as boas novas da criação - juan stam

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O livro de Juan Stam é ímpar ao apresentar, em linguagem acessível, uma teologia bíblica da criação que exige uma reavaliação da ação missionária da igreja. Stam afirma a centralidade dos grandes desafios do anúncio do evangelho para o perdão dos pecados, a redenção das pessoas e a vida da igreja. Mas ele consegue também enquadrar esta tarefa evangelizadora dentro do alvo final da nova criação que sustenta tanto a denúncia de toda manifestação pessoal e corporativa do mal em termos individuais, sociais e ambientais, quanto anuncia a já chegada, mas ainda porvir, da manifestação de um mundo novo que o próprio Deus está estabelecendo. Este livro nos propulsiona a uma nova etapa na maneira como pensamos e exercemos a nossa missão no mundo. (Da apresentação de Timóteo Carriker)

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as boas novas da criação

Teologia bíblica, meio ambiente e missão

as boas novas da criação

2012Rio de Janeiro

1ª edição

Juan Stam

Teologia bíblica, meio ambiente e missão

Copyright © Ediciones Kairós 2003Título Original: Las buenas nuevas de la creación

© Editora Novos Diálogos, 2012Equipe EditorialClemir Fernandes | Flávio Conrado | Wagner Guimarães

Capa e DiagramaçãoOliverartelucas

TraduçãoFlávio Conrado e Wagner Guimarães

Os textos das referências bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (Sociedade Bíblica do Brasil), salvo indicações específicas.Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portu-guesa.

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados.

Editora Novos DiálogosRua Conde de Bonfim, 125 - Cob. 02Rio de Janeiro - RJCEP 20.520-050Site: www.novosdialogos.comTwitter: @NovosDialogosFacebook.com/novosdialogos

Stam, Juan S783b As boas novas da criação: teologia bí- blica , meio ambiente e missão / Juan Stam ; tradução de Flavio Conrado [e] Wagner Guimarães.- Rio de Janeiro: No- vos Diálogos, 2012.- Inclui bibliografia.- Título original espanhol: Las buenas

nuevas de la creación.

120p. ; 21cm. ( Teologia na Amé- rica Latina). ISBN 978-85-64181-26-7

1. Criação (Teologia). 2.Teologia bí- blica. I. Título. II. Série. CDD 233.11 Índices para catálogo sistemático: 1.Criação e meio ambiente:233 2. Meio ambiente e Cristianismo

261.8362

A Manuel Figueroa, pastor de coração, pregador profundamente bíblico,pensador de busca incansável, discípulo, peregrino,

fiel até a morte;

e a René Padilla,pioneiro dos evangélicos latino-americanos que desejamamar a Deus com toda a mente, profeta valente e tenaz

do evangelho integral do reino de Deus e sua justiça.

SumárioApresentação .....................................................9

Prefácio à edição brasileira ...............................13

Prefácio à edição argentina .............................. 19

Introdução .....................................................23

Capítulo 1Criação e salvação no Antigo Testamento ........27

Capítulo 2Criação e salvação no Novo Testamento .......... 49

Capítulo 3Criação e missão integral .................................73

Capítulo 4Criação e problemas contemporâneos ..............89

Conclusão .................................................... 117

Bibliografia ................................................. 119

Apresentação

Livros de teoLogia bíbLica são numerosos, levando anos para dominar completamente essa área de estudos. Livros sobre a teologia de missão ou de evangelização também são muitos. Jun-tando estas duas áreas, o estudo da teologia bíblica de missão já ocupa algumas prateleiras, inclusive não poucas obras excelentes em português. E ainda é possível encontrar aqui e ali algumas reflexões bíblicas publicadas a respeito do tema da criação e da responsabilidade cristã diante dela. Mas o livro de Juan Stam é ímpar ao apresentar, em linguagem acessível, uma teologia bíbli-ca da criação que exige uma reavaliação da ação missionária da igreja. Considere com carinho a seguinte afirmação que fecha a introdução do livro:

A teologia da criação deve desempenhar um papel decisivo em nossa visão do evangelho, da missão, da igreja e de nossa fidelidade no discipulado como primícias, aqui e agora, da nova criação.

