“a serviÇo da rainha”: inteligÊncia e espionagem … · 2019-10-28 · espionagem e...
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“A SERVIÇO DA RAINHA”: INTELIGÊNCIA E ESPIONAGEM BRITÂNICA
NA II GUERRA MUNDIAL
Raquel Anne Lima de Assis
Doutoranda em História Comparada pela UFRJ
Integrante do Grupo de Estudo do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq)
Email: [email protected]
Orientador: Dr. Dilton Cândido S. Maynard (UFS/DHI)
Introdução
Foi durante a Segunda Guerra Mundial que o serviço secreto britânico se
institucionalizou e se profissionalizou. Duas agências eram responsáveis pela
espionagem e inteligência britânica: a “Secret Intelligence Service” (SIS ou MI6),
criada em 1909, e a “Special Operations Executive” (SOE), surgida em 1940. A
primeira tinha como principal função Operações de Inteligência (coleta e análise de
informações para uso estratégico das Forças Armadas), enquanto a segunda, Operações
Especiais, ou seja, sabotagem e guerrilha atrás das linhas inimigas. Mas isso não
impediu que o SOE empreendesse também a coleta de informações.
O próprio SOE nasceu do SIS, que possuía um setor chamando Section D
responsável por ações de sabotagem e guerrilha. Mas, devido à algumas falhas deste
setor, o governo britânico decidiu concentrar essas Operações Especiais em uma nova
instituição, o SOE (O’CONNOR, 2014, p. 15-6). Essa agência estava encarregada de
enviar agentes aos territórios ocupados pelo Eixo com o objetivo de organizar e treinar
movimentos de resistência em ações subversivas. Ambos os órgãos trabalharam em
conjunto, pois os agentes do SOE ao coletar informações repassavam para o SIS, que
era o responsável pelas redes de comunicação wireless:
Com todos esses agentes da SOE se esforçando para manter regular wireless
e outras comunicações. Isto resulta que uma grande quantidade de
informações é enviada de volta por estes agentes, dos quais todos são
transmitidos através do SIS. Para alguns territórios mais informações são na
realidade recebidos mais do SOE que do SIS, porque acontece deles serem mais numerosos naquele país (Ministry of Economic Warfare, Berkeley
Square, W.1, 31st March, 1942, Tradução Nossa)1.
1 “With all these agents S.O.E. endevour to keep up regular wireless and other communiction. It results
from this that a great deal of information is sent back by these agents, all of which is transmitted through
S.I.S. For some territories more information is actually received from S.O.E. than from S.I.S. agents,
because they happen to be more nomerous in thay country”.
Entretanto, coleta de informações precisava de sigilo e, para o SIS, ao
empreender as ações subversivas o SOE poderia gerar o aumento da segurança inimiga.
Tal cenário gerou a insatisfação do SIS que, na visão do SOE passou a dificultar
algumas de suas ações.
Diante deste cenário, o objetivo deste trabalho é analisar aspectos do serviço
secreto britânico. Através de uma discussão historiográfica sobre o SOE procuraremos
entender como é feita a leitura sobre suas ações e que caminhos foram ou não
percorridos por estes autores ao compararmos com a documentação oficial da agência
(Special Operations Executive (SOE) organisation: relations between SOE and the
Secret Intelligence Service (SIS)). No primeiro momento a pesquisa tinha como
propósito entender como esta agência contribuiu para vitória dos Aliados durante a
Segunda Guerra Mundial. Para isto, tentou-se analisar a influência que suas ações
tinham no cenário internacional e na balança de poder. Acreditávamos que a teoria
realista nos ajudaria a responder tal questionamento ao utilizá-la para explicar as
consequências das operações dessa instituição nos centros de operações.
Notas sobre a teoria realista e suas lacunas
Fazendo uso do conceito de segurança, dentro da perspectiva realista, é um
termo, em poucas palavras, visto como proteção contra ameaças de invasões por meio
da capacidade técnica e militar (PONTES, 2015, p.12). Assim, “a soberania nacional e o
equilíbrio de poderes, que são distribuídos entre os diversos Estados, estão
indiscutivelmente associados ao que se entende por segurança” (PONTES, 2015, p.12).
