Manifestava total
indiferença. Até porque para Lenz, seus pacientes não eram vidas humanas. Eram objetos
quaisquer que ele precisava consertar. “O médico na Era da Técnica é encarado como um
habilidoso condutor de automóveis. O automóvel, esse, aguarda, serenamente, a chegada do
seu dono [...]” (TAVARES, 2008, p. 29). Os pacientes de Lenz quando chegam ao hospital
transformam-se, imediatamente, em máquinas com peças em disfunção. As personagens que
chegam mutiladas por uma explosão ou gravemente doentes são, para Lenz, apenas
engrenagens que precisam se reestabelecer e “endireitar do desvio” (TAVARES, 2008, p. 33).
Em última análise, a imagem do silenciado se distorce e, por conseguinte, perde,
paulatinamente, sua relevância.
Lenz era um defensor da técnica. “Em poucos anos de actividade Lenz percebera que
na medicina se combatiam as duas mais espantosas capacidades da técnica: a explosão e a
precisão” (TAVARES, 2008, p. 33). Por isso, Lenz considera-se muito mais “um soldado”
(TAVARES, 2008, p. 46), que se empenha em atacar a doença e, por consequência, a natureza
que se opõe naturalmente à precisão e a técnica que ele tanto admirava e defendia.
Por isso era para Lenz muito estranho quando as intervenções cirúrgicas se
deviam a uma explosão – como meses antes havia ocorrido numa fábrica.
Uma máquina em desordem interna explodira e a explosão provocara a
desordem interna de um indivíduo. Lenz conseguira salvar a vida desse
homem, e nessa operação sentira, com invulgar intensidade, o combate entre
os dois extremos da técnica: o seu bisturi encarnava a precisão, a moral, a
legalidade que uma parte da técnica instala de imediato, quer a nível amplo –
num campo de soldados – quer a nível pessoal, uma desordem, um pânico
celular, que não é mais do que a instalação temporária de uma
133
impressionante imoralidade: não há uma única linha recta intacta num corpo
que acabou de sofrer os efeitos de uma explosão. Bomba que, no fundo, de
um ponto de vista esquemático - tal como uma fotocopiadora era uma
máquina de tirar fotocópias –, era simplesmente uma máquina feita para
explodir [...] Era filhos, não do mesmo Deus, mas do mesmo homem, e tal
fascinava Lenz. (TAVARES, 2008, p. 33).
Assim, o que poderia ser um dilema para Lenz, enfrentar a técnica pela própria técnica
era na verdade uma ótima oportunidade para ele assegurar o seu poder e afirmar a sua
competência. Lenz tinha sob seu controle o poder de decisão sobre a vida e sobre a morte.
“No direcionar do bisturi Lenz via a possibilidade de manter ligada ou de desligar uma
aparelhagem de som” (TAVARES, 2008, p. 34). E associar o organismo humano a uma
“aparelhagem de som”, significa entendê-lo como uma ameaça ao seu silêncio opressor.
Essa aparelhagem de som, se ligada torna-se um provável opositor aos sentidos
produzidos por aquele disposto à censura. “O Dr. Lenz Buchmann não conseguia deixar de
pensar naquela outra possibilidade que, uma vez mais, tinha ao seu dispor” (TAVARES,
2008, p. 35). Ter o poder de desligar essa “aparelhagem de som” que, eventualmente, poderia
concorrer com ele, era, indiscutivelmente, o que mais fascinava Lenz em seu ofício. “E era
Lenz quem manipulava o botão decisivo” (TAVARES, 2008, p. 34). Era ele que tinha então o
poder de silenciar para sempre. Isso o deixava absolutamente poderoso enquanto médico. E
ele sabia disso.
Por essa razão, é muito eficiente o modo como Lenz Buchmann emprega o silêncio no
hospital. “O burburinho, entretanto, aumentava e diminuía, as salas do hospital pareciam
obedecer aos mesmos ritmos das marés” (TAVARES, 2008, p. 43). O silêncio, assim,
aumenta e diminui conforme a vontade de Lenz. Cultiva-se no hospital a criação de uma
imagem fraca e passiva incapaz de iniciar um diálogo com Lenz, pois todos são apenas
objetos para ele. E descartáveis, portanto.
Para confirmar essa hipótese, destaca-se que: “Para Lenz estava claro, cada vez que
através de uma operação cirúrgica salvava alguém, que estava a salvar estatisticamente um
homem; e a estatística era uma forma exacta de se manifestar indiferença” (TAVARES, 2008,
p.48 – grifo nosso). Em outras palavras, Lenz não lida com pessoas, mas lida com números,
com estatísticas. Cada vida salva e cada vida não salva são movimentos previstos
estatisticamente. Em síntese, são ganhos e perdas calculadas. É evidente o processo de
apagamento do paciente, pois sua identidade e seu nome são substituídos por um número
pouco expressivo.
134
No hospital se trabalha com estatísticas, conforme se lê no romance: “Os números
formavam uma intensidade negativa que anulava em absoluto a eventual proximidade entre
dois corpos” (TAVARES, 2008, p. 49). Desta forma, a indiferença referida por Lenz
anteriormente é apenas uma das consequências da cultura tecnocrática; neutralizar a presença
do paciente. “Olhar para uma tabela estatística da população, com as colunas sucessivas de
números, sempre fora para ele uma experiência que o fazia entender cada um dos actos que
regimes mais violentos haviam cometido” (TAVARES, 2008, p. 49). Porque a estatística,
grosso modo, refere-se a um processo de generalização, de apagamento do indivíduo
impedindo o sujeito de ver o outro e dar sentido ao outro. Definindo leis de comportamento e
médias de perdas e ganhos, o médico que trata um paciente segundo essa regra ignora por
completo a singularidade de cada caso e anula em absoluto a presença do paciente enquanto
sujeito, impondo-lhe um silêncio hostil.
E quando “Lenz Buchmann declara abandonar definitivamente a profissão de médico
cirurgião para se dedicar por completo aos problemas da cidade [...]” (TAVARES, 2008, p.
102), para então se tornar uma figura pública, ele sabe que poderá ampliar consideravelmente
a latitude de seu poder. E por poder, entende-se a força de expressão do seu silêncio, sabendo,
é claro, que “às vezes, o silêncio pode ser considerado como um sinal de poder ou controle de
alguém em relação a outros [...]” (JAWORSKI, 1993, p. 69). 19
Sua adesão ao Partido é
marcada pela quebra de silêncio. Inicia-se, assim, uma nova fase do poder de Lenz. Quebra-se
o silêncio para recomeçar.
O dia em que ele decidira ingressar no Partido foi na ocasião da morte de seu irmão
Albert. Durante o funeral, Lenz vira “os homens que acabavam de cumprimentar aquele
representante máximo do poder [...]” (TAVARES, 2008, p. 91), – um político – de maneira
tão subserviente que ele viu o mundo da política como uma nova oportunidade para criar
novos laços e empreender uma estratégia mais eficaz de silenciamento e interdição. E quando
ele cogitou essa ideia lhe ocorreu: “Algum pão e algum medo, disse Lenz, em voz alta, por
impulso, cortando um longo período de silêncio” (TAVARES, 2008, p. 93). O silêncio
quebrado por Lenz nessa passagem marca a transição do poder de Lenz para uma nova escala.
Apropriando-se para si da estratégia empregada por seu pai, Frederich Buchmann,
Lenz passa a utilizar o medo como uma forma de despertar silêncio. À diferença da prática da
medicina em que o médico precisa concentrar toda a atenção da equipe para si e impor sobre
19
“Sometimes, silence may be regarded as a sign of someone's power or control over other [...]” (JAWORSKI,
1993, p. 69 – tradução nossa).
135
eles total silêncio para assegurar a predominância de seus sentidos, o político pode-se valer de
algo mais eficiente; Lenz opta pelo medo e pelo pão. A estratégia do político, pela sua
complexidade, pela sua riqueza e diversidade de efeitos precisa ser considerada pela maneira
como ele procura a articulação entre esses dois elementos: o pão e o medo.
Desde o início, as possibilidades são infinitas. O ponto de partida é a distração obtida a
partir do terror e do caos. Ao invés de tentar impor apagamento e distorção de sentidos, como
fazia quando era médico cirurgião, o político propõe o deslocamento desses sentidos valendo-
se da distração e, sobretudo, do medo.
Finalmente, ele, como político, superara sua limitação “[...] de tratar com homens
individuais e de ele mesmo ser um homem individual [...]” (TAVARES, 2008, p. 93). Ele
saíra de sua própria zona de silêncio e estava pronto para alcançar a cidade e lançar sobre ela
mais silêncio. Mas um tipo de silêncio opressor que nada tem a acrescentar ao silêncio dos
outros cidadãos da cidade. Sobre essa transformação, lê-se o seguinte:
Mas uma transformação importante ocorreu no espírito de Lenz durante o
funeral do seu irmão. E tal transformação profunda deveu-se a um conjunto
de factos, imperceptíveis e aparentando não ter qualquer volume, quando
analisados um a um, mas que na sua cabeça e na sua vontade se juntaram
resultando numa fenda que subitamente surgiu numa parede até ali intacta.
(TAVARES, 2008, p. 88).
Os fatos imperceptíveis que se somam um após o outro se traduzem em silêncios. Eles
não têm volume. Eles não têm forma. Mas são tão profundos e tão arrebatadores que
romperam a cortina de palavras que a prática da medicina impusera. Ele finalmente enxergava
que a forma como ele impunha silêncio aos pacientes e aos colegas do hospital era pequena se
comparada ao poder que um político qualquer tinha em mãos. O doutor, por fim, percebia que
sua estratégia era completamente ineficaz, mas entendia também que se somassem pequenas
atitudes visando o silenciamento e a interdição poderia romper de vez a parede que restringia
o seu poder. Sentia-se como “alguém que esteve preso anos e anos em salas de operações, em
compartimentos fechados de rigorosa higiene, e que sentia agora necessidade absoluta de ar
puro” (TAVARES, 2008, p. 102) e tendo despertado essa consciência, surgia, enfim, uma
“fenda”, por onde Lenz poderia disseminar o seu poder.
A sua entrada no Partido possibilitou a Lenz estabelecer uma nova posição no mundo.
“A vida de Lenz mudou. Não por completo, é certo [...]” (TAVARES, 2008, p. 104), mas
mudara o bastante para ele poder perceber que “a grande vantagem nesta mudança de sistema
era sem dúvida o número de pessoas que conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no
136
sentido físico, no sentido do bisturi que interfere no tecido” (TAVARES, 2008, p. 106). O
instrumento cirúrgico que permitia fazer incisões e “marcava o primeiro ponto de ataque”
(TAVARES, 2008, p. 32), era, agora de outro tipo. Lenz agora estava pronto para começar
“essa operação coletiva, que era a política, nesse acto (quase monstruoso quando pensadas as
dimensões) que colocava milhares de pessoas debaixo do bisturi [...]” (TAVARES, 2008, p.
105). Sua eficácia não era mais a mesma do bisturi cirúrgico, como se constata no excerto
seguinte:
Esta hipótese surpreendente de reduzir um largo espaço e um largo tempo a
um ponto negro, vazio, a hipótese de eliminar séculos – igrejas, por
exemplo, que tinham marcas que se diziam ser do próprio Cristo –, esta
hipótese, portanto, de eliminar tempo sempre fascinara Lenz [...] Antes
tínhamos armas que interferiam em órgãos ou, quando muito, em famílias,
agora temos armas que interferem em países [...] (TAVARES, 2008, p. 106).
Os símbolos nessa passagem são bastante pertinentes porque eles representam uma
realidade que se propõe reduzir o tempo e o espaço a “um ponto negro, vazio” e poder então
“eliminar séculos” e fundar silenciamento e censura de forma mais ampla. “Eliminar séculos”
remete a uma nova dimensão de operacionalização do silêncio na linguagem. Trata-se de
empreender táticas de silenciamento eficientes e que sejam praticáveis além do meio familiar
e além dos muros da cidade. Exige-se silêncio capaz de interferir nos destinos de países
aliados e inimigos. É claro que as armas mencionadas não se referem apenas ao silêncio em
si, mas a qualquer arma capaz de “eliminar séculos”, “eliminar tempo”, reduzir algo “a um
ponto negro, vazio”, tem o silenciamento e o vazio como últimas consequências.
No caso do Partido ao qual Lenz é filiado, o silêncio não é tão somente uma arma para
combater os inimigos, mas para influenciar os seus próprios aliados. O silêncio nesse contexto
refere-se ao silêncio político constitutivo da linguagem e ao silêncio local, que está mais
relacionado com a censura propriamente dita.
Esses símbolos, em maior ou menor grau, são silêncios que apagam certos sentidos
para expressar outros, que por sua vez são plurissignificativos e inesgotáveis e são
extremamente caros para a compreensão de Aprender a Rezar na Era da Técnica, pois
salientam sua natureza expressiva e projetam uma realidade complexa, enigmática e,
sobretudo cruel. Os processos de significar uma realidade censurada requerem a presença não
só do silêncio opressor, mas igualmente do silêncio que inspira a linguagem, nesse caso, o
silêncio inspira símbolos que traduzem o desejo de estrangular os sentidos manifestados por
outros, eliminando as marcas do tempo dentro de um vasto espaço.
137
Com relação à atividade política, Lenz Buchmann muda de ponto de vista em face à
abordagem do silêncio e do silenciamento. Há como que uma recomposição das estratégias
empregadas por essa personagem que agora precisa se adaptar à nova escala. O que está mais
saliente nesse novo momento da vida da personagem é certa inadaptação de Lenz que “se
sentia ainda em estágio” (TAVARES, 2008, p. 105). No entanto, “dois meses depois de entrar
em algumas atividades políticas do Partido já era conhecido por mais pessoas do que antes
fora em mais de quinze anos na sua função de médico” (TAVARES, 2008, p. 105). Nesse
ponto de vista, a atividade médica provava ser uma atividade incompatível com o perfil
autocentrado de Lenz Buchmann que colocava os seus interesses e suas necessidades em
primeiro lugar, ignorando por completo os interesses e as necessidade dos outros. Na política,
era diferente ou pelo menos era o que Lenz sentia. No Partido ele sentia-se livre:
queria sentir o prazer de dar aquela comida estranha que o poder dava aos
seus soldados e funcionários, aquela comida de energia quase mágica,
comida que saciava os estômagos da população de uma modo não material,
mas igualmente eficaz. (TAVARES, 2008, p. 93).
É um trabalho de leitura indispensável ao leitor de Aprender a Rezar na Era da
Técnica, reação e interpretação diante dessa passagem. Ora o que é essa comida não material,
“de energia quase mágica” que sacia os homens senão a relação entre poder/silêncio e
silenciamento? Quem tem o poder de conceder a palavra, tem também o poder de tomá-la. O
que quer dizer “Algum pão e algum medo” (TAVARES, 2008, p. 93), senão o poder de
insuflar na população o silêncio persuasor e subtrair o silêncio criador? Saciar os estômagos
da população com uma substância não material é poder conceder silêncio em doses reguladas.
Para aquele que detém o poder, dar essa “comida de energia quase mágica”, é o mesmo que
inspirar na população silêncio, conceder-lhe uma sensação de falsa emancipação, de falsa
liberdade. Todavia, o sujeito de poder regula o fluxo do silêncio, de modo que o fluxo de
sentidos, nesse caso, também não é livre e a sensação de liberdade é apenas ilusória. Admite-
se nessa passagem “o silêncio como ação e reação: o silêncio da cesura e o da censura, o
espaço ideológico do silêncio” (TELES, 1979, p. 9). No âmbito das discussões sobre o
silêncio, trata-se de considerar o silêncio em suas implicações ideológicas; o silêncio que
jamais é neutro.
Entende-se o silêncio como sendo “uma zona não trabalhada, em expectativa [...]
aquilo que o ruído ainda não penetrou nem alterou, aquilo que os meios ou as consequências
das técnicas ainda poupam” (LE BRETON, 1999, p. 172-3). Ascender como político, de certa
138
forma, significava ampliar a sua rede de influência sobre o silêncio. Ele poderia trabalhar com
o silêncio e com o silenciamento em um nível mais técnico e eficiente, rompendo as fronteiras
ainda não alcançadas pela técnica. Para isso, Lenz precisa alcançar novos patamares. E a
política, no entendimento de Lenz, era de fato, um ponto de partida para poder penetrar em
zonas mais profundas de silêncio além da linguagem. A fim de alcançar uma dimensão do
silêncio ainda não encontrada e dominada pela técnica lê-se o seguinte:
Lenz percebera a existência de um ponto central naquilo que chamava
energia de domínio. Havia, no fundo, uma questão técnica, exactamente
como a que lhe surgira, na vida anterior, quando à frente do bloco
operatório. Assim, da mesma forma que numa operação delicada certos
gestos prévios eram indispensáveis para que o gesto decisivo se tornasse
eficaz – há sempre um último toque que salva ou que falha, costumava dizer
Lenz –, também nessa operação colectiva, que era a política [...]
(TAVARES, 2008, p. 105).
A “energia de domínio” apareceu sob a forma de medo. Apesar de Lenz ainda não ser
completamente fluente nessa linguagem, até essa passagem, o medo ele conhecia muito bem.
O medo era primeiro recurso para impor o silêncio às massas. Assim como fizera seu pai a
ele, o medo era o meio mais eficiente encontrado por esse novo político do Partido. O medo
era um gesto prévio que se mostrava “indispensável” para o gesto final: o silenciamento e o
controle dos sentidos manifestados pelos outros. Ao provocar o medo no outro, Lenz
encontrava a força para conduzir seus projetos autoritários e egoístas sem enfrentar oposição
alguma, o medo apartava possíveis opositores. Mas, o que ele ainda não estava plenamente
consciente era que o medo também despertava silêncio.
Do seu gabinete, Lenz observa que “aquela janela alta tinha, no fundo, uma altura feita
ao milímetro para permitir uma especialização do olhar, um olhar que conseguia ver
quinhentas pessoas [...]” (TAVARES, 2008, p. 140). Uma janela grande o suficiente que
permitia a Lenz, com seu olhar clínico, realizar essa “operação colectiva” na cidade.
Estava, pois, perante uma combinação extraordinária entre afastamento e
proximidade, parecendo que, por um acaso, que só poderia ser efeito das
grandes forças que dominavam o mundo, lhe tinham atribuído a ele, Lenz
Buchmann, a única janela do observador que observa para agir, a janela das
grandes existências, a janela de quem sabe que foi feito para influenciar um
a um os homens, e ainda todos, no seu conjunto. (TAVARES, 2008, p. 141).
