as negociações do império

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PESQUISA FAPESP NOVEMBRO DE 2012 NOVEMBRO DE 2012 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR do império Colonização global portuguesa resistiu por séculos graças à sabedoria lusitana de dividir o poder com colonizados As negociações n.201 AMBIENTE Estudo identifica fontes de poluição na baía de Todos os Santos AVES Ninho fóssil reforça parentesco de flamingos e mergulhões MEDICAMENTOS Nanocápsulas agem contra calvície e liberam anestésicos na pele REVISTAS CIENTÍFICAS Acesso aberto ganha espaço e expõe novos dilemas

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Colonização global portuguesa resistiu por séculos graças à sabedoria lusitana de dividir o poder com os colonizadores

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012

novembro de 2012 www.revistapesquisa.fapesp.br

do império Colonização global portuguesa resistiu por séculos graças à sabedoria lusitana de dividir o poder com colonizados

as negociações

n.2

01

ambiente Estudo identifica fontes de poluição na baía de Todos os Santos

avesNinho fóssil reforça parentesco de flamingos e mergulhões

medicamentosNanocápsulas agem contra calvície e liberam anestésicos na pele

revistas cientíFicas Acesso aberto ganha espaço e expõe novos dilemas

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Page 3: As negociações do império

PESQUISA FAPESP 201 | 3

Galinha no ovoNo início da vida de uma galinha, ainda dentro do ovo

(na imagem aos 2,5 dias), as células da crista neural

migram para as regiões do corpo onde, já nessa fase,

dão origem a diferentes estruturas: na cabeça,

os nervos faciais, abaixo dela, os gânglios nervosos

do tronco e, à frente, o coração, cujas válvulas têm

origem nessas células. Para a equipe de Irene Yan,

a técnica que permite iluminar essas células serve

como instrumento para detectar possíveis alterações

causadas por experimentos com o tubo neural,

precursor da crista neural.

Foto enviada por Irene Yan, Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo

Feli

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FotolAb

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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4 | noVembro De 2012

PolítIcA cIEntíFIcA E tEcnológIcA

34 Acesso abertoIniciativa do Reino Unido vai mostrar até que ponto é viável oferecer toda a produção científica na internet

40 InternacionalizaçãoPrograma-piloto atrai cientistas do exterior para formar novos grupos de pesquisa de alto nível em São Paulo

cIÊncIA

44 AmbienteProjeto mapeia fontes de poluentes e correntes marinhas na baía de Todos os Santos

50 PaleontologiaFósseis de ovos e ossos de ave de 18 milhões de anos reforçam parentesco entre flamingos e mergulhões

54 OncologiaAprisionar o cálcio em compartimento no núcleo das células torna o tumor mais vulnerável à radioterapia

58 Molécula da glândula salivar do carrapato-estrela combate células cancerígenas e preserva sadias

60 Neurologia Neurônio especial controla a chegada de informação do ambiente ao centro formador das recordações no cérebro

61 Biofísica Estudo revela estrutura atômica de proteínas que eliminam excesso de hemoglobina no sangue

18 cAPAImpério lusitano soube usar liberdade das elites locais e religião missionária para manter-se por cinco séculos

EntrEvIStA

26 José Marques de MeloProfessor fala das dificuldades de constituir o campo da pesquisa em comunicação no Brasil

62 Dinâmica de fluidosTécnica que estabiliza pressão na interface entre óleo e água pode facilitar extração de petróleo

64 Redes complexasEliminar sincronismos em redes pode ajudar no controle de multidões e de distúrbios cerebrais

tEcnologIA

66 Indústria automotivaEmpresas de autopeças instaladas no Brasil produzem soluções em conjunto com centros de P&D de outros países

70 Pesquisa empresarialEmbraer investe em parcerias para desenvolver desde biocombustíveis até inovações para cabines de aviões

76 Indústria farmacêutica Biolab utiliza nanotecnologia em anestésico e no tratamento de calvície

hUMAnIdAdES

80 DiplomaciaPolítica imigratória do Estado Novo escondia projeto de branqueamento

84 LiteraturaAutobiografia de Josef Mengele revela falta de empatia pelas vítimas e culpa pelos crimes

SEçÕES

3 Fotolab6 Cartas7 Carta da editora8 Dados e projetos9 Boas práticas10 On-line11 Wiki12 Estratégias14 Tecnociência86 Memória88 Arte90 Conto92 Resenhas

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é um bonito documento histórico sobre os primórdios do jornalismo científico, mas contém um erro: a primeira “Sec-ção Scientifica” publicada no jornal A Província de São Paulo é de 24 de janei-ro de 1875 (“considerações geologicas e agronomicas applicadas”), repetida em 13/02/1875, anterior, portanto, à de 16/02/1875. Deve ter sido um problema no buscador, que encontra “scientifica”, mas não “secção scientifica”.Adilson roberto gonçalves

Escola de Engenharia de Lorena/ USP

Lorena, SP

correçõesNo infográfico “Cenário provável da pro-dução agrícola em 2022”, publicado na página 29 da reportagem “Biorrefinarias do futuro” (edição 192), faltou dizer que a produção estimada de cana, pastagens e alimentos é em milhões de toneladas por ano. Saiu apenas toneladas por ano. Nes-sa mesma reportagem, a moeda correta que deveria ter constado do infográfico na página 30 é dólares – e não reais.

Diferentemente do que foi publicado na página 68 da reportagem “Inseto con-tra inseto” (edição 195), Trichogramma galloi não é um gênero de vespa, mas uma espécie.

cArtAS [email protected]

Empresa que apoia a ciência brasileira

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

Educação científicaExcelente revista! Artigos superimpor-tantes, trabalhos muito relevantes para o país. Uma sugestão a partir da leitu-ra do artigo “Gargalo na sala de aula” (edição 200). Pesquisa FAPESP deve-ria ser distribuída para todas as escolas públicas e servir como material de base para cursos. Ou seja, deveriam adotar conteúdos da revista para que os alu-nos fizessem redações, explicando, por exemplo, do que trata o artigo, ou como base para pesquisas sobre os tipos de trabalhos científicos que são feitos no Brasil, por quais entidades, para que e por quê. Vejo a revista em si como uma riquíssima fonte de material didático. Gosto muito também do website e do fato de que as matérias da revista estão lá disponíveis para quem não é assinante. Por meio dessa facilidade, postei dois ar-tigos para amigos. Um dos artigos, sobre a mandioca biofortificada (edição 200), achei especialmente importante.Flavia de Miranda

São Paulo

Entrevista Marco Antonio Zagoe jornalismo científicoEnalteço a postura e a atuação do pro-fessor Marco Antonio Zago à frente da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP (edição 200), mas convém dizer que, no âmbito dos contratos a serem firmados entre a universidade pública e as empresas, os advogados trabalham como inibidores da sinergia propalada. A nova dimensão da USP Inovação pode estar mudando essa estrutura, mas os obstáculos são recen-tes. A confirmação está nessa própria edição: a reportagem sobre a Oxiteno (“Em busca de novas rotas químicas”) relata a parceria com a FAPESP em três projetos de uma chamada específica, sendo que pelo menos outros três pro-jetos aprovados no âmbito da USP foram cancelados por falta de interesse entre as partes para resolver as cláusulas de contrato. Por fim, a reportagem de Ma-riluce Moura (“Histórias para contar”)

CELSO LAFERpreSiDente

EDUARDO MOACYR KRIEgERVice-preSiDente

conSElho SUPErIor

ALEJANDRO SzANTO DE TOLEDO, CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEgER, FERNANDO FERREIRA COSTA, HORáCIO LAFER PIvA, HERMAN JACOBUS CORNELIS vOORWALD, JOãO gRANDINO RODAS, MARIA JOSé SOARES MENDES gIANNINI, JOSé DE SOUzA MARTINS, LUIz gONzAgA BELLUzzO, SUELY vILELA SAMPAIO, YOSHIAKI NAKANO

conSElho técnIco-AdMInIStrAtIvo

JOSé ARANA vARELADiretor preSiDente

CARLOS HENRIqUE DE BRITO CRUzDiretor cientíFico

JOAqUIM J. DE CAMARgO ENgLERDiretor ADminiStrAtiVo

conSElho EdItorIAlCarlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira

coMItÊ cIEntíFIcoLuiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli

coordEnAdor cIEntíFIcoLuiz Henrique Lopes dos Santos

dIrEtorA dE rEdAção Mariluce Moura

EdItor chEFE Neldson Marcolin

EdItorES Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti (Editor especial), Marcos Pivetta (Editor especial), Dinorah Ereno (Editora assistente)

rEvISão Márcio guimarães de Araújo, Margô Negro

ArtE Laura Daviña (Editora), Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli

FotógrAFoS Eduardo Cesar, Léo Ramos

MídIAS ElEtrônIcAS Fabrício Marques (Coordenador) IntErnEt Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora executiva) Isis Nóbile Diniz (Editora assistente) rádIo Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

colAborAdorES Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Drüm, Evanildo da Silveira, Igor zolnerkevic, gabriel Bitar, Larissa Ribeiro, Luciano Andrade, Salvador Nogueira, Sandro Castelli, valter Rodrigues (Banco de Imagens), Yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEM PrévIA AUtorIZAção

PArA FAlAr coM A rEdAção (11) [email protected]

PArA AnUncIAr (11) 3087-4212 [email protected] ASSInAr (11) 3038-1434 [email protected]

tIrAgEM 45.800 exemplaresIMPrESSão Editora gráfica Burti Ltda.dIStrIbUIção DINAP

gEStão AdMInIStrAtIvA INSTITUTO UNIEMP

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP

FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP

SECRETARIA DE DESENvOLvIMENTO ECONôMICO,

CIêNCIA E TECNOLOgIA govErno do EStAdo dE São PAUlo

FUNDAçãO DE AMPARO à PESqUISA DO ESTADO DE SãO PAULO

ISSN 1519-8774

Page 7: As negociações do império

PESQUISA FAPESP 201 | 7

Mariluce Moura

DIRETORA DE REDAçãO

cArtA dA EdItorA

desfruto do privilégio especial de ter alguns amigos e amigas queri-dos, na faixa dos 30 aos 90 anos e

de variadas formações cultural e profis-sional, com quem posso imediatamente trocar ideias quando um assunto me fas-cina ou, melhor ainda, literalmente me empolga. Isso vem a propósito do tema da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, um grande projeto de pesquisa sobre as dimensões do Império Português, iniciado em 2004, sob a coor-denação da historiadora Laura de Mello e Souza. Mal comecei a ler a versão final do texto elaborado por nosso editor de humanidades, Carlos Haag, peguei-me pensando no quanto as narrativas da his-tória real podem nos capturar para den-tro do mesmo fascínio com o qual, pri-meiro, ouvimos histórias maravilhosas de fadas e bruxas, gnomos e elfos, príncipes encantados e reis sanguinários. E, mais adiante, nos entregamos, por exemplo, à extraordinária experiência estética – para nem falar de outras dimensões – que é ler Crime e castigo ou à desnorteante viagem proporcionada por Em busca do tempo perdido a quem não deserta de suas páginas. Ficcionais ou reais, as gran-des histórias convergem nesse poder de deslumbrar e aprisionar nossa atenção pela mágica da narração. Mas, ao avançar na leitura da reportagem, ela já me fez pensar numa outra questão, mais restrita ao campo da história do Brasil, qual seja, as discussões tão frequentes em minha geração sobre o quanto as mazelas de nosso país derivavam das origens portu-guesas da formação da nação brasileira. Foi aí que entrou em cena o meu velho

hábito de não postergar a escuta aos ami-gos em meio a conjecturas excitantes que me tomam de assalto.

Eu queria saber se para outras gera-ções era comum um gratuito exercício de imaginação sobre a possível superio-ridade de nosso país caso tivesse sido colonizado pelos franceses, malsuce-didos em suas incursões à vasta colônia lusitana do Atlântico Sul, pelos holan-deses, que até fincaram pé no Nordes-te por certo tempo, ou, melhor ainda, pelos ingleses, que preferiram franca-mente se manter mais ao norte. Sim, era, disseram-se os consultados, situa-dos num gradiente que, a partir de mi-nha própria geração, se estende por 30 anos adiante e 30 anos atrás. E na boa prosa que os tempos internéticos tanto ameaçam, propuseram-me uma infini-dade de outras questões levantadas por essa depreciação dos portugueses que longamente cultivamos, fruto em parte de um ressentimento pós-colonial (tão bem expresso popularmente nas piadas de português), e ao qual Laura de Mello e Souza faz referência. Eu concluí ca-da uma dessas conversas recomendan-do que meus amigos não deixassem de ler a reportagem a partir da página 18, sugestão que estendo aqui a todos os nossos leitores. E, para sustentá-la, vai esse breve e delicioso aperitivo do texto que busca expressar que conhecimentos novos o projeto sobre dimensões do Im-pério Português tem de fato produzido: “Não se trata nem da visão do ‘império controlador’, nem do ‘império incapaz de controlar’, mas de um império que, ciente da imensidão oceânica que sepa-

rava suas partes, entendeu a necessidade de manter relações com periferias rela-tivamente autônomas, conectadas à me-trópole por laços frouxos. Sem que, no entanto, Lisboa deixasse de ser o centro de onde o poder emanava. A distância entre rei e súditos, que poderia se confi-gurar como problema, reaparece, agora, como ‘virtude’ de governar”.

Extrema coincidência, a reportagem que abre a seção de ciência desta edição con-centra seu olhar no lugar onde teve iní-cio a ação colonizadora dos portugueses neste território que se tornaria o Brasil: a baía de Todos os Santos. E o faz para relatar um programa de pesquisas de fô-lego que trata de produzir conhecimento multidisciplinar dessa área, começando por uma dimensão ambiental, isto é, o mapeamento das fontes de poluição que a transtornam e das correntes marinhas que a atravessam. É exatamente aí que se encontram os primeiros resultados das pesquisas, abordados, a partir da página 44, em texto de nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, que viajou à Bahia para vê-los in loco. As ambições do programa, entretanto, são muito mais amplas do que o que há de palpável até aqui e incluem estudos geológicos, an-tropológicos e históricos, para citar os mais importantes.

Para sair um pouco do habitual, vou destacar nesta edição o excelente texto do professor Ismail Xavier, na seção de arte, sobre Paulo Emilio Salles Gomes, uma figura-chave das reflexões sobre o cinema brasileiro e até do próprio cinema nacional (página 88). Boa leitura!

Histórias maravilhosas de portugueses

Page 8: As negociações do império

8 | noVembro De 2012

Dados e projetos

tEMátIcoSgênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedadePesquisador responsável: Pablo MaricondaInstituição: IEA/USPProcesso: 2011/51614-3vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016 Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos: determinantes sociais e biológicosPesquisador responsável: Paulo R. MenezesInstituição: FMRP/USPProcesso: 2012/05178-0vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016 Investigação de circuitos neuronais e marcadores biológicos envolvidos no transtorno obsessivo-compulsivo por meio de paradigmas comportamentais de medo e ansiedadePesquisador responsável: Euripedes Constantino Miguel Filho Instituição: FM/USPProcesso: 2011/21357-9vigência: 01/12/2012 a 30/11/2017

Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa (FAPESP-bIotA-nSF dIMEnSIonS)

tEMátIcoS E JovEM PESQUISAdor rEcEntESProjetos contratados entre setembro e outubro de 2012

Pesquisadora responsável: Lucia garcez LohmannInstituição: IB/USPProcesso: 2012/50260-6vigência: 01/09/2012 a 31/08/2017 A língua portuguesa no tempo e no espaço: contato linguístico, gramáticas em competição e mudança paramétricaPesquisadora responsável: Charlotte Marie Chambelland galvesInstituição: IEL/UnicampProcesso: 2012/06078-9vigência: 01/10/2012 a 30/09/2017 desafios em visualização exploratória de dados multidimensionais: novos paradigmas, escalabilidade e aplicaçõesPesquisador responsável: Luis gustavo NonatoInstituição: ICMC/USP São CarlosProcesso: 2011/22749-8vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016 biologia de sistemas como estratégia experimental para a descoberta de novos produtos naturais na fauna de artrópodes peçonhentos do estado de São PauloPesquisador responsável: Mario Sergio PalmaInstituição: IB/Unesp Rio Claro

Processo: 2011/51684-1vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016

JovEM PESQUISAdorMonitoramento da integridade estrutural em sistemas mecânicos não lineares usando modelos de volterraPesquisador reponsável: Samuel da SilvaInstituição: FEIS/UnespProcesso: 2012/09135-3vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016

o papel das taxas de extinção e especiação e o efeito dos diferentes níveis de organização biológica na origem e manutenção da biodiversidadePesquisador responsável: Tiago B. quentalInstituição: IB/USPProcesso: 2012/04072-3vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016

rF MEMS em ondas milimétricas utilizando processo cMoS comercialPesquisador responsável: gustavo P. RehderInstituição: Escola Politécnica/USPProcesso: 2011/18167-3vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016

Meiose em escorpiões (Arachnida): modelo para compreender a evolução em espécies com cromossomos aquiasmáticos

Pesquisadora responsável: Marielle Cristina SchneiderInstituição: ICAqF/UnifespProcesso: 2011/21643-1vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016

bases moleculares da herança mitocondrial: o papel da fusão mitocondrialPesquisador responsável: Marcos Roberto ChiarattiInstituição: Iq/USPProcesso: 2012/50231-6vigência: 01/10/12 a 30/09/16

Ensino e saúde entre o público e o privado: a experiência do complexo hSP/SPdM/EPM-UnIFESP (1956-2010)Pesquisadora responsável: Ana Lucia Lana LemiInstituição: EFLCH/UnifespProcesso: 2011/14275-6vigência: 01/10/12 a 30/09/16

ressonância magnética nuclear de novos materiais complexos e avançados em física da matéria condensadaPesquisador responsável: Ricardo Rodrigues UrbanoInstituição: IFgW/UnicampProcesso: 2012/05903-6 vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016

Pesquisa nas empresas brasileirasCompanhias nacionais classificadas entre as 1.400 que mais investem em pesquisa e desenvolvimento (P&D) no mundo

classificação geral

classificação no setor

(P & d / vendas líquidas)

Empresa Setor industrial *

Investimento em P&d, 2010, em

milhões de €

relação P&d/vendas

líquidas, 2010

lucro operacional como % das

vendas, 2010

r&d/empregado,

2010 em milhares de €

relação P&d/vendas

líquidas - média do setor

851 100 Totvs Software (9537)

67,324 13,3 18,7 18,8

1.107 74 Randon SA Implementos

Automotivo e peças (335)

46,55 2,8 12,1 26,6

1.130 77 WEg Máquinas industriais

(2757)

45,265 2,3 15,3 3,8

142 3 vale Mineração (177) 654,476 1,9 47,9 9,246 29,3

750 2 CPFL Energia gás, água e outras

utilidades (757)

80,381 1,5 22,4 10,144 0,7

995 49 Embraer Aeroespacial e defesa (271)

53,745 1,3 7,3 2,846 5,3

125 3 Petrobras Produtores de petróleo e gás

(53)

740,199 0,8 20,1 9,196 0,4

655 21 gerdau Indústria metalúrgica

(175)

96,413 0,7 11,6 2,335 1,1

1.322 112 Braskem química (135) 35,376 0,3 12,6 7,627 10,7

As empresas foram ordenadas em função da relação entre o investimento em pesquisa e desenvolvimento e o faturamento (*) O número entre parênteses se refere à quantidade de empresas do setor Fonte: relatório da Comissão Europeia

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PESQUISA FAPESP 201 | 9

Revisor de si mesmo

Recomendações universais contra má conduta

boAS práticAS

Editores de várias publicações científicas decidiram redobrar os cuidados com a escolha de revisores de artigos, após a detecção de um inusitado tipo de fraude: alguns pesquisadores arrumaram um jeito de fazer o peer review de seus próprios papers para, assim, escapar das críticas que atrasam ou inviabilizam a publicação dos manuscritos. Segundo o The Chronicle of Higher Education, vários periódicos já retrataram cerca 40 artigos cujos pesquisadores praticaram esse tipo de fraude. O método era engenhoso: os autores sugeriam aos editores uma lista de nomes de revisores cujas contas de e-mail eram controladas, na verdade, pelos próprios autores. “Achei estranho, porque mandei o artigo e recebi de volta avaliações entusiasmadas em apenas dois dias. Revisores nunca respondem tão rápido”, disse Claudiu Supuran, editor-chefe do Journal of Enzyme Inhibition and Medicinal Chemistry, que descobriu e denunciou a fraude perpetrada pelo sul-coreano Hyung-In Moon, professor-assistente da Dong-A University, em Busan. Em 2010, Moon submeteu um artigo à publicação e sugeriu uma lista de potenciais revisores. Apesar da resposta estranhamente rápida, o artigo acabou publicado porque dois outros revisores de confiança da revista deram aval ao artigo. No ano seguinte, Moon mandou outro artigo e, novamente, uma lista de potenciais revisores. O que chamou a atenção de Supuran é que, embora eles pertencessem a universidades, seus endereços de e-mail eram do Gmail e do Yahoo, não das instituições. Descoberta a fraude, Supuran alertou outras publicações. O resultado é que

28 artigos do sul-coreano já foram retratados. Outro caso veio à tona em julho com a retirada de um artigo científico publicado na revista Experimental Parasitology por Guang-Zi He, pesquisador do Guiyang College of Traditional Chinese Medicine, na China. He sugeriu vários possíveis revisores que existiam de verdade, mas os e-mails informados eram todos vinculados a serviços de correio eletrônico da China, embora os nomes fossem de vários países. A suspeita levou a uma investigação, que culminou com a suspensão de um artigo publicado em fevereiro, em que o pesquisador identificava um alvo potencial para uma vacina contra uma infecção bacteriana. O caso é revelador de uma falha dos editores. A revista Experimental Parasitology pertence à editora Elsevier, que também amargou problema semelhante numa revista de matemática. A empresa, que dispõe de um banco de dados de

O Interacademy Council (IAP), entidade que congrega academias de ciências do mundo inteiro, divulgou um conjunto de diretrizes sobre condutas responsáveis na pesquisa que reúne uma espécie de consenso internacional acerca do assunto. Segundo o relatório de 62 páginas, são os pesquisadores que têm a responsabilidade primária de agir de forma ética. É essencial, dessa forma, que estabeleçam regras claras de conduta já nos estágios iniciais de uma colaboração internacional, assim como combinem previamente quem assinará os artigos científicos resultantes

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dessas parcerias. Revisores de artigos científicos devem agir de forma justa e declarar eventuais conflitos de interesse. Já as instituições de pesquisa precisam ter mecanismos para investigar alegações de má conduta, além de estimular programas de educação e de treinamento para estudantes e pesquisadores. Às agências de fomento cabe evitar sistemas que privilegiem a quantidade em relação à qualidade na avaliação dos cientistas. O relatório está disponível em www.interacademycouncil.net/File.aspx?id=28253.

revisores de uso obrigatório pelos editores, informou que descobriu uma vulnerabilidade no sistema e que já o corrigiu. Qualquer autor pode sugerir nomes de revisores ou pedir que seus artigos não sejam enviados para desafetos. Mas cabe aos editores utilizar contatos de seus bancos de dados, não os fornecidos pelos autores.

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10 | noVembro De 2012

nas redes

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HTTP://WWW.YOUTUBE.COM/USER/PESqUISAFAPESP

Assista ao vídeo:

Um trio de astrofísicos obteve a primeira evidência direta de que parte das estrelas do halo, a região mais externa e com menor densidade de gás e estrelas da via Láctea, originou-se em pequenas áreas de altíssima concentração estelar chamadas aglomerados globulares. Os pesquisadores já tinham indícios nesse sentido, mas não tinham provas até realizarem o trabalho que foi divulgado na revista Astrophysical Journal. Com a confirmação, o próximo passo será estimar mais precisamente a origem dessas estrelas, ou seja, saber em quais dos quase 160 aglomerados conhecidos elas se formaram.

A capacidade de aprender um caminho diferente ou de se situar em uma cidade depende em parte de um composto químico produzido pelo organismo chamado acetilcolina. Há décadas se sabia disso, mas apenas agora duas equipes de brasileiros demonstraram o papel da acetilcolina na aquisição e na consolidação dessa memória espacial. Para isso, eles inseriram em camundongos um gene que bloqueava apenas a liberação de acetilcolina em algumas regiões cerebrais. Publicado em outubro no site da revista PNAS, o estudo poderá contribuir para a busca de tratamento contra Alzheimer.

Exclusivo no site

vídeo do mês

Geólogos encontram no Paraguai fósseis de primeiros animais com esqueleto

hilda lima_ Há pessoas que acreditam que ensinar ciências é muito fácil: basta apresentar alguns conhecimentos aos alunos e estes devem apenas repeti-los nas provas. Outras, no entanto, acham que ensinar ciências é muito difícil e evitam tratar do assunto em suas aulas (Entrevista com Bruce Alberts)

Flavia de Miranda_ A meu ver o brasileiro, SIM, tem interesse em aprender, mas o método de ensino usado e o conteúdo apresentado são da época em que a educação popular foi concebida – século XIX! (Gargalo na sala de aula)

José Sabino_ Para meus alunos que ficam preocupados com suas dissertações... às vezes o trabalho fica encalacrado, mas refletir, ler e pensar criativamente faz parte do processo de produção científica (Entrevista com Marco Antonio Zago)

@mynickislu Parabéns, Pesquisa FAPESP, pela edição número 200! Sem dúvida a melhor revista de divulgação científica do Brasil!

cahuebm_ Muito legal. O mapa no vídeo ficou sensacional! (O relevo econômico do interior)

Michèle Sato_ grata pela partilha de um super-recurso educativo (vídeo sobre a Comissão Rondon)

Aglomerado globular: origem de estrelas

fOtO

eSoon-line

W W W . R E v I S T A P E S q U I S A . F A P E S P . B R

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espuma seja branca, porque as moléculas que o compõem subtraem as outras cores e deixam passar o centro do espectro, amarelo. Na escala comparável aos comprimentos de onda, as partículas causam uma interferência na luz se estiverem organizadas de forma regular, por exemplo como as lâminas de uma persiana. Esse efeito causa o multicolorido na face gravada de um CD, cujas ranhuras têm essa dimensão, e a iridescência das asas de borboleta ou das penas de pavão, recobertas por fibras da ordem de nanômetros separadas por espaços semelhantes. Essa organização é essencial para que nanoestruturas consigam causar interferência na luz.

