artigo - dever de proteção 1

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47 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA INFLUÊNCIA NO DIREITO CIVIL 1 Luís Afonso Heck 1. INTRODUÇÃO A influência dos direitos fundamentais sobre o direito civil não é uma coisa evidente em si mesma. Sua exposição requer, portanto, primeiro uma diferenciação terminológica, de cujo resultado já se obterá uma orientação para o desenvolvimento desta exposição. Com isso, depois, essa influência será situada no âmbito da civil law, mais especificamente na Alemanha, onde, então, serão expostos os elementos principais do sucesso dessa influência que, primeiro, possibilitam a sua compreensão apropriada. Esse conjunto permiti- rá, finalmente, uma conclusão. 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMANOS A distinção entre direitos fundamentais e direitos humanos encontra-se no século XVIII, a época na qual surgiram as declarações de direitos humanos que persistem até hoje. As maiores situam-se na América do Norte e na França. Na América do Norte, o Bill of Rights de Virgínia, de 12 de junho de 1776, é o documento pelo qual os direitos humanos iniciam sua marcha vitoriosa como direitos fundamentais 2 . Essa declaração é tomada como modelo 1 Palestra apresentada no evento das Jornadas Preparatórias do XVII Congresso Argentino de Direito Civil organizado pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da UFRGS em conjunto com o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON) e a Universidad Nacional del Litoral (Santa Fé, Argentina) e coordenado pela Prof.ª Dra. Cláudia de Lima Marques, no dia 19 de setembro de 1998. A pesquisa expressa nesta palestra deve-se ao apoio da FAPERGS em forma de bolsa, à qual manifesto meus agradecimentos. 2 Para isso e para o seguinte: STERN, K. Idee der Menchenrechte und Posivitä der Grundrechte. In ISENSEE, J., KIRCHHOF, P. (herg.) Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Bd. V, Heidelgerg, 1992, § 108, Rdn. 13 ff.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA INFLUÊNCIA NO DIREITO CIVIL

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    DIREITOS FUNDAMENTAISE SUA INFLUNCIA NO DIREITO CIVIL1

    Lus Afonso Heck

    1. INTRODUO

    A influncia dos direitos fundamentais sobre o direito civil no umacoisa evidente em si mesma. Sua exposio requer, portanto, primeiro umadiferenciao terminolgica, de cujo resultado j se obter uma orientaopara o desenvolvimento desta exposio. Com isso, depois, essa influncia sersituada no mbito da civil law, mais especificamente na Alemanha, onde,ento, sero expostos os elementos principais do sucesso dessa influncia que,primeiro, possibilitam a sua compreenso apropriada. Esse conjunto permiti-r, finalmente, uma concluso.

    2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMANOS

    A distino entre direitos fundamentais e direitos humanos encontra-seno sculo XVIII, a poca na qual surgiram as declaraes de direitos humanosque persistem at hoje. As maiores situam-se na Amrica do Norte e na Frana.

    Na Amrica do Norte, o Bill of Rights de Virgnia, de 12 de junho de1776, o documento pelo qual os direitos humanos iniciam sua marchavitoriosa como direitos fundamentais2. Essa declarao tomada como modelo

    1 Palestra apresentada no evento das Jornadas Preparatrias do XVII Congresso Argentino deDireito Civil organizado pelo Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu da Faculdade deDireito da UFRGS em conjunto com o Instituto Brasileiro de Poltica e Direito do Consumidor(BRASILCON) e a Universidad Nacional del Litoral (Santa F, Argentina) e coordenado pelaProf. Dra. Cludia de Lima Marques, no dia 19 de setembro de 1998. A pesquisa expressanesta palestra deve-se ao apoio da FAPERGS em forma de bolsa, qual manifesto meusagradecimentos.

    2 Para isso e para o seguinte: STERN, K. Idee der Menchenrechte und Posivit der Grundrechte.In ISENSEE, J., KIRCHHOF, P. (herg.) Handbuch des Staatsrechts der BundesrepublikDeutschland. Bd. V, Heidelgerg, 1992, 108, Rdn. 13 ff.

    FelipeTexto digitadoHECK, Lus Afonso. Direitos fundamentais e sua influncia no direito civil. Revista Direito em Debate, v. 9, n. 14, 2013.

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    pelos novos estados de Pennsylvania, Maryland e North Carolina, em 1776,

    Massachusetts, em 1780, e New Hampshire em 1784. Onze anos aps a

    independncia (4 de julho de 1776), nasce o Estado federal norte-americano,

    em 4 de maro de 1787. Percebe-se, ento, a falta de direitos humanos na

    constituio federal. Essa falta corrigida dois anos depois pelos dez artigos

    complementares constituio.

    Segundos eles, o indivduo sujeito de direitos no pelo Estado, seno,

    por sua natureza, e deve ser respeitado pelo Estado. Ele tem direitos

    inalienveis, inviolveis, que o Estado deve reconhecer como posies de

    direito e de liberdade juridicamente especializadas e concretizadas, dirigidos

    para uma atuao determinada. Assim, o poder do Estado no mais absoluto,

    seno limitado pela constituio criada pelo poder constituinte do povo, que

    possui uma posio hierrquica superior das leis.

    Os direitos fundamentais so compreendidos as the basis and foundation

    of government. Qualquer um pode op-los ao poder do Estado como

    princpios jurdicos positivamente vlidos.

    A configurao dos direitos fundamentais nas constituies americanas

    como direitos que tm seu fundamento na natureza e essncia do homem e quese apresentam como direitos naturais, inatos, inalienveis e inseparveis do

    homem, por um lado e, por outro, a limitao do poder do Estado por esses

    direitos abre a passagem decisiva para o Estado constitucional moderno.

    Algo diferente se passa com a declarao dos direitos humanos e civis

    francesa, de 26 de agosto 3 de novembro de 1789. A sua caracterstica est

    mais na igualdade social, vinculada com um programa para a modificao das

    relaes feudo-estamentais existentes. Mas esse programa no convertido

    normativamente, com qualidade constitutivo-jurdica. Essa declarao no

    pretende ser constituio concreta, pois os franceses esto mais interessados

    na filosofia dos direitos, no em sua validez jurdica. Com base nessa situao

    diz Boutmy:

    Para os franceses, a declarao somente uma obra-prima deoratria, os artigos esto nela em pureza abstrata, somente no brilhode sua majestade e no domnio da verdade sobre os homens.

