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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE LETRAS TEORIA DA LINGUAGEM POÉTICA VANESSA CHANICE MAGALHÃES O CONCEITO DE POESIA PRESENTE ENTRE BEHR E LEMINSKI

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Page 1: Artigo Piero

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE LETRAS

TEORIA DA LINGUAGEM POÉTICA

VANESSA CHANICE MAGALHÃES

O CONCEITO DE POESIA PRESENTE ENTRE BEHR E

LEMINSKI

BRASÍLIA

2014

Page 2: Artigo Piero

VANESSA CHANICE MAGALHÃES

O CONCEITO DE POESIA PRESENTE ENTRE BEHR E

LEMINSKI

Artigo elaborado como forma de avaliação para a disciplina Teoria da Linguagem Potética, ofertada pelo professor Piero Eyben no primeiro semestre de 2014.

BRASÍLIA

2014

Page 3: Artigo Piero
Page 4: Artigo Piero

SUMÁRIO

A DEFINIÇÃO DE POESIA: ENTRE SONHO E POESIA.......................................5

A REPRESENTAÇÃO DOS POETAS.........................................................................7

RESTOS VITAIS.............................................................................................................9

POEMAS QUE ABORDAM A TEMÁTICA DA MORTE.......................................10

POEMAS QUE ABORDAM UMA TEMÁTICA “VISCERAL”.............................11

POEMAS QUE TRATAM DO PRÓPRIO FAZER POÉTICO...............................13

CAPRICHOS E RELAXOS.........................................................................................14

POEMAS PARA ALICE..............................................................................................15

POEMAS SOBRE SUAS ORIGENS...........................................................................17

POEMAS QUE ABORDAM SUA RELAÇÃO COM A MÚSICA..........................17

POEMAS QUE CONVERSAM COM O CÂNONE LITERÁRIO..........................19

CONCLUSÃO................................................................................................................20

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................21

Page 5: Artigo Piero

A definição de poesia: entre sonho e poesia

Octávio Paz, em seu livro, O Arco e a Lira, faz as seguintes afirmações ao tentar

definir o conceito de poesia:

La poesía es conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz

de cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionaria por

naturaleza; ejercicio espiritual, es un método de liberación interior. La

poesía revela este mundo; crea otro. Pan de los elegidos; alimento

maldito. Aisla; une. Invitación al viaje; regreso a la tierra natal.

Inspiración, respiración, ejercicio muscular. Plegaria al vacío, diálogo

con la ausencia: el tedio, la angustia y la desesperación la alimentan.

Oración, letanía, epifanía, resencia. Exorcismo, conjuro, magia.

Sublimación, compensación, condensación del inconsciente. (PAZ,

1999, p. 13).

Ao afirmar que poesia é “condensação do inconsciente”, Octávio Paz dialoga

com os conceitos freudianos de condensação e deslocamento, utilizados pelo

psicanalista pela primeira vez em seu livro A Interpretação dos Sonhos, em 1900.

Em seu livro, Freud disserta sobre a alta capacidade de condensação dos sonhos,

devido a imensa “quantidade de representações que se relacionam com cada fragmento

individual retido do sonho” (FREUD, 2012, p. 330), ou seja, a partir de um único

elemento do sonho, por menor que ele seja, o número de associações produzidas durante

sua análise será extremamente vasto. Para ilustrar essa discrepância em números, o

autor afirma que se formos passar para o papel aquilo que nos lembramos do nosso

sonho, não teríamos mais de meia folha escrita, mas ao refletirmos a respeito dos

pensamentos oníricos que permeiam aquele mesmo sonho, produziríamos até 12 vezes

mais conteúdo (Op. cit., p. 331). Da mesma forma acontece com poesia, onde cada

símbolo vai nos trazer por analogia uma extensa gama de associações.

Portanto, quando Octávio Paz faz essa afirmação a respeito da poesia, ele não

somente se utiliza de um conceito freudiano, como também relaciona intimamente o

conceito de poesia com o conceito de sonho, uma vez que o sonho é um “processo

inconsciente de pensamento” (Op. cit., p. 332) e, assim como a poesia, também é uma

condensação. Logo, tanto o sonho quanto a poesia se encaixam dentro dessa mesma

Page 6: Artigo Piero

definição de “condensação do inconsciente”. A partir dessa conclusão, as compreensões

de alguns elementos que compõem o sonho se tornam fundamental para a compreensão

do que vem a ser de fato a poesia.

