as imagens de davi na histotiografia bÍblica

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UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

AS IMAGENS DE DAVI NA HISTORIOGRAFIA BBLICA

BELINDA APARECIDA PAULINO DA SILVA CRCIO

GOINIA 2002

UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

AS IMAGENS DE DAVI NA HISTORIOGRAFIA BBLICA

BELINDA APARECIDA PAULINO DA SILVA CRCIO Orientador: Prof. Dr. Haroldo Reimer Dissertao apresentada Universidade Catlica de Gois como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Cincias da Religio.

Goinia 2002

AGRADECIMENTOS

A Deus que por intermdio de Jesus Cristo se fez carne e habitou entre ns, sendo ele mesmo a imagem do Deus invisvel, o primognito de toda criao (Cl 1,15).

A todos os amigos e amigas que cooperaram trabalho.

para a realizao deste

Ao meu marido, Carlos, pelas oraes e torcida. E a meus filhos, Lucas Manasss e Matheus Manasss, por terem suportado as mudanas que este trabalho imps nossa vida em famlia.

Minha especial gratido professora Laura Chaer pela prtica de amor solidrio.

Da mesma forma sou grata ao professor Haroldo Reimer, que me tomou pela mo, ajudou-me em todos os momentos, direcionou a minha dissertao oferecendo crticas construtivas do comeo ao fim.

E scutai-m e e vinde a m im , ouvi-m e e haveis de viver. Farei convosco um a aliana eterna, assegurando-vos as graas prom etidas a D avi. Com efeito, eu o pus com o testem unha aos povos... Is 55, 3-4a

SUMRIO

RESUMO.................................................................................................... 8 ABSTRACT ............................................................................................... 9 INTRODUO ......................................................................................... 10 I. ISRAEL: DO TRIBALISMO MONARQUIA ......................................... 33 1.1. Teorias que do suporte para a emergncia do Israel tribal ............. 35 1.2. Os grupos participantes na formao de Israel ................................. 36 1.3. O tribalismo ....................................................................................... 39 1.4. O Estado Monrquico........................................................................ 42 1.4.1. Intentos monrquicos ..................................................................... 42 1.4.2. Saul: primeiro rei de Israel.............................................................. 44 1.4.3. A monarquia de Davi....................................................................... II. DAVI NAS HISTORIOGRAFIAS BBLICAS.......................................... 47 2.1. Historiografia e historiografia bblica ................................................. 49 2.2. Davi na Obra Historiogrfica Deuteronomista ................................... 53 2.2.1. Obra Historiogrfica Deuteronomista: datao e fontes ................. 55

2.2.2. Davi na Histria da Ascenso (1Sm 16-2Sm 7) ............................. 60 2.2.3. Davi na Histria da Sucesso (2Sm 9-11Rs 2) .............................. 69 2.2.4. Concluso ...................................................................................... 76 2.3. Obra Historiogrfica Cronista ............................................................ 80 2.3.1. Discusso Terica .......................................................................... 83 2.3.2. Imagem de Davi na Obra Cronista ................................................. 87 2.3.3. Concluso ...................................................................................... 89 2.4. A imagem de Davi na Obra Historiogrfica Deuteronomista e na Obra Historiogrfica Cronista........................................................... 94 III. DAVI E O TRANSLADO DA ARCA DA ALIANA (comparao 2 Sm 6, 1-11 e 1Cr 13, 1-14)...................................... 102 3.1. Traduo e Crtica Textual .............................................................. 103 3.1.1.Traduo literal 2 Sm 6, 1-11 ....................................................... 103 3.1.2 .Traduo literal 1 Cr 13,1-14........................................................ 105 3.1.3. Sinopse ....................................................................................... 106 3.2. Crtica Literria 2 Sm 6, 1-11 e 1 Cr 13, 1-14.................................. 109 3.3. Crtica Histrica ............................................................................... 116 3.4. Anlise Sociolgica ......................................................................... 119 3.5. Anlise Teolgica ............................................................................ 122 CONCLUSO......................................................................................... 135 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................... 142 ANEXOS ................................................................................................ 147

RESUMO

CRCIO, Belinda Aparecida Paulino da Silva. As imagens de Davi na historiografia bblica. Goinia: Universidade Catlica de Gois, 2002. O objeto da presente pesquisa apresentar as imagens de Davi nas historiografias bblicas, buscando-se levantar o perfil de Davi revelado pela Obra Historiogrfica Deuteronomista e pela Obra Historiogrfica Cronista, bem como conhecer o que peculiar a cada uma delas, os paradigmas que cada historiografia construiu em torno de sua pessoa e sua repercusso na histria de Israel. A histria desse personagem muito discutida pelos estudiosos da Bblia e a sua imagem analisada e interpretada sob vrias perspectivas. Na pesquisa, os resultados variam conforme o mtodo de investigao, bem como o ponto de partida hermenutico de cada pesquisadora e pesquisador. Foi atravs de acessos metodolgicos distintos que cada um procurou chegar ao conhecimento e explicao de determinados aspectos do comportamento e da imagem de Davi. A partir da comparao da imagem de Davi na Obra Historiogrfica Deuteronomista e na Obra Historiogrfica Cronista observa-se que existem formas diferentes de representao e atuao desse personagem. Procura-se tambm comparar os textos em 2Sm 6, 1-11 e 1Cr 13, 1-14, focalizando a relao e o significado de Davi e do translado da arca nesses dois textos.

ABSTRACT

CRCIO, Belinda Aparecida Paulino da Silva. The images of David in biblical historiography. Goinia: Universidade Catlica de Gois, 2002. The purpose of this research is to present the images of David in biblical historiography to lift Davids profile revealed by the historical works of Deuteronomy and of Chronichs, as well as to know what is unique in each one of them, and the models that historical account develops around his character and what effect David had on the history of Israel. The history of this character is well debated by theologians and its image is analysed and interpreted under various perspectives. In a research the results vary according to the invesgative method, as well as the hermeneutic starting point of each researcher. It was through distinct methological approaches that each historical account searched to arrive at the knowledge and the explanation to some aspects of the behavior and the image of David. In analyzing the comparison of the image of David on the historical accounts of both Deuteronomy and the Chronicles it was observed that exists different forms of representation and perfomance of this character. It was also searched for comparison the biblical texts in 2 Sm 6, 1-11 e 1 Cr 13, 1-14 focalizing the relation and the meaning of David on the movement of the ark in these two texts.

INTRODUO

Davi um homem segundo o corao de Deus Na Bblia, Davi descrito como um homem segundo o corao de Deus (At 13,22). As narrativas sobre a vida de Davi trazem uma variedade de informaes, em que foram reunidas profundas diferenas em uma mesma pessoa. No que tange aos acontecimentos pblicos e privados, o contedo dos livros (1Sm 16,142Sm5,12) que narram sobre Davi revelam um homem que no foi perfeito em todos os seus atos; foi vulnervel, mas possua uma grandeza de alma no arrependimento, no amor e na confiana plena em Deus (2Sm 12,15-25). Alguns salmos so atribudos a Davi e podem at indicar o momento de sua vida em que foram

compostos (3,7,18,34). Davi era conhecido por ser poeta e msico (1Sm 16,23). Esses salmos abarcam todo o tipo de emoo humana; so expressivos e manifestam alegria e profundidade de f.

Davi o elemento propulsor desta dissertao e, como estudante, passei a adquirir informaes, que, sem dvida, levaram-me a compreender melhor a Bblia e o objeto de meu estudo. No entanto, quanto mais lia sobre como o Antigo Testamento surgiu e foi escrito, tanto mais inquieta me sentia, pois percebia os limites da minha compreenso dos livros bblicos, seus contedos e seu processo de surgimento e canonizao. A minha compreenso poderia ser expressa com as palavras de um pesquisador: Os muitos e diferentes relatos bblicos possuem no somente arte e beleza em suas formas, mas essencialmente, so, acima de tudo, significativos e verdadeiros. Eles contm a palavra de Deus, no somente para um determinado tempo da histria humana. Na verdade, elas so palavras eternas e, como tal, impossveis de entend-las plenamente. Por isso, o povo de Deus ouviu e transmitiu tais histrias (Siqueira, 1996, p.8). Sabemos que os fatos acontecidos foram primeiramente transmitidos oralmente, e espalhados por diferentes grupos em diversos lugares. O processo de transmisso escrita dos livros bblicos e dos textos da Bblia foi bastante lento, tendo levado aproximadamente mil anos para ser escrito. No so relatos puramente histricos; a sua finalidade principal teolgica. H todo um processo no desenvolvimento da literatura bblica. Sobre a primeira produo literria em Israel, Jorge Pixley afirma: Os primeiros documentos israelitas que se podem reconstruir provm desta poca monrquica. Tudo o que h de mais antigo so poesias incrustadas em obras posteriores (os orculos de Balao, o cntico de Dbora, etc). Durante esta poca surgem os primeiros produtos da literatura de Israel, provavelmente sob o influxo da corte de Salomo... (Pixley, 1991, p.35).

Foi ento que percebi que, antes de considerar Davi apenas numa perspectiva teolgica, preciso consider-lo sob a tica histrica e sociolgica. Caso contrrio, como pesquisadora, a viso sobre as Imagens de Davi na Obra Histrica Deuteronomista e na Obra Histrica Cronista poderia ser enormemente parcial. Nenhuma histria neutra. Todo fato precisa ser verbalizado. E toda verbalizao uma interpretao. No existe histria que no seja interpretada e narrada (Lamadrid, 1999, p.11). importante estudar a vida de Davi por trs motivos. Primeiro ele est presente de modo marcante na literatura bblica. Sua presena pode ser vislumbrada na Obra Histrica Deuteronomista ( exceo dos livros de Josu e Juzes), na Histria Cronista, nos Salmos, Profetas e tambm no Novo Testamento. Segundo: provvel que este fascnio por Davi deve-se ao fato de ser ele apresentado como uma figura valente e corajosa, que sai do anonimato e sobe ao mais elevado posto de sua nao, o reinado. por esta razo que a figura de um Davi religioso, como homem e como rei, possui importncia e prestgio e merece um tratamento extensivo e separado. Mesmo porque a religio est presente em sociedades primitivas com manifestaes histricas que influenciam at o presente. Na outra extremidade da sua vida pessoal, Davi um homem com fraquezas, rude guerreiro (1Sm 25,2-113) e omisso com os filhos (2Sm 13,7). Um terceiro motivo importante para pesquisar Davi sua insero numa anlise sociolgica. Conforme Berger (1985, p.15), a pessoa humana no pode existir independente da sociedade. A sociedade um produto do ser humano e viceversa. As aes de Davi refletiram sobre a histria da sociedade da poca. Na histria posterior de Israel, Davi considerado como o rei ideal. Na estima da nao,

era dado a Davi um lugar de primazia, s superado pelo prprio Moiss (Unger, 1998, p.103). Davi foi um poltico que mudou profundamente o perfil da nao hebraica. Ele era o rei, era quem dava as ordens, e foi quem abriu espao para uma nova experincia de governo. Davi consolidou o estado monrquico em Israel. A monarquia rompeu com a experincia tribal em Israel. Essa experincia havia sido uma alternativa de diferentes grupos empobrecidos e marginalizados que fugiam da opresso das cidades-estado cananias e do Egito, nos sculos XIII e XII aC. O sistema tribal era resistente idia da instituio do Estado. Carlos A. Dreher, analisando a organizao em forma de tribos em Israel, fornece a explicao dessa experincia.

