analise socio-historica da comunidade caicara de conceicaozinha - guaruja
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SÍTIO CONCEIÇÃOZINHA EM GUARUJÁ
Carlos Eduardo Vicente
Da vida
Breve histór ia como prólogo
É cedo . . . c i nco e me ia . Como eu s e i? Se i l á , pe lo ga lo
pe s so inha , s empre o p r ime i ro a can ta r , e s empre no mesmo horár io ,
e é c l a ro , t ambém por a lgo que não s e i d i r e i t o , que é um negóc io
que me acorda , não impor ta o d ia , quase s empre an t e s do so l
nasce r .
É cedo , mas j á dá aque la von tade de i r p ra be i ra da “maré” ,
p rocurar “co i sas” , qua i squer co i sa s , de sde b r inquedos a f ru ta s ,
( coco , maçã ) , pe i xe g rande mor to , t a tu mor to , ou a t é mesmo a lgum
b i cho e squ i s i t o , ( ou t ro d ia mesmo l embro de um “veado” que
apareceu aqu i na maré , cansado de t an to nadar , quem pegou e l e f o i
o mar ido da dona An tôn ia , e t odo mundo comeu carne de veado por
quase uma semana) . As “co i sas” caem de nav io s e v em parar aqu i
na maré , e é a ma ior a l egr ia encon t rar , nem que s e ja uma maçã
“sa lobra” , e comer l ogo ced inho .
Eu l e van to , t omo o ca f é , uns pedaços de mand ioca , ou um
angu , pe i xe com fa r inha e sa io cor rendo p ra maré , pas so nos
t ambores e j á pego umas bananas ve rdes coz idas (que são a s
mesmas que a gen t e dá aos porcos ) , a í vou ca ta r a s co i sa s que a
maré t ra z . Descendo o bar ranco , eu vou pas sando pe lo mar a s s im ,
a água bem c la ra a a re ia bem c la ra , nós t emos um por t i nho , um
e s ta l e i r i nho , onde f i ca nos sa canoa , nos sa embarcação , e quando
eu de sço a s s im , na maré , aque la água c la ra , o s s i r i z i nhos s e
en t e r rando quando a gen t e põe o pé na água , e o s s i r i z i nhos que
e s tão a s s im na be i r i nha s e en t e r ram, o s pe i x inhos , aque l e s
pe i x inhos , a gen t e va i andando , cor rendo a t rá s de l e s a s s im na
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be i rada da maré , e e l e s s e en t e r ram na a re ia , e l e s não cor rem
d i r e to p ro f undo do mar , e l e s s e en t e r ram, e f i cam só o s o lh inhos
de l e s o lhando p ra gen t e . Da í , a gen t e v endo que não t em nada
i n t e re s san t e , ou que o bom a gen t e j á t i nha l e vado , a gen t e f i ca
b r incando , pegando um s i r i z i nho , pegando f ru ta , go iaba , banana ,
cana , carambo la , e t an ta s ou t ras , ou en tão vamos pegar pas sar inho
a t é a mãe chamar .
E não t em j e i t o , quando são o i t o , nove horas , mãe t a
chamando pra ca ta r l enha , p ra emp i lhar l á em c ima , p ra mãe poder
f a ze r o a lmoço , ou p ra que imar no f ogão à no i t e . En tão eu vou
pegar g rave to s , que eu não pos so pegar no machado , porque a mãe
não de i xa . Depo i s da l enha , é f a ze r a lguns s e rv i ç inhos p ra mãe ,
var re r o qu in ta l , a r rumar uma co i sa ou ou t ra , a t é a hora do
a lmoço . Ah , que a lmoço gos to so , aque l e vaz io no e s tomago , s empre
o f e i j ãoz inho com ar roz e mand ioca , uma ve rdura , aqu i do qu in ta l
mesmo , f rango , pe i xe , s i r i , ca rangue jo , mar i s co , ou mesmo p i t u ou
camarão , que mu i ta s v e ze s e ra a gen t e mesmo que pegava . Cerca de
onze horas , me io d ia , depo i s do a lmoço , eu s en to na á reaz inha , e
da á rea da p ra ve r pe la en t rada dos bambuza i s , a maré , e ne s sa
be i rada de maré , eu o lho o r e f l e xo do so l que ba t e na água e f i ca
r e lu z indo , como se f i ca s se p i s cando a água . En tão aqu i l o a l i me
enche de v ida , me da uma co i sa que me f a z v i b rar , aqu i l o a l i ,
quando eu e ra bem c r ianc inha mesmo , eu imag inava que e ra uma
quan t i dade em v idas que t ava p i s cando naque l e mar , mas
s imp le smen t e e ram re f l e xos do so l bem fo r t e , na água do mar que
r e lu z ia , e eu imag inava que aqu i l o e ra um mon te de pe i xe que t i nha
a l i .