Esta “simples” afirmação está carregadíssima e resume bem a tese e o conteúdo desenvolvido no livro. Mas ela não é, no mínimo, exagerada? A minha, ou melhor, a nossa visão do evan-gelho, para ser autenticamente bíblica, necessita decisivamente da

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perspectiva compreensiva ao longo das Escrituras a respeito da criação? Os desígnios de Deus sobre a criação são determinantes para a visão missionária da igreja? Aliás, nosso entendimento da igreja depende de uma correta perspectiva bíblica da criação? E a atividade cotidiana da igreja no ensino e discipulado dos segui-dores de Cristo somente é fiel à medida que ajustemos este tema? Isso não parece um exagero?

Antes de ler As boas novas da criação a conclusão pode ser facilmente que Stam exagerou, se não se equivocou. Mas não é o caso e o autor elabora sua tese de modo claro e convincente. A sua ênfase está devidamente na consistência do tema da nova criação ao longo das Escrituras — inclusive em Gênesis que rela-ta a “velha” criação. O argumento é tão simples que é difícil ne-gar: o final dos desígnios de Deus nas Escrituras, previsto desde o início, é a sua nova criação, e tudo que ocorre antes disto — o pecado, a salvação e a missão da igreja — caminha na sua dire-ção. A história não caminha em direção ao céu, mas em direção à terra, onde, um dia, conforme as Escrituras, o céu descerá. Radical? Leia com atenção.

Se a tese estiver certa, as implicações são tanto socioambien-tais quanto missiológicas. Para o autor elas são inseparáveis, o que por si só já constitui uma proposta interessante. Pelo título do livro, o leitor já espera uma boa defesa bíblica da responsabili-dade cristã socioambiental. Mas o autor surpreende. Ele dá mais do que isto (e não menos). Além de simplesmente defender o cuidado cristão do meio ambiente, inclusive a parte do meio am-biente que é humana, ele configura esta responsabilidade dentro da escatologia bíblica. A questão não é simplesmente que o cris-tão e a igreja, criados à imagem e semelhança de Deus, devem ser bons mordomos do seu meio porque Deus o criou, ou por-que Ele o criou como essencialmente bom, ou porque Ele ama o que criou. Antes devemos procurar contribuir para a redenção

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da criação porque este é o seu destino escatológico e tal destino já se iniciou na cruz do Calvário, revelando definitivamente a soberania de Cristo sobre a criação, não apenas por quem foi criada, mas também para quem foi criada. A dimensão escatoló-gica da criação muda radicalmente a prática cristã a seu respeito. Esta perspectiva se aproxima muito de uma outra, propagada recentemente pela ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Na edição 146 (maio de 2012) da revista National Geographic Brasil, ela fala que pretende promover uma mudança de paradigma em favor de um novo modelo de desenvolvimento econômico onde:

A sustentabilidade deve ser entendida como um ideal de vida que precisa estar na popa – como um motor a nos impulsionar – e não na proa, apenas como uma bandeira para exibir.

Pela analogia náutica e o contexto da entrevista, é evidente que Marina entende a responsabilidade socioambiental como alvo de longo prazo e determinante para as decisões políticas imediatas. De modo semelhante, Stam nos apresenta a visa bí-blica da nova criação para a qual caminhamos e que nutre e informa o exercício missionário da igreja atual.

Desta forma, o livro também desafia o pensamento missiológi-co e a consequente prática missionária da igreja hoje. Stam afirma a centralidade dos grandes desafios do anúncio do evangelho para o perdão dos pecados, a redenção das pessoas e a vida da igreja. Mas ele consegue também enquadrar esta tarefa evangelizadora dentro do alvo final da nova criação que sustenta tanto a denún-cia de toda manifestação pessoal e corporativa do mal em termos pessoais, sociais e ambientais, quanto anuncia a já chegada, mas ainda porvir, manifestação de um mundo novo que Deus próprio está estabelecendo. Quer concorde, quer não, com os exemplos es-pecíficos do autor, este livro nos propulsiona a uma nova etapa na maneira como pensamos e exercemos a nossa missão no mundo.

14 As Boas Novas da Criação

Uma palavra a respeito do autor. Juan Stam não parece um estudioso, pelo menos não externamente. Geralmente anda de roupa informal, mas sempre com um sorriso de um metro. É simples e alegre. Mas também é estudioso e muito bem formado como doutor de teologia da Universidade de Basileia, aluno de Karl Barth, que foi reconhecido por muitos como o maior teólo-go do século vinte. Durante anos Stam ensinava na Universidade de Costa Rica e ainda escreve incansavelmente (está no quarto volume de um comentário sobre o Livro de Apocalipse).