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    Nenhum tribunal pode empreg-los como meio jurdico ou aproveit-lospara a fundamentao da sentena. Para a instruo de todo o mundoescrevem os franceses.3

    Se essa situao indica que os direitos humanos atuam mais no planoabstrato e os direitos fundamentais mais no plano concreto, ento est ganhauma indicao para a relao entre eles e o direito civil, ou seja, o conhecimen-to da influncia pressupe essa diferenciao.

    Esse conhecimento alude, com isso, ao ponto de partida para acompreenso da influncia dos direitos fundamentais no direito civil, isto , nombito da civil law e da existncia de um recurso judicial para a defesa dosdireitos fundamentais4. Se se considera a plena satisfao deste ponto departida, ento parece melhor deter-se na Alemanha5, no s pelo fato darecepo6 mas tambm pela existncia do recurso constitucional7 e da

    3 Citado segundo STERN, K. (nota 1), Rdn. 19. Nessa passagem encontram-se mais refernciasnessa direo.

    4 Se os direitos fundamentais encontram sua validade terica nos direitos humanos, ento suavalidade prtica, seu significado prtico, depende disso, para que, quando violados, disponhao seu titular de uma via processual adequada para o seu restabelecimento e obtenham, almde seu enunciado normativo, sua realizao na vida da coletividade e solidifiquem umademocracia em liberdade que pressupe cidados autnomos. Ver tambm HECK, L. A. Otribunal constitucional federal e o desenvolvimento dos princpios constitucionais.Contributo para uma compreenso da jurisdio constitucional federal alem. Porto Alegre :Srgio Antonio Fabris, 1995. Pgina 177, nota 35. Do mesmo autor, O recurso constitucionalna sistemtica jurisdicional-constitucional alem, in: Revista de Informao Legislativa, n.124, out./dez. de 1994, pgina 116, 118.

    5 No ordenamento jurdico alemo atual, a questo da influncia dos direitos fundamentais nodireito civil formulada no sentido de que no se trata mais da relao Estadocidado, senoda relao cidadocidado, ou seja, da relao entre dois titulares de direitos fundamentais.Nessa relao entre pessoas privadas tambm se contam as pessoas jurdicas. Ver, para isso,STERN, K. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Band III/1, Mnchen, 1988,S. 1512 f. e, infra, nmero 4.3. O desenvolvimento dessa questo na Alemanha tambminfluenciou, principalmente, a ustria e o Japo (STERN, K., obra citada, S. 1535, 1537).

    6 Ver para isso, com exposio detalhada, WESEL, U. Juristische Weltkunde. Eine Einfhrungin das Recht, 7 Aufl., Frankfurt a. Main, 1994, S. 59 ff.

    7 Uma exposio pormenorizada do recurso constitucional encontra-se em HECK, L. A. Orecurso constitucional na sistemtica jurisdicional-constitucional alem, em Revista deInformao Legislativa, n. 124, out./dez. de 1994, pgina 115 e seguintes. Ver tambm,do mesmo autor, O tribunal constitucional federal e o desenvolvimento dos princpiosconstitucionais. Contributo para uma compreenso da jurisdio constitucional federalalem. Porto Alegre : Srgio Antonio Fabris editor, 1995, pgina 138 e seguintes.

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    jurisdio constitucional8. Essa influncia tem, todavia, tambm umaconexo com a situao de influncia do mbito internacional. Nisso, aseguir, deve se entrar.

    3. O DIREITO CIVIL ALEMONO MBITO INTERNACIONAL

    O trmino da Segunda Guerra marca o incio da influncia internacionalsobre o direito civil alemo. Entre outras coisas9 deve ser mencionada a UnioEuropia (na qual esto includas, hoje, as comunidades europias: Comunida-de Europia do Carvo e do Ao, Comunidade Econmica Europia eComunidade Europia de Energia Atmica). Existe no s uma srie deregulamentos jurdicos do legislador europeu e de convenes de direitopblico internacional mas, sobretudo, dezenas de linhas diretivas10 do legisla-dor europeu que modificaram materialmente, em pontos essenciais, o direitocivil alemo11. A repercusso da Unio Europia sobre o direito civil em geralencontra uma semelhana na repercusso do ius commune sobre determina-das matrias jurdicas, que existiu do sculo XIII ao sculo XVIII e que seassentava sobre o direito romano12.

    Alm da dimenso da influncia da Unio Europia sobre o direito civilem geral mencionada, existe, ainda, uma dimenso de influncia global sobreo direito privado em geral que, naturalmente, tem conseqncias na Unio

    8 Para isso, ver HECK, L. A. O tribunal constitucional federal e o desenvolvimento dosprincpios constitucionais. Contributo para uma compreenso da jurisdio constitucio-nal federal alem. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris editor, 1995, sobretudo pgina 85e seguintes, e, HESSE, K. Elementos de direito constitucional da Repblica Federal daAlemanha. Traduo por Dr. Lus Afonso Heck. Porto Alegre : Srgio Antonio Fabris editor,1998. Traduo de: Grundzge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland,nmero de margem 547 e seguintes, principalmente 559 e seguintes.

    9 Ver para isso, SANDROCK, O. Das Privatrecht am Ausgang des 20. Jahrhunderts:Deutschland - Europa - und die Welt, in: JZ, 1996, S. 3 f.

    10 Para as questes que se apresentam com elas ver GRUNDMANN, S. EG-Richtlinie undnationales Privatrecht, in: JZ, 1996, S. 274 ff.; ZITSCHER, H. C. Probleme eines Wandelsdes innerstaatlichen Rechts zu einem europischen Rechtssystem nach der Rechtsprechungdes Europischen Gerichtshofs, in: Rabels Zeitschrift fr auslndisches und internationalesPrivatrecht, 1996, S. 650 f., 652 ff.; SCHWARZE, J. Das schwierige Geschft mit Europaund seinem Recht, in: JZ, 1998, S. 1080 ff.

    11 Para o conjunto, ver SANDROCK, O. (nota 8), S. 4.12 Ver para isso, com mais demonstraes, SANDROCK, O. (nota 8), S. 6 f.

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    Europia. Essa dimenso de influncia global encontra a sua expresso naComisso UNCITRAL das Naes Unidas e no Instituto, sediado em Roma,designado com a frmula UNIDROIT13.

