x machado arlindo a fotografia sob impacto da eletronica
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8/3/2019 X MACHADO Arlindo a Fotografia Sob Impacto Da Eletronica
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A fotografia sob 0 impacto da eletronica
Arlindo Machado"
Resumo
o aparccimento da Iotografia
cletronica. bern como de iruirneros
recursos inforrnatizado deconservacao e arrnazenarnento de
fotos, ou ainda dos varies aplicativos
de processarnento digital da
Iotografia. c rnesmo clos recursos de
rnodelacao direta da imagem no
cornputador, sern 0 auxflio da
carnara, tudo isso tem causado urn
significative impacto sobre 0conceito
tradi .ional de fotografia e vern
desencadeando urn nurnero
incalculavel de consequencias que
dcvern scr discutidas e enfrentadas
I '10<' analistas da fotografia.
Abstract
The recent arrival of electronic
photography and the innumerable
possibilities of photographic digitalprocessing, as well as the
development of methods of image
modeling by computer, have
provoked a myriad of consequences
which must be faced up to and
discussed by photographic analysts.
Resume
L'apparition recente de la
photographie electronique, autant
que les innombrables possibilites deprocesser digitalement la
photographie, sans devoi.r parler
encore des moyens de model age
direct de l'irnage par ordinateur, tout
cela a provoque un numero non
moins considerable de consequences
que devront affronter et discuter les
analystes de la photographie.
* Professor do Programa de Pos-Craduacao em Cornunicacao e Scmiotica da Ponti-
licia Universidadc Catolica de Sao Paulo (PUC-SP), tC'I11-sededicado ao estudo das
Iovas tecnologias audiovisuals. Entre varies artigos e livros, publicou A I Il1 sa o Especu lar
(Sao Paulo: Brasiliense, 1984), A / s r l e d o V fde o (Sao Paulo: Brasiliensc, 1989), Mriqlli lw
e Imagil'lririo (Sao Paulo: Edusp, 1994), e Pre-Cinemas e P o e- C in e m as (Carnpinas:
Papirus, 1997). E mais rcccntemente: A 7 'e le vis iio L eiu uia a 5 (; -';0 (Sao Paulo: EditoraSenile Sao Paulo, 2000), 0 Quar l .o t conoc ln s ino (Rio de janeiro: Contracapa, 2 00 I) , El
Pa ! a je Med ia l ic o (Buenos Aires: Rojas. 20(0), e Made ill B ra z il : T re s Di cada s do V Ideo
Hmsiir'iro (Sao Paulo: ILau ultural. 200 ).
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oadvento recente da fotografia eletronica (a fotografia que e registrada
diretamente em suporte magnetico ou 6ptico e mais comumente
conhecida como s til l vid e o), bern como dos inumeros recursos
informatizados de conservacao e armazenarnento de fotos (como 0Photo-
CD da Kodak), ou ainda dos dispositivos de processamento digital da
fotografia (como as maquinas da empresa Scitex Corporation ou
programas de computador tais como Photoshop ou PhotoS tyler), ou
mesmo dos recurs os de rnodelacao direta da imagem no computador, .
sem auxilio de camara, tudo isso tem causado grande imp acto sobre 0
conceito tradicional de fotografia e promete daqui para a frente introduzir
mudancas substanciais tanto na pratica quanta no consumo de imagens
fotograficas em todas as esferas de utilizacao.
A hegemonia dessas novas imagens e facil de ser verificada. Basta observar
o crescimento vertiginoso das telas eletronicas ao nosso redor. Em casa,
no trabalho, nas escolas, nas empresas, nos bares, nos estadios, nos
aeroportos, nos metros, nas ruas, nos hospitais, aonde quer que se va, ha
serrtpre urn (ou varios) monitor(es) ligado(s), espalhando para todos os .
quadrantes uma imagem granulosa, mosaicada, estilizada, translucida e
flamejante, que apenas remotamente pode ser associada a imagem muito
mais definida, mais consistente e mais homogenea da fotografia. E mesmo
nos meios impressos, como jornais e revistas de massa, ja nos estamos
acostumando a conviver com certo tipo de imagem que, apesar de rnuitas
vezes lembrar estreitamente a familiar imagem fotografica, pode ja nao
ter sido captada por uma camara ou, se 0 foi, pode estar de tal forma
alterada que nao guarda mats que palidos traces de seu registro original
em pelicula.