A janela ilustra perfeitamente o tamanho do poder de Lenz. Sob o ponto de vista da
cultura tecnocrática, a janela representa a difusão massiva de ideias, a propagação da voz em
larga escala, resultando na centralização do individuo e, consequentemente, causando o
139
apagamento gradual daquele que se encontra em posição subalterna. A esse respeito, a
imagem da janela corrobora a “hipótese surpreendente de reduzir um largo espaço e um largo
tempo a um ponto negro, vazio, a hipótese de eliminar séculos” (TAVARES, 2008, p. 106).
Nessa posição, “daquela janela de atirador” (TAVARES, 2008, p. 145), Lenz é capaz de
provocar e estimular as massas. “O poder procura, desta forma, desenraizar a propagação da
dissidência, forçando-a ir por caminhos obrigatórios, impossibilitando-a de utilizar outros”
(LE BRETON, 1999, p. 88). Nesse sentido, “Ele estava no centro, todos precisavam de
alguma coisa do centro da cidade” (TAVARES, 2008, p. 143). O centro era o novo e único
caminho possível para a construção dos sentidos.
No entendimento de Lenz, esses homens que estavam “a passar de um lado para o
outro, com um tamanho mínimo [...]” (TAVARES, 2008, p. 140) e com uma “fisionomia de
pedinte” (TAVARES, 2008, p. 136) e precisavam de um sentido em suas vidas. Precisavam
de uma voz de comando. Precisavam, enfim, de medo.
Havia, portanto, dois medos, e não apenas um. O primeiro medo arrancava
as coisas da sua imobilidade e o segundo, o mais poderoso, mantinha as
coisas em movimento. Quando dez mil habitantes de uma determinada etnia,
desprotegidos e constituídos quase por completo por velhos, mulheres e
crianças, fugiam de um local ao receber essa terrível informação do avanço
dos outros, quando tal acontecia, esse primeiro movimento de abandono das
terras natais era impulsionado por um primeiro medo. Porém, o que fazia
com que esses refugiados, depois de caminharem a pé duzentos quilómetros
ainda avançassem o mais velozmente possível, esquecendo já os mais fracos
e os que começavam a desfalecer, o que fazia com que isso acontecesse,
duzentos quilómetros mais tarde, era o segundo medo, o mais poderoso,
aquele que mantém em movimento o que está já há muito, em movimento.
Este segundo medo é tão forte que faz vencer a fadiga limite: chegará a noite
e nenhum elemento desejará descansar. (TAVARES, 2008, p. 223-4).
O medo desloca as pessoas de um estado de quietude e mantêm as pessoas em
movimento. O medo justifica-se, pois ele mantém as pessoas distantes de uma vivência de
calma e de tranquilidade, cuja característica primordial é a acentuada presença do silêncio.
Ora, se o silêncio sugere um estado que o homem tem ao seu alcance desde que este se
entregue à paz, à tranquilidade e à calma, não apenas no seu sentido físico e verbi-vocal, mas
em relação à busca de harmonia e equilíbrio dentro da própria linguagem, o movimento
frenético causado pelo medo afasta o homem, definitivamente, de qualquer experiência real
com a linguagem e de aproximação ao silêncio que insinua o indizível nos limites da própria
linguagem. O movimento acentuado impõe o deslocamento dos sentidos e causa,
140
consequentemente, sua distorção. O medo em abundância produz um movimento coletivo,
centralizado e que possibilita a canalização dos sentidos.
E nesse ponto de vista, é patente a diferença entre o médico na Era da Técnica e o
político na Era da Técnica. O médico na era da Técnica tem algo de “extra-humano”
(TAVARES, 2008, p. 66) que inspira movimento em si mesmo e se coloca sempre em ação.
Lenz Buchmann, enquanto médico, assume uma postura reptante e agressiva com relação ao
silêncio. Sua atitude provocante desloca a atenção de sua equipe que permanece calada e
inerte enquanto Lenz trabalha. O sujeito de autoridade produz o movimento enquanto os
subordinados rendem-se ao ritmo do mais forte. De seus subordinados ele só espera silêncio
reticente, que retém as palavras sufocadas na garganta, que não permite que elas se formem e
se propagem. Quem não está em silêncio é forçado ao silêncio. E ainda quem não se rende de
maneira nenhuma ao silenciamento, tal como a enfermeira expulsa da sala de cirurgia por
Lenz, é censurado.
O exílio é outra forma de invalidar a palavra, reduzindo-a ao silêncio, por
causa do afastamento. [...] A sua fala é oprimida, ao ficar privada de
imediato de um outro para a ouvir e responder. Não suscita qualquer
reciprocidade, seja qual forma a intensidade da pergunta. A vítima torna-se
muda, devido ao descrédito que envolve os seus actos e gestos. (LE
BRETON, 1999, p. 91).
O político na Era da Técnica, ao contrário do médico, mantém as pessoas em
movimento, porque o que distingue o médico do político é a necessidade de despertar esse
segundo medo. O médico na Era da Técnica prescinde de despertar medo nos pacientes, pois
eles já são vítimas de um medo natural da doença e da morte. Os pacientes, ao contrário dos
cidadãos da cidade não vão a lugar algum, eles são reféns da situação. O movimento causado
pelo segundo medo nos cidadãos da cidade cumpre a mesma finalidade do medo natural dos
pacientes do hospital. O medo torna-os reféns da situação. O medo que os cidadãos da cidade
sentem faz com que eles precisem de um político, assim como os pacientes precisam do
médico.
Então, manter as pessoas em movimento e tirá-las de um estado contemplativo requer
daquele que provoca medo, ou seja, o movimento uma experiência um tanto mais profunda
com o silêncio, pois implica compreender o que há no silêncio dos outros e de si que é
necessário deslocar. É preciso desconstruir, deslocar e até mesmo banir os sentidos
produzidos por aqueles que ameaçam o status quo (JAWORSKI, 1993).
141
O político na Era da Técnica procura o “movimento forçado, movimento provocado
[...] que descontrolava por completo o sentido de posicionamento e orientação do corpo e
permitia à voz e de comando fazer o que quisesse daquele que fugia” (TAVARES, 2008, p.
226). O medo está situado no interior do movimento, o medo é a dinâmica do movimento.
Fazendo um paralelo com o ensaio de Georg Steiner, O milagre vazio, que trata da relação
entre desumanidade e linguagem política com o político na Era da Técnica de Gonçalo M.
Tavares há inúmeras semelhanças, no que diz respeito à selvageria, à brutalidade e ao horror
construídos no interior da própria linguagem.
Georg Steiner, em seu ensaio, defende que as palavras perderam o seus significados
humanos perante a barbárie. Segundo esse autor, “a linguagem foi virada do avesso para dizer
‘luz’ onde havia negrume e ‘vitória’ onde havia derrota” (STEINER, 1988, p. 137). A
linguagem do político na Era da Técnica foi tomada por “não silêncio ou evasão, mas um
imenso despejar de palavras precisas e serviçais” (STEINER, 1988, p. 138). A reticência
verbal foi apenas uma das consequências dessa linguagem construída na Era da Técnica para
consolidar a voz de comando.
A apreciação e análise dessas novas estratégias empregadas por Lenz para realizar o
seu plano de ampliar a sua rede de silêncio e censura implica considerar os seguintes dizeres:
“Com o gesto do dono do boi que marca com o símbolo da sua propriedade o dorso do
animal, assim também Lenz Buchmann, antes de desaparecer, marcaria o seu nome no dorso
da população. Era esse o seu destino. Estava certo disso” (TAVARES, 2008, p. 143-4).
Refere-se aqui, incontestavelmente, à necessidade de Lenz vencer o seu próprio silêncio: “[...]
ele escrevia a preto, por cima, o seu nome. Lenz Buchmann, Lenz Buchmann, Lenz
Buchmann” (TAVARES, 2008, p. 144). Apelando à repetição e a saturação de um silêncio
não comunicativo.
Lenz sabe que as massas precisam estar expostas frequentemente à repetição para
estarem condicionados à voz de comando. O que também se destaca nessa passagem é que
Lenz escrevia o seu nome em preto em cima de outra coisa. Está claro que para ele firmar o
seu nome, ele precisa apagar outra coisa. Precisa impor silêncio de alguma maneira, neste
caso silêncio encobridor. Essa passagem é bastante simbólica, pois revela a intenção de deixar
a sua marca onde havia outras marcas. Sobrepor o seu nome onde havia outros nomes.
Em se tratando especificamente dessa cena, Lenz recorda que ele roubava cartelas com
os horários dos comboios quando ainda era jovem. “E sobre aquelas tabelas de números
exactos que dirigiam e condicionavam, tal como a luz, a vida de milhares de pessoas [...]”
142
(TAVARES, 2008, p. 144), ele teria o seu nome por cima. Seria ele a dirigir e condicionar a
vida de milhares de pessoas no futuro. Era bastante acertada a decisão do político Buchmann
para atingir esse feito.
E com esse intuito, Lenz “[...] continuava, a passo lento e com poucas correrias (uma
lentidão associada ao bom direcionar das botas, eis a descrição do bom caçador) [...]”
(TAVARES, 2008. p. 225). Ele precisava avançar a passos lentos mesmo, para marcar a ferro
com o seu nome o rebanho através da excessiva exposição de sua voz e de suas ideias.
Necessitava de considerar cada movimento e tudo o que ele implicava. Necessitava de
silêncio absoluto, porque o silêncio seria o instrumento pelo qual Lenz construiria uma
imagem forte de si e destruiria a imagem do outro. Lenz “[...] utilizava em seu proveito o
mistério terrível que quem foge carrega no seu centro” (TAVARES, 2008, p. 227), o medo,
que não se manifesta por meio das palavras ou gestos objetivos, mas por meio do indizível
apenas.
Era esse, aliás, o verdadeiro sentido de forçar o movimento das coisas. Este
movimento forçado, movimento provocado pelo medo, era um movimento a
mais que descontrolava por completo o sentido de posicionamento e
orientação do corpo e permitia à voz de comando fazer o que quisesse
daquele que fugia. (TAVARES, 2008, p. 226).
A análise desse excerto irá demonstrar que embora os sentidos não fiquem parados, e
que em situação de censura os sentidos silenciados sempre arrumam outros meios para
significar (ORLANDI, 2007). O movimento caótico dos homens que tem medo os afasta do
silêncio. Por isso, há de se forçar o movimento para que haja maior distorção da sua
identificação com outro meio simbólico. Essa passagem traduz bem a ideia de que enquanto
se persistir em um movimento forçado os sentidos se descontrolarão e estarão mais sujeitos à
voz de comando.
Entretanto, “os processos de significação não estacionaram [...] está por toda a parte e
os sentidos vazam por qualquer espaço simbólico que se apresente. Eles migram”
(ORLANDI, 2007, p. 129). Mas, precisam do silêncio novamente para se reorganizar. Por
isso, Lenz não dá trégua ao medo. O medo é fundamental para que o movimento jamais
encerre. Os homens precisam sentir a necessidade de confiar em uma voz forte e inabalável.
Os homens também precisam sentir-se confiantes para se abster de seu silêncio e render-se a
voz de comando na esperança de que ela possa conduzi-los para regiões onde eles não
sentirão mais medo. Contudo, o político que inicia o movimento a partir do segundo medo
jamais irá pará-lo.
143
E o fato de Lenz ser cauteloso com tudo que ele fazia em política revela que ele
também sabia que: “Tudo avançava, no mundo exterior, como ele previra. E a posição de
Lenz Buchmann no mundo seria perfeita [...]” (TAVARES, 2008, p. 228). Lenz, a essa altura,
dominava perfeitamente aquela linguagem política que a princípio ele tanto carecia de
habilidades fundamentais. Agora, ele era um mestre nessa arte de calar e de dar ordens aos
outros. “Lenz Buchmann continuava ainda entretido com os mecanismos das suas armas e
com a definição dos seus alvos” (TAVARES, 2008, p. 229). E por novas armas, leiam-se as
novas estratégias de emprego do silenciamento e da censura, legitimadas por uma instituição.
De certa maneira, era isso que Buchmann desejava: ser portador de um
sistema legal cujas leis só fossem aplicadas a si; ser portador de uma moral
que não é a do mundo civilizado nem a do mundo primitivo; que não é a
moral da cidade ou sequer a moral da sua família mas a moral que tem o seu
nome, apenas o seu, escrito por cima. (TAVARES, 2008, p. 231).
O que fica latente na passagem anterior é que a figura autoritária (Lenz) precisa de
uma instituição forte (o Partido) que legitime e alimente as suas ações despóticas. A
instituição (o Partido) escamoteia o rosto do sujeito autoritário (Lenz) e permite a ele valer-se
do “rosto” da instituição para disseminar as suas ideias e propagar a sua voz. As massas
projetam-se na instituição e tem a ilusão de que a voz autoritária é o clamor coletivo. O
avanço da técnica, no entanto, como destaca Walter Benjamin, permite a projeção do sujeito
em larga escala e favorece a auto alienação. O contato que ele tem com as massas “estimula o
culto do estrelato” (BENJAMIN, 1987, p. 180) e massa assume uma postura passiva e
resignada mediante a grande exposição. O poder de Lenz sobre a cidade decorre do próprio
Partido que alimenta a voz autoritária que desencoraja quaisquer outras vozes não alinhadas a
essa única voz. A autoridade de Lenz nasce no silêncio do Partido e reverbera entre as massas
que absorvem tudo caladas. E essa nova voz atua com intenções silenciadoras.
Assim, para “aqueles dois homens não queriam apenas ganhar a autoridade através do
voto; sabia que a autoridade da velha coragem e da velha força era a única que resistia às
flutuações provocadas pelos múltiplos acontecimentos” (TAVARES, 2008, p. 240). Eles,
Lenz e Hamm, sabiam que a autoridade mais legítima não se obteria nas cédulas de voto. Não
precisavam, em absoluto, de autoridade escrita em papel, mensurável em palavras, bastante
limitada, portanto. Ambos precisavam cunhar a sua autoridade no medo e no silêncio. Sobre
isso leia-se o seguinte excerto:
Lenz Buchmann e Hamm Kestner haviam falado já da hipótese de uma
explosão no edifício do Teatro principal, no meio talvez necessário para
144
instalar o estado de tensão na cidade. O tal primeiro medo útil para o Partido.
O tédio só pode ser limpo com explosões localizadas, uma explosão perto de
cada indivíduo, uma explosão para cada cidadão, disse Buchmann naquele
momento, divertido, a Kestner. (TAVARES, 2008, p. 240).
A pretexto de estimular as massas e incitar-lhes medo, Lenz e Hamm plantaram a
bomba na frente do edifício. “Buchmann e Kestner queriam ganhar as eleições” (TAVARES,
2008, p. 241) e até então esse parecia o caminho mais curto para isso. A bomba era a espoleta
para iniciar na população o primeiro medo e dar-lhes o movimento de partida para o segundo
medo. A explosão criara o clima de que a “«a existência real de perigo» mostrava que era
fundamental a presença de um líder forte no Partido [...]” (TAVARES, 2008, p. 243) e Lenz
despontava como um dos mais importantes expoentes do Partido e da cidade. “Um conjunto
de forças não contabilizáveis estavam ao seu dispor” (TAVARES, 2008, p. 241). O medo se
alastrava e com ele um silêncio arrebatador.
As pessoas com medo se absteriam de seu silêncio e, consequentemente, de seu poder
e o entregariam a uma figura forte. Lenz esperava que ele fosse essa figura forte a quem as
pessoas da cidade iriam recorrer. Elas, em função do medo, se calariam diante da voz de um
líder forte e se submeteriam a sua vontade para poderem se livrar do medo que as perseguia.
Não haveria qualquer oposição. Seria uma forma de impor silenciamento coletivo com
assentimento geral. E sobre isso destaca-se o seguinte:
A diferença entre a arma com um único cano que dirige a bala lembrando a
voz do professor que chama o nome do menino e lhe dá assim autorização
para se levantar da cadeira e a bomba que não sabe ainda o nome dos «seus
alunos» estava à vista: o caos e a ausência de sentido ou de explicação da
violência varriam de uma forma eficaz a segurança da cidade. (TAVARES,
2008, p. 243).
A ausência de sentido é um efeito do primeiro medo, do caos e da movimentação
provocada pela bomba. A ausência de sentido é o “mal necessário” para Lenz poder dar
sequência ao segundo movimento, ou seja, o segundo medo e manter as pessoas
completamente alheias ao próprio silêncio. A explosão não escolhe nomes. A explosão é uma
violência coletiva que instantaneamente propõe o apagamento do indivíduo e, nas
considerações de Lenz, a explosão “[...] embriagava os homens e os obrigava a serem como
que um outro tipo de animais [...]” (TAVARES, 2008, p. 37-8). Inclusive, “[...] ao
rebentamento de uma bomba, os homens em redor ligavam-se por um sentimento inexplicável
[...]” (TAVARES, 2008, p. 37), que se traduzia no esvaziamento de sentido da ação em si.
145
Todavia, o momento de desespero sempre aviva o silêncio e um silêncio que nem
sempre Lenz ou qualquer outro pode controlar. “Esse é o risco dos sentidos. Não há discurso
estanque [...]” (ORLANDI, 2007, p. 117). Depois da explosão, o estado de tensão já estava
instalado. “Na explosão morrera um actor secundário, um nome desconhecido do público, que
por azar passara naquele local na altura errada” (TAVARES, 2008, p. 242). Como se tratava
de um ator secundário o seu nome não tinha a menor importância, já que ele ocupava uma
posição inferior na escala de valores de Lenz. Por isso, o seu nome sequer é mencionado, já
que se trata de um ator completamente desconhecido do grande público. É bastante
interessante notar que um ator, ou seja, uma figura que se apresenta perante um público e está
exposta às massas era desconhecida. O que corrobora a ideia de distorção de imagem
fomentada por Lenz e seus colegas de Partido. O político fez-se mais visível que o ator,
graças ao controle observado por Lenz e pelo Partido. É, justamente, esse conjunto de homens
secundários que o Dr. Buchmann pretende controlar primeiro, mas não apenas eles.
O anonimato do ator colocado em perspectiva reflete a miopia da massa transformada
pela técnica. A capacidade de projeção em larga escala transforma a população em rebanho.