    4. A ENFORMAO DO DIREITO CIVIL ALEMOPELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Os quase cinqenta anos de existncia da Lei Fundamental de Bonn14

    tambm influram sobre os direitos fundamentais15. Uma viso de conjunto doresultado dessa influncia no possvel, no quadro desta palestra, ser

    13 Ver, para isso, com mais demonstraes, SANDROCK, O. (nota 8), S. 7 f. e STRNER, R.Der hunderste Geburtstag des BGB - nationale Kodification im Greinsenalter?, in: JZ, 1996,S. 751 f.

    14 Para o desenvolvimento histrico dos direitos fundamentais at a Lei Fundamental ver Hesse,K. Bedeutung der Grundrechte, in: BENDA, E., MAIHOFER, W., VOGEL, H.-J. (hrsg.)Handbuch des Verfassungsrechts, 2. Aufl., Berlin-New York, 1994, Rdn. 4 ff. e PIEROTH,B. und SCHLINK, B. Grundrechte, 13 Aufl., Heidelberg, 1997, Rdn. 26 ff. Em pormenores,STERN, K. (nota 1), Rdn. 21 ff.

    15 Os direitos fundamentais esto catalogados no artigo 1 ao 19 da Lei Fundamental, a saber:Artigo 1: proteo da dignidade humana;Artigo 2: direitos de liberdade;Artigo 3: igualdade diante da lei;Artigo 4: liberdade de crena e confisso;Artigo 5: liberdade de opinio e de imprensa, liberdade artstica e cientfica;Artigo 6: casamento, famlia, filhos no-legtimos;Artigo 7: ensino;Artigo 8: liberdade de reunio;Artigo 9: liberdade de associao, proibio de medidas contra conflitos coletivos de trabalho;Artigo 10: segredo de correspondncia, postal e de telecomunicaes;Artigo 11: liberdade de circulao;Artigo 12: liberdade de escolha da profisso, proibio de trabalho forado;Artigo 12a: servio militar e outras obrigaes de servio;Artigo 13: inviolabilidade do domiclio;Artigo 14: propriedade, direito de herana, desapropriao;Artigo 15: socializao;Artigo 16: desnaturalizao, extradio;Artigo 16a: direito de asilo;Artigo 17: direito de petio;Artigo 17a: limitao de direitos fundamentais em prestadores do servio militar e do servio

    substitutivo;

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    apresentada16. Aqui podem ser realados apenas alguns elementos desseresultado que so importantes para a compreenso apropriada da influnciados direitos fundamentais sobre o direito civil alemo.

    4.1. A vinculao dos Direitos Fundamentais

    De acordo com o artigo 1, alnea 3, da Lei Fundamental, os direitosfundamentais vinculam legislao, poder executivo e jurisdio como direitodiretamente vigente. Essa prescrio constitucional mudou a compreenso dosdireitos fundamentais diante da poca de Weimar, quando se tratava davalidez, hierarquia e vinculatividade dos direitos fundamentais17. Na LeiFundamental, os direitos fundamentais obrigam diretamente com fora cons-titucional o exerccio do poder estatal18. Por isso, a compreenso atual dosdireitos fundamentais vai na direo do seu sentido e significado, funo e forade efeito19. Essa prescrio tambm desempenha um papel importante najurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal, como guarda da constitui-o, principalmente ativada por meio do recurso constitucional. Por meio delao tribunal, pelos direitos fundamentais, contribuiu enormemente para a

    Artigo 18: perda de direitos fundamentais; e,Artigo 19: restrio de direitos fundamentais.Alm desses, direitos situados em outra parte da Lei Fundamental so, tambm, consideradoscomo fundamentais:Artigo 20, alnea 4: direito de resistncia;Artigo 33: equiparao cvica de todos os alemes;Artigo 101: proibio de tribunais de exceo;Artigo 103: direitos fundamentais do ru; e,Artigo 104: garantias jurdicas na privao da liberdade.

    16 Ver para isso, em pormenores, HESSE, K. (nota 7), nmero de margem 277 e seguintes;PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn. 46 ff.; STERN, K. (nota 4), S. 1509 ff.

    17 Ver Stern, K. Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte, in: ISENSEE, J.,KIRCHHOF, P. (herg.) Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Bd.V, Heidelberg, 1992, 109, Rdn. 22.

    18 Nisso est um distanciamento consciente da constituio do imprio de Weimar, na qual osdireitos fundamentais vinculavam a administrao mas no a legislao e na qual muitosdireitos fundamentais permaneceram princpios programticos no-vinculativos, cuja viola-o restou sem sano jurdica e judicial. Ver PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn.164.

    19 Ver STERN, K. (nota 16), Rdn. 22.

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    organizao e para a configurao material dos princpios diretivos do direitoconstitucional. Com isso, os direitos fundamentais influenciam legislao ejurisprudncia, teoria e prtica, inclusive o direito privado20.

    4.2. Tarefa e Funo dos Direitos Fundamentais21

    4.2.1. As Vrias Camadas dos Direitos Fundamentais

    Os pressupostos essenciais de uma vida em liberdade e dignidadehumana devem ser criados e mantidos pelos direitos fundamentais. Issosomente possvel quando a liberdade da vida em comunidade garantida damesma forma como a liberdade individual. A liberdade do particular somentepode existir dentro de uma comunidade livre. Essa liberdade pressupehomens que sejam capazes e que estejam dispostos a decidir, eles mesmos,sobre seus prprios assuntos e a cooperar de modo auto-responsvel nosassuntos da comunidade.

    Essas conexes configuram a peculiaridade, a estrutura e a funo dosdireitos fundamentais. Eles garantem no apenas direitos subjetivos do parti-cular, mas tambm princpios fundamentais objetivos da ordem constitucionalestatal-jurdica e democrtica. Nesse carter duplo, os direitos fundamentaismostram camadas de significado distintas que, cada vez, condicionam, prote-gem e completam reciprocamente.

    4.2.2. Direitos Fundamentais como Direitos Individuais

    de Defesa

    As garantias jurdico-fundamentais da Lei Fundamental e oasseguramento especial de sua validez tm a tarefa de defesa contra interven-es estatais na esfera da vida individual. O Tribunal Constitucional Federaldeu-se, desde o incio, como tarefa a formao da proteo efetiva dos direitosfundamentais. Pelo esclarecimento e fixao do contedo normativo e doalcance dos direitos fundamentais individuais, de sua relao recproca e dos

    20 Ver tambm PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn. 40.21 Sigo, aqui, no essencial, a exposio de HESSE, K. (nota 13), Rdn. 13 ff.