A fotografia eletronica, ou 0 tratamento eletronico da fotografia, ou a
simulacao da fotografia por meio de recursos digitais, tudo isso ja e hoje
fato nsumado. Muitos fotografos poderao simplesmente ignorar tal
assedio. muilos deverao mesmo resistir heroicamente persistir ate 0 firn
da vida bus ando 0 "memento decisivo" das coisas que se olerecem a
carnara. Mas 0 problema - se e que se trata de procnrar problemas - e
que ssas novas praticas ou esses novos fenornenos encontram-se hoje
tao estreitamente inseridos, misturados, permeados nas praticas fotogra-
ficas con v ncionais, que se torna cada vez mais dificil aber 0 que e ainda
e pe ificamente jo to-graj ia , ou seja, rcgistro da luz sobre uma pelicula
rcvcstida gujmicamente e 0 que e. por outro lado, metamo r jo s e , ou seja.
onversao dos graos fotoqufmicos em unidades de cor e brilho, matema-
ti amcntc ontrolav is, as quais dames 0 nome de p ixe l s . Uma vez que
h je c pede tanto onvcrtcr imagens fotograficas em elctronicas, quanta
3 ' 1 0
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A Iotografia sob 0 im pac to d a ele tr6 nic <I ·11
eletronicas em fotogrMicas, sem que nessa passagem permane<;a nenhuma
marca do seu estado anterior, vive-se uma situacao de ind i f erenc iacao entre
os meios, situacao essa que e contagi.ante e ameaca ate mesmo 0 mais
singeIo dos £lagrantes.
A situacao vivida hoje no universo da fotografia nao e muito diferente
da situacao vivida, por exemplo, no cinema, que v e 0video e a informatica
penetrarem como um 1'010 compressor em seus process os significantes,
tomando 0 controle de todas as etapas de elaboracao do filme. Moder-
r-amente, no cinema, a edicao ja esta toda inforrnatizada, a filmagem e
assistida por video, quando nao e gravada diretamente em meio magne-
tico, a maioria dos efeitos de pos-producao sao gerados eletronicamente
e ate mesmo 0 roteiro e 0 s to ryboard sao editados em rnicrocomputado-
res. A pr6pria lingua gem do cinema e hoje uma derivacao da linguagem
da televisao, uma vez que 0 filme deve ser pensado e produzido levando-
se em consideracao a sua funcionalidade na tela pequena, quando ele for
distribuido em fitas de videocassete ou nos canais de televisao. Na area
da rruisica, a situacao nao e muito diferente: os sons dos instrumentos
sao sampleados (construidos por amostras) ou sintetizados eletronica-mente, ao passo que as pe<;as musicais nao consistem em outra coisa que
uma edicao desses sons numa tela de computador, por meio de s equ en c i a -
d a r e s concebidos especificamente para esse fim. 0 que quer dizer que, tal
como ocorre agora na fotografia, a musica que se ouve num disco nao e
mais, em grande parte das vezes, 0 registro da p e r j o rman cc de urn ins-
trwnentista, mas 0 resultado de um trabalho de edicao de sons eletro-
nicamente gerados. Ate mesmo 0 velho e tradicionallivro impresso, que
remonta ao tempo da imprensa de Gutenberg, no seculo XV, estasendo
rapidamente substituido pelo livro eletronico, distribuido em disquetes..
discos CD-ROM ou diretamente atraves de cabos telef6nicos e redes defibras 6pticas.