Estudos de segurança e defesa fazem parte de um subcampo das Relações
Internacionais que tem no realismo uma de suas linhas teóricas. Seguindo o paradigma
de Tomas Hobbes que defende o estado de natureza do homem da “guerra de todos
contra todos” e a necessidade de criação de um Estado para controlar esse contexto de
anarquia (HOBBES, 2014), o realismo aplica tal concepção para as Relações
Internacionais e a segurança nacional. Tal perspectiva defende que na arena
internacional os Estados lutam entre si, fazendo da diplomacia e da guerra os principais
meios para alcançar as causas nacionais.
Sendo assim, a teoria realista entende segurança e defesa como a salvaguarda
contra ameaças externas através das disputas de poderes. Ou seja, segundo Helga
Haftendorn, para o realismo as relações entre os Estados são reguladas através de
interesses e uma balança de poder em que se sobressaem aqueles com poder
suficientemente coerente e forte (HAFTENDORN, 1990, p. 07).
Portanto, segundo Stephen M. Walt, os estudos de segurança são definidos como
os estudos da ameaça, uso e controle da força militar para garantir a independência,
soberania e fronteiras dos Estados. Trata-se de explorar as condições que “fazem o uso
da força mais provável, as maneiras que a força afeta os indivíduos, Estados e
sociedades, e as políticas específicas que os Estados adotam para preparar, prevenir e
empreender uma guerra” (WALT, 1991, p. 212). Contudo, ainda conforme o autor,
apesar das ameaças militares serem os perigos mais sérios enfrentados pelos Estados em
sua segurança nacional, não são os únicos (1991, p. 213). Como exemplo, podemos
citar o controle de armas, diplomacia, gestão de crises, agendas econômicas e
ecológicas, entre outros.
Entretanto, questionamentos ficaram em aberto e respostas não foram
encontradas. Tentamos seguir o caminho que a historiografia sobre o SOE já percorreu
de entender o que aconteceu e as estratégias utilizadas para vencer a guerra. Assim
como a literatura sobre o tema, tentamos identificar qual o peso que o SOE tinha neste
cenário internacional de disputas entre os Estados, vista neste perspectiva de conflitos
entre si pela busca de interesses nacionais. Em outras palavras, uma abordagem em que
o SOE é colocado como uma ferramenta para exercer poder sobre outros países.
Contudo, através de um estudo historiográfico e da própria documentação percebemos
como ainda não foi possível medir o real alcance da efetividade estratégica do serviço
secreto para a vitória dos Aliados.
Não negamos que casos como a máquina Ultra foram importantes ao
transformar a Inglaterra superior na decodificação de sinais, capaz de decodificar
mensagens alemãs do codificador Enigma. Parte do seu sucesso foi graças também pela
capacidade de manter segredo sobre esse triunfo, pois, os alemães não desconfiaram que
seus códigos tinham sido desvendados. Isso ajudou os ingleses a vencerem as batalhas
no Atlântico (HASTING, 2015, p.195).
Mas diversas ações ainda nos deixam lacunas. No “SOE Organisation:
Relations between S.O.E & ‘C’” temos uma compilação de documentos oficiais
produzido pelo SOE relatando os conflitos que essa agência tinha com SIS durante a
guerra. Na percepção do SOE, o SIS estaria prejudicando suas ações, como o exemplo
na Dinamarca em que o SIS tentou subornar agentes treinados e cultivados pelo SOE a
seu favor:
Senhor W., um proeminente homem de negócio com especiais facilidades
para viajar entre Suécia e Noruega, trabalhou por cinco semanas com o SOE.
Ele foi seduzido para trabalhar com a organização P.C.O. sendo dito que seus
ex-associados eram muito perigosos e seguramente o colocaria na cadeia (Norway: Lack of Co-operation & Obstruction by, Tradução Nossa)2.
Mas até que ponto esse caso influenciou na ação dos Aliados? Prejudicou ou
ajudou de alguma forma a ação e a segurança dos Aliados? Questionamentos ficaram
em aberto também no trabalho de Zoltan Peterecz sobre a Operação SPARROW do OSS
(Office of Strategic Services – agência de inteligência norte-americana na II Guerra).