Outro conceito relevante para o sonho, que acompanha a concepção de

condensação, é o deslocamento, definido por Freud como o movimento de transferência

do pensamento que alcança a nossa consciência durante sonho. “Assim, o fato de o

conteúdo dos sonhos incluir restos de experiências triviais deve ser explicado como uma

manifestação da distorção onírica (por deslocamento);” (Op. cit., p. 217). Nós temos

assim um conteúdo aparente fazendo contraposição ao seu significado real, que foi

transferido para um foco secundário, indireto. Apesar da ocorrência do deslocamento,

conseguimos encontrar o significado real dos sonhos através de uma análise de seu

conteúdo aparente.

Para trazer esses dois conceitos de condensação e deslocamento para mais

próximo da poesia, trarei a relação feita por Lacan, um psicanalista francês seguidor dos

ensinamentos de Freud, que visando estabelecer um diálogo mais próximo com a

linguística, equivale tais conceitos freudianos aos conceitos de metáfora e metonímia.

A metonímia relaciona-se com o deslocamento, uma vez que ela é um processo

de transferência, uma associação feita através do processo de contiguidade. Nas

palavras de Lacan, “Ela concerne à substituição de alguma coisa que se trata de nomear

- estamos, com efeito, ao nível do nome. Nomeia-se uma coisa por outra que é o seu

continente, ou a parte, ou que está em conexão com.” (LACAN, 1996, p. 510).

Já a metáfora, por sua vez, relaciona-se a condensação por ser um processo de

substituição, permitido através de um processo de similaridade entre os léxicos.

Todavia, assim como a contiguidade e a similaridade são dois processos que não

ocorrem de maneiras desassociadas, também a metáfora e a metonímia estão

intrinsecamente relacionadas (e, por sua vez, a condensação e o deslocamento). Ou seja,

um processo metafórico não acontece sem que aconteça juntamente (ou aprioramente)

um processo metonímico.

A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas

imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota

entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu

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lugar na cadeia significante, enquanto o oculto permanece presente em

sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. (LACAN, 1996, p.

510).

Quando Nancy, em seu texto A Resistência da Poesia, afirma que a "poesia não

tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada

momento ausente, e transferido para longe.” (NANCY, p. 10, grifo meu), ele corrobora

com essa visão da condensação e do deslocamento na poesia, onde há uma transferência

do significado real – que se encontra longe – e uma ausência de elementos maiores que

estão condensados em outros símbolos dentro da poesia.

A representação dos poetas

Agora que já estudamos os conceitos básicos que permearão a busca pela

definição da poesia nesse trabalho, faz-se importante uma breve contextualização dos

poetas estudados.

Nicolas, natural de Cuiabá, se mudou para Brasília aos 16 anos de idade e lançou

seu primeiro livro três anos depois de sua chegada. Durante a sua carreira, Behr possuía

o claro intuito de participar da construção de Brasília - uma cidade mais nova que o

próprio poeta – e que, portanto, ainda se encontrava em processo de formação cultural.

A condição particular dessa cidade – o fato de ser um projeto, um “plano piloto”

– e todas as consequências que esse plano trouxe pra vida daqueles que fizeram parte

das primeiras gerações de Brasília – literalmente as “cobaias” desse projeto – foram

problematizadas por Behr em sua poesia. Nicolas tinha um intuito característico:

“humanizar a maquete”. Nas palavras do autor:

Brasília é uma cidade desesperadora – massificada e massificante. Não há

nomes de rua, só números: desumana e fria. Esse negócio de você morar dentro de um

número te arrasa. Em Cuiabá, eu morava na Travessa Nossa Senhora da Guia. De

repente, estava na 415-F-303. Isso acaba com você.

Desde que começou a produzir, Nicolas publicou 15 livros até o ano de 1980 e

então passou um período de 13 anos sem publicar mais nenhuma obra. Em 1993, o

poeta volta à ativa e continua escrevendo até os dias de hoje, já tendo publicado mais de

13 livros desde sua retomada.