Nesse sentido, a repetição, a saturação de informação, o apagamento, o silenciamento
provocados por Lenz são, na verdade, efeito da própria técnica sobre o sujeito. De inspiração
da cultura tecnocrática, Lenz e o Partido creem que os problemas precisavam ser
administrados com técnica e precisão, a partir da subordinação, da hierarquização e da
sistematização. O que implicava, de certa forma, distanciamento. “Lenz Buchmann, que
nascera já com os genes dominados pela lucidez, aprendera depois, pela medicina a reservar
certa distância em relação ao sofrimento do outro, distância essa que poderia ser [...] puro
profissionalismo” (TAVARES, 2008, p. 216). De fato, “No mundo havia um muro, em que a
localização e a altura permitiram aos homens decisivos [...] subirem acima dele, e, desse
ponto importante, obterem uma melhor posição para vigiar ou disparar” (TAVARES, 2008, p.
214). A esses homens cabiam o dever de interferir na vida da população, porém, sem se
deixar misturar a ela.
Na noite das eleições, Hamm Kestner havia sido eleito presidente. E enquanto ele
comemorava e cumprimentava velhos colegas, Lenz abandona a sala discretamente,
acompanhado da secretária Júlia e diz a sua última frase de poder: “–Não vai ficar neste cargo
por muito tempo. Vou matá-lo” (TAVARES, 2008, p. 249). Depois desse momento as dores
de cabeça haviam aumentado e no capítulo seguinte – O diagnóstico da doença – Lenz havia
146
perdido a sua velha força. E o modo de operar o silêncio para controlar os sentidos dos outros
muda consideravelmente.
É quase inacreditável que após o agravamento da doença, Lenz consiga conduzir o
silenciamento, ainda que em uma escala menor e localizada. Para delinear as novas estratégias
encontradas pelo protagonista será preciso considerar as novas condições de produção de
sentido da personagem. “Lenz Buchmann, conseguia ser absolutamente imoral. Um indivíduo
único, sem cópia” (TAVARES, 2008, p. 233) portador de força e inteligência inigualáveis.
Nos estágios preliminares do desenvolvimento de sua doença, o processo involutivo de seu
poder manifesta-se em expressões e gestos da personagem e do narrador.
Ficar encerrado em casa era para Lenz era semelhante a estar no exílio. E ao ficar
privado de poder e tomar parte dos assuntos do Partido, devido à cirurgia a que ele se
submetera, “O Dr. Lenz Buchmann nem chegara a entrar nas novas instalações a que a vice-
presidência da cidade dava direito” (TAVARES, 2008, p. 254). Do hospital fora encaminhado
diretamente para casa. E junto com ele foram os irmãos Liegnitz. E “Julia tomara o centro das
operações” (TAVARES, 2008, p. 256). Mas “que acontecera a Lenz Buchmann, ao orgulhoso
Lenz Buchmann, para assistir a tudo com uma placidez admirável?” (TAVARES, 2008, p.
265). Teria ele se rendido à “coisa” (TAVARES, 2008, p. 255), que se alastrara em todo o seu
organismo e comprometia todo o seu poder? Como um doente poderia transformar todas as
suas ideias delirantes em palavras de ordem e em silêncios opressores?
Uma ordem é, simplesmente, uma frase que deve ser obedecida, um pedaço
de linguagem; e quem o recebe deve, à custa da sua vida se necessário, fazê-
lo existir na realidade. Uma ordem expressa a vontade de quem sabe mais, e
assim, a uma voz de comando deve corresponder um conjunto de
movimentos que procuram que o mundo conforme a visão clarividente
daquele que mandou. A cada vez que se cumpre uma ordem por completo
confirma-se a hierarquia já existente e, nesse sentido, o coração tranquiliza-
se. (TAVARES, 2008, p. 114).
Uma ordem é um pedaço de linguagem, que rompe o equilíbrio de palavra e silêncio e
instaura mais silêncio que palavra. Uma ordem se traduz na capacidade de engajar o outro
dentro do seu silêncio, trata-se da capacidade de interagir e de influenciar esse alguém em um
nível interpessoal. Uma ordem implica escuta e silêncio. É o silêncio do mais forte agindo
sobre o mais fraco. Por isso, cumprir uma ordem confirma a hierarquia para Lenz, confirma
os valores da cultura tecnocrática. O sujeito que transmite ordens espera do outro que o ouve
uma postura passiva e obediente, de quem simplesmente acata ordens e as cumpre. Para que
147
uma ordem exista em si é necessário existir o silêncio do outro. Um silêncio que não conteste.
Um silêncio que não anula o poder daquele que transmite a ordem. E Lenz encontrava esse
silêncio nos irmãos Liegnitz.
3.1.2 O silêncio de Júlia e Gustav Liegnitz
Os irmãos Liegnitz, Júlia e Gustav, tinham uma ligação especial com a família
Buchmann. Ambas as famílias eram unidas por um laço inominável. Sua ligação era inumana
e fundamentada por silêncio e silenciamento. Júlia e Gustav representam perfeitamente o
poder esmagador das palavras e do silêncio de Lenz Buchmann. Essas duas personagens dão
novo significado ao silêncio decorrente do horror e da barbárie. Julia e, especialmente, Gustav
carregam em si as marcas e os efeitos da censura, do apagamento, da violência da guerra, do
trauma sobre o ser humano. Esses efeitos, a partir dessas personagens, são explorados em
detalhes tanto na forma quanto no plano conteudístico a partir do tratamento e do
aprofundamento do interior da personagem.
No plano formal, esses efeitos aparecem sob a forma de frases interrompidas,
discursos entrecortados, momentos suspensos, espaços vazios no plano da linguagem, como
se pode observar no capítulo segundo desta dissertação. No plano conteudístico, aparecem sob
a forma de trauma, medo, mutismo, submissão e servilismo. É recorrente, no caso dos irmãos
Liegnitz, a linguagem pobre, fraca, inexpressiva. Em suma, tudo isso é forçosamente
decorrente do exercício de autoridade e da manifestação de poder de Lenz sobre a família
Liegnitz; poder, cujos efeitos perdurarão por muito mais tempo em Julia mesmo após a
decadência física e mental de Lenz.
O primeiro episódio em que aparece um Liegnitz em Aprender a Rezar na Era da
Técnica é logo na primeira parte do romance. “Frederich Buchmann relatara um importante
episódio passado consigo, num raro momento em que descrevera um pormenor concreto da
sua participação na guerra” (TAVARES, 2008, p. 118). Durante a guerra, um soldado, cujo
apelido era Liegnitz, conforme relata Frederich, fora assassinado por ele. “Não era uma
confissão, era um relato neutro, parecendo, ele próprio, Frederich, a mera testemunha de um
acidente de viação no qual não tinha qualquer responsabilidade ou envolvimento emocional
[...]” (TAVARES, 2008, p. 118). O assassinato do soldado Liegnitz marca o primeiro
encontro de um Buchmann e um Liegnitz. E sobre esse evento destaca-se o seguinte:
148
Não sem consequências, Lenz Buchmann ouvira do seu pai histórias sem
conta nas quais dois soldados, ou um soldado e um oficial, aproveitavam
instantes e circunstâncias que os colocavam sozinhos, isolados por completo
do restante do exército, para se vingarem pessoalmente um do outro,
disparando sobre as suas costas, e alegando depois uma emboscada, em que
o outro, por infelicidade, caíra. Nessas histórias que o pai contara, Lenz
intuíra algo de significativo: o homem era um, não dois, não três, não vinte;
um; e nada, em nenhum momento, apagaria esse traço. Quando se matava
alguém do próprio exército, por uma razão puramente individual, tornava-se
visível que se odiava muito menos o inimigo do país ou das suas ideias sobre
o mundo do que o seu inimigo pessoal. O ódio pessoal tinha uma potência
inigualável. (TAVARES, 2008, p. 116-7).
Fica nítido, portanto, que a relação entre dois homens ou mais se dá por um
movimento de ligação e outro de separação. A causa de ligação ou de separação entre dois ou
mais homens não é, como se pode observar em Aprender a Rezar na Era da Técnica, nem um
pouco fundamental. O que importa é apenas a forma como se dá a ligação e a separação. Um
homem é apenas um homem, como diz o excerto anterior, então, toda ligação entre dois ou
mais impõe uma separação futura. A ligação entre o primeiro Buchmann e o primeiro
Liegnitz ocorreu durante a sua experiência no exército. Portanto, o encontro desses dois
homens foi um encontro fortuito. Definitivamente, não há ligação decisiva. Sobretudo, em se
tratando de encontros fortuitos. Na guerra, Frederich Buchmann e Gustav Liegnitz serviam ao
mesmo exército; o que quer dizer que eles deveriam ser partes de uma unidade. A ligação
entre esses dois homens era uma ligação forçada pelas circunstâncias, pois serviam no mesmo
regimento. Logo, a separação dessas duas figuras era algo totalmente esperado. Mas o que
chama mais atenção é que a separação em si não diz muito, mas sim a maneira como ela se
dá.
[...] o pai contou-lhe como que matara um soldado do seu exército.
Com o meu próprio punho reduzi os efectivos do meu regimento – na sua
própria expressão. E porquê? Simplesmente por isto: o olhar dele - disse o
pai Frederich. E continuara:
Foi por causa disso que, num momento em que estávamos os dois
sozinhos, o matei. Ninguém se apercebeu do que aconteceu. Pus no relatório
que, por desleixo, ele morreu com uma bala da sua própria arma. E foi
verdade: a bala era da sua própria arma. Só que quem disparou fui eu.
O olhar dele quando de mim recebeu uma ordem – insistiu o pai –, foi
essa a causa. Nada de essencial dirás tu, agora, muitos anos depois, rodeado
de elementos pacíficos. Mas em guerra as ordens são essenciais, são a base,
e há olhares que têm consequências. Se ele tivesse tido a oportunidade tinha
feito o mesmo. Depois daquele olhar agi mais rapidamente do que ele.
Quanto a ele, não percebeu o meu olhar ou foi apenas mais lento.
(TAVARES, 2008, p. 118-9).
149
Esse excerto comprova que a causa que liga e separa dois homens é o que há de menos
relevante. São dois homens muito diferentes, com status diferentes, com patentes diferentes
sendo obrigados a conviver continuamente. A convivência contínua obrigava Frederich a se
nivelar ao outro homem – o soldado Liegnitz – durante o período em que o seu regimento
estava estacionado. Evidentemente que Frederich Buchmann não suportava a ideia de estar
nivelado a alguém que, para ele é nitidamente inferior. Por isso, o soldado Buchmann dá
ordens a Liegnitz, como forma de reestabelecer a hierarquia e demarcar autoridade.
Entretanto, Liegnitz não é neutro naquilo que ouve e, mesmo em completo silêncio,
ele responde a Buchmann com um olhar subversivo ou pelo menos foi o que Frederich
Buchmann interpretara na ocasião. E por causa de seu olhar, o soldado Liegnitz fora morto. O
olhar é um silêncio que diz muita coisa. O olhar enfrenta autoridade; “olhares têm
consequências” (TAVARES, 2008, p. 119), porque dizem através do silêncio. Como os
sentidos produzidos por Liegnitz enfrentavam a autoridade do oficial Buchmann, este mata
aquele com a sua própria arma.
E com isso, salta aos olhos silêncios fundamentais sobre essa passagem; por que
Frederich mata o colega com a sua própria arma? Por que Frederich insiste em assinalar que
olhares têm consequências? Porque, metaforicamente, a arma de Liegnitz é, na verdade, o seu
silêncio. O silêncio de Liegnitz é cortante, perturbador e ameaçador, cujas consequências
foram fatais. E, com o intuito de deter esse silêncio ameaçador, Frederich Buchmann
apropria-se dessa “arma” e o silencia para sempre. A arma de um torna-se a arma do outro. O
silêncio foi a arma usada por ambos, porém de maneiras distintas. O que distingue um do
outro nessa ocasião foi a capacidade de reconhecer e ler o silêncio que outro manifestara.
Frederich lera e percebera o silêncio fulminante contido no olhar do colega de
regimento. Ele, por sua vez, também devolvera o olhar com a mesma ou maior intensidade. E
Frederich sabia que Liegnitz não fora capaz de perceber o seu olhar. Isto é, Liegnitz não
reconhecera o silêncio do seu superior e os sentidos que ele manifestava. Por isso, foi
eliminado, pois não conseguiu responder a esse outro olhar. Não conseguiu dar sentido ao
silêncio de seu superior. A morte de Liegnitz, além disso, ficou registrada em relatório. O
relatório é um gesto simbólico para decretar o fim do silêncio produzido por Liegnitz.
Enterra-se a arma que assassinara Liegnitz. Cobre-se o silêncio com palavras. Buchmann
registra a palavra final. Depois do olhar e do silêncio de Liegnitz, Frederich atulha o silêncio
de seu subordinado com palavras de um relatório falso.
150
Lenz, de facto, nunca mais esqueceu o nome do soldado que o pai havia
morto. Tinha sido a sua curiosidade, aliás, a desenterrar esse nome.
Como é que ele se chamava pai?
Quem?
O soldado.
Há nomes que não interessa manter na cabeça - respondeu Frederich.
Diga-me como é que ele se chamava.
Não me recordo do nome próprio; o apelido era Liegnitz. (TAVARES,
2008, p. 119).
Essa passagem exprime muito bem a lógica empregada por Frederich Buchmann ao
usar a “arma” de Liegnitz contra ele. Frederich havia enterrado simbolicamente o
acontecimento escrevendo um relatório falso, impregnando o relatório com palavras vazias
com o simples propósito de enterrar o silêncio produzido pelo companheiro de exército e
jamais permitir que o silêncio de sua morte causasse quaisquer tipos de dúvidas ou
questionamentos.
Mas quando Lenz pede ao pai que revele o nome do soldado, este precisa
“desenterrar” o nome, porque o nome estava encoberto com palavras. “Há nomes que não
interessa manter na cabeça” (TAVARES, 2008, p. 119), ou seja, há nomes que não precisam
ser preservados na memória ou porque não expressam, em absoluto, qualquer significância ou
porque o nome Liegnitz despertava incontáveis memórias que por sua significância não
podiam ser verbalizadas; trata-se de memórias que jamais se perderam e que habitam no
silêncio de seu nome: Liegnitz. E este era justamente o caso. Quando, após muitos anos, a
família Buchmann e a família Liegnitz encontraram-se novamente, sob novas circunstâncias,
conforme se lê no seguinte excerto: “Meu caro Dr. Buchmann, apresento-lhe a sua secretária;
de uma competência extrema, asseguro-lhe: Julia Liegnitz” (TAVARES, 2008, p. 120), Lenz
identifica imediatamente o silêncio do pai e recupera e reconstrói o significado dele.
Julia Liegnitz era filha do soldado assassinado por Frederich e, surpreendentemente,
herdara do pai o silenciamento imposto pelo primeiro Buchmann. Agora, na condição de
secretária, evidentemente, as formas de imposição de autoridade e manutenção de poder
seriam diferentes daquelas dirigidas ao seu pai, mas isso não interferia na condição de
submissão e censura a qual Julia e o seu pai antes dela estavam expostos. O que havia sido
separado, em condições totalmente diferentes, estava novamente unido. “A ligação entre os
dois acelerou-se devido a uma série de acções urgentes que o Partido colocara nas mãos do
novo homem público” (TAVARES, 2008, p. 134). E a ligação entre os Liegnitz e os
151
Buchmann só aumentaria daí em diante, porém, marcada por uma relação de poder totalmente
assimétrica.
Ela conservava uma distância que existia não para possibilitar um salto mas
uma aproximação por pequenos passinhos, transmitindo a sensação de não
querer acordar uma coisa má que dorme. Eis a postura de Julia que
francamente agradava a Lenz. Nela era natural essa inclinação atenciosa, no
limite quase subserviente. (TAVARES, 2008, p. 135).
A distância entre os dois era a distância necessária. Era o espaço vital que o sujeito
subalterno sabe que não pode ocupar. Inclusive, acentuado pelo medo. Era marcante a sua
atitude subserviente. No dia a dia de trabalho, essa figura tímida e silenciosa agia com a
intenção de proteger o patrão de uma torrente de palavras. Ela – Julia – ouvia “convicções
pessoais de gente desinteressante, atendia telefonemas, selecionava a informação relevante
dos jornais [...]” (TAVARES, 2008, p. 135). Em outras palavras, Lenz não era consumido por
palavras vazias durante os seus afazeres. Julia, ao contrário, era atulhada todos os dias por
uma torrente de palavras insignificantes. Ela era engolfada pela verborragia do quotidiano, eis
a sua função como secretária; preservar o silêncio do patrão.
Além desse trabalho, Julia tinha uma série de outras funções que com o passar do
tempo foram aumentando em volume e também em responsabilidade. “Buchmann tinha dado
ordem a Julia Liegnitz para escrever frases que eram o oposto da verdade [...] Claro que Julia
Liegnitz não se atrevera a recusar a tarefa que fora atribuída [...]” (TAVARES, 2008, p. 167-
8), afinal, ela não tinha essa possibilidade. Julia tinha muito medo de enfrentar Lenz, porém
durante essa tarefa Julia revela o seu imenso desconforto em redigir uma mentira: a “ideia que
tinha de si própria enquanto pessoa que de modo intencional não mente – pelo menos nas
situações que não a envolvam emocionalmente –, essa incomodidade foi tão explícita [...]”
(TAVARES, 2008, p. 168), que Lenz não teve alternativa senão repreender a secretária.
“Lenz Buchmann não teve outro meio que não expor de um modo quase incivilizado – o que
lhe dava algum prazer – a doutrina da sua relação com o mundo. E Julia ouviu” (TAVARES,
2008, p. 168). A secretária, mais uma vez, estava sendo sufocada por palavras, porém as
palavras que vinham em sua direção eram diferentes das palavras com que ela lidava todos os
dias.
As palavras de Buchmann tinham um efeito sobre ela. Julia ouvia, mas ouvia em
silêncio. As palavras de Lenz causavam silêncio e impregnavam-se no silêncio de Julia.
Depois da reprimenda, Julia fica sem palavras, sem reação. Ela era toda silêncio. Como
consequência, todo resto da página é branco. Definitivamente, a secretária não demonstraria
152
novamente suas opiniões tão explicitamente. E a partir daí, seria mais fácil para a jovem
secretária silenciar a verdade em favor do silêncio opressor de seu patrão.