Sua produo econmica, sua organizao poltica, social e religiosa se faziam de forma coletiva e democrtica. Suas famlias formavam a base econmica, cujos chefes tomavam colegiadamente as decises poltico-jurdicas necessrias. Eram tambm estes chefes de famlia que oficiavam, via de regra, o culto (Dreher, 2000, p.5).

O tribalismo foi uma experincia de variados grupamentos sociais explorados e marginalizados formativos de Israel. Essas contingncias ajudaram o povo a se organizar, preservando a unidade e o cooperativismo, como tambm a buscar o direito e a justia. 2. Importncia de Davi na Bblia Hebraica Acima ressaltamos Davi por uma motivao pessoal. Outra motivao em estudar Davi que, de forma similar, alguns estudiosos vem esse personagem como um homem que soube ler os sinais do tempo; sem ele a histria dos judeus

seria outra. A histria hebraica produziu o homem que iniciou uma poca urea em Israel, sendo tido como exemplo para as geraes futuras. Davi organizou um verdadeiro imprio. O historiador ingls P. Johnson (1995, p. 70) se refere a isso do seguinte modo. As geraes ulteriores compreenderam a profundidade do impulso religioso de Davi, que iluminou a sua atividade de estadista. Essa talvez seja a razo final pela qual veneraram sua memria, e desejaram um regresso a seu governo; e no por acidente que ele ocupa mais espao do que qualquer outro soberano no Velho Testamento. Davi no foi nem absolutamente justo nem politicamente correto. Quem foi, afinal Davi? Desta indagao surgiu o propsito de procur-lo nos livros do Antigo Testamento, tambm designado de Bblia Hebraica. Muitas passagens da Bblia Hebraica narram ou aludem Davi, e os escritores dos livros de 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crnicas, Salmos, Profetas, Rute tiveram razes pessoais e teolgicas para citar Davi em seus livros. Afinal, na historiografia de Israel, Davi ocupa um lugar de destaque. Davi no apenas o matador implacvel e o lder visionrio, ele tambm um amante apaixonado, amigo ardente e leal, um poeta e msico de candente ternura e altos vos de lirismo. Porque Deus no haveria de se apaixonar por Davi? Todo mundo se apaixona! (Miles, 1997, p.200). Davi est presente sobretudo nos livros de Samuel. A cincia bblica costuma distinguir nestes livros duas obras distintas que descrevem a trajetria de Davi: a) histria da ascenso de Davi ao trono (1 Sm 16 at 2 Sm 7) e b) histria da sucesso do trono de Davi (2Sm 9-20 at 1 Rs 1-2). .

A morte de Davi narrada no livro de

1 Reis 2, mas a sua figura

preservada em muitas passagens de 1 e 2 Reis. Os principais acontecimentos da histria dos reis de Israel foram conservados e comparados com o rei Davi, como Salomo fez na orao inaugural do templo.

Cumpriste a teu servo, o meu pai Davi, a promessa que lhe havias feito, e o que lhe havia prometido com tua boca, com tua mo cumpriste hoje mesmo. E agora, Senhor Deus de Israel, mantm em favor do teu servo, o meu pai Davi, a promessa que lhe fizeste neste teor: no te faltar na minha presena um descendente que se assente no trono de Israel, contanto que teus filhos cumpram os seus deveres (1 Rs 8,24-26).

O autor ou autores dos livros de Reis sugerem um Davi prottipo de adorao, fidelidade e confiana em Jav. A imagem de Davi em Reis no a mesma imagem encontrada em Samuel, que remonta a um prottipo fornecido somente pela histria da ascenso da Davi. ...a histria da ascenso de Davi (1Sm 162 Sm 7).(...) altamente favorvel a Davi, descreve sua luta para estabelecer seu poder sobre Jud, depois sobre Israel e, por fim, sobre os povos vizinhos. Elogios quanto a sua fidelidade a YHWH que no faltam (CEBI, 2000, p.30).

Por outro lado, os livros de 1 e 2 Crnicas destacam consideravelmente a participao de Davi na construo do Templo. Os primeiros captulos se detm nos antecedentes familiares de Davi com nfase na tribo de Jud (1 Cr 1-9), e, ao final de 1 Crnicas, aparece a histria de Davi propriamente dita (10-29).

A colorida personalidade de Davi trabalhada e revelada tambm nos salmos. De fato, alguns salmos revelam Davi como leal adorador de Jav, msico, poeta e guerreiro (Sl 21; 103; 60). Muitos dos Salmos so explicitamente atribudos ao rei Davi e alguns deles so atribudos a momentos determinados da trajetria de Davi. Outros, devido a seu contedo, fornecem outros indcios sobre a poca em que foram recitados ou, mais provavelmente, cantados pela primeira vez (Miles, 1997, p. 307).

Segundo a tradio, Davi incorporou a dana como prtica usual nas lidas sagradas (2Sm 6,14). A partir da, a dana e os salmos foram usados para expressar suas emoes e idias, tomando parte nos cultos religiosos.

As prprias narrativas escritursticas, por outro lado, apresentam evidncias convincentes que atestam as habilidades e os interesses musicais de Davi ligado piedosa devoo a Jeov, o interesse de Davi pela msica apresenta um lastro ideal para a afirmao do cronista de que ele organizou corporaes de msicos do templo (Unger, 1998, p. 109).

Os Salmos evocam que Davi fez parte ativa da histria de Israel. Visto assim, eles expressam experincias profundas da humanidade e trazem sentimentos do passado, do presente e do futuro. Davi foi o grande promotor do culto em Jerusalm. Tudo isso fez de Davi uma figura intimamente ligada orao. Ento se atribui a ele a autoria dos Salmos, possivelmente em sua homenagem (CEBI, 2000, p.34).

O livro de Rute, a moabita, narra as provas e as tribulaes da personagem que, depois da morte do marido, retorna a Jud com a sogra. Rute, a estrangeira, casa-se com Boaz e se torna a antecedente de Davi.

a moabita aceita a religio javista e se torna, no s membro de pleno direito do povo eleito, mas at me da descendncia davdica, a quem o Senhor prometera o reino eterno. Este sopro universalstico, que o pervade, aproxima o admirvel livro de Rute duma outra obraprima do antigo Testamento, o livro de Jonas. So dois opsculos em que j se percebe algo da mensagem universal de Cristo (Ballarini, 1976, p.98).

Nos

textos

bblicos,

Davi

apresentado

sob

vrias

perspectivas.

Parafraseando Miles (1997, p. 16), poder-se-ia dizer que Davi um amlgama de diversas personalidades num nico personagem; um original com vrias imagens. A sua figura ocupa um lugar de destaque na histria de Israel, e depois de muitas batalhas vencidas historicamente reconhecido que Davi fundou o imprio de Israel que sobreviveu por quatro sculos em Israel. significativo nesse sentido que a esperana do Messias e o debate dos profetas sobre a monarquia fez com que a figura de Davi fosse mencionada por Isaas, Jeremias, Ezequiel, Ams e Zacarias. Os usuais conceitos de dinastia davdica, trono, templo, Jerusalm, esto muito bem tecidos por estes profetas e no deixam de apresentar a imagem de Davi como passaremos a ver nos vrios livros. a) Livro de Isaas Isaas era filho de Amoz, era membro duma famlia distinta e influente em Jerusalm. Iniciou seu ministrio proftico nos ltimos dias do reinado de Uzias, chegando at o governo de Ezequias (Is 1,1).

Para Sicre (2000), no livro de Isaas, Davi, como personagem histrico, s aparece uma vez. Ai da Lareira de Deus! Cidade Lareira de Deus, em que Davi assentou o seu arraial! Acrescentai ano a ano, deixai as festas que completem o seu ciclo... (Is 29, 1). O texto refere-se a Jerusalm, local do templo e do altar de sacrifcios. ...destaque tem a sua descendncia, a Casa de Davi (7,2,13;22,22); tambm so mencionados o seu trono e o seu reino (9,6), sua tenda ou palcio (16,5). Dois textos lembram a sua estreita relao com Deus: num Jav o Deus de teu pai Davi (38,5); no outro, Deus salvar Jerusalm em ateno a mim e a meu servo Davi (37,35). Na segunda parte (40-55) s encontramos uma referncia a este rei (55,3). Na terceira (56-66), ele no mencionado (2000, p. 180). Davi aparece tambm como portador da promessa de Deus para com os seus descendentes. A descrio de um rei ideal, proveniente da linhagem davdica, um novo rebento. Do tronco de Jess sair um rebento, e das suas razes um renovo (Is 11,1). b) Livro de Jeremias Jeremias foi profeta no perodo do rei Josias e

sucessores e presenciou um perodo de prosperidade e reforma religiosa em Jerusalm como tambm viu essa cidade devastada e abandonada (Lm 1, 1-22). Para Jeremias, aps Jud sucumbir ante o poderio babilnico, o exlio no era a palavra final e a figura de Davi ressurge como um herdeiro das promessas de Deus.

Eis que vm dias, diz o Senhor, em que levantarei a Davi um renovo justo; e, rei que , reinar, e agir sabiamente, e executar o juzo e a justia na terra.

Nos seus dias Jud ser salvo, e Israel habitar seguro; ser este o seu nome, com que ser chamado: Senhor Justia Nossa (Jr 23, 5-6).

c) Livro de Ezequiel O profeta pertencia a uma famlia sacerdotal e foi contemporneo de Jeremias. Era filho de Buzi, de uma posio social privilegiada, sua atividade ministerial ocorreu durante o exlio na Babilnia (Ez 1, 13). A figura de Davi apresentada como verdadeiro pastor e no mais como rei (melek), mas sim de prncipe (nasi). Suscitarei para elas um s pastor, e ele as apascentar; o meu servo Davi que as apascentar; ele lhes servir de pastor. Eu, o Senhor, lhes serei por Deus, e o meu servo Davi ser prncipe no meio delas; eu, o Senhor, o disse (Ez 35, 23-24). d) Livro de Ams Este profeta era de Tecoa, regio ao sul de Jerusalm (Am 1,1). Ele no era filho de profeta, mas foi um pastor, boieiro e cultivador de sicmoros (Am 7, 14-15). Seu ministrio deu-se durante o governo de Uzias em Jud e Jeroboo II em Israel e foi contemporneo de Osias (Am 1,1). Para Sicre, no livro de Ams existe uma passagem muito importante que contm dois orculos distintos. O primeiro refere-se restaurao da choa cada de Davi (9, 11-12), o segundo refere-se prosperidade do pas, reconstruo das cidades em runas e garantia de que o povo no voltar a ser deportado (9, 1315). Naquele dia levantarei a choa cada de Davi, taparei suas brechas, levantarei suas runas, e a reconstruirei como nos dias antigos; Para que conquistem o resto de Edom e todos os povos que levaram meu nome - orculo do Senhor, que o cumprir (Am 9, 11-12).

Para Sicre, o termo choa pode estar se referindo casa (bayt) quando os descendentes de Davi foram exilados para a Babilnia; e pode ser aplicado tambm ao imprio davdico sem pensar no desterro, pois logo aps a morte de Salomo Israel ficou dividido em dois reinos e finalmente a possibilidade de que se refira cidade de Jerusalm. e) Livro de Zacarias - foi um profeta do ps-exlio, nasceu na Babilnia e era descendente de uma famlia sacerdotal. Foi contemporneo de Zorobabel e participou do retorno a Jerusalm (Ne 12,4) junto com os exilados que estavam na Babilnia. Em seu livro so feitas duas referncias ao descendente de Davi e que um descendente seu reinar sobre a comunidade. Ouve, pois, sumo sacerdote Josu e teus companheiros que esto sentados diante de ti: so figuras profticas de que eu hei de trazer o meu servo Germe (Zc 3,8).

