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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE LETRAS
TEORIA DA LINGUAGEM POÉTICA
VANESSA CHANICE MAGALHÃES
O CONCEITO DE POESIA PRESENTE ENTRE BEHR E
LEMINSKI
BRASÍLIA
2014
VANESSA CHANICE MAGALHÃES
O CONCEITO DE POESIA PRESENTE ENTRE BEHR E
LEMINSKI
Artigo elaborado como forma de avaliação para a disciplina Teoria da Linguagem Potética, ofertada pelo professor Piero Eyben no primeiro semestre de 2014.
BRASÍLIA
2014
SUMÁRIO
A DEFINIÇÃO DE POESIA: ENTRE SONHO E POESIA.......................................5
A REPRESENTAÇÃO DOS POETAS.........................................................................7
RESTOS VITAIS.............................................................................................................9
POEMAS QUE ABORDAM A TEMÁTICA DA MORTE.......................................10
POEMAS QUE ABORDAM UMA TEMÁTICA “VISCERAL”.............................11
POEMAS QUE TRATAM DO PRÓPRIO FAZER POÉTICO...............................13
CAPRICHOS E RELAXOS.........................................................................................14
POEMAS PARA ALICE..............................................................................................15
POEMAS SOBRE SUAS ORIGENS...........................................................................17
POEMAS QUE ABORDAM SUA RELAÇÃO COM A MÚSICA..........................17
POEMAS QUE CONVERSAM COM O CÂNONE LITERÁRIO..........................19
CONCLUSÃO................................................................................................................20
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................21
A definição de poesia: entre sonho e poesia
Octávio Paz, em seu livro, O Arco e a Lira, faz as seguintes afirmações ao tentar
definir o conceito de poesia:
La poesía es conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz
de cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionaria por
naturaleza; ejercicio espiritual, es un método de liberación interior. La
poesía revela este mundo; crea otro. Pan de los elegidos; alimento
maldito. Aisla; une. Invitación al viaje; regreso a la tierra natal.
Inspiración, respiración, ejercicio muscular. Plegaria al vacío, diálogo
con la ausencia: el tedio, la angustia y la desesperación la alimentan.
Oración, letanía, epifanía, resencia. Exorcismo, conjuro, magia.
Sublimación, compensación, condensación del inconsciente. (PAZ,
1999, p. 13).
Ao afirmar que poesia é “condensação do inconsciente”, Octávio Paz dialoga
com os conceitos freudianos de condensação e deslocamento, utilizados pelo
psicanalista pela primeira vez em seu livro A Interpretação dos Sonhos, em 1900.
Em seu livro, Freud disserta sobre a alta capacidade de condensação dos sonhos,
devido a imensa “quantidade de representações que se relacionam com cada fragmento
individual retido do sonho” (FREUD, 2012, p. 330), ou seja, a partir de um único
elemento do sonho, por menor que ele seja, o número de associações produzidas durante
sua análise será extremamente vasto. Para ilustrar essa discrepância em números, o
autor afirma que se formos passar para o papel aquilo que nos lembramos do nosso
sonho, não teríamos mais de meia folha escrita, mas ao refletirmos a respeito dos
pensamentos oníricos que permeiam aquele mesmo sonho, produziríamos até 12 vezes
mais conteúdo (Op. cit., p. 331). Da mesma forma acontece com poesia, onde cada
símbolo vai nos trazer por analogia uma extensa gama de associações.
Portanto, quando Octávio Paz faz essa afirmação a respeito da poesia, ele não
somente se utiliza de um conceito freudiano, como também relaciona intimamente o
conceito de poesia com o conceito de sonho, uma vez que o sonho é um “processo
inconsciente de pensamento” (Op. cit., p. 332) e, assim como a poesia, também é uma
condensação. Logo, tanto o sonho quanto a poesia se encaixam dentro dessa mesma
definição de “condensação do inconsciente”. A partir dessa conclusão, as compreensões
de alguns elementos que compõem o sonho se tornam fundamental para a compreensão
do que vem a ser de fato a poesia.
