arqueologia bíblica

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Arqueologia bíblica

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  • ARQUEOLOGIA

    BBLICA

  • 2 DANIEL SOTELO

  • 3ARQUEOLOGIA BBLICA

    Daniel Sotelo

    ARQUEOLOGIABBLICAUma introduo aos conceitos e tcnicas

    2008

  • 4 DANIEL SOTELO

    Copyright by Daniel Sotelo Copyright 2003 by FONTE EDITORIAL

    Superviso editorial:Eduardo de Proena

    Composio e arte final:Comp System - Tel.: 3106-3866

    Reviso:Luis Cludio Moreira

    Diagramao:Pr. Regino da Silva NogueiraCcero J. da SilvaTel.: (11) 3106-3866E-mail: [email protected]

    Capa:Eduardo de Proena

    ISBN 85-86671-23-1

    Proibida a reproduo total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrnicoe mecnico, inclusive atravs de processos xerogrficos, sem permisso expressa daeditora (Lei n 9.610 de 19.2.1998).

    Todos os direitos reservados

    FONTE EDITORIALRua Baro de Itapetininga, 140 - Loja 4Cep 01042-000 - So Paulo, SPTel.: (0xx11) 3151-4252E-mail: [email protected]

  • 5ARQUEOLOGIA BBLICA

    NDICE

    PREFCIO ....................................................................................... 7

    PARTE ICONCEITOS E TCNICAS

    1. USO E ABUSO DA ARQUEOLOGIA ................................... 13Arqueologia como tesouros achados .......................................... 15Arqueologia e a Bblia ................................................................ 16A arqueologia revela o passado .................................................. 20Artefato, cultura e comportamento humano ............................... 22Arqueologia e os textos ............................................................... 23Concluso .................................................................................... 26

    2. ESCAVAES .......................................................................... 27Buscas ......................................................................................... 28Metas e interdisciplinaridade ...................................................... 29Autorizao e financiamento ...................................................... 30O trabalho de campo ................................................................... 31O mtodo Wheeler/Kenyon......................................................... 32Provas .......................................................................................... 33

    3. SISTEMA DE MEMRIA ...................................................... 35Notas de campo ........................................................................... 35Planos .......................................................................................... 36Lminas ....................................................................................... 36Fotografias ................................................................................... 36Fotogrametria .............................................................................. 37Obstculos ................................................................................... 37Listas ........................................................................................... 37Concluso .................................................................................... 38

    4. ANLISE E INTERPRETAO ........................................... 39Cermicas .................................................................................... 40Moedas ........................................................................................ 41

  • 6 DANIEL SOTELO

    Outras evidncias ........................................................................ 42Restaurao ................................................................................. 43Relatrios .................................................................................... 44O futuro do trabalho de campo ................................................... 46

    PARTE IIAS CIDADES

    5. EBLA: CONTROVRSIA E PROMESSA ............................. 51A controvrsia ............................................................................. 52Promessas .................................................................................... 58Concluso .................................................................................... 60

    6. JERUSALM ............................................................................. 63O local ......................................................................................... 64Uma cidade, muitas paixes........................................................ 65A segunda chance ....................................................................... 67Sistema de gua ........................................................................... 68Outros achados ............................................................................ 71Um parque arqueolgico ............................................................. 72Concluso .................................................................................... 72

    7. CAFARNAUM, A CIDADE DE JESUS .................................. 75Introduo ................................................................................... 75A sinagoga................................................................................... 77

    A fachada ............................................................................... 79A arquitetura interior ............................................................. 79A datao ............................................................................... 81

    A casa octogonal ......................................................................... 87A questo em torno dos grafites ............................................ 88

    O ostracon ................................................................................... 90Concluso .................................................................................... 92

    8. NABRATEIN E SUA ARCA ..................................................... 95A Galilia e o mundo dos rabinos ............................................... 96O lugar ......................................................................................... 97A sinagoga................................................................................... 99A arca ........................................................................................ 101O futuro da arqueologia bblica ................................................ 103

    BIBLIOGRAFIA ........................................................................... 111

  • 7ARQUEOLOGIA BBLICA

    PREFCIO

    Em outubro de 2002, o fillogo francs Andr Lemaireanunciou a descoberta de uma urna funerria, datada do sculoI d.C. A pea estava em poder de um colecionador de antigui-dades de Jerusalm. Feito de pedra, o ossrio mede 50 centme-tros de comprimento, 25 de largura e 30 de altura. O que cha-mou ateno dos estudiosos, porm, foi uma inscrio na parteexterna da urna:

    Yakov, bar Yosef, Akhui di Yeshua

    (Tiago, filho de Jos, irmo de Jesus)

    Ossrio e o detalhe da inscrio

  • 8 DANIEL SOTELO

    Embora carea de comprovao, h fortes indcios de queo Jesus em questo o mesmo dos evangelhos. Se confirmadasua autenticidade, essa pode ser a mais antiga referncia escrita existncia de Jesus, e o mais extraordinrio achado arqueol-gico desde a descoberta acidental dos manuscritos do MarMorto, em 1947.

    A arqueologia bblica uma cincia nova. As primeiraspesquisas na Palestina ocorreram h pouco mais de um sculo.Nos ltimos 50 anos, contudo, os progressos nesse campo doconhecimento foram rpidos, com o emprego macio de com-putadores e o uso de sofisticadas tcnicas de datao.

    Por sua natureza especulativa, a arqueologia bblica con-centra-se, amide, na formulao de novas teorias. A tarefa queo arquelogo se prope a de relacionar, to satisfatoriamentequanto possvel, o significado dos achados aos relatos bblicos,o que nem sempre ocorre sem suscitar acirrada oposio. Mas preciso deixar claro, desde este ponto, que as controvrsias nasquais os especialistas muitas vezes se engalfinham em nadamudam o carter revelacional das Escrituras Sagradas. A ver-dade bblica prescinde de qualquer veredito cientfico.

    Reconstituir o contexto cultural, econmico, poltico ereligioso no qual se deram os eventos relatados na Bblia: essa a utilidade da arqueologia, tanto para o estudioso como parao fiel.

    O livro est dividido em duas partes. Na primeira (captu-los 1, 2, 3 e 4), o leitor apresentado aos conceitos bsicos daarqueologia e s tcnicas de escavao. Descrevemos o sistemade memria, com destaque para as notas de campo. Discutimos,ento, a relevncia dos relatrios e as dificuldades de se inter-pretar os achados arqueolgicos.

    Na segunda parte (captulos 5, 6, 7 e 8), apresentamos umgrupo de quatro stios e os projetos que eles abrigaram em anosrecentes. Cada captulo dedicado a uma cidade: Ebla (5),

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    Jerusalm (6), Cafarnaum (7) e Nabratein (8). O livro encerra-se com uma discusso sobre o futuro da arqueologia bblica.

    No tivemos a pretenso de escrever um livro-texto tra-dicional. Abandonamos deliberadamente a exposio didti-ca dos manuais de arqueologia bblica em favor de um trata-mento temtico. Queramos que o leitor travasse contato comas questes prticas da investigao arqueolgica, ao invs dese perder no emaranhado de teorias estreis e infindveis dis-cusses acadmicas. O efeito pretendido o de quem v umpainel e no o de quem l uma bula. Oxal, tenhamos alcana-do nosso objetivo.

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  • 11ARQUEOLOGIA BBLICA

    PARTE ICONCEITOS E TCNICAS

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  • 13ARQUEOLOGIA BBLICA

    USO E ABUSO DAARQUEOLOGIA

    Definir a arqueologia tarefa difcil. Entre as muitas defi-nies em uso, uma que se ajusta ao propsito deste trabalhoapresenta a arqueologia como o estudo do material perten-cente antiguidade. O conceito central que deve ser retidoaqui a idia de materialidade, intrnseca aos objetos (utens-lios, inscries, monumentos, edificaes etc.) encontradosnos stios arqueolgicos. Com efeito, a arqueologia vale-sedas evidncias materiais da existncia de um povo, cultura oucivilizao para explicar seu surgimento, evoluo, apogeu eeventual extino.

    O corpo de especialistas que se debrua sobre os artefa-tos arqueolgicos d a medida da complexidade e da abran-gncia da arqueologia. Palegrafos, fillogos, estudiosos danumismtica, arquitetos e especialistas em epigrafia unem-seno esforo para decifrar, catalogar, analisar, interpretar e explicaruma cultura, um lugar, um objeto. Como num quebra-cabe-as, uma a uma as partes vo sendo comparadas e encaixadas,at que uma imagem clara se forme e o mistrio se desfaa.As concluses, sempre provisrias, esto permanentementesujeitas a reviso.

    Um objeto que fornea evidncia de atividade humana: eiso jogo do arquelogo. Moedas, carimbos e registros de transa-es financeiras explicariam o comrcio de uma regio. Urnase cemitrios dariam pistas dos ritos funerrios de um povo.

    1

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    Assim, o trabalho inicial de identificar e classificar os obje-tos apenas o passo que antecede a tarefa mais difcil: compa-r-los com os de culturas similares, orden-los numa seqnciacronolgica e, por fim, relacion-los ao conhecimento prvioda antiguidade.

    O arquelogo, ento, formula hipteses que podem ouno se mostrar verdadeiras na tentativa de reconstituir a vidade um tempo e um espao que j no mais existem, traar odesenvolvimento de um povo que ficou para trs, conhecer,enfim, as diferentes respostas humanas s adversidades da vida.

    No que diz respeito Bblia, a contribuio da arqueolo-gia no est em emprestar validade s fontes literrias da reve-lao, mas em p-las num contexto. Da sua importncia paraExegese e a Teologia Bblica, para a Hermenutica e a TeologiaSistemtica.

    No se deve concluir, contudo, que a misso da arqueolo-gia a de resolver todas as questes. Suas limitaes so bemevidentes e somente um otimismo exagerado poderia levar aesperar dela respostas unvocas.

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    Arqueologia como tesouros achados

    Os primeiros exploradores foram movidos por interessespuramente pecunirios. Museus e colecionadores endinhei-rados formavam empresas para pilhar stios arqueolgicoscom o nico objetivo de abastecer suas colees particula-res. Essa verdadeira caa ao tesouro literalmente pulverizouvrios locais de valor arqueolgico no Oriente Mdio e emoutras regies.

    Antigos aventureiros em busca de tesouros

    Essa busca frentica alimentou-se da ganncia e da com-petio entre os exploradores. As escavaes eram conduzidaspor gente com pouca ou nenhuma qualificao e sem o dom-nio das tcnicas arqueolgicas, o que resultou na perda irrepa-rvel de preciosos registros.

    Felizmente, esse estado catico no perdurou por muitotempo. As escavaes e expedies arqueolgicas foram dei-xadas a cargo de profissionais treinados e sob a superviso deespecialistas, afastando colecionadores oportunistas e inescru-pulosos. A partir de ento, a tcnica passou a presidir a intro-misso do presente no passado.

    bom lembrar que os objetos encontrados no curso deuma escavao pertencem ao povo que os criou. So parte dotesouro cultural de uma nao, o que justifica a imposio delimites ao trabalho do arquelogo.

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    Arqueologia e a Bblia

    A arqueologia tem sido, erroneamente, usada para com-provar a veracidade da Bblia. Estudiosos a ela recorrem paraesclarecer questes controversas levantadas em torno dos rela-tos bblicos. Leitores fundamentalistas, que tomam a forma lite-rria por princpio teolgico para sustentar o valor histrico dasEscrituras, seriam vtimas da mesma crena. O equvoco com-parar verdades que esto em planos distintos e que no so pas-sveis de comparao.