Após esse episódio, a relação entre esses dois personagens intensifica-se bastante. Há,
inclusive, um capítulo dedicado às “ligações que não se cortam” (TAVARES, 2008, p. 171).
Julia e o irmão mais velho estavam atados à família Buchmann novamente, por “razões de
sangue” (TAVARES, 2008, p. 171). Tratava-se de um vínculo inominável; uma relação que
nenhuma das partes sabe explicar as forças que os mantêm unidos, mesmo Lenz sabendo o
que havia acontecido com o pai da sua secretária durante a guerra, havia algo de inominável
que alimentava a relação entre ambos e que destacava o papel de Julia e, posteriormente, de
seu irmão Gustav na vida de Lenz. Por que os Liegnitz são tão suscetíveis ao poder de um
Buchmann?
Lenz Buchmann desde o início respeitara aquela mulher, Julia Liegnitz, por
razões de sangue que só ele conhecia. Tinha sido o seu pai a abrir a fenda
decisiva naquela família. Era pois a sua missão, no cumprimento de uma
dignidade cujas regras eram apenas definidas por si, continuar o trabalho de
seu pai – Frederich. No fundo, tratava-se do mesmo acto, mascarado de outra
forma: proteger aquela mulher e toda a família Liegnitz – em especial o
irmão, Gustav Liegnitz – era interferir, na existência daqueles indivíduos –
tal como fizera o seu pai. No fundo, Lenz Buchmann colocava-se num plano
tal, em relação àquelas existências, que matar ou proteger se tornavam
acções semelhantes. (TAVARES, 2008, p. 171).
É interessante observar que apesar do narrador destacar nesse excerto que Lenz
respeitava Julia, esse respeito jamais ocorreu de igual para igual. Lenz respeitava a secretária,
porque ela tinha um ar submisso. Ela era calada naturalmente. Apesar de sua relação estreita,
há poucos momentos na narrativa que Julia dirige-se diretamente ao patrão. Julia perdeu a sua
linguagem. Ela é forçada a adotar a perspectiva de Lenz sobre o mundo e, consequentemente,
forçada a adotar a sua linguagem e com ela as tácticas de silenciamento. Fica explícito,
também, que Lenz trataria Julia e o irmão da mesma maneira com que o pai tratou o soldado
Liegnitz.
Está assente que a família Liegnitz é vítima da violência e do autoritarismo imposta
pelos Buchmann. Detendo-se um pouco mais sobre essa questão, “matar ou proteger se
tornavam acções semelhantes”, no sentido de que a vida dos irmãos Liegnitz não pertencia
mais a eles. A rigor, a relação entre eles era marcada por uma série de regras definidas por
Lenz que impediam que tanto Julia quanto Gustav se projetassem e se expressassem enquanto
sujeitos. Mantê-los por perto era um gesto fundamental para poder continuar exercendo poder
153
sobre aquela família. O que Lenz percebera era que a separação anulava em absoluto o poder
daquele que está em situação vantajosa.
Quando Frederich Buchmann matou Liegnitz, Buchmann puniu o soldado que
ameaçava o seu poder, mas ao mesmo tempo Frederich abdicou do poder de controlá-lo
quando o matou. Após a morte, Frederich não exerceria poder algum sobre aquele soldado
com olhar subversivo. Estava anulada a hierarquia. Por outro lado, Lenz sabia que precisava
manter forte a ligação entre ele e os irmãos Liegnitz para que a hierarquia jamais se
desfizesse. A proximidade cultivada por Lenz tinha apenas um objetivo: “era interferir, na
existência daqueles indivíduos – tal como fizera o seu pai” (TAVARES, 2008, p. 171), de
modo tão decisivo que a “fenda” aberta por Frederich jamais se fecharia novamente.
Não importava a causa, o certo é que as duas famílias, a mais alta –
Buchmann – e a vulgar – Liegnitz –, haviam sido ligadas, amarradas, por
uma acção de grande intensidade, e essa ligação deveria ser respeitada pelas
gerações seguintes. Era isso que Lenz Buchmann estava a fazer quando
ignorou o roubo provado, levado a cabo pela sua secretária, de uma certa
quantia de dinheiro – e com isso conquistou Julia uma fidelidade definitiva –
e também quando, ao longo de alguns anos, assumiu o objetivo de ensinar os
mecanismos da existência a Julia Liegnitz. (TAVARES, 2008, p. 172).
Calar-se sobre o roubo comprara o silêncio de Julia. Assim, Lenz tinha uma secretária
cada vez mais submissa. Ele era o senhor de seu silêncio. “O empregado não dispõe da
mesma latitude de palavra ou de silêncio que o patrão [...]” (LE BRETON, 1999, p. 79). Julia,
após esse evento, não poderia dizer ou calar sobre mais nada sem o consentimento dele; ele
conquistara uma “fidelidade definitiva [...]” (TAVARES, 2008, p. 172). Fidelidade que se
definia por um contrato de silêncio. O que ela tinha de mais significativo e essencial já não
era mais dela. “Foi pois com um orgulho quase paterno que viu, mais tarde, o sorriso de
entendimento que a menina Liegnitz exprimiu no final do primeiro texto político em que
inequivocamente mentia [...]” (TAVARES, 2008, p. 173). Lenz sentia-se como mentor de sua
secretária, alguém que lhe ensinara uma nova linguagem.
Lenz via em Julia uma extensão de seu poder. “Lenz Buchmann sentia a cada dia que
passava uma ligação mais forte com a menina Julia Liegnitz. Estava, de certa maneira, a fazê-
la, como em tempos fizera a criadita que servia na casa dos pais” (TAVARES, 2008, p. 173-
4). A comparação é bastante pertinente, pois quando Lenz era jovem e teve que “fazer” a
criadita ao comando de seu pai, Lenz pode ver com clareza a concretização do poder e da
autoridade sobre o outro. Ele via no mutismo e na submissão da criadita o poder do silêncio
sobre o sujeito rebaixado. E Julia, embora em circunstância um pouco diferente, estava
154
rebaixada ao poder do patrão e provava mais uma vez o poder arrebatador da censura e do
silêncio sobre o sujeito.
E mais satisfeito ainda assistiu depois, com o tempo, à diluição gradual desse
sorriso que caracterizava contrabandistas ou espiões; pois tal diluição ou
desaparecimento significava que mentir conquistara um segundo estatuto na
existência pública de Julia Liegnitz. Já não era algo que a consciência
detecta mas sim uma tarefa profissional, um atividade de oficina que se faz
mais rápido ou mais lentamente, que se aperfeiçoa ou não, mas que jamais
causa espanto ou é sequer significativa. Ela aprendera a tirar motor do
pântano. (TAVARES, 2008, p. 173).
Julia, conforme se constata nesse excerto, já não era mais a mesma, ela não era livre
para se expressar segundo as suas convicções morais. A nova secretária apenas repetia uma
forma de agir que era imposta por Lenz Buchmann.
É notável o seu progresso no trabalho, porque com o passar do tempo Julia começa a
aplicar as mesmas estratégias de silêncio e silenciamento tal como Lenz faz. À diferença do
patrão, Julia não faz em benefício próprio mais em benefício de outro. Sobre esse aspecto
destaca-se o seguinte momento: “Em dois anos o político Lenz Buchmann e a sua secretária
Julia Liegnitz tornaram-se inseparáveis. Como no processo de osmose: uma única substância”
(TAVARES, 2008, p. 174). O processo de ligação entre Buchmann e Liegnitz nesse momento
da narrativa está consolidado.
Lenz conseguira reduzir Julia a uma parte de si. Fizera com que Julia reproduzisse o
seu silêncio e garantia que não haveriam olhares dirigidos a ele, como foram os olhares do
soldado Liegnitz dirigidos a seu pai. Lenz, nesse sentido, fora muito mais bem sucedido no
processo de apagamento e de neutralização de sentidos do que seu pai. Mas Lenz ainda não
controlava todos os Liegnitz. Controlava apenas a caçula do soldado assassinado pelo pai. O
filho mais velho – Gustav Liegnitz – cujo nome era idêntico ao nome do pai, estava ainda fora
do alcance de Lenz. Por essa razão:
Logo no início da relação profissional, o político Lenz Buchmann
manifestara desejo de conhecer o irmão da secretária: Gustav Liegnitz [...]
aquele nome representava um outro tipo de monumento, não material mas de
igual importância simbólica. (TAVARES, 2008, p. 175).
Gustav era o monumento decisivo para Lenz concretizar a vitória do pai. A vitória do
mais forte sobre o mais fraco. Para Lenz, “um nome de família concentrava um conjunto de
experiências antigas que jamais podiam ser colocadas num cesto e contadas como peças de
fruta” (TAVARES, 2008, p. 176). Portanto, o que Lenz fazia em relação aos irmãos Liegnitz
155
tinha uma significação que excedia a ordem da palavra e a ordem dos tempos. A relação
construída com os Liegnitz não era um somatório de ações em que se complementavam as
ações de seu pai, pois elas não precisavam ser continuadas por seus descendentes. “Não se
tratava, e ele aprendera isso com o pai, de uma operação do gênero /+/ /+/” (TAVARES,
2008, p. 176), pois o que ligava Lenz aos irmãos Liegnitz era um processo de subtração e
apagamento do sujeito, cujas estratégias superaram a experiência do pai no regimento.
Tratava-se de algo não verbalizável, logo porque as estratégias de Lenz eram estratégias
construídas no silêncio para impor outro silêncio.
Definitivamente, trata-se de algo completamente inenarrável que se comprova a partir
do seguinte excerto. “O alfabeto e a contabilidade não eram capazes de segurar essa força que
uma única palavra encerrava [...]” (TAVARES, 2008, p. 176). Essa força era o nome:
Buchmann e do lado mais fraco, Liegnitz. “O nome tornava-se cada vez mais denso. A cada
geração o nome de família acumulava mais intensidade no mesmo espaço” (TAVARES,
2008, p. 176). A intensidade dos nomes Buchmann e Liegnitz não eram, assim, intensidades
materiais, mas eram forças inenarráveis que se concentravam cada vez mais e,
paulatinamente, reunindo forças para atacar. E outro fato que chamava a atenção de Lenz era
o nome do seu “adversário”.
[...] qualquer destes nomes não era uma palavra neutra, igual a cadeira ou
mesa, mas uma palavra que precisamente odeia a neutralidade, uma palavra
firme, única, não se confunde com outra [...] o encontro com o irmão de
Julia, Gustav Liegnitz, já que este tinha exactamente o mesmo nome do pai,
e só este facto levava-o estar ciente de que a história entre as duas famílias
ainda não terminara. Ainda não tinha sido dado o último tiro, pensava.
Embora lhe parecesse, também, altamente improvável que algo de
semelhante ao que acontecera no passado voltasse a suceder. Mas um nome,
próprio e de família, que se repete na geração seguinte não era apenas uma
homenagem ao que já não existe ou àquilo que, em princípio, vai deixar de
existir primeiro, era também uma manifestação pública de que o trabalho
estava incompleto [...] (TAVARES, 2008, p. 177).
Gustav Liegnitz, também chamado surdo-mudo, representava sob muitos aspectos a
continuidade dessa relação simbólica entre Buchmann e Liegnitz. O soldado Liegnitz fora
morto por Frederich por expressar sentidos através de seu silêncio; um olhar silencioso. Nas
considerações de Lenz o filho representava a incompletude dos atos passados, sua existência
era a continuidade, no entanto, que superava qualquer noção de sucessividade como de pai
para filho. Ele representava uma chance de provar a intensidade dos nomes Buchmann e
156
Liegnitz, através de uma continuidade que se manifestava no fortalecimento e no
empoderamento de uma personagem e no mutismo da outra.
É da mais alta significação que as condições do segundo Buchmann e do segundo
Liegnitz eram mais intensas. Lenz havia alcançado mais poder que o pai graças à técnica e ao
seu processo de ascensão política. Gustav devido a sua condição tornava-se imensamente
mais submisso e apagado que seu pai no regimento. E a esse respeito, David Le Breton
discute que: “A impotência das palavras é a medida de um silêncio que se impõe como única
forma de resposta possível à violência sofrida” (LE BRETON, 1999, p. 105). E,
continuamente, Gustav Liegnitz continua a sofrer uma violência, especialmente de
Buchmann. Assim como o pai sofrera nos tempos de guerra, o filho sofreria com a geração
seguinte. Lenz conseguiu reduzir a capacidade de significação de Gustav Liegnitz ao seu
controle impondo o seu silêncio.
Essa personagem só emite “mmms” que a impedem de se impor socialmente e tinha a
irmã como o seu último sustentáculo. Apenas a irmã de Gustav, Julia, é capaz de entendê-lo e,
assim, traduzir o que o irmão expressava. Enquanto Lenz está no auge do seu poder, na
primeira parte do romance, Gustav Liegnitz é incapaz de significar de forma independente,
chamado sempre de surdo-mudo, inclusive pela irmã, e em alguns momentos com tom
escarnecedor. A irmã tornara-se uma extensão do poder de Lenz, então, era mais que natural
que ela também ridicularizasse o irmão às vezes. O amparo que Gustav tinha parecia já não
mais existir graças ao efeito de Lenz sobre a irmã.
Os sentidos produzidos por Gustav são subalternizados. “Se ele – o filho do soldado
Gustav – soubesse ler a escrita não visível que o encontro entre dois homens deixa no ar,
proporia logo um duelo e de imediato pegaria na arma” (TAVARES, 2008, p. 185). Em outras
palavras, se Gustav fosse capaz de ler o silêncio do seu encontro com Lenz Buchmann ele se
tornaria um inimigo digno. Ele “era um homem que tinha legitimidade histórica para ser seu
adversário. Era um homem com esse direito, que ultrapassa em muito a lei, o direito de
vingança” (TAVARES, 2008, p. 185). Entretanto, o fato de Gustav ser surdo-mudo
comprometia completamente o seu direito de vingança reconhecido por Lenz. Aquele que
poderia ser um “potencial inimigo” (TAVARES, 2008, p. 185), tornara-se, devido a sua
condição, um perfeito subordinado.
O contato de Liegnitz com Lenz mudara sua história definitivamente. Antes, “[...] o
jovem Liegnitz era classificado de preguiçoso, pouco inteligente e portador de mau caráter”
(TAVARES, 2008, p. 200). Mas mesmo um homem com essas qualidades, sob a proteção de
157
Lenz Buchmann conseguiu ascender socialmente. “Por influencia expressa de Buchmann, não
apenas foi admitido num emprego adequado às suas condições físicas e muito bem
remunerado como também rapidamente subiu duas categorias [...]” (TAVARES, 2008, p
199). Mas só conseguiu subir porque “transformara-se numa pessoa obscenamente
subserviente quando na presença de alguém poderoso” (TAVARES, 2008, p. 200). Gustav era
surdo-mudo, mas não era um sujeito desprovido de sentido. “Se ele falasse tal já seria, há
muito, evidente para os outros. Mas não” (TAVARES, 2008, p. 200). Contudo, na presença
de Lenz, ele esvaziava-se completamente.
Gustav Liegnitz falava um pouco, dir-se-ia. Os seus mmms eram na verdade
uma tentativa de esboçar palavras, de distinguir letras; tentativa que a sua
irmã, há muito com os ouvidos treinados, conseguia discernir quase por
completo. Julia funcionava muitas das vezes como uma espécie de tradutora
do seu irmão. Diga-se ainda que Gustav, quando concentrado, conseguia
perceber o que os lábios das pessoas diziam. Não ouvia, mas parecia ver as
palavras a formarem-se mesmo ali, na origem. Via o esculpir, utilize-se esta
expressão, das palavras – não as escutava. (TAVARES, 2008, p. 257).
Considerando que Gustav não escutava as palavras, a habilidade de esculpi-las era
uma capacidade que demonstrava o pouco silêncio que reverberava dentro de si. Afinal, nem
todo o seu silêncio pertencia ao Dr. Buchmann. Gustav era capaz de formular sentido e dar
forma à linguagem porque ele não era completamente desprovido de silêncio. De modo que,
ser mudo não significava ser calado. O seu mutismo era um forma de ele poder se manifestar
uma violência indizível. Sobre isso, destaca-se o seguinte: “As crianças de guerra, que
assistiram à execução dos seus parentes, que viram homens e mulheres serem torturados ou
violados, indivíduos que sofreram um traumatismo pessoal, ficam sem voz, escondem-se fora
da linguagem [...]” (LE BRETON, 1999, p. 106). O mutismo de Gustav apresentava-se como
uma resposta inconsciente à violência sofrida. E os ouvidos treinados de Julia são os únicos
que conseguem dar forma a esses “mmms” de Gustav, porque Julia também é vítima dessa
mesma violência.
No capítulo subintitulado Mudanças íntimas, Lenz vê a sua casa ser ocupada pelos
irmãos Liegnitz, e Lenz era consciente de que os “mmms” de Gustav não eram desprovidos
de sentido. Com efeito, Lenz sentenciava constantemente Gustav ao silenciamento: “– Deixa
lá os mmms - disse mesmo, nessa altura, grosseiramente, Lenz” (TAVARES, 2008, p. 256),
como forma de neutralizar quaisquer sentidos que Gustav pudesse manifestar, e que,
consequentemente, estariam além de sua compreensão. O silêncio de Gustav, nesse sentido, se
mostra tanto mais profundo e significativo que o silêncio exercido pelo patrão. A latitude de
158
seu silêncio é de outra natureza, trata-se de um silêncio que significa e se sobrepõe ao
silenciamento. A partir de Gustav Liegnitz percebe-se, segundo a afirmação de Eni Orlandi
(2007), que o silêncio não pode ser contido e sempre significa de múltiplas maneiras, é
comprovado.
Nas partes subsequentes à decadência física e mental de Lenz Buchmann, os irmãos
Liegnitz adquirem maior espaço na casa de Lenz e, consequentemente, maior poder. O
silêncio opressor de Lenz vai perdendo força, permitindo assim que Julia e Gustav Liegnitz se
manifestem mais livremente. À medida que o patrão perde a força e a autonomia, a secretaria
e o surdo-mudo passam a ser de uma nova forma a extensão do poder silenciador de Lenz. É
consequente, então, o empoderamento dessas duas personagens. “Gustav Liegnitz ajudava no
que era necessário, mas era Julia quem dirigia e organizava tudo. Julia tomara o centro das
operações” (TAVARES, 2008, p. 256). Com isso, mesmo com o deslocamento de centro de
Lenz para Julia, ela criara um sistema pelo qual Lenz ainda era capaz de incluir e excluir
significados.