-A fotografia nao vive, portanto, uma situacao especial nem particular:
ela apenas corrobora um movimento maior, que se da em todas as esferas
da cultura, e que poderiamos caracterizar resumidamente como sendo
urn processo implacavel de "pixelizacao" (conversao em informacao
eletronica) e de informatizacao de todos os sistemas de expressao. de todos
os meios de comunicacao do homem contemporaneo. A tela mosaicada
do monitor representa hoje 0 local de convergencia de todos os novos
saberes e das sensibilidades emergentes que perfazem 0 panorama da
visuaJidade (e tarnbem da musicalidade, da verbalidade) deste final deseculo. Esse fenorneno surge, evidentemente, arrastando consigo um
numero incalculavel de consequencias, desencadeando problemas de toda
ordern, e sao justamente essas derivacoes que nos devem ocupar daqui
para a frente. Mas seria urn equivoco descomunal olhar para tudo isso
como se estivessemos diante de uma catastrofe, como se as telas eletroni-
cas, ao se rnultiplicarem ao nosso redor. estivessem tambem anunciando
a chegada do Apocalipse. A nova situacao criada pelo advento dos meios
eletronicos e digitais oferece uma boa ocasiao para repensar a fotografia e
o seu destino, para colocar em questao boa parte de seus mitos ou de seus
pressupostos e, sobretudo, para redefinir estrategias de intervencao capazesde fazer desabrochar na fotografia uma fertilidade nova, de modo a
recolocar 0 seu papel no milenio que se aproxima.
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" ' 2
Realismo em crise
A consequencia mai obvia . rnai: alard 'ada da h 'g .rnonia dz I 'trani c
e a pcrda do valor da fotografia como do umento, 01110 viden ia, omo
atestad de urna pr xistcncia da oisa fotografnda. ou C0l110 .irbitro da
verdad . A crcnca rnais ou monos gencralizada de qu' a amara n-o
mente e de que J fotografia e, ante de qualquer outra oi a, 0 re ultad
imaculado de l im regi tro dos raios de luz refletidos pclos 'res) objctos
do mundo, enfirn, toda e 'sa milologia a que a fot grafia tern sido associada
desde as suas origens, tudo isso esta fadado a desaparecer rapidarnente.
No tempo da manipulacao digital das imagens, a fotografia nao difcre
mais da pintura, nao esta mais isenta de subjetividade e nao pode atestar
mais a existencia de coisa alguma. Qualquer imagem fotogrMica podc
ser profundamente alterada, alguns de sells elementos podem ser impor-
tados de outras imagens, 0 nariz de um modelo pode ser alongado ou re-
duzido e ate mesmo trocado com 0 de outra figura, rugas ou excesso de
gorduras podem ser eliminados dos corpos fotografados, a posicao dos
objetos no quadro pode ser alterada par<l possibiJitar um novo enquadra-
mente. ate mesmo erros de foco, de mensuracao da luz ou de velocidade
de obturacao podem ser corrigidos na tela do computador. 0 conceito de
ed icao da fotografia se amplia e compreende hojc nao apenas 0 trabalho
de recorte do quadro e a sua insercao na pagina de uma revista, mas
tambem a manipulacao dos elementos constitutivos da propria imagem,
ate mesmo no nivel do grao mais elementar de inforrnacao: 0 pixel.
Certamente ja se manipulava a foto em outros tempos e a historia da fo-
tografia esta repleta de exemplos de alteracao da inforrnacao luminosa
impressa no negativo para fins_publicitarios .. politicos ou ate mesmo es-
teticos. E rn 1986, 0 jomalista Alain Jaubert organizou em Paris uma ex-
posicao denominada A s Fo tos qu e Fa ls ific a ra m a H is io r ia , onde foram
expostas quase uma centena de fotos "historicas" reconhecidamente adul-
teradas por meio de retoque ou colagem, como a celebre imagern de Lenin
na tribuna (em 1920), de onde Trotski foi eliminado, 0 famoso enterro de
Mao Tse-Tung (1976), de onde foram apagadas as figuras da Camarilha .