    A verdade revelada prescinde de evidncia. Requer apenasque se tenha f. A verdade histrica apia-se, por seu lado, nacorrespondncia do discurso com os fatos, e est sujeita a impreci-ses. Num zelo extremado, houve quem tentasse, em vo, encon-trar a arca de No ou o tmulo de Moiss. Tais tentativas, extrava-gantes em si, estavam desde o comeo fadadas ao insucesso.

    Foto satlite: provvel local onde est a Arca de No?

    nefasta a presuno de querer justificar uma convicodesencavando mitos. A ironia no descabida. A tentativa dos

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    pensadores fundamentalistas de ver na arqueologia o fundamen-to de sua segurana histrica h muito deixou de ser defensvel.Embora bem intencionados, esses esforos carecem de valor cien-tfico. Um exemplo ilustra o ponto que queremos enfatizar.

    Flvio Josefo foi autor, entre outras obras, de uma histriados judeus. Afora o evidente valor testemunhal do seu traba-lho, claro o propsito ideolgico do autor. Josefo dirigia-se auma audincia formada por gregos e romanos, povos que notinham os judeus em boa conta. Da o tom apologtico que seudiscurso por vezes assume. Pois bem, a arqueologia serviu parareabilitar a reputao de Josefo como historiador e a importn-cia do seu trabalho para a compreenso do perodo neotesta-mentrio. Em suas Antiguidades Judaicas encontra-se, porexemplo, a mais antiga referncia ao Jesus histrico.

    O livro de Josu se presta a exame similar. Sua reabilita-o histrica uma coisa; suas afirmaes teolgicas, outra.Do ponto de vista histrico, seu valor relativo. A narrativa daposse da terra por Israel serve apenas como pano de fundo parao drama da relao desse povo com o seu Deus. Os relatos queali se lem esto mais para um rascunho do que uma represen-tao precisa dos fatos. A complexidade da relao e no acomunicao de dados histricos foi o que ocupou autor.

    A meta da arqueologia no sustentar a acuracidade hist-rica da narrativa bblica. A arqueologia no uma prova de quea Bblia tem razo, como muitas vezes se quis acreditar. Suafuno , no melhor dos casos, subsidiria. A verdade religiosada Bblia no nasce de um ato de vontade da cincia arqueol-gica, e sua mensagem s pode ser aceita pela f.

    A verdade teolgica presente na histria de Israel est almde qualquer descoberta de valor arqueolgico. A arqueologiaajuda a estabelecer fatos dos quais as prprias Escrituras se valempara interpretar a histria de Israel. Por outro lado, existe sem-pre a tentao de se minimizar uma descoberta arqueolgica

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    porque compromete o argumento para a reabilitao histricada Bblia. perigoso produzir uma harmonia artificial entre osrelatos bblicos e os achados arqueolgicos. Cedo ou tarde, ocastelo de cartas acaba por ceder sob o peso das evidncias.

    Tudo isso parece claro no caso da conquista da terra. Olivro de Josu descreve-a como resultado de uma campanhamilitar dos israelitas unidos sob a liderana de Josu. Cana, umavez conquistada, foi dividida entre as tribos de Israel. Arquelo-gos que escavaram os stios nos quais teriam se dado as bata-lhas narradas em Josu chegaram a concluses que levantamsrias dvidas.

    Kathleen Kenyon, por exemplo, escavou Jeric e concluiuque a conquista israelita no se deu no perodo do Bronze AntigoII (1300 a 1200 a.C.). A mesma autora observa que a reminis-cncia de um muro do perodo do Bronze Mdio (cerca de 2200a 1550 a.C.) e que pode ter sido o mesmo de que fala o autorbblico na tomada de Jeric pelos israelitas foi na verdade quei-mado e no derrubado (Js 6).

    Escavaes em Jeric

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    De acordo com o relato bblico, Josu retorna a Ai aps ocerco a Jeric (Js 8). Porm, dois estudiosos que escavaram aregio, J. M. Krauser e J. Calaway, no encontraram qualquerevidncia de que Ai tenha sido ocupada no perodo a que serefere a Bblia. Segundo esses autores, a cidade j se encontra-va em runas sculos antes de Josu e os israelitas chegarem aCana. Este um exemplo claro de conflito entre a tradiobblica e as escavaes arqueolgicas.

    Porm, possvel que o oposto tambm ocorra. Escava-es em Hazor sob a superviso de Ygael Yadin revelaram quea cidade foi violentamente destruda no perodo do BronzeAnterior, confirmando a narrativa bblica.

    Evidncias arqueolgicas nem sempre oferecem interpre-taes unvocas. Mas isso no quer dizer que a arqueologiano possa iluminar os textos bblicos. No incomum que oarquelogo socorra-se na Bblia para esclarecer o resultadode uma escavao. V-se, assim, que a contribuio pode sedar nos dois sentidos e que nenhum caminho est de antemointerditado.

    Essa convergncia de interesses justifica-se por mais deum motivo, mas evidente que, no importa o resultado, have-r sempre um ganho para um lado como para o outro. Veja-mos mais um exemplo.

    A deciso de estudar a cidade de Davi fora da antiga Jeru-salm mostrou-se acertada desde o comeo. As descobertasfeitas naquele stio ajudaram a elucidar o significado da pala-vra millo (2 Sm 5.9; I Rs 9.10). Escavaes revelaram a exis-tncia de uma longa estrutura feita de pedras, provavelmenteparte de uma grande construo na forma de uma cidadela. ComoJerusalm foi edificada nas bordas de um monte, parece evi-dente a necessidade de se construir um longo muro para com-pensar as eroses causadas por chuvas torrenciais ou mesmopara proteger o terreno de um possvel terremoto.

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    Outro exemplo a afirmao de Natanael de que nada debom poderia vir de Nazar. (Jo 1.46). Escavaes confirmaramo juzo do discpulo, revelando a pobreza da vila em que Jesusviveu. O mesmo deu-se com as edificaes que Salomo man-dou erguer nas cidades de Gezer, Megido e Hazor, descritas nolivro dos Reis (I Rs 9.15). H farta evidncia da extenso dosprojetos do rei hebreu. Em ambos os exemplos, a arqueologiareabilita o texto bblico, emprestando-lhe validade histrica.

    Vista de Gezer

    Entende-se melhor esse papel subsidirio da arqueologiaquando se leva em conta a insuficincia de detalhes histricosdos textos bblicos. Isso especialmente verdadeiro com res-peito a escavaes onde antes existiam sinagogas, ou quando osobjetos pertencem a um perodo posterior s fontes literrias.

    A arqueologia revela o passado

    As contribuies da arqueologia para se compreender opassado so inestimveis. Os textos bblicos deixam de fora

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    informaes demais e so insuficientes para responder muitasdas questes que se encontram na origem do estudo do antigoIsrael e do judasmo e cristianismo antigos. Mais uma vez, importante no perder de vista as limitaes da arqueologia. ingnuo esperar que a arqueologia resolva todas as nossasdificuldades com um texto. Qualquer concluso sobre o judas-mo palestinense depende tanto das evidncias arqueolgicasquanto das fontes literrias. E isso nem a teologia nem a arqueo-logia pode ignorar.

    Embora a arqueologia no dependa de qualquer conexocom a cincia teolgica, pois assenta sobre seus prprios pres-supostos epistemolgicos, a interseo da evidncia textual como artefato impe-se como tarefa comum aos dois campos.

    O arquelogo no ainda um exegeta nem um historiador. um especialista em descobrir, classificar e descrever os mate-riais pertencentes antiguidade. No se trata aqui de um dile-ma. Apenas reflete a viso que o prprio arquelogo tem da suacincia e do papel que esta desempenha na evoluo dos estu-dos bblicos.

    Pode-se afirmar que esse juzo no infundado. Antes,parece fazer todo sentido quando se examina a questo maisa fundo. Tanto o historiador quanto o telogo se beneficiamdos resultados das escavaes. Sentem-se mais segurosse apoiados nas evidncias trazidas luz pelo trabalho dosarquelogos.

    Mas a arqueologia s pode descobrir aquilo que sobrevi-veu. E o que sobreviveu e foi descoberto fruto do acaso, node uma lei. Da os riscos que correm historiadores e telogosquando se entregam a generalizaes fceis. O intrprete tomaas evidncias nos termos do seu prprio fundamento intelectuale teolgico, condicionado que est pelo ambiente social, cultu-ral e religioso contemporneo, distante da mentalidade do mun-do que deixou de existir.

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    A arqueologia busca estabelecer correlaes. Seu pontode partida a evidncia material, e se estende e completa noesforo para dar unidade ao caos dos dados coletados. Deve,porm, evitar a tentao de descobrir princpios aambarcado-res, almejando apenas uma viso de conjunto, livre de dogma-tismos intransigentes.

    Artefato, cultura e comportamento humano

    Se h uma meta a ser alcanada pela arqueologia bblica,certamente no consiste em legitimar respostas, mesmo aque-las cujo apelo religioso parece magnetizar a mente do fiel. A qua-lidade da investigao teolgica, no entanto, no pressupe oabandono do interesse pelo evento histrico, pelo desenvolvi-mento das instituies e pelas inter-relaes entre os diferentesaspectos da sociedade humana, pois a adeso cega a um princ-pio s pode resultar em prejuzo da verdade que se busca.

    A tarefa do arquelogo contribuir para o conhecimentosobre as instituies, atitudes e crenas da antiguidade. Ele noinfere s a partir dos achados. Apia-se tambm em interpreta-es precedentes. Seu trabalho depende em larga medida dasua capacidade em reviver uma cultura com base em seus ele-mentos materiais e abstratos.

    Existe, porm, uma tentao a ser evitada: a de universali-zar respostas. Na antropologia, isso deu lugar a uma correnteconhecida como funcionalismo. S com uma boa dose de deso-nestidade intelectual pode-se agir como se os artefatos fun-cionassem em qualquer sociedade, independente de variveispolticas, religiosas, sociais, tcnicas, de parentesco e identidadetnica. Um princpio vlido para um dado contexto no autorizasua aplicao automtica a outra situao, tempo e problema.

    A meta da arqueologia iluminar o processo que levou auma mudana cultural, revelada pelos vestgios preservados nos

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    artefatos. Esse vnculo, diramos melhor, essa memria preci-sa ser desencavada, exposta, explicada e compreendida. Parainterpretar os dados e formular uma sntese terica, o arque-logo pode e deve socorrer-se em outras cincias (sociologia,antropologia, economia, anlise quantitativa etc.).

    O arquelogo realiza sua misso quando capaz de desco-brir a funo e o significado de um artefato ou conjunto de arte-fatos numa dada cultura. O desafio relacionar o artefato aocomportamento humano. Hipteses so formuladas e testadas,tendo como horizonte a compreenso do comportamento huma-no, sua mudana ou permanncia. Em outras palavras, trata-sede entender e explicar uma sociedade, seus elementos constituin-tes, sua vocao e sua alma.

    Arqueologia e os textos

    importante que a arqueologia no ignore sua relao coma Bblia. Por outro lado, deve-se evitar ver nela uma prova daveracidade das Escrituras Sagradas. Como j se apontou aqui, hestudiosos que se amparam na arqueologia em busca de seguran-a para suas crenas religiosas. Anseiam encontrar nessa cinciaa fundamentao histrica de que carece a narrativa sagrada.