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    pressupostos de sua limitao, o tribunal levou a cabo, em comparao como passado, uma eficcia essencialmente aumentada dos direitos fundamentais.Nisso, ele orientou-se pelo entendimento de que a amplitude de proteo deum direito fundamental somente pode ser compreendida em vista dos fatos darealidade social; por conseguinte, uma transformao desses fatos no podeficar desconsiderada na interpretao22.

    4.2.3. Direitos Fundamentais como Princpios Objetivos

    Ao significado dos direitos fundamentais como direitos de defesasubjetivos do particular contra intervenes estatais ilegais corresponde seusignificado jurdico-objetivo como prescries de competncia negativas.Competncias legislativas, administrativas e judiciais sempre encontram seuslimites nos direitos fundamentais.

    Ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivoscorresponde seu significado como partes integrantes fundamentais da ordemdemocrtica, estatal-jurdica e, tambm, da federal.

    Desse modo, os direitos fundamentais atuam no quadro da ordemestatal-jurdica como limites para a atuao estatal, como garantias de base daordem jurdica, em especial tambm, de institutos centrais da ordem jurdicaprivada.

    Na sentena-Lth23 de 1958 foi determinado o significado jurdico-objetivo dos direitos fundamentais e seu efeito irradiador sobre o direito civil e,com isso, tomada posio24 a respeito do efeito diante de terceiros dos direitosfundamentais. Segundo isso, os tribunais cveis so obrigados a considerar, nainterpretao e aplicao de clusulas gerais e outros conceitos legaisindeterminados, os direitos fundamentais como linhas diretivas.25 Apesar dessa

    22 Aqui deve ser lembrado o programa da norma e o mbito da norma que, nisto,desempenham um papel importante. Ver para isso, MLLER, F. Juristische Methodik, 5.Aufl., Berlin, 1993, S. 26 ff., 45, 47 ff., 53, 74 f., 81, 103, 107 f., 120, 124, 143 ff., 147ff., 277 ff.

    23 Uma boa apreciao encontra-se em STARCK, C. Verfassungsgerichtsbarkeit undFachgerichte, in: JZ, 1996, S. 1035 f.

    24 Ver, infra, 4.3.2.25 Isso encontra a sua expresso na interpretao conforme os direitos fundamentais. Por meio

    dela, os direitos fundamentais atuam sobre a interpretao e aplicao do direito ordinriopela jurisdio e administrao. Aqui, a vinculao aos direitos fundamentais (artigo 1,alnea 3, da Lei Fundamental) requer que a deciso por uma interpretao seja orientadapelos direitos fundamentais. Ela deve trazer validade os direitos fundamentais, interpretaro direito ordinrio de forma amigvel aos direitos fundamentais, preservadora, protetora efomentadora da liberdade. Ver, para isso, PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn.77, 76.

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    influncia dos direitos fundamentais sobre o direito privado, um conflito entreparticulares sobre direitos e deveres de normas de conduta, jurdico-fundamen-talmente influenciadas, do direito civil permanece, material e processualmen-te, um conflito jurdico civil26.

    26 BVerfGE 7, 198 (205). Esse conjunto, o Tribunal Constitucional Federal expressou da formaseguinte:

    Sem dvida, os direitos fundamentais esto determinados, em primeiro lugar, a isto, deassegurar a esfera de liberdade do particular diante de intervenes do poder pblico; elesso direitos de defesa do cidado contra o Estado. Isso resulta tanto do desenvolvimentohistrico-espiritual da idia dos direitos fundamentais como dos precedentes histricos queconduziram recepo de direitos fundamentais nas constituies dos Estados particulares.Esse sentido tambm tm os direitos fundamentais da Lei Fundamental que, com aanteposio do ttulo dos direitos fundamentais, quis acentuar a primazia da pessoa e suadignidade diante do poder do Estado. A isso corresponde que o legislador concedeu o recursojurdico especial para a salvaguarda desses direitos, o recurso constitucional, apenas contraatos do poder pblico.

    Do mesmo modo, porm, certo que a Lei Fundamental, que no quer ser uma ordem neutrade valores (BVerfGE 2, 1 [12]; 5, 85 [134 ff., 197 ff.]; 6, 32 [40 f.]), em seu ttulo de direitosfundamentais tambm estabeleceu uma ordem de valores objetiva e que exatamente nistose manifesta um fortalecimento fundamental da fora de validez dos direitos fundamentais(Klein-v. Mangolt, Das Bonner Grundgesetz, Vorbem. B III 4 vor Art. 1 S. 93). Esse sistemade valores, que encontra o seu ponto central na personalidade humana, que se desenvolvelivremente dentro da comunidade social, e sua dignidade deve, como deciso fundamentaljurdico-constitucional, valer para todos os setores do direito; legislao, administrao ejurisdio recebem dele linhas diretivas e impulsos. Assim, ele influencia naturalmente tambmo direito civil; nenhuma prescrio jurdico-cvel deve estar em contradio com ele, cada umadeve ser interpretada em seu esprito.

    O contedo jurdico dos direitos fundamentais como normas objetivas desdobra-se no direitoprivado por meio das prescries que dominam diretamente esse setor jurdico. Como direitonovo deve estar de acordo com o sistema de valores jurdico-fundamental, assim direitoexistente mais antigo orientado quanto ao contedo por esse sistema de valores; deste correpara aquele um contedo jurdico-constitucional especfico que, desde ento, determina suainterpretao. Um conflito entre privados sobre direitos e deveres de tais normas de condutado direito civil influenciadas jurdico-fundamentalmente permanece, material e processual-mente, um conflito jurdico civil. Interpretado e empregado direito civil, embora suainterpretao tenha de seguir o direito pblico, a constituio. A influncia de critrios devalores jurdico-fundamentais ir fazer-se valer, sobretudo, naquelas prescries do direitoprivado que contm direito coercitivo e formam, assim, uma parte da ordre public em sentidoamplo , isto , dos princpios que, por razes do bem-comum, tambm devem ser vinculativospara a formao das relaes jurdicas entre os particulares e, por isso, esto subtrados aodomnio da vontade privada. Estas determinaes tm, segundo seu fim, um parentesco maisprximo com o direito pblico, ao qual elas se juntam complementarmente. Isso deve exp-las, em medida especial, influncia do direito constitucional. jurisdio se oferecem paraa realizao dessa influncia, sobretudo, as 'clusulas gerais' que, como o 826 [Quem, emuma forma que infringe os bons costumes, causa dano com premeditao a outro est obrigado indenizao do dano ao outro.] do BGB [cdigo civil], remetem, para o juzo sobre condutahumana, a critrios extrajurdico-cveis, em primeiro lugar at extrajurdicos, como os 'bonscostumes'. Porque na deciso sobre isto, o que esses mandamentos sociais exigem, cada vez,