Es sa e ra a hora t ambém que a mãe va i t raba lhar , que e la
t raba lha do ou t ro l ado , em San tos , na casa da “dona Mar ia
Ve lha” , que é a avó do Ch iqu inho . E a gen t e t i nha que f i ca r
e spe rando p ra buscar e la quando e la v i e s se embora , por que e la
não pod ia l e var o barco p ro l ado de l á s enão a lguém rouba , que l á
é t udo ma to , e i s so e ra t odo d ia .
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Depo i s , ma i s t a rde , a gen t e va i t udo a l i p ra be i ra da maré ,
p ra e sperar a mãe , e f i ca j ogando bo la na a re ia da p ra ia , s en ta
aque l e mundo de mo lecada , e ra eu , Rober to , Rober t i no , a s men inas
nadando a l i na f a i xa da maré , e a gen t e f i ca l i gado , porque sabe
que quando e la apon tar l á do ou t ro l ado e acenar com uma toa lha ,
ou começar a g r i t a r a gen t e t em que i r co r rendo l á buscar e la , mas
mo leque é o d iabo , pas sa a hora e e squece , en tão nós nos
e squecemos a l i naque l e j ogo , e e l a s empre apon tava do l ado de l á ,
à s qua t ro horas da t a rde , que e la sa ia t r ê s horas da casa da “dona
Mar ia Ve lha” , e a t é c i nco horas , e ra , puxa , s e pas sas se das c inco
horas da t a rde , quando a mãe chegasse , e l a pegava uma vara e
sa ia em c ima de t odo mundo , de l ambada , né , e nós f i cávamos t odo
d ia a l i , e spe rando . Mas à s v e ze s t i nha ou t ras pe s soas que v inham
do l ado de l á t ambém, e à s v e ze s nós f i cávamos j ogando bo la a l i ,
quando o lhava do l ado de l á , v i a l á uma co i sa , s e t ava abanando
ou não t ava abanando , s e e s t ava g r i t ando ou não , p ra gen t e v e r ,
p ra i r l á buscar e la . Se a t rave s sas se o e s t uár io e f o s se buscar e la
do l ado de l á , e l a f i cava s empre a l i na f r en t e da casa da vó do
Ch iqu inho , a dona Mar ia Ve lha , e à s v e ze s , quando a gen t e i a
pegar na cha ta , j á i a sa indo uma ou t ra cha ta de l á , a í a gen t e
f a lava s e rá que é mãe , ou não é mãe , mas s e f o s se e l a que t ava
chegando , t ava t udo bem, mas s e não f o s se e l a e a gen t e chegas se
l á a t ra sado p ra buscar e la , cace t e , o pau comia , a vara comia .
En tão o que acon t eceu f o i i s so , t ava ano i t e cendo j á , e a gen t e
en t r e t i do com o j ogo não f o i buscar e la , e quando a gen t e a v i u j á
t ava no me io do e s tuár io , e f o i um ta l de um cor re r p ra um lado ,
ou t ro p ra ou t ro , e f i ca r e scond ido , mas não ad ian tou nada , quando
deu j á no i t e , a gen t e t udo t e ve que vo l t a r p ra casa , por medo do
sac i , e de cobra , e ou t ros b i chos que g r i t ava , que não dava ma i s
p ra ve r nada , e f o i um chegando e t omando sur ra de vara de
a roe i ra , e e ra ou t ro chegando e t ome vara no l ombo , e a s s im mãe e
pa i pegaram todo mundo .
O que e la f i cava ma i s ne rvosa e ra que e la s empre v inha che ia
de co i sa , porque e la t ra z ia a inda o s a l imen tos p ra gen t e , t ra z ia o
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pão , t ra z ia o açúcar , t ra z ia o sa l , e gen t e quando mo leque , a gen t e
não l i gava p ra nada , o negóc io e ra j ogar bo la e f i ca r t omando
banho de maré , e mu i ta s v e ze s a gen t e e squec ia , como ho j e , e não
t i nha f uga , o “couro comia” .
En tão , com as pe rnas a rdendo , e de banho t omado à gen t e
f i cou no quar to , ouv indo aque la m i s tu ra de mus i ca , do rad inho à
ba t e r ia do pa i , e pas sar inho , e ra pas sar inho que não acabava ma i s ,
e b i cho , e sac i p iando , que andava na be i ra do mangue pegando
quem f i cava de no i t e na maré .