Page 8: Artigo Piero

É importante ressaltar que apesar de Brasília ter sido uma inspiração para vários

poemas de Behr e que tenha sido especialmente por essa temática que o autor tenha

ficado mais conhecido, a poesia dele não se resume a só isso. Diversos assuntos são

tratados nas suas obras iniciais que serão analisadas mais à frente nesse trabalho.

Leminski, natural de Curitiba, iniciou sua carreira literária uma década antes de

Behr e viveu vários momentos históricos importantes antes de efetivamente chegar na

produção literária da década de 70. O autor publicou cerca de 15 obras poéticas ao todo,

entre elas, hai kais, poesia concretista, letras de músicas tropicalistas e poesia marginal.

Leminski de fato viveu todo o processo das vanguardas europeias no Brasil, nas

diversas formas em que as vanguardas surgiram e a sua obra poética consegue

evidenciar claramente essas transições pelo qual o país passou.

A sua passagem pelo Mosteiro de São Bento aos 14 anos de idade também foi

muito significativa para a sua formação, pois foi lá que o escritor teve ser primeiro

contato com as grandes obras clássicas de Dante, Homero, Virgílio, entre outros. Desde

então, Leminski continuou seus estudos literários e esse aspecto do autor é bem

marcado em suas poesias, misturando as influências das vanguardas com seus poetas

clássicos favoritos.

O livro do Nicolas Behr escolhido para análise foi o Restos Vitais, publicado em

1980 e reunindo quase todos os poemas dos primeiros cinco livros do autor, escritos

entre os anos de 77 e 79, – Iogurte com Farinha, Grande Circular, Caroço de Goiaba,

Chá Com Porrada e Bagaço. O livro escolhido do Paulo Leminski foi o Caprichos e

Relaxos, publicado em 1983, e também reunindo quase todos os poemas de dois dos

seus primeiros livros – Polonaises e Não Fosse Isso e Era Menos/Não Fosse Tanto e Era

Quase.

A escolha desses dois livros para análise se deu com base na proximidade da

época de publicação entre os mesmos e na pluralidade dos poemas contidos em cada

um, uma vez que ambos englobam coletâneas de obras anteriores e, portanto, são

capazes de retratar uma boa extensão da produção literária de cada autor durante aquela

época.

Page 9: Artigo Piero

Restos Vitais

O meu intuito desde o momento em que escolhi Behr para ser objeto de pesquisa

desse trabalho era estudar uma face do autor que não é muito abordada nos trabalhos

acadêmicos que encontrei: uma face separada de Brasília. Que Nicolas Behr é o poeta

de Brasília, isso todo mundo já sabe. O que poucos sabem é quanto a poesia do autor

não se resume a isso, que Behr não é escritor de um tema só.

Restos Vitais se provou novamente a melhor escolha de análise, portanto, pelo

fato de conter um peso significativo de poemas sobre assuntos pelo qual o autor não

ficou conhecido - apenas Grande Circular é dedicado a falar sobre Brasília e, ainda

assim, sua extensão é mínima diante dos livros restantes.

Na orelha do livro já encontramos uma explicação do autor sobre a obra que

contemos em mão - um livro montado e editado pelo próprio Nicolas Behr. Isso faz com

que eu imediatamente dê uma atenção muito maior aos outros elementos que permeiam

à obra que não somente o texto. E a capa do livro – imagem criada por Behr – é

extremamente simbólica: uma lâmina de gilete em cima de diversas impressões digitais.

Essa imagem, aliada ao título “Restos Vitais”, é um grande aviso do conteúdo dessa

obra, que possui um quê de visceral.

Poemas mordidos, cuspidos, rasgados, cortados pela lâmina de gilete permeiam

toda a extensão do livro Restos Vitais.

Pra quem está acostumado com a face do poeta que construiu “Braxília”, uma

bela utopia de Brasília, e que retrata essa cidade de uma forma muitas vezes divertida,

bem humorada – sem deixar de fora é claro suas críticas políticas, mas que são feitas

sempre de uma maneira mais sútil – talvez se surpreenda com esse tom melancólico e

pessimista de Behr em Restos Vitais.

Assassinato, morte, irritação, tristeza, unhas, dentes e outros tantos objetos

cortantes permeiam boa parte dos poemas do autor. A ironia também é presente aqui de

uma forma mais seca, mais afiada, e definitivamente sem a sutileza que encontramos

nos seus escritos mais famosos.