O que diferencia as cores é o comprimento de onda da luz, que no espectro visível ao olho humano varia entre 400 nanômetros (azul/violeta) e 700 nanômetros (vermelho- -escuro). Um nanômetro corresponde a um milímetro dividido por um milhão. Objetos como gotas de vapor ou bolhas de espuma, com uma fração de milímetro, espalham a luz que incide sobre eles. é por isso que as nuvens no céu e a espuma do chope são brancas. Já estruturas muito menores que o comprimento de onda da luz visível, com um nanômetro ou menos, como moléculas simples, espalham muito pouco a luz. Elas também podem absorver a luz: o chope é amarelo, embora sua

Esse ramo da matemática estuda o comportamento de tomadores de decisão, ou jogadores, cujas ações – respeitando regras estabelecidas – afetam uns aos outros. Racional, cada jogador age conforme o que crê que os demais farão. Essa teoria tem aplicações em várias áreas do conhecimento, como ciências políticas, psicologia e biologia evolutiva.

Um ramo da teoria dos jogos muito aplicado na economia é a teoria dos matchings (pareamentos), que lida com situações em que há dois conjuntos finitos e disjuntos – como homens e mulheres ou escolas e estudantes – e pode ajudar a formar casais ou distribuir estudantes em universidades de forma estável.

A teoria dos matchings foi descrita em 1962 pelos norte-americanos David Gale e Lloyd Shapley, mas já era usada (Gale descobriu 15 anos depois) havia uma década para alocar médicos em programas de residência nos Estados Unidos. A comprovação de que o algoritmo usado desde 1951 era o mesmo de 1962 foi publicada por Gale em parceria com a matemática Marilda Sotomayor. Do ponto de vista da economia, o norte-americano Alvin Roth mostrou que o equilíbrio alcançado pelo mercado de médicos e hospitais é o mesmo apregoado pela teoria dos jogos. A teoria dos matchings, cuja importância rendeu a Shapley e Roth o Nobel de Economia deste ano, se tornou mais acessível aos não matemáticos graças ao livro publicado por Roth e Marilda em 1990. Roth hoje se dedica a estudar as aplicações, enquanto Marilda trabalha na teoria, liderando a escola criada por David Gale.

o QUE é, o QUE é?WiKi

Mande sua pergunta para o e-mail [email protected], pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp Especialista consultada

Marilda de oliveira Sotomayor, FEA-USP

Especialista consultadoluiz nunes de oliveira, Instituto de Física de São Carlos, USP

Estruturas em escala nanométrica causam percepção de cor? Roberto de Carvalho [via e-mail]

Pergunte aos pesquisadores

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Teoria dos jogos

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eStrAtégiAS

A revista Nature publicou uma edição especial sobre as mudanças no modo como se faz ciência hoje no mundo, em que destaca a inclusão de novos atores, como China, Índia, Cingapura, Brasil e Coreia do Sul, no cenário das nações que realizam pesquisas de alto nível. O texto sugere que a crescente globalização da pesquisa, impulsionada pela expansão de redes de colaboração em todas as regiões do mundo, está reforçando a capacidade de pesquisa dos países emergentes e alterando o equilíbrio global da ciência. “As fronteiras nacionais estão sendo superadas por redes de colaboração em pesquisa e ‘circulação de cérebros’, que possibilitam que os cientistas se movam de forma muito mais fluida em todo o mundo do que no passado”, aponta a publicação. A Nature reuniu as opiniões de oito líderes de instituições, programas e agências de fomento sobre as medidas que devem ser

O novo mapa da ciência

tomadas para impulsionar a pesquisa em seus países na próxima década. Um deles foi o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, que destacou o avanço científico do Brasil nos últimos 30 anos. Em 2011, o país formou mais de 12 mil doutores e publicou 35 mil artigos em revistas científicas internacionais. Porém, em média, as citações de artigos científicos de autoria de brasileiros no mesmo ano continuaram sendo as mesmas de 1994. “Cientistas brasileiros devem colaborar e publicar mais com pesquisadores de instituições de classe mundial no exterior”, indicou Brito Cruz. Uma das propostas apresentadas por ele é que o governo desenvolva um plano para apoiar cerca de uma dezena de universidades na execução de programas de excelência, que possibilite situá-las entre as 100 melhores do mundo em uma década.

Colaboração brasileira com o Nobel de química

O anúncio dos vencedores do Prêmio Nobel de química, concedido no mês passado aos norte-americanos Robert Lefkowitz, da Universidade Duke, e Brian Kobilka, da Universidade Stanford, foi comemorado por uma pesquisadora brasileira que tem uma produtiva colaboração com Kobilka. Patricia Chakur Brum, professora da Escola de Educação Física e Esporte e pesquisadora do Laboratório de Fisiologia Celular e Molecular do Exercício da Universidade de São Paulo (USP), fez um pós-doutorado em Stanford entre 1999 e 2001 no grupo de Kobilka, com bolsa da FAPESP, e também teve o apoio dele em seu projeto no âmbito do programa da FAPESP Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes, entre 2003 e 2007. Foi Kobilka quem forneceu os camundongos nocaute para receptores

adrenérgicos que Patricia utilizou em sua pesquisa sobre a contribuição da hiperatividade nervosa simpática na insuficiência cardíaca (ver Pesquisa FAPESP nº 79). Ela utilizou camundongos com inativação gênica de dois receptores que regulam os batimentos cardíacos – os receptores alfa 2a e alfa 2c adrenérgicos. Os camundongos nocaute tinham hiperatividade simpática semelhante à dos humanos, o que culminou em insuficiência cardíaca grave e 50% de mortalidade aos 7 meses de idade. “O Brian me ajudou bastante e sempre o visito quando vou a Stanford”, diz Patricia, que até setembro era uma das coordenadoras da área da Saúde da FAPESP e atualmente cumpre um período sabático na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia. O Nobel reconheceu o trabalho com receptores acoplados às proteínas g, que permitem ao corpo sentir seu entorno e adaptar-se a novas situações. Em 1970, Lefkowitz descobriu o primeiro receptor desse tipo. Na década seguinte, começou a buscar o gene responsável pela construção desse receptor e contratou o jovem Brian Kobilka para ajudá-lo.

O Nobel de química Brian

Kobilka deu apoio a pesquisas de Patricia Brum,

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Membro da academia

Feira Ibero-Americana

As cidades de São Paulo, Campinas e vinhedo sediaram no mês passado a Fei-ra Ibero-Americana da Ciência, Tecnolo-gia e Inovação (Empírika 2012). Idealiza-da pelo Centro de Estudos da Ciência, Cultura Científica e Inovação (Fundação 3CIN) da Espanha, o evento acontece a cada dois anos. A Expo Barra Funda, na capital paulista, recebeu a feira entre 23 e 25 de outubro, em conjunto com a Fei-ra Tecnológica do Centro Paula Souza (Feteps). Nos dias 26 e 27 de outubro a Empírika foi realizada em vinhedo. A parte científica do evento, o 2º Seminário Internacional Empírika, ocorreu na Uni-versidade E stadual de C ampinas

(Unicamp). “A feira tem atividades vol-tadas para despertar o interesse espe-cialmente dos jovens pela ciência, como também por desafios, espetáculos de teatro, palestras, debates e atividades interativas”, disse Carlos vogt, coorde-nador do Laboratório de Estudos Avan-çados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, que promoveu o evento.

Estudantes nas atividades da feira na capital paulista: evento estendeu-se a Campinas e vinhedo

A FAPESP realizou entre 17 e 24 de outubro a FAPESP Week 2012 em quatro cidades da América do Norte para divulgar resultados de pesquisa em andamento graças a acordos de cooperação com universidades norte- -americanas e explorar possibilidades de novos convênios. No MIT foi apresentado o trabalho do professor vanderlei Bagnato, da USP, sobre fluidos atômicos feito em cooperação com a equipe de Wolfgang Ketterle, diretor do MIT-Harvard Center for Ultracold Atoms e vencedor do Nobel de Física em 2001. No mesmo evento em Cambridge o professor José Arana varela, do Instituto de química da Unesp em Araraquara e diretor-presidente do Conselho Técnico- -Administrativo (CTA)

O professor da Universidade de São Paulo (USP) vanderlei Salvador Bagnato foi eleito membro da Pontifícia Academia de Ciências, no vaticano. A indicação foi feita pelo papa Bento 16 no dia 27 de setembro. Doutor em física pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, Bagnato é professor titular do Instituto de Física de São Carlos e dirige a Agência USP de Inovação. Fundada em 1603, a academia tem entre seus objetivos promover o progresso da matemática, da física e das ciências naturais, além de reconhecer a excelência no campo da ciência e encorajar a interação internacional. Conta com aproximadamente 80 membros, entre homens e mulheres de diferentes países, nomeados pelo papa após terem sido eleitos pelos outros acadêmicos. Cerca de um terço dos integrantes ganhou o Prêmio Nobel.

Uma semana, quatro cidades

de departamentos para negociar possíveis acordos futuros. Com o mesmo objetivo, ele visitou a Universidade West virginia, em Morgantown. No Brazil Institute do Woodrow Wilson Center, copromomotor da semana, Brito e varela tiveram encontros com responsáveis pelas políticas públicas federais de ciência e agências federais de financiamento à pesquisa para ampliar o relacionamento entre as instituições.

da FAPESP, mostrou os avanços em seus estudos com semicondutores estruturados em escala nanométrica para uso em sensores de gás para controle e monitoramento ambientais, feitos em colaboração com Harry Tuller, do Departamento de Ciência de Materiais e Engenharia do MIT. O entendimento entre FAPESP e Universidade de Toronto resultou em projetos de pesquisa que foram mostrados ao público em áreas como técnicas de recuperação de solo e água, avaliação do impacto de prática de exercícios para tratamento de doenças respiratórias e de estimulação do cérebro para cuidar de depressão. Na Universidade Harvard, o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, se reuniu com diversos dirigentes

Brito Cruz no auditório do Wilson Center, em Washington: novas possibilidades de cooperação

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em cidades distantes dos grandes centros urbanos. Muitas vezes o doente fica curado antes de o médico receber o resultado do exame. A confirmação ou não da doença serve mais para a vigilância epidemiológica do que para o cuidado ao paciente”, diz o professor guilherme de Sousa Ribeiro, do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador do Centro de Pesquisa gonçalo Moniz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Salvador (BA). O novo teste pode ser usado no próprio hospital e demora apenas 20 minutos para dar um resultado. Ele é feito com apenas uma gota de sangue colocada em uma pequena plataforma que contém uma fita com antígenos da bactéria. A plataforma foi desenvolvida pela empresa Chembio, dos Estados Unidos, que possui com a Fiocruz um acordo de transferência de tecnologia. Testes foram realizados com mais de 1.100 amostras de sangue e no total apresentaram sensibilidade de 85% na fase aguda da doença, índice semelhante aos 82% encontrados com o teste Elisa, usado no diagnóstico da leptospirose.

Não há dúvida de que a ecologia e a evolução das plantas são profundamente influenciadas pelos insetos. Ninguém imaginava, entretanto, que a ausência deles pudesse modificar espécies de plantas a curto prazo. Uma equipe liderada pelo biólogo Anurag Agrawal, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, monitorou durante cinco anos um campo com mais de 12 mil prímulas (Oenothera biennis), onde cresceram 18 variedades genéticas diferentes dessas flores amareladas. Metade do campo foi tratada com inseticida para proteger as plantas das mariposas que comem suas sementes (Science, 5 de outubro). A seleção natural agiu rápido. Após três ou quatro gerações, a maioria da população das plantas protegidas

dos insetos perdeu várias das características que as ajudavam a se defender das mariposas. Aumentou o número das variedades que não produziam substâncias repelentes de insetos e das que floresciam no período em que o número de larvas de mariposas atinge seu pico. Proliferaram ainda as variedades de corpo maior, mais aptas a competir por espaço com uma espécie concorrente das prímulas, os dentes-de- -leão, que também cresceram no campo, favorecidos pela ausência de insetos predadores. Os pesquisadores acreditam que a rapidez das mudanças observadas nesse experimento possa ser uma característica geral das interações entre outras espécies de insetos e plantas.

Sem mariposas, prímulas adiantam período de floração

tecnociênciA

Um novo teste, mais rápido que os tradicionais, poderá auxiliar no diagnóstico da leptospirose, doença provocada pela bactéria Leptospira interrrogans e caracterizada por febre alta e dor no corpo. Ela causa letalidade de até 15% nos mais de 500 mil casos por ano em todo o mundo. “Desenvolvemos um teste que pode ser aplicado quando o paciente chega ao hospital com sintomas sugestivos da leptospirose. Os testes confirmatórios existentes necessitam de grande aparato laboratorial e podem demorar algumas semanas para dar um resultado, principalmente

Plantas sem insetos

Teste rápido para detectar a leptospirose

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Encontrada tumba de rainha maia

Arqueólogos encontraram na guatemala, na América Central, a tumba de uma rainha maia do século vII. Um pequeno vaso de alabastro decorado com a imagem de uma mulher com idade avançada, com o nome da rainha inscrito em hieróglifos, foi a peça--chave para a identificação de K’abel. O túmulo com os restos mortais de um adul-to foi descoberto em junho durante uma escavação no sítio arqueológico Peru-

-Waka, na região de Petén, no noroeste do país, pela pesquisadora americana Olivia Navarro e pela guatemalteca griselda Pé-rez. Mas só em outubro, após análise de especialistas e avaliação de evidências, a descoberta foi anunciada por David Friedel, professor de antropologia da Universidade de Washington em Saint Louis, nos Estados Unidos, diretor da expedição. K’abel fazia parte de uma família real e tinha o título

Esculturas feitas de pedra, na guatemala, do rei K’ínich Bahlam (esq.), e da rainha K’abel

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glicerina na ração animal

Resíduo da produção de biodiesel, a glicerina pode ser usada como suplemento alimentício de bovinos e cordeiros como mostraram dois estudos em universidades brasileiras. De cada litro do biocombustível produzido, sobram cerca de 10% de glicerina. Em 2011 foram produzidos 2,6 bilhões de litros e a produção deve aumentar nos próximos anos sem ainda existir destino suficiente para a glicerina. Assim, o primeiro estudo realizado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio grande do Sul, demonstrou que cordeiros podem consumir até 30% de glicerina em substituição ao milho sem nenhuma perda em relação ao peso e ao desenvolvimento esperado do animal. O experimento foi realizado com 32 cordeiros e contou com a coordenação dos professores Cleber Pires e Luís Fernando Pelegrini. O outro estudo foi realizado

na Universidade Federal do Tocantins (UFT) com 12 vacas leiteiras e 12 novilhos que consumiram por 84 dias rações com até 24% de glicerina, o dobro do já aprovado pelo Ministério da Agricultura. Depois, eles foram abatidos em um frigorífico comercial e partes do corpo dos animais como cérebro, fígado e intestinos foram analisadas e não apresentaram toxicidade ou qualquer outra lesão. A glicerina também não alterou o peso dos animais. A coordenação dos experimentos esteve com os professores Sandro Moron e João Restle, da UFT.

Defesa contra Aids

Anticorpos humanos ultrapotentes e sintetizados em laboratório podem indicar um novo rumo para combater o vírus HIv-1, causador da Aids. O grupo do imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, em Nova York, mostrou (Nature, 25 de outubro) que usar uma combinação desses anticorpos pode impedir os vírus de sofrerem mutações e tornarem a medicação ineficaz. O estudo foi feito em camundongos artificialmente dotados de sistema imunológico humano, o que os deixam suscetíveis ao vírus. Usando cinco anticorpos, alguns dos camundongos

testados mantiveram níveis virais abaixo do detectável por 60 dias depois do tratamento. Uma vantagem dessa estratégia, em comparação aos coquetéis antirretrovirais, é a ausência de efeitos adversos, porque os anticorpos não são estranhos ao organismo. “Não acho que podemos curar pessoas assim, mas temos que tentar”, diz Nussenzweig. A possibilidade existe, mas plausível também seria um tratamento com anticorpos que só precisasse ser aplicado uma ou duas vezes por ano. Um grande avanço em relação ao atual consumo diário de medicamentos para combater a doença.

de “Kaloomte” (guerreira Suprema), o que significa que ela teve maior autoridade do que o seu marido, o rei K’inich Bahlam. A equipe encontrou também uma grande quantidade de joias de jade e milhares de lascas e navalhas de obsidiana (rocha de origem vulcânica). Na escavação, as pes-quisadoras acharam o cômodo principal, que funcionava como um local de adoração do fogo, e abaixo dele o túmulo.

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Resíduo da produção de biodiesel pode ser aproveitado para alimentar cordeiros e bovinos

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Perigo nas estradas

Um estudo realizado em estradas federais do país revelou que 10% de 2.235 motoristas que tiveram a saliva analisada tinham consumido algum tipo de droga psicoativa, prescrita ou ilícita. Realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRgS),com a colaboração da Polícia Rodoviária Federal, a pesquisa validou um método analítico que reúne, no mesmo teste, 32 compostos químicos relacionados a vários tipos de substâncias. Sozinha ou com outras drogas, a cocaína foi a substância mais presente, na saliva de 129 motoristas (5,8%). Em seguida apareceram

as anfetaminas, em 69 amostras, sendo que 31 estão relacionadas aos inibidores de apetite como o femproporex e o dietilpropiona, proibidos em 2011 no Brasil. Do total de motoristas, 22 tinham consumido mais de duas classes de drogas, como cocaína e maconha, ou cocaína e benzodiazepínicos (calmantes), por exemplo. Realizado entre 2008 e

vias do coração

Uma exposição com informações sobre a anatomia e o funcionamento do coração, o sistema circulatório e os principais elementos constituintes do sangue, chamada Vias do coração, foi aberta no dia 1º de novembro e ficará até o dia 31 de março de 2013 na Estação Ciência da Universidade de São Paulo (USP). A mostra integra o projeto Ciência Móvel – vida e Saúde para Todos, um museu de ciências itinerante que circula em um caminhão desenvolvido em parceria entre a empresa farmacêutica Sanofi e o Museu da vida, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Terminais multimídia, vídeos em 3D, bancadas de microscópios, além de um coração com mais de dois metros de altura, compõem a exposição que já foi vista por mais de 400 mil pessoas. Mais informações: www.eciencia.usp.br.fO

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Imagem de célula com mitocôndria escurecida pelo novo marcador para microscópios eletrônicos

Pesquisadores que trabalham com biolo-gia molecular utilizam uma proteína ver-de-fluorescente, gFP na sigla em inglês, para marcar proteínas principalmente em situações de necessidade de confirmar a inserção de genes em células e tecidos biológicos. O problema é que só é possível identificar a tal proteína com microscó-pios fluorescentes com emissores de luz. Imagens com melhor definição são obti-das apenas com microscópios eletrôni-cos. Para contornar o obstáculo, pesqui-sadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) desenvolveram um marcador que pode etiquetar e dispor a imagem de proteínas com muita clareza

em microscópios eletrônicos. Chamada de ascorbato peroxidase (Apex), a nova tecnologia permite também visualizar melhor as intrincadas estruturas de uma célula, o que ajuda os pesquisadores da área a entender melhor, por exemplo, as interações das proteínas e detelhes mais nítidos das células. Os pesquisadores fo-ram liderados pela professora Alice Ting, do Departamento de química do MIT, e apresentaram o novo marcador na revista Nature Biotechnology (21 de outubro).

Imagem de proteínas em alta definição

2009, o estudo colheu amostras de motoristas de carros (50,5%), motocicletas (29,6%), ônibus (10,8%) e caminhões (9,1%). Sob a coordenação da professora Eloisa Dutra Caldas, da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, o estudo foi publicado na edição on-line de 24 de setembro da revista Forensic Science International.

Estudo mostra que a cocaína é a droga mais consumida por motoristas brasileiros

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Cozinhar impulsionou evolução do cérebro

Os seres humanos são os primatas com o maior cérebro e número de neurônios, apesar de nossos corpos não serem tão grandes quanto aos dos gorilas, por exemplo. Por que a evolução dos grandes símios também não foi na direção de aumentar seus cérebros? A resposta pode estar em uma mudança de dieta, argumentam as neurocientistas Suzana Herculano-Houzel e Karina Fonseca-Azevedo, ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sabendo que o custo energético de um cérebro é diretamente proporcional ao seu número de neurônios, as pesquisadoras calcularam o número máximo de neurônios que 17 espécies de primatas são capazes de manter com a energia fornecida por uma dieta de alimentos crus (PNAS, 23 de outubro). Descobriram que o número de horas

disponíveis para se alimentar e o baixo teor calórico da comida crua impõem limites severos ao desenvolvimento do corpo e do cérebro dos animais. é como se, ao longo da evolução, as espécies precisassem escolher entre ganhar massa corporal e aumentar o número de neurônios. Uma espécie como o Homo sapiens precisaria gastar mais de nove horas diárias se alimentando de comida crua para desenvolver e manter o cérebro funcionando. Esse obstáculo teria sido superado quando nosso ancestral Homo erectus descobriu o fogo. Alimentos cozidos são mais fáceis de digerir, fornecendo mais calorias que os crus. Com mais energia e tempo livre disponíveis para atividades sociais, a evolução teria favorecido o aumento do número de neurônios.

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Um cristal eterno

Em janeiro deste ano, o físico teórico Frank Wilczek, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, imaginou a possibilidade de criar um “cristal espaço-temporal”. Cristais comuns, tais como os de gelo e de quartzo, são objetos cujos átomos formam padrões repetidos. Eles se organizam assim para permanecer em um estado de energia mínima. Assim como as formas de um cristal normal se repetem no espaço, o cristal espaço-temporal se repetiria também no tempo, retornando periodicamente a sua posição original. Diferentemente de um movimento periódico convencional, que com o tempo poderia se dissipar, ele faria isso sempre em um estado de mais baixa energia possível e seu movimento duraria indefinidamente. Uma equipe liderada por Tongcang Li,

na Universidade da Califórnia, em Berkeley, é a primeira a propor uma maneira de colocar a ideia de Wilczek em prática. Eles sugerem uma experiência com íons de berílio (Physical Review Letters, 19 de outubro), possível de se realizar com alguns avanços na tecnologia atual. Os íons seriam aprisionados por um campo elétrico a temperaturas extremamente baixas, próximas de -273°C. Nessas condições, os íons formariam um anel, que seria posto para girar pela ação de um campo magnético. Uma vez girando em seu estado de mínima energia, os campos poderiam ser desligados e os íons formariam o cristal que permaneceria em movimento, a princípio para sempre. Ao contrário do que parece, não seria possível usar o cristal espaço-temporal para se criar uma máquina perpétua porque não haveria como extrair energia do anel.

Dieta dos gorilas não sustenta corpo e cérebro grandes ao mesmo tempo

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Monumento aos descobrimentos, Lisboa, Portugal

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Império lusitano soube usar liberdade

das elites locais e religião missionária

para manter-se por cinco séculos

Um imenso portugal

carlos haag

como um pequeno país com menos de 90 mil quilô-metros quadrados marcou sua presença em cinco continentes, em regiões como África, Japão, Chi-na, Índia e Brasil? Nenhum império europeu colo-nial moderno foi tão duradouro e amplo. Portugal

foi o primeiro construtor de um império global (embora os portugueses se denominassem reino, e não império, como os espanhóis), que sobreviveu em grande parte até meados dos anos 1970, tendo Macau retornado à China apenas em 1999. “O sucesso deve-se a inovações que fogem a qualquer modelo. A relação pioneira entre centro e periferia foi marcada pela flexibilização do poder pelas elites locais, sem que Lisboa deixasse de ser o polo irradiador da autoridade. Bastante ino-vador foi também o uso da religião para a criação da unidade imperial”, explica a historiadora Laura de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do projeto de pesquisa Dimensões do Império Português, temático iniciado em 2004 e concluído recentemente com apoio da FAPESP.

O objetivo da pesquisa, que já rendeu livros como O go-verno dos povos (Alameda), Contextos missionários: reli-gião e política no Império Português (Hucitec/FAPESP) e O império por escrito (Alameda), era rediscutir o conceito de antigo sistema colonial e ver se ainda tinha operacio-nalidade ante as novidades que a pesquisa histórica tinha trazido. O estudo gerou cerca de 30 trabalhos acadêmi-cos, entre dissertações de mestrado e teses de doutorado, e foi dividido em núcleos de pesquisadores para melhor ana-lisar as dimensões políticas, econômicas, culturais e religio-r

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sas do Império Português, revelando um quadro complexo e pleno de diversidades em que, diz Laura, “se percebe o múltiplo no uno”.

“Visões consagradas de uma administração colonial caótica, máquina burocrática monstruo-sa, emperrada e ineficiente, com um centro au-toritário e colônias submissas, não dão conta da capacidade de manutenção longeva do imenso império. Houve, sim, um uso inteligente do po-der por Lisboa, superando os limites da separa-ção oceânica entre a metrópole e suas colônias”, explica a professora.

A cronologia adotada pelo projeto, entre os séculos XV e XIX, se explica por ser o período da expansão lusitana, já que, depois de 1822, não justifica a leitura em conjunto de formações tão independentes como os impérios brasileiro e português.

O projeto atualiza um debate surgido ao fi-nal da década de 1970 sobre como interpretar a economia e a sociedade da América portugue-sa, reavaliando tanto a ideia de ‘sentido da co-lonização’, de Caio Prado, como o conceito de ‘antigo sistema colonial’, definido por Fernando Novais. O resultado, afirma Laura, é um jogo dialético entre as partes e o todo, eliminando a oposição mecânica entre metrópole e colônia,

muito além da relação Brasil-Portugal. “Nessa releitura, o Império Português aparece como pouco homogêneo e com centros políticos re-lativamente autônomos. É preciso questionar a ideia de uma ideologia imperial unitária”, fala a pesquisadora.

hIPótESESPara ela, o ressentimento pós-colonial dos bra-sileiros por muito tempo deixou livre o caminho para que historiadores estrangeiros traçassem suas hipóteses e preenchessem lacunas óbvias, já que estavam desimpedidos do peso de um passado que não era o seu e contra o qual não precisavam acertar contas. “Nos últimos anos é que surgiu uma ‘voga do império’ que reuniu uma ampla ga-ma de historiadores, nacionalidades e matrizes teóricas e historiográficas diversas”, fala.

Muitos, porém, ainda caem nas “armadilhas” historiográficas, deixando de lado a questão da escravidão ou supervalorizando o poder da leitura de textos oficiais, engano já apontado por Caio Prado em 1942 quando critica a “ótica da norma”, que, muitas vezes, permanecia “letra morta”.