Á no i t e , ma i s t a rde , quando o som do rád io j á t i nha f i cado
qu i e to , e a pas sarada t i nha s e aca lmado , do meu quar to , que f i cava
do l ado da sa ída p ro bar ranco e o bambuza l , dava p ra e scu ta r o s
sons da no i t e , en tão quando eu não dormia cedo , e consegu ia f i ca r
acordado a t é t a rde eu f i cava na cama e e scu tava o baru lho da maré
ba t endo no bar ranco quando a maré ench ia , ou a canoa ba t endo l á
na água , um pás saro , sa racura , ou a coru ja can tando no
bambuza l . . . 1
1 Os fatos narrados neste texto foram coletados em diversas entrevistas com moradores diferentes e utilizados como sendo parte da vida de um único morador. A alocação dos fatos como ocorridos na vida de um só morador, um menino, é uma construção literária com base em depoimentos, que apesar de terem ocorrido com um ou outro morador em momentos distintos, não constituem um fato real e comprovadamente acontecido. No entanto é muito possível que possam ter ocorrido nessa ordem e situação citada. Quero aqui deixar claro que esta é uma construção literária fictícia porem, bastante verossímil. Entendo que a idéia de verossimilhança se encaixa na analise aqui proposta e pode servir como auxilio no entendimento dos temas que serão abordados. Baseio-me na idéia de narrador expressa por Walter Benjamin no ensaio homônimo e também nas análises críticas em relação à busca da verdade científica pela História realizadas por Hayden White em Trópicos do Discurso ao justificar sua idéia de que a História também é uma ficção literária de seu autor, porém baseada em fontes documentais deixadas. Como é obviamente impossível reconstruir os fatos exatamente da forma como eles ocorrerram no passado valho-me da idéia de História verossímil para apresentar um conto de como eles podem ter ocorrido.
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O migrante
Da chegada , d i f i cu ldades e po rquês . 2
“ . . . Mas m inha f i l ha , nós l e vamos uma v ida aqu i que só Deus ,
porque nós v i emos de Minas , não conhec ia n inguém, o conhec ido
que t i nha aqu i e ra o i rmão do meu mar ido , que j á morava aqu i há
t empo , e quando nós chegamos aqu i nós não t í nhamos conhec imen to
para a r rumar um f i ador , e e ra l á de San tos , porque a gen t e só
conhec ia l á . A í eu f i que i pensando s e nós i r í amos t e r que vo l t a r
para Minas a pé , porque o que nós í amos f a ze r , e t rouxemos a inda
o s t r ê s f i l hos ma i s v e lhos e de i xamos o s ma i s pequenos l á com
minha mãe para v i r aqu i a r rumar uma morad ia , p ra depo i s i rmos
a t é l á e buscar o s pequenos [ . . . ] e l e d i s s e que t i nha uma v iúva
querendo vender o bar raqu inho de la por 30 con tos de r é i s [ . . . ]
duas s emanas depo i s o s eu Jonas ve io p ra casa da Dona Mi ra
buscar a chocade i ra , e eu e o s eu Jonas v i emos ve r o bar raqu inho .
Meu mar ido não qu i s v i r porque e l e t i nha mu i to medo de água . Seu
Jonas ve io com a cha t i nha car regada de made i ra , quando chegou
ma i s ou menos pe r to da margem de cá , a cha t i nha a fundou , encheu
de água , a í , eu f i que i em c ima das t aboas e o s eu Jonas f o i
r emando , r emando a t é que chegamos na t e r ra . Quando chegamos a
t e r ra , eu f u i a t é aque la casa que vocês v i ram lá , e o bar raqu inho
e ra de f undo de l a tão , sapé , pape lão t apando o s buracos p ra
p ro t eger da chuva , en tão eu conver se i com e l e , e t i nha que f a ze r
ou t ro bar raqu inho mesmo , porque aque l e não dava p ra nada . A í eu
chegue i l á , f a l e i com o meu mar ido , e o j e i t o que t e ve f o i nós v i r . E
a gen t e consegu iu carona com um Sr . Chamado Zé Pedre i ro , na
cha t i nha de l e , e nós v i emos com e l e , me t emos a s caras , de r rubamos
aque l e bar raqu inho , que não t i nha nada para aprove i t a r , e
t raba lhamos vár io s d ia s e f i z emos uma cas inha que pe lo menos
2 Este item somente diz respeito aos moradores mais antigos que vieram de outras regiões, e procura entender e explicitar os motivos que vão fazer os moradores deixar seus lares e se dirigirem para a comunidade. Logo, aqueles moradores cuja vinda para a região seja anterior ao inicio do século XX e que suas famílias já estejam na quarta geração serão considerados pelo presente trabalho como moradores natos, assim sendo, prescindíveis na analise proposta nesse item.