Esta missão tinha como objetivo enviar agentes secretos para a Hungria com o objetivo
de coletar informações, em 1944. Entretanto, segundo o autor, os húngaros estavam
dispostos a um acordo de paz em separado com os países anglo-saxônicos e a entrar em
conflito com a Alemanha.
Estas negociações não se efetivaram, pois a Alemanha invadiu o território
húngaro antes disto. Hitler já possuía a intenção de atacar, pois os húngaros ao
perceberem que a derrota alemã estava próxima resolveram não entregar os judeus aos
nazistas (EVANS, 2012). Mas, ao descobrir os planos da inteligência norte-americana
de entrar em acordo com a Hungria resolveu prosseguir com o desejado:
A contra inteligência alemã, portanto, sabia o que estava por vir. Eles foram
capazes de ler alguns dos telegramas americanos que entravam e saíam de
Berna e estavam bem informados sobre os objetivos de seu satélite desleal.
Isso certamente minaria qualquer ação conjunta tomada pelo OSS e o
governo da Hungria (PETERECZ, 2012, p. 252, Tradução Nossa).
2 “Mr. W., a prminent business man with special facilities for travelling between Sweden and Norway,
worked for five weeks with S.O.E. He was then inveigled into working for the P.C.O.’s organization by
being told that his former associates were very dangerous and would assuredly land him in jail”.
Diante deste cenário, Zoltan Peterecz levanta o questionamento se essa de fato
não foi a intenção dos EUA, ou seja, que a Hungria fosse ocupada pela Alemanha. Para
o autor, o principal interesse dos norte-americanos era vencer a guerra, mesmo se
necessário exercendo pressão sobre os países satélites. Quando os alemães invadiram o
território húngaro, três divisões que seriam utilizadas no momento do desembarque da
Normandia foram transferidas para este território, enfraquecendo, assim, as tropas
alemãs na França (2012, p. 255-6). Em outras palavras, é levantada a possibilidade de
que o OSS agiu para oferecer “provas” a Hitler que os húngaros queriam uma paz em
separado, e desta forma, o levaria a atacar. Portanto, uma perspectiva realista do uso de
um pragmatismo para alcançar seus interesses.
Percebemos a preocupação do autor em analisar a influência do serviço secreto
norte-americano no cenário internacional em uma busca dos EUA pelos seus interesses
nacionais. Contudo, esta análise encontra um limite, pois não se tem a resposta até que
ponto foi uma ação racional de impedir que tropas nazistas chegassem no front francês,
isto é, uma perspectiva realista, ou se realmente foi uma falha que acabou contribuindo
ao acaso.
Voltando para o serviço secreto britânico, percebemos tal limitação também no
trabalho de M.R.D Foot “SOE: An outline history of the Special Operations Executive
1940-46”. O autor faz uma importante contribuição apresentando como o SOE surgiu,
quais suas principais funções, quem eram seus líderes, como estava organizado, quais os
tipos de treinamentos e suas atividades em alguns teatros de operações. Aborda também
a relação conflituosa com o SIS, que segundo o autor, o SOE queria promover distração
militar e agitação civil em áreas onde o SIS queria mais paz (1984, p. 87).
Contudo, Foot afirma que o SOE foi uma ferramenta política com influência não
apenas durante a guerra, mas também depois. Houve pouca participação na política
doméstica britânica, pois era uma agência com um propósito, destruir os nazistas e seus
aliados (1984, p. 148-9). Portanto, o órgão possuía uma maior influência no exterior.
Para o autor, o SOE ajudou a aproximar a vitória ao utilizar da impopularidade do Eixo
entre a população local através de meios clandestinos, isto é, diferente das guerras
regulares com artilharia pesada, seus agentes fariam uso de armadilhas, como a
sabotagem em veículos, ferrovias, estradas e pontes, por exemplo (1984 p. 23). Assim,
criar uma confusão e irritação no inimigo.
Não negamos essa contribuição do SOE, mas o autor não responde até que ponto
isso ajudou na vitória dos Aliados. De fato, no desembarque da Normandia em 1944,
Dia D, houve uma ação conjunta entre o SOE e OSS que através de sabotagem e
guerrilha conseguiram atrasar a chegada de tropas inimigas nas praias e ao coletarem
informações que foram utilizadas pela inteligência para elaborarem estratégias das
Forças Armadas.