Para ilustrar a presença desses temas em sua obra, selecionei alguns poemas, que

podem ser vistos abaixo.

Page 10: Artigo Piero

Poemas que abordam a temática da morte:

aqui não tem nada disso,

ou se mata ou se mata

você não tem escolha,

ou mata ou mata

é matar ou matar

***

matei aula no recreio

estrangulei o diretor na

sala de espera

esquartejei meu colega no

banheiro

esfolei o professor no intervalo

torturei o porteiro na

saída

passei em todos os

vestibulares da vida

***

dei um tiro no ouvido

e nem ouvi

o barulho do meu corpo

caindo no chão

***

você tem uma hora de prazo

pra escovar os dentes

pagar suas dívidas

comprar um carro zerinho

e dar um tiro na cabeça

***

Page 11: Artigo Piero

na esquina

um mendigo degolado

pede esmolas

com a cabeça na mão

O tratamento dado à morte por Behr nos poemas acima é de uma frieza muito

grande, talvez uma tentativa do autor de naturalizar essa temática. Também é

perceptível um tom melancólico e pessimista em sua poesia, como se o autor estivesse

um pouco – ou bastante – desacreditado com a sociedade, e utilizasse de uma ironia

cortante para chamar atenção para esse fato. O poema “matei aula no recreio” que

termina com os versos “passei em todos os/ vestibulares da vida” exemplifica a minha

opinião.

Poemas que possuem uma temática “visceral”:

as minhas unhas

estavam enormes

semana passada

fiquei morrendo de medo

e roí

unha por unha

dente por dente

***

cortei as unhas com tesoura

cortei os dedos com faca

cortei as mãos com machado

e a gilete de um canto reclamou

“quando é que eu vou

entrar nessa brincadeira?”

***

meus olhos estão fechados

para balanço

Page 12: Artigo Piero

meu ouvido está entupido

de barulho

minhas unhas estão roídas

até os dentes

minhas veias estão entupidas

de sangue poluído

***

morda sua língua

você tem dentes pra quê?

***

na quinta feira

da semana passada

esqueci minha boca

dentro do armário

naquele dia

não mordi ninguém

***

quem teve a mão decepada

levante o dedo

O poema destacado em negrito acima representa a primeira definição de poesia

que encontrei para representar a concepção de Behr em Restos Mortais. Nesses versos,

o poeta questiona acerca da existencialidade, do porquê das coisas existirem. Se você

possui dentes em sua boca, eles precisam estar lá por alguma razão e o poeta não

concebe a possibilidade dos dentes existirem sem uma razão de ser.

Uma analogia possível é pensarmos que um poeta não pode existir sem essa

mesma razão. A partir dessa afirmação, não podemos mais conceber um poeta que não

exista para, de fato, produzir poesia.

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Poemas que tratam do próprio fazer poético:

Assim como a consciência que Nicolas demonstra ao longo de sua obra poética

sobre estar “construindo Brasília”, em Restos Vitais nós podemos perceber em boa parte

das suas poesias uma consciência do fazer poético.

Os poemas de Behr possuem autonomia, eles falam, indiretamente, sobre o

próprio fazer artístico. Da mesma maneira em que eles são capazes de refletir a

realidade do mundo, eles também refletem a si mesmo. E é isso que trás realidade aos

seus textos. Pois refletir a realidade que nos cerca é, de alguma maneira, o mesmo que

refletir a si mesmo.

POBRÁS

Poesia Brasileira

orgulhosamente apresenta

um produto que vai pro lixo:

os poetas

***

A POBRÁS

Poesia Brasileira

está admitindo:

palavras idéias

poetas e coragem

exigimos:

- bom comportamento

- atestado de antecedentes

- redação própria

Oferecemos:

- ótimos ambiente de trabalho

- condução para as cidades-satélites

- acidentes de trabalho à vontade

além de cantina na obra

Page 14: Artigo Piero

os interessados procurem o Sr. Poema

no horário intelectual

***

estou salvo:

a poesia não é tudo

Nos versos grafados acima também consegui enxergar mais uma concepção de

poesia, uma afirmação que se dá a partir da negação: para Behr, a poesia é tudo. E

quando ele descobre a existência de um mundo onde a poesia não seria tudo, ele,

ironicamente, faz uma poesia para relatar essa descoberta, reforçando o tom irônico do

poema que permeia toda a escrita de Restos Vitais.