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dava p ra agüen tar o so l e a chuva , e t i nha uma coz inha e um
quar to , só i s so que nós f i z emos , e f omos l á p ra Minas , porque j á
e s t ava em t empo de i r buscar o s men inos . Fomos l á e t rouxemos o s
men inos , e a í f o i t odo mundo t raba lhar , que o s men inos j á e s t avam
acos tumados . Todo mundo a judou , meu f i l ho ma i s v e lho e ra
empregado em San tos e a judava a gen t e com co i sas que comprava .
E g raças a Deus , ne s se t empo , t i nha aqu i um povo mu i to bom,
m inha f i l ha , e ho j e em d ia não t em ma i s não , mas quando , naque la
época , d i s s emos que v ínhamos para cá , nós ganhamos t an ta co i sa ,
e f o i quando f i cou ma i s f ác i l p ra gen t e f a ze r nos sa cas inha , e eu
e s tou aqu i a t é ho j e . Fu i buscar meu pa i , m inha mãe , j á pas sado
t empo , l á em Te i xe i ra de Fre i t a s , o s t rouxe p ra cá [ . . . ] pas sado um
t empo , m inha f i l ha ve io p ra cá s em casa p ra morar , e a cas inha ,
que j á e ra a s egunda que nós t í nhamos f e i t o j á e s t ava ru in z inha
[ . . . ] r i queza nunca t e ve , nunca t e ve mar de ro sas em can to nenhum.
Em Minas e ra mu i to ru im porque a gen t e t raba lhava nas roças e
quando chegava a época das s ecas , o gado dos pa t rõe s quebrava a s
c e rcas e comia a s roças t odas , e e ra f e i j ão , e não sobrava nada , é
nunca f o i um mar de ro sas , e o lhando a d i f i cu ldade que a gen t e
t e ve l á e aqu i , aqu i é me lhor . E só a mor t e va i me t i ra r daqu i , ou
en tão s e aparece r dono . . .” . 3
O depo imen to ac ima dá uma i dé i a c l a r a de como se cons t i t u iu
a comun idade , po i s de f a t o , mesmo den t r e o s morado re s ma i s
an t i gos a p r edominânc i a é de mig ran t e s de ou t r a s r eg iõe s . 4 Ou t r a
obse rvação mu i to impor t an t e é o g r au de d i f i cu ldades pa r a a
sob rev ivênc i a que t i nha a ma io r i a dos morado re s an t e s de pa s sa r a
hab i t a r a r eg i ão ( e s se t i po de d i f i cu ldades é uma cons t an t e nos
depo imen tos ) , o que nos l eva a c r e r que , de sde s eu i n í c io , a r eg i ão
s e rv iu como á r ea de fuga pa r a vá r i o s morado re s que encon t r avam
d i f i cu ldades pa r a morad i a em ou t r a s l oca l i dades .
3 Dejanira Batista dos Santos, moradora da comunidade a aproximadamente 44 anos. 4 Entretanto este é um dado que torna ainda mais interessante a formação da comunidade, pois apesar da grande maioria ser oriunda de estados, e regiões diferentes, todos assimilaram uma identidade cultural muito própria do caiçara. Seja a questão da pesca, seja a coleta em mangues, seja os tipos de culturas plantadas, notamos a similaridade do relacionamento de todos com o meio e entre si.
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Ass im como nas pe r i f e r i a s de ou t ro s c en t ro s u rbanos no Bra s i l
a comun idade so f r eu o impac to do que fo i chamado Êxodo Rura l . A
pa r t i r da década de qua ren t a começou a f l u i r pa r a a comun idade e
em to rno , um f l uxo cada vez ma io r de mig ran t e s de ou t r a s r eg iõe s
impu l s ionados pe l a s d i f i cu ldades da v ida no campo , e pe l a
pos s ib i l i dade de emprego e me lho re s cond i ções de v ida . 5
Vamos encon t r a r o s p r ime i ro s m ig ran t e s ( i s so a t é o f i na l da
década de c inqüen t a ) como o r iundos de d ive r sos e s t ados , com
p redominânc i a dos e s t ados do Su l , Sudes t e e Cen t ro -Oes t e , e ma i s
f o r t emen te do Pa raná , a l ém é c l a ro dos p róp r io s morado re s da
Ba ixada San t i s t a que po r mo t ivo de fuga dos a lugué i s d i r i g iu - s e
pa r a a á r ea . 6
Nas décadas de s e s sen t a , s e t en t a e meados de o i t en t a s e r ão o s
m ig ran t e s do êxodo ru r a l que começa rão a ocupa r a r eg i ão . Se rão
ba s i camen te pe s soas do no r t e e no rdes t e do Bra s i l que mu i t a s veze s
i n t e r rompe rão sua s t r a j e t ó r i a s e s e f i xa r ão na comun idade . 7
Até que f i na lmen t e , na s ú l t imas ocupações o f a t o que va i
oco r r e r é ba s i camen te a “mudança de ba i r ro” . Morado re s de ou t r a s
á r ea s , pa r a fug i r do a lugue l vão pa s sa r a ocupa r a á r ea .