Foi pois com naturalidade que os dois irmãos Liegnitz se mudaram para a
grande casa dos Buchmann – Julia com as funções aparentes de secretária
mas, a cada semana que passava, cada vez mais transformada numa
enfermeira [...] A decadência física de Lenz Buchmann era assim
acompanhada por uma presença cada vez mais vigorosa e por uma força que
se impunha a cada metro quadrado da casa – a presença dos dois irmãos
Liegnitz. Em suma, a família Liegnitz avançava. (TAVARES, 2008, p. 259).
A entrada dos Liegnitz na casa “poderia parecer uma invasão, uma conquista hostil.
No entanto, tudo se passava com uma harmonia invulgar” (TAVARES, 2008, p. 260). O
avanço Liegnitz era acompanhado por Lenz em completo silêncio, não um silêncio de quem
está desinteressado e neutro, mas um silêncio atento de quem sabe o que o outro faz e que não
dá espaço às ações promovidas pelo outro. O silêncio de Lenz tem intenções inibidoras;
silencio cerceador. “Lenz enfraquecia e, do outro, Julia e Gustav Liegnitz se tornavam mais
fortes para o segurar melhor; no fundo para que o par de opostos, no seu conjunto não caísse”
(TAVARES, 2008, p. 260). Todo avanço dos Liegnitz era de certa forma controlado por Lenz
nesse primeiro momento. Lenz transferia poder para os irmãos para que ele pudesse continuar
exercendo de alguma forma o seu poder.
Nesse sentido, no capítulo intitulado A importância dos nomes, Lenz que já estava
muito debilitado pelo cancro que tinha no cérebro, pedira para Gustav eliminar o nome do seu
irmão mais velho da placa de bronze que continha o brasão da Família Buchmann. Gustav,
159
como era incapaz de expressar palavras por si mesmo, tornara-se ele também uma extensão do
poder silenciador e censurador do patrão. “Que ficasse apenas o brasão, o nome completo do
pai – Fredrich Buchmann, o da mãe e o seu: Lenz Buchmann. Como se ele tivesse sido filho
único” (TAVARES, 2008, p. 269). Nessa passagem, nota-se a importância que Lenz
Buchmann atribuía ao nome da família, mas, especialmente, ao nome do pai e ao seu. O nome
da mãe nem é mencionado: “O nome da mãe era um nome fraco” (TAVARES, 2008, p. 269).
A atitude de Lenz ao observar o surdo-mudo, Gustav, polindo o brasão e, finalmente,
apagando o nome do irmão mais velho de Lenz, traz grande satisfação. Gustav convertera-se
em uma ferramenta de silêncio e apagamento para Lenz.
Mas para que esses irmãos continuassem a exercer poder por ele, Lenz tinha que fazer
concessões. Os irmãos Liegnitz trouxeram mobília, “transportaram para casa de Buchmann
um certo mau gosto” (TAVARES, 2008, p. 262). Trouxeram, inclusive, livros da biblioteca
Liegnitz que poderiam se misturar aos livros da biblioteca Buchmann. “Eram livros de
historietas miseráveis, consumidas aos milhares por adolescentes tontos e por famílias
diversas com pouca cultura, como os Liegnitz” (TAVARES, 2008, p. 263). Esses eram os
livros que Lenz desprezava, por não conterem potência e intensidade. Lenz acreditava que a
biblioteca Buchmann conservava força e que os livros reunidos por ele e por seu pai, eram
livros cuja força da linguagem aumentava sua força; Lenz dizia: “a biblioteca aumenta a sua
força” (TAVARES, 2008, p. 244). Ao proibir que os livros de Liegnitz não saíssem de seus
respectivos quartos, Lenz impusera outro silêncio aos jovens irmãos. Para que aquela
linguagem vulgar não contaminasse a força de seus livros e que a verborragia dos livros dos
outros não se confundisse com o silêncio de sua biblioteca.
Mesmo doente Lenz conseguia exercer o poder de silenciamento sobre os irmãos. E
exercer esse poder não exigia o mesmo vigor de antes. Julia e Gustav haviam, em grande
medida, absorvido os “ensinamentos” de Lenz, assim como Lenz fizera com relação aos
“ensinamentos” de seu pai. Os irmãos haviam perdido muito do seu poder de expressão. Em
certa ocasião, Lenz pedira à secretária que fosse tratar com o presidente do Partido Hamm
Kestner. Julia ia até à liderança do Partido não como Julia, mas como Lenz. “Julia chegou
nesse mesmo fim de tarde com um rosto que, à primeira vista, não deixava transparecer nada
– nem de positivo nem de negativo” (TAVARES, 2008, p. 281). O que se lê nessa passagem é
que Julia havia se esvaziado. Sua expressão não carregava a mesma energia de antes. No seu
semblante não havia silêncio, apenas vazio.
160
Ela ouvira as palavras de Hamm sem refletir sobre elas. Ao transmitir para Lenz,
transmitia palavra por palavra, sem deixar transparecer qualquer silêncio seu. Ela convertera-
se em uma máquina desprovida de silêncio, carente de autenticidade. “Foi então que Lenz
Buchmann fez um sinal firme para Julia se calar. E Julia calou-se” (TAVARES, 2008, p.
282). Mas mesmo transmitindo as palavras de Kestner para Lenz, Julia, porém, já estava
calada.
Lenz e Frederich dominavam uma linguagem que Julia jamais chegou a conhecer
verdadeiramente. “A sensação era de que, se aqueles dois homens falassem entre si, ela não
entenderia uma única palavra. Mesmo que falassem a língua comum, ela, Julia, como uma
tonta ou uma atrasada mental, pensou, não perceberia o sentido de uma única frase”
(TAVARES, 2008, p. 298). Essa sensação era justificada pela carência de silêncio em Julia.
Ela não saberia reconhecer e tampouco ler o silêncio que se apresentava entre aqueles dois
homens. Apesar de corresponder a certas formas significativas de silêncio, a sua relação com
esse fenômeno é bastante limitada e varia de acordo com o contexto, pois o silêncio que Julia
absorve e compreende mais facilmente é o silêncio arrebatador e violento ou decorrente de
violência.
Quando Lenz e ela visitavam o túmulo de Frederich, ao contemplar ao silêncio de
Lenz “Julia pensou nela, agora apenas nela” (TAVARES, 2008, p. 298). Finalmente Julia
percebera no que tinha se tornado: muda, completamente sem expressão, carente de silêncio,
consequentemente, carente de sentido. Fora o silêncio de Lenz diante do túmulo do pai que
despertara a secretária de sua condição de muda. Apesar de diferente do irmão, Julia era muda
não no sentido físico, mas no sentido da capacidade de expressar sentidos fluentemente. O
contato com o silêncio do outro despertara brevemente a sua consciência sobre a sua total
alienação. No entanto, a tomada de consciência não durou por muito tempo. Julia estava
completamente rendida ao poder do patrão. “Há já duas semanas que Lenz Buchmann deixara
de ter qualquer controlo para além do metro quadrado em seu redor – e mesmo essa vigilância
era apenas visual” (TAVARES 2008, p. 305), porém Julia ainda estava completamente
entregue e resignada.
Lenz não tinha mais forças para executar qualquer tarefa, porém as forças de quando
ainda era jovem tinham um efeito invulgar sobre Julia. Ela assumia cada vez mais as tarefas
do patrão, inclusive tarefas menores, como continuar dar a esmolas para o mendigo que
costumava visitar a casa de Lenz. Julia “[...] tinha ainda a maior parte das suas forças
161
direcionadas para os cuidados que Lenz requeria [...]” (TAVARES, 2008, p. 306). Julia
tornara-se, finalmente, o que Lenz realmente desejava: uma extensão sua.
Gustav, ao contrário, “aperfeiçoava com grande rapidez as suas capacidades de
decisão” (TAVARES, 2008, p. 306). Ele estava, paulatinamente, libertando-se do silêncio
opressor. O surdo-mudo era cada vez mais ativo. A ligação entre eles, Lenz e Gustav, porém,
não estava acabada; “estava ainda em ebulição: as coisas avançavam” (TAVARES, 2008, p.
307). E avançaram de tal maneira que Gustav decidira invadir a biblioteca Buchmann.
A biblioteca de Lenz permanecia selada desde que Julia e Gustav haviam se instalado
na casa. A biblioteca, após a invasão dos Liegnitz na casa Buchmann, consagrava-se como
um espaço inviolado. Ela era o último reduto de força de Lenz. A biblioteca para Lenz era um
depósito de silêncio, de força de linguagem. Os livros que lá estavam conservavam uma
potência inexplicável para Gustav e Julia. Por essa razão, a biblioteca permaneceu, por muito
tempo, longe dos olhares de Gustav. Contudo, arrombar aquela porta, tal como Gustav a
arrombou, significava perturbar o silêncio do patrão com golpes sucessivos, essa era “[...]
uma tarefa de grande esforço físico que para ele era passada quase em silêncio [...]”
(TAVARES, 2008, p. 310). Portanto, a decisão de derrubar a porta representava uma dupla
vitória para Gustav: ele experimentava o silêncio tirando o silêncio do seu patrão.
No último estágio da doença de Lenz, o centro deslocara-se e Gustav tornara-se senhor
de seu próprio silêncio. Lenz sempre controlava o que era dito e o que não era dito pelos
irmãos Liegnitz durante quase todo o tempo em que conviveram juntos, mas quando Gustav
percebera que Lenz já não era mais capaz de controlar a linguagem, ele decidira se vingar.
Aproveitando a ausência da irmã por dois dias, Gustav substituiu o bilhete com o nome
completo de Frederich Buchmann que Lenz lia todos os dias por uma frase.
O certo é que Buchmann, já sem qualquer noção da realidade e desprovido
de qualquer arma de defesa, durante duas noites leu aquela frase patética,
vergonhosa, que atentava contra os seus valores mais íntimos mas de uma
forma infantil, sem consequências, e leu-a, embora com estranheza, com a
convicção de que lia e repetia o nome do pai. (TAVARES, 2008, p. 320).
Gustav colocava palavras na boca de Lenz, assim como Lenz fizera com ele durante
quase todo o tempo em que estiveram juntos. Julia, ao contrário do irmão, jamais se libertaria
do poder opressor. Refém de um silêncio para sempre, a jovem secretária revelava uma
fraqueza inevitável, a mesma fraqueza com que se deixara dominar por Lenz Buchmann. “A
Igreja tinha ali uma nova conquista [...]” (TAVARES, 2008, p. 353). A mesma Igreja que
Lenz por tanto tempo combatera, lançara sua atenção aos irmãos Liegnitz. Evidentemente,
162
que Lenz tinha culpa naquilo que estava para acontecer, pois a fraqueza característica de Julia
havia sido promovida e incentivada por ele. Após a morte de Lenz, Julia rendia-se novamente
a outro silêncio opressor.
3.1.3 O silêncio de Fredrich Buchmann
Em Aprender a Rezar na Era da Técnica, só há uma personagem que é irresistível ao
poder encantatório e silenciador de Lenz, essa personagem é ninguém menos que: Frederich
Buchmann, seu pai. Frederich Buchmann é militar reformado que leva para casa tudo o que
havia aprendido com sua experiência no exército e no campo de batalha: disputa, violência,
medo e silêncio. A soma desses elementos transformara a família Buchmann em um “pequeno
Estado Monárquico” (TAVARES, 2008, p. 100), onde Frederich colocava-se no centro e seus
filhos apenas acompanhavam o movimento de suas ordens. Para Frederich, não havia palavra
dita que não fosse palavra cumprida. E, assim também, para Frederich, também não havia
silêncio que não fosse uma ordem absoluta a ser cumprida. “Uma ordem é, simplesmente,
uma frase que deve ser obedecida, um pedaço de linguagem; e quem o recebe deve, à custa de
sua vida se necessário, fazê-lo existir na realidade” (TAVARES, 2008, p. 114). Uma ordem é
apenas um conjunto de palavras e de silêncios que alguém espera que seja materializada.
Consiste em passar tanto a palavra e o silêncio para o mundo das ações, para o campo
material, sígnico e realizável.
Frederich Buchmann ensinou aos filhos da forma mais difícil, ou seja, através da
disputa, da violência, do medo e do silêncio, como confirmar a hierarquia. Frederich
Buchmann queria filhos fortes e acreditava que esse era o melhor caminho. Suas ordens e seus
ensinamentos são paralisantes, repletos de silêncio que explicam porque suas ideias são
frequentemente retomadas pelo narrador e perpassam por toda juventude e fase adulta da
personagem. A voz do pai, silenciosamente, ecoa em Lenz durante toda a sua vida, inclusive
nos momentos de grande decadência mental e isso só foi possível porque Frederich incutira
silêncio e silenciamento no mais profundo interior de Lenz. Um silêncio tão profundo que a
personagem protagonista jamais foi capaz de superá-lo e esse silêncio tornou-se um silêncio
embrionário, cuja essência configurou toda forma de Lenz lidar com o seu silêncio e o do
outro.
É evidente que as consequências dessa educação não foram as mesmas para os irmãos
Buchmann: Albert e Lenz. Albert era o filho mais velho, portanto, o mais cobrado dos irmãos.
163
“No entanto, Albert era o Buchmann mais velho, e a idade revelava um indício de outras
forças não muito explicáveis que contrabalançavam os actos da existência de cada um”
(TAVARES, 2008, p. 100). Ainda que tivessem recebido do pai a mesma educação e recebido
ordens iguais: “Em relação ao seu irmão, por exemplo, não havia qualquer laço de dívida:
eram construções diferentes [...]” (TAVARES, 2008, p. 74). E isso era algo que Frederich
jamais previra. “Havia, sem dúvida, a sensação de luta por um espaço. O patrimônio material,
e também o nome de família [...]” (TAVARES, 2008, p. 74). Frederich que estimulara entre
os filhos a disputa causara entre eles uma tensão irreconciliável, pois “para Lenz era
fundamental o nome de família: Buchmann” (TAVARES, 2008, p. 74), mas Albert usava o
nome primeiro; Albert era o primeiro Buchmann.
Lenz jamais aceitaria ser o segundo Buchmann, até porque considerava que
no seu irmão o nome Buchmann se tornava um nome defensivo e, pelo
contrário, nas suas mãos, a anteceder as suas acções, o nome Buchmann
tomava inegavelmente feições guerreiras, de ataque. E por isso ele era
simplesmente Lenz, tratando também o irmão pelo primeiro nome,
recusando-se a explicitar o apelido de família. (TAVARES, 2008, p. 75).
Sobre os dois filhos, Frederich concluíra: “Tenho um cão e um lobo – dizia Frederich
Buchmann, directamente, aos filhos” (TAVARES, 2008, p. 101). O cão era Albert, porque
para Frederich, ele era fraco e submisso; não existia nele a mesma força e potência que se
manifestava em Lenz. Em Albert, via-se uma figura calada de rosto inexpressivo que,
definitivamente, faltava silêncio, ou pelo menos, silêncio da mesma natureza de Lenz. Lenz,
ao contrário, era mais parecido com ele. Lenz e Frederich não precisavam pronunciar palavra
para se fazerem ouvir. Albert, no entanto, precisava pronunciar o nome Buchmann em cada
conversa para ser ouvido. “Eis a questão mais relevante. Porque aqui não havia possibilidade
de divisão: um nome não era um terreno, que uma régua mais ou menos bem intencionada
possa dividir, mantendo dois lados minimamente satisfeitos. Um nome não se pode dividir”
(TAVARES, 2008, p. 74). Ao usar o nome Buchmann para “iniciar qualquer diálogo”
(TAVARES, 2008, p. 75), como constata Lenz, Albert desperdiçava o que havia de mais
importante no nome de família: seu silêncio.
O nome não era para ser usado indiscriminadamente. O nome Buchmann era um nome
que evocava silêncio e que ao ser usado em uma conversa fazia uma série de implicações que
não precisavam ser explicitadas; estava tudo contido no silêncio daquele nome. Buchmann era
um nome de força. De fato, não havia nada de especial naquele conjunto de letras que
formavam o nome: Buchmann. Contudo, ele guardava uma herança não dita. “Lenz respeitava
164
de tal forma a história de cada nome que se revoltava cada vez que via o vocábulo Buchmann
no seu sítio – na letra B – incluído numa enorme lista, como se fosse apenas isso, uma palavra
que começa por uma letra determinada” (TAVARES, 2008, p. 178). Entretanto, Lenz
acreditava que o nome herdara a força do pai. Trata-se de forças que jamais se perderam e que
habitam no silêncio de seu nome. Justamente em função do silêncio que opera na linguagem
que a vitalidade e a força que o nome Buchmann contém tornam-se alcançáveis para o leitor e
para o universo das personagens. E também por essa força que Lenz é capaz de retomar as
ideias do pai muito frequentemente.
O pai de Lenz havia então penetrado na estrutura fundamental de seu filho e o
transformado de dentro para fora, tocado em seu interior e abalado sua essência. “Lenz, diga-
se, já não estranhava que o final de seus pensamentos terminasse em imagens militares. A
estrutura fundamental de uma educação fora dada por um militar [...]” (TAVARES, 2008, p.
107). O que se pode depreender dessa passagem é que Lenz fora treinado pelo pai para agir
como um soldado em um campo de batalha e cultuar a técnica e a atividade bélica. Lenz “era
alguém que nascera e fora educado para matar e por devaneio intelectual decidira exercer a
medicina” (TAVARES, 2008, p. 107). Apesar de ter se transformado em médico, a voz do pai
condicionava Lenz a combater a agir como um soldado; “a natureza ainda não inventou o
fogo, costumava dizer Lenz, repetindo a ideia do pai, Frederich Buchmann” (TAVARES,
2008, p. 47). Enquanto médico, Lenz assumia a posição de um soldado capaz de interferir no
organismo e destruir a ação da natureza no interior dos corpos. Por isso,
[...] no fundo, mesmo nos vários anos em que exercera medicina, Lenz havia
sido um militar. Alguém com um sentido tenso dos deveres e que conhecia
todo o comprimento de uma decisão – percebia bem que qualquer vontade,
depois de desencadeada, deve ser aplicada em cada ponto até ao final, sem
uma única indecisão ou abrandamento. Sabia que não se pode mudar no
último momento a direção do bisturi ou da bala, pois é assim que se sucedem
os erros, as grandes falhas – esse pecado não apenas técnico, mas também
moral, de se atingir por inabilidade, por exemplo, um aliado. A ética de
Frederich Buchmann sobre este assunto era também clara, e Lenz absorvera-
a por completo: Quem mata um amigo por acidente, se for honrado, a seguir
escolherá o suicídio. Mas se matar um amigo por uma decisão consciente, é
porque escolheu já o caminho do diabo, e se assim fez, só lhe resta continuar
a avançar. (TAVARES, 2008, p. 108).