“A flexibilidade das instituições político-ad-ministrativas, capazes de estabelecer um siste-ma complexo de relações horizontais e verticais com o poder central, intermediário e local, não anula a necessidade de compreender o sistema colonial como um conjunto hierarquizado de relações políticas”, diz Laura.

Não se trata nem da visão do “império contro-lador”, nem do “império incapaz de controlar”, mas de um império que, ciente da imensidão oceânica que separava suas partes, entendeu a necessidade de manter relações com periferias relativamente autônomas, conectadas à metró-pole por laços mais ou menos frouxos. Sem que,

Praefecturae Paranambucae Pars

Meridionalis, georg Markgraf,

1665, 41,5 x 45 cm

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no entanto, Lisboa deixasse de ser o centro de onde o poder emanava. A distância entre rei e sú-ditos, que poderia se configurar como problema, reaparece, agora, como “virtude” de governar.

“As colônias se constituíram também, mas não apenas, mimeticamente como espelhos, repro-duzindo os valores socioculturais da península Ibérica. Para isso foi importante a criação pelos portugueses de um sistema de comunicação po-lítica quase universal entre Corte e colônias. O que podia parecer uma fraqueza institucional se transforma em sua força, revelada na adap-tabilidade às diferentes conjunturas políticas e territoriais e, por vezes, num certo pluralismo administrativo”, lembra a pesquisadora.

A originalidade das bases do Império Portu-guês pode ser vista na criação de estruturas no-vas, que intermediavam a relação entre os po-deres locais, nos territórios ultramarinos, e os poderes do centro.

“Os administradores portugueses que vieram, por exemplo, a certas partes do que seria o Brasil fogem ao estereótipo do ‘tiranete’ que buscava arrancar os espólios dos brasileiros. Claro que houve inescrupulosos. Mas, no geral, sabia-se que não se podia pesar a mão na relação com a colô-nia. A exploração muitas vezes vinha revestida da forma da intolerância, seguida da flexibilidade na aplicação das leis”, nota Laura. “Assim, dizer, como reclamava Tiradentes, que os administra-dores portugueses vinham para espoliar e arran-car nosso sangue, não explica muita coisa e nos enreda no discurso equivocado da dominação.

Em verdade, a administração só pode funcionar porque as elites locais participavam dele”, fala.

coroAA pesquisadora frisa que não se entende as relações desse império apenas com base nos documentos le-gais. “A Coroa sabia que não podia impor controle levando a lei ao pé da letra. Até 1822, os ‘brasileiros’ se viam como portugueses, e não como dominados”, explica. Assim, os movimentos de revolta local nem sempre eram sinônimo de “luta por independên-cia”, mas eram reações a rearranjos. Ainda vale a definição de Tocqueville do Antigo Regime: “Uma regra rígida e uma prática flácida”.

Mas não se deve falar num “Antigo Regime tropicalizado”. Se a sociedade colonial for vista como de Antigo Regime no senso estrito, suas particularidades explodem e corroem os princí-pios básicos, já que era organizada e costurada pelo escravismo, algo que inexistia no ambiente europeu”, lembra Laura.

“A aquisição de escravos manchava a imagem da nobreza local, separando-a daquela do reino. Corriam-se atrás de títulos, honras e mercês, com isso aumentando a dependência junto ao rei português, que se agravou ao longo dos anos”, diz a historiadora. A especificidade da América portuguesa não residia na assimilação pura e simples do mundo do Antigo Regime, mas na sua recriação perversa, alimentada pelo tráfico, pelo trabalho de negros escravos, pela introdução, na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural mais do que institucional: o escravismo.

Novissima et Acuratíssima Totius Americae Descriptio, John Ogilby, 1671, 43,5 x 54 cm

Era um império de grande racionalidade que tinha consciência de que os problemas locais exigiam soluções imediatas e produzidas localmente

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Mapa do Império Português (1415-1999) O desenvolvimento e a decadência dos lusitanos, da glória até o processo de descolonização

Mais uma vez a solução vem por meio da flexi-bilização. “Pelos princípios do Antigo Regime se proibia aos portadores de ‘sangue infecto’ exercer cargos administrativos. Seria, então, impossível governar as regiões coloniais se a maior parte da elite nativa era formada por mestiços: regiões como São Paulo e Minas, por exemplo, eram pra-ticamente habitadas por mamelucos e mulatos. Promovia-se, então, um mulato a capitão-mor e ele deixava de ser mulato e podia ascender”, nota a professora. Mesmo oficialmente sujeita às regras do antigo sistema colonial, a periferia do império usava e abusava do “jogo de cintura”.

“O projeto inova ao discutir essas peculiari-dades do Império Português, dando a ele uma categoria explicativa maior A discussão nos le-vou a repor o conceito de sistema colonial pela ideia de que a colônia não era mera extensão da metrópole, mas um território subordinado que exerceu um papel fundamental para o império ao prover uma parcela considerável dos recursos essenciais à sua existência”, observa o historiador Jobson Arruda, da USP, membro do projeto. “O sistema imperial lusitano tinha grande raciona-lidade e uma consciência de que os problemas locais exigiam soluções imediatas e produzidas localmente”, continua.

Essa foi uma das principais razões do sucesso dos portugueses em face dos rivais espanhóis. “A monarquia espanhola era uma variedade de reinos, enquanto Portugal era um reino unifica-do. Foram feitos grandes esforços para aumentar o poder do Estado a expensas da nobreza e das comunas. Esses recursos ajudaram na expan-são marítima que, por sua vez, deixou o reino

menos dependente de nobres e plebeus graças aos recursos obtidos. Em troca, esses recursos permitiram ao Estado cooptar a nobreza, o que propiciou ao rei português uma consolidação espantosa do seu poder”, explica a historiadora Ana Paula Megiani, da USP, organizadora de O império por escrito (Alameda), outra pesquisa-dora do projeto.

“Com essa centralidade, a monarquia portu-guesa tinha uma capacidade de mando no impé-rio maior do que a espanhola, com o poder local funcionando como formas de exercício daquele poder, expressões de centralidade, e não de des-membramento do império”, avalia Ana. Ainda as-sim Portugal vivia uma contradição que os espa-nhóis não tinham: era um império sem imperador.

“Nesse contexto, a face religiosa do império é a que melhor expressa a sua universalidade. A Igreja ofereceu um substrato adequado à efetiva-ção prática de um grupo de dogmas e princípios, tendo nas missões religiosas o seu principal ins-trumento operacional para cimentar as partes da totalidade”, afirma o historiador Adone Agnolin, da USP, do núcleo Religião e Evangelização da pesquisa. “A perspectiva religiosa traz a base de uma universalitas (princípio construtor de impé-rios herdado dos romanos), repassada, do ponto de vista político, à manutenção dos impérios, mas que, no fundo, se apoia sobre a ideia de um ‘império simbólico, unindo política e religião”, fala Agnolin.

Segundo o historiador, por meio de seus missio-nários, o Império Português reverte o processo de formação histórica ao encontrar seu pressuposto universal na dimensão do religioso. “O religioso é

Possessões efetivas

Explorações

Áreas de influência e comércio

Reivindicações de soberania

Postos comerciais

Principais explorações marinhas, rotas e áreas de influência

LEGENDA

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Possessões coloniaisDa glória ao ocaso, cada século revela o desenvolvimento imperial

Século XvI

Século XvIII

Século XX

seu instrumento privilegiado para a realização do projeto e, a partir dele, Portugal se propõe como novo e inédito modelo imperial”, diz.

Laura afirma que essa visão é uma das grandes novidades trazidas pela pesquisa. “Os missioná-rios são braços de homogeneização da fé, trazendo maior adaptabilidade dos portugueses em face dos confrontos religiosos e culturais”, fala a historia-dora. A tentação de “demonizar” a Igreja é grande, mas equivocada. “Toda a ação dos agentes diplo-máticos, administrativos ou comerciais, era cau-cionada pelos missionários, que davam legitimi-dade ao conjunto de ações que pretendiam o bem comum e, logo, a salvação dos homens”, afirma.

rIQUEZAA noção de “bem comum” compreendia, na épo-ca, a dimensão colonial ao lado do cristianismo, ainda que com tensões. Aumentar a riqueza do rei era aumentar a riqueza do reino e assim a ri-queza dos vassalos cristãos. O aumento da ati-vidade comercial e da riqueza do reino ligava--se e se fundamentava na função do rei em sua expressão do exercício da virtude teológica da caridade e do exercício das virtudes terrenas na justiça distributiva.

A unidade do reino, como unidade da comuni-dade, visa ao bem comum e à salvação. A finali-dade do império não se restringe à colonização, vista apenas como um meio, mas à salvação, já que permite converter os gentios e sustenta a ação missionária, expansionista e universalizante da Igreja Católica.

“Essa especificidade se dá a partir da segun-da metade do século XV. Na base da expansão colonial está a teologia e, nos seus rastros, os re-sultados de um novo comércio colonial. É nessa direção que Portugal constrói, com uma anteci-pação extraordinária em relação às outras nações europeias, a nova perspectiva de universalização que se constituiu na articulação entre império, teologia e comércio”, explica Agnolin. As missões, junto com o comércio, foram uma das vias privi-legiadas dos primeiros diálogos com as culturas em contato com o mundo ibérico. O império dos homens era, acima de tudo, de Deus.

“Além disso, se os europeus precisavam com-preender as culturas locais, era também necessário desenvolver novos instrumentos cognitivos para dar conta das novas situações do contato. Era um processo de tradução de parte a parte, em que a linguagem religiosa funcionava como área de me-diação simbólica, fundamental à incorporação das populações nativas à monarquia portuguesa”, obser-va o historiador. As missões fizeram as necessárias “acomodações” com as diversas realidades locais.

“Se as relações entre império e religião, entre administração dos povos e as missões católicas, se deram a partir de interesses comerciais, não

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se pode deixar de pensar como as ‘dimensões do Império Português se sustentam no universalismo que remete à autonomização moderna de direito natural”, fala Agnolin. Assim, na base da tensão entre teologia e império, encontra-se a noção de império cujo objetivo era realizar a imposição de um governo comum para os povos, segundo as diferentes modalidades de interlocução local, como nas dimensões políticas e culturais.

Outra sabedoria lusitana era manter governos específicos para cada parte do império, adaptan-do-se às idiossincrasias locais. Não se governava uma região colonial da mesma maneira que se governava outra. No caso fundamental da reli-gião, o cristianismo determinou, a partir desse contexto, um nexo entre “coisas da fé” e a “vida política”. A partir dessa perspectiva, que visava ao universal, é que a práxis evangelizadora realizou os “ajustes” necessários em relação às culturas não ocidentais particulares.

O Império Português elaborou projetos que buscavam a incorporação de outros povos, com a catequese como o veículo central dessa tentativa. “Flexibilidade e adaptabilidade, com autonomia relativa, foram instrumentos de sobrevivência desse império, com Lisboa no centro, ainda que muitas vezes sobrecarregada. Nisso o papel fun-damental coube à Igreja e às ordens religiosas, mais importantes na manutenção e defesa do território lusitano do que o Estado português”, afirma o brasilianista Kenneth Maxwell, da Har-vard University.

No império, a cultura europeizante, como a re-ligião, atuou na sua manutenção. “Era uma cultu-ra que estava embebida do ideal civilizador, mas atenta às recombinações e aos mecanismos capazes de melhor estender o seu domínio. Daí as várias

formas de circulação da escrita ou os suportes de representação como a cartografia”, acrescenta a historiadora Leila Algranti, da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp). Essa peculiaridade permitiu que, a partir do temático, fossem criados: a Biblioteca Digital de Cartografia Histórica (ver A mina dos mapas, edição 183 de Pesquisa FA-PESP), o Laboratório de Estudos de Cartografia Histórica (LECH), e o Centro de Documentação sobre o Atlântico (Cenda).

Para Laura, essa questão da escrita, antes ignora-da, foi outro ponto alto do projeto ao revelar como se dava a comunicação entre as partes distantes do império, independentemente da invenção da imprensa. “Foi um processo de intensificação e difusão dos modos de coletar, organizar e preser-var a informação escrita, ligados à formação da burocracia e do Estado moderno e ligados à so-fisticação de formas de conhecimento e às novas maneiras de ascensão social de elementos ligados à escrita”, lembra Leila.

“Em termos de Portugal e Brasil, é evidente que sem a comunicação por escrito seria prati-camente inviável administrar o império. Além dos impressos, registros manuscritos de todo tipo (cartas, regulamentos, crônicas, gramáti-cas) desempenharam um papel fundamental na transmissão de ideias, valores, normas, costumes e saberes entre as metrópoles e suas colônias, bem como entre as diferentes possessões ultra-marinas que integravam tais impérios coloniais”, observa Leila.

Ao se expandir, o Império Português sentiu a necessidade de trocar informações com mais

Esfera armiliar, 38,5 x 38,5 cm

A sabedoria do império lusitano era governar cada região de forma específica, flexibilizando o poder de acordo com as questões locais, dando poder em função das necessidades

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Projeto

Dimensões do Império Português – nº 2004/10367. Modalidade: Projeto Temático. Coordenadora: Laura de Mello e Souza – USP. Investimento: R$ 578.580,17 (FAPESP).

rapidez. “As ordens que até então eram feitas oralmente começaram a ser feitas por escrito. As normas regulavam não só a administração, mas também outras esferas, no âmbito político e jurídico, envolvendo queixas ou denúncias”, continua Leila.

Segundo ela, entender a colonização da América é captar as formas de comunicação entre conquis-tadores e conquistados, de integração e modifica-ção entre o Velho e o Novo Mundo. “Essas novas análises nos levaram a ver, na base do império, uma relativização da presença metropolitana, o destaque do papel das elites coloniais e a especi-ficidade e abrangência dos processos evangeliza-dores”, observa Laura.

“Com isso, as questões econômicas e sociais de fundo, ou seja, a drenagem de riquezas e a cons-tituição de sistemas de trabalho compulsório, em especial o escravismo, são relativizadas. Os senti-dos e conteúdos do império lusitano ganham uma singularidade que nos obrigou a repensar sua es-sência e a como se inseriu na lógica capitalista de forma particular”, diz.

Essa dinâmica colonial acabou por tornar o colonizador residente, antes ligado à soberania metropolitana, em força de autonomização. “Sua ação viabilizava o enraizamento de capital e a con-secução de rotas comerciais que os tornavam in-dependentes da metrópole”, fala Jobson.

Não se podia explorar a colônia sem a fazer crescer, sem a desenvolver, levando a tensões sempre que o poder central, em Lisboa, fosse incapaz de atender às novas necessidades locais e travasse o crescimento.

dEcAdÊncIANa própria essência da manutenção do império estavam as sementes da sua decadência. “Portugal foi uma engrenagem importante para a constru-ção do capitalismo, em especial na etapa mercan-til. Mas no capitalismo não é possível manter a hegemonia para sempre, pois a sua lógica é a di-nâmica de migração do centro de acumulação”, explica Ana Paula Megiani. Nos séculos XVIII e XIX não se vê mais na Europa o afluxo da riqueza entre os ibéricos. “A crise do capitalismo mercan-til determinou a crise do Império Português, mas se observarmos as dimensões cultural, religiosa e politica, a duração é outra”, afirma. “O impacto da colonização lusitana foi bem maior do que a sua estrutura governamental”, lembra Maxwell.

“O ponto de inflexão do império foi no perío-do pombalino, entre 1750 e 1777. O marquês deu muita força às elites locais e se percebeu que sempre que isso não ocorria havia conflitos”, observa Laura. Cada vez mais a antiga ideia da necessidade e possibilidade de um império luso--brasileiro vai esgarçando a noção de antigo siste-ma colonial. “Muitos desejavam descentralizar o

império e colocar o Brasil como centro, o que vai decompondo as relações entre metrópole e colô-nia, a ponto de não se poder mais falar de centro e periferia”, continua a pesquisadora.

As elites locais ganham um status inédito. A vinda da família real em 1808 apressou o movi-mento, ao criar a estranha situação de uma colô-nia que também era a sede do império.

“Os temores ante a autonomização dos grupos locais só aumentaram com a Revolução Francesa e o avanço de Napoleão, o que fez parte da elite por-tuguesa pensar seriamente essa mudança de papéis como a única forma de manter o Brasil”, diz Laura.

Em 1822, o processo se consolidou. “Mas uma parte do antigo império só se libertou após um processo doloroso de guerras civis, como na Áfri-ca, em que forças externas entraram em campo, graças à recusa do regime salazarista de nego-ciar”, lembra Maxwell.

Essa intransigência, segundo o brasilianista, deixou poucas alternativas e nos anos 1970, quan-do o império na África acabou, restaram lutas da Guerra Fria e o apartheid da África do Sul, com Cuba, EUA e a ex-URSS estendendo seus conflitos nas antigas colônias portuguesas.

Não havia mais como “essa terra seguir seu ideal/ Se transformar num imenso Portugal”, a bra-vata lusitana de Fado tropical, de Chico Buarque. n

Meridionalis

Americae Pars,

Petrus Plancius

c. 1592-1610

39,5 x 55,5 cm

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José Marques de Melo

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A prima pobre das ciências sociais

O campo da pesquisa em comunicação tem pouco prestígio acadêmico no Brasil e José Marques de Melo, há 40 anos um dos maiores batalhadores por sua constituição no país, diz isso com todas as letras. Em parte, reconhece, isso guar-da relação com as próprias dificuldades epistemológicas da área – afinal, um século depois de estabelecidas nos Estados

EntrEvIStA

Mariluce Moura

Unidos, essa especialidade, ciência, para alguns, pseudoci-ência, para muitos, não conseguiu identificar claramente seu objeto. “Comunicação, na verdade, não é uma área autônoma de pesquisa. Como todas as ciências aplicadas, ela incorpora contribuições que vêm das demais ciências, das exatas e das humanas”, ele pondera.

Nesta entrevista a Pesquisa FAPESP Marques fala sobre essa estranha e prolongada crise de identidade de um cam-po que reúne nada menos que 25 mil professores e 250 mil estudantes no país e a entremeia com sua própria trajetória profissional, que, a pesquisadores de outras áreas bem esta-belecidas, pode soar extremamente ziguezagueante. Reflete sobre circunstâncias políticas que interferiram, para além do desejável, na universidade e na vida pessoal e relata algumas saborosas histórias de um brasileiro que transitou do sertão de Alagoas para a mais prestigiosa universidade brasileira.

Em 1972, você era chefe do Departamento de Jornalismo da ECA (Escola de Comunicações e Artes). E trabalhava para constituir o campo da pesquisa em comunicação no Brasil. Gostaria que contasse esse começo.O cargo era de diretor do Departamento de Jornalismo da Es-cola de Comunicações Culturais, que depois se transformou na ECA. Considero-me um privilegiado porque tive a opor-tunidade de conviver com Luiz Beltrão, de fato o pioneiro

IdAdE 69 anos

ESPEcIAlIdAdE Comunicação e jornalismo

ForMAção Universidade Católica de Pernambuco (graduação em jornalismo), Universidade Federal de Pernambuco (graduação em ciências jurídicas e sociais) e Universidade de São Paulo (doutorado)

InStItUIção Universidade Metodista de São Paulo

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da pesquisa científica de comunicação no Brasil. Quando ele fundou, em 1961, o curso de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, estabeleceu um diferencial na formação de jornalistas no país, que foi exatamente introduzir a dimensão da pesquisa científica em paralelo à prática profissional.

Você já era jornalista àquela altura?Sim, comecei minha trajetória em Ala-goas, na Gazeta de Alagoas, depois no Jornal de Alagoas, dos Diários Associa-dos. Fui um excelente jornalista do inte-rior fazendo cobertura da minha cidade para o jornal da capital.

Qual cidade?Eu nasci em Palmeira dos Índios, famosa por um de seus prefeitos [o escritor], Graciliano Ramos, mas vivia em Santana do Ipa-nema. Meu pai, negociante de produtos agrícolas, tinha sociedade com um empre-sário de transporte numa li-nha de ônibus entre Palmei-ra dos Índios, aonde chegava um trem, e Belmiro Gouveia, aonde chegava outro que vi-nha do São Francisco. Por um tempo ele viveu em Pal-meira dos Índios, justamen-te no período em que minha mãe estava grávida de mim – sou o mais velho de quatro irmãos. Logo depois minha mãe se mudou para Santana do Ipanema. E para concluir a questão do começo no jor-nalismo: eu fazia a cobertu-ra dos acontecimentos de Santana do Ipanema, aquelas coisas corriqueiras, casamento, eleição, briga política, Dia das Mães, problema na feira, o grupo escolar que está desabando. Vivia no dualismo entre narrar os fatos como as autoridades queriam ou como eu os via. A imprensa e o dever da verdade, de Rui Barbosa, virou minha bíblia.

Sua família tinha algo contra você ser jornalista?Tinha tudo. Quando eu disse que ia fazer vestibular para jornalismo, meu pai disse que eu ia arrumar encrenca e observou, além disso, que curso superior de jorna-lismo só tinha em São Paulo e no Rio e ele não podia me custear no Sul. Fui para

Recife resignado, prestar vestibular para engenharia, como minha família queria. Mas eu não tinha condição de fazer enge-nharia, não dominava matemática, física e química. Resolvi fazer direito. Mas no dia em que saiu o resultado do vestibu-lar no jornal o que mais me interessou foi uma pequena notícia ao lado que di-zia que a Universidade Católica ia criar o curso de jornalismo. Não tive dúvida: deixei a comemoração dos vitoriosos do vestibular e fui à Católica perguntar onde era o curso de jornalismo. Lá estava um senhor que me atendeu, era o professor Luiz Beltrão [1918-1986]. Durante duas semanas estudei nas bibliotecas públicas de Recife, me preparei e passei também no vestibular de jornalismo. Enfim, resol-vi estudar direito e jornalismo. Naquele

momento a Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] es-tava se instalando e abrindo concurso para contratar pessoal. Fiz o concurso, passei e durante seis meses fiz um cur-so intensivo de oficial de administração dado pela Fundação Getúlio Vargas, com dois focos: economia nordestina e ges-tão nordestina. Os que tinham diploma universitário faziam o curso de técnico do desenvolvimento econômico, coor-denado por um ilustre baiano, Nailton Santos, irmão do geógrafo Milton Santos. E no final do intensivo tive o privilégio de ser destacado para trabalhar no gabi-nete do superintendente, Celso Furtado. Eu estudava direito pela manhã, entra-va na Sudene ao meio-dia e ficava até as

seis e ia para o curso de jornalismo. Era uma loucura.

Você conta uma história curiosa ligada ao jornalismo especializado ali. Sim. Quando me formei, fui trabalhar na divisão de divulgação e editoração da Sudene, onde fazíamos revistas, boletins, jornais. Eram cinco ou seis jornalistas. Com Luiz Beltrão, um excelente profes-sor, eu aprendera os fundamentos teó-ricos do jornalismo. E em dado período eu já tinha sido treinado para a prática diária em Recife, no jornal Última Hora, desmantelado em 1964. Ali aprendi jor-nalismo com Milton Coelho da Graça na base da pedagogia do grito. Antes, a certa altura, como tinha sido militante político, vinha da JUC [Juventude Uni-

versitária Católica], ligada à esquerda católica, e passei para a Juventude Comunista, ligada ao Partido Comunista, fui trabalhar com [o governa-dor] Miguel Arraes. Tornei--me chefe de gabinete de seu secretário de Educação, Ger-mano Coelho, quando estava no primeiro ano da faculdade ainda, com 20 anos. Depois fui trabalhar no Movimento de Cultura Popular e estava ali como diretor administra-tivo quando veio a debacle de 1964. Voltei para a Sudene e é aí que se dá esse caso que você lembrou: deparei com a tarefa de fazer uma reporta-gem sobre a economia nor-destina. Os economistas da Sudene a abominaram, ras-

garam e jogaram fora. No início fiquei muito abalado, mas depois refleti e vi que em parte tinham razão: não é possí-vel fazer bom jornalismo especializado, econômico ou científico, por exemplo, desconhecendo o conteúdo. Porque há que se situar entre aquele que produziu o conhecimento e aquele que não sabe sobre este conhecimento.

Quando decidiu mudar para São Paulo?Depois que superei problemas de prisão, IPM [Inquérito Policial Militar] etc., por-que fizera parte do governo Arraes, voltei para a faculdade e me formei. Naquele primeiro momento da ditadura, quem era da intelectualidade logo era solto, mas ficavam incomodando. Em todo in-

não é possível fazer bom jornalismo especializado desconhecendo o conteúdo

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quérito no Recife eu era envolvido, de tal maneira que não tinha condição de viver lá. Antes de me mudar para São Paulo tive a sorte de ganhar uma menção hon-rosa no Prêmio Esso, o que me deu certa notoriedade em Recife. Aí consegui uma bolsa de estudos da Unesco, respaldada por Luiz Beltrão, e fui fazer o curso de pós-graduação em jornalismo que havia no Ciespal [Centro Internacional de Es-tudios de Periodismo]. Fiquei seis meses em Quito, Equador.

Já em São Paulo, qual foi sua primeira atividade profissional?Cheguei em julho de 1966 e fui à luta. Fiz teste na Editora Abril e passei na revis-ta Realidade. Mas um amigo me sugeriu trabalhar em publicidade, na qual ganha-ria muito mais e terminei no Inese [Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômi-cos], com o dobro do salário que ganharia na Abril. Ocorre também que eu começara uma experiência docente em Per-nambuco quando Luiz Beltrão fora para a Universidade de Brasília [UnB] assumir a di-reção da Escola de Comuni-cação e me passou suas aulas. Por seis meses fui professor e gostei da experiência. Ao che-gar aqui, tomei conhecimento da criação da Escola de Co-municações Culturais da USP. Soube que estavam buscando professores e fui ao diretor, o professor Julio García More-jón, um espanhol, titular da cadeira de língua e literatura espanhola. Ele me entrevistou e sugeriu que me inscrevesse para o concurso.