    Evidentemente que o proble-ma da relao entre a Bblia e aarqueologia no se reduz rela-o entre a descoberta arqueol-gica e as evidncias literrias. Oumelhor, no se trata da velhaquesto de conciliar f e razo.Mas de pedir arqueologia quedetermine se e em que extensoa prpria Bblia tem valor para areconstruo histrica.

  • 24 DANIEL SOTELO

    At recentemente, a contribuio da arqueologia para acompreenso do mundo do antigo Israel e do judasmo e cristia-nismo antigos havia sido mnima. Limitava-se a avaliar a quan-tidade e a qualidade das fontes escritas. Para os especialistasbblicos, a arqueologia tinha um carter de desnecessria diver-so. A mudana se deu na medida em que questes levantadaspela arqueologia e ignoradas pelo material bblico passaram aoprimeiro plano da discusso acadmica (vide a polmica emtorno do Jesus histrico, que por anos alimentou o debate teo-lgico). Passemos a um exemplo.

    As descobertas feitas em Kuntillet Ajrud, um stio remotono sudeste de Jud, ilustram bem nosso ponto de vista. SegundoZeev Meshel, o local teria sido um centro religioso. L foramencontrados dois jarros com inscries e ilustraes. Uma dasinscries dizia: pode ser abenoado por YHWH e suas ase-rah (deusa canania). Abaixo das inscries, h trs figuras.Duas delas, defende Meshel, representariam YHWH e suascompanheiras (aserah). No obstante a impossibilidade de afir-mar sem erro a relao entre as inscries e as figuras, essadescoberta levou a rever uma questo sobre a qual o texto silen-cia: cria-se no antigo Israel ter YHWH esposas-deusas?

    Detalhe dos jarros onde aparece YHWH (frente) e Aserah (fundo)

  • 25ARQUEOLOGIA BBLICA

    Alm de se referir a uma divindade feminina, a palavraaserah pode significar o prprio objeto cultual (neste caso, umposte de madeira) associado adorao dessa divindade. Essesobjetos faziam parte de um culto sincretista em Israel que atradio bblica rejeita claramente (Dt 16.21). A inscrio deKuntillet Ajrud, porm, aponta para algo alm da pertena aum culto sincrtico: apresenta as aserah como esposas deYHWH, algo que a Bblia nunca fez. Nas Escrituras Sagradas,aserah refere-se a uma imagem ou objeto de culto; em KuntilletAjrud aperece como consorte de YHWH.

    A discusso sobre o significado da inscrio mostra que aassociao entre YHWH e as aserah ainda feita. H, porm,um nmero de questes na gramtica hebraica e na iconografiacomparativa que precisam ser superadas antes que se possachegar a um estgio em que um consenso entre os intrpretescomece a emergir. Em todo caso, a questo permanece.

    Esta a segunda vez que a arqueologia revela a existn-cia de javistas que acreditam ter Deus uma companheira. Ospapiros de Elefantina (sculo V a.C.), publicados trinta anosatrs, fornecem evidncias da existncia de um enclave javis-ta no Egito, onde tambm parece ter existido a crena numacompanheira de YHWH. Os textos de Elefantina referem-se aAnath de Yahu (Yahu uma variante de YHWH e Anath outra deusa cananita). Esta referncia companheira deYHWH foi considerada uma aberrao local. Mas KutilletAjrud mostra que outro grupo, que viveu 300 ou 400 anosantes do grupo responsvel pelos textos de Elefantina, com-partilhavam uma viso similar do estado marital de YHWH.Seria Kutillet Ajrud tambm uma aberrao? Ou teria o con-ceito israelita de Deus evoludo a partir de fontes politestas?Uma das poucas certezas que se tem a de que muito do mono-tesmo do perodo ps-exlio projetou-se nos textos que retra-tam um tempo mais antigo.

  • 26 DANIEL SOTELO

    Concluso

    Para os escritores da antiguidade clssica, a palavra gregaarqueologia (arkhaiologa) significava simplesmente histriaantiga. Em seu uso moderno, refere-se atividade de escavar,registrar e interpretar os materiais pertencentes a antigas civili-zaes. Em seu estgio inicial, a arqueologia no Oriente Mdiofoi dominada pelo museu e seu intento de dispor de coleesprivadas e pblicas. As escavaes tambm no escaparam aouso poltico, algo aparentemente endmico naquela regio.

    Finalmente, h a relao das descobertas arqueolgicas comas fontes literrias da Bblia. A verdade religiosa no precisa daarqueologia para se tornar norma de f e prtica para o crente,mas a relao entre uma e outra no pode ser ignorada sob opretexto de separar f e cincia. O texto bblico tem sobrevivi-do a despeito das escavaes, mas as evidncias arqueolgicaslanam luz sobre questes que o exegeta e o historiador preci-sam enfrentar.

  • 27ARQUEOLOGIA BBLICA

    ESCAVAES

    O que distingue a cincia arqueolgica em seu esforo paracompreender o mundo da antiguidade a origem dos dados (aterra) e o processo para encontr-los (as escavaes). As esca-vaes so o centro da arqueologia e, naturalmente, o foco dorefinamento dentro dessa disciplina.

    Em 1838, o americano Eduard Robinson deu incio a umasrie de jornadas Palestina, que resultou no mapeamento daregio e dos principais stios bblicos. O trabalho de Robinsonacabou por despertar o interesse de amadores e especialistaspela terra do antigo Israel e sua histria. Como arquelogo,Robinson no se dedicou apenas s escavaes. Sua obra foiimportante para fundamentar a arqueologia bblica, ento umacincia incipiente. Serviu tambm para moldar a forma comoessa disciplina viria a evoluir no futuro.

    2

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    Infelizmente, nos anos que se seguiram ao trabalho deRobinson, as escavaes no Oriente Mdio desembocaram numaarqueologia selvagem, medida que assentamentos modernosiam sendo construdos na Palestina. Com novas construessendo erguidas no campo de trabalho da arqueologia, no haviatempo para se planejar a explorao do local e os resultadosno foram dos mais animadores.

    explorao selvagem dos stios arqueolgicos, segui-ram-se escavaes massivas em Gezer e Cesaria martima.Esses projetos cobriram vastas reas e se estenderam por umlongo perodo de tempo, o que exigiu considerveis investi-mentos e o emprego de pessoal competente. No entanto, a des-peito da contribuio que deram para o desenvolvimento dastcnicas de escavao e da sua importncia na formao de todauma gerao de novos arquelogos, a complexidade e o custodesses projetos tornaram seu modelo questionvel.

    Escavaes em Gezer

    Buscas

    A escolha do stio a ser explorado resultado de buscasregionais. H um princpio claro que reconhece a impossibilidade

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    de se escavar todos os locais. Os recursos disponveis so limi-tados e metas precisam ser estabelecidas antes da escolha, comuma lista clara das prioridades. O resultado que se desejaalcanar determinar a estratgia empregada na escavao.s vezes as escavaes so limitadas a reas especficas den-tro de um mesmo stio.

    Geralmente, a busca comea com o exame de jarras e vasosque se encontram na superfcie. Prossegue, ento, com o estu-do dos fragmentos de construes ou de antigas estruturas queo local abrigou.

    A concentrao das buscas numa regio se explica pelovnculo histrico dos stios. As buscas de Yogneam, no Valede Jezreel, tiveram lugar porque o vale abrigou inmeros assen-tamentos antes da possesso da terra pelos israelitas. Pelo mes-mo motivo, escavaes em Meron foram realizadas como partede um grande projeto para revelar a identidade da Galilia,regio que desempenhou papel central no desenvolvimento dojudasmo e do cristianismo ps-bblico.

    Metas e interdisciplinaridade

    Encerradas as buscas e escolhido o local, uma deciso pre-cisa ser feita acerca das escavaes: definir suas metas. Usual-mente, a busca sugerir os objetivos especficos do projeto.O passo seguinte reunir um grupo permanente de especialis-tas em cermica, moedas e outros campos tcnicos, alm degelogos, fotgrafos e cientistas de diferentes reas de pesqui-sa. Grupos de escavaes so naturalmente interdisciplinares.

    A complexidade das tarefas envolvidas nas escavaesexigem cooperao. Da o carter de complementaridade dasvrias especialidades. Mas a seleo do corpo de profissionaisdepende das metas especficas do projeto. Se o stio, por exemplo,contm runas substanciais de monumentos ou reminiscncias

  • 30 DANIEL SOTELO

    de edificaes, a presena de um arquiteto na equipe torna-seindispensvel para reproduzir em papel a estrutura arquitetni-ca das construes. Esse cuidado necessrio para avaliar asdimenses dos edifcios antes de se prosseguir com as escava-es, evitando danos irreversveis.

    Trabalho conjunto de especialistas

    Os arquelogos nem sempre desenvolvem seus trabalhosde forma independente. Escolas de arqueologia no OrienteAntigo coordenam projetos, fornecem diversos servios pro-fissionais e encorajam a comunicao entre os arquelogos pormeio de publicaes.

    Autorizao e financiamento

    Um projeto desenvolve-se ao longo de vrias etapas. Depoisque os membros de uma equipe chegam a um acordo sobreonde pretendem escavar, a prxima etapa consiste em fazer umrequerimento formal agncia do governo que controla as esca-vaes no pas. Os procedimentos variam de um pas para o

  • 31ARQUEOLOGIA BBLICA

    outro, mas todos possuem um departamento de antiguidadesresponsvel por emitir a autorizao e fiscalizar os trabalhos.

    Nas requisies enviadas autoridade local devem cons-tar a descrio do stio a ser escavado, os objetivos do proje-to, os arranjos financeiros, os nomes dos integrantes do grupopermanente, entre outras informaes. Tais cuidados visam aassegurar que os tesouros nacionais no sero apropriados poroutros. Em regies de conflito armado, como o Oriente Mdio,os governos locais podem negar ou suspender temporariamentea emisso de autorizaes.

    O suporte financeiro s pesquisas pode vir de fontes parti-culares ou pblicas. No incomum que um projeto recebaajuda de ambas. Os elevados custos das escavaes exigem quepor vezes se formem consrcios para financiar o projeto. Delesparticipam empresas, organismos internacionais, instituiesacadmicas, governos e at indivduos. Muito comum tambm a reunio de vrias universidades em torno de um mesmoprojeto. Elas provem o dinheiro para custear os trabalhos ecedem membros de suas faculdades para compor a equipe.

    O trabalho de campo

    Aprovado o projeto pela autoridade local, a equipe podecomear a ser reunida e dar incio aos trabalhos. Com efeito, otrabalho de campo o corao da arqueologia. precisamentepelo fato de extrair seus dados da terra que a arqueologia diferede outras disciplinas que tambm estudam o mundo antigo.

    H uma ironia aqui: a arqueologia uma cincia que des-tri suas prprias evidncia no curso de desencav-las. Comoesse risco permanente, as tcnicas e os mtodos empregadosso cruciais no trabalho de campo. As escavaes devem serconduzidas num ritmo controlado, pois a arqueologia umacincia que no repete seus experimentos.

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    O mtodo Wheeler/Kenyon

    Os arquelogos empregam um mtodo particular de esca-vao, batizado de Mtodo Wheeler/Kenyon, em homenagema dois pioneiros (Wheeler, autor de Arqueologia da Terra, eKenyon, que escreveu o manual Comeando em Arqueologia).Embora haja entre os arquelogos pequenas diferenas quantoa estratgias especficas, todos seguem os princpios consagra-dos por esse mtodo.