Ficam claras duas coisas: a primeira que Deus trar um descendente de Davi para reinar sobre a comunidade. A relao com o germe justo de Jr 23, 5-6 evidente, e obriga a pensar numa figura rgia (Sicre, 2000, p. 268). Tem-se em vista que a esperana messinica do profeta continuava viva e seus olhos estavam voltados para um descendente de Davi mesmo com o desaparecimento da monarquia. Nessa perspectiva, o profeta no apenas lembra do Davi histrico, mas aponta tambm para a idealizao de sua figura. Outra passagem descreve essa esperana; ...Eis aqui o homem cujo nome Renovo: ele brotar do seu lugar e edificar o templo do Senhor (Zc 6,12 ); a expresso renovo constitui possivelmente uma releitura ou reinterpretao da palavra germe justo.

As imagens de Davi em Israel estiveram ligadas a motivos religiosos, polticos e sociais, independente de que havia por parte do povo a rejeio ou crticas monarquia. No incio, Davi foi um simples pastor de ovelhas; depois se tornou o rei que unificou as tribos e levou Israel a uma posio privilegiada perante os povos do Antigo Oriente. Ele trabalhou com as perdas da autonomia das tribos e conquistou o brilho da monarquia, confirmou o javismo em Israel em contenda com as religies preexistentes. De qualquer maneira, a sua monarquia constituiu os primeiros passos de um longo caminho que o povo judeu percorreu, Davi introduziu mudanas que regulavam a vida do indivduo e da nao. E deve ter permanecido aberta a questo se afinal a monarquia fez mal ou bem para Israel e a imagem de Davi transferiu-se para o Novo Testamento. Com a decadncia da experincia monrquica em Israel, os profetas apontavam em suas profecias um novo rei descendente de Davi que na prtica tomaria o caminho oposto da monarquia davdica. Aqui h um dado novo: A memria das imagens de Davi nos profetas foi projetada simbolicamente na pessoa messinica de Jesus Cristo. Como Abrao, Jac e Moiss, o rei Davi uma figura emblemtica no Antigo Testamento. Esta figura aparece mais grandiosa quando consultamos o Novo Testamento. De fato, ele o primeiro personagem mencionado depois de Jesus: Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi (Mt 1,1). (...) Segundo o testemunho neotestamentrio (Cf. tambm At 13,22), Jesus no somente o filho de Davi, no qual se realiza a promessa feita a Davi, mas tambm se apresenta como o filho de Deus que se faz homem, passando atravs de sua raa e da histria de seu povo (Santos, 1995, 287-288).

f) Novo Testamento - No Novo Testamento, Jesus apresentado como da linhagem de Davi (Rm 1,1-3). Davi foi o rei que deu ao povo de Israel a esperana

do Messias, e com certeza no foi correto em todas as suas atitudes, mas foi chamado de homem segundo o corao de Deus (At 13, 22), no que possivelmente o autor ao escrever no se reportava ao Davi adltero, cruel e vingativo com seus inimigos.

Em todas as pocas e culturas, os povos personificaram seus traos mais caractersticos e seus mais nobres ideais em personagensprottipos, que atravs de seus feitos contribuam, por sua vez, para moldar o carter coletivo e para enaltecer sua prpria histria. Em momentos de crise, esses personagens-arqutipos foram ponto de referncia, bandeira e modelo a ser seguido (Lamadrid, 1999, p. 188). Para Santos, Davi um personagem complexo, marcado pela ambigidade. Embora caracterizado como o rei segundo o corao de Deus, a sua realeza assinalada pelo episdio com Betsabia (1995, p. 288). Davi serviu

indubitavelmente para o estudo da histria da monarquia em Israel. Sua histria no serviu somente para pr em relevo a transio do tribalismo para a monarquia, mas contribuiu para o conhecimento das alteraes no meio da sociedade, alm do processo de estabilizao do javismo que no uma religio de leis, mas uma religio de vida, segundo normas santificadas que expressam a vontade de Deus (Fohrer, 1982, p. 96).

A presena de Davi na Bblia Hebraica serve como referncia para nossa escolha em desenvolver o tema Imagens de Davi na Historiografia Bblica. Nela podemos descobrir e reunir peas at que possamos formar um quadro e revisar o nosso ponto de vista, trazendo mais luz sobre a sua historicidade e a complexidade deste personagem. Seguindo esse raciocnio, torna-se importante estudar Davi e

suas aes na vida cotidiana, buscando uma compreenso de sua pessoa dentro do contexto social em que viveu.

3. Importncia de Davi na histria de Israel

Uma vez tornado rei sobre Israel, Davi comeou a mostrar as suas habilidades polticas e administrativas. As qualidades de Davi colocaram-no como o prottipo do rei ideal para Israel. H textos que afirmam que ele tinha boa aparncia (1 Sm 16,12), e que era corajoso, fiel e terno (1 Sm 17, 34-37). Possua habilidades musicais e poticas; era amado e apreciado pelo povo de Israel (1 Sm 18,16). Davi era o ungido de Jav (1Sm 16,1). Durante o reinado de Davi, Israel teve uma importncia poltica nunca antes conhecida. A importncia histrica de Davi ultrapassou em muito a sua prpria poca. Embora o grande reino de Davi j comeasse a decair durante o reinado de seu neto, fato que a sua dinastia permaneceu por 04 (quatro) sculos no trono do Estado de Jud. Com isso, ela conseguiu manter-se durante um perodo mais longo do que qualquer dinastia dos povos do Antigo Oriente (Metzger, 1984, p. 68). A conquista de Jerusalm e as vitrias de Davi sobre os filisteus e povos vizinhos levaram Israel ao status de nao entre as naes. Israel ficou conhecido pelo seu grande poder poltico, militar e comercial. Davi construiu um imprio. A unidade nacional, o poder centralizado e pessoal, a extenso de suas possesses e a introduo de novos costumes da vida pblica no foram suficientes para que a monarquia fosse um fato consumado para os israelitas.

A monarquia, portanto nunca se livrou da tenso. Nem Davi nem Salomo com todo o seu brilhantismo, conseguiram resolver seus problemas fundamentais principalmente o de diminuir a diferena entre a independncia tribal e as exigncias da nova ordem (Bright, 1980, p. 300).

Ao tratar da transio do tribalismo monarquia, Dreher afirma que:

No obstante, decorridos cerca de 200 anos, eis que Israel institui a monarquia.. Almeja um rei como o tm as outras naes (1Sm 8.5b,19s). E esta instituio perdurar, entre crticas e simpatias, at a queda de Jerusalm, em 587 aC. Como compreender tal reincidncia? Que teria levado essa sociedade contra o Estado recair na contradio que abolira e abominara? Que causas levaram instituio do reinado? Em que termos e a que custos tal instituio se estabeleceu? (Dreher, 2000, p.6). A nosso ver, a pesquisa sobre Davi nos leva a refletir sobre as mudanas que ocorreram em Israel. Foi um tempo no qual ocorreram mudanas na estrutura e na conscincia da sociedade israelita, mudanas essas que conduziram instituio da monarquia em detrimento do tribalismo. A instituio da monarquia exigiu novas regras de vida fundamentadas em outras bases e os textos bblicos revelam que o povo, em parte, resistiu introduo do novo sistema. As modificaes introduzidas no governo de Davi, tanto no aspecto poltico quanto nos aspectos religioso e militar, tiveram repercusses profundas na vida interior do povo de Israel. Davi foi o homem, o rei, o religioso, o guerreiro, presente em todos os tempos na histria de Israel. Na transio do ps-exlio, os autores deixaram por vezes o Davi histrico, e ele passou a ser um smbolo. Os fatos se sucediam

desfavoravelmente para o povo judeu, a experincia do desterro e de dominao por outros povos levou-os a sobreviver sombra das promessas dos profetas e das lembranas do rei Davi, que refletem anseios, desejos e esperanas de alguns. De fato, so diversas as interpretaes que recebe o personagem Davi, nem sempre positivas, mas imprescindveis para se conhecer a histria da poca urea em Israel.

4. Metodologia e Hermenutica na Anlise de Davi O estudo e a discusso sobre as Imagens de Davi na Historiografia Bblica foram desenvolvidos com base em pesquisas bibliogrficas que conduziram a um levantamento minucioso a respeito do tema. Sobre essa metodologia, Deslandes assim se expressa: ... podemos dizer que a pesquisa bibliogrfica coloca frente a frente os desejos do pesquisador e os autores envolvidos em seu horizonte de interesse. Nesse caso, trata-se de um confronto de natureza terica que no ocorre diretamente entre pesquisador e atores sociais que esto vivenciando uma realidade peculiar dentro de um contexto histrico social (1998, p.53).

Os critrios adotados para a seleo das obras bibliogrficas levaram em considerao os trabalhos que apresentaram produo relevante, profunda e ainda os que atenderam s necessidades do assunto em pauta. Fica, pois, evidente que, em termos prticos, ser apresentada uma descrio do tema Imagens de Davi com aspectos comparativos e de sinopse entre as obras historiogrficas na Bblia.

No estudo do tema Imagens de Davi consideramos como eixo central a comparao entre a Obra Historiogrfica Deuteronomista e a Obra Historiogrfica Cronista. Partimos do pressuposto hermenutico que j no temos acesso ao Davi histrico. O acesso a Davi somente se d atravs dos textos que falam dele. As histrias narradas e recriadas na Obra Historiogrfica Deuteronomista e na Obra Historiogrfica Cronista revelam Davi, sob vrios aspectos, como um personagem ambguo e de vrias facetas. A cada leitura sobre Davi, utilizando diferentes autores, descobrimos mais uma possvel imagem deste personagem. Buscando uma compreenso e entendimento sobre as Imagens de Davi na Obra Historiogrfica Deuteronomista e na Obra Historiogrfica Cronista, utilizaremos alguns componentes tericos da interpretao ou exegese bblica, da histria de Israel e da hermenutica.