Timóteo CarrikerCoobreiro da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos com a

Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, foi o presidente fun-dador da Associação de Professores de Missões no Brasil. É autor de cinco livros e de mais de 60 artigos. É capelão d’A Rocha Brasil.

Prefácio à edição brasileira

É com especiaL aLegria que saudamos a publicação deste livro para os leitores do dinâmico mundo de fala portuguesa, es-pecialmente as irmãs e irmãos brasileiros que compartilham nos-so diverso contexto latino-americano e caribenho. Nas últimas décadas, o Brasil se fez presente no cenário político mundial, e vem se destacando igualmente no campo religioso. Junto com um notável crescimento numérico das igrejas, acompanha, em alguns setores, uma impressionante produção teológica e uma significativa liderança eclesial, em nível continental e mesmo mundial. Por isso é uma satisfação especial ver este humilde livro vertido ao português para seus leitores brasileiros. Agradecemos muito à Editora Novos Diálogos esta valiosa iniciativa.

A tese central deste livro se apresenta já no próprio título: a mensagem bíblica da criação é evangelho e nos traz boas novas. O mais comum tem sido pensar na criação como um problema para a fé. A leitura típica de Gênesis 1 costuma armar uma luta de boxe, Moisés versus Darwin, criacionismo versus evolucionis-mo. Moisés, às vezes, ganha; outras vezes, ganha Darwin, mas é

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sempre a mesma questão. Entretanto, é uma guerra equivocada. Os “criacionistas” não leram bem sua Bíblia.

A Bíblia não é nem científica nem anticientífica, mas pré--científica; o adversário não é Darwin mas Marduk e outros “criadores” da cosmovisão mitológica da época. Em uma luta ge-ral entre os deuses babilônios, Marduk despedaça Tiamat e dos pedaços cria a terra, o céu e a humanidade. Outros relatos mi-tológicos atribuíam a criação a lutas violentas ou, especialmente no Egito, a estranhos e aberrantes atos sexuais. Neste contexto, era uma verdadeira “boa notícia” escutar outra versão, segundo a qual um Deus soberano, qual artista, disse e se fez. Com o prazer do artista, Deus declara boa toda sua criação e “muito boa” a humanidade (inclusive a sexualidade). Na história intelectual do ocidente, foi a revelação deste Deus Criador que, depois, tornou possível o nascimento dos métodos historiográficos e das ciências naturais.

O segundo relato (Gn 2.4b-3.23) é totalmente diferente do primeiro. Em vez das cadências litúrgicas, com o marcado pa-ralelismo dos sete dias, temos uma narrativa familiar que traz até humor. O segundo relato emprega o nome próprio de Deus, “Yahvéh”, ausente no primeiro capítulo. Enquanto o primeiro relato começa com abundância de águas (1.2), o segundo começa com seca seguida de irrigação da terra (2.5, 6). O tema da sepa-ração, para ordenar a criação (1.4, 7, 9), não aparece no segundo relato.

Descreve-se, sobretudo, a criação da humanidade de maneira muito diferente. No sexto dia (Gn 1.8) Deus cria primeiro todos os animais e répteis e apenas depois, com um discurso um pouco longo (1.26-30), cria junto o homem e a mulher. O segundo rela-to quase não tem relação com o primeiro. Do pó Deus esculpiu o corpo de Adão e lhe soprou o fôlego em suas narinas (2.7). Deus plantou, então, um jardim que dava abundantes frutos.

Adão era o proprietário e agricultor, embora houvesse duas árvo-res proibidas (2.9, 16, 17). Mas nessa terra de abundância vegetal e mineral (2.10-14) houve um problema muito sério: o senhor “Adão” estava sozinho (2.18). Então Deus, com seu divino senso de humor, criou as aves e os animais como que para preencher esse vazio e designou Adão para nomeá-los (2.19, 20). Adão era agora criador de gado, taxonomista e cuidador de um grande zo-ológico. Mas como era de se esperar, “não se achava uma auxilia-dora que lhe fosse idônea” (2.20). Deus cria, então, uma esposa para Adão e o universo estava completo.