Existia então uma oposição da Facul-dade de Filosofia e Ciências Humanas à criação da Escola de Comunicação?A Faculdade de Filosofia deveria ter re-cebido essa nova área do conhecimento, mas havia um grupo que não queria isso. Então, a mulher do reitor Luís Antonio da Gama e Silva, dona Edi Pimenta da Gama e Silva, convenceu o marido a criar a Escola de Comunicações Culturais. Ele criou uma comissão e chamou alguns pro-fessores da Faculdade de Filosofia para essa comissão que estruturou a escola. Dela fazia parte Morejón, então um jovem muito empreendedor, da ala favorável ao

jornalismo e integrante de um grupo ideo-logicamente não radical, que envolvia os professores Antonio Candido e Antônio Soares Amora, entre outros. Quem rejeita-va era sobretudo um pessoal conservador ligado à educação, como Roque Spencer Maciel de Barros e Laerte Ramos de Car-valho. Passei no primeiro concurso e fui contratado só algum tempo depois.

A essa altura, o conceito de comunica-ção se desenvolvia no Brasil.Não, isso só acontecerá nos anos 1970.

Um marco seriam os seminários de Wil-bur Schramm e Daniel Lerner, orga-nizados em 1970 pela UnB, com apoio da embaixada americana. Mas desde o final dos anos 1960 já se estudavam os

trabalhos de Marshall McLuhan, não?Não, McLuhan só chega em 1970, via Re-cife, com as primeiras leituras de Gilberto Freyre e Luiz Beltrão. Freyre, que vinha usando a imprensa como fonte de pes-quisa, leu e difundiu o primeiro livro de McLuhan, pouco conhecido no Brasil, The mechanical bride: folklore of indus-trial man, que igualmente se valia de jor-nais e revistas, considerado material de terceira classe, como fonte de estudos. E Luiz Beltrão leu e difundiu A galáxia de Gutemberg. Depois viria O meio é a men-sagem. Quem vai difundir McLuhan no Sul, como os nordestinos se referem ao Brasil abaixo do Rio de Janeiro, é Anísio Teixeira, que prefacia A galáxia de Gu-temberg, e Décio Pignatari, que traduz Os

meios de comunicação como extensões do homem, já no fim dos anos 1970.

Mas voltemos a seu trabalho na ECA. Minha ida à USP foi precedida pela en-trada na Cásper Líbero. Quando a ECA começou em 1967, começava também a famosa greve dos excedentes. Então recebi um convite da Cásper, que estava implantando a cadeira de teoria da co-municação, posteriormente fundamentos científicos da comunicação. Foi aí que propus ao diretor criar um Centro de Pesquisa da Comunicação Social.

Você tinha ali a noção clara de que tra-balhava por um novo campo de pesquisa. O fundador do campo de pesquisa em comunicação no Brasil é Luiz Beltrão,

em Recife. Ao criar em 1963 o Instituto de Ciência da In-formação, ele logo começou a desenvolver estudos dos meios de comunicação. Rea-lizei lá, sob orientação de-le, um trabalho de iniciação científica sobre o noticiário policial na imprensa nordes-tina, com análise de conteú-do, medições etc. Depois fiz a pós-graduação no Ciespal e fui aluno de Bruce Westley, Malcolm Maclean e Joffre Dumazedier. Já lera os tra-balhos de Wilbur Schramm e Daniel Lerner, autores funda-mentais para a comunicação. Tinha, portanto, essa noção do campo e da necessidade de expandi-lo. Acho importante sempre destacar que Beltrão

fez uma introdução importante no Recife e difundiu isso para o Brasil inteiro. Foi ele quem criou a primeira revista cientí-fica da área, Comunicações e Problemas. Então, crio o centro da Cásper Líbero e começo a desenvolver uma série de pes-quisas que repercutem mal na academia.

Por quê?Por preconceito em relação ao objeto. Formei várias equipes, por exemplo, uma que estudava o conteúdo das histórias em quadrinhos e perguntavam: “Mas histórias em quadrinhos? Só tem porca-ria...”. Fiz um grupo sobre o Diário de S. Paulo, pois estudamos todos os jornais em circulação. Mas a pesquisa que pior repercutiu foi sobre telenovelas.

Foi gilberto Freyre quem leu e difundiu no brasil o primeiro e pouco conhecido livro de Mcluhan

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Mas a linha de pesquisa de telenovelas logo se tornaria uma tradição na ECA.Não, isso só aconteceu nos anos 1990. Quando fui diretor da Escola, verifiquei que o curso de rádio e televisão ensinava tudo, menos telenovela, o principal pro-duto de exportação de nossa indústria cultural. Criei, por portaria, o Núcleo de Estudo de Telenovela, tentei obter recursos para ele em todas as fundações da USP e não consegui.

Em 1967, você fundou o centro da Cás-per. E quando passou a ensinar na USP?Em maio de 1967. Foram contratados três professores inicialmente para o jor-nalismo: Flávio Galvão, um jornalista de O Estado de S. Paulo, José Freitas Nobre, que era advogado, e eu, com a incumbên-cia de chefiar os dois, porque tinha uma pós-graduação e podia ficar em tempo inte-gral na USP. Foi aí que tive que fazer uma opção.

Entre a Cásper e a USP?Não, entre a riqueza e a po-breza. Ganhava muito bem no Inese e fui ganhar a me-tade na USP. Aí fiquei, pri-meiro, de 1967 a 1974. Até 1972 trabalhei implantando o Departamento de Jorna-lismo e Editoração e desen-volvi uma série de atividades, com pesquisa e profissiona-lização conjugadas. Mas o ano de 1972 marcou minha vida porque fui descoberto pelos serviços de inteligên-cia e, quando terminou a 4ª Semana de Estudos Jornalísticos, fui processado pelo decreto-lei 477 [versa-va sobre punições, inclusive expulsão de estudantes e demissão de professores e funcionários acusados de atividades sub-versivas na universidade]. O motivo do meu inquérito foi uma apostila que eu havia feito em 1968, chamada “Técnica do lide” e que circulara no país inteiro. Eu dava minhas aulas de jornalismo co-mo os professores americanos: lide, con-ceitos etc., depois vinha a parte prática, os alunos iam aos jornais investigar essas coisas. Uma dessas aulas do lide [lead, no original inglês, parágrafo de abertura de uma notícia que, classicamente, deve informar ao leitor o que, como, quando onde e porque aconteceu aquilo que é

o motivo daquele texto] foi dada no dia seguinte à morte do estudante Edson Luís [o primeiro estudante morto pela ditadura de 1964, em 28 de março de 1968], no Calabouço [o restaurante uni-versitário do Rio de Janeiro]. Os alunos fizeram a parte prática do lide em cima daqueles fatos do dia. Esse material en-trou na apostila que chegou até no ex-terior, coisa que eu desconhecia. Meu inquérito foi um negócio kafkiano. A pu-blicação logo foi tirada de circulação na ECA e eu fui condenado. A comissão que me processou aqui na USP, com o então reitor Miguel Reale, recomendou que eu fosse demitido e impedido de lecionar no país por cinco anos. Foi um episódio dramático, mas não acuso ninguém, fa-lo no Reale porque era ele a autoridade.

Havia um esquema montado na reitoria, os órgãos de segurança estavam lá den-tro. O processo correu o ano inteiro. A USP finalmente me condenou e enviou o processo para o Ministério da Edu-cação, porque o ministro tinha de ho-mologar o resultado. O ministro Jarbas Passarinho disse que não ia punir esse caso porque se via que o autor não era um terrorista e o decreto destinava-se a combater terroristas. Ele me absolveu, mas a estrutura da universidade não as-similou, criou uma reação. Fui proibido de sair do país, fui afastado da chefia do departamento e fiquei só como professor. Então decidi me dedicar inteiramente à minha tese de doutorado. Inscrevi a tese em dezembro de 1972, defendi em

fevereiro de 1973 e me tornei o primeiro doutor em jornalismo no Brasil, o que naturalmente virou notícia. Isso irritou profundamente as autoridades da USP e os serviços de segurança. A essa altura a ECA já estava sob intervenção militar, fora nomeado um interventor, Manuel Nunes Dias, que era agente da repressão e, quando minha banca foi designada, ele disse que queria entrar. A banca foi composta por meu orientador, Rolando Morel Pinto, Antônio Soares Amora, Ju-lio García Morejón, Virgílio Noya Pinto e este Nunes Dias, em relação ao qual eu não deveria reagir, por recomendação de meu orientador. Ele destroçou a tese. Basicamente dizia que eu estava citando marxistas e a bronca maior era com [o historiador] Nelson Werneck Sodré. No

final, todos me deram 10, me-nos o interventor. Mas a per-seguição na universidade era tanta que me aconselharam a sair do país. Pedi à FAPESP uma bolsa de pós-doutorado, obtive e fui para os Estados Unidos. Fiquei um ano lá.

E qual foi o seu foco?Como a pós-graduação no Brasil estava mudando, fui observar como funcionava a pós-graduação, em especial no jornalismo. Quando vol-tei, o relatório foi aprovado pela FAPESP. Mas a USP não queria nem saber, fui demiti-do. Só depois soube das cir-cunstâncias: o comandante do II Exército mandara uma instrução para a USP demitir

os comunistas mais notórios. Marile-na Chauí era a primeira da lista, depois vinha Paulo Emilio Salles Gomes. Fui demitido sumariamente, sem direito a indenização, sem qualquer explicação. E só voltei com a Anistia, em 1979.

Como você sobreviveu nesse período?Tive vários convites para sair do país , mas Silvia [sua mulher] não queria. Fui dar aula em outras faculdades, com mui-ta dificuldade porque os órgãos de segu-rança diziam sempre que eu não podia. A Igreja Metodista estava instalando uma faculdade de comunicação em São Paulo e um dos pastores que eu já co-nhecia de Recife me chamou para traba-lhar lá. Fui e três meses depois prepostos

Uma apostila com exercícios sobre o lide tratando da morte de Edson luís serviu de pretexto ao IPM

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PESQUISA FAPESP 201 | 31

dos órgãos de segurança foram fazer pressão sobre o reitor. Ele mandou que se colocassem dali para fora, porque ali era uma casa de Deus, onde trabalhava quem ele queria.

E quem era esse reitor valente?Chamava-se Benedito de Paula Bitten-court, era membro do Conselho Federal de Educação. Ele mandou me chamar e me tranquilizou. Eu prometi levar para ele os dois livros que tinha escrito, pe-di que lesse e lhe assegurei que pediria demissão se ele achasse que tinha algo comprometedor. Dois meses depois ele me chamou e disse que não havia proble-ma nenhum, eu apenas não deveria fazer proselitismo em sala de aula. Foi então na Metodista que sobrevivi, pude traba-lhar e, em seguida, instalei a pós-graduação. Montei um corpo docente com um pes-soal que vinha do exterior, acolhi professores como Fer-nando Perrone, que estava exilado na França, Paulo Jo-sé, exilado no Canadá, e logo a pós da Metodista foi consi-derada curso top pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoa-mento de Pessoal de Nível Superior]. Ficou reconhecido no país inteiro. Criei a revis-ta Comunicação e Sociedade, mais ou menos uma sucesso-ra da revista do Beltrão, que circulou de 1967 até, se não me engano, fins de 1970. Mas teve outras publicações da área. A ECA mesmo tinha a Revista da Escola de Comuni-cações Culturais, o Jornal do Brasil tinha os Cadernos de Jornalismo.

Como você conciliou suas várias frentes de trabalho nessa fase? Fiz um grande malabarismo. As primei-ras pesquisas feitas na Cásper publiquei no livro Comunicação social – Teoria e pesquisa, o primeiro best-seller da comu-nicação no Brasil. Cheguei a vender 20 mil exemplares, seis edições sucessivas, e isso só não prosseguiu porque depois de algum tempo a parte empírica das pesquisas estava defasada e eu pedi pa-ra suspender. Fiquei de reescrever, mas nunca reescrevi nenhum livro. Escrevi mais de 20 livros, perdi a conta, e tem uns 70 que organizei ou coordenei.

Você foi carregando sua experiência de uma instituição para outra, não? Sim, trouxe de Recife para a USP, por exemplo, toda a experimentação com jornais que Beltrão fazia, mas com uma vantagem: a riqueza. Aqui era possível ter o jornal-laboratório, em vez do jor-nal-cobaia, dissecando os jornais exis-tentes e fazendo uma proposta sobre como fazê-los melhor. Aliás, a primeira tarefa que recebi de Morejón foi exata-mente instalar um jornal-laboratório. Apresentei um projeto, montei a estru-tura e começamos a importar o equipa-mento. Enquanto a oficina gráfica não chegava, usávamos serviços particulares, não dava para editar nada em outras ins-tituições da USP por causa da censura. Nossa primeira experiência prática foi

sugestão de Freitas Nobre: fizemos um Seminário Internacional sobre Pesquisa em Rádio e Televisão, em maio de 1968 e convidamos algumas personalidades para vir falar sobre a pesquisa em mídia, entre elas Edgar Morin, Roberto Rosseli-ni e Andres Guevara. Só que esquecemos de fazer o timming com o movimento de maio de 1968. Quando essa turma chegou na ECA, os alunos não a deixaram entrar. Estavam em greve, ocupando o prédio da escola. A Unesco tinha investido muito, o Itamaraty também e ficamos naquele impasse. Mas Lupe Cotrim, que era mui-to querida entre os estudantes, decidiu ir se entender com eles. Argumentou que não se tratava de aula, que teriam a opor-tunidade de ouvir discursos alternativos

e até poderiam montar uma agência de notícias. Então, a primeira experiência laboratorial da ECA foi a agência uni-versitária de notícias. Os alunos faziam a cobertura do seminário e elaboravam um boletim diário que ia para a imprensa do Brasil inteiro.

E as experiências de pesquisa na USP? Criei um Centro de Pesquisa em Jornalis-mo para analisar o jornalismo em geral, jornais de bairro etc. A grande dificuldade que tínhamos originalmente era a falta de um corpo docente em tempo integral, os jornalistas não queriam se dedicar somen-te a ensino e pesquisa. Mas pouco a pouco fomos formando uma geração voltada a ensino, pesquisa e extensão. Nesta última, por exemplo, tínhamos contratado dois

professores, o de diagramação e o de fotojornalismo. O pri-meiro era Hélcio Deslandes, grande capista, arquiteto e ar-tista plástico que vinha da área de publicidade. Ele ensinava os alunos a fazerem uma dia-gramação sintonizada com as melhores tendências da época, e quem olhar os jornais-labo-ratório da ECA no período ve-rá coisas belíssimas.

E o de fotojornalismo?Era Thomaz Farkas, formado engenheiro eletrônico na Poli, mas fotógrafo apaixonado por cinema, dono da Fototica. Ele dava aula mandando os alu-nos, primeiro, irem à feira de Pinheiros ou a algum outro lu-gar fotografar e, na volta, dava

as aulas teóricas – o que era muito mal visto na época. Queriam que eu cortasse seu ponto. Até que Farkas desapareceu. Tinha sido preso. Eu, chefe de departa-mento, tinha que dar um atestado infor-mando que ele não havia comparecido ao trabalho. Mas mostrei o ponto assinado, porque fizemos um rodízio de professores e cada dia um dava aula no lugar dele. E foi assim até que o Farkas foi solto. Além de professor, ele foi um benemérito da ECA. Deu de presente o “projeto” do laboratório, cuja aquisição foi feita pela universidade, cabendo-lhe também a implantação desse tipo de iniciativa. No final, fomos cinco professores cassados no Departamento de Jornalismo: Freitas Nobre, Farkas, Jair Borin, Sinval Medina e eu.

A revista Comunicação e Sociedade sucedeu a publicação criada por luiz beltrão

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32 | noVembro De 2012

Quando você voltou para a ECA?Voltei em 1979, com a Lei da Anistia. O departamento estava destruído. O último dos nossos professores a ser vitimado foi Vladimir Herzog, contratado havia pou-co para dar telejornalismo, quando foi morto. Nosso retorno não foi tranquilo. O corpo docente foi mudado durante o mandato de Manuel Nunes Dias e, se não fosse o movimento de alguns professo-res pela volta dos cassados, não teríamos retornado. [José] Goldemberg já era o reitor e nos recontratou. Mas como no Diário Oficial só se publicara que nosso contrato tinha sido encerrado, não que fôramos cassados, tive que fazer de no-vo toda a carreira. Alguns anos depois recuperei o salário de professor titular. Fiquei até 1993, quando me aposentei. Minha trajetória nesse pe-ríodo foi, acima de tudo, re-construir o Departamento de Jornalismo. Também repeti as “semanas de jornalismo” e a primeira foi sobre Marx e o jornalismo, pauta dos es-tudantes. Lembro que na pri-meira Semana de Jornalismo, em 1969, debatemos sensa-cionalismo e foi um grande mal-estar tratar desse tema na USP. Levamos Romão Go-mes Portão, editor do Última Hora, um editor do Notícias Populares, Talma de Oliveira, que dramatizava notícias no rádio e assim por diante. Mas também levamos Alberto Di-nes e um ainda desconhecido frei Evaristo, frade francis-cano que trabalhava no Ca-randiru, com a Pastoral Carcerária. No último dia iam falar da visão ética do jor-nalismo sensacionalista, chegaram todos os convidados, menos o frei. Decidimos dar início sem ele, mas aí da plateia o frei levantou a mão, apresentando-se: Paulo Evaristo Arns. Ele já era bispo auxiliar de São Paulo e eu não sabia. Dois meses depois foi nomeado arcebispo e cardeal. Foi depois desta “semana” que circulou pela primeira vez o Jornal do Campus.

E o Jornal do Campus permaneceu até quando?Até quando publicou uma matéria sob o título “Os marajás da USP”. Bernardo Kucinski assumira a chefia de redação, descobriu a folha de pagamento do pes-

soal que tinha duplo salário, publicou e causou a maior celeuma. Chamaram--me na reitoria e avisaram que iam ti-rar o subsídio do jornal. A universidade criou o Jornal da USP para substitui-lo. Na ocasião até banquei, porque era chefe de departamento e tenho que defender a liberdade de imprensa. Mas hoje, olhan-do bem, sei que se tivessem pesquisado mais teriam visto que não era ilegal. Era o chamado adicional noturno. Todos que davam aula num só turno e passaram a dá-las à noite tiveram o salário dobrado.

Quando você voltou à Metodista?Depois de me aposentar recebi um con-vite para montar a Cátedra Unesco no Brasil. A Metodista já me convidara para implantar o doutorado. Então fui para

implantar o doutorado em comunica-ção e levei a cátedra. Dediquei-me a is-so desde então. Quero me aposentar no próximo ano, quando completo 70 anos e quero ter tempo livre para escrever.

Que balanço você faz da pesquisa em comunicação no Brasil hoje?Na verdade, sou muito crítico. É um cam-po que cresceu muito, em 2013 vamos completar 50 anos de atuação e já somos o segundo país em número de pesqui-sas – à nossa frente só estão os Estados Unidos, que têm uma tradição de 100 anos. Temos recursos, temos 250 mil estudantes, 25 mil professores e muitos doutores. Nossa presença nos congressos internacionais é marcante, somos o se-

gundo no ranking de papers selecionados para o principal evento internacional de nossa área, a International Association for Media and Communication Research (IAMCR), mas a pesquisa brasileira não consegue deslanchar no sentido de lide-rança. Por quê? A primeira razão é não termos autoestima intelectual. O campo ainda não tem identidade própria, traba-lha com objetos cada vez mais perto de uma identidade, mas falta assumir isso. E são poucos os pesquisadores brasilei-ros que se preocupam com essa questão, como Muniz Sodré e Maria Immacolata Vassalo Lopes. Comunicação não é uma área autônoma de pesquisa. Como todas as ciências aplicadas, ela incorpora con-tribuições que vêm das demais ciências, das exatas e das humanas.

Há quem defenda, como Mu-niz Sodré, que o objeto dessa ciência, digamos assim, é a relação comunicacional.Há várias teorias sobre isso e eu entendo que o objeto é um pouco mais amplo que a mera relação. O campo tem, insti-tucionalmente, duas divisões: a comunicação interpessoal, que vem da retórica, da psi-cologia, do comportamento, da educação; e a comunicação de massa, que tem uma tradi-ção basicamente jornalística, depois se amplia para a publi-cidade e as relações públicas. Nos Estados Unidos o campo é bifurcado: tem a Associação para a Educação em Jornalis-mo e Comunicação de Massa e

a Associação Norte-americana de Comu-nicação, que envolve retórica, linguagens, comunicação interpessoal, argumentação...

O esforço que grupos como o da Univer-sidade Federal da Bahia (UFBA) fazem para articular comunicação e cultura também é uma busca de identidade? Temos várias maneiras de criar iden-tidade que não pelo objeto. Os estudos de cultura procuram se desvencilhar do objeto comunicação de massa em busca de algo um pouco mais nobre.

Mas a parca autoestima que você atri-bui aos pesquisadores da comunicação decorre dessa dúvida sobre objeto ou do escasso reconhecimento acadêmico?

os jornalistas não queriam se dedicar em tempo integral a ensino e pesquisa

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PESQUISA FAPESP 201 | 33

Penso que do pequeno reconhecimen-to acadêmico. Meu diagnóstico é que a comunicação continua sendo o primo pobre das humanidades e das ciências sociais aplicadas aqui no Brasil porque temos sempre uma associação desquali-ficando a outra, quando devíamos estar unidos, brigando por recursos para todo o campo, e não para segmentos.

Mas, para além dos problemas institu-cionais, há profundas divisões teóricas.Acho que o problema é mais taxionômico do que teórico. Não há muito avanço no Brasil em teoria da comunicação.

Vários programas de pós quase se invia-bilizaram por insuficiência de pontua-ção na Capes. Como isso está?Esse problema ainda não es-tá resolvido, tanto que a área de comunicação não tem in-terface internacional. Houve, em minha maneira de ver, uma tentativa das regiões emergen-tes, lideradas pela Bahia, de assumir uma posição de lide-rança nacional em contraposi-ção aos dois maiores polos de pesquisa, São Paulo e Rio de Janeiro. O pessoal da Bahia é muito sério, tem gente muito boa, mas faltou compreensão histórica para o problema. A ECA e a ECO [Escola de Co-municações] foram escolas que formaram quase toda a geração de pesquisadores de comunicação em atuação no país, mas foram se agigantan-do e perdendo as característi-cas que correspondem às exigências das agências de fomento. Quando fui diretor da ECA, empreendi um movimento de desconcentração da pós-graduação, que ti-nha então mil alunos. Baixamos o número para selecionar mais, procuramos subdivi-dir essa pós-graduação em vários progra-mas, mas infelizmente isso não prosperou. Agora está começando a voltar o projeto que estabelecemos no começo dos anos 1990, quando implantamos pós-graduação em cinema, em biblioteconomia, de modo semelhante ao que se tinha nas artes, em que teatro, artes plásticas e música eram e são projetos separados, cada um com sua identidade. Mas só uma reorganização nesses moldes pode prosperar, porque comunicação é tudo e não é nada.

Afora os brasileiros que você já citou ao longo da entrevista, quem são os teóri-cos da comunicação de sua preferência?Não sei se posso falar em predileção, porque tenho sempre a ambição de ter independência filosófica. Meus auto-res preferidos nesses anos todos têm sido Raymond Nixon e Fernand Ter-rou. Alguns companheiros de geração com quem tive muita afinidade foram Herbert Schiller e George Gerbner, nos Estados Unidos, e, entre os franceses, Bernard Miege.

E como são suas relações com Barbero?São boas relações, mas não tão íntimas. Sou muito avesso a culto às personalida-des. Acho que Barbero é um pesquisador de grande valor, mas cultuado a ponto de

ele próprio se sentir mal em relação a is-so. Tenho promovido na Cátedra Unesco uma série de seminários para projetar o pensamento latino-americano. Comecei com Luis Ramiro Beltrán, que é o pai das políticas nacionais de comunicação, depois Jesús Martin-Barbero, com a teo-ria das mediações, Eliseo Verón... Tenho trazido todas essas pessoas porque acho que os jovens precisam conhecer as dife-rentes tendências de um campo.

Como é a relação entre suas visões da comunicação em geral e o campo do jornalismo científico?A comunicação só tem sentido quan-do serve para construir alguma coisa. Então jornalismo é fundamental para

devemos assumir que o campo da comunicação ainda não tem identidade própria

compreender o que acontece no mun-do contemporâneo e o que ocorre ao redor do ser humano, na comunidade e na sociedade. O jornalismo científico em particular é um campo fundamental por-que é um campo da democratização do conhecimento. É onde o jornalismo se põe como uma forma de conhecimento.

Qual foi sua maior contribuição ao campo da comunicação no Brasil?Aquilo a que venho me dedicando há quase 50 anos, com muita atenção, são os gêneros jornalísticos. Tenho uma pro-posta de classificação dos gêneros no país em cinco vertentes: informativo, opinativo, interpretativo, utilitário ou de serviços e o diversional, que, equivo-cadamente em minha opinião, chamam

de jornalismo literário. Vive-mos numa sociedade onde o hedonismo predomina e os jornalistas precisam fazer algum tipo de matéria que seja mais atraente para o ci-dadão comum, que não se-jam só os fatos do cotidiano, daí o jornalismo diversional. Meu texto mais antigo nes-se sentido é minha tese de livre-docência na USP, ini-cialmente publicada como Opinião no jornalismo bra-sileiro, depois republicada com algumas alterações, co-mo Jornalismo opinativo, no qual basicamente estudei só os textos opinativos. E estou escrevendo um livro, que não sei se vou concluir, sobre os gêneros jornalísticos no Bra-

sil. É uma tarefa hercúlea, fiz só 30% e precisaria agora parar para pesquisar. Eu quero partir de Hipólito da Costa e chegar ao jornalismo de hoje. Quero pas-sar pela imprensa do século XIX quan-do ela começa a se tornar empresarial à imprensa do século XX, já industrial, e chegar à imprensa de hoje.