O romance inicia com uma cena reveladora e bastante marcante: o encontro de Lenz
Buchmann com a criadita. Nesse encontro, Lenz vê o pai como uma figura máxima exercendo
uma autoridade inexcedível. Ele vê a concretização do silêncio na criadita. Enquanto o pai lhe
dá ordens e instruções, para a criadita ele não diz nada. O seu silêncio já era óbvio. O seu
165
silêncio se bastava por si mesmo. Quando o silêncio de Frederich não era o suficiente para
exercer controle, ele instalava no outro o medo. No caso dos filhos, Frederich trancava os
filhos em um quarto escuro chamado “a prisão” para que os filhos entrassem em contato com
esse mesmo silêncio de outra forma. Dizia ele:
Nesta casa o medo é ilegal – era uma das frases mais marcantes de Frederich
Buchmann. Esta frase, diga-se ainda, foi determinante para Lenz – o seu pai
sabia bem a importância de ser consequente. Frederich castigava as
manifestações de medo de qualquer dos seus filhos fechando-os à chave num
compartimento da casa, «a prisão», em que tapara as janelas, em que não
havia uma única peça de mobília ou objecto [...] Era em absoluto um espaço
neutro, onde as funções dos gestos se tornavam nulas [...] As paredes não
eram estimulantes para um humano. (TAVARES, 2008, p. 94).
A prisão de Frederich era um espaço de pleno silenciamento e de censura. Mediante
esse tratamento, Lenz “aprendeu a existir assim. Preparou-se, cresceu, tornou-se forte”
(TAVARES, 2008, p. 95), tal como o pai esperava. A incapacidade de enfrentar o discurso da
autoridade se confirma na rendição completa da personagem protagonista em relação ao pai.
A incapacidade de superação desse estado de medo e censura criado por Frederich Buchmann
alimentou em Lenz a sua verdadeira essência; a face do sujeito autoritário incapaz de rezar na
Era da Técnica e se expressar com eloquência “o signo da liberdade criadora" (TELES, 1979,
p.10), o silêncio que põe fim à sua submissão em relação à vontade do pai.
3.1.4 Lenz e Hamm: silêncio e o silenciamento
A ligação existente entre Hamm Kestner e Lenz Buchmann evidencia a tirania, o
infortúnio e o crime que se abate sobre uma sociedade vítima da censura e do silenciamento
levado às últimas consequências. A sua ligação era diferente daquela existente entre os
Liegnitz e Buchmann. Enquanto a ligação dos Liegnitz com Lenz era uma união inumana,
fundamentada por uma relação assimétrica de poder que imperava silêncio e silenciamento e,
por isso, tratava-se de algo inominável e inenarrável, a relação de Lenz e Hamm era uma
vinculação social e frágil destinada à inevitável separação e à incontestável irreconciliação de
suas forças. A ligação desses dois homens servia apenas para uma finalidade estratégica e
tecnicista.
No encontro dessas duas figuras “o cumprimento de mãos foi vigoroso, um acto quase
solene e que impressionou Julia Liegnitz [...]” (TAVARES, 2008, p. 146), que nunca vira
pessoalmente Lenz tratar um homem como Lenz estava a tratar com Hamm. O que Julia vira,
166
contudo, não passava de uma encenação. A aproximação dessas duas figuras tirânicas
lembrava um conflito básico de que dois corpos de mesma intensidade não podem ocupar o
mesmo espaço. “Mas aquele homem – Hamm Kestner –, embora não viesse da mesma árvore
(não era um Buchmann) viera da mesma floresta. Era o seu irmão, com a vantagem de não ser
portador do mesmo apelido” (TAVARES, 2008, p. 155). Apenas por isso, poderiam conciliar
as suas forças por um breve período.
O tempo em que estiveram juntos evidenciava que ambos compartilhavam o “mesmo
grau de civilização útil” (TAVARES, 2008, p. 155). Isso significa que ambos tinham a mesma
competência técnica e as mesmas estratégias para lidar com os “problemas” da cidade. Isso
fica assente no capítulo intitulado Outro diálogo entre Buchmann e Kestner.
Caminhavam os dois pelas ruas mais agitadas da cidade como tantas vezes
naqueles últimos tempos. Era a passo que acertavam estratégias políticas.
Sem o explicitar, os dois homens haviam intuitivamente assumido que as
conversas significativas seriam realizadas em andamento: a andar, sempre a
andar. E havia uma espécie de fé: a direcção do movimento muscular, após
uma tradução de energia mais ou menos misteriosa, passaria para as
palavras. As palavras ditas enquanto se agia transportavam logo a marca da
impaciência, indispensável para o início de qualquer acontecimento
significativo. Lenz Buchmann e Hamm Kestner entendiam-se, assim na
perfeição, nos dois movimentos: o andar e o pensar. (TAVARES, 2008, p.
187).
A comunicação deles era um comunicação que se dava antes em silêncio e depois se
manifestava em palavras e em ações. Tudo era implícito em suas conversas. Eles estavam em
sintonia com o silêncio um do outro. Ressalta-se que em função disso ambos empregavam as
mesmas estratégias de controle dos sentidos. Era Hamm que dizia que: “Podemos apenas dar
ordens, não precisamos de conversar” (TAVARES, 2008, p. 190), sugerindo a Lenz que as
melhores estratégias para enfrentar a oposição seria a partir da escassez do diálogo. Esses dois
homens eram portadores de uma força silenciadora singular e inigualável. E a união de suas
forças tinha um único propósito: enfrentar a natureza. Sobre isso se lê o seguinte:
Esses dois homens que, sem o expressar se consideravam a si próprios os
espíritos da cidade, sabiam dever essa sua autoridade não à fidelidade que os
materiais de arquitectura devem à vontade humana mas à rebelião que a
floresta não pára de dirigir contra as máquinas que a dizimam, mesmo que
essa rebelião seja clandestina, secreta, não visível, paciente. Rebelião,
acrescente-se, que usa os meios de quem foi vencido – a obscuridade –, mas
usa-os com confiança de quem não sabe que, mais tarde ou mais cedo vai
vencer. (TAVARES, 2008, p. 154).
Nesse excerto, Hamm e Lenz não precisavam dizer expressamente para que se notasse
que eles eram os “espíritos da cidade” ou os agentes a serviço da técnica. Na verdade, eles não
167
precisavam dizer expressamente para se fazerem entender. Ambos eram conscientes disso. A
ligação deles era uma ligação estabelecida por silêncio de igual latitude com propósitos
silenciadores, por isso era uma ligação frágil. Eles eram políticos com energia de
conquistadores e tudo que os aproximava um do outro era o que, consequentemente, os
apartava. Por fim, Lenz dissera: “Vou matá-lo” (TAVARES, 2008, p. 249), porque Hamm
Kestner era o único com força capaz de neutralizá-lo. Era o único com vida que conhecia suas
estratégias e sabia como empregá-las.
Em virtude de sua decadência física, Lenz não pôde cumprir os seus planos para o
presidente do Partido. As suas estratégias de silenciamento já estavam em vias de
esgotamento. A sua linguagem estava prestes a colapsar quando Lenz fez o último contato
com Hamm, por intermédio de Julia. O silêncio que Lenz e Hamm combateram juntos por fim
triunfara.
3.2 Aprender a Rezar na Era da Técnica rumo ao silêncio Primordial
É característico de Aprender a Rezar na Era da Técnica a proximidade inquietante
com o silêncio. Essa proximidade se concretiza na medida em que a obra propõe a
representação do silêncio pela escrita. O silêncio ganha forma no romance e o romance ganha
significado a partir do silêncio. E por sua escrita e forma singulares o leitor é confrontado
com uma visão contemplativa do silêncio primordial de Santiago Kovadloff (2003). O
silêncio primordial é uma instância de silêncio superior a todas as palavras e também anterior
a quaisquer outros silêncios. Ele é o inefável em sua forma mais pura e, literalmente,
primordial à linguagem.
O silêncio primordial é “o que não tem forma nem medida; o que não pode ser
significado, agrupado nem separado; o que nada quer dizer [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 98)
e mesmo assim, diz tudo. O silêncio primordial é um “[...] pronunciamento em si mesmo
inconcebível” (KOVADLOFF, 2003, p. 32), porque ele está além da linguagem. Sua
ressonância, porém, reverbera no mais profundo recanto da linguagem e inspira o dito e o não
dito em qualquer nível e em qualquer forma. O silêncio primordial é “[...] fluxo de uma
singularidade tenaz, inquietante e anônima” (KOVADLOFF, 2003, p. 77). Ele é “resíduo de
uma plenitude sem nome [...]” (KOVADLOFF, p. 166), cuja significação para Aprender a
Rezar na Era da Técnica é de uma primazia inequívoca.
168
Aprender a Rezar na Era da Técnica, por meio do silêncio primordial, acresce
potência à linguagem e ilustra a fragilidade das palavras. O romance evoca que por trás de
uma cortina de palavras, o silêncio primordial tem o poder de desintegrá-las, frágeis como
são, e colocar o leitor frente ao inefável, ao inexprimível, ao indizível. A propósito da
aproximação do silêncio primordial com Aprender a Rezar na Era da Técnica, sobressai,
então, como uma metáfora desse fenômeno irredutível os seguintes dizeres: “É que havia nele
um circuito duplo: um exterior, constituído pelas suas acções e pelos seus diálogos, e um
outro, interior, invisível e não partilhável que, afinal, era o mais relevante” (TAVARES,
2008, p. 73). É possível, a partir dessa passagem, indiretamente, aí não somente, ter um
vislumbre do silêncio primordial.
O ponto de partida dessa reflexão consiste em entender o que é o circuito interior e o
que é o circuito exterior expostos nesse excerto. O que representa esse circuito “dos
pensamentos” (TAVARES, 2008, p. 73)? Qual a sua relação com o significado de silêncio
primordial? E afinal, por que este é mais relevante que aquele? Com isso, coloca-se como
questão: esclarecer que o silêncio com o qual esta leitura se propõe é o silêncio autêntico que
faz o retrato do sujeito que se recolhe no silêncio de sua alma; o silêncio que coloca o sujeito
diante de sua própria nudez. Trata-se, portanto, de considerá-lo enquanto “o suposto nada de
sentido” (KOVADLOFF, 2003, p. 48) que fundamenta toda a existência.
Em referência ao trabalho de Martin Heidegger, Santiago Kovadloff (2003) diz que
existir significa reconhecer-se dentro desse nada que não é nem positivo e nem negativo, mas
que aciona a percepção de uma presença e de uma ausência. Martin Heidegger acredita que
“Existir (exsistir) significa: estar sustentando-se dentro do nada (...)” (HEIDEGGER, apud
KOVADLOFF, 2003, p. 48). Existir, para ambos os autores, significa reconhecer a
incompletude que caracteriza o “eu”. Existir implica alcançar um silêncio cuja potência
“detectasse verdadeiramente uma existência próxima” (TAVARES, 2008, p. 73), ou seja, o
reconhecimento do outro enquanto ser, e, talvez, pudesse acionar a percepção da existência de
si mesmo. Assim, por sua excepcional intensidade ele poderia suprir uma carência de imagem
e permitir ao homem o reconhecimento de si mesmo diante de seu próprio vazio.
Na qualidade de nada, “uma vez liberada de sua função prototípica” (KOVADLOFF,
2003, p. 132), a palavra essencial que inunda o ser e nutre o romance ganha uma autonomia
notável. As formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica libertam-se a partir do silêncio
primordial. Seria impensável Aprender a Rezar na Era da Técnica sem essa substância
inominável e originária. Nessa conjuntura, é possível propor a inesgotabilidade de sentidos
169
que podem ser depreendidos do silêncio, uma vez que este repousa no fato de que é ele a
origem de toda significação e, conforme afirma Martin Heidegger, "a origem é o inesgotável".
(HEIDEGGER apud FERREIRA, 1999, p.106) congregado ao mistério que condiciona toda
linguagem.
Portanto, também nesse último aspecto, ser/existir em um nada de sentido é
reconhecer-se como parte de algo maior, além da compreensão; estar em “outro, interior,
invisível e não partilhável” (TAVARES, 2008, p. 73). E essa forma “invisível e não
partilhável” (TAVARES, 2008, p. 73), que ainda é “o mais relevante” (TAVARES, 2008, p.
73), desponta como uma forma originária de expressão que dá sentido à linguagem e
singulariza suas formas. O silêncio extremo é “o mais relevante” (TAVARES, 2008, p. 73)
porque permite abordar o inabordável e lançar o sujeito de volta à significação após um longo
período de vazio de si mesmo, um vazio que, por outro lado, não tem nada de sentido, que se
opõe a ideia de silêncio. Nesse sentido, existir é, então, corresponder ao silêncio.
No silêncio, a expressão do ser se constitui enquanto fala autêntica. E o homem fala à
medida que corresponde à escuta do silêncio, pois escutar, conforme afirma Martin Heidegger
(2005), é a forma mais profunda e autêntica de falar. Para o ser, a palavra essencial é o
silêncio. É o nada. E o nada é, portanto, “o mais relevante” (TAVARES, 2008, p. 73).
Recordando o que Bernard Dauenhauer disse sobre o silêncio que “o que é fundamentalmente
dito e ouvido não são palavras humanas, mas sim infinito silêncio que é voz e que é palavra
[...]” (DAUENHAUER, 1980, p. 111) 20
. Isso equivale dizer que toda fala autêntica nasce do
silêncio primordial. E que, portanto, “o silêncio tem fundamento existencial. Quem silencia
no discurso da convivência pode dar a entender com maior propriedade" (HEIDEGGER,
2005, p. 223). Daí reside sua maior relevância naquilo que é expresso pelo silêncio.
Consoante Santiago Kovadloff, “o contato com o próprio ser como instância
primordialmente invisível, ou seja, inabordável [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 117) pressupõe
o contato com o silêncio primordial. A palavra poética, assim, surge como caminho para o ser
abordar o inabordável, de modo a poder reconhecer a si mesmo como entidade incompleta,
carente de silêncio e carente de conteúdo. Ora, o que é então esse “um outro, interior,
invisível e não partilhável que, afinal, era o mais relevante” (TAVARES, 2008, p. 73), senão
o silêncio primordial de que fala Santiago Kovadloff (2003)?
20
“What is fundamentally said and heard is not human words but rather the infinite silence which is the voice
and word [...]” (DAUENHAUER, 1980, p. 111, - tradução nossa)
170
Ao entrar em contato com o silêncio primordial, o homem entra em contato com a
totalidade de seu silêncio. A partir desse contato, o homem entrará em vias de aproximação
com a totalidade dos elementos interiores e exteriores do mundo. E em decorrência disso, o
homem estará diante da totalidade de si mesmo, que é necessariamente “[...] indizível que,
como tal, o silêncio encarna. Totalidade que, em consequência, surge nesse silêncio,
certamente, como o que é: inviável para a fala como objeto de apreensão direta [...]”
(KOVADLOFF, 2003, p. 26). Por isso, tal totalidade é inconcebível no circuito exterior, nos
diálogos e nas ações de Lenz e das demais personagens. Essa totalidade não cabe em palavras,
cabe apenas em silêncio. Trazendo, assim, o silêncio à luz.
O que ele vê naquele momento é apenas uma sucessão de disparos de luz,
disparos que parecem vir na sua direcção. Ele vê a luz que aparece,
desaparece e volta a aparecer. Vê também que a luz não mantém sempre a
mesma cor: que às vezes é mais escura, outras vezes azul, outras vezes mais
clara. É uma luz estranha, aquela, que não parece ser da mesma família da
luz eléctrica da lâmpada. É uma luz completamente diferente. O que parece
estar a acontecer naquela televisão, assim, ele o pensa, é uma avaria: algo
falhou e já não se vê o mundo, mas apenas um foco de luz que acende e se
apaga [...] E, aliás, o que estava a acontecer agradava-lhe: da televisão vinha
uma tranquilidade nada habitual. Não havia qualquer som e, de qualquer
maneira, estava tão concentrado naquela luz que mesmo que alguém, do
interior da casa, gritasse, ele não ouviria [...] A luz que vinha da televisão era
inegavelmente uma luz forte, mas o prazer provocado em Lenz não parava
de crescer. (TAVARES, 2008, p. 354-5).
No decorrer desta análise, é bastante justificada essa citação que representa
metaforicamente a abertura da personagem protagonista ao silêncio primordial. Nessa
passagem, Lenz finalmente, entrega-se à luz. Os elementos do circuito exterior e do circuito
interior colidem e a luz é o ponto de encontro desses elementos. “Na verdade, Lenz
Buchmann já não vê as imagens” (TAVARES, 2008, p. 354), porque nada mais se apresenta
de forma direta. “[...] algo falhou e já não se vê o mundo” (TAVARES, 2008, p. 355), ou não
se vê mais o mundo da mesma maneira limitada e restrita. Os movimentos da luz naquela
situação “convertem-se em poderosas insinuações que nos expressam em nossa condição de
desejosos, de seres ávidos por uma totalização jamais cumprida” (KOVADLOFF, 2003, p.
132). A luz não se apresenta sob uma determinada forma. Ela é completamente despojada de
forma. O que é mais marcante na luz é a intensidade, ora mais fraco ora mais forte, com
diferentes tonalidades, projetando uma perspectiva de finitude da personagem: luz que
“desaparece e volta a aparecer” (TAVARES, 2008, p. 354). É preciso assinalar que, o homem
171
não consegue suportar por muito essa experiência com a totalidade do ser, por isso a luz vai e
volta; ela não é uma força contínua. Sobre esse aspecto lê-se o seguinte:
Reconheçamos, porém que costuma ser escassa a nossa aptidão para suportar
o silêncio proposto pelo poema – quer dizer, silêncio gerado pelo contato
com o real incógnito. Nossa tolerância nesse sentido é pouca. E por isso que
o silêncio a que se chega através do poema costuma ser rapidamente
transfigurado – o correto seria dizer reduzido – nesse outro silêncio, o da
oclusão, no qual a sensibilidade habitava antes que a inspiração fizesse sua
irrupção. (KOVADLOFF, 2003, p. 34).