“São pe s soas de sempregadas que vêm fug i r do a lugue l , são
pe s soas , p r inc ipa lmen t e de V i cen t e de Carva lho , d i f e r en t emen t e de
a t é a década de 70 , que e ram pes soas do Nordes t e , que f ug iam pra
cá , mas e ra uma min i -ocupação . De 90 p ra cá , j á é uma ocupação
do p rópr io mun ic íp io ocas ionada p r inc ipa lmen t e pe la f a l t a de
d inhe i ro , e vão para a s á reas de ma ta .” 8
Apesa r do c l ima de nos t a lg i a e de s audade que pe rme ia g r ande
pa r t e dos depo imen tos a v ida nos p r ime i ro s t empos e r a mu i to
d i f í c i l :
“ . . . aqu i não t i nha hosp i t a l [ . . . ] Mas e ra t udo p ra San ta Casa
de San tos , t udo pegava a cha t i nha e i a embora , é , quando uma
5 Colocar fonte.6 Idem a nota 37.7 Idem.8 Idem a nota 27.
7
mulher i a ganhar neném, pegava a cha t i nha e i a embora , com
chuva , com ven to , com tudo , eu mesma fu i uma que f o i p ra ganhar
uma f i l ha m inha , [ . . . ] Chuva e v en to , me encapo taram toda e eu
com a dor , eu com a dor , a m inha cunhada f a lava p ra eu e sperar
que a gen t e j á i a chegar , e meu mar ido ace l e rava , ace l e rava a t é
chegar do ou t ro l ado , e quando chegamos do ou t ro l ado a água
v inha no j oe lho , p ra c ima do j oe lho e m inha cunhada i a na f r en t e
por causa de a lgum buraco , né? Que a ambu lânc ia não v inha a l i ,
t i nha que i r ma i s p ra l á , a i f o i quando e la f o i i ndo na f r en t e que
pod ia t e r a lgum buraco , e a í dava a dor , uma dor hor r í ve l , e eu
s egurava ne l e e f i cava a s s im no me io da água , e parava e i a , e
parava e i a , e quase que eu ganho a c r iança no me io da água . . .” 9
As d i f i cu ldades e r am mu i t a s , a f a l t a de hosp i t a l ou p ron to
soco r ro p róx imo , de comérc io l oca l , ( t udo nece s s i t ava s e r
comprado em San tos ) , r ep re sen t avam um g rande obs t ácu lo pa r a a
pe rmanênc i a na comun idade .
“ . . . água e ra na casa da m inha avó , t i nha que pegar do l ado
de l á , en t endeu? T inha que a t rave s sar de cha ta com os ba lde s p ra
t ra ze r água , en t endeu nós í amos buscar na INAPE, e quando e ra no
t empo do Jayme Dayge , a o rdem que t i nha e ra não dar água p ra
n inguém, en t endeu? [ . . . ] A í a gen t e i a buscar em San tos , t i nha uma
mu lher que dava água p ra gen t e , mas p ra m im e ra ma i s f ác i l
buscar em San tos , porque eu t i nha uma cha t i nha , e i a buscar água
na casa da m inha avó . . .” 1 0
“Água encanada , a p r ime i ra água encanada que ve io f o i em
74 , com o sobr inho do Domingos de Souza , An tôn io de Souza Ne to ,
[ . . . ] que co locou um cha far i z l á na rua [ . . . ] e l e e ra v i c e -p re f e i t o
ne s sa época , [ . . . ] no r eg ime da D i tadura Mi l i t a r [ . . . ] porque e l e
d i z i a que v inha roubar go iaba aqu i na Conce i çãoz inha , gos tava
mu i to do s í t i o , co locou água em ami zade com os co lonos , [ . . . ]