dos Quatro, e 0 retrato de Fidel Castro, tirado no Chile em 1971, de que
o lider cubano mandou suprimir a figura do General Pinochet, que posava
ao seu lado. Mas a manipulacao fotogrMica que se fazia em outros tempos
era grosseira e podia ser facilmente descoberta com um simples exame
atraves de microscopic. Hoje e extremamente dificil (senao impossivel)
saber se houve algum tipo de manipulacao numa foto, pois 0processamen-
to digital, uma vez realizado numa resolucao mais fina que a do proprio
grao fotogrMico, nao deixa marca alguma da intervencao. Uma vez que
agora se pode fazer qualquer tipo de alteracao do regisrro fotozrafico e
com um grau de realismo que torna a manipulacao impossivel de ser ve-
rificada, a conclusao logica e que, no limite, todas as fotos sao suspeitas
e, tambem no limite, nenhuma foto pode legal ou jornalisticamente provar
coisa alguma. A foto perde 0 seu poder de produzir verossimilhanca e.
como tal, e bern provavel que dentro de mais algum tempo ela seja excluida
ate mesmo de nossos documentos de identidade.
Alem da impossibilidade de verificar qualquer modificacao do registro
original, e preciso tambem constatar a relativa trivialidade com que esse
processo se da napratica habitual da fotografia. as recursos para editar
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.\ fotOg!,ilfiil sob 0 impacto da elctronica
digitalrnente uma foto estao cada vez mais ao alcance de qualquer
empresa editora, de qualquer fotografo profissional e ate mesmo do
cidadao cornum, uma vez que as camaras eletronicas de baixo custo e
destinadas ao publico amador ja sao vendidas acompanhadas de pro-
gramas de edicao de imagern. A rapida expansao da fotografia elctronica
e do processamento digital da fotografia nos faz crer que grande parte
das imagens que consumimos hoje nas revistas ilustradas sao imagens
editadas no seu proprio conteudo imagetico. A tarefa do Iotografo con-vencional se rcduz cada vez mais a do colhedor de imagcns, entendida
como tal a atividade do mero fornecedor de uma materia-prima que de-
vera ser depois process ada em estacoes grMicas computadorizadas. Os
limites entre a fotografia como registro da luz e a iconografia dos meios
de comunicacao tornam-se irnprecisos, na medida em que 0 registro etomado e explorado no que tem de potencial grafico, na medida em que
o resultado buscado e mais pictorico do que fotografico e na medida ainda
em que a questao da fidelidade ao mundo visivel mostra cada vez menos
pertinencia.
Uma avaliacao madura do momenta vivido hoje pel a fotografia e muito
diffcil de ser procedida, justamente porque vivemos um momenta de
transicao, e as mudancas ainda nao tomaram corpo com a devida enfase. 0
publico ainda nao esta inteiramente consciente das mudancas radicais que
se process am no interior das imagens que ele consome cotidianamente, 0
perigo de luna utilizacao perversa da fotografia e mills iminente do que nuncae, por outro lado, 0movimento de resistencia as mudancas tambern tem-se
mostrado muito forte, dele derivando, como subproduto, 0 retorno de Luna
atitude de fetichismo em relacao a fotografia classica de base fotoquimica. 0
intelectual norte-americano John Berger ja.observou, por exemplo, que,
durante a Guerra do Golfo Persico, varios jornais e revistas de seu palsalteraram rnuito sutilmente a imagem de Saddam Hussein, produzindo urn
estreitarnento mais acentuado de seu rosto e de seu bigode para forcar Luna
semelhanca com a fisionomia de Adolf HitleLl Mas e verdade tambem que,
na mesma guerra, a quase inexistencia de irnagens do conflito, ou, quando
existentes, a indicacao explfcita das Fontes Iornecedoras (com a sugestao
implicita da autoridade censora), bern como ainda as irnagens de simulacao
de batalhas atraves de recursos estilizados de computacao grMica, tudo isso
tornou evidente a urn publico estupefato que a notfcia (e com ela a "verda de")
e uma construcao. e Wl1. di scu rso sujeito, como qualquer outro discurso, a
intencionalidade da fonte emissora.