    O mtodo Wheeler/Kenyon tenta contornar uma dificul-dade: construir um modelo tridimensional do stio escavado apartir dos artefatos descobertos. Para se chegar a esse fim, empre-gam-se procedimentos estratigrficos. A estratigrafia concen-tra-se no exame do contedo das vrias camadas que compemo solo de um stio..

    Ela expe as fases de ocupao ao longo do tempo, com oobjetivo de iluminar a cultura e reconstruir o comportamentohumano a partir da permanncia material. A estratigrafia con-tribuiu significativamente para que arqueologia se tornasse umadisciplina sistemtica e cientfica.

    O trabalho tem incio com o mapeamento do stio. Toma-se nota do relevo e da vegetao com o objetivo de se construiruma imagem da rea a ser escavada. Levam-se em conta as estru-turas e fragmentos arqueolgicos que se sobrepem s camadasinferiores onde se concentraro as escavaes. Em seguida,determinam-se os pontos cardeais (N/S e L/O) que iro orientara distribuio dos quadros.

    A separao entre o que ser escavado (delimitado pelosquadros) e o que ser deixado de fora uma deciso muitasvezes difcil, mas que tem de ser tomada para resguardar o localinteiro e as partes no escavadas. A colocao dos quadros aten-de a dois critrios: a meta do projeto e a avaliao pessoal doarquelogo.

  • 33ARQUEOLOGIA BBLICA

    Provas

    As escavaes em geral ocorrem numa rea de 5 m2. O tama-nho e a localizao de cada quadro pode variar de acordo coma natureza do stio, mas questes de ordem prtica como ouso eficiente do pessoal e a necessidade de manter o contro-le impem que se limite tanto o nmero de escavaes simul-tneas quanto a distncia entre os quadros.

    A escavao comea no extremo do quadro, de onde seretira uma prova. Esse procedimento tem por objetivo revelara estratificao do quadro e servir de guia para o trabalhodos escavadores, que removem as camadas sucessivas encon-tradas no quadro, utilizando uma colher de pedreiro e peque-nas picaretas.

    Ferramentas utilizadas nas escavaes

    Uma tcnica estratigrfica, a prova garante que um quadroser escavado com eficincia. Em muitos projetos, o stio podeconter pequenos artefatos como moedas, correntes, jias, e o esca-vador precisa ter o cuidado ao retirar esse material do local.

    O uso da prova evita tambm que o arquelogo se frustre.Quando concluda, uma prova expem todos os elementos

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    (artefatos, muros, fragmentos de arquitetura) de uma dada cama-da. Ocasionalmente, topa-se com elementos intrusivos, taiscomo covas, vedaes e cemitrios, que tero de ser escavadosseparadamente, pois no esto associados ao uso original dostio. Sero ento fotografados, para depois ter incio a escava-o. Esse procedimento continua at que a camada ocupada dostio seja exposta.

    As escavaes podem acontecer num local adjacente aoda descoberta, que ser explorado posteriormente, e cessamquando uma camada de pedra ou solo virgem encontrada.

  • 35ARQUEOLOGIA BBLICA

    SISTEMA DE MEMRIA

    Quanto mais meticulosa for a escavao, mais lento serseu progresso. Quanto mais cuidadoso e completo for o siste-ma de registro (memria) empregado, mais certa ser a snteseda descoberta. Estes axiomas referem-se ao processo de cons-truo de memrias do trabalho arqueolgico.

    Notas de campo

    O primeiro e mais importante componente do sistema dememria so as notas de campo. No passado, era comum veros arquelogos usar um dirio para tomar suas notas. Numapequena caderneta eram registrados os progressos do trabalhofeito ao longo do dia. Hoje, a forma sistemtica das notas decampo parte do mtodo Wheeler/Kenyon e se utilizam recur-sos mais modernos como laptops e computadores de mo.

    As notas de campo so descries verbais de cada dia detrabalho. No pretendem ser um relatrio detalhado, mas umasimples lembrana, um repositrio de recordaes. Elas forne-cem o material para os relatrios que o arquelogo posterior-mente ir redigir. O valor desses relatrios proporcional qualidade das notas tomadas no curso das escavaes. Isso deve-ria, evidentemente, incentivar o pessoal de campo a dedicar maistempo s anotaes.

    Os registros das escavaes tornam possvel a reconstruodo progresso numa escala de meses e at anos de um projeto.

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  • 36 DANIEL SOTELO

    Em adio ao registro fatual, as notas de campo devem reco-lher as impresses, tentativas de interpretao e hipteses doarquelogo.

    Planos

    comum o emprego de um plano (um grfico) para cadadia de escavao. Ele exibe os elementos expostos da rea deescavao: muros, janelas, portas, escadas, bases de colunas.Traz tambm a indicao do exato lugar onde artefatos particula-res foram encontrados, assim como elevaes de quadros nocomeo e no fim de cada dia tambm so anotadas.

    Lminas

    Outro componente do sistema de memria, as lminas sousadas para registrar os lugares. Na estratigrafia, o termo lugar usado para se referir a um muro, janela, porta, dreno, jarroetc. Um lugar a menor unidade estratigrfica, e o registro decada lugar individual numa lmina serve a vrios propsitos.

    Uma lmina contm a descrio detalhada do lugar. Soanotadas caractersticas fsicas como cor, forma e tamanho, assimcomo o contedo e a relao do lugar com outros adjacentes.Essa descrio precisa vital quando um lugar removido paraque se proceda a escavao do prximo estrato.

    Fotografias

    As fotografias tornaram-se um recurso valioso na arqueolo-gia. Os escavadores as tm usado sistematicamente como partedas notas de campo. Elas servem como ilustrao dos comentriose descries feitas nas notas de campo. Muitas aparecero ao ladode artigos e reportagens publicadas em revistas especializadas.

  • 37ARQUEOLOGIA BBLICA

    Outras sero ainda parte da iconografia de um livro dedicadoao tema.

    Fotogrametria

    Recentemente, a edio digital de fotos deu origem a umatcnica denominada fotogrametria. Essa tcnica torna possvela anlise tridimensional dos artefatos. Trata-se de um avanosignificativo do sistema de memria e anlise comparativa.

    Obstculos

    Um registro visual da rea escavada, o obstculo umarepresentao acurada da dimenso vertical e de importnciacrtica para as escavaes. Cada lugar identificado e sua com-posio indicada por meio de sinais. Linhas so traadas paraindicar o ponto exato onde ocorre a separao entre os estratos.O obstculo representa importante ajuda na leitura e interpreta-o das notas de campo. Os obstculos so ainda um comple-mento necessrio aos registros fotogrficos, uma vez que fotospreservam apenas duas dimenses.

    Listas

    ltimo componente do sistema de memria, as listas con-tm uma relao dos artefatos encontrados. Listas separadasdevem ser feitas para cada tipo de artefato (moedas, objetosde pedra, fragmentos de arquitetura, jarras, objetos de metal,vidros). Cada objeto assinalado com um nmero e o localpreciso onde foi encontrado. Todos esses dados so necessriospara assegurar a relao do artefato com o contexto em que foiencontrado. Sem essas informaes, os artefatos sero nada maisque relquias.

  • 38 DANIEL SOTELO

    Concluso

    O processo de escavao organizado de maneira a facili-tar a forma e a ordem em que so feitos os registros. Sem regis-tros acurados, a arqueologia deixa de ser uma disciplina cient-fica. Boas notas de campo fornecem detalhes suficientes paraanlise e interpretao. Todos os dados recolhidos sero inclu-dos no relatrio final. Desse modo, quem examin-los ter umaidia do progresso das escavaes. Sem a correta avaliao dosregistros, o valor cientfico do relatrio final ser nulo.

  • 39ARQUEOLOGIA BBLICA

    ANLISE EINTERPRETAO

    Quando o trabalho de escavao do stio concludo, osachados importantes so enviados ao laboratrio para anlise.O objetivo a reconstruo da cronologia do stio. precisodatar os vrios estratos a fim de determinar quando e por quan-to tempo o stio foi ocupado. Em seguida, uma cronologia dodesenvolvimento do stio feita.

    A anlise laboratorial dosartefatos ajuda a iluminar adinmica da cultura do local:seus habitantes foram ricos oupobres? Fazendeiros, comer-ciantes ou construtores? Quaiseram as formas de religio?Por que cessaram as ocupa-es? Os habitantes viveramlivremente ou fugiram? Paraonde foram? E, se foram, hou-ve algum desastre, fome, ter-remoto ou seca que os levou adeixar o local? Ou teriam sidoexpulsos por invasores hostis?

    So estas questes que o arquelogo precisa responder aoexaminar cermicas, moedas, jias, vidros e outras reminiscn-cia de um antigo local.

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  • 40 DANIEL SOTELO

    Cermicas

    A cermica o mais comum artefato encontrado. Suaimportncia para o arquelogo est em permitir a datao deum estrato. A cermica um artefato frgil e precisa ser lavadaantes de ser lida.

    No existe um consenso entre os estudiosos sobre quan-do a cermica deixou de ser usada pela antiguidade. Sabe-se,porm, que ela serviu para um nmero variado de propsitos:estocar lquidos e slidos e como utenslio de uso geral. Depen-dendo do fim a que se destina, a cermica toma uma formaprevisvel. Ao longo do tempo, essa forma sofre mudanas porrazes prticas e estticas. Pode-se estabelecer datas e perodoscom preciso a partir da anlise de tais mudanas.

    Considere-se a lmpada de cermica. Num recipiente comgua, colocava-se um pouco de leo. O leo, ento, flutuava e achama iluminava o ambiente. Por sculos, essa forma mante-ve-se praticamente inalterada. A mudana veio com o desejode se introduzir motivos decorativos em seu desenho. Deixou

  • 41ARQUEOLOGIA BBLICA

    de ser um objeto puramente funcional para desempenhar opapel de ornamento e objeto de decorao. Outros artefatosexperimentaram evoluo similar.

    A cermica marca o carter distintivo de um perodo tecno-lgico e de uma poca prosperidade material. O exame de suasformas tornou a cronologia uma tarefa relativamente simples.Ao olho experiente, uma pea individual de cermica revelarpreciosas informaes de um dado perodo. A anlise cuidado-sa dir tanto a tcnica de manufatura quanto a origem e o tipode material empregado.

    O valor da cermica no est, contudo, limitada a estabe-lecer a cronologia de um stio. Dos modelos domsticos aostipos empregados em atividades comerciais, das louas cruass finas peas, o exame mostrar como um povo usou essesartefatos. As cermicas revelam a cultura e no apenas a crono-logia do lugar.

    Apenas como um lembrete, pode-se avaliar o expertise deum arquelogo pela habilidade em reconhecer e datar diferen-tes tipos de cermica.

    Moedas

    Existe uma rivalidade amigvel entre cermicas e numis-mtica. Tanto as moedas quanto as cermicas tm valor relati-vo na determinao dos perodos arqueolgicos. A vantagemdas moedas est em forneceruma data com maior precisoque as cermicas.

    As inscries, por exem-plo, permitem saber com relati-vo grau de certeza o valor queas moedas tinham como meiode troca. Quando uma moeda

  • 42 DANIEL SOTELO

    encontrada num lugar particular, o escavador conclui que altima ocupao deu-se antes da moeda ser cunhada.