depo i s nós puxamos e s sa água p ra t odo o ba i r ro , nós pusemos
c inco m i l me t ros de canos e co locamos em cada pon ta de rua um
9 Idem a nota 1.10 Idem a nota 39.
8
cha far i z . [ . . . ] Nós t í nhamos a água de d i r e i t o , né? E água
l ega l i zada , cobrada pe la Sabesp , e l a v e io em 88 . [ . . . ] En tão a l u z a
l u z v e io depo i s , a l i á s , [ . . . ] em 83 e a í f o i o Maur i c i que
co locou .” 1 1
As nece s s idades ma i s bá s i ca s e r am d i f í c e i s de s e ob t e r , água
encanada , l uz , t e l e fone , t udo i s so fo i f r u to de anos de e spe ra , e
a i nda ex i s t em ce r t a s á r ea s da comun idade em que , dev ido à
l oca l i z ação , a água encanada só chega , como d i zem os p róp r io s
morado re s , “ um f i ap inho” . Quan to à r ede de e sgo to s , não ex i s t e
a i nda , em nenhuma rua , bem como t ambém não ex i s t em ca l çamen tos
ou pav imen tação .
De aco rdo com os p róp r io s morado re s , g r ande pa r t e do a t r a so
na imp lemen tação de s se s bene f í c i o s s e r i a mo t ivada pe l a
i r r egu l a r i dade na ques t ão da p rop r i edade da t e r r a . Ou s e j a , nenhum
morado r da comun idade t i nha , ou t em , a i nda , a p rop r i edade
r econhec ida de s eu t e r r eno . E i s t o s e r i a pe lo f a t o de que a á r ea e r a ,
e é , cons ide rada á r ea da Un ião .
Segundo r e l a to s a t é o f i na l da década de o i t en t a a s cons t ruções
de a lvena r i a na comun idade e r am p ro ib ida s dev ido á mesma
a l egação de i l ega l i dade no t ocan t e a p rop r i edade da s t e r r a s .
Ho je t emos na comun idade , g r ande quan t i dade de morad i a s de
a lvena r i a , e s endo que j á há um p roces so de ve r t i c a l i z ação com a
cons t rução de d ive r sos sob rados . Es sa queb ra da p ro ib i ção no
t ocan t e a cons t ruções de a lvena r i a s i n i c iou - se no f i na l da década de
o i t en t a , quando da cons t rução da p r ime i r a Ig r e j a de a lvena r i a na
comun idade , que fo i ameaçada de demol i ção , e ge rou uma g rande
mob i l i z ação no Ba i r ro . Pouco t empo depo i s novas cons t ruções
fo r am sendo e rgu ida s a t é que ho j e , t a l vez 20% das cons t ruções da
comun idade s ão de a lvena r i a . 1 2
Alguns morado re s s e r e f e r em à e spe ra de ho ra s pa r a s e ob t e r
água pa ra s eus a f aze r e s domés t i cos , en t r e t an to hav i a t ambém em
11 Idem nota 27.12 Idem.
9
épocas an t e r i o r e s , quando a comun idade a inda t i nha poucos
morado re s ou t r a s fo rmas de ob t enção de água :
“ . . . eu i a l avar roupa no poço , o poço e ra a nascen t e , a gen t e
e svaz iava , e s vaz iava , de i xava l imp inho , né? A í a água c re sc ia , a í
quando a gen t e i a a água j á t ava na me tade , e sub ia , b ranqu inha , a
gen t e o lhava a s s im l imp inha , aque la nascen t e mesmo . . .” 1 3
Com o t empo a s na scen t e s fo r am so f r endo a i n f l uênc i a da
ocupação , a t e r r amen to e po lu i ção , e a t ua lmen t e não ex i s t e ma i s
nenhuma nascen t e no ba i r ro .
“a í o povo , co i t ado , que t i nha nece s s idade , começou a v im
procurar e l e s , [ . . . ] que quer iam comprar um pedac inho de
t e r ra[ . . . ] e l e s f a z iam i s so , quando o “ f r eguês” chegava , e l e s f a lava
“ó , f a z o t eu bar raqu inho aqu i” , a s pe s soas pegava , e ra t udo ma to ,
t udo aque la s made i ras , e aque l e s mon te s de t e r ra , e no me io e ra
aque la s poças de água , eu s e i que e l e s a r rancavam aque l e s t ocos ,
a j e i t ava t udo o t e r reno , quando t ava t udo ce r t i nho l á , p ra f a ze r a
casa , e l e s chegava e t i rava o “ f r eguês” , “á , aqu i não pode , aqu i
va i pas sar uma rua” , dava ao “ f r eguês” ou t ro l ugar , ma i s d i s t an t e ,
quando o “ f r eguês” i a p ra ou t ro l ugar , e l e s j á pegava aque l e que
t ava p ron t i nho e v end ia , e f o i f i cando a s s im , f i cando a s s im , a t é que
f o i um d ia o povo deu p ra r ec lamar , [ . . . ] a í , o f i nado Juvênc io , que
morava aqu i , f o i l á na Cap i tan ia , a í e l e chegou l á , con tou o caso ,
a í , v e io um o f i c i o p ra nós , [ . . . ] i s so a í j á f o i depo i s que o s homens
f o ram tudo l á , a í quando eu f u i e l e s j á mandou uma car ta e d i s s e
“ó , dona De jan i ra , a s enhora conhece e s se s f r eguês” , eu f a l e i
“conheço” , a s enhora l e va e s sas duas car ta s , e dá uma ao Cap i tão
S inópo l i s , e dá ou t ra a Tomas , mas a s enhora não dá a n inguém pra
en t r egar a e l e s , a s enhora en t r egue a e l e s , não p ra ou t ro , a í eu
v im , f u i l á no I t apema , de scobr i e l e s l á , en t r egue i a s car ta s , a í
f i l ho , da í p ra cá , Deus a judou que o povo de i xou de pe r segu i r a
gen t e com h i s t ó r ia de t i ra r a gen t e daqu i , [ . . . ] a í a Cap i t an ia
t ambém ve io aqu i , f a lo com nós , que i s so aqu i e ra p ra s e r da Base
(Base aé rea de San tos ) , t i nha o s poços , o s t anques , a l i do l ad inho