Caprichos e Relaxos

Caprichos e Relaxos é um livro dividido em sete partes, sendo a primeira, que dá

nome ao título do livro, a mais extensa de todas, composta por 53 poemas. A segunda e

a terceira parte contém a republicação quase na íntegra dos poemas de livros anteriores

do autor, lançados em 1980. Respectivamente: Polonaises e Não Fosse Isso e Era Tanto/

Não Fosse Menos e Era Quase.

Em sequência, encontramos a sessão Ideolágrimas, com os haicais do autor, uma

marca registrada de sua obra poética, influenciada pela admiração que ele possuía por

alguns escritores japoneses, como Bashô. A quinta – e última parte que fará parte do

corpus desse trabalho – é intitulada Sol-te, onde encontramos uma seleção de poemas

visuais feitos pelo grupo Sequelas do Alcoolismo, que Leminski integrava. As duas

últimas partes não serão estudadas aqui, a primeira por se tratar de um estilo muito

diferente de texto, mais próximo ao conto, e o segundo por ser uma publicação de

poemas escritos em 64 e 66 – período que não está dentro do recorte histórico feiro para

esse estudo, onde só trabalhamos publicações da década de 70.

Contrastando com a poesia de Behr, em Caprichos e Relaxos nós temos uma

variável de temas completamente novos. Aqui é feita muita alusão às origens do poeta –

origens essas polaca, negra e indígena – e uma série de homenagens, intertextualidades.

Leminski está constantemente conversando com alguns escritores que fizeram parte de

Page 15: Artigo Piero

seu cânone literário e também com alguns músicos, tanto do tropicalismo brasileiro

quanto do pop internacional.

Outra figura marcante em sua obra é a sua esposa Alice Ruiz, para quem o poeta

dedica vários de seus poemas. A brincadeira com os sons, a forma das palavras e a

apresentação visual também é muito mais forte que em Restos Vitais. Isso ocorre porque

a influência concretista em Leminski foi marcante em sua carreira. Ele fez parte, ao lado

dos irmãos Campos e de Pignatari, do processo da disseminação desse novo estilo

literário.

É interessante chamar atenção para o fato que mesmo Leminski não tendo

poemas que falam tão explicitamente sobre o fazer poético como Behr falou, ainda

assim essa é uma temática que está diluída dentro de outras no meio da sua obra. Por

estar sempre conversando com escritores do cânone literário, Leminski acaba discutindo

em algumas dessas conversas sobre o fazer literário, sobre sua própria produção e

ambições.

Neste haicai se torna claro esse autorreflexo presente na poesia leminskiana:

nada me demove

ainda vou ser

o pai dos irmãos Karamazov

Abaixo selecionei alguns poemas que fazem parte dos temas mais recorrentes de

Caprichos e Relaxos.

Poemas para Alice:

ali

ali

se

se alice

ali se visse

quanto alice viu

e não disse

Page 16: Artigo Piero

se ali

ali se dissesse

quanta palavra

veio e não desce

ali

bem ali

dentro da alice

só alice

com alice

ali se parece

***

você me alice

eu todo me aliciasse

asas

todas se alassem

sobre águas cor de alface

ali

sim

eu me aliviasse

***

ana vê alice

como se nada visse

como se nada ali estivesse

como se ana não existisse

vendo ana

alice descobre a análise

ana vale-se

da análise de alice

Page 17: Artigo Piero

faz-se Ana Alice

Poemas sobre as suas origens:

meu coração de polaco voltou

coração que meu avô

trouxe de longe pra mim

um coração esmagado

um coração pisoteado

um coração de poeta

***

girafas

africanas

como meus avós

quem me dera

ver o mundo

tão do alto

quanto vós

O poema destacado acima condensa de maneira bastante efetiva a concepção de

poesia tida por Leminski. Para ele, a visão de poesia está intimamente ligada com a

ideia das suas origens, sua herança genética deixada pelos seus avós, como se poesia

fosse algo que se “herda”, que é transmitido de geração em geração e que faz parte de

um sistema que precisa ser continuado.