Estes dois relatos, com todas as suas diferenças, aparecem lado a lado, sem a menor intenção de harmonização, muito me-nos de fundir-se em uma só narrativa. A Bíblia começa com duas versões bem diferentes da criação, e através de suas páginas apa-recem ainda outras versões. Com isso devemos entender que os relatos não são literais, nem pretendem oferecer uma explicação científica da origem do universo. O que oferecem, isso sim, é uma teologia da criação.

Um erro muito comum no estudo do tema da criação é o de considerar apenas os primeiros capítulos de Gênesis e ignorar todo o restante da Bíblia. Os livros poéticos descrevem a cria-ção, às vezes, como uma obra de construção, com a Sabedoria como arquiteta (Pv 8.25-30; Jó 26.7-11; 38.4-7; Sl 104.2-5), ou como uma luta contra os monstros Raabe ou Leviatã (Jó 26.12-14; 7.12; Sl 74.13-17). Além disso, estes livros bíblicos costumam vincular a criação com a salvação (Sl 33; 74.12-17; Sl 89; Sl 136).

Uma teologia da criação mais ampla e profunda aparece nos livros proféticos das Escrituras hebraicas. Para Jeremias, diferen-te das cosmogonias mitológicas, o conceito bíblico da criação não apenas garante a ordem da natureza (Jr 5.24; 14.22; 31.35-37; cf. Gn. 8.22) como também confirma a fidelidade de Deus para com seu povo (Jr 33.20). Para a mentalidade hebraica o que

17prefácio à edição brasileira

18 As Boas Novas da Criação

hoje chamamos de “leis naturais” eram entendidas como o pacto entre o Criador e sua criação (9.8-17; Os 2.18). A criação signifi-ca também que Deus é dono de toda a terra (Jr 27.5l; cf. Sl 24.1; Lv 25.23) e o legítimo soberano de todos os povos e da história, e julga a todas as nações (Zc 12.1-3; Am 1.3-2.16).

Para os profetas, Deus não é apenas o Criador do universo como também o Criador de Israel (Is 43.15) e da justiça e salva-ção (Is 45.8). Em Isaías 40-66 o profeta faz uma correlação entre a criação, o êxodo e o retorno do exílio, interpretado como um novo êxodo e como um novo ato criador de Deus (numa grande quantidade de passagens: 40.3; 41.17-20; 42.16; 43.2, 3, 16-21; 44.27; 48.20, 21; 49.10; 51.9, 10; 52.11, 12; 63.11-14!). E o tema da criação/salvação culmina, neste grande bloco textual, com a surpreendente visão dos “novos céus e nova terra”, onde criação e salvação são uma mesma realidade (Is 65.16b-25).

A criação revela a glória e a grandeza de Deus; é uma lin-guagem na qual Deus se comunica conosco (Sl 19.1-6; 8.1-9). O Salmo 136 adora a Deus: primeiro, por sua criação (136.4-9); depois, pelo êxodo (10-23); e, finalmente, pela libertação de seu povo (24) e porque “dá alimento a toda carne” (25). Nas Escrituras, a criação é sempre questão de adoração, gratidão e regozijo, nunca um problema científico. Que os relatos não têm o propósito de explicar literalmente a origem do universo fica claro pela grande diversidade de descrições em toda a Bíblia, inspiradas pelo senso de assombro e maravilhamento diante do vasto universo.

Como era de se esperar, as Escrituras cristãs ampliam o tema dos “novos céus e nova terra” (Ap 21.1-26; 2P 3.13; 2Cor 5.17; cf. Rm 8.21-23) e de um novo Paraíso (22.1-5; 2.7) como culmi-nação tanto da criação como da salvação. Introduzem também uma cristologia da criação bem ousada, para afirmar que um ser humano, que eles e elas haviam conhecido e que morreu havia

umas poucas décadas, era o criador do universo (Cl 1.16; Jo 1.3; cf. Ef 1.10; Hb 1.3; Ap 5.13).

Nós também somos chamados a adorar o Criador e cuidar bem de sua criação (cf. Gn 2.15). Toda a terra é do Senhor e nós devemos ser seus mordomos fiéis.