Nos circulos de especialistas. ji i e lugar-comum dizer que 0 universo da
imagem vive hoje a sua fase p 6 s - f o t o g l ' l ? f i c a , qucrendo-se dizer (om isso
uma fa e em que a im; gem - c sobretudo a imagem tecnicarnente pro-
duzida -Tibera-se finalmente do seu referente, do seu modele, ou daquilo
que n6s chamamos urn tanto impropriarnente de a "realidade", 0 que
marca d forma mais aguda essa fase e uma lenta, mas inexoravel mu-
danca dos habitos perceptivos do publico em relacao a uma, digamos
assirn. onio logia da im z gem fotografica. A convivencia diana com a tele-
visao e om os rneios cletroni os em geral vem mudando substancial-
mente a man ira omo 0 cspectador sc relaciona com as irnagens tecnicas,
e iss t m cons quen ias diretas na abordagem da fotografia. A tela de
baixa r .solucao -_gm profundidade da imag m clctronica fragmenta e
>moldura de forma impla avel 0 espac;o visfvcl, torna sensivel a textura
3]3
IAd ri an S el f, "Al te re d
[mages", em Co mpu t e r
Shoppe r , n O 61, Londres,
marco d e 1993, p. 41.6.
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31-1
Arlin (IMa h do,A
f lu ito Fspe ular: lntrodudio
a IO /fJX ra to ( -0Paul :
Uril<,illl-J1~, 1984).
, AnJ((~B , 7.in," lologi('
r i c · l ' lmagf'
l 'hollJgr h iqu ,", m
'..!u 'e '> l e q ue 11 ' inem a l ,
vol. 1 Wari! . : c rf , 1 95 8) ,
. 15
Arlinda MachJdo
granulosa do mosaico videografico e se oferece a todas as interferencias e
manipulacoes. Mais que isso: a imagem eletronica se mostra ao espectador
nao mais como um atestado da existencia previa das coisas visiveis, mas
explicitarnente como uma p rodu caa do visivel, como urn efeito de med ia cdo ,
A imagem se oferece agora como um "texto" para ser decifrado ou "lido"
pelo espectador, e nao mais como paisagem a ser contemplada.
Is 0 nao quer dizer que as imagens contemporaneas sejam indiferentes arealidade, como querem Iazer crer certos profetas do Apocalipse, mas
que 0acesso a esta ultima e agora mais mediado e menos inocente. Atribuir
um carater perverso ao efeito de opac i d ad e produzido pela imagem
eletronica ou, pior ainda, inculpar esta ultima de uma pretensa "desreali-
zacao" do mundo visivel, como fazem certos filosofos da pos-rnoder-
nidade, implica, na verdade, urn retorno a um discurso platonico sobre a
imagem, um discurso que nao consegue pensar a imagem fora de sua
funcao indicia l mais elementar e que nao admite qualquer outro destino
para as imagens fora dos limites estreitos da m im es e . Mas a manipulacao
eletronica nao chega propriamente a representar uma novidade no uni-
ver 0 das artes visuais, uma vez que 0 que ela faz e simplesmente repetir,
so que agora ern nivel de massa e do automatismo tecnico, 0mesmo pro-
ceo de i con i zacdo da representacao visual ja vivido pela arte moderna a
partir do Impressionismo, do Cubismo e da arte abstrata.