    As moedas foram introduzidas no Oriente durante o pero-do Persa, nos sculos VI e IV a.C. No perodo helenstico, sur-giram entre os sculos IV e I a.C. Entre os romanos, elas apare-ceram entre os sculos I a.C. e IV d.C.

    As moedas eram cunhadas em ouro, prata e bronze. As debronze tinham um valor intrnseco inferior s de prata e ouro, oque nos leva a acreditar que fossem reutilizadas para outrosfins depois que o seu desgaste tornava-se evidente. O materialpouco resistente expe mais facilmente as moedas de bronze corroso, torna-as de difcil conservao e requer cuidado espe-cial na limpeza.. Uma moeda de bronze corroda de leiturapraticamente impossvel. As de prata e de ouro, por outro lado,so mais resistentes e mais fceis de limpar e de ler.

    As moedas dizem ao arquelogo mais do que a simplesdata de ocupao do stio. Revelam informaes sobre as for-mas econmicas do local. A quantidade e a espcie das moedasencontradas podem, por exemplo, sugerir um modelo para seavaliar a prosperidade dos habitantes do local.

    Algumas moedas trazem desenhos de construes queforam destrudas. Esse detalhe as torna um excelente meio depreservao de edificaes desconhecidas. As moedas trazem ain-da figuras e efgies empregadas pelos governantes locais comopropaganda. Mais uma vez, o exame cuidadoso desses detalhespode ajudar a construir um perfil dos habitantes do local. Moedas,enfim, fornecem valiosas imagens da cultura dos antepassados.

    Outras evidncias

    Alm de cermicas e moedas, as escavaes descobremartefatos de vidro, objetos de metal (pregos, dobradias, ferra-mentas), fragmentos de arquitetura (colunas, bases, batentes),

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    implementos de pedra (prensa de uva e oliva) e jias. Tudo isso cuidadosamente escavado, registrado, limpo, catalogado e,quando possvel, restaurado.

    Jias encontradas em Qunram

    A anlise desses objetos ajuda o arquelogo a desenvolveruma descrio o mais fiel possvel do stio e seus habitantes. Esca-vaes em reas onde se concentravam edifcios pblicos costu-mam revelar fragmentos de arquitetura com motivos decorativosintrigantes, o que seria uma indicao de que a comunidade foirica. s vezes tambm revelam o contrrio, que a vila era sim-ples e austera. A preservao e interpretao desses artefatos per-mitem conhecer o povo que as edificou e usou sculos atrs.

    Finalmente, preciso dizer que o arquelogo no se limitaao exame dos artefatos para descrever as condies da antigui-dade. A anlise do solo, por exemplo, pode revelar muito sobreo clima do local. J o exame de sementes pode mostrar os tiposde planta que cresciam na regio. O estudo de ossos humanospermite identificar a dieta e at a sade dos antigos, enquanto aanlise de ossos de animais fornece dados sobre a economia eas prticas agrcolas da comunidade.

    Restaurao

    Um importante aspecto do trabalho arqueolgico a res-taurao. Os arquelogos sempre julgam ser possvel a restau-rao de artefatos antigos. Uma cermica quebrada pode ser

  • 44 DANIEL SOTELO

    reconstituda a partir de um modelo tridimensional. Quandoartefatos de vidro ou loua so restaurados, o resultado quasesempre um objeto de beleza singular.

    Em anos recentes, as tcnicas evoluram da restauraode pequenos artefatos para a reconstruo de grandes estrutu-ras. Se no curso de uma escavao so encontradas reminis-cncias arquitetnicas, os arquelogos no poupam esforospara reconstruir os edifcios que o local outrora abrigou. Gover-nos encorajam tais tentativas com o objetivo de preservar aherana arqueolgica do seu povo.

    Importantes lugares como Quuram, Megido e Massadaforam escavados e restaurados e se transformaram em parquesnacionais que atraem no-profissionais como turistas. Uma sim-ples caminhada nesses stios pode servir como uma boa intro-duo arqueologia.

    Relatrios

    Os trabalhos de escavao tm nos relatrios uma espciede resumo. Os dados para confeccion-los vm principalmentedas notas de campo. Com efeito, todo o sistema de memriacontribuir para isso.

    O relatrio obriga o arquelogo a empreender um esforode sntese. A despeito da sua importncia, os relatrios so porvezes vistos como uma obrigao enfadonha. As escavaesexcitam e trazem satisfao imediata, enquanto o relatrio visto como uma tarefa tediosa. No devia ser assim.

    Os relatrios s vezes so precedidos de reportagens emrevistas especializadas. Esse tipo de reportagem geralmentebreve e serve para resumir os resultados do trabalho de campo.Embora sucintas, algumas vezes avanam na tentativa de inter-pretar os dados ao invs de apenas descrev-los. O objetivo despertar o interesse da audincia pelos projetos.

  • 45ARQUEOLOGIA BBLICA

    No raro, uma reportagem mais completa publicada numperidico de grande circulao como a revista National Geo-grapghic, e pode tomar a forma de um resumo tcnico. Emgeral sero ilustradas com fotografias e traro uma longa expo-sio sobre o significado dos artefatos encontrados.

    Quando redige seu relatrio, o arquelogo descreve emdetalhes seus achados, relaciona-os com outras descobertas eapresenta suas concluses. Da se lamentar a morte precoce deum arquelogo no meio de um projeto importante sem publicarartigos ou mesmo um relatrio sobre o seu trabalho.

    Uso do computador: reconstruo virtual do Monte do Templo

    Fotografias, amostras, modelos arquitetnicos e tipos ce-rmicos costumam acompanhar os relatrios. comum quedescrevam os vrios tipos de testes laboratoriais empregadosno exame dos artefatos, bem como os procedimentos para res-taura-los, quando isso tiver ocorrido.

    O valor de um relatrio final diminudo se confinado sdescries. Ele deve ser uma sntese dos dados descobertos nascampanhas de escavao. Se os arquelogos em geral esto de

  • 46 DANIEL SOTELO

    acordo quanto necessidade de empregar mtodos conhecidosde controle das escavaes, parece no haver consenso sobre aforma correta de interpretar os dados.

    Algo cuidadosamente formulado e at muito provvel,pode mostrar-se controvertido e fantasioso visto por outrongulo. O desafio est em encontrar um modelo terico quefornea um fundamento seguro para se construir uma snteseobjetiva. O mtodo Wheeler/Kenyon tem se mostrado eficazno controle das escavaes. Algo semelhante precisa forne-cer um modelo para o controle da sntese e da interpretaodos dados.

    Um aspecto importante da sntese a relao direta dosdados com a literatura da antiguidade, algo nunca isento de peri-gos. Existe sempre a tentao de se fazer comparaes fceis.s vezes, textos antigos como a Bblia guiaro a interpretao.Os dados ento se tornam o apoio para uma certa interpretaodos textos em questo.

    Outro problema o modo certo de entender os antigos tex-tos. Est claro que existe a necessidade de uma teoria geral parase entender o fenmeno revelado no curso das escavaes.

    O futuro do trabalho de campo

    O sucesso de um projeto resultado do investimento detempo, dinheiro e talento. Todo projeto (mesmo os pequenos)est limitado pelos seus objetivos. Requer o trabalho srio dogrupo permanente e o necessrio suporte financeiro. Respeita-das essas condies, pode-se esperar uma genuna contribuiopara o nosso conhecimento da antiguidade.

    Atualmente, um vasto nmero de projetos enfrenta difi-culdades para chegar a um resultado satisfatrio. A complexi-dade dos dados arqueolgicos apenas uma dessas dificulda-des. A sofisticao da metodologia empregada exige que o

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    projeto seja administrado por um grupo de arquelogos agindocomo um time, e aqui tem-se espao para mais problemas.

    O arquelogo deve planejar seus projetos de tal modo queno somente os objetivos sejam claros, mas que o tempo e osrecursos sejam empregados do modo mais eficiente.

    A sofisticao das tcnicas arqueolgicas requer o investi-mento em equipamentos caros como computadores e softwa-res, empregados no armazenamento e interpretao dos dados.Programas especialmente desenvolvidos para esse fim armaze-nam, relacionam e interpretam uma massa imensa de dados.Presente em todos os projetos, esses programas exigem consi-dervel investimento em mo de obra qualificada.

    Alm dos recursos financeiros, os investimentos em tecno-logia da informao exigem o desenvolvimento profissional dosarquelogos que precisam aprender a explorar, em proveito dasua prpria cincia, todo o potencial dessas ferramentas. Indis-cutivelmente, o computador um dos mais valiosos recursos disposio do arquelogo.

  • 48 DANIEL SOTELO

  • 49ARQUEOLOGIA BBLICA

    PARTE IIAS CIDADES

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  • 51ARQUEOLOGIA BBLICA

    EBLA: CONTROVRSIAE PROMESSA

    Localizada a 55 quilmetros de Aleppo, no nordeste daSria, Tel-el-Madik foi cenrio de um importante projeto finan-ciado pela Misso Arqueolgica Italiana e iniciado em 1963.Tel-el-Madik um monte artificial surgido depois da esca-vao de vrios estratos. Mede cerca de 576 hectares. Quandoas escavaes comearam, os arquelogos estavam otimistas.Os resultados, de fato, foram muito alm das expectativas. Infe-lizmente, o projeto tomou um rumo diferente.

    Como toda cincia, a arqueologia tende a permear outrasprticas humanas. O que apenas suposio pode degenerarem campo de batalha, onde lados opostos se digladiam. Tel-el-Madik foi um desses casos.

    Pesquisas em Ebla

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  • 52 DANIEL SOTELO

    Desde o seu comeo, o projeto foi dirigido pelo arquelo-go e historiador da arte Paolo Mathiae. Em 1969, o sumerolo-gista Giovanni Pettinatto foi chamado para decifrar inscriesnuma esttua encontrada aps seis anos de escavaes. Combase na traduo que fez, Pettinatto sugeriu que Tel-el-Madikteria sido no passado Ebla, antiga cidade conhecida pelas suasfontes de gua, mas cuja localizao exata era motivo de dvi-da entre os estudiosos.

    Pettinatto trabalhou para convencer Mathiae de que Madikera mesmo Ebla. Na poca, muitos especialistas discordaram dePettinatto. Tempos depois, a anlise de textos descobertos naregio fortaleceu as teses de Pettinatto. A parceria entre Mathiaee Pettinatto, contudo, deu lugar a um acirrado debate e interditoude forma definitiva o caminho para uma futura colaborao.

    A controvrsia

    Giovanni Pettinatto tornou-se formalmente associado aoprojeto em 1974, quando 40 tabuinhas com inscries foramencontradas. Mathiae mesmo no leu os escritos cuneiformes,tarefa que ficou a cargo de Pettinatto.

    Tabuinhas de Ebla

  • 53ARQUEOLOGIA BBLICA

    Nos anos seguintes, uma rica estocagem de tabuinhas comos arquivos reais de Ebla foi sendo descoberta. Ao todo vieram luz 1700 tabletes. Mathiae e Pettinatto consideraram a desco-berta extraordinria, um verdadeiro sonho.

    Infelizmente, o achado viria a se tornar o ponto de discr-dia entre os dois pesquisadores. Seus desacordos comearamcom a datao das tabuinhas. Com base em anlises estratigr-ficas e na tipologia cermica, Mathiae datou-as entre 2400 a2200 a.C. J Pettinatto, a partir da anlise epigrfica, concluiuque as tabuinhas d atariam de 2580 a 2450 a.C.