Juan StamAgosto de 2012

19prefácio à edição brasileira

Prefácio à edição argentina

estas páginas amadureceram durante dois anos, por conta de vários trabalhos que dia a dia foram tomando uma forma cada vez mais coerente. De rascunho em rascunho, as pá-ginas me obrigaram a praticamente dar acabamento a um livro que agora se publica com a oração de que seja para a edificação do povo de nosso Criador e Senhor.

Em princípios de 1991, a Comissão Coordenadora de CLA-DE III (Congresso Latino-americano de Evangelização) me de-signou uma conferência sobre “O evangelho da nova criação”. O tema me fascinou imediatamente já que meus anos de estudo do Apocalipse me haviam levado a relacioná-lo constantemente com o livro de Gênesis e a teologia da criação. A sugestão desse tema para CLADE III caiu em terra fértil, no momento oportu-no, como tema de grande interesse e importância para a compre-ensão de toda a Escritura e do Apocalipse em particular.

Antes da consulta de CLADE III em Quito (Equador), em agosto de 1992, foram enviadas duas palestras aos futuros par-ticipantes para o estudo particular e dos núcleos nacionais e re-

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gionais da Fraternidade Teológica Latino-Americana. Chegaram a mim reações sumamente valiosas de quase cem irmãos e irmãs de todas as partes do continente. Também meus queridos colegas de muitos anos como Edésio Sánchez e José Henrique Ramírez, ambos especialistas em Antigo Testamento, me beneficiaram com suas valiosas sugestões.

Nos meses de preparação da palestra para Quito, imerso nas riquezas da teologia bíblica da criação, um convite para assumir a Cátedra Manuel Figueroa no Instituto Teológico Batista de Santa Ana, El Salvador, me apresentou a oportunidade de aprofundar outros aspectos do mesmo tempo. Manuel Figueroa, amigo de muitos anos, tinha morrido muito jovem, vítima de câncer que ceifou rapidamente sua vida promissora. Era um pastor dinâmi-co em cuja congregação, a Primeira Igreja Batista de Santa Ana, tive que pregar em várias ocasiões, com imensa alegria e bênção pessoal. Manuel era também um verdadeiro teólogo e filósofo (ensinava filosofia no Colégio Batista da cidade). Conversar com ele sobre as coisas de nossa fé e o significado de nosso discipulado era ser sempre enriquecido em Cristo e descobrir algo novo sobre a verdade. Além disso, Manuel me introduziu ao longo dos anos numa maior compreensão das realidades da América Central e de sua pátria amada, El Salvador. Costumava me recomendar a leitura de livros, revista e artigos, os quais muitas vezes discutía-mos depois. Por isso, dedico este livro, assim como as conferên-cias de Santa Ana, à memória de um companheiro tão singular na luta pela causa do evangelho.

Finalmente, os últimos preparativos para a exposição em CLADE III tiveram como resultado uma maior elaboração do significado da teologia bíblica da criação para nosso complexo mundo atual. Estes materiais aparecem agora no último capítu-lo, que conserva sua forma original de conferência. Ali são anali-sados os temas da dignidade humana, os direitos de cada pessoa

sem distinção de raça, sexo ou condição social ou econômica, nossa responsabilidade ecológica, o compromisso cristão com a justiça e com a reconciliação visando uma autêntica shalom, tudo à luz da criação e da nova criação. Tentamos demonstrar que para estes temas (e outros de importância ética) a mensagem bíblica tem muito o que nos dizer hoje.

A teologia da criação deve desempenhar um papel decisivo em nossa visão do evangelho, da missão, da igreja e de nossa fidelidade no discipulado como primícias, aqui e agora, da nova criação. Estamos convencidos de que deve ser uma parte integral do renascer bíblico e teológico que nós, evangélicos latino-ame-ricanos, desejamos. Esperamos de todo coração que estas páginas deem uma contribuição para esse fim, para a glória do Verbo por quem todas as coisas foram feitas, que se fez carne e em quem tudo encontrará sua consumação final.

Juan Stam

23prefácio à edição argentina

Introdução

basta abrir a primeira página da Bíblia (Gn 1.1) e logo compará-la com a última página (Ap 21.1), para perceber a im-portância do tema da criação como eixo decisivo de todo o pen-samento bíblico. Toda a mensagem da Bíblia se desenvolve entre dois relatos de criação, desde Gênesis 1.1 (“No princípio, criou Deus os céus e a terra”), passando por Isaías 65.17 (“Pois eis que eu crio novos céus e nova terra”) até Apocalipse 21.1 (“Vi novo céu e nova terra”). Os primeiros relatos revelam o propósito de Deus para sua criação. A coincidência exata da terminologia (com uma só diferença básica: o adjetivo “novo”) não pode ser casualidade. Indica claramente que a Bíblia narra a marcha des-de a criação original até a criação final que culminará na ação redentora de Deus.