Segundo Michael Herman, a superioridade da inteligência dos Aliados foi
importante para o sucesso estratégico no desembarque da Normandia (1996, p. 150). A
inteligência foi capaz de neutralizar algumas vantagens dos alemães. Isso demonstra
que a espionagem pode ser utilizada tanto para a defesa de um território, na preparação
de emboscadas, como para atacar o inimigo.
Pensar que a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra moderna, pautada na
velocidade demonstra a importância das vias de comunicação. Logo, sabotagem em
estradas e ferrovias tinha sua importância. Contudo, Foot não consegue mensurar
quantas destas foram destruídas, qual o nível de participação da população local na
resistência e quantas tropas inimigas não conseguiram chegar no front de batalha. O
autor além de ser historiador era também um ex-agente SOE, logo, podemos nos
questionar que narrativa ele pretende abordar em seu trabalho. A sua leitura dos fatos
estaria influenciada pela construção de uma memória de resistência, principalmente em
relação aos franceses? E o colaboracionismo de Vichy?
Essas respostas ficam em aberto devido à limitação de sua abordagem voltada
para as estratégias utilizadas com foco na vitória dos Aliados. Autores contemporâneos
também estão preocupados principalmente com o peso que o SOE tem nas relações
internacionais durante o conflito. Neville Wylie analisa as pretensões iniciais de guerra
política do SOE com o objetivo de organizar um levante popular contra o regime nazista
em territórios ocupados. Entretanto, a Europa não seria um foco ardente de resistência
capaz de levar a uma situação revolucionária, fazendo com que o SOE adotasse uma
ação mais militar através de seus exércitos secretos de sabotadores (2005, p. 102).
Isso não levou a uma completa despolitização da agência. Além de conflitos
com outros departamentos internos, como o próprio SIS, houve tensões diplomáticas
com países neutros. O SOE mantinha acordos com indivíduos e grupos clandestinos
contrários as políticas dos seus respectivos governos (WYLIE, 2005, p. 102).
Conforme o autor, suas ações tinham implicações políticas, pois as atividades da
agência entrava em atrito com os interesses do Ministério das Relações Exteriores ao
forjar contato com círculos políticos dissidentes na Europa (2005, p. 103).
Agindo como diplomatas irregulares em territórios neutros eles tentavam colocar
em prática sua guerra política de preparar grupos clandestinos em técnicas de guerrilha
e sabotagem caso o país fosse invadindo. Assim, seriam preparados para fazerem
oposição ao governo inimigo. Contudo, por ser uma “guerra política irregular” não
estava em consonância com a política de Estado do Ministério das Relações Exteriores,
como na Espanha, por exemplo. As relações com o regime de Franco fez com que o
embaixador, Sir Samuel Hoare tentasse controlar todas atividades do SOE e proibiu
ações que envolvessem a colaboração com a oposição republicana na Espanha (WYLIE,
2005, p. 106).
A partir das análises Neville Wylie percebemos mais algumas lacunas. O autor
levanta questionamentos sobre a razão para o SOE agir através da guerra política: teria
o SOE acreditado no efetivo resultado de suas ações ou estaria tentando justificar sua
exigência diante de diversos fracassos no cenário de operações? O autor afirma que: “as
vantagens que Londres poderia ter obtido com os preparativos militares da SOE nos
países neutros, ou em seus serviços políticos, naturalmente diminuíram” (2005, p. 110).
Concluindo, assim, que “a incursão da SOE no campo da guerra política ou da
diplomacia irregular durante a Segunda Guerra Mundial dificilmente pode ser
considerada um sucesso” (2005, p. 166). Contudo, pouco foi se falado da contribuição
militar do órgão.
Seguindo também esta preocupação de analisar a influência do SOE nas relações
internacionais, Pia Molander estuda a ação da agência na Suécia, também um país
neutro. Neste contexto, o objetivo era empreender uma guerra econômica através da
coleta de informações sobre o comércio de minério entre os alemães e suecos. O
objetivo do SOE era empreender possíveis sabotagens contra embarques alemães de
minério de ferro e, assim, interromper o suprimento sueco para a Alemanha (2007, p.