Esse livro carrega, então, a ambição da grande história do jornalismo no Brasil.Quando entreguei meu projeto de tempo integral na USP, apresentei meu proje-to de desenvolvimento do jornalismo no Brasil. E minha tese de doutorado já era sobre as razões pelas quais a imprensa se retardou no Brasil. Venho trabalhando nisso há anos. n

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34 z noVembro De 2012

conhecimento

livreIniciativa do Reino Unido vai mostrar

até que ponto é viável oferecer toda

a produção científica na internet

PolítIcA c&t ACESSO ABERTO y

Fabrício Marques

Número de publicações no Diretório de Revistas de Acesso Aberto (Doaj)

Número de publicações

A escalada das revistas gratuitas

8.000

6.000

4.000

2.000

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Impactos da internet na ciência

2001 é deflagrada a Iniciativa de Acesso Aberto de Budapeste, campanha mundial que propôs o acesso aberto a todas as novas publicações científicas revisadas por pares

1999 é rebatizado de arXiv o mais popular arquivo de preprints de artigos científicos criado em 1991. Hoje reúne 745 mil textos em matemática, física e computação, entre outros

1997 A FAPESP lança o programa SciELO. A iniciativa hoje disponibiliza 239 publicações e gera 36 milhões de artigos baixados por mês gratuitamente

1996 A Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos cria o Medline, o mais abrangente índice de literatura médica do planeta, disponível de graça na web

2003 é lançada a PLoS Biology, primeira das sete publicações mantidas pela Public Library of Science (PLoS), organização criada para estimular o acesso aberto

2004 O google lança o google Scholar, ferramenta que permite pesquisar artigos científicos, trabalhos acadêmicos e publicações de universidades

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PESQUISA FAPESP 201 z 35

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Pesquisadores de várias áreas do conhecimento, bibliotecários e especialistas em ciência da infor-mação reuniram-se no final de outubro em eventos realizados em mais de uma centena de países para discutir os rumos do acesso aberto, expressão que

engloba um conjunto de estratégias para difundir a produ-ção científica de forma livre e gratuita por meio da internet. As discussões da 6ª Semana do Acesso Aberto, iniciativa de uma aliança internacional de bibliotecas universitárias, abor-daram temas como a influência das plataformas digitais no modo de fazer ciência, mas também foram marcadas por um avanço alcançado recentemente. Em julho, um anúncio fei-to pelo governo do Reino Unido estabeleceu que, a partir de 2014, todos os artigos científicos que resultarem de pesquisa financiada com recursos públicos deverão estar disponíveis gratuitamente em meios eletrônicos. Significa dizer que nin-guém terá de pagar para ter acesso a papers de pesquisadores britânicos financiados por agências governamentais.

A iniciativa do Reino Unido é um marco pela magnitude da produção científica do país: quase 8% de todos os artigos pu-blicados no mundo por ano, segundo a base de dados Thomson Reuters. A experiência poderá alterar padrões internacionais para o acesso aberto, que hoje é dividido em duas vertentes principais. Uma delas é a chamada “via dourada” (golden road), em que as próprias revistas oferecem o acesso gratuito a seu

RANkING DOS PAÍSES

Número de revistas com acesso aberto em 2012

fONtE DoAJ / oUtUbro De 2012

Estados unidos 1.260

Brasil 782

Reino unido 573

Índia 446

Espanha 423

Egito 340

Alemanha 256

Canadá 247

Romênia 241

Itália 223

turquia 203

Colômbia 191

frança 165

Irã 159

Polônia 1411993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

2012 Reino Unido anuncia que todos os papers vinculados a pesquisas financiadas com verba pública serão disponibilizados gratuitamente a partir de 2014

2008 Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) estabelecem que a base de dados PubMed deve receber cópias de todos artigos ligados a pesquisas financiadas pela agência

fONtEs tHe DeVelopment oF open AcceSS JoUrnAl pUbliSHing From 1993 to 2009. ploS one (2011)/ DoAJ

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36 z noVembro De 2012

cações divulgam tanto artigos em acesso aberto, num esquema típico da via dourada, como papers no modelo convencional, exigindo dos leitores o pagamento de taxas ou assinaturas.

Atualmente, mais de 20% dos resultados de pesquisa no mundo são publicados em regime de acesso aberto – no Reino Unido esse quinhão chega a 35%. O padrão da via verde é mais co-mum: com exceção da área médica, há mais arti-gos disponíveis em repositórios do que em revis-tas de acesso aberto (ver quadro na página 38). A iniciativa do Reino Unido pode, contudo, mudar essa tendência. O Comitê Finch, que propôs es-tratégias para a comunicação científica britâni-ca, sugeriu prioridade na adoção da via dourada, pagando mais para que as revistas divulguem os artigos em acesso aberto. Com isso, os repositó-rios institucionais da via verde, que são bastante usados pelos pesquisadores britânicos, poderiam enfraquecer seu papel de divulgadores da ciência publicada em revistas comerciais.

Acesso livre logo após a publicação

Acesso livre após embargo de seis meses

Acesso livre após embargo de 12 meses

Acesso livre para alguns artigos, mas não todos (modelo híbrido)

Assinaturas e outras formas de pagamento são exigidas para a leitura

Diferentes modelos convivem na comunicação científica

os níveis de abertura

Autor detém direitos autorais, sem restrições

Autor detém direitos autorais, com algumas restrições na reutilização da versão publicada

Autor detém direitos autorais, com várias restrições na reutilização da versão publicada

O editor detém os direitos, com algumas concessões para o autor

O editor detém os direitos com exclusividade

Autor pode divulgar qualquer versão para qualquer repositório ou site

Autor pode divulgar a versão final do manuscrito para qualquer repositório ou site

Autor pode divulgar a versão final apenas para certos repositórios ou sites

Autor pode divulgar apenas o rascunho da versão final para certos repositórios ou sites

Autor não pode depositar nenhuma versão do trabalho em repositórios

As revistas disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios de sua confiança

As revistas disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios de sua confiança após seis meses

As revistas disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios de sua confiança após 12 meses

As revistas não disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios

As revistas não permitem a divulgação de artigos repositórios

direitos do leitor direitos autorais direitos de divulgação divulgação automática

conteúdo. São típicas dessa estratégia as revistas da Public Library of Science (PLoS) ou a coleção de periódicos da biblioteca SciELO Brasil, um programa financiado pela FAPESP. A segunda vertente é conhecida como “via verde” (green road). Nessa modalidade, o pesquisador arquiva no banco de dados de sua instituição uma cópia de seus artigos científicos publicados numa re-vista comercial. Quem quiser ler o artigo sem pagar pode recorrer a esses repositórios. Sur-giram outras variantes. Algumas publicações permitem que os autores depositem cópias de seus artigos em repositórios, mas exigem que a divulgação só seja feita de seis meses a um ano após a publicação, para preservar seus ganhos nesse período inicial. Outras abrem mão do em-bargo e divulgam artigos na internet até mesmo antes da publicação da revista em papel – mas cobram uma taxa adicional do autor para fazer a divulgação livre e antecipada. O modelo foi batizado de acesso aberto híbrido, pois as publi-

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PESQUISA FAPESP 201 z 37

aconteceu em fevereiro. A editora Elsevier, que publica mais de 2 mil periódicos, foi criticada por apoiar um projeto no Senado norte-americano que buscava reverter a política criada em 2008 pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) pela qual toda pesquisa apoiada pela instituição pas-sou a ser oferecida em acesso aberto. Cientistas de prestígio, entre os quais três matemáticos ga-nhadores da Medalha Fields, convocaram um boi-cote às revistas da editora, que acabou recuando do apoio ao projeto. “Ouvimos preocupações de autores, editores e revisores segundo as quais o projeto de lei era inconsistente com o nosso tra-dicional apoio à expansão do acesso à literatura científica de forma gratuita ou de baixo custo”, informou a editora. A Elsevier ainda anunciou a redução do preço do download dos artigos de matemática de cerca de R$ 45 para R$ 19 cada.

O presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Gui-marães, acredita que negociações com as editoras podem, de fato, re-duzir os custos para ter acesso às revistas. “Temos feito isso no por-tal de Periódicos da Capes e vem funcionando”, diz, referindo-se à base de dados que reúne o acervo, com textos completos, de mais de 33 mil periódicos internacionais de todas as áreas do conhecimento. Pa-ra acessá-la, é preciso ser pesquisa-dor ou professor de uma instituição cadastrada na Capes. “Há 10 anos, o acesso a 1.800 revistas consumia quase 10% do nosso orçamento. Ho-je são 33 mil revistas, que utilizam 4,2% do orçamento”, afirma. “É uma iniciativa tão consolidada que pesquisadores brasileiros fazendo estágio nos Estados Unidos ou na Eu-ropa preferem usar o portal da Capes aos por-tais das instituições que os recebem, porque lá o acesso aos periódicos não é tão completo”, afir-ma. Guimarães, porém, é cético em relação aos desdobramentos da iniciativa do Reino Unido. “Os britânicos precisam fazer experiências com esse modelo antes de implantá-lo. Uma imposi-ção do acesso aberto poderia fazer com que os britânicos deixassem de publicar em revistas de alto impacto como a Nature, e eles certamente não querem isso”, afirma. Segundo Guimarães, a expansão do acesso aberto vai impor custos adi-cionais. “Não adianta apenas estabelecer o acesso livre sem pensar em outros componentes. Se não puderem cobrar pelo acesso a revistas, as bases de dados passarão a cobrar, por exemplo, para fazer a busca dos artigos em suas ferramentas. E essas ferramentas são essenciais para qualquer

Embora os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK) tenham afirmado que não vão abandonar os repositórios, a expectativa é de que as editoras apostem fortemente num modelo hí-brido para os artigos britânicos. “As revistas cer-tamente vão ampliar a duração do embargo para divulgação de artigos em repositórios e, assim, forçar os autores a pagarem mais para publicar em acesso aberto”, disse Stevan Harnad, pesqui-sador húngaro radicado no Canadá, que é editor de revistas científicas e ativista do movimento do acesso aberto. Se esse caminho de fato vin-gar, exigirá mais investimentos de autores e de suas instituições para publicar seus artigos, pro-duzindo um efeito contrário ao proposto pelo acesso aberto, que busca simplificar e baratear a difusão da produção científica com a ajuda dos meios digitais. Segundo o relatório do Comitê Finch, a estratégia da via dourada vai demandar investimentos adicionais entre £ 40 milhões e £ 50 milhões por ano, dos quais £ 38 milhões seriam destinados ao pagamento de taxas de publicação em acesso aberto. “Fazer uma transição para a via dourada vai gerar mais gastos que deveriam ser evitados”, afirmou Peter Suber, diretor do Progra-ma de Acesso Aberto da Universidade Harvard e pesquisador da Sparc, aliança de bibliotecas que coordenou a 6ª Semana do Acesso Aberto.

para Rogério Meneghini, coordenador cien-tífico da biblioteca SciELO Brasil, os pró-ximos passos desse embate forçosamente

abordarão o patamar de lucros das grandes edito-ras. “As editoras fazem um trabalho benfeito que exige investimentos tanto em tecnologia como na avaliação por pares e precisa ser rentável. Mas os lucros dessas empresas, na casa dos 30% a 40%, são desproporcionais”, afirma. “Tem agora de ha-ver uma negociação para definir quem vai pagar a conta e garantir que os custos, necessários para manter a qualidade das publicações, sejam assimi-láveis pelas universidades e os autores”, explica. Um round do embate entre editoras e cientistas

35% dos resultados de pesquisa no reino Unido são publicados em regime de acesso aberto

A implantação

do acesso aberto no reino Unido

vai demandar investimentos

adicionais de até £ 50 milhões

por ano

Page 38: As negociações do império

38 z noVembro De 2012

acesso aberto. O fator de impacto da PLoS One, por exemplo, é de 4 – significa dizer que seus artigos são citados, em média, quatro vezes cada um em outras publicações. Quando um artigo científico é aceito nos periódicos da PLoS, o autor precisa desembolsar US$ 1.350. Depois disso, os textos ficam com acesso livre para cientistas e não cien-tistas. Já quando o paper é publicado numa revista tradicional de uma grande editora, o custo médio para o autor é de US$ 2 mil por artigo. Mas os lei-tores também pagam para ter acesso, por meio de assinaturas das publicações ou da aquisição de um cópia do artigo desejado. Nos últimos anos, grandes universidades também se empenharam em disponibilizar seu conhecimento na rede. O Massachusetts Institute of Technology lançou o MIT OpenCourseWare, iniciativa para colocar on-line todo o material educacional de seus cur-sos. A plataforma hoje tem 1 milhão de visitantes por mês. A Universidade Harvard estabeleceu em 2008 uma política para divulgar os trabalhos de seus pesquisadores na internet, criando um re-positório de acesso livre.

Há um conjunto de dados que atestam a expansão do acesso aberto. O número de revistas nesse regime teve uma forte ex-

pansão na década passada. Dados do Diretório de Revistas de Acesso Aberto (Doaj, na sigla em inglês) mostram que a quantidade de publicações cadastradas saltou de 741 em 2000 para 8.282 em 2012. A adesão ao acesso aberto entre os di-versos campos do conhecimento não é uniforme (ver quadro nesta página). Um estudo publica-do em 2010 na revista PLoS One, que analisou uma amostra de artigos científicos, revelou que os pesquisadores da área de química são os que menos recorrem ao acesso aberto (13% do total de artigos), enquanto os das ciências da Terra são os que mais publicam (33%). O número de repositórios de instituições no mundo saltou de 250 em 2003 para 2.300 no ano passado. “Os avanços, contudo, ainda não tiveram fôlego pa-ra colocar em xeque o modelo de comunicação científica tradicional. Persiste uma forte deman-da dos pesquisadores, principalmente os de nível mais elevado, para publicar em revistas de alto impacto vinculadas a grandes editoras”, diz Ro-gério Meneghini, da SciELO.

O Brasil é o segundo do ranking de países que mais dispõem de revistas de acesso aberto, com 782 publicações contabilizadas pelo Doaj. Só perde para os Estados Unidos, com 1.260. “A trajetória do Brasil é única no mundo”, diz Pablo Ortellado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e membro do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da universidade. “Graças à criação da biblioteca SciELO Brasil, a estratégia do Brasil é apontada como uma espécie de ‘via

Total de acesso aberto 20,4% divididos em:

o perfil do acesso aberto em cada disciplina – em %

AS DUAS ESTRATégIAS PRINCIPAIS DE ACESSO ABERTO

Estudo com uma amostra de 1.837 artigos mostrou o alcance do acesso aberto

8,5%

11,9%

Publicação convencional

79,6%

Medicina

Bioquímica, genética molecular e biologia

Outras áreas da medicina

Matemática

Ciências da Terra

Ciências sociais

química e engenharia química

Engenharias

Física e astronomia

13,97,8

10,6

13,76,2

fONtE open AcceSS to tHe ScientiFic JoUrnAl literAtUre: SitUAtion 2009. ploS one

pesquisador acompanhar o que está acontecendo em sua área”, diz o presidente da Capes.

Não é de hoje que cientistas defendem a ideia de que o conhecimento precisa ser difundido de forma livre para que a sociedade possa apropriar--se dele. Mas o acesso aberto começou de fato a frutificar a partir dos anos 1990 com o advento da internet e sua capacidade de distribuir informa-ção com custo baixo. A rede mundial de compu-tadores propiciou a eclosão de iniciativas como o repositório arXiv, criado em 1991, por meio do qual pesquisadores divulgam dados de seus es-tudos, submetendo-os à análise de colegas antes que sejam publicados. Hoje o arXiv reúne quase 800 mil textos nos campos da matemática, física, ciências da computação, biologia quantitativa e estatística que podem ser acessados via internet. Dados gerados pelo acelerador de partículas do Cern, por exemplo, foram lançados primeiro no arXiv, que se consagrou como uma ferramen-ta de compartilhamento de informações entre os especialistas em física de altas energias. Nos anos 2000 novas iniciativas tentaram organizar o caminho do acesso aberto. A Public Library of Science (PLoS), uma organização sem fins lucra-tivos voltada para estimular a criação de revistas científicas com acesso aberto, lançou em 2003 a PLoS Biology, a primeira das sete publicações mantidas pela instituição. O conjunto de revistas é visto como um exemplo bem-sucedido de pu-blicações com acesso aberto, pelo valor modesto que cobra dos autores e por alcançar um fator de impacto superior ao da maioria das revistas de

As revistas tornam os seus artigos (todos ou uma parte deles) livremente acessíveis no momento da publicação

São os autores que tornam acessíveis os seus artigos, depositando uma cópia num repositório institucional ou temático

36 milhões de artigos da coleção Scielo são baixados a cada mês de forma gratuita

4,6

8,117,5

7,025,9

5,617,9

5,57,4

4,813,6

3,020,5

vIA doUrAdA

vIA vErdE

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PESQUISA FAPESP 201 z 39

diamante’, pois sustenta um conjunto de revistas em acesso aberto com investimentos públicos e, na maioria das vezes, não cobra nada dos autores para publicar. Temos uma política de acesso aberto muito bem-sucedida”, diz o pesquisador.

lançada em 1997 como um programa especial da FAPESP, a Scientific Electronic Library Online (SciELO) alcançou, no final de 2011,

239 publicações de todos os campos do conhe-cimento que geraram uma média mensal de 36 milhões de artigos baixados da internet de forma livre e gratuita – 1,2 milhão por dia. Os periódicos só são admitidos na coleção depois de passarem por crivos que atestam sua qualidade, como a existência de um corpo editorial qualificado, a relevância em seu campo do conhecimento, a assiduidade da publicação e o cumprimento de uma série de normas técnicas que regem a co-municação científica internacional. Graças a esse aumento de qualidade, mais periódicos brasilei-ros puderam ser incorporados nos últimos cinco anos a bases de dados internacionais, como a Web of Science (WoS), da Thomson Reuters, e a Sco-pus, da Elsevier. Em julho passado, a FAPESP e a divisão de propriedade intelectual e ciência da Thomson Reuters anunciaram um acordo para integrar a coleção SciELO à Web of Knowledge, a mais abrangente base internacional de infor-mações científicas. A hospedagem das revistas da SciELO na base busca ampliar a visibilidade e o acesso à produção científica do Brasil e de outros países da América Latina e Caribe, além da África do Sul, Espanha e Portugal.

Pablo Ortellado aponta, porém, um paradoxo na situação brasileira. “O impacto da política de acesso aberto é pequeno em áreas de pesquisa muito internacionalizadas, como física ou biologia molecular, porque seus autores buscam publicar em revistas internacionais de alto prestígio, e não nos periódicos brasileiros”, diz o pesquisador. Pa-ra ele, novas estratégias no campo da via verde, a dos repositórios institucionais, são necessárias no país. “A USP começou a organizar um reposi-

tório com todas as teses e artigos de seus pesquisadores, mas não há mui-tos exemplos desse tipo no Brasil”, afirma. Um projeto de lei do sena-dor Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) propõe que as instituições públicas de educação superior e as unidades de pesquisa criem repositórios para abrigar a produção científica apoiada com recur-sos públicos. Monografias, teses, dissertações e artigos ficariam disponíveis na internet para aces-so livre. O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) promoveu a criação de 50 repositórios instituicionais no país, além de contribuir com o desenvolvimento de mais de 700 revistas científicas eletrônicas, por meio do uso do Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER). Para integrar essas iniciativas, o Ibict vem desenvolvendo o portal OASISBR, que integrará o conteúdo de repositórios digitais, da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações, do SciELO e de revistas científicas eletrônicas brasileiras. A ideia é integrar também repositó-rios estrangeiros. “Os repositórios institucionais ajudam a acelerar a pesquisa em termos globais”, diz Helio Kuramoto, tecnologista sênior do Ibict. “Os artigos depositados em repositórios têm mais chance de serem citados e com mais rapidez do que quando disponibilizados apenas pelas revis-tas científicas. Portanto, ganham maior visibili-dade. E há casos de teses que tiveram milhares de downloads, o que seria inalcançável sem os repositórios“, afirma. n

O CRESCIMENTO DOS REPOSITóRIOS

Bases de dados institucionais no mundo

1991 1993 1995 1097 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011

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fONtE regiStry oF open AcceSS repoSitorieS

é forte a demanda dos

pesquisadores, principalmente

os de nível mais alto, para

publicar em revistas de

alto impacto

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40 z noVembro De 2012

Programa-piloto atrai

cientistas do exterior

para formar novos

grupos de pesquisa

em São Paulo

Dois projetos temáticos já fo-ram aprovados no âmbito do São Paulo Excellence Chairs (Spec), um programa-piloto da

FAPESP que busca estabelecer colabo-rações entre instituições do estado de São Paulo e pesquisadores de alto nível radicados no exterior. Um dos projetos deverá trazer para o Brasil o casal de cientistas Victor e Ruth Nussenzweig, ambos de 84 anos, brasileiros radicados nos Estados Unidos desde a década de 1960, que se tornaram referência interna-cional na busca de vacinas e tratamentos contra a malária. Andréa Dessen de Sou-za e Silva, brasileira radicada na França, também teve um projeto selecionado no âmbito do programa e vai comandar um grupo de pesquisa no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas. Desde 2000 Andrea lidera um grupo de pesquisa de patogenia bacte-riana do Instituto de Biologia Estrutural de Grenoble, na França.

INTERNACIONALIzAçãO y

Aliança de alto nível

A meta do programa Spec é atrair pa-ra o país cientistas de renome, a fim de que coordenem projetos temáticos em sua área de atuação em universidades e laboratórios paulistas. Os pesquisadores seguem vinculados a suas instituições de origem, mas se obrigam a permanecer no Brasil durante 12 semanas do ano ao lon-go dos pelo menos cinco anos de duração do projeto, coordenando um grupo de bolsistas da FAPESP, entre pós-doutores, doutores e até alunos de iniciação cientí-fica. “A vinda de pesquisadores com cur-rículos de alto nível tem como objetivo nuclear grupos de pesquisa em áreas nas quais queremos ter excelência e permi-tir que esses grupos avancem com mais velocidade”, diz Hernan Chaimovich, as-sessor especial da Diretoria Científica da FAPESP. A iniciativa, segundo ele, se in-sere na estratégia da FAPESP de estimu-lar a internacionalização da ciência pau-lista. “A missão da FAPESP é melhorar a qualidade da ciência, da tecnologia e da

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PESQUISA FAPESP 201 z 41

riu-se para os Estados Unidos há 25 anos. Antes de se fixar na França, fez doutora-do na Universidade de Nova York e pós--doutorado primeiro no Albert Einsten College of Medicine e depois na Universi-dade Harvard. Especializou-se no estudo da estrutura de proteínas usando técnicas em bioquímica e cristalografia. “Sem-

pre trabalhei com o estudo da estrutura de proteínas ligadas à medicina. Já traba-lhei com HIV, com inflamação”, diz. Seu foco atual é a virulên-cia de bactérias, por meio do estudo da estrutura tridimen-sional das proteínas que formam a parede bacteriana. O objeti-vo é compreender as estruturas para a sín-tese e a reparação da parede bacteriana e tentar bloquear pro-cessos infecciosos.

“Um alvo são as estruturas que propi-ciam a resistência a antibióticos”, afirma. É esse o foco do trabalho que desenvol-verá em Campinas.

Há tempos Andréa queria voltar ao Brasil. “Mas tenho uma posição em Gre-noble, dois filhos pequenos e não queria retornar definitivamente. O formato do programa Spec foi perfeito”, diz ela, que no ano passado havia feito uma palestra no LNBio e iniciou conversas com o di-retor do laboratório, Kleber Franchini, para colaborar com a instituição. Além da contratação pelo LNBio de um as-sistente de pesquisa que fez pós-dou-torado com Andréa na França, o bra-siliense David Neves, o grupo também terá dois bolsistas de doutorado e um de pós-doutorado. “Tenho uma pessoa da minha confiança coordenando o grupo em Campinas”, diz Andréa. Segundo ela, o arranjo vai permitir um forte in-tercâmbio entre Campinas e Grenoble, com trânsito de pesquisadores das duas instituições. Outros dois projetos estão sendo avaliados pela FAPESP no âmbito do Spec, um na área de mudanças climá-ticas e outro em ciência dos materiais. “As propostas podem ser feitas em qual-quer área do conhecimento, desde que envolvam pesquisadores de alto nível”, diz Chaimovich. n Fabrício Marqueslé

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inovação no estado de São Paulo e é para isso que buscamos a internacionalização. Queremos que os grupos formados por iniciativas como o Spec estejam aptos a conseguir apoio em agências de fomento internacionais”, afirma. O programa está franqueado a instituições e pesquisadores de currículos notáveis interessados em estabelecer parcerias.

Pesquisas desen-volvidas nos Estados Unidos pelo casal Nussenzweig deram origem a protótipos de vacinas testados na década de 1980, que, no entanto, só conseguiram garan-tir imunidade por pe-ríodos muito curtos. Desde 1960, Victor e Ruth vincularam-se à Universidade de Nova York, onde trabalham até hoje – ambos no campo do parasita da malária. Atualmente o casal está engajado em duas frentes: a busca de uma vacina contra a malária causada pelo parasita Plasmodium vivax e técnicas para nocautear proteínas essen-ciais para o desenvolvimento do parasita.

novoS InIbIdorESO projeto temático que Victor e Ruth deverão coordenar na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) busca caracterizar enzimas essenciais para o desenvolvimento do plasmódio e encon-trar novos inibidores, com potencial pa-ra o desenvolvimento de drogas contra a malária. “Vou trazer um pesquisador chinês que trabalha comigo em Nova York há quatro anos e também vamos re-crutar outros doutores e pós-doutores”, diz Victor. Eles trabalharão na Unifesp com pesquisadores que acolheram na Universidade de Nova York, em douto-rados ou pós-doutorados, como os pro-fessores Maurício Martins Rodrigues, Sérgio Shenkman e Nobuko Yoshida. O termo de outorga do projeto deve ser assinado nas próximas semanas.

Em julho passado, Andréa Dessen de Souza e Silva tornou-se a primeira pes-quisadora selecionada no âmbito do pro-grama-piloto. Formada em engenharia química pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1987, transfe-

dois projetos foram aprovados no âmbito do programa e outros dois estão em avaliação

O casal Ruth e victor Nussenzweig, em São Paulo: projeto temático e formação de núcleo de pesquisa na Unifesp

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PESQUISA FAPESP 201 z 45

Projeto mapeia fontes de

poluentes e correntes marinhas

na baía de Todos os Santos

ricardo Zorzetto, de Salvador

A saúde da baía

passava um pouco de 11 horas da terça-feira 16 de ou-tubro quando o barco pilotado pelo químico Jailson Bittencourt de Andrade parou junto a um banco de areia no canal que liga a baía de Aratu à imen-sidão de águas cor de esmeralda da baía de Todos

os Santos. Na faixa de areia exposta pela maré baixa cerca de 40 mulheres e algumas crianças, todas negras, andavam de cócoras olhando para o chão. Elas mariscavam. Com uma colher ou apenas com os dedos, desenterravam um pequeno molusco que chamam de chumbinho ou papa-fumo, pouco maior que a unha do polegar. São necessárias horas de traba-lho, quase sempre sob um sol intenso, para encher um cesto grande de mariscos, que, depois de limpos, pesam dois qui-los e são vendidos a R$ 17 para os comerciantes de pescados da região. Como têm baixo valor comercial, o chumbinho e outros mariscos, como a lambreta e o sururu, são a principal fonte de proteína animal de quase 15 mil famílias de pesca-dores e catadores de moluscos da baía de Todos os Santos. Vivendo abaixo da linha de pobreza, muitas dessas famílias se alimentam hoje de modo semelhante ao dos primeiros se-res humanos que milhares de anos atrás ocuparam a costa do que viria a ser o Brasil.