Outro conceito relevante para o sonho, que acompanha a concepção de
condensação, é o deslocamento, definido por Freud como o movimento de transferência
do pensamento que alcança a nossa consciência durante sonho. “Assim, o fato de o
conteúdo dos sonhos incluir restos de experiências triviais deve ser explicado como uma
manifestação da distorção onírica (por deslocamento);” (Op. cit., p. 217). Nós temos
assim um conteúdo aparente fazendo contraposição ao seu significado real, que foi
transferido para um foco secundário, indireto. Apesar da ocorrência do deslocamento,
conseguimos encontrar o significado real dos sonhos através de uma análise de seu
conteúdo aparente.
Para trazer esses dois conceitos de condensação e deslocamento para mais
próximo da poesia, trarei a relação feita por Lacan, um psicanalista francês seguidor dos
ensinamentos de Freud, que visando estabelecer um diálogo mais próximo com a
linguística, equivale tais conceitos freudianos aos conceitos de metáfora e metonímia.
A metonímia relaciona-se com o deslocamento, uma vez que ela é um processo
de transferência, uma associação feita através do processo de contiguidade. Nas
palavras de Lacan, “Ela concerne à substituição de alguma coisa que se trata de nomear
- estamos, com efeito, ao nível do nome. Nomeia-se uma coisa por outra que é o seu
continente, ou a parte, ou que está em conexão com.” (LACAN, 1996, p. 510).
Já a metáfora, por sua vez, relaciona-se a condensação por ser um processo de
substituição, permitido através de um processo de similaridade entre os léxicos.
Todavia, assim como a contiguidade e a similaridade são dois processos que não
ocorrem de maneiras desassociadas, também a metáfora e a metonímia estão
intrinsecamente relacionadas (e, por sua vez, a condensação e o deslocamento). Ou seja,
um processo metafórico não acontece sem que aconteça juntamente (ou aprioramente)
um processo metonímico.
A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas
imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota
entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu
lugar na cadeia significante, enquanto o oculto permanece presente em
sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. (LACAN, 1996, p.
510).
Quando Nancy, em seu texto A Resistência da Poesia, afirma que a "poesia não
tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada
momento ausente, e transferido para longe.” (NANCY, p. 10, grifo meu), ele corrobora
com essa visão da condensação e do deslocamento na poesia, onde há uma transferência
do significado real – que se encontra longe – e uma ausência de elementos maiores que
estão condensados em outros símbolos dentro da poesia.
A representação dos poetas
Agora que já estudamos os conceitos básicos que permearão a busca pela
definição da poesia nesse trabalho, faz-se importante uma breve contextualização dos
poetas estudados.
Nicolas, natural de Cuiabá, se mudou para Brasília aos 16 anos de idade e lançou
seu primeiro livro três anos depois de sua chegada. Durante a sua carreira, Behr possuía
o claro intuito de participar da construção de Brasília - uma cidade mais nova que o
próprio poeta – e que, portanto, ainda se encontrava em processo de formação cultural.
A condição particular dessa cidade – o fato de ser um projeto, um “plano piloto”
– e todas as consequências que esse plano trouxe pra vida daqueles que fizeram parte
das primeiras gerações de Brasília – literalmente as “cobaias” desse projeto – foram
problematizadas por Behr em sua poesia. Nicolas tinha um intuito característico:
“humanizar a maquete”. Nas palavras do autor:
Brasília é uma cidade desesperadora – massificada e massificante. Não há
nomes de rua, só números: desumana e fria. Esse negócio de você morar dentro de um
número te arrasa. Em Cuiabá, eu morava na Travessa Nossa Senhora da Guia. De
repente, estava na 415-F-303. Isso acaba com você.
Desde que começou a produzir, Nicolas publicou 15 livros até o ano de 1980 e
então passou um período de 13 anos sem publicar mais nenhuma obra. Em 1993, o
poeta volta à ativa e continua escrevendo até os dias de hoje, já tendo publicado mais de
13 livros desde sua retomada.