    Pettinatto argumentou que a estratigrafia de Mathiae foraincorreta. As escavaes teriam suprimido um estrato inteiro,o que explicaria a diferena nas estimativas. Para os que acom-panharam o debate, ficou a impresso de que nem o arquelo-go nem o sumerologista foram sinceros ao defenderem suasposies.

    As divergncias entre Mathiae e Pettinatto cresceram eacabaram ganhando espao na mdia. A natureza da descoberta(as tabuinhas com os arquivos reais de Ebla) aumentou enor-memente o interesse pelos desdobramentos do debate travadospelos dois especialistas. Nos EUA, a querela levou a uma dis-cusso sobre os relatos paralelos, e as conexes entre a Bblia eas tabuinhas de Ebla. O primeiro a levantar a questo foi o espe-cialista em literatura bblica David Noel Freedman.

    Freedman visitou os dois italianos e arranjou para que Pet-tinatto falasse em um encontro da SBL (Society of BiblicalLiterature) nos Estados Unidos, em 1976. Na comunicao quefez, Pettinatto anunciou ter decifrado uma tabuinha com osnomes de cidades (Sodoma, Gomorra, Admah e Bela) que apa-recem no relato dos Gnesis. Ali estariam os nomes como elesaparecem na Bblia. E isso era tudo de que precisava um con-servador como Freedman para sustentar suas convices sobrea historicidade das tradies do livro do Gnesis.

  • 54 DANIEL SOTELO

    Estudos recentes sobre a narrativa dos patriarcas em Gn12-50, contudo, sugerem o contrrio do que Freedman defen-de. O que se tem presumido sobre a era patriarcal parece tersido criado pelos escritores num perodo posterior na histriado antigo Israel. Freedman, porm, preferiu acusar seus crti-cos de ceticismo.

    Freedman passou a promover a conexo entre a Bblia e ostabletes de Ebla depois de ter sido recrutado pelo jesuta espe-cialista no mundo semtico Mitchel Dahood. Como Freedman,Dahood estava convencido de que Ebla e seus tabletes demons-travam que Gnesis ecoa tradies de um perodo anterior aoAntigo Israel, antes mesmo deste construir sua identidadecomo nao.

    Dahood aponta para a ironia no fato da descoberta dostabletes de Ebla ter acontecido no momento em que a anliseliterria questionava a historicidade das narrativas patriarcais.Dahood encontrava-se entre aqueles que acreditavam que ostabletes de Ebla ajudariam a esclarecer certas passagens daBblia. Porm, nem todos aceitaram concluses otimistas deDahood sobre o papel de Ebla na compreenso da Bblia hebraica.

    Certamente a mais controvertida de todas as sugestes dePettinatto tem sido a de que a nome Ya (Yaw) faria parte dopanteo de Ebla. Houve quem discordasse da leitura que Petti-natto fez dos tabletes e do seus argumentos para provar que odeus Yaw era adorado em Ebla. No h evidncias diretas dapresena de Yaw entre os deuses de Ebla. Os nomes (Ya e Yaw)no aparecem na lista de divindades associadas a Ebla. As evi-dncias de Pettinatto, portanto, eram indiretas.

    Entre os vrios documentos econmicos que traduziu, Pet-tinatto identificou nomes com elementos teofricos que ele pr-prio l como Ya. De fato, nomes teofricos podem se referir aum deus local e, s vezes, aparecem como parte de um nomeindividual, uma associao comum entre os povos do Antigo

  • 55ARQUEOLOGIA BBLICA

    Oriente. Em sua lista, Pettinatto incluiu Mika-Ya (aquele que como Ya) e Igha-ma-Ya (aquele que ouve) e Em-na-Ya (tempiedade, oh! Ya). Para Pettinatto, isso era suficiente para sus-tentar suas idias.

    Alguns semitistas, porm, consideraram a leitura de Pet-tinatto prematura. Por exemplo, ignorava-se como a escritacuneiforme dos sumrios foi modificada pela lngua falada emEbla. possvel que o smbolo que Pettinatto l como Ya tenhaum significado diverso, j que os smbolos cuneiformes podemassumir significados distintos.

    O significado exato de um smbolo particular depende docontexto em que o smbolo foi encontrado e do mtodo local deuso da escrita cuneiforme. Da no ser possvel fazer um juzodefinitivo sobre o nome Ya.

    Pettinatto afirma que os nomes de Ya indicam mais do quea simples existncia desse deus. Ele defende que os tabletes doreino de Ebrun (um dos reis de Ebla) mostram a substituio deYa por Il.

    Il seria outro deus e elemento teofrico. Antes de Ebrun,que foi um rei popular, a frmula pode ter sido Mi-ka-il (aqueleque Il). Com sua ascenso, o nome teria mudado para Mi-ka-Ya. Esta observao levou Pettinatto a falar de uma revoluoreligiosa, supostamente ocorrida durante o reinado de Ebrun,quando Il teria sido suplantado por Ya. Tal sugesto tem sidoquestionada por um nmero grande de especialistas, com exce-o de Mitchel Dahood, que permaneceu defendendo essaexplicao at sua morte em 1982.

    A concluso mais sensata a que se pode chegar sobre a con-trovrsia em torno da leitura dos tabletes de Ebla e o seu signi-ficado que mais estudos devem ser feitos antes que um con-senso seja possvel. O fato dos escritos cuneiformes permitiremmais de um significado s aumenta as dificuldades. Espera-seque o estudo cuidadoso e a colaborao entre os especialistas

  • 56 DANIEL SOTELO

    venham algum dia permitir que os tabletes sejam lidos commaior preciso.

    Pettinatto admitiu que sua leitura inicial das tabuinhas con-duzira-o a concluses prematuras. A contragosto, ele concedeuque, ao contrrio do que afirmara, as cidades da plancie no sonomeadas nas tabuinhas. Questionado sobre a inesperada reviso,Pettinatto disse apenas que fazia uma correo de nfase, e nouma confisso de erro. Embora no admita, Pettinatto estava defato se retratando por ter feito afirmaes difceis de ser sustenta-das. Ele reconheceu que sua leitura das tabuinhas influencioumilhares de especialistas bblicos, que acreditaram em sua fraude.

    A controvrsia sobre as cidades da plancie e os nomes deYa aponta para a necessidade de uma rpida publicao dostextos antigos. Incluiriam fotos, uma completa transliteraodo texto, traduo e talvez um breve comentrio.

    De fato, alguns fragmentos das tabuinhas de Ebla j forampublicados, acompanhados de uma descrio do contexto emque foram encontradas feita por Pettinatto. Isso deu aos especia-listas acesso ao contedo das tabuinhas num proporo muitomaior do que os discursos de Pettinatto na SBL em 1976 atento haviam permitido. No entanto, a leitura dos textos publi-cados ainda se apoia no modelo popularizado por Pettinatto.A menos que os textos sejam publicados no uma leitura alter-nativa no ser possvel.

    Pettinatto no foi o nico responsvel por popularizar umacerta interpretao dos achados de Ebla. Reportagens publica-das na Newsweek e na b, alm dos artigos de autoria do prprioPettinatto na BAR, contriburam enormemente para que umnico ponto de vista (o de Pettinatto) fosse propagado.

    Foi assim que uma certa viso da importncia de Ebla popu-larizou-se rapidamente entre especialistas conservadores e fun-damentalistas cristos, que viram em Ebla uma prova irrefutvelda historicidade da Bblia. Essas pessoas identificaram o Yaw

  • 57ARQUEOLOGIA BBLICA

    de Pettinatto com o antigo YHWH de Israel e o Ebrun de Eblacom Eber, um ancestral de Abrao em Gn 11.14. Para seu cr-dito, o prprio Pettinatto no fez esta conexo. Mas pode tercrido ser possvel.

    Com base nas conexes que fizeram com Gn 14 e YHWH,leitores fundamentalistas passaram a defender que as tabuinhascontinham relatos da criao e do dilvio similares aos da Bblia.Outra vez, o fundamento de que suas convices tanto careci-am parecia ter cado-lhes dos cus. De fato, entre as tabuinhasde Ebla encontram-se algumas que mencionam nomes de cida-des que aparecem na Bblia, tais como Hazor, Megido, Gaza,Salm, Jope e Jerusalm, entre outras. Mas as concluses pare-cem extrapolar o razovel e cair na pura fantasia.

    Pettinatto e seus seguidores acreditam, por exemplo, queEbla forneceria a localizao definitiva do local de nascimentode Abrao (a cidade de Ur, na Caldia). Nomes pessoais comoAbrao, Eser, Israel, Michael, Sual e Davi supostamente apare-ceriam nas tabuinhas.

    Finalmente, Pettinatto defende que, como no antigo Israel,Ebla tambm teve juzes, profetas e reis, e que estes ltimoseram escolhidos do mesmo modo que o faziam os israelitas. evidente aqui a mistura de conexes bblicas.

    Quando pressionado a fornecer evidncias para suas as-sertivas, Pettinatto tem na maioria das vezes se retratado. Nojuzo de um especialista ante a perplexidade causada pelo esta-do em que se encontra o assunto, as evidncias de tais cone-xes parecem ter evaporado!

    O modo como tudo isso foi colocado pelos especialistase recebido nos crculos populares fez com que as autoridadessrias demonstrassem preocupao com a referncia a poss-veis conexes entre Ebla e o antigo Israel. Como se justificariarelacionar dois lugares separados por mais de mil anos?, per-guntaram-se os srios.

  • 58 DANIEL SOTELO

    Infelizmente, as descobertas de Ebla acabaram por ser valo-rizadas no por seus prprios mritos, mas por sua supostaconexo com o antigo Israel. Desde que conexes religiosastm sido usadas para justificar a exigncia de territrios nomoderno Oriente, Ebla s pde suscitar apreenso por partedos srios. O governo da Sria requereu (e recebeu) uma decla-rao de Pettinatto na qual o arquelogo repudiava as preten-sas conexes entre Ebla e a Bblia. Isso acabou por levar aacusaes de que a Sria tentava influenciar os estudos de Ebla1.Tudo isso serviu para mostrar como foi prematura a leitura dePettinatto e como a arqueologia pode se tornar uma perigosa arma.

    No fim, essas polmicas serviram para deteriorar ainda maiso relacionamento entre Mathiae e Pettinatto. Como respons-vel pelo projeto de Tel-El-Madick, Mathiae diz ser dele o mri-to de ter publicado as tabuinhas, pois teria ele escolhido os dezmembros da comisso que coordenou a traduo e a publica-o dos tabletes. Como especialista em epigrafia, Pettinatto porsua vez insiste que o mrito seu pela compreenso dos acha-dos de Ebla. Em represlia, Mathiae contratou o epigrafistaAlonso Archi para o lugar de Pettinatto. Archi dedicou-se entoa refutar toda a obra de Pettinatto.

    A situao acabou por degenerar em insultos e acusaesque as partes lanavam uma contra a outra, e se estenderam arevistas rivais, livros e simpsios internacionais. Para o bem epara o mal, Ebla tem se tornado uma lio de como no deveser um projeto arqueolgico.

    Promessas

    As descobertas de Ugarit, Mari e Nuzii, em 1930, e Qun-ram, em 1947, foram proclamadas revolucionrias. Com efeito,

    1 BR, 5, 1979 pp. 37-50

  • 59ARQUEOLOGIA BBLICA

    os povos sumricos criaram uma cultura avanada no 3 mil-nio. A despeito da impreciso na reconstruo de como vivi-am, os achados atestam uma rica cultura, sem igual na histriada humanidade. Os grandes centros dessas civilizaes foramo Egito, no sudeste, e a Mesopotmia, no sudoeste.