a) Hermenutica Frederico Schleiermacher foi fundador da hermenutica moderna. Para Schleiermacher, a hermenutica tem de ser a arte e a cincia de interpretar um conjunto maior, ou seja, a arte de compreender e interpretar. Rudolf Bultmann utilizou na teologia as novas perspectivas hermenuticas abertas por F. Schleiermacher, W. Dilthey e sobretudo pela filosofia existencial de M. Heidegger. Segundo ele, a pr-compreenso a compreenso de si mesmo; tudo que interpretamos est dentro de uma cadeia de tradies mais antigas. Isso significa que cada intrprete traz um pr para dentro da interpretao. Nesse processo no h neutralidade. Ou seja, no contexto em que Davi estava inserido, os fatos sociais tinham existncia prpria. Pode-se notar que, de acordo com cada histria sobre Davi, elas apresentavam formas padronizadas de conduta e de

pensamento da poca. No possvel eliminar a pr-compreenso na interpretao do texto que por sua vez objetivo. Sobre esse processo de interpretao, Hans Georg Gadamer afirma que: O crculo no deve ser degradado a crculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originrio, que evidentemente, s ser compreendido de modo adequado, quando a interpretao compreendeu que sua tarefa primeira constante e ltima permanece sendo a de no receber de antemo, por meio de feliz idia ou meio de conceitos populares, nem a posio prvia, nem a prvia posio, nem a concepo prvia (Vorhabe, Vorsicht, Vorbegriff), mas em assegurar o tema cientfico na elaborao desses conceitos a partir da coisa, ela mesma (Gadamer, 1999, p. 401). Hans Georg Gadamer, em sua obra Verdade e Mtodo, desenvolve a idia de que a pessoa humana pertence histria e determinada pela histria. A historicidade caracteriza o sujeito que compreende, o objeto compreendido e o prprio processo de compreender (Apud Gibellini, 1998, p. 63). Gadamer articulou tambm um princpio chamado histria dos efeitos. Isso significa que o tempo decorrido sobre um autor, ou sobre um fato chega ao intrprete explanado de vrias maneiras. Isso constitui a histria dos efeitos que determina a pr-compreenso do novo intrprete, mas que por sua vez vai provocar uma nova interpretao. Desse ponto de partida possvel compreender as diferentes combinaes das quais podem ser originrias a Obra Historiogrfica Deuteronomista e a Obra Historiogrfica Cronista. Nesta histria dos efeitos tambm se inclui a dimenso de que certas interpretaes provocam conseqncias prticas na vida das pessoas. Isso deve ser levado em considerao. A verdade do conhecimento cristalina, mas a apropriao da verdade subjetiva. O sujeito intrprete est inserido dentro de uma tradio. A tradio se

apresenta como linguagem. A linguagem e a compreenso so a via de acesso ao ser e realidade. Segundo Gadamer, no momento da interpretao, pode-se continuar com as tradies ou pode haver uma ruptura. O intrprete pode reproduzir o discurso ou romper e elaborar um novo discurso que uma nova interpretao, ou seja, o sujeito-intrprete est dentro de uma corrente entre passado e futuro. Sob esse prisma, a monarquia de Davi rompeu com a experincia tribal em Israel, o novo sistema de governo incrementado por Davi fez dele um traidor do tribalismo? Ao lidar com os textos bblicos, natural trabalhar com um material que interfere em nossos sentimentos religiosos. Mais do que ler, pretendemos aprender a ler e a interpretar, de tal sorte que a hermenutica poder nos levar a uma melhor compreenso do tema Imagens de Davi. Dentro desta perspectiva talvez precisaremos desconstruir valores e concepes que muitas vezes so articulaes de determinados grupos e resgatar uma imagem mais prxima do Davi histrico, conforme expresso nos textos.

b) Davi na Histria de Israel consultando o dicionrio encontramos um conceito de histria: Conhecimento do passado da humanidade e das sociedades humanas; disciplina que estuda esse passado e procura reconstitu-lo (Dicionrio Larousse, 1999, p. 497). E no que tange perspectiva do povo de Israel, Mackenzie assim se expressou sobre histria: Israel, portanto, tinha um conceito de histria; quando a examinamos, percebemos que o fruto do que poderamos chamar de uma teologia da histria. A unidade e continuidade do processo histrico emergem da conscincia que Israel tinha de si prprio no s como um povo,

mas como povo de Iahweh. Sua histria a histria de seu encontro com Iahweh, e de sua resposta ao encontro (1983, p. 425).

A partir do conceito de histria, sobretudo sobre a histria de Israel, trabalharemos com autores como: Jorge Pixley, Herbert Donner, John Bright, Jos Luis Sicre, Normam Gottwald, Milton Schwantes. Sicre se refere a Davi da seguinte forma: Junto com Moiss, Davi o personagem bblico que atrai mais ateno. o protagonista principal dos dois livros de Samuel, Sua imagem continua presente em Reis, mesmo depois de morto. Volta a ser protagonista em Crnicas. E no faltam abundantes referncias a ele nos Salmos e Profetas (Sicre, 2000, p. 59). Foi atravs da imagem de Davi que se explicou determinados

acontecimentos, ou se expressaram sentimentos e julgamentos. Davi consulta Jav se deveria lhe construir uma casa, isto , um templo, em Jerusalm. (Donner, 1997, p. 243). A resposta de Jav a Davi, por intermdio de Nat, legitimou a dinastia davdica. Sobre isso, um historiador afirma: Atravs desta declarao que na presente forma indubitavelmente deuteronomista, a dinastia davdica recebe, j de sada, sua legitimao to urgentemente necessria. O direito eletivo de Jav, um dos elementos constitutivos de qualquer reinado israelita, mantido: s que ele no elege figuras individuais, mas se decide de uma vez por todas pela casa de Davi. (Donner, 1997, p.243).

A historiografia que coloca Jav como iniciador da idia dinstica davdica recebe uma ampla discusso com Gottwald. Quaisquer que sejam as delineaes exatas de gneros e motivos concernentes realeza em Jerusalm, evidente que se

desenvolveram diversas avaliaes religiosas positivas do cargo dentro de Jud, sem dvida comeando pelos tempos davdicos-salomnicos. De uma maneira ou de outra, julgou-se que os reis judatas estavam (1) numa relao filial caracterstica com Iahweh; (2) intermedirios entre Iahweh e o povo, modelos de piedade e obedincia a Iahweh (Gottwald, 1988, p.320).

A imagem de Davi construda seja na Obra Historiogrfica Deuteronomista seja na Obra Historiogrfica Cronista gerou um modelo de padro comportamental para os reis sucessores de Davi. Os reis posteriores a Davi passam a ser medidos conforme o critrio Davi. Praticou o que agrada ao Senhor, trilhando sempre o caminho do seu antepassado Davi, sem se desviar nem para a direita nem para a esquerda (2Rs 22, 2). Assim tambm aconteceu com o monoplio do poder religioso que norteou as aes e percepes do povo de Israel.

Sobre histria e historiografia podemos ainda afirmar: Historiografia uma maneira de escrever a histria e de apresentar documentos. A Bblia por sua vez tem a sua historiografia ou at suas historiografias. A Bblia apresenta cronologias, narrativas concatenadas e at snteses histricas, como no caso do livro dos Reis e livro das Crnicas (Cazelles, 1986, p. 17).

c) Exegese e interpretao - Aqui trabalharemos com autores como: Antonio Gonzalez Lamadrid, Henri Cazelles, Shigeyuki Nakanose, Martin Noth, Hans Walter Wolff e outros. Esses autores trabalham a problemtica da interpretao da Obra Historiogrfica Deuteronomista e da Obra Historiogrfica Cronista numa perspectiva

que ajudar a trazer mais luzes sobre a questo das imagens de Davi nestas duas obras citadas a partir dos respectivos textos.

5. Estrutura da Dissertao A dissertao est estruturada em trs partes. O captulo I apresenta uma breve histria de Israel da poca do tribalismo monarquia. Iniciaremos com as teorias sobre a conquista da terra de Cana. No tribalismo os personagens centrais eram sem sombra de dvida os juzes. Eram pessoas nomeadas por Jav quando necessrio e que atuaram nas funes de juzes, profetas e sacerdotes. Havia inclusive mulheres (Jz 4 e 5). A continuao da narrativa nos leva aos incios da monarquia, cujo tema central o personagem Davi. No captulo II, o assunto ser propriamente as imagens de Davi nas historiografias bblicas. Buscaremos perceber mudanas significativas nas

representaes de Davi. O foco est na Obra Histrica Deuteronomista e na Obra Histrica Cronista, que foram escritas em diferentes circunstncias e por perspectivas por vezes concorrentes. O autor ou autores dessas obras procuraram no apenas entender o significado do passado de Israel, mas provocar no povo judaico uma resposta obediente e comprometida frente ao impacto do ambiente que eles viviam. O captulo III procura analisar de forma comparativa o episdio do translado da Arca da Aliana, conforme apresentado em 2 Sm 6 e 1 Cr 13. Este captulo serve mais como um estudo de caso para evidenciar similaridades e diferenas na historiografia sobre Davi. A concluso busca sublinhar os resultados principais de nossa pesquisa e as referncias bibliogrficas daro conta dos autores e das autoras que nos

acompanharam neste trabalho monogrfico. E, no final da dissertao, h alguns anexos de cunho meramente ilustrativo.

I - ISRAEL: DO TRIBALISMO MONARQUIA DAVIDICA

Nesse captulo trataremos sinteticamente dos incios da Histria de Israel. Grosso modo, a histria do povo de Israel pode ser dividida em quatro perodos principais. 1.4.Incios do tribalismo; 1.5.Monarquia (unida e dividida); 1.6.Exlio; 1.7.Ps-exlio. Enfocaremos brevemente o primeiro perodo e seu desenvolvimento para o segundo perodo. Trataremos pois, da transio do tribalismo para a monarquia. Quando nos referimos ao sistema ou poca tribal de Israel, trata-se do perodo entre 1250 a 1000 aC. Sobre este perodo encontramos teorias, que procuram explicar as origens de Israel como nao de tribos e tambm o modo de sua instalao no

territrio de Cana. O Israel primitivo tem como data provvel para o comeo de sua histria o sc. XIII aC, o que coincide com o xodo e a sua subseqente conquista da terra. difcil fazer afirmaes histricas mais contundentes sobre o assim chamado perodo patriarcal, como retratado em Gn 12-50. Atravs das escavaes das colinas das antigas cidades de Cana e das cartas de Amarna, que os reis cananeus enviavam a fara, possvel conhecer a Cana deste perodo. Os seus habitantes estavam localizados nas reas baixas do pas, na plancie que acompanha o Mar Mediterrneo e no Vale de Jezrael que corta a cordilheira central nas alturas do Monte Carmelo e do Mar da Galilia. Essas regies eram frteis e locais de passagem de rotas de comrcio. A Cordilheira Central, conhecida como montes da Galilia, Efraim e Jud, era uma regio de bosques e matagais, sendo raras as cidades nas montanhas. As principais cidades na montanha foram Hazor, Siqum e Jerusalm. A terra de Cana obtm sua fertilidade das guas das chuvas que provm da caldeira de evaporao do Mar Mediterrneo e se condensa nas serras (chuvas de aclive) (Donner, 1997, p.51). A regio tem duas estaes do ano bem definidas: inverno chuvoso e vero seco. Praticamente no h recursos minerais. Neste perodo no havia uma organizao poltica central, sendo o territrio de Cana dividido em vrios pequenos reinos chamados de cidades-estado. Havia um rei para cada cidade-estado; estes reis por sua vez eram sditos do Egito, ao qual pagavam um tributo regular. Segundo Pixley (1991), havia uma diversidade de elementos sociais que contriburam na formao da unidade da nao tribal de Israel. Existem teorias para explicar como os israelitas se fixaram na regio da Palestina.