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    4.3. Efeito Diante de Terceiros de Direitos Fundamentais

    Se pelo artigo 1, alnea 3, somente o poder estatal est vinculado aosdireitos fundamentais, no o sujeito de direitos privado, a no ser que elemesmo exera pontualmente poder pblico, ento est nisto uma manifesta-o clara contra um efeito diante de terceiros dos direitos fundamentais, quesignifica a validez dos direitos fundamentais na relao de um particular comoutro particular, no como no sentido tradicional, a validez dos direitosfundamentais na relao entre particular e Estado27.

    no caso particular, deve ser partido, em primeiro lugar, da totalidade das concepes de valoresque o povo, em um determinado momento de seu desenvolvimento esprito-cultural, alcanoue fixou em sua constituio. Por isso, as clusulas gerais foram, com razo, qualificadas de'pontos de invaso' dos direitos fundamentais no direito civil (Drig, in: Neumann-Nipperdey-Scheuner, Die Grundrechte, Band II S. 525).O juiz deve, em virtude da constituio, examinar se as prescries jurdico-cveis materiais,que devem ser por ele empregadas, esto influenciadas jurdico-fundamentalmente na formadescrita; se o caso esse, ento ele tem de observar na interpretao e emprego dessasprescries a modificao do direito privado que resulta disto. Se ele erra esses critrios e sesua sentena se funda na negligncia da influncia jurdico-constitucional sobre as normasjurdico-cveis, ento ele infringe no somente direito constitucional objetivo ao desconhecero contedo da norma de direito fundamental (como norma objetiva), ele viola, muito mais,como titular de poder pblico, por sua sentena, o direito fundamental a cuja consideraotambm pelo poder judicirio o cidado tem um direito jurdico-constitucional. Contra umatal sentena pode - sem prejuzo da luta contra o erro jurdico na via de instncias cveis-jurdicas o Tribunal Constitucional Federal ser chamado no caminho do recurso constitucional. OTribunal Constitucional Federal tem de examinar se o tribunal ordinrio julgou acertadamenteo alcance e a fora de eficcia dos direitos fundamentais no setor do direito civil. Disso resulta,porm, simultaneamente, a limitao da verificao: no tarefa do Tribunal Constitucionalexaminar sentenas do juiz civil em sua totalidade nos erros jurdicos; o Tribunal Constitucionaltem de julgar meramente o 'efeito irradiador' indicado dos direitos fundamentais sobre odireito civil e de fazer valer o contedo de valores do princpio jurdico-constitucional tambmaqui. O sentido do instituto do recurso constitucional que todos os atos do poder legislativo,executivo e judicial sejam verificveis em sua 'conformidade com os direitos fundamentais'( 90 BVerfGG [lei sobre o Tribunal Constitucional Federal]). Tampouco como o TribunalConstitucional Federal destinado a tornar-se ativo como instncia de reviso ou at super-viso diante dos tribunais cveis, tampouco ele deve abster-se em geral da verificao de taissentenas e passar ao largo de um desconhecimento, que se manifesta nelas, de normas ecritrios jurdico-fundamentais (BVerfGE 7, 198 [204 ff., em aspas no original]).

    27 Uma influncia dos direitos fundamentais sobre o direito civil (direito privado) no foiinteiramente desconhecida concepo de mundo da doutrina do direito do estado desdea revoluo francesa, porque a Dclaration de 1789 no tinha apenas uma direo deataque relacionada ao Estado, mas tambm se dirigiu contra privilgios estamentais eclericais, contra prerrogativas sociais no direito privado. Tratava-se, para ela, tambm derealizar liberdade e igualdade no direito privado, sobretudo, diante da escravido, gravamessobre bens imveis, obrigaes de servio e coisas semelhantes. Na Alemanha, no perodoprvio revoluo de maro de 1848, a influncia do pensamento jurdico-natural e a idiado desenvolvimento da personalidade nos escritos de Kant tambm demonstram uma direoda liberdade no direito privado. Ver para isso, com mais demonstraes, STERN, K. (nota4), S. 1.515 ff.

  • 57

    4.3.1. Efeito Diante de Terceiros Direto

    Um efeito diante de terceiros direto foi fundamentado pelo Tribunal

    Federal do Trabalho com a transformao do significado dos direitos funda-

    mentais, que atua no sentido de que:

    Sem dvida, no todos, mas uma srie de direitos fundamentaissignificativos da constituio no somente garantem direitos de liberda-de diante do poder estatal [...] antes (so) princpios de ordem para a vidasocial que, em uma proporo a ser desenvolvida mais de perto dodireito fundamental, tem significado direto para o trfego jurdico doscidados entre si [...]. Tambm a adeso normativa da Lei Fundamentalpara o Estado de direito social (artigo 20, 28) que, para a interpretaoda Lei Fundamental e outras leis, de importncia fundamental, fala afavor do efeito jurdico-privado direto das determinaes jurdico-fundamentais, que so indispensveis para o trfego dos membrosjurdicos entre si em uma comunidade liberal e social28.

    O Tribunal Federal tambm aceitou ocasionalmente um efeito diante de

    terceiros direto e o Tribunal Constitucional Federal ainda no se pronunciou

    definitivamente sobre a questo29.

    28 BAGE 1, 185 (193 f). Na doutrina foi, sobretudo, H.C. Nipperdey que defendeu a tese deum efeito diante de terceiros direto dos direitos fundamentais no direito privado sob o pontode vista da influncia do artigo 3 da Lei Fundamental na perspectiva de uma igualdadesalarial entre homens e mulheres em trabalho igual. O Tribunal Federal do Trabalho seguiu,em grande medida, a posio de Nipperdey que foi o seu primeiro presidente. Ver para isso,com mais demonstraes, STERN, K. (nota 4), S. 1524 ff.). Para os argumentos pr e contraum efeito diante de terceiros direto, ver PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn. 175e seguintes. Crtico: HESSE, K. (nota 7), nmero de margem 354 e seguinte. Aqui deve seracentuado que a doutrina do efeito diante de terceiros direto dos direitos fundamentaisno reconhece que cada direito fundamental deva ser vinculativo para o trfego jurdico-privado. Isso deve ser examinado, antes, para cada norma de direito fundamental. Dissoresulta que necessrio, para a soluo de um conflito, analisar reciprocamente as normasde direitos fundamentais e as normas jurdico-privadas competentes, cada vez, de umdeterminado ordenamento jurdico. Para o ordenamento jurdico alemo, ver STERN, K.(nota 4), S. 1538 ff.