    Cavernas de Qunram

    A cultura de Ebla pertence ao mesmo perodo. Alm dosartefatos e construes, a leitura das mil tabuinhas do arquivoreal de Ebla confirma essa afirmao. difcil avaliar a impor-tncia das tabuinhas de Ebla, pois so em nmero muito supe-rior aos textos que datam do 3 milnio, encontrados em esca-vaes no Oriente.

    Quando tudo isso for publicado e estudado, nosso conheci-mento sobre as realizaes humanas nos campos da cincia e damatemtica, da lei e da religio aumentaro dramaticamente.

    As tabuinhas de Ebla trazem descries de uma sociedadeurbana complexa, com seus afazeres polticos e econmicos.Um bom nmero delas revelam as relaes de Ebla com outroscentros urbanos na Sria e na Mesopotmia. Elas iluminaronossa compreenso de como a urbanizao comeou e como osmoradores da antiguidade viviam.

  • 60 DANIEL SOTELO

    O estudo desse material pode esclarecer o processo de desen-volvimento atravs de diferentes tradies culturais. vidente suaimportncia para a compreenso da nossa prpria cultura con-tempornea e do sentido da raa humana como um todo.

    Por fim, as tabuinhas de Ebla permitem revisar nossa com-preenso do processo cultural no Oriente Antigo, fornecen-do informaes sobre momentos decisivos da histria dessaregio. Por exemplo, Pettinatto traduziu um texto que ele cha-ma de um boletim de guerra2, no qual encontra-se uma des-crio da batalha entre Ebla e sua rival, Mari. Iblul, o lder dastropas inimigas, chamado de rei de Mari e ssur.

    Pois bem. Antes do trabalho de Ebla, o entendimento cor-rente era o de que as duas cidades formaram uma aliana noreinado de Shamshi-Adad I, no sculo XIX a.C. Pettinatto de-monstrou que a aliana teve lugar 700 anos antes. Esse o tipode reviso histrica que os especialistas apreciam.

    O valor dos tabletes de Ebla est precisamente em permi-tir tais correes em nosso conhecimento da antiguidade. Porexemplo, a conexo entre Ebla e a Bblia, cujas primeiras pala-vras s viriam luz mil anos aps a queda da cidade sria em2275 a.C., soa inverossmil quando confrontada com os fatos.

    Concluso

    O interesse que as pesquisas arqueolgicas no OrienteMdio despertam deve-se em parte ao vnculo histrico dosstios com os relatos bblicos. Esta preocupao com a Bblia,contudo, no nos impede de ver Ebla em sua prpria luz. Quandoas pesquisas forem concludas, as contribuies de Ebla seroclaras e veremos que seu legado chegou at ns independente-mente da Bblia.

    2 Archives of Ebla, pp. 99-102

  • 61ARQUEOLOGIA BBLICA

    Ler a histria com um olho nos textos de Ebla e o outro naBblia s pode resultar numa distoro, que nos impedir dereconhecer o valor tanto de uma fonte quanto da outra. Os dadosculturais do povo de Ebla revelam uma sociedade prspera,marcada pelo surgimento de complexos centros urbanos cincomil anos atrs.

    Ebla deve, portanto, ser estudada e apreciada por seu valornico. Qualquer tentativa de usar nosso conhecimento de Eblapara legitimar uma viso particular da Bblia resultar em deso-nestidade intelectual.

  • 62 DANIEL SOTELO

  • 63ARQUEOLOGIA BBLICA

    JERUSALM

    Certamente no existe cidade mais cativante para o arque-logo que Jerusalm. Nela se concentram muitos projetos, masnenhum to promissor quanto a escavao do monte Ofel forados muros da cidade.

    Maquete do Templo de Herodes

    A ocupao do Ofel ocorreu no calcoltico3, entre 4300-3300 a.C. Quando as tribos de Israel chegaram a Cana, Ofelera habitada pelos jebusitas, que impediram a tomada a cidadepelos israelitas. Mais tarde Jerusalm foi conquistada por Davi,que fez da cidade a capital do seu reino e para onde foi levada aArca da Aliana. Foi l tambm que Salomo construiu o tem-plo para abrigar a Arca, tornando Jerusalm uma cidade santa.

    6

    3 Perodo entre o Neoltico e a Idade de Bronze.

  • 64 DANIEL SOTELO

    Nos sculos seguintes, a cidade viria a se tornar santa paracristos, judeus e muulmanos. Seu carter sagrado ops gera-es de fiis das trs religies, o que contribuiu para que todasas atenes se voltem para as escavaes em Jerusalm.

    O local

    Os visitantes de Jerusalm ficam chocados ao descobrirque o vale da cidade antiga moderno. Contudo, os muros dacidade antiga, suas portas, vielas e ruas estreitas, seus cami-nhos com arcos e abbadas e o templo no monte, tudo parecetransportar o visitante aos dias de Davi e Salomo.

    Os muros da cidade antiga foram construdos pelo sultoSaluman, o Magnfico, no sculo VI d.C. As ruas, porm, acom-panham o traado da cidade romana construda mais de 150anos depois da morte de Jesus. Dentro dos muros, tudo perma-neceu como no perodo salomnico. No lado sudoeste da cida-de est o templo muulmano Haran-El-Sharif (o santurio nobre),que abriga duas mesquitas e pequenos monumentos erguidosno comeo do sculo XVII d.C. Haran-El-Sharif foi erguido notopo de uma plataforma artificial, construda por Salomo nosculo X a.C.

    Muros e porta em Jerusalm

  • 65ARQUEOLOGIA BBLICA

    A Jerusalm do tempo de Jesus foi construda na bordado monte Ofel. A leste, a cidade limitada pelo vale do Cedron.A oeste, fica o vale do Enon. Os dois vales se encontram nosudoeste do monte. H evidncias de que essa rea comeou aser habitada cinco mil anos atrs. As pessoas foram atradas aoOfel pela proximidade do rio Gion, que fornece gua em abun-dncia no inverno e na primavera, pela facilidade de defesa damontanha e pela fertilidade dos vales.

    Os assentamentos pr-israelitas no Ofel nunca foram gran-des. De qualquer modo, a importncia da cidade nunca sebaseou em seu tamanho (12 acres) nem no nmero de seushabitantes (Jerusalm sempre teve uma populao pequena),mas em sua posio geogrfica. Ela se localiza na maior linhade comunicao de Cana, no alto de uma cordilheira que atra-vessa a Palestina de norte a sul.

    As tribos israelitas reconheceram essa importncia etomaram a cidade quando ocuparam Cana (Js 1.8 e Jz 15.63).Os assentamentos cananeus de Jerusalm antecipam as tribosde Israel no desenvolvimento de um sentido genuno de uni-dade do lugar. Com efeito, a conquista de Jerusalm por Davi(2 Sm 5.6-10) tornou possvel a unificao das tribos e a cons-truo da identidade de Israel como nao.

    O feito de Davi, no entanto, no sobreviveu morte deSalomo, que o sucedeu, e o reino davdico se dissolveu. Mas aimportncia da cidade foi assegurada pela existncia do tem-plo, onde repousava a Arca da Aliana, sinal da presena deDeus no meio do seu povo.

    Uma cidade, muitas paixes

    A paixo do antigo Israel por Jerusalm ecoa no lamen-to do salmista: Se eu me esquecer de ti, oh! Jerusalm, queminha mo direita seque-se. Minha lngua acabe com o paladar

  • 66 DANIEL SOTELO

    se eu no me lembrar de ti, se Jerusalm no estiver acima daminha maior alegria (Sl 137.5-6).

    Jerusalm evoca um sentimento profundo de revernciaentre os cristos, porque foi a cidade onde Jesus morreu e res-suscitou, e onde nasceu a Igreja. Os islmicos consideram Jeru-salm sagrada porque l o profeta Maom teria ascendido aoscus. Nenhum outro lugar, portanto, desperta tantas emoesconflitantes, crenas e esperana como Jerusalm. Tudo issofaz dela o melhor e o pior lugar para ser escavado.

    Todo arquelogo que escava Jerusalm se v no meio deum ambiente religioso carregado de fortes emoes. Em 1911,o arquelogo M. Parker conheceu esses sentimentos de formaquase trgica.

    O projeto de Pari foi uma busca por tesouros perdidos, eno uma investigao arqueolgica sria. Rumores de que oexplorador tinha a inteno de pilhar o local rapidamente seespalharam entre a populao rabe. Pari foi, ento, expulso daPalestina e deixou a regio num barco com ordem para o leva-rem direto para a Inglaterra.

    Outro projeto que sofreu forte oposio foi conduzido porY. Siloh. Apesar da autorizao do governo de Israel, Silohenfrentou srios problemas com os judeus ortodoxos da cida-de. Eles exigiam que os vasos com ossos de combatentes mor-tos na Guerra dos Seis Dias e enterrados no mesmo local dasescavaes no fossem removidos4. O projeto foi interrompidotemporariamente.

    Quando mais tarde Siloh retomou as escavaes, mais decem protestos convergiram em Israel pedindo que os trabalhosno Ofel parassem. As paixes se inflamaram e protestos aindamais violentos aconteceram. A querela foi parar na Alta Corte

    4 Os judeus ortodoxos consideram sacrilgio a profanao de sepulturas eisso foi incorporado s leis de Israel.

  • 67ARQUEOLOGIA BBLICA

    de Israel, que julgou a favor de Siloh, exigindo apenas que asescavaes evitassem violar sepulturas.

    A medida no encerrou o assunto, porque os judeus orto-doxos no aceitaram a deciso da corte, argumentando que elaera inapta para decidir sobre questes religiosas. A obra, contu-do, procedeu cautelosamente, evitando ofender sensibilidadesreligiosas.

    Mas Siloh voltou a enfrentar problemas, agora de outraordem. Primeiro, Jerusalm uma cidade viva e seus habitantessimplesmente no podiam ser desalojados de suas casas para queas escavaes tivessem lugar. Segundo, a cresta do Ofel nopodia ser escavada e duas reas pertencentes ao governo na par-te ocidental da montanha j haviam sido alvo de escavaesprvias. Finalmente, escavaes anteriores na montanha noencontraram nenhum indcio que ligasse o local ao perodo do pri-meiro Templo (10 a 6 sculos a.C.). Na opinio de alguns especia-listas, tudo isso prejudicou enormemente o projeto de Siloh.

    A segunda chance

    Foi quando um novo projeto teve incio no Ofel. A prefei-tura de Jerusalm iniciou a modernizao do sistema de drena-gem no vale do Cedron. No curso da obra, foram encontradasevidncias de um antigo assentamento. Arquelogos foram,ento, chamados para supervisionar os trabalhos no local.

    Y. Siloh concordou em levar para a regio o mesmo grupoque j havia escavado o Ofel. Siloh pretendia, entre outras coi-sas, explicar os antigos e complexos sistemas de gua de Jeru-salm. Estava certo tambm de que podia chegar a uma com-preenso melhor dos projetos de construo do tempo deSalomo e Ezequias, ou mesmo do perodo Persa (sculo VI aoIV a.C.). Era forte a crena de que a cidade de Davi encontrava-se na montanha de Ofel.