1.1. Teorias que do suporte para a emergncia do Israel tribal a) Teoria da Conquista Violenta Esta teoria defende a idia de uma unidade racial primitiva. Os exegetas consideram que havia suficientes vnculos familiares entre as tribos para explicar a unio das mesmas. Desse grupo destacamse os exegetas Yehezkel Kaufmann, de Israel, e John Brigh, dos EUA. Segundo esta teoria, a formao de Israel deu-se fora de Cana, sendo a conquista um momento conseqente. Esta a hiptese tradicional, sendo que sua explicao est respaldada em dados bblicos, (Pixley, 1991, p. 16). b) Teoria da Imigrao Pacfica - Esta teoria encontra a unidade de Israel em sua prtica do pastoreio de animais. Postula a oposio Cana x Israel como conflitiva entre pastores e agricultores. Esta teoria foi defendida sobretudo pelos pesquisadores alemes Albrecht Alt e Martin Noth, encontrando ainda seguidores at os dias de hoje. A formao de Israel teria ocorrido em Cana num processo migratrio anual, e, lentamente, os seminmades teriam se aproximado das terras frteis. Martin Noth defende a hiptese de que o sistema dos doze fez estes grupos distintos dos outros grupos, mesmo no havendo base cientfica para tal argumento. O modelo utilizado foi comparado ao modelo das antifictionias greco-itlicas para o sistema das dozes tribos de Israel. Com base em textos do Antigo Testamento, a adorao a Jav teria sido o piv que unificou as tribos de Israel e as distinguiu de outras (Pixley, 1991, p. 16).

c) Teoria da Revolta Social - Esta teoria prope a unidade das tribos como resultado de uma rebelio comum contra os reis da Palestina. Israel teria se formado

dentro da sociedade canania, aproveitando-se da queda do feudalismo cananeu auxiliado por outros grupos em Cana. Essa proposio feita pelo exegeta americano Norman K. Gottwald e seguida por vrios autores recentes, incluindo-se a Jorge Pixley e Shigeyuki Nakanose. Esta teoria explica o grupo que veio da peregrinao no deserto, trazendo consigo a crena num Deus libertador, vindo a tornar-se a religio especfica de Israel. Com o sucesso da revolta surgiu um novo sistema: o tribalismo ou tambm conhecido como perodo dos juzes (Pixley, 1991, p. 17).

1.2. Os grupos participantes na formao de Israel Na formao de Israel existiram vrios grupos que resistiam aos reis cananeus e egpcios. Dos vrios grupos que havia surgiram alianas mais fortes entre os mesmos. As tribos do norte eram diferentes das tribos do sul. Em cada uma das tribos provvel que tivessem elementos diferentes; alguns vindos do deserto, outros sedentarizados, alm dos de origens diversas. A histria do povo de Israel transcorre na parte meridional do corredor siro-palestinense, entre as antigas civilizaes e potncias situadas junto ao Nilo, na Mesopotmia e sia Menor (Donner, 1997, p.33). A localizao das tribos favoreceu para que houvesse um intercmbio de influncias polticas e culturais no Oriente Antigo, que foram transmitidas at o Ocidente. Para Schwantes (1984), entre os grupos que participaram da formao de Israel destacam-se os seguintes: a) Grupos de Hapirus Eram grupos de pessoas com realidades sociais diferentes. O termo significa desordeiro, rebelde. Em Ex 1,15, os hebreus so conhecidos como hapiru, grupo que no se submetia ao sistema cananeu e egpcio. Tentando escapar dessa explorao das cidades-estados, alguns fugiam

para as montanhas, onde praticavam uma agricultura de subsistncia e pastoreio nas regies de estepe (Schwantes, 1984, p. 63-80). A caracterstica especfica comum ao hapiru sua separao forada da sociedade estabelecida. Eles representavam uma classe que no possua status social e que existia na periferia da sociedade como grupo marginalizado. Seus membros tinham perdido sua posio anterior e haviam sido forados a se retirarem para regies de difcil acesso ou pouco alcanados pelo controle das cidades-estados (Thiel, 1993, p. 56). . b) Grupos Abrmicos - So descritos como nmades e seminmades; so mais antigos e resistentes e no se estabeleceram nas cidades. Eles provm da estepe. O documento que conserva as tradies desse grupo sobretudo o Gnesis (Gn 12-50). Da advm o nome de abrmico ou patriarcal. No moravam na terra prometida, mas foram os portadores da promessa da terra. No viviam em casas de construes slidas, mas em tendas. Vagueavam por Cana, procurando pastagens para os seus rebanhos. Os patriarcas so apresentados como ancestrais de todo o Israel e da promessa divina de descendncia e propriedade de terra cultivada (Gn 12,1-3). No eram proprietrios de terras, mas compravam pequenos pedaos de terras para sepultarem os seus mortos (Gn 23,4), (Schwantes, 1984, p. 81-107).

c) Grupo Mosaico - Passou a ser o grupo principal na formao de Israel sob a liderana de Moiss, profeta de Jav que recebeu as tbuas da lei e levou o povo de Israel a uma aliana com Ele. Era portador das tradies do xodo, o milagre do mar dos juncos (Ex 14-15), a conduo pelo deserto, a celebrao da aliana no monte de Deus (Ex 19 a 24; Nm 10,11) e a conduo para dentro da terra cultivada (Nm 13). No Pentateuco, Moiss a figura principal da poca de salvao clssica

de Israel. Ao seu lado, o povo de Israel era como unidade, no estruturado por tribos nem por qualquer outro tipo de agrupamento (Schwantes, 1984, 108-144). d) Grupo Sinatico O nome (shem) de Deus caracterstico do grupo sinatico. Esta tradio tem como tema central o culto a Jav. Jav aquele que se revela no Sinai (Jz 5,5) (Schmitt, 1994, p. 40). A importncia do Sinai est presente em diversos relatos no Pentateuco, e na tradio do culto. O Sinai no est entre os eventos salvficos mais antigos e fundamentais do povo de Israel. O xodo um evento fundante da f israelita e a correlao entre o xodo e o Sinai que ambos fazem parte da tradio israelita (Schwantes, 1984, p. 145). A partir disso, podemos concluir que o Israel antigo se formou de grupos de diversas origens. Os descendentes dos grupos abrmicos permaneceram em Cana, adotando a lngua e a cultura local, preservando as suas tradies. Os hapiru eram pessoas sem tradies, sem lugar definido na sociedade. Eram escravos, camponeses explorados e mercenrios mal pagos (Bright, 1980, p.77). O grupo comandado por Moiss, chamado de mosaico, protagonizou acontecimentos desse perodo que constituram o xodo e colocaram a base para a religio especfica de Israel. As origens da estrutura peculiar de Israel esto no Sinai. Foi no monte Sinai que Jav se revelou ao povo de Israel (Ex 3; 19, 24), a lei do Sinai tornou-se a marca constitutiva de Israel.

1.3. O Tribalismo Com a posse da terra comeou a vida de Israel como povo. No incio do assentamento, as tribos israelitas se situavam preferencialmente nas regies

montanhosas de Cana, permanecendo em relativo isolamento e resistindo influncia da cultura urbana canania. O processo de tomada da terra foi um processo lento que levou bastante tempo. possvel que o surgimento de Israel tenha-se dado com pessoas de origens diversas, com tradies diferentes. A conscincia de vnculos entre os israelitas no surgiu em decorrncia de terem uma origem comum, mas uma razo religiosa que os distinguiu como povo. Os levitas, seguidores de Jav e Moiss, tornaram-se responsveis pela conscincia de unidade entre os israelitas. Eles preservavam e transmitiam a f javista. A religio tornou-se parte constitutiva do tribalismo. A unio das tribos organizava as outras unidades autnomas. As leis trazidas por Moiss garantiam a ordem. Em assemblias, homens adultos se reuniam para celebrar a Aliana e elaborar as normas da sociedade que se mantinham inicialmente pela tradio oral. As tribos eram grandes famlias e em teoria eram todos descendentes de Jac (Pixley, 1991, p. 21). Em assemblia, as tribos decidiam o incio de guerra regional, no possuindo um exrcito permanente e pago. No tinham mercenrios nem nobreza de cavalaria nem unidade de carros de combates (Bright, 1980, p. 221). O sistema era igualitrio e fraterno (Js 22,8). A produo no era acumulada. A ordem social das tribos, cls e famlias israelitas era patriarcal e androcntrica. A grande famlia estava subordinada figura do pai, que era limitado por meio de leis. Os grupos maiores eram liderados por colgio de ancies. Politicamente, a associao de tribos era um governo sem coeso territorial, com conflitos internos. Os sacerdotes no herdavam terras para no terem privilgios (Js 21,3). Em alguns lugares, o sacerdcio de Jav era hereditrio (1Sm 1-3,4,4). Jav era afirmado como proprietrio de todo o solo e de toda a terra (Ex 9,29).

...Eles no dispunham de nenhum poder econmico ou poltico especial, mas, com o decorrer do tempo e de acordo com a importncia de seu santurio, podiam tornar-se uma espcie de autoridade moral. Isso, no entanto, seguramente ainda no acontecia na maior parte do perodo pr-estatal (Thiel, 1993, p. 102). Para Dreher (2000, p. 17-22), na poca dos juzes, as tribos no conheciam o estado; as tribos se organizavam a seu modo, porm, na organizao, as tribos apresentavam caractersticas similares. a)A organizao do trabalho Na sociedade tribal no existe propriedade privada. O meio de produo sempre coletivo. A terra entre os camponeses, ou as pastagens e rebanhos entre os pastores, so sempre propriedade do cl ou da tribo, o que quer dizer, de toda a comunidade. A distribuio do produto igualitria. No existia comrcio (p. 18-19). b) A organizao social A unidade social primria a famlia. A famlia formava a unidade econmica bsica da tribo. Para evitar um desnivelamento entre as famlias e para no deixar que famlias fracas perecessem, existia a associao protetora de famlias. Essa unio pretendia proteger as famlias (p.19). c) A organizao poltico-jurdica Aos ancios cabe a organizao da defesa em tempo de guerra (Jz 11,5ss). As mulheres podem assumir esta funo de liderana na guerra (Jz 5). Os guerreiros so recrutados das associaes protetoras de famlias. Tambm os guerreiros voltam a exercer seu trabalho normal, aps terminada a guerra (p. 20-21). d) A organizao religiosa

O servio religioso carregado pelo prprio povo, assim como o trabalho e a poltica. O culto realizado no prprio local em que se vive. No h um templo ou santurio central. O sistema tribal , em vista destas caractersticas, um sistema igualitrio. No h dominao de um grupo sobre o outro, dentro da tribo. Este sistema existiu de fato em Israel por 200 anos, desde 1250 a 1050 aC (p. 20).

Na poca dos juzes, as tribos israelitas viviam relativamente isoladas, decidindo sobre seus assuntos. No havia um templo central com celebraes clticas regulares, nem sacerdcio nico que exercesse sua funo em nome do Israel unido. No existiu uma proclamao do direito divino central. No Antigo Testamento, todo direito provm de Jav e outorgado por Ele. No livro de Juzes aparece a lista dos juzes maiores e menores. Os juzes menores provinham de diferentes cidades e tribos, cuja funo era zelar pelo direito divino, tendo a obrigao de conhec-lo, estud-lo, interpret-lo e apresentar aos delegados das tribos nas assemblias festivas das tribos. O Israel tribal foi uma experincia fundante. O livro de Juzes descreve os primeiros anos da conquista da terra em Israel. Os acontecimentos narrados no livro de Juzes cobrem o perodo em que os israelitas conviviam com inmeras dificuldades. Eles no conquistaram toda a terra de Israel (Jz 3; 6-8; 10-11), mas habitavam no meio de outros povos, sendo que alguns os oprimiam (Jz 3,5; 4 e 5). Mudanas profundas ocorreram por fatores externos, presses internas e externas, que levaram instalao da monarquia.

1.4. O Estado Monrquico

Conforme Donner (1997, p. 33), a formao de um povo no um acontecimento da natureza, mas um processo histrico que se baseia no nvel da conscincia da pessoa e na fora econmica dos grupos de pessoas que dele participam. No antigo Israel, a instalao da monarquia foi um processo

controvertido, que passou por fases distintas.