    29 Ver para isso, com pormenores, HESSE, K. (nota 7), nmero de margem 353.

  • 58

    4.3.2. Efeito diante de terceiros indireto

    O efeito diante de terceiros indireto foi reconhecido relativamente cedo

    na jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal. Na sentena Lth, j

    mencionada, o Tribunal Constitucional Federal manifestou-se a respeito assim:

    No direito civil, o contedo jurdico dos direitos fundamentais desdobra-se

    indiretamente por meio de prescries jurdico-privadas30.

    O significado do efeito diante de terceiros indireto pode ser visto

    sobretudo nisto, que, sob as condies da sociedade industrial moderna

    altamente complexa, ele ajuda tambm a conservar liberdade e igualdade.

    Estas pressupem, segundo sua compreenso histrica, uma situao de

    simetria ftica, na qual cada cidado tem as mesmas oportunidades de

    perseguio e realizao de seus interesses. Essa simetria ftica , hoje, posta

    em perigo e eliminada no somente pelo poder do Estado, mas tambm pelo

    exerccio do poder econmico e social privado31. Assim, os direitos fundamen-

    tais influenciam as prescries jurdico-privadas tanto mais eficazmente quanto

    mais se trata da proteo de liberdade pessoal contra o exerccio de poder

    econmico e social32.

    30 BVerfGE 7, 198 (frase diretiva nmero 2, no acentuado no original). Na doutrina, o principalrepresentante do efeito diante de terceiros indireto dos direitos fundamentais foi G. Drig.Ele aludiu essa tese pela primeira vez no tratamento do direito fundamental da liberdade decirculao. Ver para isso, com mais demonstraes, STERN, K. (nota 4), S. 1532. Adoutrina do efeito diante de terceiros indireto dos direitos fundamentais centra a questonos conceitos carentes de preenchimento valorativo e nas clusulas gerais. Disso resulta anecessidade de, para a soluo de um conflito, verificar os conceitos carentes de preenchi-mento valorativo e as clusulas gerais competentes, cada vez, de um determinado ordenamentojurdico-privado. Para o ordenamento jurdico-privado alemo, ver STERN, K. (nota 4), S.1543.

    31 PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn. 183 (acentuado no original). Ver tambmHESSE, K. (nota 7), nmero de margem 349.

    32 HESSE, K. (nota 7), nmero de margem 357 (acentuado no original).

  • 59

    4.4. Dever de Proteo do Estado

    Na jurisprudncia recente delineia-se uma evoluo que deixa ficarclara a conexo entre o efeito diante de terceiros indireto e o dever de proteodo Estado33.

    Os direitos fundamentais atuam jurdico-objetivamente no somentesobre a interpretao e aplicao do direito ordinrio por meio da jurisdioe administrao, mas tambm sobre a formao do direito ordinrio pelolegislador. Em sua funo jurdico-objetiva os direitos fundamentais pedem dolegislador uma ao positiva. Essa formao o obriga proteo dos direitosfundamentais e a critrios jurdico-fundamentais para organizaes, presta-es e procedimentos estatais tambm l onde o particular no tem, emprimeiro lugar, direitos subjetivos correspondentes34.

    O conceito de dever de proteo obtm contornos quando referido funo clssica dos direitos fundamentais de rechaar violaes. Essa funopede do Estado opor-se protetoramente a ameaas a direitos fundamentaisquando:

    a) a violao de direitos fundamentais, que promete desenvolver-se da ameaaao direito fundamental, irreparvel;

    b) o desenvolvimento, que promete produzir a violao ao direito fundamentalda ameaa ao direito fundamental, no-dominvel; e,

    c) o jogo de conjunto, rico em conflito de coliso, dos particulares, no qualpodem ocorrer violaes de direitos fundamentais, no , pelo afetado,regulvel autonomamente35.

    33 Assim HESSE, K. (nota 7), nmero de margem 353. Ver tambm STERN, K. (nota 4), S.1560 f. Mais recentemente, surgiram tambm na doutrina outras formas de tratamento daquesto do efeito dos direitos fundamentais no direito privado. Nesse sentido, cabemencionar: ALEXY, R. Theorie der Grundrechte, 2. Aufl., Frankfurt a. M.,1994, S. 484 ff.Uma tentativa de esclarecer completamente o efeito dos direitos fundamentais no direitoprivado encontra-se em STERN, K. (nota 4), S. 1563 ff.

    34 PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn. 82. Ver tambm HESSE, K. (nota 7), nmerode margem 350.

    35 Assim, PIEROTH, B. und SCHLINK, B. (nota 13), Rdn. 92 (acentuado no original). Uma visode conjunto detalhada sobre o efeito diante de terceiros de direitos fundamentais no direitoprivado e sobre a doutrina dos deveres de proteo jurdico-fundamentais encontra-se emSINGER, R. Vertragsfreiheit, Grundrechte und der Schutz des Menschen vor sich selbst, in:JZ, 1995, S. 1135 ff.

  • 60

    4.5. Decises Correspondentes do TribunalConstitucional Federal

    Na jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal devem sermencionadas duas decises que espelham claramente a questo do efeitodiante de terceiros dos direitos fundamentais. A seguir ser apresentada a suaformao com remisso literatura pertinente.

    4.5.1. Contratos de Fiana

    4.5.1.1. A Questo

    Nos recursos constitucionais apresentados ao Tribunal ConstitucionalFederal estava colocada a questo de at que ponto os tribunais cveis estoobrigados, em virtude da constituio, a submeter a um controle de contedocontratos com bancos medida que familiares sem renda e sem bens dotomador de crdito assumem, como cidados, altos riscos de responsabilidade36.

    4.5.1.2. A Posio da Jurisprudncia

    Durante, praticamente, dez anos os tribunais cveis ocuparam-se pro-gressivamente com casos nos quais jovens entraram em dvidas sem sadaporque afianaram seu parceiro ou pais para altos crditos bancrios, emboradispusessem somente de pequenas rendas.