É importante ressaltar que apesar de Brasília ter sido uma inspiração para vários
poemas de Behr e que tenha sido especialmente por essa temática que o autor tenha
ficado mais conhecido, a poesia dele não se resume a só isso. Diversos assuntos são
tratados nas suas obras iniciais que serão analisadas mais à frente nesse trabalho.
Leminski, natural de Curitiba, iniciou sua carreira literária uma década antes de
Behr e viveu vários momentos históricos importantes antes de efetivamente chegar na
produção literária da década de 70. O autor publicou cerca de 15 obras poéticas ao todo,
entre elas, hai kais, poesia concretista, letras de músicas tropicalistas e poesia marginal.
Leminski de fato viveu todo o processo das vanguardas europeias no Brasil, nas
diversas formas em que as vanguardas surgiram e a sua obra poética consegue
evidenciar claramente essas transições pelo qual o país passou.
A sua passagem pelo Mosteiro de São Bento aos 14 anos de idade também foi
muito significativa para a sua formação, pois foi lá que o escritor teve ser primeiro
contato com as grandes obras clássicas de Dante, Homero, Virgílio, entre outros. Desde
então, Leminski continuou seus estudos literários e esse aspecto do autor é bem
marcado em suas poesias, misturando as influências das vanguardas com seus poetas
clássicos favoritos.
O livro do Nicolas Behr escolhido para análise foi o Restos Vitais, publicado em
1980 e reunindo quase todos os poemas dos primeiros cinco livros do autor, escritos
entre os anos de 77 e 79, – Iogurte com Farinha, Grande Circular, Caroço de Goiaba,
Chá Com Porrada e Bagaço. O livro escolhido do Paulo Leminski foi o Caprichos e
Relaxos, publicado em 1983, e também reunindo quase todos os poemas de dois dos
seus primeiros livros – Polonaises e Não Fosse Isso e Era Menos/Não Fosse Tanto e Era
Quase.
A escolha desses dois livros para análise se deu com base na proximidade da
época de publicação entre os mesmos e na pluralidade dos poemas contidos em cada
um, uma vez que ambos englobam coletâneas de obras anteriores e, portanto, são
capazes de retratar uma boa extensão da produção literária de cada autor durante aquela
época.
Restos Vitais
O meu intuito desde o momento em que escolhi Behr para ser objeto de pesquisa
desse trabalho era estudar uma face do autor que não é muito abordada nos trabalhos
acadêmicos que encontrei: uma face separada de Brasília. Que Nicolas Behr é o poeta
de Brasília, isso todo mundo já sabe. O que poucos sabem é quanto a poesia do autor
não se resume a isso, que Behr não é escritor de um tema só.
Restos Vitais se provou novamente a melhor escolha de análise, portanto, pelo
fato de conter um peso significativo de poemas sobre assuntos pelo qual o autor não
ficou conhecido - apenas Grande Circular é dedicado a falar sobre Brasília e, ainda
assim, sua extensão é mínima diante dos livros restantes.
Na orelha do livro já encontramos uma explicação do autor sobre a obra que
contemos em mão - um livro montado e editado pelo próprio Nicolas Behr. Isso faz com
que eu imediatamente dê uma atenção muito maior aos outros elementos que permeiam
à obra que não somente o texto. E a capa do livro – imagem criada por Behr – é
extremamente simbólica: uma lâmina de gilete em cima de diversas impressões digitais.
Essa imagem, aliada ao título “Restos Vitais”, é um grande aviso do conteúdo dessa
obra, que possui um quê de visceral.
Poemas mordidos, cuspidos, rasgados, cortados pela lâmina de gilete permeiam
toda a extensão do livro Restos Vitais.
Pra quem está acostumado com a face do poeta que construiu “Braxília”, uma
bela utopia de Brasília, e que retrata essa cidade de uma forma muitas vezes divertida,
bem humorada – sem deixar de fora é claro suas críticas políticas, mas que são feitas
sempre de uma maneira mais sútil – talvez se surpreenda com esse tom melancólico e
pessimista de Behr em Restos Vitais.