1.4.1. Intentos monrquicos Segundo a tradio bblica, a primeira tentativa de instaurar uma monarquia ocorreu ainda no perodo dos juzes, no sculo XII aC. Em Jz 7; 8; 9 e 11 aparecem os vislumbres de uma forma monrquica de autoridade. Gedeo, aps a vitria contra os madianitas, recusa o pedido que o povo lhe faz para que ele estabelea um reinado hereditrio (Jz 8,22). Ele no aceita a proposta sob a alegao de que Jav o rei de Israel. A primeira formao de um Estado nacional israelita foi produto de uma emergncia. A presso externa veio com o estabelecimento dos filisteus na costa sul onde fundaram a sua pentpole no litoral. Os filisteus foram um povo pequeno, pouco numeroso, mas seus prncipes dispunham de uma tecnologia avanada. Eles conservavam o segredo da fundio do ferro (1Sm 17,4-7). Organizaram exrcitos fortes com carros e cavalos, com guarnies militares nas montanhas para recolher tributos dos israelitas. Os israelitas no tinham ferreiros para fabricar lanas e espadas e dependiam dos filisteus para afiar seus instrumentos agrcolas (1Sm 13,9-22). Era natural que estivessem prximos de uma escravido diante dos filisteus.

Por sua vez, a associao de tribos era politicamente muito flexvel com a segurana externa e interna. Os filisteus superavam o exrcito de voluntrios israelitas e eles foram para a totalidade das tribos uma ameaa, como at ento eles no haviam enfrentado. As tribos, sem coeso poltica, associada s rebelies, acabaram por serem derrotadas perto de Afec (1Sm 4). Como presso interna, um fato foi a corrupo dos juzes, que levou os conselheiros de Israel a pedir a Samuel um rei. Eles queriam um sistema semelhante ao de todas as naes (1 Sm 8,5). Outro fato foi o acmulo de excedentes proveniente da agricultura praticada nas montanhas com a construo de patamares e escavaes de cisternas na rocha. Das famlias mais favorecidas surgem os chefes militares (Pixley, 1991, p. 23). Ainda outro fator foi introduo do boi na produo agrcola que provocou uma revoluo tecnolgica em Israel. preciso ter clareza sobre o significado deste avano tecnolgico. A passagem de uma lavragem manual para o uso de trao animal no emprego do arado deve ter incrementado consideravelmente a produo agrcola. Aos proprietrios de bois que no devem ser muitos a princpio, dadas s caractersticas prprias da domesticao e procriao do animal oportunizado um considervel acmulo de excedente de produo. Este acmulo, por sua vez, acentua desigualdades econmicas e, conseqentemente, contradies sociais (Dreher, 2000, p. 14). A introduo do boi em Israel e o comrcio causaram transformaes

profundas na sociedade. O desenvolvimento do comrcio est diretamente relacionado com a agricultura. Com o aumento da produo e o conseqente aumento do excedente, o comrcio passa a se intensificar mais nas regies prximas a Jerusalm (Schmitt, 1994, p. 43). Com o incremento da agricultura e do comrcio, a sociedade passou a ser dividida em classes, sendo que uma classe

social enriqueceu por causa do excedente da produo. Essa nova classe mostrouse disposta a arcar com o nus da tributao conseqente da formao do Estado. Pela prpria natureza das coisas, via de regra, o Estado passou a garantir a posio econmica do grupo privilegiado. Possivelmente, as pessoas participantes da classe social que empobreceu tornaram-se endividadas e marginalizadas (1Sm 22,2; 25.13). Esses acontecimentos acabaram fazendo surgir o primeiro rei em Israel.

1.4.2. Saul: primeiro rei de Israel Saul foi o primeiro rei de Israel. Pelos textos bblicos, trs relatos revelam como chegou a s-lo. O primeiro narra a uno privada de Saul quando procurava as jumentas de seu pai (1Sm 9,1-10,16). No segundo relato, Saul foi indicado como rei por sorteio (1Sm 10,17-27). No terceiro relato, Saul vence os amonitas, comandando um exrcito de voluntrios e, em Gilgal, comea o governo monrquico. De acordo com o costume extra-israelita da poca, um rei se empossava definitivamente no cargo depois de ter realizado um feito herico (1Sm 11). O aspecto militar teve carter decisivo na escolha de Saul e durante todo o seu reinado houve guerras. Praticamente, Saul foi rei em campo de batalha. A escolha de Saul foi conseqncia de um pedido expresso do povo, representado pelos ancios das tribos (1Sm 8,4) e abenoado pelo profeta Samuel. Saul foi designado rei por indicao divina, feito realizado atravs de um profeta. A nova instituio surge em Israel com conflitos. Temia-se que o reinado pudesse levar novamente escravido (1Sm 8,10-l7). A monarquia de Saul no utilizou um aparelho de Estado; as guerras de conquista possibilitaram a formao de chefes militares nas montanhas (1Sm 22,7).

O nico detentor de cargo citado pelas fontes seu tio Abner, com o cargo de comandante do exrcito popular (1 Sm 14,50; 17,55). No sistema estatal de Saul no existiu um funcionalismo nem um aparelho administrativo. Sua residncia em Gab era mais uma fortaleza do que um palcio. evidente que Saul e seu grupo de soldados so destacados pela comunidade produtora exclusivamente para a organizao da defesa contra inimigos externos. Este Estado emergente nada tem a ver com obras pblicas ou com a religio. Esta ltima, em especial, continua tarefa alheia ao rei, que inclusive se indispe com os lderes tribais por tentar manipul-la (1Sm 15). A relao contratual est limitada funo militar do rei (Dreher, 2000, p. 12). A monarquia de Israel era nica; Jav continuava sendo considerado o rei supremo do seu povo, e, no comeo, no houve uma ruptura com as antigas tradies religiosas. O rei em Israel no era como os reis cananeus; ele estava sujeito s leis de Jav. Conforme a opinio de Pixley (1991, p. 20-30), Jav era o rei das tribos (1Sm 8,7) e superior ao rei. O rei no devia fazer a sua prpria vontade e beneplcito; tinha de reinar conforme a lei de Jav. A lei de Jav estava prevista na lei do Sinai e quem expressava a vontade de Jav era o profeta (2Sm 11-12), o que significava que o rei possua poderes, porm no eram ilimitados. O comentrio de von Rad (1973, p. 313-314) sobre a realeza de Saul que ela foi quase completamente estril por dois motivos: - A vida na corte de Saul em Gab (1 Sm 20,25) era incomparavelmente mais simples que a de Jerusalm; - Outras razes so de cunho teolgico; a histria de Saul foi narrada no perodo de Davi no livro da ascenso de Davi. O material tradicional sobre Saul considervel (1Sm 9-31), e os textos que tratam de sua pessoa, de suas relaes

com Jav ou de como ele aparece como personagem principal so substancialmente reduzidos. A fama de Saul correu depressa, mas ele tambm se tornou logo objeto de gracejos. Passou a ser perante os olhos da f sobretudo como o ungido que escapou s mos de Jav, que deixou a cena, que cedeu o lugar a outro, que foi abandonado por Deus, que finalmente desesperado, de alucinao em alucinao, acabou encoberto por funestas trevas (von Rad, 1973, p. 314).

Em 1Sm 15,28.34-35, Saul rejeitado por Samuel, por ordem de Jav. A decadncia de Saul atribuda sua instabilidade emocional. Com a decadncia de Saul, Davi surge em cena como novo rei.

1.4.3. A monarquia de Davi

Com a morte de Saul e de seu filho Jnatas, Davi, que estava foragido de Saul, regressa a Jud onde foi coroado rei pelos ancios do povo (2Sm 2,1-4). O herdeiro de Saul, Isbaal governava o trono de Israel. No entanto, as dissenses no reino setentrional irromperam e Isbaal foi assassinado pelos seus assessores (2Sm 4,1-12). Os ancios de Israel, por meio de um acordo, elegeram Davi o seu novo rei. Davi tornou-se rei de Jud e Israel e logo buscou uma sada emergencial para o dualismo entre os dois reinos. A sada foi a conquista da antiga cidade jebusita, pois Jerusalm controlava a principal rota norte-sul no interior, mais do que isso, era a juno natural entre o norte e o sul (Johnson, 1995, p. 66). Com a conquista de Jerusalm por Davi, este a transformou em novo centro poltico e religioso (2Sm 5-7). Ali organizou suas foras militares (1Cr 12) e administrativas.

Davi fixou sua residncia em Jerusalm e fez dela a cidade de Davi, capital administrativa e religiosa do reino. Com grande festividade, ele transladou a Arca da Aliana para Jerusalm e organizou os levitas (2Sm 6; 1Cr 15,16-24). Sobre a arca e o seu translado, Fohrer (1982, p. 150), se expressa da seguinte forma:

A arca foi considerada o palcio de Deus que era superior a todos os outros seres de mbito divino e smbolo da eleio de Davi; em outras palavras, ela adquiriu significado teolgico e dinstico. (...) a transferncia da arca teve outro aspecto, que provavelmente revela influncia Canania: alm da oferenda de sacrifcios, ali realizouse uma solene procisso acompanhada por msica e dana cultual, a ltima executada pelo prprio rei, que exercia funo sacerdotal. Davi, em suas campanhas militares, derrotou os filisteus (2Sm 5,17-25),

moabitas, arameus, srios (2 Sm 8,1-18) e livrou Israel de novas ameaas de seus vizinhos estrangeiros. As novas conquistas aliceraram e fortaleceram a monarquia. As numerosas conquistas de Davi transformaram Israel num reino composto de elementos variados. Seu poder consistia por um lado num exrcito tribal que estava sob o comando de Joabe (2Sm 8,16). Este era chamado de al hassaba, aquele sobre o exrcito popular . Por outro lado, o poder estava firmado num grupo de mercenrios (2Sm 15,18) que era denominado de hakkereti wehappeleti, , creteus e os peleteus um grupo comandado por Benaia. Esta era a constituio da fora militar que garantiu muitas vitrias particulares a Davi, como por exemplo, a conquista de Jerusalm.

O poder de comando sobre o grupo de mercenrios, que era de propriedade particular do rei, constitua uma rea de competncia

independente; Davi quis evitar cruzamentos e sobreposies de competncias com os exrcitos populares (Donner, 1997, p. 236).

Davi, para sustentar seu exrcito e a burocracia estatal (2Sm 8,16-18 e 20,2326), imps pesados tributos sobre os povos dominados, uma vez que as tribos de Israel resistiam a qualquer tipo de tributo. Os casamentos diplomticos de Davi lhe trouxeram problemas domsticos. O estupro de Tamar, meio-irm de Amon, foi vingado por Absalo, seu irmo. Davi no castigou Amon por cometer o incesto que, entre os costumes israelitas, era

considerado uma violao. A inimizade que doravante passou a existir entre Davi e Absalo no se apagou, apesar da reconciliao de Davi com o filho (Sm 14, 21-33). O governo de Davi dava margem a muita insatisfao. Absalo reagiu contra a forma de Davi exercer justia (2Sm 15, 3-4), chegando ao ponto de promover uma revolta popular. O aparelho administrativo em Israel estava centrado na pessoa do rei e teve como conseqncia a desaprovao de grande parte da populao, principalmente das tribos do norte e de seus representantes. Outra medida que gerou descontentamento foi a construo de um imprio que redundava no alistamento militar obrigatrio. O poder de Davi consistia num exrcito profissional cujos oficiais tinham de ser recompensados por meio de presentes de terra que podiam transformar em feudos para sustentar seus homens. Mas para doar terra, tinha primeiro de tom-la, e isto no podia sempre ser feito mediante conquista. Disso resultou a srie de revoltas e de conspiraes contra seu governo, sendo a mais sria delas dirigida por seu prprio filho Absalo (Johnson, 1995, p.65).