729).
Conforme a autora, os serviços de inteligência também contribuíram com
o uso de transmissões de estações de rádio suecas como um canal para
mensagens entre a Grã-Bretanha e as forças de resistência na Noruega e na
Dinamarca. Juntamente com o Escritório Americano de Serviços
Estratégicos, a SOE foi, é claro, o principal intermediário dessas redes de
resistência. Suprimentos de armas, explosivos e equipamentos foram
armazenados clandestinamente na Suécia em vários locais do interior e
também em Estocolmo (...). Esses suprimentos foram finalmente utilizados na Noruega na guerra de guerrilha contra colunas alemãs no norte e em
ataques contínuos de sabotagem contra linhas ferroviárias que ligavam Oslo a
portos ao longo da costa sul da Noruega (2007, p. 734, Tradução Nossa).
A prioridade do SOE na Suécia era obstruir a exportação de minério para os
alemães, assim como “interromper a entrega de suprimentos às forças alemãs na
Noruega e na Dinamarca” (MOLANDER, 2007, p. 738). Contudo, suas ações
embarravam em tensões com a embaixada que não estava disposta arriscar a
neutralidade sueca na guerra, assim como a prioridade operacional que o SIS obteve no
território sueco. Tais medidas limitaram o trabalho do SOE a criar organizações
paramilitares em caso de ocupação, o que não ocorreu.
Conforme a autora, atividades exploratórias e operações secretas limitadas
foram toleradas à medida que a embaixada percebeu a importância do SOE na região e
pela probabilidade de vitória Aliada contra o Eixo. Entretanto, ainda sob as restrições da
embaixada inglesa: “a comunidade de inteligência britânica era obrigada a limitar as
atividades na Suécia aos domínios da coleta de informações, propaganda e guerra
política” (2007, p. 739). Com esta análise a pergunta permanece: o SOE contribuiu para
a vitória dos Aliados? Percebemos aqui mais uma tentativa de medir o peso do SOE no
cenário internacional como ferramenta de pressão política sobre outro Estado.
Esses são alguns dos autores que demonstram o caminho que a historiografia do
SOE tenta seguir, entender sua estratégia durante a II Guerra Mundial. A partir deste
debate bibliográfico percebemos que lacunas ficaram em aberto ao tentar medir a real
contribuição deste serviço secreto nas relações internacionais. Ou seja, não conseguem
responder como a agência de fato ajudou a vencer a guerra, pois estão presos em
análises do cenário internacional de uma perspectiva voltada para uma racionalidade da
instituição. A ideia de uma racionalidade nas relações internacionais pode ser explicada
pela teoria realista. Nesta análise, o Estado ao detectar as ameaças aos seus interesses
nacionais cria um conjunto de medidas e ações para preservar ou criar uma ordem
adequada para atender seus interesses e valores através do uso da força se necessário
(NOGAMI; RUDZIT, 2010).
Na totalidade dos interesses do Estado está a Política de Segurança Nacional.
Segundo Gunther Rudzit e Otto Nogami, “é nesta esfera que são articuladas tantos os
interesses nacionais mais amplos, quanto os objetivos do país e os meios (militares,
econômicos, sociais e políticos) que serão usados a fim de promover e protegê-los”
(2010, p. 12). Ainda conforme os autores, “as várias políticas setoriais - saúdes,
impostos, comércio exterior, agricultura, imigração, educação, defesa – representam
diferentes segmentos da ‘teia-aranha’, que juntos expressam os interesses políticos e de
segurança nacional” (2010, p.12-3).
Esses interesses nacionais são os motivos que um Estado estaria disposto a
enfrentar uma guerra, portanto, eles constituem os elementos da política de defesa deste
país. Ao identificar as ameaças a esses interesses são pensadas as estratégias necessárias
para impedi-las. Em consequência, serão definidas as políticas, ações e recursos de todo
o Estado para alcançar esses objetivos, ou seja, não se limita as áreas militares.