13 Idem a nota 1.
10
da maré , a l i , do l ad inho aonde e l e s f i z e ram os e s t a l e i ro s de pe sca ,
a l i t i nha uns t anques mu i to bon i t o s , que e ra da base , d i z que e ra
p ra s e r a Base , mas depo i s t rocaram o t e r reno daqu i por aque l e de
l á onde a Base ho j e é hab i t ada , a l i , naque l e pedaço . . .” . 1 4
-A gen t e não l embra quem e ra , mas e s se s caras quer iam
expu l sar a gen t e . A ún i ca co i sa que eu me l embro é que num d ia de
domingo de manhã e s távamos l á [ . . . ] , e encos tou uma lancha , e o
cara que t ava na l ancha de sceu na a re ia e pe rgun tou s e t i nha
gen t e , s e o meu pa i e s t ava , m inha mãe d i s s e que e l e só vo l t ava de
t a rde , e e l e f i cou de vo l t a r e d i s s e que e l e s e ram donos da á rea
onde e s tava o s í t i o . Pas sado um t empo , num d ia de sábado , a gen t e
t i nha s e a r rumado para i r a s s i s t i r a m i s sa na Ig re ja Ma t r i z e
chegou e s sa mesma lancha a zu l , meu pa i conv idou e l e s p ra t omar
um ca f é , da í eu ouv i e l e f a la p ro meu pa i : “o lha , nós e s t amos
av i sando o s enhor p ra vocês não mexerem ma i s nas ma tas , não
p lan ta r ma i s nada , que e s sa á rea é uma área par t i cu la r , e
f u tu ramen te e s sa á rea , n inguém poderá ma i s f i ca r morando ne la” .
Meu pa i con t e s tou d i z endo que aque la á rea e ra do pa i de l e , que
morava l á de sde 1898 . Os caras d i s s e ram novamen te que não e ra
p ra p lan ta r ma i s nada , meu pa i r e t rucou , e f i cou naque la
d i s cus são , e e l e s f o ram embora d i z endo p ro meu pa i p rocurar não
s e i quem. Minha mãe f i cou com medo , e v i e ram ma i s uma ve z . Da í
depo i s eu ouv i meu pa i f a lando p ra m inha mãe que o s caras
e s t avam a f im de t i ra r mesmo e l e s da l i .Chegou um d ia , nós sa ímos
para um casamen to de uma t i a , t i a N i ca (Emí l i a ) , vo l t amos do i s
d ia s depo i s e t i nham dado um t i ro no cachorro , na por ta de casa . 1 5
Após a f i xação no ba i r ro , a p róp r i a pe rmanênc i a e r a d i f í c i l ,
po i s d ive r sos e s t r a t agemas como os a c ima expos to s e r am u t i l i z ados
po r pe s soas ou g rupos i n t e r e s sados na á r ea .
O ca r á t e r de s se s e s t r a t agemas é d i f e r enc i ado de aco rdo com o
morado r e a época . Todos t êm uma h i s t ó r i a e a l guém, ou a lgumas
pe s soas que t en t a r am em de t e rminada época t i r a r p rove i t o da
14 Idem a nota 47.15 Idem nota 27.
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i ngenu idade no t ocan t e à pos se da t e r r a . E novamen te e s sa s i t uação
fo i p rop i c i ada pe l a compl i cada ques t ão da á r ea s e r ou não da
Un ião , de o s morado re s t e r em ou não a lgum d i r e i t o sob re e l a .