Em contrapartida, o circuito exterior que é constituído “pelas suas acções e pelos seus
diálogos” (TAVARES, 2008, p. 73), embora não seja desprovido de silêncio ou carente de
sentido, ele é a fuga necessária a esse silêncio que é de matriz ontológica. Cabe, por isso dizer
que, um silêncio de outra natureza se apresenta nesse exterior. Pois, se o silêncio é elemento
integrante da linguagem e fonte de sentidos, sendo que o discurso apenas adquire sentido por
meio de sua relação intrínseca a esse fenômeno, tanto esses diálogos quanto essas ações
também remetem ao silêncio, em maior ou menor grau, porém um silêncio de um aspecto
diferente do silêncio primordial. Esse circuito exterior é um espaço transformado pelo
silêncio, no entanto, acessível no campo do enunciável. Por isso, exterior, porque está à
superfície e é evidente para quem está do lado de fora. Esse circuito exterior não tem nada em
comum com silêncio primordial, mas também não se opõe a ele.
O circuito exterior, nesse sentido, expressa silêncio que de uma maneira ou outra está
atrelado ao silenciamento que consiste na “[...] palavra encoberta, palavra rejeitada,
enunciação possível, mas evitada [...] pelo medo, pelo hábito ou pelo preconceito”
(KOVADLOFF, 2003, p. 26), que caracteriza tanto as ações quanto os diálogos do conjunto
de personagens que compõe Aprender a Rezar na Era da Técnica, sobretudo, Lenz
Buchmann. Há no circuito exterior uma força que procura:
Não deixar ninguém de fora, eis, aliás, como Lenz Buchmann poderia definir
a ambição que colocava em cima das suas decisões: desejava uma decisão
que não permitisse neutralidade, que de cada coisa fizesse um aliado ou
inimigo. Decisão para a qual não existisse um único ouvido surdo ou um
único olho cego: tudo seria envolvido. (TAVARES, 2008, p. 156).
Fiel, portanto, à ideia de uma palavra que não é transparente naquilo que fala e naquilo
que intende, Lenz desvencilha-se da “palavra interior, que em vão procura sua equivalente
[...] mas é a pausa vital de toda palavra poética” (SCIACCA, 1967, p. 59). Em vão, Lenz tenta
se desbastar do silêncio primordial à constituição do ser e à constituição do romance. Ele
172
elege, em seu lugar, a palavra “que nunca pára: (que) não tem necessidade dos silêncios da
meditação, das pausas da reflexão” (SCIACCA, 1967, p. 54) que é envolta de um silêncio
encobridor de um significado possível, e que caracteriza, não apenas o seu modo de falar
como o das demais personagens de Aprender a Rezar na Era da Técnica.
Aparentemente, a palavra não dita se contrapõe à ideia de vazio sustentada pelo
silêncio primordial. Não obstante, a palavra não dita ainda não alcançou a plenitude de
significações possíveis, ela tampouco conseguiu superar o seu limite. Ela não se equipara ao
silêncio primordial. A palavra não dita apenas sustenta a ilusão de que se esgotaram todas as
possibilidades de significação. Com efeito, o horizonte que separa a palavra evasiva da
palavra essencial é, justamente, preenchido por um nada de sentido que pressupõe o encontro
desse duplo circuito: do circuito exterior, transformado pela técnica, e do circuito interior,
ainda intangível. Assim, a partir do movimento de ambos infunde no romance um mar de
possibilidades de sentido.
Ao aproximar-se da morte, Lenz finalmente se cala. E faz com que os outros também
se calem. Torna-se carente de silêncio. “Que bom, sim, para longe; deitem o lixo para o longe,
mas façam-no em silêncio!” (TAVARES, 2008, p. 279); “Foi então que Lenz Buchmann fez
um sinal firme para Julia se calar. E Julia calou-se” (TAVARES, 2008, p. 282); “Buchmann
pensava em dizer Não, Não em voz alta” (TAVARES, 2008, p. 351). Transmitindo a ideia de
que não há palavra que soe melhor que o silêncio. “Calai! Esta ordem do silêncio é, ao mesmo
tempo, ordem à auscultação. Faz-se silêncio, todos escutam, ninguém fala: instaura-se uma
profunda comunicação como entre pessoas que se comunicam desde a eternidade”
(SCIACCA, 1967, p. 69). Por tudo isso, o romance sugere, de certa maneira, que há de se ter
que aprender a rezar e recobrar essa potência primordial que a era da técnica ocultou.
E sobre esse aspecto, o que há de verdadeiramente novo sobre o silêncio em Aprender
a Rezar na Era da Técnica que se pode aprender nessa abordagem do silêncio primordial é
que toda elaboração dessa narrativa implica esse contato paradoxal: onde há um impulso
ensurdecedor provocado pela euforia causada pela técnica, que impõe censura e cesura à
linguagem, que escamoteia sentidos possíveis e outro, cujo conteúdo inominável desperta
silêncio e o inefável se faz falar pelo silêncio primordial.
Entretanto, ao abordar aspectos que levam a personagem protagonista, Lenz
Buchmann, a um gradual processo de desumanização e as demais personagens a um processo
de reificação, a narrativa adquire contornos mais hostis e o furor da técnica se sobrepõe à
natureza humana. Consequentemente, o circuito exterior, transformado pela mão da técnica,
173
sobrepõe-se ao circuito interior, onde a técnica ainda não alcançou. Esse circuito composto
por diálogos e ações destaca-se em detrimento do circuito invisível, inominável e “não
partilhável” (TAVARES, 2008, p. 73), intangível.
Ainda assim, esse circuito exterior jamais foi indiferente e transparente em relação ao
silêncio. Ele, por si só, pressupõe silêncio ainda que diferente do silêncio primordial, “o
silêncio é um isolador, mas, ao mesmo tempo, o condutor mais eficaz. Não repele os raios,
simplesmente os faz escorregar para o seu fundo sem fundo” (SCIACCA, 1967, p. 69), ou
seja, de volta para silêncio primordial.
O trajeto percorrido pelo romance, assim, perpassa tanto pelo circuito exterior quanto
interior, e, muitas vezes, Lenz Buchmann é confrontado com esse circuito interior que é mais
relevante. “Embora o homem não possa, em consequência, deixar de estar exposto,
ocasionalmente, a essa intempérie ontológica, tampouco pode deixar de impugná-la, de
rejeitá-la, de rebelar-se contra o seu domínio” (KOVADLOFF, 2003, p. 35). Assim, ainda que
obstinadamente Lenz tenha tentado rumar para outra direção, o silêncio primordial mostra-se
como um caminho inevitável.
3.3. Aprender a Rezar na Era da Técnica e leitor a caminho do silêncio
Há várias maneiras de experimentar o silêncio e, com certeza, uma delas, é a leitura da
literatura 21
. Ler é entregar-se ao silêncio. Ler é impor a si mesmo silêncio. Ler é traduzir o
silêncio de cada palavra. Ler pressupõe o silêncio do leitor e da palavra poética. O leitor de
Aprender a Rezar na Era da Técnica registra, assim, um movimento de silêncio duplo; o
primeiro resume-se no esforço de aderir a uma prática que foi, há muito, enjeitada de nossas
formas sociais: o estar em silêncio; o segundo requer do leitor a capacidade de se projetar
além das palavras do autor e adentrar no silêncio da obra literária.
Ambas as tarefas não são fáceis. “A nossa época ruidosa é uma época sem harmonias,
sem silêncio, nem sons. Pobre de ‘palavras’ rica de ‘vozes’” (SCIACCA, 1967, p. 52). Por
isso, colocar-se em silêncio representa um enorme esforço. A literatura, por outro lado, é rica
de palavras ricas de silêncio e, nesse sentido, a leitura de um texto literário supre essa falta de
21
Destaca-se a literatura dos mais textos, pois os textos literários têm uma particularidade que os torna únicos;
essa particularidade é justamente a sua linguagem. Segundo a ótica formalista, o que torna um texto obra de arte,
portanto, literatura, seria o uso de vários procedimentos que resultariam na desautomatização da linguagem, ou
seja, a apropriação de vários recursos que tornariam a linguagem literária distante daquela linguagem comum,
usada em atividades quotidianas. Sendo a sua linguagem única, ela não pode ser mudada ou parafraseada. Ela
carrega consigo silêncios que não se traduzem fora do seu meio.
174
silêncio referida por Michele Sciacca. David Le Breton (1999) avalia que a
contemporaneidade é marcada por “um imperativo de dizer tudo” (LE BRETON, 1999, p.
12). Ainda segundo esse autor, “a modernidade é a chegada do ruído. O mundo faz ressoar,
constantemente, instrumentos técnicos cujo uso acompanha a vida pessoal e colectiva” (LE
BRETON, 1999, p. 14). O homem tornou-se refém do barulho e do sem sentido em quase que
todos os instantes do seu dia a dia.
A proliferação da técnica e do ruído causa a embriaguez da palavra e desqualifica o
silêncio como instância primeira de sentido. É precisamente o fato de o mundo governado
pela técnica e marcado pela verborragia que se sustenta a ilusão de que a palavra é suficiente
em si mesma e de que a palavra é inesgotável para se referir as coisas do homem e do mundo.
Muito embora, “o palavreado destrói a linguagem [...]” (LE BRETON, 1999, p. 69) e asfixia o
silêncio. Por isso, a leitura surge como um escape a esse caos sígnico que caracteriza o mundo
contemporâneo. Aprender a Rezar na Era da Técnica, inclusive, ilustra muito bem, através de
suas personagens, o peso esmagador da palavra sobre o sujeito carente de silêncio.
É bastante compreensível, portanto, que Lenz e seu irmão mais velho, Albert, sejam
tão dedicados à leitura. Destaca-se que “(os dois eram excelentes leitores)” (TAVARES,
2008, p. 75). As visitas de Albert à casa do irmão eram marcadas por conversas sobre os
livros da biblioteca Buchmann. “Numa visita rara, sempre preenchida com alguma dissertação
sobre literatura [...]” (TAVARES, 2008, p. 75); “O irmão Albert era também um homem de
cultura robusta, alguém que sabe quais os livros que pesam na prateleira e quais os livros que
parecem flutuar não parecendo ser coisas [...]” (TAVARES, 2008, p. 125); “a biblioteca
aumenta a sua força” (TAVARES, 2008, p. 244); “A biblioteca de família [...] aumentara
naqueles últimos tempos a um ritmo invulgar” (TAVARES, 2008, p. 245); “Eram raros os
autores contemporâneos que não lhe enviavam os seus livros e alguns eram incorporados na
parte principal da biblioteca já que Lenz via neles um instinto novo e forte [...]” (TAVARES,
2008, p. 245). Enfim, todas essas passagens sugerem que os irmãos Buchmann eram hábeis e
ávidos leitores.
Eles reconheciam a importância de se ler e estar em silêncio em um contexto em que
não pronunciar palavra é sinônimo de estar sem sentido, ou seja, um desvio do padrão. Não
obstante, ao ler, o homem não está mudo, mas está em silêncio. Está pensando e construindo
sentidos dentro de seu silêncio.
Para o nosso contexto histórico-social, um homem em silêncio é um homem
sem sentido. Então, o homem abre mão do risco da significação, da sua
175
ameaça e se preenche: fala. Atulha o espaço com sons e cria a idéia de
silêncio como vazio, como falta. (ORLANDI, 2007, p. 34).
Porque a atual conjuntura estabelece que construir sentidos é o mesmo que produzir
sons e signos (ORLANDI, 2007). Segundo essa autora, “isso se expressa pela urgência do
dizer e pela multidão de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo
tempo, espera-se que se estejam produzindo signos visíveis (audíveis) o tempo todo”
(ORLANDI, 2007, p. 35). Entretanto, a leitura demonstra que não existe relação direta entre
falar e significar. Sabe-se que alguém pode falar o tempo todo sem conseguir dizer coisa
alguma. E alguém pode ficar em silêncio com a intensão de dizer muito. “O poeta mergulha
no silêncio” (STEINER, 1988, p. 66). O silêncio do poeta e da palavra poética diz muito,
porque o seu silêncio é uma abertura para o leitor descobrir em seu próprio silêncio e o que há
de mais profundo em sua interioridade. “O mais elevado e puro grau do ato contemplativo é
aquele em que se aprendeu abandonar a linguagem. O inefável encontra-se além das fronteiras
da palavra” (STEINER, 1988, p. 30). Por isso, a leitura silenciosa de um livro constitui, por si
só, uma atividade construtora de sentidos. Além disso, ao ler, o silêncio nos interpela e o
leitor é confrontado com o silêncio que inspira a palavra poética e estabelece novas relações
de sentido.
Assim, ao entrar em seu próprio silêncio o leitor embarca no silêncio do romance. “É
preciso sublinhar: o poeta jamais nos dirá o que ouviu. E o silêncio extremo se prolongará em
suas palavras como eco de um encontro decisivo” (KOVADLOFF, 2003, p. 32). Leitor e obra
se enredam no silêncio. Na obra literária, “a língua é deliberadamente levada ao seu limite”
(STEINER, 1988, p. 59). Exige-se do leitor reflexão sobre cada palavra lida no romance,
fazendo com que o silêncio cultivado pelo leitor se converta em um esforço de leitura e
interpretação do silêncio cultivado pelo poeta.
Da relação estabelecida entre leitor e Aprender a Rezar na Era da Técnica surgem
uma série de significados que são depreendidos do contato do silêncio da obra com o silêncio
do leitor. Desse modo, a leitura em profundidade de Aprender a Rezar na Era da Técnica
implica necessariamente o reconhecimento desse diálogo fundamental. Assim, “se a
linguagem e o silêncio se misturam na expressão da palavra, podemos dizer também que todo
o enunciado nasce do silêncio interior do indivíduo em permanente diálogo consigo mesmo”
(LE BRETON, 1999, p.17-8). Dependendo do repertório de cada leitor, as possibilidades de
leitura de um romance são incomensuráveis, pois o leitor precisa, primeiramente, estar em
176
pleno silêncio e dentro de si construir sentidos para então poder significar os silêncios
contidos no interior da obra.
Portador de múltiplos sentidos que apontam a todas as direções, esse fenômeno plural
e multifacetado homologa a impossibilidade de fixar significado ao silêncio. Realizar uma
leitura em que pese tanto o silêncio do leitor quanto o silêncio da obra significa entender a
literatura como um produto de expressão social interativa, capaz de estabelecer laços e
significados com o silêncio do leitor. Em entrevista, Gonçalo M. Tavares explica que os
leitores cumprem um papel fundamental no processo de significação de suas obras, dando a
elas significados diferentes em cada contexto. Ao tratar do conjunto de Livros Pretos,
Gonçalo M. Tavares faz a seguinte menção.
Não me interessa muito situar no holocausto ou não holocausto, ou seja, uma
experiência que eu tive, tenho tido, felizmente, com os leitores de diferentes
países é a identificação. Por exemplo, pessoas da Europa, do meio da Europa
identificam-se, pessoas da ex-Iugoslávia identificam esse livro com o seu
mundo, pessoas da Argentina ou pessoas da América do Sul identificam
alguma ideia da violência imanente dos livros com a sua experiência.
Portanto, vários leitores remetem com o seu mundo esses acontecimentos. E,
infelizmente, lamenta, digamos, o que está nestes livros é uma reflexão sobre
o medo, sobre a violência, sobre a agressividade, como é que isso gera, não é
especifico de nenhum período histórico nem de nenhum espaço concreto
geográfico (TAVARES, 2013, s/p).
É patente, assim, que o romance adquire a possibilidade de significar de muitas outras
maneiras graças ao silêncio que invade a realidade do leitor e se mistura ao silêncio poético.
Tanto se tem discutido essa relação que se faz necessário destacar alguns dos desdobramentos
do silêncio no leitor real. Aqui se intenta entender os efeitos de sentido do silêncio sobre o
leitor e entender também quais são as suas consequências para a leitura e interpretação de
Aprender a Rezar na Era da Técnica. Para não ser redundante, pensa-se que é necessário
sublinhar apenas algumas leituras, a fim de que elas possam ir ao encontro das leituras
anteriores sem pretender, jamais, esgotar as possibilidades de leitura de Aprender a Rezar na
Era da Técnica.
O primeiro aspecto a se destacar é o título pouco convencional: Aprender a Rezar na
Era da Técnica. Os leitores, ainda que acostumados, a leitura de romances modernos, como é
o caso da obra de Gonçalo M. Tavares, surpreendem-se com esse título não descritivo e nem
um pouco evidente. O título do romance é, forçosamente, causa de estranhamento para os
leitores. Para Antônio Guerreiro, o título tem “ressonâncias científico-filosóficas bem
marcadas” (GUERREIRO, 2007, s/p). Destaca-se, assim, o ensaio de Walter Benjamin
177
intitulado A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica (1987) o leitor
reconhecerá, instantaneamente, o espelhamento em ambos os títulos (GUERREIRO, 2007).
Entretanto, apenas um leitor dedicado à leitura como Lenz e Albert perceberia que os títulos
extrapolam em todos os níveis qualquer relação de causalidade ou coincidência.
Certo é que Gonçalo M. Tavares confere ao romance uma densidade à escrita que
acaba imprimindo dificuldade para o leitor alcançar no silêncio a herança textual do qual o
romancista se apropria. Embora haja laivos do texto benjaminiano que se manifestam entre as
frestas do romance, o silêncio do leitor precisa estar em consonância com o silêncio que se
manifesta no interior da obra.
No ensaio A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin
(1987) discute, em poucas páginas, o aprimoramento da técnica como um fenômeno capaz de
transcender o hic et nunc da obra de arte. Em outras palavras, isso significa que a técnica
acessibiliza e populariza o que antes estava restrito a apenas alguns grupos sociais. O
aprimoramento da reprodutibilidade técnica poderia ser capaz de estimular a participação das
massas e vir a ser de controle popular. Por outro lado, ao longo de sua discussão sobre a
cultura tecnocrática e os seus notáveis avanços, Walter Benjamin, adverte que o progresso do
domínio da técnica favorece o surgimento de figuras autoritárias e opressoras. A difusão de
ideias em larga escala, a projeção da voz também em escala sobre humana, por exemplo,
possibilita a massificação e a centralização do individuo.