Poemas que abordam a sua relação com a música:

Nos seguintes poemas há referência à música Strawberry Fields Forever, da

banda britância The Beatles, que marcou o cenário musical internacional da década de

60 e também à Gilberto Gil que foi um grande representante da música tropicalista

brasileira.

business man

Page 18: Artigo Piero

make as many business

as you can

you will never know

who i am

your mother

says no

your father

says never

you’ 11 never know

how the strawberry fields

it will be forever

***

riso para gil

teu riso

reflete no teu canto

rima rica

raio de sol

em dente de ouro

“everything is gonna be allright”

teu riso

diz sim

teu riso

satisfaz

enquanto o sol

que imita teu riso

não sai

Page 19: Artigo Piero

Poemas que conversam com o cânone literário:

Leminski faz menção à uma série de escritores como Guimarães Rosa, Pe.

Antônio Viera, Dante Alighieri, James Joyce, Fernando Pessoa, entre outros.

parar de escrever

bilhetes de felicitações

como se eu fosse camões

e as ilíadas dos meus dias

fossem lusíadas,

rosas, vieiras, sermões

***

não creio

que fosse maior

a dor de dante

que a dor

que este dente

de agora em diante

sente

não creio

que joyce

visse mais numa palavra

mais do que fosse

que nesta pasárgada

ora foi-se

tampouco creio

que mallarmé

visse mais

que esse olho

nesse espelho

agora

Page 20: Artigo Piero

nunca

me vê

***

um dia

a gente ia ser homero

a obra nada menos que uma ilíada

depois

a barra pesando

dava pra ser aí um rimbaud

um ungaretti um fernando pessoa qualquer

um lorca um éluard um ginsberg

por fim

acabamos o pequeno poeta de província

que sempre fomos

por trás de tantas máscaras

que o tempo tratou como a flores

O poema acima reforça a concepção de poesia dita anteriormente, onde a poesia

é vista como um sistema em continuidade, algo que se herda, e mostra as diferentes

visões que um poeta tem ao longo da vida, em diferentes momentos, a respeito da

herança que ele deixará para a posteriorida.

Conclusão

Apesar de ambos os artistas configurarem como poetas contemporâneos, terem

vividos um mesmo momento histórico marcante que se deu aqui no Brasil durante a

década de 70, a noção de poesia é realizada de maneira distinta na poesia dos mesmos.

No recorte feito da obra dos artistas, que abrangeu anos muitos próximos de produção,

as temáticas escolhidas por cada um dos autores foi exclusiva.

Page 21: Artigo Piero

As semelhanças que podemos apontar entre os dois dizem respeito à forma de

expressão – os poemas-minuto – que eles escolheram utilizar para passar suas

mensagens.

Como dito anteriormente, também há nos dois uma forte consciência desse fazer

poético, um senso de responsabilidade com o momento vivido, que se expressa em

todas as suas poesias.

A influência do concretismo também é forte para os dois autores, apenas se

mostra mais evidente em Caprichos e Relaxos do que em Restos Vitais.

Em suma, enquanto Behr demonstra uma visão poética mais irônica, “pesada”

nas suas temáticas, um recurso de denúncia, até, do retrato da sociedade que ele

enxergava de maneira desgostosa, Leminski encara a poesia como sendo uma grande

responsabilidade, algo que ele herdou através das gerações não só da sua família, mas

também de outros grandes poetas. Para Leminski, a poesia é uma conquista que precisa

ser passada a diante.

Referências Bibliográficas

BEHR, Nicolas. Restos vitais. Brasília: Pau-Brasília, 2005.

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos - Volume 1. Editora L&PM Pocket,

2012.

LACAN, Jacques. Escritos. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.

LEMINSKI, Paulo. Caprichos e Relaxos. São Paulo: Cantadas Literárias, 1983.

MACHADO, Lizaine Weingartner. Caprichos e Relaxos: faíscas da poesia de

Leminski. Florianópolis, 2010. Disponível em <

http://revistaliter.dominiotemporario.com/doc/PauloLeminski_lizaine.pdf>

NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia. Edições Vendaval.

PAZ, Octavio. Obras Completas 1: La casa de la presencia.