Portanto, ainda na concepção dos autores, percebemos como esses Estados
passam por um processo de identificar e definir seus interesses, objetivos e ameaças. A
partir destas percepções são estabelecidas as responsabilidades militares para alcançar
os objetivos militares. Em outras palavras, trata-se da racionalização dos meios a serem
empregados e o efetivo controle dos meios militares pelo comando civil. Essas
definições estabelecem as capacidades militares específicas para a execução das
missões (2010, p. 13).
Entretanto, por trás de um órgão governamental temos indivíduos com paixões,
interesses e que visualizam as relações de poder entre os Estados e seus interesses de
forma limitada. Desta forma, podemos perceber que outros caminhos poderiam ser
seguidos para além da ação ou da estratégia adotada. Novos questionamentos foram
levantados e que não foram tratados com certo aprofundamento nestes trabalhos. Dentre
eles estão: qual a leitura que o SOE faz de suas ações? Qual a perspectiva que a agência
tinha de suas atividades? O que nos leva a pensar: que narrativa tenta-se construir na
historiografia sobre o assunto e como podemos comparar com a narrativa da própria
instituição?
Uma nova problemática
A própria documentação nos leva a essa problemática, pois não conseguimos
medir a real contribuição do SOE para a vitória dos Aliados. Entendemos que esses
documentos foram redigidos por funcionários que estavam imersos em um contexto de
guerra. Conflitos internos perpassavam seu cotidiano, desta forma, não haveria uma
tentativa de justificar as ações de sua agência? Qual imagem eles pretendiam passar
sobre o SOE? Como o próprio órgão se via no contexto da guerra? Assim,
abandonamos a ideia de entender seu peso na balança de poder das relações
internacionais para compreender a leitura que a própria agência fazia de si nesta
documentação, ou que pelo menos tentava transparecer.
No “SOE Organisation: Relations between S.O.E & ‘C’” o principal tema
tratado são os conflitos internos entre o SIS e SOE e possíveis soluções para o
problema. Como muitos documentos foram redigidos por funcionários do SOE, temos
aqui a perspectiva que eles tinham da instituição, portanto, podemos analisar a leitura
que a organização fazia sobre ela mesma e sobre a outra, o SIS. É possível tentarmos
entender a autoimagem que o SOE tentava apresentar, assim como a imagem do outro.
Na tentativa de encontrar as causas para os conflitos entre ambas as agências,
inicialmente tenta-se atribuir a problemas estruturais de todo o sistema para
possivelmente não comprometer ambas as instituições: “para minha mente isto não é
culpa de um individuo, isso é o sistema necessitando de alguns ajustes para encontrar a
presente circunstâncias” (Ministry of Economic Warfare, Berkeley Square, W.1, 31st
March, 1942, Tradução Nossa)3. Esta era a visão de um funcionário indicado pelo
Primeiro Ministro e encarregado de investigar as razões para tais tensões, que escreveu
para o Ministério da Economia de Guerra, órgão responsável pelo SOE. Teria a agência
a mesma visão? Que papel ela lhe atribuía?
3 “Tom my mind it is not that any one individual is to blame; it is that the system needs some adjustment
to meet the presente circumstances.”
O mesmo tenta transparecer a importância do SOE ao afirmar que 300 homens
eram treinados e enviados para os teatros de operações e como era importante que
trabalhassem em conjunto com o SIS:
por alguns meses atrás nós tínhamos três agentes trabalhando em Madagascar
com contínua comunicação wireless sendo mantida enquanto que eu fui
informado que o SIS tinha nenhum agente lá. Em consequência, o Serviço
estava obtendo todas suas informações que dizem respeito a Madagascar do
SOE. Havia, portanto, uma inevitável sobreposição entre SOE e SIS que
significa que os dois Serviços deveriam trabalhar em harmonia (Ministry of
Economic Warfare, Berkeley Square, W.1, 31st March, 1942, Tradução Nossa)4.
Em contraposição temos uma minuta redigida pelo próprio SOE para o Ministro
relatado seus problemas com o SIS. Inicialmente é relatado o nascimento do SOE que
originou-se da Section D sob o controle do “senhor Dalton”, Ministro da Economia de
Guerra. A organização estaria dividida entre duas funções: S.O. 1 para realizar
propaganda subversiva e S.O.2 responsável por todas outras atividades subversivas,
como sabotagem e guerrilha. Ainda conforme a documentação, foi desenvolvido uma
relação próxima com diversos departamentos do governo, principalmente o “C”5 (SIS).