A conclusao provisoria que podernos arriscar extrair dos dados com os
quais podernos contar ho]e e mais ou menos a seguinte: por mais predate-
ria que seja a intervencao da eletronica no terreno da fotografia, ela pro-
duz tambern alguns resultados positivos em medic prazo, que poderiamos
caracterizar como sen do, de um lado, a incrernentacao dos recursos
expres ivos da fotografia e, de outro e principalmente, a demolicao de-
finitiva possivelmente irreversivel do mito da objetividade fotografica,
sobre 0 qual se fundam as teorias ingenuas da fotografia como signo da
verdade ou como reproducao do real. Na verda de, todos os especialistas
qu e atiraram seriamente a tarefa de examinar 0modo de funcionamento
da fotografia como urn sistema de expressao ja deixaram patente as
convencoes do codigo fotogrMico de represcntacao e a arbitrariedade
dos eus varies elementos expressivos, como 0 enquadramento, a
ilurninacao, a disposicao das zonas de tipos de cinza, a determinacao do
ponto de foco, a velocidade de obturacao, a resolucao da perspectiva por
cada tipo de lente, a densidade da emulsao de registro, 0 balanceamento
da core tc. 0 proprio autor deste texto que 0 leitor tern nas maos fez
ditar, em 1984, 0 livro A flus iio E spccula r? no qual fundamentalmente
pr icurou demon trar om a fotografia xprime seus enunciados na
forma de textos imag 'rico q I sao sempre e necessariamente intencionais,
intcrpr tativos e ubjctiv , omo ocorre, alias, em qualquer outro tipo
d ~ t .xto. A ideia csdruxula, difundida nos anos quarenta por Andre
Bazin,' d que aft grafia pertence ao dorninio nao da cultural mas das
ienci naturals. porque ~ a pr6pria "realidade" que se imprime a si
m .sma na p .licula. n- suporta sequ r a mals elementar das v rificacoes.
Pois b m, 0 que faz hojc a eletronica no terrene da fotografia e tornar
nsfv I, ou ate m sm ostensive. aquilo qu todo estudioso da fotografia
todo fat' graf d vid m nte onhecedor do eu meio j a sabiam desde
" orig n da fotografia, ou s ja. qu fotografar signifi a, antes de qual-
quer outra _oi a, on. truir urn enunciado a partir dos meio of· recidos
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A f tografia sub 0 impacto d.l eletror.ica
peio sistema expressivo invocado, e isso nao tem nada que ver com repro-
ducao do real. Se hoje a eletronica amplia 0 leque de ferramentas de que
se pode servir 0 fotograio, se ela lhe da maior poder de controle sobre
suas imagens e lhe possibilita intervir ate mesmo sobre as unidades mais
elementare do quadro para construir suas ideias visuais, tanto melho
para a fotografia, mesmo que essa nova ativiclade nem venha mais a se
chamar fotografia no futuro. Conforme ja observou Fred Ritchin, "0
potencial expressivo da fotografia nao podera ser adeql1adamente fixado
e avaliado enquanto a questao da sua facil conexao com a realidade nao
for superada".' A eletronica forca hoje a fotografia a viver a sua hora da
verdade e a livrar-se das convencoes e das ideias preconcebidas que'
entravam 0 seu pleno desenvolvimento como arte e como meio de co-
municacao. A medida que 0 publico for se acostumando as imagens
digitalmente alteradas, a medida que essas alteracoes se tornarem cada
vez mais visiveis e sensiveis, tambem como uma nova forma estetica, e
que os proprios instrumentos dessas alteracoes estiverem ao alcance de
um numero cada vez maior de pessoas, ate mesmo para a manipulacao
domestica,o mito da objetividade e da veracidade da imagem fotografica
desaparecera da ideologia coletiva e sera substituido pela ideia muito
mais saudavel da imagem como construcao e como discurso visual.
Uma estetica da metamorfose
Uma vez que se encontra sujeita a todas as transforrnacoes, a todas as
distorcoes e anamorfoses, a imagem fotogrMica, sob a egide da eletronica,
converte-se agora no meio por excelencia da me iamor jo s e . Pode-se nela
intervir infinitamente, subverter os seus valores cromaticos ou os seusniveis de luminancia, recortar suas figuras e inseri-las umas dentro das
outras, gerando paisa gens hibridas e exoticas, a meio caminho entre 0
surrealismo e a abstracao. Com os modernos recursos de pos-producao,
obretudo os que permitem a manipulacao digital, podern-se silhuetar as
figuras, Iineariza-las, preenche-las com massas de cores, alonga-las, COI11-
primi-las, terce-las. multiplica-las ao infinito, submete-las a toda sorte de
suplicios, para depois restitui-las novamente e, se for 0 caso, devolve-las
ao estado de realismo especuJar. Diferentemente das imagens fotogra-
fica convencionais, rfgidas e resistentes em sua fatalidade figurativa, a
imagem eletronica resulta muito mais elastica, dilufvel e manipulavelcomo uma massa de moldar.