  • 68 DANIEL SOTELO

    Outra esperana se concentrava em material diverso.Segundo os relatos bblicos (2 Rs 23), o rei Josias teve vriosobjetos de culto estrangeiros removidos do templo. Ele teriaordenado que fossem queimados nas encostas do Kihon, forade Jerusalm. L. Stage j havia notado que K. Kennyonencontrara, durante suas pesquisas em Jeric, evidncias daexistncia de terraos de ambos os lados e fora dos muros. Adestruio dos objetos, portanto, deveria ter acontecido nes-ses terraos.

    Ao conduzir suas escavaes, Siloh sugeriu que Kennyon,ao definir que o lugar pertencia ao perodo dos hasmoneus,fizera-o com base no exame da pedra usada na torre e no tipode argamassa empregada na construo. A construo, contu-do, bem mais antiga e certamente servira de sub-estrutura dacidade de Davi.

    Siloh acreditava que a torre possua todos os elementos doperodo israelita. Embora alguns artefatos sejam claramente dosculo X a.C., a construo pode ter servido de apoio para asedificaes surgidas nos reinados de Davi e Salomo.

    Sistema de gua

    Uma importante contribui-o do projeto de Siloh foi oesforo para esclarecer o com-plexo sistema de tneis, canaise poos que integravam partedo sistema de gua de Jerusa-lm. Uma vez que a cidade sedesenvolveu no Ofel, era neces-srio assegurar a distribuio degua, principalmente em pero-dos de guerra. Um eficiente Tanque de Siloh

  • 69ARQUEOLOGIA BBLICA

    sistema de captao de gua foi vital durante os cerco ao longoda histria da cidade.

    Durante as escavaes anteriores, os arquelogos desco-briram sistemas de gua independentes, construdos na antigaJerusalm. O mais conhecido o tnel escavado por ordem dorei Ezequias, e que assegurou o suprimento de gua durantea crise do sculo VIII a.C., a que a Bblia alude em 2 Rs 20.20;2 Cr 32.30 e Is 22.8-11. O tnel foi escavado na rocha slida eos trabalhadores deixaram uma inscrio em suas paredes late-rais. O tnel de Ezequias foi decisivo durante a arremetida dosassrios contra Jerusalm.

    Um segundo sistema foi o canal de Silo, escavado porRaymond Wiell na parte antiga da cidade. Siloh reescavou umaparte desse canal, construdo para servir como sistema de irri-gao do campo. A gua vinha do rio Gion. A intervalos regu-lares, uma janela na parte lateral do canal desviava a gua docanal para o campo. Siloh cr tambm que poderia ter funcio-nado como um sistema de drenagem para a cidade.

    Um terceiro sistema inclua um poo e um complexo detneis, conhecido como o poo do labirinto. Este foi o nomedado a ele por Charles Warren, que o descobriu em 1867. Trata-sede um sistema muito simples que entrava pelo meio da cidade emedia apenas 29 metros. As guas do Gion poderiam ser levadaspara o interior de Jerusalm, a partir de uma encosta de 30 metros.

    Antes das escavaes de Siloh, aceitava-se a idia de queos trs sistemas pertenciam a diferentes perodos da histria deJerusalm. O poo do labirinto seria o mais antigo deles, datan-do talvez do perodo dos cananeus. Alguns crem que tenhasido usado pelos soldados de Davi para entrar em Jerusalm etom-la aos jebusitas (2 Sm 5.8). No h, contudo, evidnciasapoiando essa hiptese. Segundo os mesmos especialistas, ocanal de Silo remontaria ao perodo salomnico, enquanto otnel de Ezequias teria sido construdo no sculo VIII a.C.

  • 70 DANIEL SOTELO

    O tnel de Ezequias permanece aberto ainda hoje e se tor-nou uma atrao turstica muito popular. J os outros dois siste-mas esto cobertos de entulhos de escavaes anteriores. Lim-par o canal de Silo relativamente uma tarefa fcil, secomparado ao trabalho para retirar o entulho da encosta deWarren, acumulado ao longo de sculos.

    Siloh empregou escadas especiais para escalar as encostasverticais ngremes. Assim foi possvel instalar equipamentospara se chegar ao topo da encosta e iniciar as escavaes. Silohtambm contratou engenheiros sul-africanos para assegurar quetneis horizontais pudessem ser escavados sem levar perigo aostrabalhadores, ou mesmo causar danos s estruturas do local.

    Uma vez que escavar esses tneis tornou-se uma tarefaexaustiva e o tempo consumido nela longo demais, Siloh resol-veu seguir um caminho alternativo para explicar a relao entreos trs sistemas.

    Siloh est certo de que o tnel de Warren foi usado parafuga durante o ltimo perodo herodiano (sculo I d.C.). Parachegar a essa concluso, ele se baseou na arquitetura da entradado tnel e nas cmaras e abbadas acrescentadas posteriormen-te. As ltimas eram desconhecidas no sculo I a.C. Isso signifi-ca que o tnel de Warren pode ter sido usado no perodo dadestruio de Jerusalm no VII d.C. Os trs sistemas provavel-mente serviram como caminhos complementares de fuga.

    Na opinio de Siloh, o tnel de Warren seria o mais antigodos trs e serviu para captar gua no tempo de paz e em perodosde guerra, enquanto o canal de Silo destinava-se a irrigar reascultivadas fora dos muros, ao mesmo tempo em que fornecia guapara reservatrios localizados na parte leste da cidade. O tnel deEzequias teria sido acrescentado ao sistema no sculo VIII. Erausado para levar gua a um poo dentro dos muros da cidade, nolado sudeste. Assim, cada sistema tinha um propsito separado,mas todos contriburam para tornar possvel a vida no Ofel.

  • 71ARQUEOLOGIA BBLICA

    Outros achados

    As escavaes de Siloh no Ofel revelaram tambm remi-niscncias de um conjunto de casas com altura de trs metros,piso uniforme e trs salas retangulares, numa fileira de quatrosalas contguas. Numa das salas foi encontrado um forno, o queindica que ali se preparava a comida. Noutra sala havia umapedra que servia como assento de toalete, perto de uma basepara banho. A casa foi construda numa espcie de terrao ergui-do para apoiar as construes nas encostas do Ofel.

    A cidade de Davi no foi maior do que a de seus predeces-sores cananeus, pois a Jerusalm desse perodo estava confina-da ao Ofel. Nos sculos que se seguiram, a cidade se expandiu medida que a populao crescia. Ainda assim, a Jerusalm deDavi no foi muito alm das dimenses que a cidade teve noperodo jebusita. As ruas eram tortuosas e estreitas e seguiamos contornos do monte. A populao de Jerusalm literalmenteviveu no topo do monte, nos terraos construdos nas escarpasdo Ofel.

    Os escavadores de Siloh encontraram reminiscncias deconstrues que datam da Idade do Ferro. Entre elas, h ummuro construdo pelos habitantes pr-israelitas de Jerusalm, eque teria sido usado na defesa da cidade contra o ataque dosassrios (2 Rs 18.1-20.21). Encontraram ainda fortificaes ps-exlicas e construes destrudas pelos babilnicos no saque aJerusalm em 587 a.C.

    A relao dos achados de Siloh inclui ainda: cermicas,moedas e objetos metlicos. Algumas cermicas trazem estam-pas e inscries nas bordas. Jarras dos sculos VIII e VII a.C.trazem as palavras para o rei, indicando que continham pro-vises pertencentes ao palcio.

    Algumas cermicas datam do perodo persa (sculo VI a.C.)e trazem um entalhe com a palavra Jud, nome do territrio

  • 72 DANIEL SOTELO

    onde se originou o reino de Davi. Jarras do perodo helensti-co (sculos IV a II a.C.) esto estampadas com a palavra Jeru-salm. Algumas peas trazem o nome de pessoas, como umjarro do sculo VII a.C. com a inscrio Ahiel. Finalmente,h grandes placas de pedra fragmentadas com uma inscriode trs linhas feitas com formo. As palavras celebram aconstruo de um edifcio usado para estocar pertences do reie da sua casa.

    Um parque arqueolgico

    Quando as escavaes no Ofel forem concludas, o localabrigar um parque pblico. Siloh e seus voluntrios conti-nuam trabalhando para restaurar os muros da cidade, as casas,o sistema de gua e outras estruturas que vierem a ser desco-bertas.

    Um grande nmero de parques surgiu nos ltimos anosem locais previamente escavados, como Cesaria martima,Hazor, Massada e Megido. O parque a ser construdo no Ofelpermitir que estudantes, turistas interessados em arqueologiatenham a chance de admirar no s as modernas construessurgidas no sculo XX, mas as edificaes que antigos arquite-tos e engenheiros ergueram em Jerusalm num tempo distante.O parque ser o corao de uma cidade viva, que atrai visitan-tes de todo o mundo.

    Concluso

    Por ser Jerusalm considerada santa por povos de diferen-tes tradies religiosas, as escavaes no Ofel sempre suscita-ram reaes emocionadas. Sensibilidades se inflamam facilmen-te e vozes se levantam para condenar o trabalho dos pesquisadores.Siloh enfrentou oposio ao seu trabalho, e demonstraes

  • 73ARQUEOLOGIA BBLICA

    violentas de revolta s foram superadas com a ajuda da justiaisraelense. Nada nos leva a crer que isso v mudar. As dificul-dades, contudo, no tem impedido que se continue a escavarem Jerusalm, uma cidade que tambm um dos mais beloslugares do mundo.

  • 74 DANIEL SOTELO

  • 75ARQUEOLOGIA BBLICA

    CAFARNAUM,A CIDADE DE JESUS

    Introduo

    Cafarnaum fica na costa do mar da Galilia, na regionoroeste da Palestina. O evangelho de Mateus relata que Jesusdeixou Nazar para seestabelecer em Cafar-naum, onde teve incioseu ministrio. Nazarera um vilarejo sem mai-or importncia, com umapequena populao (Jo1.46). Isso explicaria, emparte, o que motivou Je-sus a trocar uma cidadepela outra.

    Cafarnaum era umcentro coletor de impos-tos (Mc 2.14) de aproxi-madamente 15 mil habi-tantes. Os quatro evange-lhos citam-na 16 vezes,sempre associada ao mi-nistrio de Jesus na Ga-lilia. Enquanto Mateus

    7

  • 76 DANIEL SOTELO

    e Marcos apenas mencionam que Jesus pregou na sinagoga deCafarnaum (Mt 4.23 e Mc 1.21), a narrativa dos dois outrosevangelistas traz uma riqueza de detalhes sobre a estadia deJesus na cidade.

    Lucas narra o episdio em que Jesus expulsa o demniode um homem (Lc 4.31-37), e Joo nomeia o mesmo lugar comoo local da pregao de Jesus sobre o po da vida (Jo 6.59),cujo teor teria escandalizado muitos discpulos (Jo 6.60-66).Segundo Mateus (Mt 11.23-34) e Lucas (Lc 10.15), Jesus teriaalmadioado Cafarnaum porque seus habitantes no responde-ram ao seu chamado ao arrependimento.

    Na lngua semtica Cafarnaum significa vila de Naum. OAntigo Testamento nunca menciona Cafarnaum, da ser duvidosoafirmar que esta seria a cidade do profeta Naum. Fontes judaicasmedievais tambm associaram o profeta cidade, mas essa identi-ficao carece de base histrica. O mais provvel que este nometeria sido dado cidade por causa do solo onde ela foi construda.5

    Flvio Josefo menciona que Cafarnaum se envolveu naprimeira revolta contra Roma, e fontes talmdicas relatam queuma com