É relatado que o “Relatório de Progresso Interno”, contendo os detalhes das
atividades do SOE, era apresentado ao SIS de forma a mostra-lhe que “que as duas
organizações deveriam trabalhar o mais próximo de cooperação” (Minute, 27th March,
19, Tradução Nossa). Essas afirmações nos fazem pensar se estes funcionários do SOE
não tinham a intenção de se apresentar como cooperativos e abertos a um trabalho de
equipe em nome de um interesse maior do Estado britânico.
É colocada a também a dependência que o SOE tinha do SIS em relação as
linhas de transmissão wireless e reivindicam o direito de organizar suas próprias linhas
de comunicação. Na sua visão, o SOE seria capaz de administrar corretamente tais
comunicações, não colocaria em perigo a segurança do “C” e melhoraria as relações
entre ambos por não precisar incomodar “(...) com menores queixas baseadas em
4 “For some months past we have had three agents working in Madagascar with whom continous wireless
communication has been maintained, whereas I am informed that S.I.S have no agent there. In
consequence, the Services are getting all their information in regard to Madagascar from S.O.E. There is,
therefore, an inevitable overlap between S.O.E. and S.I.S. which means that the two Services must work
in harmony”. 5 “C” era a forma como o chefe do SIS eram chamado.
preocupações de nosso próprio interesse sendo subordinadas para ele” (Minute, 27th
March, 19, Tradução Nossa)6. Isso nos demonstra como o SOE tentava apresentar uma
imagem de que era um órgão responsável e autônomo, não precisando ficar sob a tutela
do SIS.
Essa impressão também é percebida em relação à suas finanças. A agência
procura deixar claro que apesar seus recursos financeiros serem providenciados pelo
Tesouro do Escritório das Relações Exteriores através do “C”, estes dois departamentos
não possuem controle sobre seus gastos (Minute, 27th March, 19). Essa imagem
apresentada pelo SOE nos faz questionar porque o órgão tinha essa preocupação de
demonstrar não ser subordinado a outros. Tal reflexão nos faz pensar como o serviço
secreto britânico e os departamentos do governo britânico não mantinham uma coesão
entre si e não eram homogêneos, mesmo em contexto de guerra em que a Inglaterra
tinha um principal objetivo e inimigo, vencer a guerra contra os alemães.
Rebatendo claramente de que seriam “amadores” por empreenderem atividades
subversivas, o SOE afirma que:
nunca foi verdade que aquelas responsabilidades pelo SOE eram completa
amadoras em trabalho de serviço secreto. O próprio C.D. trabalhou para o
S.I.S. na Suécia do inicio da guerra até julho de 1940. O Coronel Taylor
trabalhou na original Section IX do S.I.S de maio de 1939 até o SOE ser
formado. Brigadeiro Gubbins tem tido um longo período de serviços na
Inteligência Militar na seção especial de “sabotagem” conhecida como “M.I.R.”. Eu mesmo não poderia dizer ser totalmente ignorante da máquina
do S.I.S. tendo estado em contato quase diariamente com eles por dois anos e
meio antes de me juntar ao senhor Dalton. Numa data posterior nos juntamos
ao Comodoro aéreo que foi Diretor de Inteligência no Ministério da
Aeronáutica, e tem um amplo e profundo conhecimento profissional de
trabalho de inteligência secreta. Muitos outros membros da organização
também serviram no passado como membros do SIS (Minute, 27th March,
19, Tradução Nossa)7.
6 “(...) with minor grievances based on complaints that our own interests were being subordinated to his” 7 “It was nevertrue that those responsible for S.O.E. were complete amateurs in secret service work. C.D.
himself worked for the S.I.S. in Switzerland from the beginnig of the war until July 1940. Colonel Taylor
worked in the original Section IX of the S.I.S. from May 1939 until S.O.E. was formed. Brigadier
Gubbins had had long periods of service both in the Military Intelligence and in the special ‘sabotage’ section know as ‘M.I.R.’, and Colonel Davies too, had served in M.I.R. I myself could not be said to be
entirely ignorant of the S.I.S. machine having been in almost daily contect with it for two and a half years
before joining Mr. Dalton. At a later date we were joined by Air Commodore Boyle who was Director of
Intelligence at the Air Ministry, and who has a very wide and indeed professional knowlegde of secret
intelligence work. Several other members of the organizations also served in the past as members of the
S.I.S.”.