Det rrninad s algoritmos de computacao grMica es pecificos para a rna-
nipulacao da imagcm fotogrMica perrnitem hoje intervir sobre as figuras
e dist rce-las d to as a forma, em que verdadeirarnenre haja limites
para esse gesto d onstrutivo. Na analise desse fenorneno, 0 crftico Fred
Ritch in" hegou m rno a lancar 0 conceito de hipel fotograf ia , a fotografia
gu e modif ada nao pela acao d paletas graficas, mas pela aplicacao
dir ta de) is da fisi a ou da biologia. Imagine-se a foto de urn predio de
quarcnta andare sa udido por um v nto hipotetico a 600 milhas por
h rat v 1 0 idade d1l3S v Z S sup .rior ao recorde ja verificado na supcr-
fi ie da terra. Apli ando quacoe maternatica e leis fisicas de re isten ia
dos mat r ic j a uma fot c nv n ional de urn. cdificio, pode- e, com 0
uxili d > urn omputador, alt rar a foto original d forma a visualizar Q_
qu pod 'ri a ont r om 0 =>diffio sob a a 50 d tais ventos. Com essa
'I F re d R i tc hi n, Our Own
Im age : the om ing
R eo ol utio n in Pho lDgraphy
(Nova York : Aper tu re ,
190),p.7.
5 toid., p. 13 .
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3 i G
6 Art Kleiner, "New
Faces", e m Ape r t u r e , n O
106, Nova York,
prim.avera de 1987, p 72.
7 Peter Weibel, "L'Estetica
della Sparizione
n ll'Immagine
Flcttronica". em. Cin e ma
N uo o o , n O S 4_r, ano 37,
Florenca. jul-out. de ]988,
p.44_
Arlindo lv[achado
tecnica, a fotografa norte-americana Nancy Burson produziu urn famoso
retrato do que seria um Big Brother de nosso tempo, misturando os tra,\os
fision.omicos dos presidentes e primeiros-ministros dos paises detentores
de poder nuclear, na exata propon~ao do numero de ogivas de cad a pais.
A rnesma Iotografa conseguiu tambern desenvolver um algoritmo capaz
de "envelhecer" ou "rejuvenescer" im.agens fotograficas, de modo a pos-
sibilitar saber como seremos daqui a vinte anos, ou como ficara uma es-
trela do cinema contemporaneo quando lhe vierern as rugas ou qual deve
ser a face atual de um criminoso nazista foragido." .
Esteticas por excelencia da metamorfose, 0 s til l vid eo e a fotografia pro-
cessada em computador autorizam as manipulacoes mais transgressivas
e as interferencias .mais desarticuladoras sobre 0 registro bruto efetuado
pelas camaras, Nao por acaso, essas suas caracteristicas anamorficas estao
possibilitando a fotografia retomar 0 espirito demolidor e desconstrutivo
das vanguardas historicas do comeco do seculo xx e aprofundar 0 trabalho
de rompimento com os canones pictoricos herdados do Renascimento.
Nao nos esque\amos de que a fotografia, no seculo XIX, representou um
dos baluartes de resistencia das forcas conservadoras contra a arte
rnoderna, sua contemporanea, na medida em que aquela perpetuava um
modelo de representacao que esta ultima se encontrava justamente pondo
em questao. Nesse sentido, pode-se falar hoje, e com uma certa pertinen-
tia, em uma reconciliacao com a pintura, uma vez que a imagem eletro-
nica permite a fotografia recuperar a visualidade da arte conternporanea.