De aco rdo com os depo imen tos l evan t ados , é no t áve l ho j e o
g r au de conv i cção que a ma io r pa r t e dos an t i gos morado re s t em
com re spe i t o ao f a to da t e r r a não s e r , l ega lmen t e de l e s :
“e s e i que a gen t e va i v i v endo , e s e por acaso aparece r dono
que i nden i z e e s se s nos sos anos de d i f i cu ldade , porque nós v i v emos
uma v ida , a gen t e não s e cons ide ra i nvasor . Nós e s tamos morando
no s i t i o .” 1 6
. “ . . . e eu gos ta r ia s e eu pudes se s e r o v e rdade i ro dono daqu i ,
porque eu gos to mu i to daqu i , e nós e s t amos aqu i , mas não sabemos
o que pode acon t ece r , porque s e f o s se uma g l eba de t e r ra de um
par t i cu la r j á t i nha l o t eado t udo , mas como é da Un ião , en tão nós
e s tamos aguardando o que va i acon t ece r , agora não é c e r to a gen t e
pe rder nos so d inhe i ro [ . . . ] E na Conce i çãoz inha , mu i ta gen t e f o i
avançando , eu não avance i , eu compre i e f i que i , e f a z ma i s de
t r i n ta anos que eu e s tou v i vendo na Conce i çãoz inha .” 1 7
A mesma conv i cção que o s morado re s t em no en t end imen to de
que a t e r r a não é , po r d i r e i t o l ega l , de l e s , e l e s t em em a f i rma r a
“pos se de f a to” , dev ido à s d i f i cu ldades pa s sadas po r e l e s pa r a s e
e s t abe l ece r na comun idade .
A a tuação de mi l i t ânc i a po l í t i c a no Ba i r ro va i i n f l uenc i a r mu i to
a noção dos morado re s de que a pos se “de f a to” s e r i a de l e s .
“ . . . começa com a v inda da Edmé ia Ladewig (a s s i s t en t e
soc ia l ) , com o pe s soa l do Pro j e to Rondon . E la começa a t raba lhar
com os pe scadore s , para t rans fo rmar o S í t i o Conce i çãoz inha numa
agrov i l a . Da í começam as d i s cus sões com a comun idade sobre a
pos se da t e r ra , o rgan i zação da pe sca , e e s sas i dé ia s a judam na
c r iação da Soc i edade de Me lhoramen tos da Conce i çãoz inha
(SOMECON) . Também nes sa mesma época , a Edmé ia t en ta f o rmar
j un to com os pe scadore s uma as soc iação de pe scadore s , para que
16 Idem a nota 47.17 Idem a nota 4.
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pudes sem en t rar em con ta to com a sua cu l t u ra e que a pe sca f i z e s se
par t e da r enda f ami l i a r . Fundam a Un ião dos pe scadore s
(UNIPESC) , mas que não e s tava j u r id i camen te l ega l i zada por f a l t a
de i n s t rumen tos e por a inda e s ta r em per íodo de D i tadura Mi l i t a r .
Freqüen t emen t e a Base Aérea e s tava cadas t rando a s pe s soas do
S í t i o , po i s s e d i z i a p ropr i e tá r ia da á rea , e i am cons t ru i r um
aeropor to naque la á rea . Sendo a s s im a SOMECON consegu iu s e r
l ega l i zada em 79 /80 , j á a UNIPESC só f o i l ega l i zada em 1996” . 1 8
No depo imen to ac ima , é v i s í ve l a i n f l uênc i a de i nd iv íduos
e s t r anhos a comun idade na o rgan i zação da mesma . ( a pe s soa c i t ada ,
Edmé ia Ladewig , f o i impor t an t e quad ro do Pa r t i do dos
T raba lhado re s na década de o i t en t a . Fa l eceu no ano de ________) .
Es sa i n f l uênc i a va i s e f a ze r s en t i r na fo rmação da ma io r
l i de r ança comun i t á r i a do ba i r ro , Newton Ra fae l Gonça lve s , que
exe rce p r e sença cons t an t e em todas a s d i s cus sões pe r t i nen t e s a
s i t uação da comun idade . No tamos , como no depo imen to em
ques t ão , a d i f e r ença no e s t i l o da f a l a , ma i s po l i t i z ado , e ma i s
enga j ado em uma de fe sa da comun idade e da s t r ad i ções cu l t u r a i s .
A inda ho j e a á r ea é uma á r ea em l i t í g io , s em uma de f i n i ção de
pos se ou p rop r i edade f avo ráve l ao s morado re s , que , en t r e t an to ,
pe r s i s t em na d i spu t a , s e r e cusando a s a i r .
18 Idem a nota 27
13