Assim, o SOE tenta demonstrar que não são amadores no jogo do serviço
secreto e que não colocaria em perigo o trabalho do SIS. Afirmando, inclusive, que ao
contrário do SIS, eles estariam abertos ao diálogo para apresentar suas atividades, seus
treinamentos, suas instalações, as posições de seus agentes e suas informações pelo bem
geral da nação. Portanto, estaria o SOE tentando provar como ele é útil para o esforço
militar britânico na Segunda Guerra Mundial? Chegam também a declarar que o SIS
está atrapalhando o serviço secreto por se manter em um “um profundo mistério de
Mestre Espião”, em uma áurea “romântica”. Ou seja, mantem seus segredos guardados
até mesmo dos departamentos aliados, como o próprio SOE.
Desta forma, o SOE tem uma leitura de que eles são úteis, responsáveis e
abertos para trabalho em conjunto, ao contrário do SIS. Contudo, tal colaboração é
colocada sob certo limite, pois a agência se coloca contra com o SIS sob uma única
chefia ou ministério. Afirma que suas ações são diferentes, logo, a união prevaleceria o
um único interesse enquanto o outro seria negligenciado (Minute, 27th March, 19).
Percebemos mais uma vez a tentativa do SOE de demonstrar como é um órgão com
funções próprias e autônomo.
Nesta tentativa de responder qual leitura o SOE fazia sobre si chegamos a
algumas análises iniciais. Percebemos, a partir da documentação, como a agência tenta
se apresentar como um setor importante para o esforço de guerra da Inglaterra. Por ter
nascido do SIS, tenta se livrar de sua tutela, se apresentando como uma instituição
autônoma e responsável, capaz de gerar suas ações subversivas. Ao mesmo tempo se
coloca aberto ao diálogo com outros departamentos, que para o SOE, não é feito por
falta de cooperação desses outros setores. Assim, observamos como tensões internas
marcaram o Estado britânico na busca por interesses próprios em conjunto com a
preocupação de vencer a guerra. Ou seja, o SOE tinha como principal função ajudar a
derrotar a Alemanha, mas isto não nos leva a uma ideia automática de que havia uma
coesão entre as instituições, pois políticas internas e relações de poder entre si se faziam
também presentes.
Considerações finais
Com este trabalho podemos demonstrar o caminho teórico e metodológico que a
pesquisa esta tomando. Neste labirinto de ideias, demonstramos como os
questionamentos iniciais nos limitavam ao chegarmos em um “beco sem saída”. Mas, a
sensação de perda inicial foi também a percepção que novos caminhos precisavam ser
desbravados.
Portanto, com este trabalho, realizamos uma discussão historiográfica para
entendermos como a perspectiva das Teorias das Relações Internacionais deixaram
algumas lacunas. Reconhecemos a importância destes trabalhos na pesquisa sobre o
SOE, pois possuem seu valor científico e histórico, mas novas perguntas são feitas e
suas respostas não cabem nessa análise do cenário internacional. Diante disto, a
pesquisa toma um novo rumo para entender qual leitura que o SOE fazia de si como
instituição.
Fontes
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FO 1093/155. Former reference in its original department: O III/1(b). Subject: Special
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Intelligence Service (SIS). Date: 1940 Jul 19 - 1942 Nov 14).
Minute, 27th March, 1942. In: Reference: FO 1093/155. Former reference in its original
department: O III/1(b). Subject: Special Operations Executive (SOE) organisation:
relations between SOE and the Secret Intelligence Service (SIS). Date: 1940 Jul 19 -
1942 Nov 14).
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reference in its original department: O III/1(b). Subject: Special Operations Executive
(SOE) organisation: relations between SOE and the Secret Intelligence Service
(SIS). Date: 1940 Jul 19 - 1942 Nov 14).
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