Desde o seu princípio e até seu fim, por todas as partes, a Bíblia nos fala da criação. Nestas páginas tentaremos explorar a riqueza da teologia bíblica da criação e o papel que pode e deve desempenhar em nosso pensamento e ação como evangélicos hoje na América Latina.

O ensinamento bíblico sobre a criação não se restringe aos dois primeiros capítulos de Gênesis, como muitos parecem pen-sar, nem é uma formulação única, fixa e estática. É um conceito

26 As Boas Novas da Criação

que vai crescendo através dos séculos, variando sua linguagem e suas figuras e sofrendo as mais inesperadas mudanças de signifi-cados. Nesse processo dinâmico, o tema da criação sempre está vinculado inseparavelmente do desenvolvimento da mensagem bíblica da salvação.

Se a Bíblia desde o princípio até o fim põe tanta ênfase na criação, não há dúvida de que este tema é central em sua mensa-gem. E se nossa salvação culmina precisamente com a promessa de novos céus e nova terra, essa esperança deve marcar decisiva-mente tanto a mensagem como a missão da igreja. Precisamente por isso, a tese deste livro é: não pode haver uma missiologia bíbli-ca e evangélica sã fora de uma adequada teologia da criação.

O teólogo evangélico Bernard Ramm expressou muito clara-mente este nexo vital entre criação e missão:

É na teologia da criação onde encontramos a raiz definitiva de uma teologia da evangelização (...) Só podemos evangelizar com integridade moral na medida em que tenhamos uma pro-funda teologia da evangelização e essa teologia da evangeliza-ção começa com uma teologia da criação (1978: 1; cf. Padilla, 1986: 3, 10s, tradução nossa.).

Ramm parte da pergunta sobre a diferença entre evangeli-zação e proselitismo e do direito do evangelizador a apresentar--se ante o outro com uma mensagem divina e única. Podemos atrever-nos com integridade a fazer tal coisa? Destacando o caso de Jonas, assinala que os profetas, precisamente quando o pres-tígio nacional de Israel era nulo, fundamentavam sua autoridade para profetizar sobre qualquer nação do mundo no fato de que Yavé é o Criador de toda a terra e de todos os povos. Os profetas afirmaram que Deus, por ser Criador e Juiz de todas as nações, havia enviado a Assíria e a Babilônia para castigar Israel por seus pecados. Ao compreender que Yavé é Deus de justiça sobre todas as nações, chega-se a entender que seu poder é universal e se “cos-

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mifica” mais que nunca antes (cf. Moltmann, 1969). Deus envia seus mensageiros à toda a criação, não porque seu povo tenha qualidades superiores às dos demais povos, mas porque todo o universo é seu por direito de criação e redenção.

Mervin Breneman, em uma valiosa série de artigos na revista Misión, destacou esta fundamentação da missão na criação. “A criação de todo o mundo e de toda a humanidade por parte de Deus significa que todos devem sujeitar-se à sua soberania (Sl 24.1-2; Ef 3.8-11)” (1986: 75). Os profetas, comenta Breneman, sublinham que Deus é soberano na história de todas as nações, de modo que o povo de Deus tem a responsabilidade de chegar com a Palavra de seu Senhor a todos os povos da terra (1984: 28).

Bertil Ekstrom, em sua resposta à minha palestra prévia para o CLADE III, assinalou acertadamente que Paulo, em situações transculturais como em Listra e Atenas, começava sua evangeli-zação a partir do fato da criação. Por outra parte, Kenneth Stra-chan, em El llamado ineludible (1969), apresentou como ponto de partida fundamental para a evangelização nossa humanidade comum, compartilhada com o próximo sobre a base de nossa criação à imagem e semelhança de Deus.

Nosso propósito agora, então, é seguir na direção do tema da criação em seu desenvolvimento ao longo das Escrituras, para descobrir as dimensões de sua mensagem e os alcances de suas demandas para a vida e missão da igreja do Senhor.