Atualmente, porém, é recomendável consumir com mode-ração os peixes e frutos do mar apanhados em Aratu, Itapagi, Suba e em outras áreas mais industrializadas da baía de Todos os Santos. Eles estão contaminados. Concentram alguns me-tais em níveis superiores aos aceitos por autoridades da saúde

Paisagem soteropolitana: fim de tarde na baía de Todos os Santos

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46 z noVembro De 2012

como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Muitos desses metais são elementos químicos que, em concentrações bem baixas, são essenciais para uma boa saúde, mas, em níveis altos, podem ser tóxicos. Comer os pescados e os moluscos de áreas contaminadas algumas vezes na sema-na não chega a causar risco à saúde, afirmam os pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que, sob a coordenação de Andrade, vêm mapeando nos últimos anos a poluição ambiental na baía de Todos os Santos. Mas os pescadores e os catadores de mariscos, que consomem fru-tos do mar quase todos os dias, tornam-se mais vulneráveis a desenvolver problemas de saúde associados à exposição contínua a elevadas con-centrações de alguns desses metais.

quem corre mais risco são as crianças”, comentou Vanessa Hatje, coordenadora do Laboratório de Oceanografia Química

da UFBA, que acompanhou a visita aos pontos da baía de Todos os Santos em que foram feitas as medições. “É que a capacidade de diluir elementos químicos no organismo está diretamente relacio-nada à massa corporal”, explicou a oceanógra-fa, braço direito de Andrade na primeira fase do Projeto Baía de Todos os Santos. Planejado para seguir até 2038, esse projeto, do qual participam quase 50 pesquisadores, investiga as caracterís-ticas físicas, biológicas, culturais e históricas da região e, assim, contribui para a gestão sustentá-vel dessa baía, a segunda maior do país – menor apenas que a de São Marcos, no Maranhão.

Entre 2006 e 2010, Vanessa, o oceanógrafo Ma-nuel Nogueira de Souza e Cláudia Windmöller, da Universidade Federal de Minas Gerais, cole-taram moluscos em 34 pontos da baía de Todos os Santos. A análise química demonstrou que ao menos quatro elementos (arsênio, zinco, selênio e cobre) aparecem em concentrações relativa-mente altas em mariscos e ostras. Os moluscos mais contaminados, segundo artigo publicado em 2011 no Marine Pollution Bulletin, haviam sido apanhados em Aratu, próximo ao local em que as marisqueiras trabalhavam naquela manhã de ou-tubro, e no estuário do rio Subaé, a noroeste dali.

Era até de se esperar que fosse assim. A baía de Aratu, localizada cerca de 20 quilômetros ao norte de Salvador, abriga um dos três portos mais movi-mentados da baía de Todos os Santos. Aratu está cercada por indústrias químicas, petroquímicas, metalúrgicas e de alimentos, entre outras. A menos de 50 quilômetros a nordeste dela, está instalado o polo petroquímico de Camaçari, o maior da Améri-ca do Sul. Já no estuário do rio Subaé, no extremo noroeste da baía de Todos os Santos, a principal fonte de contaminantes foi por um longo período a mineradora Plumbum. Desativada em 1993, ela lançou por quase três décadas quantidades apre-

ciáveis de chumbo, cádmio, arsênio e zinco no Subaé.

“Havia poucos estudos, quase to-dos de circulação restrita, sobre a contaminação ambiental na baía”, conta Andrade, que coordena tam-bém o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Energia e Ambien-te. “Essas pesquisas se baseavam em medições pontuais, que usavam téc-nicas distintas; agora estamos esta-belecendo protocolos que permitirão acompanhar a evolução no tempo”, diz o químico, que anos atrás condu-ziu uma avaliação da qualidade do ar na baía de Todos os Santos, chamada de Kirimurê pelos Tupinambá que habitavam a região antes da chegada dos europeus.

Seu grupo instalou estações medi-doras de poluentes em três pontos: na rodoviária da Lapa, um movimenta-do terminal de ônibus no centro de Salvador; no porto de Aratu, onde há intenso transporte de cargas e minérios; e em Bananeira, uma vila de pescadores com cerca de mil habitantes na ilha de Maré. O resultado, de certo modo, surpreendeu. O ar da rodoviária era o mais poluído, como alguns já imaginavam. Mas

A baía de Todos os Santos, suas ilhas e seus principais afluentes

Porta de entrada do brasil

Pescadores e catadores de

mariscos, que consomem frutos

do mar todos os dias, tornam-se

mais vulneráveis a desenvolver inflamações“

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PESQUISA FAPESP 201 z 47

não se esperava que o ar em Bananeira pudesse ser quase tão ruim quanto o do porto de Aratu, distante cinco quilômetros. “Em algumas horas do dia, é como se os moradores de Bananeira es-tivessem dentro do porto”, disse Andrade, apon-tando para um conjunto de casas entre plantações de banana, enquanto conduzia o barco pelo canal que separa a ilha de Maré do porto.

Além de medir os níveis de contaminantes de forma sistemática e a longo prazo, os pesquisado-res tentam compreender a dinâmica de transporte e destino dos contaminantes na baía e o impacto sobre os organismos vivos. Com Francisco Barros, do Laboratório de Ecologia Bentônica da UFBA, Vanessa avaliou a concentração de metais na água, nos sedimentos e na fauna dos três principais rios que deságuam na baía – o Jaguaripe, o Paragua-çu e o Subaé. Eles verificaram que a Plumbum, mesmo fora de operação há três décadas, ainda polui o Subaé e áreas adjacentes. No inverno, a chuva lava os reservatórios e pilhas de escória da antiga mineradora e carrega mais contaminan-tes para o rio, que fica a menos de 500 metros de distância. De modo geral, os metais dissolvidos na água aderem a partículas em suspensão e se acumulam progressivamente nos sedimentos do fundo dos rios à medida que se caminha para a foz. Em alguns pontos, a concentração atinge níveis tóxicos para a fauna de bentos.

“Em uma das estações no estuário do rio Subaé não encontramos seres vivos no sedimento”, diz Barros, que agora realiza testes para verificar se o desaparecimento dos bentos é consequência da toxicidade do substrato ou um estresse natural da-quele trecho do rio. Barros descobriu recentemen-

te que os estuários tropicais funcionam de modo diferente dos ambientes temperados. Na baía de Todos os Santos a diversidade de espécies de bentos – moluscos, poliquetas e alguns peixes – aumen-ta continuamente à medida que sobe a salinidade da água, enquanto em estuários da Europa e dos Estados Unidos a variedade de espécies costuma oscilar: é maior nos trechos de baixa e alta sali-nidade e menor nos de salinidade intermediária.

como o aporte de água de origem fluvial é pequeno se comparado ao volume total da baía, a troca de água entre a baía e o oceano,

por meio da maré, determina em grande parte a capacidade de diluição e dispersão de conta-minantes e material particulado em suspensão. Na tentativa de compreender em detalhes a cir-culação e o transporte de água e materiais pa-ra dentro e fora da baía, o geógrafo Guilherme Lessa, especialista em sedimentologia, iniciou o monitoramento das correntes que circulam na baía de Todos os Santos. Uma vez por mês ele percorre 10 estações e mede as características físico-químicas (salinidade, temperatura e ma-terial particulado) e coleta plâncton. Em três das estações, um equipamento mais simples, do tamanho de uma lanterna, registra continuamen-te informações sobre o material em suspensão e sobre a salinidade e a temperatura da água. As-sim, espera-se caracterizar a direção e a veloci-dade das correntes que movem as partículas no interior da baía em diferentes períodos do ano. “Queremos verificar se a baía de Todos os Santos está importando água e material particulado do oceano ou exportando para ele”, explica.

Sob sol intenso: mulheres coletam mariscos no canal de Aratu

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48 z noVembro De 2012

U tilizando dados de corrente coletados em 2003, Lessa mediu a circulação de água entre a baía de Aratu e a baía de Todos os

Santos. A análise preliminar indica que, no inver-no, correntes mais profundas conduzem água da baía maior para a menor. Já as águas que origi-nalmente se encontravam em Aratu saem para a baía de Todos os Santos por correntes mais superficiais. Segundo Lessa, há indícios de que no verão esse fluxo é invertido.

Ainda não é possível saber se o que ele viu nes-sa área também vale para a comunicação entre a baía de Todos os Santos e o oceano Atlântico. Até o final do ano Lessa deve instalar equipamentos que medem o fluxo de água (correntômetros) em dois pontos da baía, que complementarão as infor-mações que vêm sendo coletadas. Ele calcula que será preciso colher dados continuamente por 15 anos para mapear os ciclos de troca de água entre a baía e o oceano. É que o clima, responsável por alterar a velocidade e a direção dos ventos, das chuvas e da salinidade da região costeira, oscila no Atlântico Sul de acordo com ciclos de 3 anos, 10 a 14 anos e 30 anos de duração.

Zelinda Leão e Ruy Kikuchi, geólogos da UFBA que acompanham a saúde dos corais na costa bra-sileira, esperam que os dados sobre as correntes

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Equipamento para medição de

características físico-químicas da

água (ao lado) e banco de corais

(acima)

Pesca do xaréu: detalhe do mapa Brasilia qua parte paret belgis, de georg Marcgraf, 1647

Enquanto parte dos pesquisadores se dedica a conhecer os aspectos físicos e biológicos da baía de Todos os Santos, a etnógrafa gal Meirelles e o historiador Caio Adan, ambos da Universidade Estadual de Feira de Santana, atuam, respectivamente, no registro de características culturais que começam a se perder e informações históricas desconhecidas do público.

Por quase cinco anos, gal morou na comunidade Baiacu, na ilha de Itaparica, e registrou o modo de vida e as diferentes técnicas usadas pelos pescadores artesanais da baía de Todos os Santos, um conhecimento que parece não interessar às gerações mais novas. “Nas comunidades há falta de emprego e os jovens têm admiração pela vida em Salvador, mas, se vão para a capital, só conseguem bicos e subemprego”, conta gal. Dessa etnografia da pesca nasceram o vídeo Pesca de mestres e a série de fotos O peixe nosso de cada dia,

exposta na comunidade dos pescadores. Com o sociólogo Milton Moura, da UFBA, gal trabalhou no registro fotográfico e em vídeo dos festejos tradicionais de Ilha de Itaparica que comemoram a independência do Brasil.

Ela auxiliou ainda Caio Adan a se embrenhar em arquivos e museus do Brasil e da Europa. Em visitas a acervos na Bahia, no Rio de Janeiro, em Portugal e na Espanha, ele teve acesso a cerca de 200 mapas feitos entre os séculos XvI e XX e iniciou a documentação do patrimônio cartográfico da baía de Todos os Santos.

Nesse material há preciosidades, como um mapa de meados do século XvII mostrando como as redes eram dispostas na pesca do xaréu, peixe grande cuja captura exigia a participação de dezenas de homens. Ou ainda uma carta encontrada no arquivo do Itaramaty, no Rio, indicando a existência de um canal

registro histórico e cultural

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que não se conhecia na península de Itapagipe. Esse canal, que não se sabe se foi de fato construído, facilitaria a navegação entre a região norte e o centro de Salvador.

A partir do século XIX, Adan notou que as cartas se tornam mais técnicas e precisas. “Possivelmente para auxiliar a navegação na baía”, explica o historiador, que planeja descrever o material que reuniu e montar um banco

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PESQUISA FAPESP 201 z 49

constataram o desaparecimento de uma das oito espécies nativas da costa brasileira que viviam ali, o Mussismilia braziliensis. Mais recentemen-te, equipes da UFBA, da Uerj, da Ufal e da ONG Pró-Mar relataram o espalhamento do coral-sol, espécie invasora adaptada a ambientes turvos.

Não é de hoje que as águas e o ambiente no en-torno dessa baía pagam um preço alto por ela ter servido de porta de entrada para o Brasil. Desde que a expedição do navegador português Gaspar de Lemos aportou ali em 1˚ de novembro de 1501, Dia de Todos os Santos na tradição católica, hou-ve sucessivas alterações. A fundação de Salvador em 1549 por Tomé de Souza, enviado do rei de Portugal para criar uma cidade-fortaleza e iniciar a ocupação das terras do Novo Mundo, forneceu os braços e os machados que transformaram em lenha e madeira a exuberante mata atlântica, abrindo espaço para a cana e os engenhos de açúcar, a unidade agroindustrial mais avança-da do Brasil colonial. A mudança mais intensa, porém, ocorreria mais tarde, com a descoberta de petróleo no Recôncavo Baiano e a instalação em 1950 da refinaria Landulpho Alves, no mu-nicípio de Mataripe, que levariam o governo da Bahia a apostar na petroquímica como modelo de desenvolvimento econômico.

Houve recentemente uma retomada no de-senvolvimento industrial da região, com inves-timento em um novo polo metal-mecânico, na ampliação de portos e na construção de estalei-ros. “Nos últimos tempos se adotaram medidas de controle para reduzir a emissão de metais, mas pouco se avançou”, explicou Vanessa no retorno da expedição pela baía. “Em vários pon-tos o esgoto doméstico ainda alcança os rios e a baía sem tratamento.” Apesar desses problemas, a baía de Todos os Santos ainda conserva áreas bem preservadas, como a foz do rio Jaguaripe, ao sul da ilha de Itaparica. Sua saúde, de modo geral, é considerada bem melhor que a da baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, que ocupa uma área três vezes menor e está rodeada por uma população três vezes maior. Mas Vanessa teme que não continue assim por muito tempo. An-tes de o barco aportar na marina, ela lamentou: “Acredito que as condições ambientais ainda vão piorar muito antes de começar a melhorar”. n

Exibição na praia: fotos sobre o cotidiano da pesca em exposição para a comunidade ribeirinha Artigos científicos

1. BARROS, F. et al. Subtidal benthic macroinfaunal as-semblages in tropical estuaries: Generality amongst highly variable gradients. Marine Pollution Bulletin. out. 2012. 2. HATJE, V.; BARROS, F. Overview of the 20th century im-pact of trace metal contamination in the estuaries of Todos os Santos Bay: Past, present and future scenarios. Marine Pollution Bulletin. jul. 2012. 3. SOUZA, M. M. et al. Shellfish from Todos os Santos Bay, Bahia, Brazil: treat or threat? Marine Pollution Bulletin. out. 2011.

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de dados na internet e torná-lo disponível para outros pesquisadores.

Segundo Adan, uma avaliação inicial dos mapas corrobora a ideia de que a baía de Todos os Santos desempenhou função central na formação do estado da Bahia. Por muito tempo, inclusive, ela foi compreendida como um espaço mais amplo do que o delineado pelo acidente geográfico de mesmo nome.

marinhas na baía ajudem a esclarecer o que vem ocorrendo com os corais. Na baía de Todos os San-tos existem dois grandes bancos de corais: um na região interna, próximo à ilha dos Frades; e ou-tro em mar aberto, em frente à ilha de Itaparica. Nos últimos anos, Zelinda e Kikuchi observaram vários episódios de branqueamento dos corais.

os corais perdem sua cor natural e se tor-nam esbranquiçados quando algas mi-croscópicas que vivem em seu interior, as

zooxantelas, morrem ou são eliminadas – essas algas fornecem oxigênio e nutrientes que auxi-liam os corais a produzir um esqueleto calcário. Embora nem sempre signifique a morte do coral, o branqueamento é indício de que algo não vai bem. Kikuchi suspeita que o problema na baía de Todos os Santos se deve à elevação global da tem-peratura da água do mar, a episódios de aumento de partículas em suspensão, que turvam a água e reduzem a penetração de luz, e possivelmente à poluição química. Em 2011 os pesquisadores observaram branqueamento em vários pontos próximos ao porto de Salvador, que estava sen-do dragado. Além disso, há quase uma década

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LIFósseis de ovos e ossos de ave de 18 milhões de anos reforçam

parentesco entre flamingos e mergulhões | Marcos Pivetta

o ninho do “flaminlhão”

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Mergulhão

De pequeno a médio porte, essa família de aves lembra vagamente um pato acinzentado. Vive em água doce ou salobra. Apesar de ter uma anatomia bastante distinta da dos flamingos, forma um grupo irmão dessas aves de longas pernas. seu ninho é revestido de gravetos e pode conter vários ovos

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ela tinha a estrutura óssea e provavelmente a aparência similares às de um grande flamingo atual, com per-nas longas, pescoço comprido, bico curvo e talvez a plumagem já apresentasse o característico tom ró-seo. A altura atingia por volta de 1,5 metro. Mas seus

hábitos reprodutivos – botar vários ovos em um ninho com estrutura de gravetos erigida em ambiente lacustre – lembra-vam os de um mergulhão moderno, ave de pequeno ou mé-dio porte que, aos olhos de um leigo em ornitologia, parece um tipo de pato acinzentado. Assim, com pinta de flamingo e comportamento de mergulhão, devia ser a extinta ave que, há cerca de 18 milhões de anos, depositou em território es-panhol cinco pequenos ovos num abrigo flutuante revestido por uma frágil moldura lenhosa.

Esse longínquo ser alado construiu o mais antigo ninho fóssil de ave registrado na literatura científica, cujos vestígios pra-ticamente intactos foram encontrados no que um dia foi um raso lago de água salina, hoje soterrado por camadas e mais camadas de sedimentos, na bacia calcária do rio Ebro, norte da Espanha. “É o primeiro ninho flutuante conhecido e a primeira evidência de uma estrutura para abrigar ovos de ave”, diz o bió-logo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), um dos autores de um estudo sobre o material fóssil espanhol publicado em 17 de outubro na revista Plos One.

A plumagem em tom róseo, as grandes pernas, o bico e o pescoço tortos são marcas registradas dos flamingos modernos. Habitantes de áreas costeiras e ambientes salobros, essas aves atingem 1,5 metro de altura e fazem ninhos de barro no qual depositam um grande e único ovo

Flamingo

sua provável aparência devia ser similar à de um grande flamingo atual, mas seus hábitos reprodutivos eram semelhantes aos dos mergulhões. fazia ninhos flutuantes, compostos por uma estrutura de gravetos, em ambientes lacustres e salinos. Cada ninho abrigava cinco pequenos ovos

Paleoflamingo

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52 z noVembro De 2012

Ao lado do ninho, que protegia ovos semialongados com dimensões máximas de 4,5 por 3 centímetros, foram resga-tados uns poucos fragmentos de ossos do pé (tarso e metatarso) e um bem pre-servado tibiotarso esquerdo, a popular coxa da ave. “Analisamos, em separado, o tibiotarso e o ninho com os ovos e che-gamos à mesma conclusão”, afirma Sil-veira. “Trata-se de um paleoflamingo, um gênero e espécie novos e extintos dessa família de aves.” Especialista em ovos de répteis e aves, o paleontólogo suíço Ge-rald Grellet-Tinner, do Centro Regional de Investigaciones Científicas y Transfe-rencia Tecnológica (Crilar), da Argentina, e do Field Museum de Chicago, também não tem dúvidas de que o ninho foi feito por um flamingo primitivo. “Os ovos são tecidos biomineralizados que apresen-tam morfologia funcional e valor filoge-nético igual ao dos ossos de um esquele-to”, afirma Grellet-Tinner, que também assina o estudo no periódico científico. “Desse ponto de vista, a casca de um ovo é uma impressão digital e fornece infor-mações específicas sobre uma espécie.” A microestrutura dos ovos foi analisada com o emprego de cinco diferentes técnicas de microscopia eletrônica a fim de aumentar a confiabilidade dos resultados obtidos.

ágUAS SAlInAS Os gravetos e o restante do material ve-getal utilizados para fazer o ninho tam-bém foram determinados, embora nesse caso de forma mais genérica. Os gravetos eram de uma planta da vasta família das Fabaceae, as populares leguminosas, que englobam desde alimentos como a soja e o feijão até árvores como a cerejeira e o pau-brasil. O ambiente em que os fósseis foram resgatados, de água com alto teor de salinidade, também é associado a flamin-gos, que vivem na beira de mares ou em estuários de rios. Os mergulhões, que sub-mergem para pegar peixes, preferem, por sua vez, água doce, embora também pos-sam ser vistos em cursos d’água salobra.

O ninho com os ovos e o tibiotarso fo-ram descobertos por paleontólogos es-panhóis em 2003 quando desenvolviam trabalhos de campo na chamada formação Tudela que precederam a construção de uma barragem destinada a evitar cheias do rio Ebro. Nessa região de clima semiá-rido já haviam sido encontrados fósseis de crocodilos, tartarugas, cobras e ostraco-dos, um tipo de crustáceo de uns poucos

o paleoflamingo habitava a beira de um lago de água salina. gravetos de seu ninho eram da família das Fabaceae, as populares leguminosas

A última morada do velho flamingo

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Bacia do Ebro

O paleoninho e os ossos do flamingo extinto foram encontrados na formação Tudela, na bacia do rio Ebro, norte da Espanha (região amarela no mapa)

milímetros. Por não serem especialistas em aves, os pesquisadores ibéricos pro-curaram se cercar de estudiosos desses animais, aos quais repassaram o mate-rial obtido na escavação. Recorreram a Silveira, que fez toda a análise da parte óssea, comparando os ossos encontrados no Ebro com material osteológico das co-leções de aves do MZ-USP e do Museu de História Natural de Taubaté (MHNT). Contataram também Grellet-Tinner, que ficou responsável por estudar o ninho e os ovos.

Entre 12 e 29 milhões de anos atrás existiu um gênero extinto de ave, o Palae-lodus, que às vezes é apresentado como dono de uma anatomia e estilo de vida in-termediário entre a morfologia e o com-portamento de flamingos e mergulhões. Segundo os pesquisadores, o novo fóssil não pertence a esse gênero desapareci-do. No máximo, é um parente que pode ter sido contemporâneo do Palaelodus. Isso não quer dizer que o paleoninho do Ebro seja pouco importante do ponto de vista evolutivo. Ao contrário. Os cientis-tas o classificam como mais um aliado de uma teoria que ganhou força nos últimos

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PESQUISA FAPESP 201 z 53

vado por milhões de anos. Havia a possi-bilidade remota de que cada ovo tivesse uma origem distinta e sua junção, um ao lado do outro, no interior do abrigo de madeira, fosse obra do acaso. Mas todas as evidências levantadas pelos pesquisadores derrubaram essa hipótese: os cinco ovos eram iguais, do mesmo tipo, e o contexto em que o ninho fora encontrado sinali-zava que a estrutura de gravetos não era fruto de movimento fortuito da natureza. A descoberta, ao lado do ninho, de ossos de uma ave reforçou ainda mais essa teo-ria. “Encontrar ovos (fossilizados) é raro. Encontrar ninhos é ainda mais raro. Mas encontrar ovos em um ninho e conseguir estabelecer a que grupo eles pertencem é algo muito raro e interessante”, comen-ta o paleontólogo Alexander Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Não é possível saber com certeza se os ossos vieram da ave que fez o ninho, mas essa hipótese é plausível. Afinal, as análises do brasileiro e do suíço foram conduzidas de forma independente – um só soube do veredicto do outro ao final do trabalho – e ambos concluíram que o tibiotarso e os ovos eram de alguma forma primordial de flamingo hoje não mais presente na Terra. “Aparentemente, os ossos encontrados pertenceram a um único exemplar de ave”, diz Silveira. Por um motivo que nunca será conhecido, o animal possivelmente morreu ao lado do ninho. Não dá para afirmar nem mesmo se o osso pertenceu a uma fêmea ou a um macho. Flamingos do sexo masculino não botam ovos, mas podem chocá-los no ninho de sua fêmea.

Infelizmente, não há outros ninhos fósseis parecidos com o resgatado na bacia do rio Ebro. Qualquer comparação desse tipo dependerá de uma eventual descoberta de uma segunda estrutura de gravetos com ovos de aves, um tipo de achado bastante improvável dada a fragilidade desse tipo de construção, de acordo com os especialistas. Mas quem sabe a história ocorrida em terras es-panholas se repita algum dia em outro canto do globo. n

ArtigoGRELLET-TINNER, G. et al. The first occurrence in the fossil record of an aquatic avian twig-nest with phoenicopteriformes eggs: evolutionary implications. Plos One. Publicado on-line. 17 out. 2012.

cas remontem ao hipotético ancestral comum das duas famílias de aves. Esse comportamento consistia, grosso modo, em botar vários ovos pequenos em um ninho revestido por gravetos, procedi-mento que se manteve até os dias de hoje entre as 22 espécies de mergulhões vi-vas, mas que desapareceu entre as seis espécies atuais de flamingos.

Sob esse ponto de vista, o fóssil espa-nhol seria um resquício de um tempo re-moto em que os ninhos de mergulhões e flamingos exibiam estrutura parecida. As espécies vivas de flamingos constroem abrigos de barro para seus futuros filho-tes e não usam nenhum revestimento de ramos no entorno dessa estrutura. Em cada ninho põem geralmente apenas um único e grande ovo, bem maior do que os presentes no fóssil na bacia do Ebro (ver ilustração no início desta reportagem).

Um dos primeiros desafios da dupla Silveira e Grellet-Tinner foi determinar se os cinco ovos protegidos por uma es-trutura circular de graveto, que aparen-temente flutuava na beira do antigo lago, formavam mesmo um ninho construído que se manteve milagrosamente preser-

A coxa entregou o bicho

O ninho de 18 milhões de

anos: a mais antiga estrutura

feita para abrigar ovos de aves

anos: a de que flamingos e mergulhões, embora hoje exibam morfologia e com-portamento muito diferentes, são real-mente grupos irmãos.

Estudos da anatomia e da genética dessas aves sugerem que, num passado remoto, antes de divergirem e darem ori-gem a duas famílias distintas de animais alados, elas tiveram um ancestral comum há mais de 20 milhões de anos, durante a época geológica denominada Mioce-no. Os novos fósseis recém-descritos nas páginas da Plos One reforçam ainda mais essa ideia. “Esse artigo abre portas para muitas especulações evolutivas sobre esses grupos de aves”, afirma o paleon-tólogo Herculano Alvarenga, diretor do Museu de História Natural de Taubaté, especialista em aves fósseis.