Absalo proclamou-se rei em Hebrom, e conquistou grande parte dos israelitas para o seu lado (2 Sm 15,6). Esse acontecimento demonstrou que Davi perdeu muito de seu prestgio em relao ao povo. As tribos eram separatistas por instinto. Ressentiam o custo das campanhas de Davi, e talvez ainda mais as tendncias centralizadoras que acelerou e o aparato da monarquia oriental... (Johnson , 1995, p.65). Durante a batalha no bosque de Efraim, Absalo foi morto por Joabe e Davi retorna para Jerusalm conduzido pelos ancios da tribo de Jud (2Sm 19). Em seguida ocorre um novo levante comandado por Seba, pois as tribos do norte se julgaram preteridas pelo rei em sua ligao com Jud e Jerusalm. Davi recruta novamente seu exrcito de mercenrios e tambm o exrcito popular de Jud, o que provocou uma ruptura no governo de Davi (2Sm 15,20). Joabe sufoca a revolta de Seba e Davi reassume o poder sobre Israel e governa as tribos do norte como tirano. Ao final de seu governo, Davi viu-se com outro problema: a questo da sucesso. A luta pelo poder gerou disputa entre seus filhos Adonias, o filho mais velho, e Salomo, seu filho com Bate-Seba. Isso levou formao de partidos opostos dentro do governo de Davi. A interveno de Bate-Seba foi determinante para a escolha de Salomo como sucessor de Davi. Salomo foi ungido rei e Adonias e seus partidrios se submeteram ao novo governo. Com isso, pensamos ter exposto os traos bsicos da histria de Israel desde as origens at o reinado de Davi. No captulo seguinte procuraremos evidenciar como este personagem to marcante para a histria de Israel apresentado nos textos bblicos do gnero historiografia.

II DAVI NAS HISTORIOGRAFIAS BBLICAS

Neste captulo trabalharemos sobre Davi nas historiografias bblicas. Seguramente, Davi foi o principal rei de Israel; muitas passagens bblicas expem minuciosamente a sua histria e outras passagens referem-se sua pessoa. As imagens e as boas razes concernentes ao procedimento de Davi dependeram da circunstncia do autor, do tempo e da localidade.

A pessoa do rei Davi agiganta-se nas pginas do Antigo e do Novo Testamento, sendo mencionadas cerca de 1.048 vezes. No Antigo Testamento ele o assunto primrio de 62 captulos e o autor de 73 salmos. No Novo Testamento figura proeminente em ambos os lados da genealogia de Jesus e no lugar onde este nasceu (...). E, recentemente, baseado nas conquistas histricas do rei Davi, Jerusalm celebrou seu 3.000 aniversrio da conquista feita por Davi da cidade dos jebuseus (2Sm 5.7-25) (Price, 2001, p.141).

Tanto os povos quanto as culturas tm a sua forma de expressar suas imagens, conceitos, idias, smbolos e a sua concepo de Deus. Como pessoa, e como rei e como pai da dinastia davdica, Davi seguiu uma trajetria sempre ascendente ao longo da histria bblica, at se converter em prottipo do Messias, o futuro rei ideal que haveria de nascer do seu sangue. Adornado de todas as qualidades fsicas, morais e espirituais, Davi aparece em 1/2 Samuel com todo o fascnio de um heri legendrio: aparncia bonita, fiel na amizade, justo e nobre com os inimigos, estadista, poeta e msico. (Lamadrid, 1999, p. 90).

Com o passar do tempo, as tribos em Israel se transformam em nao, que assimilaram novas culturas, abrindo espao para uma nova sociedade. As cidades cresceram, o comrcio incrementou e da o surgimento da distino de classes. A

poca monrquica favoreceu a valorizao da escrita. A partir do reinado de Davi, o escriba profissional entra na histria de Israel e trabalha para o palcio (2Sm 8,17). Vrios autores bblicos se empenharam em escrever sobre Davi utilizaram a sua imagem para informar a sua posio religiosa, poltica, psicolgica e familiar para o povo de Israel. Esses autores exprimiram seus pensamentos e tinham seus mtodos de procedimento, empregavam formas de expresso que eram comuns ao seu tempo e sua regio. Os profissionais da escrita comunicaram certas verdades sobre Davi, mas em planos e circunstncias diferentes. Esses autores por sua vez eram recolhedores e transmissores de temas teolgicos e da cultura do povo de Israel. Antes de entrar na descrio das imagens de Davi nas historiografias bblicas, procuraremos fazer algumas consideraes sobre o conceito de historiografia e historiografia bblica. 2.1 - Historiografia e historiografia bblica

O termo historiografia pode ser entendido em dois sentidos: - Historiografia o conjunto de obras concernentes a um assunto histrico... - A histria da historiografia deve ser conceituada como a histria da histria, isto , o estudo do que se escreveu sobre o passado humano. Com evidente impropriedade etimolgica, seria includa na historiografia a chamada historia oral, que tanto pode designar as tradies histricas transmitidas o r a l m e n t e n o s povos sem escritas, como, naqueles que a possuem, o registro escrito, ou por gravao, de depoimentos orais de atores ou testemunhas de acontecimentos histricos (Mirador, 1991, p. 5770).

Inicialmente as tradies histricas de Israel foram transmitidas oralmente. Foi por volta do sculo X aC que a escrita se tornou necessria, e a histria de Israel misturou-se aos caldeamentos de raas e de civilizaes. No se deve tratar a literatura de Israel como uma literatura puramente escrita. Ela se enraza numa tradio oral muito viva, sobretudo em pocas mais recuadas ou em obras que em todos os tempos hauriram na tradio oral seus materiais essenciais. Ora as produes das culturas orais tem suas leis prprias, sobre as quais nada nos informam os literatos do Antigo Oriente, testemunhas de estgios mais avanadas (Feuillet, 1967, p. 133).

Os autores que escreveram sobre Davi possivelmente tinham intenes e idias para inculcar na memria do povo. Isso tpico da historiografia. Ela sempre carrega determinado pr hermenutico nas formulaes. A historiografia sobre Davi procurou levar o povo de Israel a imitar e preservar o seu modelo de vida,

independente de sua condio social e econmica. A viso desses autores era profundamente religiosa, adaptada s circunstncias em que viviam. A literatura israelita produzida no perodo monrquico recebeu certa influncia da cultura egpcia. Os escritores bblicos adotaram variados gneros literrios, embora muitos dentre eles sejam relativos histria, e essa historiografia no foi desinteressada. Mas no perodo que se pode chamar clssico (sculos X VII) somos obrigados a constatar que algumas de suas criaes tm traos especficos. Por exemplo, se a novela israelita se deixa aproximar da novela egpcia, encontramos desde a poca de Salomo no relato da sucesso de Davi uma historiografia cujo equivalente debalde procuraramos no Egito ou na Assria (Feuillet, 1967, p. 132).

Os israelitas deram muita importncia histria em Israel. Para Sicre, no aspecto religioso, a histria para Israel o lugar do encontro com Deus (1995, p. 132) e no aspecto poltico os historiadores escreveram muito sobre o passado pelos seguintes motivos: propaganda poltica, finalidade didtica, exaltao do heri, conscincia da importncia de recordar certas coisas. A historiografia sobre Davi extensamente tratada na Bblia. E para se ter um melhor domnio da histria de Davi, preciso coloc-la em seu contexto social para uma melhor compreenso de sua mensagem. Os acontecimentos histricos, o ambiente e a poca levaram os autores da Bblia a escreverem de forma diferente com concepes diferentes sobre os acontecimentos acerca de Davi. o que se pode constatar nas duas obras histricas distintas; a Obra Historiogrfica Deuteronomista e a Obra Historiogrfica Cronista.

Na Obra Historiogrfica Deuteronomista, Davi aparece com dois traos fundamentais: ora como o heri dependente da interveno direta de Deus (Histria da ascenso de Davi), (1Sm 16-2Sm7), ora como o homem vtima de seus erros e paixes sem a interveno direta de Deus, (Histria da sucesso ao trono de Davi), (2Sm 9-1Rs 2). Na Obra Historiogrfica Cronista, os autores escreveram tomando por base escritos j constitudos (1 e 2 Reis e 1 e 2 Samuel). Objetivaram dar sentido a uma tese teolgica, estabelecendo para o povo de Israel uma estrita observncia dos preceitos sagrados. Segundo os autores cronistas, foi em Davi que o povo de Israel viu a terra de Cana conquistada. Davi estabeleceu um reino e um imprio, e por esses feitos ele concluiu as promessas que Abrao recebeu de Jav e os feitos de Moiss, que tirou o povo da escravido no Egito e os levou Terra Prometida. Em 587 aC, a tribo de Jud sucumbiu investida dos babilnicos e o povo foi deportado. O sentir, o pensar e o agir do povo desmoronaram e era difcil assimilar que as promessas de Deus tinham falhado. Em meio a esse desastre era preciso construir seus paradigmas, voltar ao passado e recordar certas coisas para sobreviver ao desastre.

Os autores ou redatores dedicaram um enorme esforo na compilao de dados do passado, para oferec-los de um ponto de vista que no , nem pretende s-lo o do historiador imparcial, mas o do telogo com mensagens a transmitir e idias a inculcar (Sicre, 1995, p. 72). Os autores, ao escreverem sobre a histria de Davi, prescindiram de dados importantes para se compreender os acontecimentos de sua trajetria de vida. A

historiografia que predominou no Antigo Testamento foi a religiosa e teolgica, porque a religio era o elemento cultural aglutinador. Historiografia uma maneira de escrever a histria e de apresentar documentos. A Bblia por sua vez tem a sua historiografia ou at suas historiografias. A Bblia apresenta cronologias, narrativas concatenadas e at snteses histricas, como no caso do livro dos Reis e livro das Crnicas (Cazelles, 1986, p. 17).

Para entender um texto bblico, ele no deve ser considerado isoladamente. necessrio o estudo de passagens paralelas, podendo haver entre estes uma relao mtua. O contexto, o vocabulrio, a gramtica e o estilo do escrito so importantes na compreenso de um texto. Os autores da Bblia utilizaram fontes orais ou escritas e adotaram gneros literrios costumeiros entre os seus contemporneos. Com o passar dos sculos, as palavras mudam quanto ao seu uso e significado. A Bblia foi escrita em uma linguagem humana e com uma mentalidade que no correspondem da atualidade.

A maneira com que o autor se exprime e, portanto, o gnero literrio que emprega, est em funo das condies de vida desse meio e dessa poca, dos problemas que a suscitam, dos cnones culturais em uso. Toda obra literria , em ltima anlise, um dilogo entre o autor e a sociedade de seu tempo; por este motivo o autor deve desdobrar-se s exigncias sociais do dilogo. (Feuillet, 1967, p. 128). A seguir, aps conceituarmos a Obra Historiogrfica Deuteronomista e posteriormente a Obra Historiogrfica Cronista, procuraremos traar o perfil da imagem ou das imagens de Davi nestas respectivas obras.