Assassinato, morte, irritação, tristeza, unhas, dentes e outros tantos objetos
cortantes permeiam boa parte dos poemas do autor. A ironia também é presente aqui de
uma forma mais seca, mais afiada, e definitivamente sem a sutileza que encontramos
nos seus escritos mais famosos.
Para ilustrar a presença desses temas em sua obra, selecionei alguns poemas, que
podem ser vistos abaixo.
Poemas que abordam a temática da morte:
aqui não tem nada disso,
ou se mata ou se mata
você não tem escolha,
ou mata ou mata
é matar ou matar
***
matei aula no recreio
estrangulei o diretor na
sala de espera
esquartejei meu colega no
banheiro
esfolei o professor no intervalo
torturei o porteiro na
saída
passei em todos os
vestibulares da vida
***
dei um tiro no ouvido
e nem ouvi
o barulho do meu corpo
caindo no chão
***
você tem uma hora de prazo
pra escovar os dentes
pagar suas dívidas
comprar um carro zerinho
e dar um tiro na cabeça
***
na esquina
um mendigo degolado
pede esmolas
com a cabeça na mão
O tratamento dado à morte por Behr nos poemas acima é de uma frieza muito
grande, talvez uma tentativa do autor de naturalizar essa temática. Também é
perceptível um tom melancólico e pessimista em sua poesia, como se o autor estivesse
um pouco – ou bastante – desacreditado com a sociedade, e utilizasse de uma ironia
cortante para chamar atenção para esse fato. O poema “matei aula no recreio” que
termina com os versos “passei em todos os/ vestibulares da vida” exemplifica a minha
opinião.
Poemas que possuem uma temática “visceral”:
as minhas unhas
estavam enormes
semana passada
fiquei morrendo de medo
e roí
unha por unha
dente por dente
***
cortei as unhas com tesoura
cortei os dedos com faca
cortei as mãos com machado
e a gilete de um canto reclamou
“quando é que eu vou
entrar nessa brincadeira?”
***
meus olhos estão fechados
para balanço
meu ouvido está entupido
de barulho
minhas unhas estão roídas
até os dentes
minhas veias estão entupidas
de sangue poluído
***
morda sua língua
você tem dentes pra quê?
***
na quinta feira
da semana passada
esqueci minha boca
dentro do armário
naquele dia
não mordi ninguém
***
quem teve a mão decepada
levante o dedo
O poema destacado em negrito acima representa a primeira definição de poesia
que encontrei para representar a concepção de Behr em Restos Mortais. Nesses versos,
o poeta questiona acerca da existencialidade, do porquê das coisas existirem. Se você
possui dentes em sua boca, eles precisam estar lá por alguma razão e o poeta não
concebe a possibilidade dos dentes existirem sem uma razão de ser.
Uma analogia possível é pensarmos que um poeta não pode existir sem essa
mesma razão. A partir dessa afirmação, não podemos mais conceber um poeta que não
exista para, de fato, produzir poesia.
Poemas que tratam do próprio fazer poético:
Assim como a consciência que Nicolas demonstra ao longo de sua obra poética
sobre estar “construindo Brasília”, em Restos Vitais nós podemos perceber em boa parte
das suas poesias uma consciência do fazer poético.
Os poemas de Behr possuem autonomia, eles falam, indiretamente, sobre o
próprio fazer artístico. Da mesma maneira em que eles são capazes de refletir a
realidade do mundo, eles também refletem a si mesmo. E é isso que trás realidade aos
seus textos. Pois refletir a realidade que nos cerca é, de alguma maneira, o mesmo que
refletir a si mesmo.