AncEStrAl coMUMAinda não batizada com um nome cien-tífico, a nova espécie de paleoflamingo parece indicar que os primeiros exem-plares dessa família de aves tinham há-bitos reprodutivos e de construção de ninhos semelhantes aos dos mergulhões do passado. É possível que tais práti-

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O novo paleoflamingo

Phoenicopterus ruber, espécie

atual de flamingo

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extinta de flamingo

Ave extinta do gênero Palaelodus, parente distante

dos flamingos

Phoenicopterus croizeti, espécie

extinta de flamingo

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58 z novembro De 2012

Encontrada na glândula salivar do

carrapato-estrela, molécula combate

células cancerígenas e preserva sadias

oncologia y

Proteína antitumoral U

ma proteína encontrada na glândula salivar do carrapato--estrela (Amblyomma cajennen-se) mostrou em testes promis-

sora atividade antitumoral e anticoagu-lante. O achado foi feito pelo grupo de pesquisa coordenado pela professora Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, dire-tora do laboratório de Bioquímica do Instituto Butantan e integrante do pro-grama Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. “A proteína, chamada Amblyomin-X, mata apenas as células tumorais, sem oferecer risco para as saudáveis”, diz Ana Marisa. Os pesqui-sadores mapearam como se dá a morte das células e os mecanismos envolvidos na ação. A proteína Amblyomin-X inibe a atividade do proteassoma, um complexo enzimático que tem por função eliminar proteínas indesejáveis a fim de manter a integridade celular. “Estudamos o modo de atuação da proteína para induzir à morte programada das células, processo conhecido como apoptose.”

Os próximos passos são os testes pré--clínicos, que serão realizados por duas empresas brasileiras seguindo padrões internacionais para avaliar, por exemplo, a toxicidade da proteína recombinante e qual a dose que poderá ser usada para tratamento em pacientes. Essa fase está prevista para durar cerca de oito meses. “Se tudo correr de acordo com o previs-to, os testes em pessoas serão liberados após essa etapa”, diz Fernando de Castro Marques, presidente da União Química, empresa farmacêutica parceira da pes-quisa. A expectativa é que um possível medicamento tenha como foco, além do melanoma, o câncer de pâncreas e o renal. “A ação no câncer de pâncreas é o que mais nos interessa, porque não existe tratamento medicamentoso atualmente para esse tipo de tumor”, ressalta. Em outubro, pesquisadores do Butantan, representantes da empresa e da FAPESP estiveram na Agência Nacional de Vi-

Dinorah Ereno

carrapato-estrela: alimentação garantida por mecanismo na saliva que impede coagulação do sangue

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PESQUISA FAPESP 201 z 59

gilância Sanitária (Anvisa) para tratar das etapas necessárias para o registro do produto. As três partes são detentoras da patente da nova molécula. A previsão é que até o início de 2015 uma nova fá-brica seja construída em Brasília, onde a União Química tem um polo industrial, para produção da nova molécula.

As pesquisas começaram em 2000 com a bióloga Simone Simons, que estudava carrapatos. “Como eles são hematófagos e precisam deixar o sangue sem coagular para poderem se alimentar, decidimos estudar o mecanismo de anticoagula-ção promovido pela saliva do carrapato--estrela”, diz Ana Marisa, que trabalha também com uma linha de pesquisa em anticoagulantes presentes em sangues-sugas. A dificuldade de caracterização bioquímica dos componentes da saliva do ácaro fez com que os pesquisadores optassem pela via de análise dos genes expressos na glândula salivar. “Foram analisados mais de 2 mil genes para ver se existia algum que pudesse traduzir uma proteína inibidora do fator X (10) da coagulação, essencial para a formação da trombina, enzima-chave para esse pro-cesso.” A tradução é o processo de síntese ou fabricação de proteínas.

InIbIDor PlASmátIcoAs indústrias farmacêuticas, segundo Ana Marisa, estão em busca de um medica-mento anticoagulante novo que tem co-mo alvo o fator X, que possa diminuir o tempo laboratorial necessário para uma terapia convencional de anticoagulação. “Identificamos um clone que poderia ser utilizado para produzir uma molécula com atividade inibitória do fator X”, re-lata. A partir desse clone foi produzida a proteína recombinante, utilizando um sistema de expressão em bactéria, e a aná-lise da sua atividade no sangue compro-vou sua eficiência como anticoagulante. A caracterização bioquímica e estrutural da proteína obtida revelou semelhanças

mica e Biosintética. A União Química interessou-se pela nova molécula e fez os depósitos de patente no Brasil, com extensão para Europa, Ásia e Estados Unidos. E não parou nisso: “Contratamos uma empresa de biotecnologia nos Esta-dos Unidos para, por meio de engenharia genética, construir um gene sintético e um novo sistema de expressão da molé-cula que aumentassem o rendimento na produção”, diz Castro Marques.

O projeto que teve início em 2000, mas só começou a ser direcionado pa-ra um antitumoral em 2005, reúne hoje um grupo de oito pesquisadores do la-boratório de Bioquímica, além de cola-boradores da Universidade de São Paulo (USP), como o professor de oncologia Roger Chammas, o médico especialista em pâncreas José Jukemura, ambos da Faculdade de Medicina, e o professor Eduardo Reis, do Instituto de Química, que atua em genômica e biologia mole-cular. Selecionado pelo Fundo Tecno-lógico (Funtec) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o projeto vai receber R$ 18 milhões que serão destinados para o Instituto Butantan e o Instituto de Pes-quisas Tecnológicas (IPT) traçarem uma rota de produção da proteína recombi-nante de forma escalonada e fazerem uma análise econômica para instalação de uma fábrica destinada à produção industrial da molécula. n

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com um inibidor plasmático chamado TFPI, que ajuda a controlar a coagulação. “Na literatura científica já estava sen-do discutido o papel desse inibidor na proliferação de células.” Por isso os pes-quisadores decidiram testar a proteína recombinante em células presentes nos vasos sanguíneos e também em culturas de células tumorais. “Ficamos surpresos com os resultados porque o tratamento com a proteína manteve intactas as cé-lulas normais, mas matou as tumorais”, relata. Diante disso, o foco da pesquisa foi ampliado para a atividade seletiva da nova molécula contra células tumorais.

O próximo passo foi testar a proteína recombinante in vivo. Os testes foram feitos em dois grupos de camundongos com melanoma, o tipo mais grave de cân-cer de pele. Os animais que não foram tratados desenvolveram tumor e mor-reram em cerca de um mês. No grupo que recebeu a proteína durante 42 dias, o melanoma desapareceu. No início dos anos 2000, o Centro de Toxinologia Apli-cada instalado no Instituto Butantan já era um dos 10 Cepids criados pela FA-PESP e mantinha uma parceria com os Laboratórios Biolab-Sanus, União Quí-

Projetos1. Centro de Toxinologia Aplicada; 2. Mecanismos de ação do Amblyomin-X em diferentes linhagens celulares normais e tumorais – nº 2005/50560-6; 3. Avaliação do mecanismo de ação pró- -apoptótica do Amblyomin-X – nº 2010/52669-3. Modalidades: 1. Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); 2 e 3. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. Coordenadores: 1. Hugo Armelin – Instituto Butantan; 2 e 3. Ana Marisa Chudzinski Tavassi – Instituto Butantan. Investimento: 1. R$ 1 milhão por ano para todo o Cepid (FAPESP); 2. R$ 227.833,93 (FAPESP); 3. R$ 249.786,30 (FAPESP).

"A ação no câncer de pâncreas é o que mais nos interessa", diz Fernando de castro marques, da União Química

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60 z novembro De 2012

neurônio especial controla a chegada de

informação do ambiente ao centro formador

das recordações no cérebro

F oi necessário quase um século para descobrir a função de um tipo espe-cial de célula cerebral descrito pelo

médico e neuroanatomista espanhol San-tiago Ramón y Cajal. Essas células, que recebem o nome complicado de neurônios oriens lacunosum-moleculare (OLM), es-tão no hipocampo, estrutura profunda do cérebro associada à aquisição da memória. Como uma ponte que une as duas margens de um rio, os neurônios OLM colocam as células da camada mais superficial do hipocampo em contato com as das áreas mais profundas. Mas nesse tempo todo o papel dessas células permanecia obscuro.

Agora, em um artigo publicado na edi-ção de 7 de outubro da revista Nature Neu-roscience, o neurocientista mineiro Ri-chardson Leão, com pesquisadores dos

nEUrologia y

o porteiro da memória

neurônio olM, em verde, conecta as células da camada superficial às da camada profunda do hipocampo

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Estados Unidos e da Suécia, demonstrou que os neurônios OLM são uma espécie de porteiro da memória.

“Conseguimos isolar e manipular essa população de neurônios”, conta Richard-son, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Usando técnicas de biologia molecular, ele e pesquisadores da Universidade de Uppsala, na Suécia, identificaram uma proteína que é pro-duzida exclusivamente por esse tipo de neurônio. Em seguida, eles desenvol-veram camundongos transgênicos em que marcaram essa proteína com outra vermelho-fluorescente. Eles também in-seriram no animal transgênico uma ter-ceira proteína que, acionada por pulsos de laser, colocava o neurônio em ação.

artigo científico

LEÃO, R. N. et al. OLM interneurons differentially modulate CA3 and entorhinal inputs to hippocampal CA1 neurons. Nature Neuroscience. 7 out. 2012.

Nos experimentos, eles observaram que, uma vez ativados, os neurônios OLM bloqueavam a chegada de infor-mações sensoriais do ambiente ao hipo-campo e acionavam os mecanismos quí-micos de recuperação das informações armazenadas no cérebro. Um exemplo pode ajudar a entender. Quando alguém caminhando na rua vê um conhecido, a informação captada pelos olhos chega à região mais superficial do hipocampo. É aí que os neurônios OLM entram em ação. Ao transferir essa informação para a área mais profunda, esses neurônios ativam o mecanismo de recuperação da memória – que permite, por exemplo, lembrar quem é mesmo o fulano –, mas impedem a chegada de mais dados do ambiente. “Os neurônios OLM desli-gam um circuito e ligam outro”, con-ta Richardson, que também trabalhou em colaboração com pesquisadores da Universidade de Connecticut, nos Es-tados Unidos. n ricardo Zorzetto

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PESQUISA FAPESP 201 z 61

Estudo revela estrutura atômica de proteínas

que eliminam excesso de hemoglobina no sangue

uma equipe de oito pesquisadores dinamarqueses e noruegueses e um brasileiro alcançou uma meta

perseguida desde os anos 1960: resolver em nível atômico a estrutura das pro-teínas que se articulam para evitar que a hemoglobina – a proteína carregado-ra de oxigênio e que dá a cor averme-lhada ao sangue – atinja concentrações tóxicas para o organismo e capazes de lesar os órgãos do corpo. O trabalho foi publicado na edição de 20 de setembro da revista Nature. Segundo o professor Cristiano Luis Pinto de Oliveira, do Ins-tituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), que participou do estu-do, a descoberta poderá contribuir no de-senvolvimento de remédios que aliviem crises de intoxicação por hemoglobina, sofridas por portadores de doenças do sangue congênitas e malária.

Transportadas pelas hemácias, as cé-lulas vermelhas do sangue, as moléculas de hemoglobina são feitas de quatro su-bunidades, cada uma contendo um íon de ferro que reage facilmente com outros elementos químicos, especialmente com átomos de oxigênio. Isso faz da hemo-globina a principal difusora do oxigênio pelos tecidos do corpo.

Quando porém essa proteína sai das hemácias, ela se separa em dois dímeros (cada um com duas subunidades), deixan-do os íons de ferro muito expostos. Altas concentrações de hemoglobina nessa for-ma podem ser tóxicas. O problema é mais agudo nos rins, onde há a tendência de essa molécula se acumular por ser a fun-ção do órgão depurar o sangue. Também sofrem com esse distúrbio os pacientes de certas doenças hereditárias e portadores do parasita da malária, cujas hemácias são constantemente rompidas e liberam ex-cesso de hemoglobina no plasma.

Biofísica y

limpeza molecular

complexo proteico: haptoglobina (azul) adere a subunidades de hemoglobina (vermelho) e as neutraliza

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O organismo humano tem um mecanis-mo natural para eliminar o excesso dessa proteína. Há em circulação no sangue ou-tra proteína, a haptoglobina, que se liga aos dímeros de hemoglobina, envolvendo e neutralizando seus íons de ferro. Esse complexo hemoglobina-haptoglobina (Hb-Hp) por sua vez é retirado do san-gue por células denominadas macrófa-gos. Essas células fazem isso por meio de proteínas chamadas receptores CD 163. Através da ligação a locais específicos, os receptores “fisgam” e retiram os com-plexos Hb-Hp da circulação sanguínea.

A estrutura átomo por átomo da he-moglobina é conhecida desde 1959, quando pesquisadores conseguiram crescer um cristal da macromolécula e observar como ela interfere na pas-sagem de raios X, fenômeno conhecido como difração. Mas até recentemente não havia sido possível fazer o mes-mo com a haptoglobina e o complexo Hb-Hp. “A dificuldade principal era a forma peculiar da haptoglobina, difícil de cristalizar”, explica Oliveira.

artigo científico

ANDERSEN, C.B.F. et al. Structure of the haptoglobin–haemoglobin complex. Nature. v. 489. 20 set. 2012.

Sob coordenação do biomédico Soeren Moestrup, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, os pesquisadores iniciaram em 2006 a busca pela condição ideal para purificar e cristalizar as substâncias de-sejadas. O esforço aliou diversas técnicas bioquímicas e biofísicas. Oliveira cola-borou na análise de como os raios X são espalhados pelas moléculas em solução aquosa. A técnica permitiu a confirmação de que o formato das moléculas crista-lizadas é o mesmo daquelas dissolvidas em água. As estruturas em alta resolução obtidas mostram como a haptoglobina se forma a partir de duas subunidades (em azul-claro e azul-escuro na figura acima), conectadas de uma maneira nunca antes vista em proteínas. Mostram ainda como se forma o complexo Hb-Hp e este se liga aos receptores CD 163. n Igor Zolnerkevic

SUbUnIDADE DE hEmoglobInA

rEcEPtor cD 163 hAPtoglobInA

Page 58: As negociações do império

62 z novembro De 2012

Técnica que estabiliza

pressão na interface entre

óleo e água pode facilitar

a extração de petróleo

uma dupla de físicos teóricos da Universidade Federal de Per-nambuco (UFPE) identificou uma solução incrivelmente

simples para um problema que a indús-tria petrolífera enfrenta há décadas: a formação dos chamados dedos viscosos, protuberâncias fluidas que surgem quan-do os engenheiros injetam água dentro de rochas porosas para empurrar o pe-tróleo armazenado nelas em direção ao poço de extração.

O ideal seria que a água funcionasse como um pistão, deslocando uniforme-mente o líquido mais viscoso. Acontece, entretanto, que minúsculas diferenças de pressão na fronteira entre os dois flui-dos tendem a se amplificar e originar ra-pidamente pequenos tentáculos de água, os tais dedos viscosos, que avançam no interior da massa de petróleo e empur-ram apenas parte dela. “A água forma canais preferenciais que varrem uma área bastante limitada do reservatório”, explica o engenheiro mecânico Márcio

DinâMica DE flUiDos y

tensão sob controle

Tentáculos fluidos: diferenças de pressão na superfície de contato entre a água e o óleo geram estruturas em forma de dedos in

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Carvalho, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que pesquisa métodos de recuperação avançada de petróleo para a Chevron, Petrobrás e Repsol. Segundo Carvalho, os dedos viscosos são um dos principais fatores que fazem com que em alguns casos se aproveite apenas 30% da capa-cidade de um reservatório.

As empresas petrolíferas resolvem parcialmente o problema acrescentan-do à água polímeros que aumentam sua viscosidade. Isso estabiliza a interface com o petróleo, reduzindo a formação dos dedos viscosos. “Mas esse processo tem um custo alto e uma logística com-plicada”, diz Carvalho.

Os físicos José Américo de Miranda e Eduardo Dias, ambos da UFPE, auxi-liados por Carvalho e Enrique Alvarez--Lacalle, da Universidade Politécnica da

Page 59: As negociações do império

PESQUISA FAPESP 201 z 63

testes em uma célula de Hele-Shaw, controlando por computador o fluxo de água injetada. “Realmente a injeção de um volume que aumenta linearmen-te estabilizou a interface”, diz Miranda. Simulações por computador feitas por Alvarez-Lacalle confirmaram a solução do problema.

Os experimentos e as simulações suge-rem que os dedos viscosos não devem se formar nem mesmo se a injeção de água se tornar forte demais. “Contanto que a bomba de água seja eficiente, o processo melhora com o tempo”, explica Miranda.

Esse não é o primeiro trabalho a conse-guir eliminar os dedos viscosos. Neste ano, dois outros grupos de físicos publicaram métodos diferentes capazes de impedir a formação de dedos viscosos – em um de-les, inclina-se a placa de vidro superior da célula de Hele-Shaw; no outro, a placa superior é substituída por uma membrana elástica. Não há, porém, uma maneira ób-via de essas abordagens serem aplicadas na extração de petróleo, como é o caso da solução proposta pelos brasileiros.

“Também há desafios tecnológicos para implementar nossa solução, como controlar o bombeamento de água”, afir-ma Carvalho. “Mas esses desafios podem ser superados.” Ainda que se alcance esse controle, efeitos inesperados da passa-gem dos líquidos pelas rochas porosas podem surgir e atrapalhar a extração de petróleo, segundo o físico Alberto Tufaile, da Universidade de São Paulo.

Evitar a formação dos dedos viscosos é importante não apenas para o mun-do do petróleo e dos fluidos em geral. Diversos processos de crescimento na natureza são regidos por equações ma-temáticas parecidas ou idênticas às que descrevem os dedos viscosos. Miranda acredita que a solução encontrada por eles poderia ser adaptada para impedir o crescimento desordenado de cristais semicondutores na indústria microele-trônica. Ou, ainda, que possa auxiliar no planejamento da aplicação de medica-mentos para evitar o espalhamento de tumores pelo corpo, uma vez que parte dos tumores cresce como uma árvore que se ramifica. n Igor Zolnerkevic

Catalunha, Espanha, propuseram uma solução que, a princípio, parece ser mais prática. Em artigo na Physical Review Letters, eles verificaram que o simples controle da velocidade com que a água é injetada nas rochas pode eliminar com-pletamente os dedos viscosos.

Para simular em laboratório a maneira como os líquidos fluem pelos poros das rochas, os pesquisadores que estudam os dedos viscosos usam um aparato conhe-cido como célula de Hele-Shaw, relativa-mente fácil de construir. Primeiro, eles preenchem o espaço milimétrico entre duas placas de vidro paralelas com um fluido viscoso, por exemplo óleo mineral. Em seguida, abrem um pequeno furo na placa de cima e, por ele, injetam conti-nuamente um fluido menos viscoso, como a água. Logo a forma circular da bolha de água vai dando lugar a um padrão radial de dedos cada vez mais complicado. “Os dedos bifurcam, quadrifurcam e assim por diante”, explica Miranda.

Essa técnica é usada desde 1958, quan-do os físicos britânicos Philip Saffman e Geoffrey Taylor demonstraram que as equações matemáticas que descrevem a formação dos dedos viscosos nas células de Hele-Shaw são as mesmas que explicam o surgimento deles em rochas porosas. Mas foi só a partir de 2009 que diversos grupos de pesquisadores começaram a de-senvolver métodos efetivos de manipular a formação dos dedos nas células.

SImPlES DEmAISMiranda e Dias investigavam a mate-mática por trás de um desses métodos quando descobriram uma abordagem simples de atacar o problema e redu-zir o tamanho dos dedos. Os cálculos sugeriam que os dedos viscosos sumi-riam caso, em vez de injetar um fluxo constante de água, como normalmente se faz, o volume injetado inicialmente fosse pequeno e aumentasse linearmente com o tempo (ver o infográfico ao lado).

“A solução podia ser uma função mate-mática complicadíssima, mas não”, lem-bra Miranda, “é simplesmente uma linha reta”. O resultado parecia bom demais para ser verdade. De início, a dupla des-confiou que as aproximações feitas nos cálculos deixassem de valer à medida que a força de injeção da água aumentasse com o tempo.

A teoria foi posta à prova no labora-tório de Carvalho. Ele e Dias fizeram

artigo científico

DIAS, E. O. et al. Minimization of viscous fluid fingering: a variational scheme for optimal flow rates. Physical Review Letters. v. 109 (14). 5 out. 2012.

Uma questão de velocidade ritmo de injeção de um líquido em outro mais viscoso determina a forma das bolhas

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Água injetada à velocidade constante

em óleo cria instabilidades na fronteira

entre os fluidos. a bolha de água ganha

uma forma cheia de dedos

as instabilidades desaparecem quando

a velocidade de injeção da água aumenta

com aceleração constante. a bolha de

água se espalha de modo uniforme

águaorifício

dedos viscosos

espalhamento uniforme

tempo

aceleração constante

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tempo

sem aceleração

água

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óleo

óleo

Page 60: As negociações do império

64 z novembro De 2012

Eliminar sincronismos em redes pode ajudar

no controle de multidões e de distúrbios cerebrais

Salvador nogueira

P arece haver uma forma bastante simples de evitar que a atividade em rede tão complexas e distintas

quanto a internet ou o cérebro humano se torne sincronizada, o que as impe-de de funcionar adequadamente. Em trabalho publicado na revista Scientific Reports, pesquisadores da Universida-de Federal do Ceará (UFC) e da Escola Politécnica de Zurique (ETH), na Suíça, propõem que é possível quebrar o sin-cronismo de um sistema interferindo em alguns pontos-chave, sem precisar atuar sobre o todo. “Exemplos de sin-cronização podem ser encontrados num amplo espectro de fenômenos, como o disparo de neurônios, as cascatas de la-ser, as reações químicas e a formação de opinião”, afirmam os pesquisadores no artigo. “Mas, em muitos casos, a forma-ção de um estado coerente não é dese-jada e precisa ser atenuada.”

Em todo sistema que opera de algum modo como uma rede é possível (e muitas vezes provável) que se crie um sincro-nismo em sua atividade. E muitas vezes esse processo é prejudicial ao seu contí-nuo funcionamento. O trabalho do mate-mático Vitor Louzada e dos físicos José Soares Andrade Junior, Nuno Araujo e Hans Herrmann foi justamente tentar desenvolver uma estratégia que permi-tisse quebrar o sincronismo e manter o sistema saudável.

rEDEs coMPlExas y

Efeitos da simultaneidade

Hoje em dia quando se fala em rede logo se pensa em computadores interli-gados. Mas a rigor todo conjunto de ele-mentos conectados em que a atividade de um influencia a dos demais pode ser tratado, do ponto de vista matemático, como uma rede. Um exemplo lembra-do pelos pesquisadores foi a inaugu-ração da Millenium Bridge (ponte do Milênio), em Londres, em 2002. Uma multidão se aglomerou à entrada da passagem, para cruzá-la logo que fos-se inaugurada. Quando o trânsito foi autorizado, todos iniciaram uma frené-tica caminhada pela ponte e, em razão do tamanho da multidão, criou-se um sincronismo entre os passos dos cami-nhantes. Resultado: a vibração conjunta levou a um balanço lateral da estrutura que assustou quem estava ali.

Em outras situações, a sincronização de uma rede pode ser bem mais perigosa. É o caso da doença neurológica conheci-da como epilepsia. Nas crises epilépticas os neurônios entram em sincronismo, disparando impulsos simultaneamente. O resultado é uma convulsão. Na doen-ça de Parkinson, em que há uma gradual perda de controle dos movimentos, o pro-blema é semelhante: a sincronização nos disparos neuronais leva ao descontrole motor. Para combater esses problemas, os médicos desenvolveram dispositivos co-nhecidos como marca-passos cerebrais,

que, implantados no cérebro, emitem im-pulsos elétricos que interrompem o sin-cronismo e restauram a atividade normal. Contudo, esses sistemas existentes hoje precisam levar em conta todo o conjunto da atividade cerebral antes que possam entrar em ação. O resultado é uma res-posta lenta e um nível de controle me-nos fino sobre a necessidade ou não de intervenção na rede neuronal.

O diferencial do trabalho publicado na Scientific Reports é mostrar, primeiro na teoria e depois em simulações de compu-tador e em experimentos com seres vivos, que é possível evitar o processo de sincro-nização sem interferir na rede inteira. Além de reduzir a intervenção necessária, a res-posta pode ser iniciada de maneira local, sem nem mesmo levar em conta o conjunto da rede. No estudo, os pesquisadores su-gerem que é possível incluir na rede o que eles chamam de contrários, entradas de da-dos pontuais que seguem na contramão da tendência de sincronização. Aplicando esse

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Page 61: As negociações do império

PESQUISA FAPESP 201 z 65

a sincronia dos passos de milhares de pessoas cruzando ao mesmo tempo a Millenium Bridge, em londres, em 2002, fez a ponte oscilar

O grupo testou essa estratégia no sis-tema nervoso de um verme muito usado para pesquisa científica, o Caenorhab-ditis elegans, cujo organismo é relati-vamente simples, por se tratar de um ser pluricelular. Com um total de cerca de mil células, ele foi o único organis-mo vivo cujo sistema nervoso foi com-pletamente mapeado. Como o conheci-mento de sua rede neuronal é completo, foi possível identificar onde instalar os contrários e impedir o sincronismo de suas células cerebrais. Segundo os pes-quisadores, essa foi uma prova de prin-cípio importante. O teste mostrou que os cálculos feitos pelo grupo estavam corretos e abriu a perspectiva de que marca-passos cerebrais mais eficientes possam ser criados no futuro.

Mas ainda há desafios a serem supera-dos. Numa rede imensa, como o cérebro humano, o desafio de identificar os hubs é bem maior. “A dificuldade em realizar essa tarefa depende da complexidade da rede envolvida", afirma Andrade. “Uma possível forma de encontrar os tais hubs é por meio da monitoração espacial da atividade do cérebro, o que pode revelar as regiões em que a atividade neuronal é tipicamente mais alta.”