2.2 - Obra Historiogrfica Deuteronomista

Os escritores do Antigo Testamento escreveram com uma diferena marcante de vocabulrio e estilo. O curso do desenvolvimento da religio do antigo Israel essencialmente histrico. As histrias bblicas de Josu, Juzes, Samuel e Reis possuem um nexo e o seu conjunto, um significado religioso. Esses livros esto intimamente ligados entre si e apresentam a mesma doutrina e estilo do Deuteronmio, formando com este um corpo literrio homogneo. As linhas mestras dos acontecimentos do livro de Josu ao livro de Reis retratam o perodo desde a conquista da terra at o fim da monarquia. Em 587 a.C., o reino de Jud sucumbiu investida dos babilnios sob Nabucodonosor, resultando na experincia do exlio. A procura da resposta para tamanho fracasso preparou o caminho para a formao da Obra Historiogrfica Deuteronomista. Os autores deuteronomistas julgaram os acontecimentos luz do Cdigo Deuteronmico (Dt 12-26). Os seus olhos estavam voltados para o passado; a lembrana era a tradio legal anterior e a profecia que foram o remdio utilizado para sobreviver aos sombrios dias no cativeiro. O Cdigo Deuteronmico (Dt 12-26), como constituio no governo de Josias, possivelmente incorporou leis e costumes anteriores, at do Reino do Norte trazido para Jerusalm pelos levitas aps a queda do reino de Israel (721 aC), recebendo nova redao e sistematizao em Jud, justamente com a finalidade de servir de ncora constitucional para o povo em Jud, aps a catstrofe do reino do Norte.

Os ltimos estudos sobre o tema afirmam que o material contido no ncleo central do Deuteronmio ou Protodeuteronmio tem sua origem no perodo pr-estatal. Esse material recebeu acrscimos no decorrer da histria e foi especialmente retrabalhado no Norte, em meados do sculo VIII. Com a queda de Samaria, muitos israelitas vieram para o Sul e trouxeram suas tradies. Entre elas veio o material do Deuteronmio que serviu de plataforma para as reformas de Ezequias e Josias (Nakanose, 1996, p. 177).

Essa lei tomou forma no governo de Josias, tendo a sua redao decisiva, obtendo ainda retoques em pocas posteriores. Importante porm perceber que esta lei deuteronmica serviu de base e critrio para a prpria historiografia deuteronomista, conforme afirma Reimer (1998, p. 7) ...na poca de Josias, o livro de Deuteronmio tinha servido para uma ampla reforma social e religiosa. Foi como uma espcie de constituio para esta poca. Os trs critrios para orientar a reconstituio histrica do passado do seu povo at a catstrofe do exlio foram os seguintes: 1. adorao exclusiva a Jav/Deus, 2. centralizao do culto em Jerusalm, 3. solidariedade com os pobres

Alm do cdigo deuteronmico como critrio e base, a historiografia deuteronomista utilizou outras fontes. Sobre isso existe ampla discusso na pesquisa. o que veremos a seguir.

2.2.1 - Obra Historiogrfica Deuteronomista: datao e fontes

Sobre a origem, poca da redao e fontes da Obra Histrica Deuteronomista existem opinies muito distintas na pesquisa. Aqui procuraremos situar algumas posies. Seguindo a tese de Martin Noth, Sicre (1995, p. 135) escreveu que a Obra Histrica Deuteronomista se baseia nos princpios teolgicos do Deuteronmio. uma histria que vai desde o sculo XIII at o ano 561 aC. Muitos autores entenderam que os livros de Deuteronmio, Josu, Juzes, Samuel e Reis formaram a Obra Historiogrfica Deuteronomista. O principal formulador dessa teoria justamente o alemo Martin Noth. Para Noth, a histria deuteronomista era uma obra unitria, redigida por um s autor, durante a poca do exlio babilnico e teria sido escrita em Samaria, embora reconhea e aceite acrscimos posteriores. Atualmente, a idia de um s autor e uma s edio est quase descartada na pesquisa. Sicre (1995, p. 157) tem como autntico que a obra deuteronomista foi completada e atualizada no exlio. Esta segunda edio teria sido um trabalho de um s autor. Outros autores concluram que durante o exlio houve duas edies sucessivas, uma feita com mentalidade proftica, outra com influncia levtica. Isso foi defendido sobretudo pelo alemo Alfred Jepsen. Schmidt (1994, p.137) concorda com Noth que a Obra Historiogrfica Deuteronomista tenha se baseado em contextos narrativos j existentes e que acolheu as mais variadas tradies. Para ele, a obra deuteronomista foi escrita na poca do exlio, provavelmente na Palestina. Ele corrige a opinio de Noth, supondo que houve mais de um redator, continuando a escola. Isso explicaria as irregularidades e as complementaes da obra.

A novidade da tese de Noth que antes do exlio no teriam existido livros independentes, nem tampouco documentos do estilo Javista e Elosta que falassem sobre o longo perodo que vai desde os Juzes monarquia. S teriam existido fragmentos isolados e pequenas obras (hiptese dos fragmentos) que um autor exlico teria utilizado para compor a histria deuteronomista. A histria

deuteronomista representaria a primeira tentativa sria de historiografia dentro de Israel. Para Noth, o autor deuteronomista no se limitou a recolher antigas tradies ou reelaborar alguns fragmentos. Ele completou a Obra Historiogrfica

Deuteronomista com dados prprios do Deuteronmio (1,1-3,29). Os autores deuteronomistas teriam levado a cabo uma autntica obra de composio, harmonizando os dados prvios, o que teria dado ao conjunto um toque pessoal. Conforme Sicre (1995, p.161), muitos autores atuais concordam com Noth com relao idia de que os deuteronomistas utilizaram fragmentos prvios. Citam-se: a histria da arca, subida de Davi ao trono, histria da sucesso (2Sm 91Rs 2), tradies de Elias e Eliseu (1Rs 17-2Rs 4), etc. O norte-americano Frank M. Cross concorda com Noth sobre a idia de fragmentos, porm no aceita que a redao final da obra seja de um s autor no exlio. Ele defende a dupla redao, uma edio no tempo de Josias e uma segunda no exlio, sem descartar acrscimos posteriores. O alemo Rudolph Smend e seus discpulos postulam trs edies, todas durante o exlio ou logo depois dele. Segundo Rendtorff, o autor da obra historiogrfica deuteronomista, o deuteronomista, um colecionador, que compilou e redigiu as tradies que encontrou, sob determinados pontos de vista (1979, p.19). Para ele, a Obra

Historiogrfica Deuteronomista no contm historiografia no sentido moderno, mas interpreta a histria a partir de um determinado ponto de partida teolgico. Cazelles (1986) analisou a Obra Historiogrfica Deuteronomista sob duplo aspecto. Segundo o autor, a obra muito inteligente pela utilizao das fontes urbanas, oficiais e populares pela utilizao dos ciclos sobre os profetas itinerantes como Elias e Eliseu.

Trata-se de uma obra muito recente, que centrada sobre o Templo de Jerusalm, mas est em estreita conexo com a historiografia proftica do sculo precedente. Utiliza tambm modelos babilnicos pelo fato de julgar os reis de acordo com sua fidelidade ou infidelidade para com o santurio nacional ou pelo fato de tentar uma histria sincrnica dos dois reinos (Cazelles, 1986, p. 66).

Conforme Reimer

(1998,

p.6),

os

redatores e redatoras

da Obra

Historiogrfica Deuteronomista foram sobretudo gente simples da terra, pessoas ligadas a crculos profticos, levitas e ao povo da terra.

A motivao para escrever e organizar a histria do povo sobretudo uma pergunta teolgica de ordem profundamente existencial. A pergunta norteadora : porque Deus Jav fez cair sobre o povo a desgraa do exlio e da perda da autonomia poltica sobre a terra outrora dada pelo prprio Deus? (Reimer, 1998, p. 6-7).

A redao da Obra Historiogrfica Deuteronomista compilou escritos de pocas anteriores: narraes populares, lista de lderes carismticos e suas realizaes, lista de posse da terra, anais dos reis Jud/Israel, oraes e Salmos.

Quanto ao propsito da Obra Historiogrfica Deuteronomista, Sicre (1995, p. 160-161) escreveu que para Noth o livro de Deuteronmio ofereceu as chaves de interpretao e avaliao da histria: f em um s Deus e aceitao de um s lugar para o culto. Os autores tm uma mensagem seca e cortante. Tudo conseqncia do pecado do povo israelita e no h muita esperana para o futuro. O estilo do autor deuteronomista declara a eleio de Israel por Deus e este, em troca, exige fidelidade e obedincia. A desobedincia aos mandamentos e ordenaes de Deus trouxe como conseqncia a deportao, que foi interpretada como um castigo sobre o povo israelita.

No todo, portanto, os critrios da Obra Historiogrfica Deuteronomista so bastante unilaterais. No se fala em transgresses ticas ou polticas, das injustias sociais que os profetas criticam, por via de regra se mencionam apenas transgresses clticas-apostasia e adorao de deuses estranhos, transgresses do primeiro e segundo mandamento, unidade e pureza cltica. Todavia, a obra pode ser comparada mensagem proftica ao limitar-se mais a indicar desvios do que a exortar conduta correta (Schmidt, 1994, p. 140).

ainda Schmidt quem afirma:

A redao da denncia a transgresses religiosas-clticas em contraposio proclamao proftica chama ainda mais a ateno porque a Obra Historiogrfica Deuteronomista reserva amplo espao, pelo menos na sua verso final, narrativa dos profetas. Ela atribui aos profetas grande destaque na interpretao do transcurso da histria (Schmidt, 1994, p. 141).

Quanto finalidade ou querigma da obra, existe um amplo debate. Gerhard von Rad via na libertao de Joaquim uma mensagem final de esperana. Hans Walter Wolff entendia isso como um chamado converso. Frank Moore Cross fala de finalidades distintas: a primeira edio teria uma chamada converso, sem esquecer o aspecto de propaganda poltica no tempo de Josias a segunda edio, a do exlio, teria uma viso pessimista. ...os acontecimentos atropelam o cotidiano das pessoas. Estes acontecimentos geram posicionamentos distintos nas pessoas. Elas podem estar abertas ou fechadas aos acontecimentos. Assim, dentro de um mesmo grupo encontramos leituras ambguas, contraditrias, diferentes de um mesmo fato, de um mesmo acontecimento (Orofino, 1994, p. 38).

De qualquer forma, a pesquisa evidencia, apesar das divergncias, que a Obra Historiogrfica Deuteronomista uma obra que incorpora partes e fragmentos anteriores, submetidos lgica teolgica dos autores deuteronomistas. Na Obra Historiogrfica Deuteronomista destacam-se sobretudo dois complexos literrios maiores que acolheram muitas tradies sobre Davi. Trata-se da Histria da Ascenso de Davi (1Sm 16-2 Sm 7) e da Histria da Sucesso de Davi (2Sm 9-1 Rs2), que enfocaremos a seguir.

2.2.2 - Davi na Histria da Ascenso (1Sm 16-2 Sm 7)

O texto de 1 Sm 16 a 2 Sm 7 oferece uma variedade de projees das imagens de Davi dentro da Obra Historiogrfica Deuteronomista. O contedo da

histria da ascenso de Davi ao trono no homogneo e unitrio; so visveis as tenses e redaes paralelas. O texto de 1 e 2 Samuel tem sido conservado na recenso dos massoretas em piores condies do que qualquer outro livro da Bblia (