Os trabalhos recentes na area da fotografia eletronica e da manipulacao
digital de fotos e mesmo da modelacao direta por computador apontam
hoje para a possibilidade de uma nova" gramatica" dos meios imageticos,
afinada com a "gramatica" das artes plasticas atuais, e tambem para anecessidade de novos parametres de leitura por parte do sujeito receptor.
o quadro que delimita a imagem (e que pode ser a tela de urn monitor)
torna-se agora urn espa<;o topografico onde os diversos elementos ima-
geticos vern inscrever-se. Do espa<;o i sot6pico da figuracao classica, basea-
do na continuidade e na homogeneidadedos elementos representados,
fundamentados na convergencia de todos os elementos em torno de urn
ponto de fuga, passamos agora ao espa<;o pol i topico? em que os elementos
constitutivos do quadro migram de diferentes contextos espaciais e
temporais e se encaixam, se encavalam, se sobrepoem uns sobre os outros
em configuracoes hibridas. 0 mundo passa a ser visto e representado
como uma trama de relacoes de uma complexidade inextricavel, em que
cada instante esta marcado pela presen\a simultanea de elementos os
mais heterogeneos, e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que
toma mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas
as operacoes.
FIuidas, ruidosas, escorregadias e infinitamente manipulaveis, a imagem
eletronica e a fotografia processada digitalmente nao autorizam mais
um tratamento no nivel da mera referencialidade, no ruvel do registro
documental puro e simples. 0 efeito de real nao se da nelas com a mesma
transparencia e inocencia com que ocorre na fotografia onvencional ouno cinema. Pelas suas proprias caracteristicas. os meios eletronicos se
prestam muito pouco a uma utilizacao naturalista, a uma utilizacao
meramente homologa toria do 1/real". Pelo contra rio, se a "realidade"
"
8/3/2019 X MACHADO Arlindo a Fotografia Sob Impacto Da Eletronica
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A Iotografia sob 0 impaclo da elctronica3 17
comparece em alguma instancia nessas atividades, ela se da como de-
correncia de um trabalho de "escritura ", As anamorfoses e dissolucocs
de figuras, os imbricamentos de imagens, os efeitos de edicao ou de co l l a g e ,
os jogos das metaforas e das metonimias, a sintese direta da imagem no
cornputador nao sao meros artificios de valor decorativo; e1esconstituem,
antes, os elementos de articulacao do quadro fotografico como um sistema
de expressao. Entre todas as imagens figurativas, a imagem eletronica e
a que menos manifesta vocacao para 0 docu.mento ou para 0 "realismo"fotografico, impondo-se. em contrapartida, como intervencao graficai
conceitual ou, se quiserem, "escritural"; ela pressup6e uma arte da
relacao, do sentido, e nao simplesmente do olhar ou da ilusao.
Isso tudo nao implica evidentemente autorizar todo e qualquer trabalho
produzido com recursos eletronicos ou digitais. Boa parte do que se ve
hoje no terreno das novas poeticas fotograficas mostra-se ainda muito
aquem das proprias possibilidades prometidas pelos dispositivos tecnicos,
para nao se falar de uma transgressao. de uma superacao dessas pr6prias
possibilidades, que seria 0mais desejavel. Na atual fase de transicao vivida
pela fotografia, nao e nada surpreendente que muitos dos trabalhosproduzidos com os novos meios nao consigam ainda superar a atitude
do mero deslumbramento com as possibilidades da tecnologia. Nao nos
enganemos, porem, supondo que tudo nao passa de modismo passageiro
OU, pior ainda, que nada disso pode afetar substancialmente a velha e
boa fotografia produzida por uma camara e registrada em pelicula Ioto-
quimica. Os novos meios, os novos procedimentos, a nova estetica, tudo
isso veio para ficar. Eles ampliarao cada vez mais 0 seu leque de in-
fluencias, tomarao boa parte dos espa<;oshoje ocupados pela fotografia
tradicional e poderao mesmo vir-a provocar uma revolucao no conceito
de fotografia, a medida que inteligencias e sensibilidades cada vez maiss6lidas passarem a se ocupar deles em intensidade e profundidade. 0
trabalho recente do fot6grafo brasileiro Carlos Fadon Vicente e a melhordernonstracao disso.
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