É o que pode ser observado em Aprender a Rezar na Era da Técnica, a partir do
processo de ascensão de Lenz Buchmann, da medicina para a política, e a sua gradativa
exposição às massas. A soma desses eventos correlaciona-se com o ensaio alemão. Lenz é
tomado pela ideia de alcançar as massas, de sair de seu próprio silêncio e ser ouvido por toda
a cidade e assim estender o seu poder como nunca poderia fazer enquanto médico. “Estava
cansado de tratar com homens individuais e de ele mesmo ser um homem individual; aquela
não era sua escala; queria operar a doença da cidade inteira e não de um único e insignificante
ser vivo” (TAVARES, 2008, p. 93). Substitui a técnica da medicina por outra técnica. Uma
técnica que não estava sujeita às mesmas restrições de primeira.
A nova técnica, a técnica que o político tem ao seu alcance, mobiliza as massas e dá a
Lenz o poder de provocar nelas o primeiro e o segundo medo. O político do Partido é
investido de poder, poder capaz de criar a ilusão de inclusão e de participação nas massas.
Embora, na realidade a massificação favoreça, nesse sentido, a alienação. As massas
controladas por Lenz e Hamm Kestner não estão conscientes do movimento causado pelo
178
primeiro medo ou pelo movimento do segundo. O comportamento das massas é moldado pela
voz dessas figuras autoritárias.
Diante de tais fatos, entende-se que a relação estabelecida entre Aprender a Rezar na
Era da Técnica e A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica se dá no silêncio
da obra no contato com o silêncio do leitor. Verifica-se que os procedimentos que unem uma
obra a outra não são ditos expressamente, portanto, se manifestam no silêncio que se instala
na narrativa, silêncio este que apenas alude e joga com os argumentos tecidos por Walter
Benjamin (1987) em seu ensaio. E que a personagem protagonista deixa transparecer em suas
atitudes algumas das observações feitas pelo filósofo alemão. A experiência com o silêncio é
irredutível às palavras e só no silêncio essa experiência se manifesta. Entretanto, chegar a essa
leitura só é possível a partir do silêncio do leitor, pois os elementos da obra, quaisquer que
sejam, ditos ou não ditos, não são suficientes para, obrigatoriamente, estabelecer relações
dessa natureza.
Outra face particularmente importante sobre o silêncio do leitor que se desdobra em
significações para Aprender a Rezar na Era da Técnica é o nome da personagem
protagonista. A personagem Lenz é inspirada na narrativa homônima alemã de Georg
Büchner (GUERREIRO, 2007). Na obra de Georg Büchner (1994), a personagem Lenz,
inspirada no poeta Jakob Michael Reinhold Lenz, padece de uma doença psíquica e a
narrativa acompanha o agravamento dessa doença. Não é por coincidência que a personagem
Lenz de Gonçalo M. Tavares também sofre de uma doença no cérebro que se agrava
progressivamente no decorrer da narrativa.
O ponto fundamental dessa questão, no entanto, não é apenas a relação entre essas
duas personagens distintas que o leitor pode estabelecer, mas há uma característica muito
mais importante que o leitor de ambas as obras poderá reconhecer: o estilo narrativo
desconexo e não linear na obra do poeta Lenz. Tal estilo narrativo influenciou bastante Georg
Büchner que ao compor a sua narrativa sobre Lenz, pensou que seria bastante compatível com
a condição mental da personagem Lenz, reproduzir: “sequências interrompidas, entrelaçadas,
curtas e abruptas, diálogos repentinos, sem introdução, descritos em tempo apurado,
acelerados, descrições vivas, agitadas e caprichosas, formas poéticas com o fim de revelar a
psicologia de uma alma torturada” (SCHWARZ, 2008, p. 103). A pesquisa de Bernhard
Johannes Schwarz intitulada No Caminho de Georg Büchner (2008) afirma também que o
estilo adotado por Georg Büchner é resultado de uma extensa pesquisa sobre a vida e obra do
poeta Jakob Michael Reinhold Lenz, Büchner dedicou longos anos de sua vida para dar a
179
forma da narrativa Lenz. E, conforme foi discutido no segundo capítulo dessa dissertação,
Aprender a Rezar na Era da Técnica conserva muitas dessas características elencadas por
Bernhard Johannes Schwarz (2008).
A intertextualidade permite ao leitor de Aprender a Rezar na Era da Técnica fazer
correspondência com inúmeras obras do cenário filosófico e literário e, muitas vezes, essas
relações intertextuais extrapolam o domínio verbal e somente podem ser percebidas e
abordadas por meio da leitura silenciosa e atenta dos silêncios que emergem do romance.
Essas leituras, por sua vez, são bastante pertinentes, pois refletem o papel do leitor na sua
relação com o texto literário e enfatizam que os leitores depreendem significados múltiplos e
variados. Ler é um entendimento, uma interpretação que se realiza por partes e o silêncio
prova ser fundamental para o processo de leitura.
A princípio, as frases que se apresentam no ato da leitura dão a falsa impressão de que
a voz do poeta se dirige ao leitor, e que a palavra acolhida faculta ao leitor a visão do poeta.
Nessa direção, a leitura de Aprender a Rezar na Era da Técnica levaria o leitor a contemplar a
palavra poética tal como ela foi concebida. Muito embora, o silêncio prova que a voz do poeta
manifesta se não em suas palavras, mas através de seu silêncio. Eis que o silêncio é o
fundamento de Aprender a Rezar na Era da Técnica.
A voz do poeta é um eco silencioso que reverbera na palavra poética. A voz do poeta,
o leitor jamais reconhecerá em sua totalidade. Por isso, Aprender a Rezar na Era da Técnica é
uma obra inacabada. Antes e depois das palavras há apenas silêncio, potência criadora
imensurável. No silêncio da obra, o mundo do leitor se abre e no silêncio do leitor a obra se
desdobra e se reconstrói. Nas formas do romance ecoa um murmúrio inominável ou uma
potência decisiva que sempre foi considerada inexplicável e intangível. Completo mistério.
Entretanto, essa força jamais pareceu ser um problema insolúvel para o leitor conseguir
embarcar na obra. Aliás, é justamente essa força inominável que possibilita ao leitor a
capacidade de alçar esse Reino tavariano. A essa força dá-se o nome de silêncio.
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"O silêncio extremo, ao ser vivenciado em sua nudez, aniquila tanto a palavra encobridora como o silêncio encobridor".
(Santiago Kovadloff)
A representação da violência demanda uma linguagem igualmente violenta, capaz de
desnudar pela forma a assimetria de poder e expor a crueldade, a barbárie e a indiferença que
marcam a relação entre as personagens de Aprender a Rezar na Era da Técnica. Essa
assimetria de poder manifesta-se no romance sob a forma de uma linguagem rascante e
entrecortada, edificada sobre silêncio e apagamento. À medida que o romance compromete-se
com a representação da violência e da maldade em sua forma mais plena sondando o lado
mais obscuro e inexprimível da face humana, o silêncio se impõe de maneira mais decisiva
sobre toda a narrativa. Os esforços empreendidos pelo autor combinam o resgate da potência
necessária para traduzir o obscurantismo de um mundo intraduzível por meio do silêncio e da
gestão de sentidos ou da operacionalização do silêncio que resulta no apagamento de sentidos
possíveis mediante o silenciamento (censura).
Destarte, toda trama de Aprender a Rezar na Era da Técnica está comprometida com
um duplo movimento do silêncio. Um silêncio que enche e outro que apaga. O primeiro que é
plena potência criadora e o outro, cuja função encobridora, não obstante, também é essencial à
trajetória do romance, como, pertinentemente, constata Santiago Kovadloff (2003). Um
constitui-se a partir da articulação primordial da linguagem “[...] já que o silêncio é o espaço
diferencial que permite à linguagem significar (discretamente). No silêncio, o sentido se faz
em movimento, a palavra segue seu curso [...]” (ORLANDI, 2007, p. 153). Enquanto o outro
se fundamenta no caráter político da linguagem que “[...] está na base da divisão dos sentidos
[...]” (ORLANDI, 2007, p. 107). E o funcionamento desse duplo movimento do silêncio em
Aprender a Rezar na Era da Técnica organiza o universo do romance.
Essa organização consiste, portanto, no equilíbrio assimétrico obtido pelo autor, onde
o silêncio que enche e o silêncio que apaga não se opõe um ao outro. Ambos complementam-
se na dialética da linguagem. Afinal, tanto este quanto aquele é silêncio. Independentemente
de sua forma, o silêncio é comunicação e “[...] o silêncio tem sempre a última palavra” (LE
181
BRETON, 1999, p. 265). Quer se considere silêncio, silenciamento ou censura, tanto num
caso quanto no outro, coloca-se a questão fundamental defendida nesta dissertação: o silêncio
significa.
Eis que ao se debruçar sobre as formas tirânicas do silêncio, nas formas do romance,
descobre-se uma linguagem que equilibra plena potência e uma inevitável interdição.
Descobre-se uma linguagem com ganas de superar a impossibilidade de se referir ao
tecnicismo, à barbárie e ao horror do mundo e, sobretudo, o horror que reina no interior do
homem. O que requer, então, uma linguagem de ação. Uma linguagem que não caia no
abismo do vazio ou do eco, que não fique refém desse mundo onde a “[...] proliferação
técnica da palavra [...]” (LE BRETON, 1999, p. 15) cede ao parlapatório sem sentido.
A esse respeito, Georg Steiner recorda “[...] que a beleza e a verdade da linguagem são
inadequadas para lidar com o sofrimento humano e o avanço da barbárie. O homem tem de
encontrar uma poesia mais imediata e mais útil para o homem do que a poesia de palavras:
uma poesia de ação” (STEINER, 1988, p. 141-2). Gonçalo M. Tavares em entrevista
concedida no ano de 2007 para a revista Entre Livros faz a seguinte colocação: “Interessa-me
perceber o medo, o mal, a violência, mas também os gestos surpreendentemente bondosos;
interessa-me ainda a lógica da linguagem etc” (TAVARES, 2007, s/p). Essa colocação remete
à tarefa do autor que está a trabalhar com algo ainda a ser decifrado, ainda a ser descoberto.
Porque o que o autor busca na linguagem não se dá de maneira evidente.
Há uma mensagem cifrada na linguagem que precisa ser descoberta pelo poeta para a
representação do mundo tavariano. A palavra, nesse sentido, está muito aquém da
representação do autoritarismo, da violência, da maldade e da bondade no Reino tavariano. O
silêncio, ao contrário, está além da palavra e se constitui parte essencial na relação com
Aprender a Rezar na Era da Técnica.
O mal e o bem são coisas que estão misturadas e muitas vezes se confundem.
Tal como a beleza e o horror. Julgo que a lucidez passa muito por chamar a
atenção de que a beleza esconde por vezes coisas terríveis e que no terrível
há por vezes coisas que merecem ser olhados com atenção e que nos
ensinam muito. (TAVARES, 2007, s/p).
E para conseguir discernir o bem e o mal no Reino é necessário explorar as zonas de
indeterminação do romance. Olhar além da palavra dita. É necessário superar o dualismo:
bem/mal e claro/escuro e palavra/silêncio. Porque em Aprender a Rezar na Era da Técnica
predomina uma linguagem oblíqua e silenciosa, que supera a tendência contemporânea do
falatório, da instantaneidade e da superficialidade. O romance sugere que todo dito pressupõe
182
um não dito na linguagem. E ainda mais aquilo que não é evidente requer esforço, reflexão e
meditação. Do contraste obtido pelo silêncio com a palavra, o leitor é instigado a se lançar em
direção à maldade e à bondade do Reino, de forma mais penetrante e rigorosa, com intuito de
desnudar essa voz silenciosa que permeia toda a narrativa e refazer todo o trajeto empenhado
pelo romancista para a representação desse mundo degradado. O leitor torna-se coparticipante
desse duplo movimento que compõe a trama de Aprender a Rezar na Era da Técnica. É
nítido, portanto, o engajamento do leitor proporcionado pelo silêncio vivo e desconfortante. E
o sentido do silêncio está no esforço que se faz para compreendê-lo. Ao fazer uma reflexão
sobre a linguagem, Gonçalo M. Tavares afirma que:
A linguagem para mim é muito física. E acho que quando vem uma frase eu
sinto muito a descolar-me em relação à frase. A ver de lado a frase. A ver a
nuca da frase. A levantar as saias da frase, ou seja, a ideia de tentar ver o que
está escondido na frase. E de alguma maneira, é muito difícil para mim,
quase apreender uma frase de uma forma direita, literal. Estou sempre a ver
um pouco os ângulos [...] (TAVARES, 2015, s/p).
Esse é, muito provavelmente, um dos principais ingredientes na obra Aprender a
Rezar na Era da Técnica de Gonçalo M. Tavares. Esse autor busca outros ângulos em cada
frase com que trabalha. O que são esses outros “ângulos” senão espaços possíveis para a
plurissignificação, espaços ricos de silêncios, espaços inexplorados pela palavra quotidiana. O
autor de Aprender a Rezar na Era da Técnica encara a linguagem obliquamente. Modela e
constrói a sua prosa usando o silêncio como recurso. Explora o que não está evidente, constrói
uma linguagem que pressupõe o olhar atento e oblíquo e que excede, em todos os sentidos,
qualquer apreensão direta e literal.
Portanto, Gonçalo M. Tavares edifica a sua obra a partir de um paradoxo em que o
invisível que se faz visível a partir de fronteiras imprecisas e inacabadas da linguagem
asseguradas pelo movimento constante do silêncio. Assim, a própria linguagem supera suas
limitações imanentes. Segundo o próprio autor, o romance “[...] é um pouco como se
investigássemos os limites do mundo e da linguagem. E, por exemplo, os paradoxos lógicos
são muito importantes a esse nível: mostram-nos as limitações da nossa forma de ver o
mundo” (TAVARES, 2007, s/p). É bastante significativo, nesse ponto de vista que, as
limitações impostas na forma de compreender o mundo põem autor e leitor em experiência
direta com o silêncio. Em uma busca obstinada para superar as limitações que fundamentam a
estrutura do romance, o romancista é chamado a enveredar por caminhos ainda inexplorados.
Impulsionado pelo sopro silêncio, o autor inspira a obra. “Trata-se de projetar nas palavras a
183
insinuação de uma presença intangível; de plasmar num enunciado consequente a vigorosa
vivência de uma proximidade que não admite ser apreendida a não ser como mistério”
(KOVADLOFF, 2003, p. 29). Por força dessa capacidade, Gonçalo M. Tavares dinamizou as
formas do romance e deu ares de um direcionamento para o futuro, conforme se pode concluir
a partir da leitura das considerações de Ferenc Fehér sobre o romance.
É precisamente a consciência da existência do silêncio que faz com que o homem
recorde de sua incompletude, e à luz de sua incompletude o leitor é instigado a desnudar essa
voz silenciosa que permeia toda a narrativa e que caracteriza em grande medida a
incompletude dessa narrativa. O romance, assim, está aberto à plurissignificação. O silêncio
em suas formas é um convite a uma leitura rica de possibilidades. Considerando que em uma
abordagem literária a partir do silêncio:
[...] preferimos ver o silêncio não em torno da linguagem, mas dentro dela,
no espaço ocupado pela figura e por todos os elementos que transformam a
linguagem comum numa linguagem literária, que fazem da linguagem
sonora da comunicação coloquial a linguagem silenciosa da comunicação
escrita e intencionalmente artística. (TELES, 1979, p. 12).
O desvelar dessa linguagem silenciosa torna-se para o leitor totalmente desconcertante
que é confrontado com a face inapreensível da linguagem e ao mesmo tempo luminosa, pois,
não raro, essa mesma face prova ser uma força reveladora do mundo que: “[...] dá acesso a
novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais coincidindo com um aspecto
determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos um mundo em sua
complexidade e profundeza” (NUNES, 2009, p. 125). A questão fundamental que daí surge é
como que uma linguagem completamente silenciosa e intransponível é mais significativa que
a comunicação coloquial e sonora?
E como aquela linguagem silenciosa que inspira a palavra poética de Aprender a
Rezar na Era da Técnica poderá superar o ruído incessante daquela linguagem quotidiana?
Ora essa indagação nesse momento parece ratificar a potência criadora do silêncio,
assegurando que o sentido de qualquer linguagem implica o contato com o silêncio. O
silêncio é o ato fundador da linguagem; primordial ao sentido, inevitável por natureza e
incessante por sua impreterível imprescindibilidade.
À medida que as palavras dão forma ao romance percebe-se nela, simultaneamente, a
forma do silêncio. É que a linguagem é composta por palavras e silêncios. O processo de
construção do romance levou a um processo maior de organização pelo silêncio. Daí, surgiu a
ideia de uma arquitetura de silêncio proposta no segundo capítulo. Aprender a Rezar na Era
184
da Técnica está determinado em construir um romance empenhando o silêncio no mais
profundo de sua estrutura. Renuncia-se às formas do romance tradicional e ajusta-se a nova
realidade social, marcada pela urgência da palavra que procura recobrar, a todo custo, a
totalidade perdida. No entanto, diante de um fluxo contínuo de palavras cada vez mais
ineficazes surge o silêncio, a não palavra, que dá força a linguagem e liberta-a da
impossibilidade de representação.
Enfim, sob a luz do silêncio Aprender a Rezar na Era da Técnica dá forma ao que já
não era mais possível de conceber através das palavras. Se o mundo se tornou grande demais
para caber na extensão do nosso alfabeto, conforme constata Georg Steiner (1988). Aprender
a Rezar na Era da Técnica confirma o fracasso da representação do mundo pela palavra. A
falência verbal discutida por esse autor se torna, a partir desse romance, patente. Mediante
essas constatações, a tessitura silenciosa de Aprender a Rezar na Era da Técnica supera
qualquer impossibilidade de representação e liberta o romance da fixidez imposta pela forma
verbal.
Com efeito, as formas do silêncio permitem ao romance elevar-se e projetar-se além
da escrita. O impossível do ponto de vista narrado torna-se possível do ponto de vista do
silêncio. O silêncio integrado às formas é mais do que um simples recurso técnico de
representação literária, é um percurso fundamental que é empreendido pelo poeta que
pretende uma ruptura com o espaço invadido pelas máquinas e pela técnica. Aprender a Rezar
na Era da Técnica ressalta uma linguagem literária em que o leitor assiste ao fracasso da
palavra e ao triunfo do silêncio.
185
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