POBRÁS
Poesia Brasileira
orgulhosamente apresenta
um produto que vai pro lixo:
os poetas
***
A POBRÁS
Poesia Brasileira
está admitindo:
palavras idéias
poetas e coragem
exigimos:
- bom comportamento
- atestado de antecedentes
- redação própria
Oferecemos:
- ótimos ambiente de trabalho
- condução para as cidades-satélites
- acidentes de trabalho à vontade
além de cantina na obra
os interessados procurem o Sr. Poema
no horário intelectual
***
estou salvo:
a poesia não é tudo
Nos versos grafados acima também consegui enxergar mais uma concepção de
poesia, uma afirmação que se dá a partir da negação: para Behr, a poesia é tudo. E
quando ele descobre a existência de um mundo onde a poesia não seria tudo, ele,
ironicamente, faz uma poesia para relatar essa descoberta, reforçando o tom irônico do
poema que permeia toda a escrita de Restos Vitais.
Caprichos e Relaxos
Caprichos e Relaxos é um livro dividido em sete partes, sendo a primeira, que dá
nome ao título do livro, a mais extensa de todas, composta por 53 poemas. A segunda e
a terceira parte contém a republicação quase na íntegra dos poemas de livros anteriores
do autor, lançados em 1980. Respectivamente: Polonaises e Não Fosse Isso e Era Tanto/
Não Fosse Menos e Era Quase.
Em sequência, encontramos a sessão Ideolágrimas, com os haicais do autor, uma
marca registrada de sua obra poética, influenciada pela admiração que ele possuía por
alguns escritores japoneses, como Bashô. A quinta – e última parte que fará parte do
corpus desse trabalho – é intitulada Sol-te, onde encontramos uma seleção de poemas
visuais feitos pelo grupo Sequelas do Alcoolismo, que Leminski integrava. As duas
últimas partes não serão estudadas aqui, a primeira por se tratar de um estilo muito
diferente de texto, mais próximo ao conto, e o segundo por ser uma publicação de
poemas escritos em 64 e 66 – período que não está dentro do recorte histórico feiro para
esse estudo, onde só trabalhamos publicações da década de 70.
Contrastando com a poesia de Behr, em Caprichos e Relaxos nós temos uma
variável de temas completamente novos. Aqui é feita muita alusão às origens do poeta –
origens essas polaca, negra e indígena – e uma série de homenagens, intertextualidades.
Leminski está constantemente conversando com alguns escritores que fizeram parte de
seu cânone literário e também com alguns músicos, tanto do tropicalismo brasileiro
quanto do pop internacional.
Outra figura marcante em sua obra é a sua esposa Alice Ruiz, para quem o poeta
dedica vários de seus poemas. A brincadeira com os sons, a forma das palavras e a
apresentação visual também é muito mais forte que em Restos Vitais. Isso ocorre porque
a influência concretista em Leminski foi marcante em sua carreira. Ele fez parte, ao lado
dos irmãos Campos e de Pignatari, do processo da disseminação desse novo estilo
literário.
É interessante chamar atenção para o fato que mesmo Leminski não tendo
poemas que falam tão explicitamente sobre o fazer poético como Behr falou, ainda
assim essa é uma temática que está diluída dentro de outras no meio da sua obra. Por
estar sempre conversando com escritores do cânone literário, Leminski acaba discutindo
em algumas dessas conversas sobre o fazer literário, sobre sua própria produção e
ambições.
Neste haicai se torna claro esse autorreflexo presente na poesia leminskiana:
nada me demove
ainda vou ser
o pai dos irmãos Karamazov
Abaixo selecionei alguns poemas que fazem parte dos temas mais recorrentes de
Caprichos e Relaxos.
Poemas para Alice:
ali
só
ali
se
se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse
se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce
ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece
***
você me alice
eu todo me aliciasse
asas
todas se alassem
sobre águas cor de alface
ali
sim
eu me aliviasse
***
ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse
vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
Poemas sobre as suas origens:
meu coração de polaco voltou
coração que meu avô
trouxe de longe pra mim
um coração esmagado
um coração pisoteado
um coração de poeta
***
girafas
africanas
como meus avós
quem me dera
ver o mundo
tão do alto
quanto vós
O poema destacado acima condensa de maneira bastante efetiva a concepção de
poesia tida por Leminski. Para ele, a visão de poesia está intimamente ligada com a
ideia das suas origens, sua herança genética deixada pelos seus avós, como se poesia
fosse algo que se “herda”, que é transmitido de geração em geração e que faz parte de
um sistema que precisa ser continuado.