    Os tribunais submetiam primeiro essa prtica contratual a um controlede contedo amplo. Alguns tribunais estaduais (Dsseldorf, Kln e Hamburg)valorizavam o alargamento da responsabilidade a cnjuges inexperientes eoutros membros familiares na falta de disposio de renda ou bens comocontrrio aos bons costumes. O tribunal estadual de Lbeck julgou at toda aobrigao como contrria aos bons costumes que de antemo e reconhecida-mente iria ultrapassar os valores livres de penhora mensais do devedor. Oponto de apoio legal desses tribunais era o 138, alnea 1 (Um negcio jurdicoque infringe os bons costumes nulo.), do BGB.

    O tribunal estadual de Stuttgart, com base no 310 (Um contrato, peloqual uma parte se obriga a transferir seu patrimnio futuro ou uma frao deseu patrimnio futuro ou a gravar com um usufruto, nulo.) do BGB, julgavauma obrigao contratual nula quando o credor de antemo pde reconhecerque a co-responsabilidade iria conduzir a um excesso de dvidas sem sada.

    36 BVerfGE 89, 214 (214 f.).

  • 61

    Outros tribunais estaduais partiam, sobretudo, dos deveres de esclare-cimento e considerao que resultam do 242 (O devedor obrigado a efetuara prestao assim como a boa-f, em ateno aos costumes de trfego, oexige.) do BGB e j existem antes da concluso do contrato. Os tribunaisestaduais de Celle e Hamm indeferiam aes de cobrana contra membrosfamiliares co-responsveis com o fundamento de que os bancos proponentesno eliminaram mal-entendidos na forma indicada e, por isso, violaram seusdeveres de advertncia e se tornaram obrigados a uma indenizao37.

    O IX senado civil do Tribunal Federal rechaou amplamente, no que foiacompanhado pelo III senado civil, o controle de contedo dos contratos pelostribunais estaduais. Segundo ele, contratos de fiana no poderiam ser vistoscomo contrrios aos bons costumes porque conduzissem presumivelmente aum excesso de dvidas. A liberdade de formao de contratos compreendepara cada capaz completo o poder jurdico de assumir obrigaes que podemser cumpridas somente sob condies especialmente favorveis. A inexperinciacomercial de um cidado no fundamento para carregar os institutos decrdito com deveres de esclarecimento e aconselhamento. Um maior de idadesabe tambm, no geral, sem advertncias especiais que uma emisso dedeclarao de fiana apresenta um negcio arriscado. O banco pode, assim,partir disto, que aquele que assume uma obrigao de fiana conhece o alcancede sua atuao e avalia seu risco em responsabilidade prpria. Coisa diferentevale, em todo caso, ento, quando o banco, por meio de conduta prpria e paraele reconhecvel, suscita no cidado um engano pelo qual o risco da responsa-bilidade aumentado38.

    Entrementes o XI senado civil do Tribunal Federal, o competente paradireito bancrio, modificou essa jurisprudncia. Sob o apelo ao TribunalConstitucional Federal ele sustenta a concepo de que em uma paridadecontratual perturbada o juiz obrigado a um controle de contedo de contradosde fiana com auxlio das clusulas gerais do cdigo civil. A co-responsabilidadepara dvidas bancrias altas de cnjuges ou pais pode mostrar-se, sob deter-minados pressupostos, contrria aos bons costumes39.

    37 BVerfGE 89, 214 (215 f.).38 BVerfGE 89, 214 (217 f.). Essa jurisprudncia encontrou, em parte, aprovao contida na

    literatura. Preponderantemente, porm, ela foi rejeitada. Tambm alguns tribunais estaduaisrejeitaram o seu seguimento. Indicaes bibliogrficas e jurisprudncia encontram-se, in:BVerfGE 89, 214 (217).

    39 BVerfGE 89, 214 (217), com remisses jurisprudncia.

  • 62

    4.5.1.3. O Caso Concreto

    4.5.1.3.1. O Primeiro Recurso Constitucional

    O pai da proponente do recurso constitucional trabalhava, primeiro,como agenciador de imveis. Ele construa e vendia apartamentos. Em 1982ele solicitou para a caixa econmica municipal a duplicao de seu limite decrdito de cinqenta mil para cem mil marcos. Quando a caixa econmicamunicipal pediu uma garantia, a proponente, ento com 21 anos, assinou em1982 um documento de fiana impresso com a quantia mxima de cem milmarcos, afora os deveres acessrios.

    O aumento do crdito foi ento concedido. A proponente obteve paraa conta de crdito um direito de assinatura mas ela mesma no dispunha debens. Ela no tinha formao profissional, estava preponderantemente desem-pregada e recebia, ao tempo da declarao de fiana, 1.500 marcos lquido.

    Em outubro de 1984 o pai da proponente abandonou seu negcioimobilirio e trabalhou doravante como armador. A caixa econmica municipalfinanciou a compra de um navio com 1.300.000 marcos. Em dezembro de1986 ela rescindiu os crditos nocobertos (em torno de 2.400.000 marcos)e notificou a proponente que seria solicitada pela fiana40.

    4.5.1.3.2. O Segundo Recurso Constitucional

    A proponente afianou-se em 1979 de sua prpria dvida diante dobanco demandante para a garantia de um emprstimo de seguro que haviasido concedido a seu cnjuge na quantia de trinta mil marcos. Na poca dadeclarao da fiana ela estava sem rendas e bens. Quando seu marido entrouem mora com o pagamento dos juros, o banco, em 1988, rescindiu oemprstimo. O saldo devedor consistia na poca em 32.140,31 marcos. Pelaincluso do valor de resgate do seguro de vida ele foi reduzido a 16.274,02marcos. Tendo por base este montante o banco demandou41.

    4.5.1.4. A Posio do Tribunal Constitucional Federal

    Segundo o Tribunal Constitucional Federal, as censuras da proponenteafetam, antes, a interpretao daquelas clusulas gerais que indicam aostribunais cveis um controle de contedo de contratos jurdico-obrigacionais,

    40 BVerfGE 89, 214 (218).41 BVerfGE 89, 214 (221, em aspas no original).

  • 63

    sobretudo os 138 e 242 do BGB. Em sua concretizao, de acordo com aproponente, devem ser considerados a autonomia privada e o direito depersonalidade geral, o que os tribunais cveis desconheceram no procedimentoinicial. Essa fundamentao, conforme o Tribunal Constitucional Federal,compreende acertadamente o significado dos direitos fundamentais para aconcretizao de clusulas gerais jurdico-cveis.