Poemas que abordam a sua relação com a música:
Nos seguintes poemas há referência à música Strawberry Fields Forever, da
banda britância The Beatles, que marcou o cenário musical internacional da década de
60 e também à Gilberto Gil que foi um grande representante da música tropicalista
brasileira.
business man
make as many business
as you can
you will never know
who i am
your mother
says no
your father
says never
you’ 11 never know
how the strawberry fields
it will be forever
***
riso para gil
teu riso
reflete no teu canto
rima rica
raio de sol
em dente de ouro
“everything is gonna be allright”
teu riso
diz sim
teu riso
satisfaz
enquanto o sol
que imita teu riso
não sai
Poemas que conversam com o cânone literário:
Leminski faz menção à uma série de escritores como Guimarães Rosa, Pe.
Antônio Viera, Dante Alighieri, James Joyce, Fernando Pessoa, entre outros.
parar de escrever
bilhetes de felicitações
como se eu fosse camões
e as ilíadas dos meus dias
fossem lusíadas,
rosas, vieiras, sermões
***
não creio
que fosse maior
a dor de dante
que a dor
que este dente
de agora em diante
sente
não creio
que joyce
visse mais numa palavra
mais do que fosse
que nesta pasárgada
ora foi-se
tampouco creio
que mallarmé
visse mais
que esse olho
nesse espelho
agora
nunca
me vê
***
um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores
O poema acima reforça a concepção de poesia dita anteriormente, onde a poesia
é vista como um sistema em continuidade, algo que se herda, e mostra as diferentes
visões que um poeta tem ao longo da vida, em diferentes momentos, a respeito da
herança que ele deixará para a posteriorida.
Conclusão
Apesar de ambos os artistas configurarem como poetas contemporâneos, terem
vividos um mesmo momento histórico marcante que se deu aqui no Brasil durante a
década de 70, a noção de poesia é realizada de maneira distinta na poesia dos mesmos.
No recorte feito da obra dos artistas, que abrangeu anos muitos próximos de produção,
as temáticas escolhidas por cada um dos autores foi exclusiva.
As semelhanças que podemos apontar entre os dois dizem respeito à forma de
expressão – os poemas-minuto – que eles escolheram utilizar para passar suas
mensagens.
Como dito anteriormente, também há nos dois uma forte consciência desse fazer
poético, um senso de responsabilidade com o momento vivido, que se expressa em
todas as suas poesias.
A influência do concretismo também é forte para os dois autores, apenas se
mostra mais evidente em Caprichos e Relaxos do que em Restos Vitais.
Em suma, enquanto Behr demonstra uma visão poética mais irônica, “pesada”
nas suas temáticas, um recurso de denúncia, até, do retrato da sociedade que ele
enxergava de maneira desgostosa, Leminski encara a poesia como sendo uma grande
responsabilidade, algo que ele herdou através das gerações não só da sua família, mas
também de outros grandes poetas. Para Leminski, a poesia é uma conquista que precisa
ser passada a diante.
Referências Bibliográficas
BEHR, Nicolas. Restos vitais. Brasília: Pau-Brasília, 2005.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos - Volume 1. Editora L&PM Pocket,
2012.
LACAN, Jacques. Escritos. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.
LEMINSKI, Paulo. Caprichos e Relaxos. São Paulo: Cantadas Literárias, 1983.
MACHADO, Lizaine Weingartner. Caprichos e Relaxos: faíscas da poesia de
Leminski. Florianópolis, 2010. Disponível em <
http://revistaliter.dominiotemporario.com/doc/PauloLeminski_lizaine.pdf>
NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia. Edições Vendaval.
PAZ, Octavio. Obras Completas 1: La casa de la presencia.