    A Lei Fundamental, continua o Tribunal Constitucional Federal, contmem seu ttulo de direitos fundamentais decises bsicas jurdico-constitucionaispara todos os setores do direito. Essas decises bsicas desdobram-se por meiodaquelas prescries que dominam diretamente o campo jurdico respectivo etm, sobretudo, tambm significado na interpretao de clusulas geraisjurdico-cveis. Quando os 138 e 242 remetem, em geral, aos bonscostumes, aos costumes de trfego, assim como boa-f, eles pedem dostribunais uma concretizao pelo critrio de concepes de valores que so, emprimeiro lugar, determinadas pelas decises de princpio da constituio. Porisso, os tribunais cveis esto obrigados, em virtude da constituio, a conside-rar, na interpretao e emprego das clusulas gerais, os direitos fundamentaiscomo linhas diretivas. Se eles desconhecem isto e decidem, por conseguinte,em prejuzo de uma parte processual, ento eles a violam em seus direitosfundamentais42.

    Em outro lugar, prossegue o Tribunal Constitucional Federal dizendoque a cincia do direito civil est, ao fim e ao cabo, de acordo sobre isto, queo princpio da boa-f indica um limite imanente do poder de formaocontratual e fundamenta a autorizao para um controle de contedo judicialdo contrato. Sobre os pressupostos e a intensidade do controle de contedoexiste, sem dvida, discusso na literatura jurdica. Para uma apreciaojurdico-constitucional basta, todavia, a comprovao de que o direito vigente,em todo o caso, tem disposio instrumentos que tornam possvel reagirapropriadamente a perturbaes estruturais da paridade contratual.

    Para os tribunais cveis resulta disto o dever de, na interpretao eemprego de clusulas gerais, prestar ateno a que contratos no sirvam comomeio de determinaes alheias. Se as partes contratuais estipularam uma

    42 BVerfGE 89, 214 (229 f., em aspas no original) com remisses jurisprudncia do prprioTribunal Constitucional Federal.

  • 64

    regulao em si admissvel, ento regularmente ir economizar-se um controle

    de contedo amplo. Mas se o contedo do contrato para uma parte

    invulgarmente agravante e, como compensao de interesses, manifestamen-

    te inadequado, ento os tribunais no devem satisfazer-se com a afirmao:

    contrato contrato. Eles devem, antes, clarificar se a regulao uma

    conseqncia de poder de negociao estruturalmente desigual e, dado o caso,

    intervir corretivamente no quadro das clusulas gerais do direito civil vigente.

    Como eles devem proceder nisto e a quais resultados devem chegar , em

    primeiro lugar, uma questo do direito ordinrio, ao qual a constituio deixa

    um espao livre amplo. Uma infrao contra a garantia jurdico-fundamental

    da autonomia privada, porm, entra ento em considerao quando o

    problema da paridade contratual perturbada nem sequer visto ou sua soluo

    tentada com meios imprestveis43.

    4.5.2. Direito de Posse do Locatrio

    4.5.2.1. O Caso Concreto

    O proponente era locatrio de uma casa. A locadora rescindiu a relao

    de aluguel e o proponente alegou, entre outras coisas, estar violado em seu

    direito de propriedade do artigo 14, alnea 1, frase 1 (A propriedade e o direito

    de herana sero garantidos.), da Lei Fundamental44.

    4.5.2.2. A posio do Tribunal Constitucional Federal

    At a alegao do proponente, o Tribunal Constitucional Federal havia

    deixado aberta a questo se o direito de posse do locatrio, resultante do

    contrato de aluguel, na casa alugada propriedade no sentido desta garantia

    de liberdade45. Na deciso deste recurso constitucional o Tribunal Constitu-

    43 BVerfGE 89 214 (232 f., em aspas no original) com remisses literatura. Ver, sobre estasentena, na literatura: HESSE, H. A. und KAUFFMANN, P. Die Schutzpflicht in derPrivarechtsprechung, in: JZ 1995, S. 219 ff.; GERNHUBER, H.-J. Ruinse Brgschaften alsFolge familirer Verbundenheit, in: JZ, 1995, S. 1086 ff.

    44 BVerfGE 89, 1.45 BVerfGE 89, 1 (5 f.) com remisso sua prpria jurisprudncia.

  • 65

    cional Federal respondeu-a afirmativamente,46 ou seja, o direito de posse do

    locatrio na casa alugada propriedade no sentido do artigo 14, alnea 1, frase

    1, da Lei Fundamental47.

    Segundo o Tribunal Constitucional Federal, a proteo de propriedadedo locatrio ope-se a decises judiciais de desconhecerem o significado ealcance do artigo 14, alnea 1, frase 1, da Lei Fundamental, para o direito deposse. Tambm nisso a proteo de propriedade do locatrio no se distingueem sua estrutura daquela do locador48.

    5. CONCLUSO

    No sculo passado a influncia foi no sentido contrrio, especialmenteclaro em Laband, que tentou trabalhar o direito do estado alemo a partir domtodo do direito privado. Com isso, a influncia estava situada no planodoutrinal, ou seja, no dogmtico. Neste sculo, principalmente depois dasegunda guerra, a influncia do direito constitucional sobre o direito civilencontra-se no plano jurisprudencial, isto , no do aperfeioamento e desen-volvimento do direito. Dito em outras palavras: na constituio esto ospressupostos da criao, validez e realizao das normas da ordem jurdicainfra-constitucional e ela determina, em grande medida, tambm o seucontedo; assim, ela converteu-se em um elemento da unidade da ordemjurdica total da comunidade e, nisto, ela no s exclui uma separao entredireito constitucional e outros setores jurdicos, especialmente do direitoprivado, mas tambm uma coexistncia estanque destes setores jurdicos e,com isso, ela desenvolve, simultaneamente, aquele efeito que cimenta aunidade, o qual pressupe a existncia e efeito normativo da constituiomesma.

    46 BVerfGE 89, 1 (6).47 BVerfGE 89, 1 (frase diretiva nmero 1).48 BVerfGE 89, 1 (10). Ver sobre esta sentena na literatura, crtico: ROELLECKE, G.

    Mietwohnungsbesitz als Eigentum, in: JZ, 1995, S. 74 ff.

  • 66

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