A aplicação dessa estratégia parece ser mais simples no caso das redes de computadores, por maiores que sejam. Como essas redes podem ser mapeadas mais facilmente, torna-se menos tra-balhoso identificar os hubs e interferir em seu funcionamento, dissipando po-tenciais ataques de hackers que tentem sobrecarregar o sistema induzindo a sua sincronização. Já a aplicação social desse novo conhecimento pode ser controver-sa. É provável que ninguém se opusesse à tentativa de impedir a Millenium Brid-ge de balançar lateralmente. Mas o que dizer de alguém que se aproveitasse de um grupo de contrários posicionados em pontos estratégicos de uma plateia com a intenção de atrapalhar uma estrondosa salva de palmas? n

artigo científico

LOUZADA, V.H.P. et al. How to suppress undesired synchronization. Scientific Reports. v. 2 (658). 2012.

princípio ao exemplo da Millenium Bridge, seria como se o governo tivesse treinado alguns atores para caminhar sempre fora de sincronismo com a multidão. Com uns poucos contrários distribuídos de maneira inteligente ao longo da ponte, seria possí-vel impedir que o sistema entrasse em sin-cronia e que a ponte começasse a oscilar.

IntErvEnçõES locAIS O mesmo vale para a epilepsia. Em vez de implantar no crânio um marca-passo desajeitado que leve em conta toda a re-de, seria possível desenvolver disposi-tivos diminutos que interagissem indi-vidualmente com neurônios e, levando em conta apenas as conexões próximas (o estado local), fossem capazes de atuar como contrários no momento apropriado para eliminar o risco de sincronização. O sucesso dessa estratégia dependeria de instalar os dispositivos nos pontos de interligação ou hubs, as regiões que man-têm o maior número de conexões na rede.

Page 62: As negociações do império

66 z novembro De 201266 z novembro De 2012

Empresas de autopeças instaladas no Brasil

produzem soluções em conjunto com

a matriz e centros de P&D de outros países

inDÚsTria aUToMoTiVay

osistema flex fuel foi inteiramente de-senvolvido nos laboratórios brasilei-ros da multinacional alemã Bosch e da italiana Magneti Marelli. Essa tec-

nologia, que permite ao automóvel funcionar com etanol, gasolina ou qualquer mistura entre os dois combustíveis, foi criada por engenheiros brasileiros e contou com o apoio das matrizes na Alemanha e na Itália. Conhecido pelo pioneiris-mo no uso em larga escala de biocombustíveis, principalmente o etanol da cana-de-açúcar, o Brasil tenta se firmar também como um polo de inovação na área de componentes automotivos. Para isso, conta com o apoio de vários centros de pesquisa e desenvolvimento de indústrias de autopeças instalados no país. Além da Bosch e da Magneti Marelli, a alemã Mahle também trabalha em várias soluções, boa parte delas direcionada aos combustíveis alternativos.

Esses centros, em conjunto com as indústrias de veículos instaladas no país, vão desenvolver a tecnologia necessária para o cumprimento do novo regime automotivo anunciado pelo governo federal no início de outubro. Pelo acordo, as fa-bricantes de veículos terão isenções no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) se apre-sentarem investimentos em pesquisa e desen-volvimento em itens como melhor eficiência no

Parceria multinacional

Yuri vasconcelos

tEcnologIA

gasto de combustíveis. Avanço que certamente se reflete no futuro do sistema flex.

“O flex fuel é um exemplo muito positivo”, diz Celso Eduardo Fávero, chefe de engenharia de desenvolvimento de produtos da Bosch no país. “Recebo pelo menos um telefonema por semana de gente de outros países indagando sobre bio-combustíveis. As normas e produtos para etanol que estão lá fora partem do Brasil. Isso significa que estamos transferindo tecnologia”, diz ele. O envolvimento da engenharia brasileira da Bosch com as tecnologias para uso do álcool combustível começou em 1985 e em meados da década seguinte a empresa forneceu o sistema flex ao primeiro au-tomóvel do mundo (um veículo Ômega, da General Motors do Brasil) que podia rodar com qualquer mistura de etanol ou gasolina. Os automóveis flex foram colocados no mercado nacional em 2003 e quatro anos depois a Bosch deu início à exportação de sistemas flex fuel semelhantes, que passaram a equipar modelos da montadora Peugeot vendidos na Suécia e na França. Nesses países, a gasolina recebe uma adição de 5% a 85% de etanol.

O investimento em pesquisa na empresa resul-tou recentemente em uma nova bomba de combus-tível para motores flex. O dispositivo é responsável por deslocar o combustível que está no tanque do carro para o sistema de alimentação do motor. in

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PESQUISA FAPESP 201 z 67

a Bosch desenvolveu o sistema flex fuel que faz os carros rodarem com gasolina, álcool ou qualquer mistura entre os dois combustíveis. Desenvolvido por engenheiros brasileiros, em campinas (sP) com apoio da matriz alemã, na cidade de gerlingen, um protótipo do sistema foi lançado em 1994 e o primeiro modelo comercial em 2003. a divisão de gasoline systems da empresa no Brasil é o centro de competência mundial para o etanol e coordena os principais desenvolvimentos mundiais que o grupo faz com esse biocombustível.

boSchProduto: sistema flex fuel

mAgnEtI mArEllIProduto: amortecedor semiativo

o desenvolvimento do produto envolveu engenheiros da empresa em Turim, na itália, Mauá (sP), no Brasil, e Bielsko-Biala, na Polônia, além de um fornecedor de Väsby, na suécia. os italianos fizeram a coordenação do projeto e a criação dos sistemas eletrônicos e os brasileiros desenvolveram o projeto mecânico. Uma empresa sueca de autopecas, a Öhlins racing, forneceu a eletroválvula que equipa o amortecedor. o produto foi montado e testado na Polônia.

mAhlE Produto: filtro de combustível

líder no mercado nacional de filtros de combustível, com 90% de participação, a Mahle está em estágio final de desenvolvimento de um novo filtro para motores flex fuel, mais eficiente e durável do que os convencionais. o projeto foi elaborado pelos engenheiros e técnicos do centro de P&D da empresa em Jundiaí (sP), o segundo maior do grupo no mundo. o desenvolvimento contou com apoio da matriz, localizada em stuttgart, na alemanha.

Väsby

Bielsko-Bialafrankfurt

gerlingen

Turim

MauáJundiaícampinas

Page 64: As negociações do império

68 z novembro De 2012

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O produto começou a ser desenvolvido em 2003 e coube à divisão de amortecedores no Brasil criar o projeto mecânico da peça. O trabalho foi coorde-nado pela matriz, na Itália, que também projetou os sistemas eletrônicos e a lógica de controle. Um fornecedor da Suécia elaborou a eletroválvula, componente para o funcionamento do sistema, e a unidade da Magneti na Polônia fez a montagem e os testes finais do produto. “O centro técnico de amortecedores em Mauá, em São Paulo, é um dos nove centros de competência da Magneti no mun-do. Isso se deve ao fato de a especialização de nos-sa unidade em amortecedores ser antiga, anterior mesmo à aquisição da Cofap pela Magneti Marelli”, conta Luiz Bloem Júnior, gerente de engenharia de inovação da unidade de amortecedores da Mag-neti Marelli. “Interagimos com equipes de outros países em projetos de engenharia simultânea”, diz Bloem. A empresa italiana comprou a fabricante brasileira Cofap em 1997. A multinacional detém 72% do mercado de amortecedores originais do país e produziu 29,6 milhões de peças em 2011.

A multinacional italiana também desenvol-veu, no início da década passada, um sistema para motores flex no Brasil diferente daquele da Bosch. Enquanto o da companhia alemã usa um sensor físico para fazer a leitura de com-bustível e determinar os parâmetros do funcio-namento do motor, o da Magneti, batizado de Software Flexfuel Sensor, emprega a quantifi-cação do oxigênio presente nos gases do escapa-mento e, assim, calibra o sistema para trabalhar com as diferentes misturas de álcool e gasolina.

Presença do etanol no mundoalém do Brasil, outros países usam uma mistura de gasolina e álcool como combustível veicular

o Brasil foi um dos pioneiros no uso do

etanol em veículos. É também o único que

tem carros com motores programados para

rodar apenas com etanol ou com qualquer

mistura desse combustível e gasolina – no

caso, os automóveis flex. na Europa, muitos

países acrescentam 5% de etanol anidro

(sem água) na gasolina, combustível que no

linguajar técnico recebe o nome de E05. Há

estudos para elevar esse percentual para

10%. nos Estados Unidos, a mistura varia

de 5% a 10%, embora em cerca de 1%

dos postos seja possível encontrar o E85 –

gasolina com 85% de etanol. na suécia,

40% dos postos oferecem esse combustível

(E85). no Brasil, a gasolina também recebe

uma adição expressiva de etanol anidro,

entre 18% e 25%.

O desafio da empresa foi criar um componente mais durável e com melhor desempenho do que o convencional – a Bosch detém cerca de 80% do mercado desse produto no Brasil. “As bombas que trabalham em motores flex sofrem sérios proble-mas de degradação. O etanol é um combustível muito agressivo que causa corrosão em alguns componentes do motor. Para tornar as bombas mais resistentes, a solução encontrada por nossa equipe foi aplicar um tratamento superficial que protege os componentes suscetíveis ao ataque do etanol”, explica Ederson Conti, gerente de enge-nharia de desenvolvimento de software da Bosch. Assim como ocorreu com o sistema flex, a nova bomba foi feita pelos engenheiros brasileiros, com ajuda de outros da matriz, na Alemanha. “Foi um trabalho multidisciplinar e também multicultu-ral”, afirma Conti. O produto, já usado em larga escala pelas montadoras instaladas no Brasil, é exportado para outros países, entre eles Estados Unidos, Suécia e Tailândia.

Os engenheiros da divisão de amortecedores da Magneti Marelli no Brasil também trabalham em conjunto com seus congêneres italianos no desenvolvimento de novos produtos. Um dos mais recentes é um amortecedor semiativo com comando eletrônico de última geração que, des-de 2009, equipa dois carros sofisticados do grupo Fiat, o Alfa Mito e o Lancia Delta. A novidade do amortecedor semiativo é que ele confere mais estabilidade ao veículo, porque conta com uma central de processamento e sensores localizados em pontos estratégicos do carro.

Mistura etanol e gasolina Flex fuel

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PESQUISA FAPESP 201 z 69

“As pesquisas iniciaram-se em 1997 e o produto, todo elaborado no Brasil, foi lançado em 2003. A partir dele, a unidade brasileira da Magneti Ma-relli foi definida como o centro de referência para o desenvolvimento de sistemas para combustí-veis alternativos. Recebemos muitas solicitações da matriz e se qualquer unidade da empresa no mundo quiser fazer um desenvolvimento nesta área, nós somos consultados”, diz Eduardo Cam-pos, gerente comercial da divisão de powertrain da empresa. A Magneti detém 43% do mercado nacional de sistemas biocombustíveis.

rEtEr AS ImPUrEZASLocalizado no município de Jundiaí, a 50 quilôme-tros de São Paulo, o centro de tecnologia da Mahle é considerado o centro de competência mundial da empresa no desenvolvimento de filtros para combustíveis alternativos. A unidade de P&D da empresa, uma das 30 maiores indústrias automo-tivas do mundo, faz parte de uma rede composta por oito centros similares espalhados pelo mundo e é formada por 230 técnicos e engenheiros. “O Brasil é o segundo maior centro de tecnologia da Mahle em orçamento, pessoal e produtos”, diz o brasileiro Ricardo Abreu, vice-presidente mundial de P&D da Mahle. “A necessidade de desenvolvi-mento de soluções para o mercado brasileiro de biocombustíveis faz a unidade no Brasil ganhar importância em termos globais”, diz ele.

Uma dessas soluções, em estágio final de de-senvolvimento, é um filtro de combustível de no-va geração para aplicação em motores flex fuel. A função desses filtros é reter impurezas presentes no combustível que podem afetar negativamente o funcionamento do motor. A primeira geração de filtros flex ficou pronta em 2003. A segunda tem a função de duplicar ou triplicar a vida útil do equi-

pamento, hoje de cerca de 10 mil quilômetros – metade da durabilidade dos filtros destinados a motores que rodam exclusivamente com gasolina. “Existem três razões para a vida útil dos filtros dos carros movidos a etanol ou flex ser tão baixa”, ex-

plica Fabio Moreira, gerente de P&D da divisão de filtração e periféricos de motor da Mahle. “A primeira está relacionada à quantidade de conta-minantes presentes no etanol bra-sileiro, cerca de 40% maior quando comparada à gasolina. A segunda ra-zão é devido ao consumo do veículo flex, até 30% maior quando compara-do ao movido apenas a gasolina. E a terceira está relacionada à formação de uma substância gelatinosa no fil-tro, que ocorre devido a certas con-dições. Esse gel entope a superfície filtrante e reduz sua durabilidade”, diz Moreira. Para contornar os pro-blemas, a empresa desenvolveu dois modelos de filtro – o Double-Flex e o Flexible Packing. Os dois foram bem aceitos, mas houve uma preferência pelo Flexible Packing. Além da maior

área filtrante e uma vida útil, estimada em 30 mil quilômetros, o motorista troca apenas o cartucho do elemento filtrante – feito de uma espécie de papelão –, preservando o corpo plástico do filtro. Os testes de durabilidade da nova peça devem ser iniciados no segundo semestre de 2013 e, se tudo correr bem, ela estará no mercado em 2015.

Apesar de reconhecer a importância do trabalho dos centros de P&D de algumas multinacionais do setor de autopeças, o professor Eduardo Vascon-cellos, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), acredita que ainda falta muito para o Brasil ser reconhecido como um centro de referência no desenvolvimento de soluções para a indústria automobilística. “As empresas de componentes automotivos têm diferentes posturas em relação ao papel de suas subsidiárias em termos de P&D. Para mim, o Brasil tem condição de fazer muito mais do que em geral as matrizes permitem.” O professor Francisco Nigro, da Escola Politécnica da USP, concorda com o colega da FEA. “Não es-tamos nos firmando como um centro gerador de tecnologia em biocombustíveis. Estamos tentando melhorar a eficiência energética dos motores a eta-nol, mas, quando o comparamos com os motores a gasolina feitos lá fora, vemos que ainda estamos longe”, diz Nigro. Ele se refere, por exemplo, aos motores a injeção direta em que o combustível é injetado na câmara de combustão do motor em alta pressão. Esse tipo de tecnologia é apontado como sucessor dos motores atuais porque economiza combustível e diminui a emissão de poluentes. n

laboratório do centro de tecnologia automobilística da Bosch, em campinas

o próximo desafio do sistema flex são os motores a injeção direta, apontados como sucessores dos motores atuais

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Page 66: As negociações do império

70 z novembro De 2012

A Embraer, terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, atrás apenas das gigantes Boeing (Estados Unidos) e Airbus (União Europeia), foi criada para transformar ciência

e projetos de pesquisa em produtos tecnológicos. “O conhecimento está no DNA da empresa”, diz Mauro Kern, vice-presidente de engenharia e tec-nologia da Embraer, onde começou há 30 anos. “No pós-guerra havia a visão de que a indústria aeronáutica poderia ser uma grande incentivado-ra para a tecnologia no país”, relata o engenheiro mecânico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O primeiro movimento nesse sentido foi a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáu-tica (ITA), em parceria com o Instituto de Tec-nologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, para a formação de engenheiros aero-náuticos. Depois veio o Centro Tecnológico de

PEsqUisa EMPrEsarial y

Aeronáutica (CTA), que nas décadas de 1950 e 1960 desenvolveu projetos com o objetivo de formar uma base de conhecimento tecnológico. Um deles viabilizou a indústria aeronáutica em 1969: “A Embraer foi constituída para produzir o avião Bandeirante”, diz Kern. Novos projetos vieram a reboque, como o do monomotor agrícola Ipanema no final dos anos 1960 e produzido em série a partir de 1972. “O primeiro avião certifi-cado no mundo para voar com biocombustível é produzido até hoje.”

Entre 1983 e 1984, Kern passou seis meses na Itália dedicado ao programa AMX, linha de aviões militares desenvolvida em colaboração com duas empresas italianas e voltada à capacitação da in-dústria nacional em integração de sistemas. O engenheiro eletrônico formado pelo ITA Andrea Barp, da área de simulação e modelagem de siste-mas da Embraer, também passou uma temporada na Itália em 1983 junto com outros jovens pes-

Embraer investe em parcerias para desenvolver

de biocombustíveis a inovação em cabines

voos de futuro

Dinorah Ereno

Page 67: As negociações do império

PESQUISA FAPESP 201 z 71

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a partir da esquerda, alexandre filogonio, Paulo anchieta, fernando fernandez, allan Pereira, Mauro Kern e andrea Barp, na sede em são José dos campos

quisadores. “O grau de integração e a complexi-dade dos sistemas embarcados na aeronave eram considerados avançados para a época, principal-mente por causa do software embarcado”, diz ele. Os desafios do grupo brasileiro foram superados com muito estudo, e o conhecimento adquirido nessa jornada permitiu que, cinco anos depois, a Embraer já fizesse o software embarcado da ae-ronave AMX.

Na verdade, a empresa procurou adquirir au-tonomia em todas as etapas de desenvolvimen-to e construção de uma aeronave. Quando, por exemplo, Kern voltou ao Brasil, foi alocado em uma filial da empresa criada para desenvolver competência em trens de pouso e hidráulica fi-na. “Fui o primeiro engenheiro do corpo técnico dessa filial”, diz Kern. Foram vários programas de cooperação e desenvolvimento até 1996, quando a Embraer certificou o trem de pouso do ERJ 145 ( jato regional de 50 assentos), o primeiro total-

mente desenvolvido pela empresa. Em 1999 Kern foi para a matriz, onde se dedicou aos projetos das séries Embraer 170 e 190, linha de jatos comer-ciais com capacidade para 70 até 120 assentos. Inicialmente trabalhou como engenheiro-chefe do projeto 190, depois assumiu a diretoria dos programas 170 e 190 e a vice-presidência da avia-ção comercial. Há um ano e meio, Kern responde pela vice-presidência de engenharia e tecnologia, função que abarca todos os programas aeronáu-ticos da empresa.

Barp, que trabalhava com aviões de defesa pa-ra uso militar, também foi chamado para o pro-grama de jatos regionais Embraer 170 e 190 em 2000. “Minha tarefa era ajudar a fazer a integra-ção dos modelos de simulação aos dispositivos de ensaios, que até então eram quase estáticos”, diz. Sem uma simulação realista das condições de voo, não seria possível preparar a aeronave para o seu primeiro teste no ar. Nessa época, a Embraer

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a aviação comercial, a executiva e a de defesa e segurança. Em 2011, a receita líquida da Embraer foi de R$ 9,8 bilhões, 63,6% correspondentes ao segmento de aviação comercial.

No desenvolvimento pré-competitivo não exis-te um produto em vista, mas tecnologias que po-

derão ser usadas em futuros projetos, a exemplo da soldagem por atrito, processo feito em estado sólido para produzir soldas pela rotação ou pelo movimento de peças sob compressão. “Essa soldagem permite um alívio de peso interessante para a indústria ae-ronáutica”, diz Fernando Fernandez, engenheiro mecânico formado pela Escola de Engenharia Industrial de São José dos Campos com mestra-do no ITA, que trabalhou com a tec-nologia no período de 2003 a 2011. Por enquanto, a soldagem por atrito será usada apenas em um pequeno painel do avião Legacy 500, que até o final do ano estará no ar. Desde o ano passado, Fernandez analisa tec-nologias “com um olhar para daqui a 15 ou 20 anos”.

A Embraer tem vários projetos em cooperação com institutos de pes-

quisa, universidades e outras empresas. Um dos exemplos é o Centro de Engenharia de Conforto (ver mais em Pesquisa FAPESP nº 194), projeto em parceria com as universidades de São Pau-lo (USP), Federal de Santa Catarina (UFSC) e Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos

há uma interação entre a aviação comercial, a executiva e a de defesa e segurança

delegava a fornecedores a responsabilidade pela integração e desenvolvimento do software embar-cado – que responde pela conexão de tudo que está no avião e por uma série de funcionalidades importantes para a competitividade do produto e dos serviços a ele associados, o que trazia difi-culdades aos desenvolvimentos. Em 2005, Barp começou a estudar as causas fundamentais desses obstáculos. Para reverter esse quadro, colocou o foco em métodos, procedimentos, ferramentas e ambientes que estendessem o uso da modela-gem matemática e da simulação de sistemas ao longo de toda a cadeia de valor de fabricação de uma aeronave, que engloba testes, certificação e suporte aos clientes.

Na Embraer a área de pesquisa e desenvolvi-mento (P&D) é distribuída em competitiva e pré--competitiva. A competitiva foi responsável, desde o ano 2000, pela família de jatos comerciais 170, 175, 190 e 195, chamada E-Jets, com capacidade de 70 a 120 assentos, o Legacy 600, que marcou a entrada da empresa no mercado da aviação exe-cutiva, além dos Phenom 100 e 300, que são jatos executivos pequenos para até 11 ocupantes, e do Lineage 100, jato executivo com interior de 120 metros quadrados, com vários ambientes para os passageiros. Atualmente estão sendo desenvol-vidos os Legacy 450 e 500 e o KC 390, um avião cargueiro militar, “o maior da categoria e o maior já projetado pela Embraer”, segundo Kern. “Ele tem características de desempenho muito interes-santes, como aterrissagem em pistas curtíssimas e reabastecimento durante o voo”, relata. Na esco-lha do portfólio de projetos de desenvolvimento tecnológico há uma interação muito intensa entre

linha de montagem de jatos comerciais

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Unicamp em controle de vibrações. Na volta para a Embraer, em 2001, trabalhou nas áreas de desenvolvimento de produto e depois ante-projeto, responsável pela criação dos primeiros conceitos de um novo produto. “Trabalhei nos primeiros projetos do Phenom 100 e 300 e do Legacy 500”, diz.

Em abril deste ano, um projeto desenvolvido pela empresa em associação com um consórcio de empresas portuguesas e o instituto de engenharia industrial Inegi, ligado à Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, venceu o Crystal Cabin Award na categoria Conceitos Visionários, prêmio internacional de inovação para interiores aero-náuticos. Chamado de Life, o projeto apresenta uma nova concepção para a aviação executiva do futuro, com materiais como cortiça e couro, fibras ópticas e diodos emissores de luz (LEDs).

mEnoS cArbonoA Embraer também participa de consórcios com outras empresas do ramo e institutos de pesquisa para o desenvolvimento de novas tecnologias de manufatura, de materiais compostos, estruturas metálicas e sistemas embarcados. “Temos pro-jetos em várias frentes e de várias naturezas”, diz Kern. Uma das frentes são os projetos para desenvolvimento de biocombustíveis. Um deles, em parceria com as empresas norte-americanas Amyris e GE, com a participação da Azul Linhas Aéreas, tem como foco a produção de biocom-bustíveis para jatos a partir do etanol da cana--de-açúcar. Outro, em colaboração com a Boeing e financiamento da FAPESP, tem como objetivo identificar alternativas sustentáveis para o de-senvolvimento e produção de biocombustíveis destinados à aviação comercial no Brasil.

“Os biocombustíveis gerados a partir de fon-tes renováveis, além de serem uma alternati-va ao querosene de aviação obtido do petróleo,

r$ 9,8bilhões foi a receita líquida da empresa em 2011

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(Finep). O laboratório de conforto, com cerca de 300 metros quadrados, tem como objetivo melhorar o interior das aeronaves e o nível de bem-estar dos passageiros.

No projeto financiado pela FAPESP “Aeronave silenciosa: uma investigação em aeroacústica”, um grupo formado por 70 pesquisadores da Em-braer, da USP, da Universidade de Brasília, da UFSC e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) desenvolve métodos e equipamentos pa-ra supressão de ruídos. As primeiras discussões que levaram ao projeto tiveram início em 2003, com a participação de Allan Kardec Pereira, 47 anos, engenheiro aeronáutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O acoplamento entre vibração e ruído interno em aviões foi tratado no pós-doutorado de Pe-reira na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em engenharia mecânica. O pesqui-sador trabalhou por dois períodos na Embraer. O primeiro foi em 1989 na área de desenvolvi-mento de produto.

No começo da década de 1990, Pereira vol-tou para Minas, onde fez mestrado na área de otimização na UFMG, e depois doutorado na

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Técnicos trabalham nas várias etapas de fabricação, como instalação acústica (abaixo)

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também contribuem para reduzir a emissão de carbono”, diz Alexandre Tonelli Filogonio, for-mado em engenharia mecânica pela UFMG e com pós-graduação em engenharia econômica pela Fundação Dom Cabral, que lidera um grupo dedicado ao tema de combustíveis alternativos na área de desenvolvimento tecnológico pré--competitivo. Pelos dados do Painel Intergo-vernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a aviação comercial responde por 2% das emis-sões totais de gás carbônico (CO2) geradas pe-las atividades humanas. O desafio é reduzir as emissões de maneira que em 2050 elas sejam equivalentes à metade do que foi emitido pelo setor em 2005, conforme compromisso assu-mido pela indústria em abril de 2008 e ratifica-do em março de 2012. Uma área com destaque na Embraer é a de monitoramento da saúde de aeronaves, coordenada por Paulo Anchieta, de 46 anos, que tem uma singular trajetória pro-

fissional. Ele começou há 26 anos como técnico mecânico, depois foi transferido para o setor de engenharia, onde preparava dados matemáticos utilizados pelos engenheiros para avaliação das estruturas dos aviões. Com formação em colégio técnico, Anchieta decidiu cursar matemática na Universidade Salesiana em Lorena, no interior paulista. “Com o curso, tive a oportunidade de auxiliar mais engenheiros em outras frentes que eles não tinham domínio”, diz.

O trabalho de monitoramento funciona como uma ferramenta preventiva de análise dos com-ponentes dos aviões, com o objetivo de evitar contratempos futuros. A tecnologia de gerencia-mento da saúde de sistemas, chamada de PHM (prognostics and health management), foi eleita em 2009 como uma das 10 tecnologias mais pro-missoras para a aviação pelo Instituto Americano de Aeronáutica e Astronáutica (AIAA).

A experiência de Anchieta com aviões milita-res foi o passaporte que o levou a ser convidado a trabalhar no projeto de monitoração e saúde de aviões comerciais. “A estrutura do avião mi-litar é monitorada como se fosse uma inspeção de saúde nas pessoas”, compara Anchieta, que cursou engenharia mecânica no curso noturno na Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Guaratinguetá para poder assumir funções mais compatíveis com o seu conhecimento e experiência.

A crise financeira do início da década de 1990, que resultou em cortes drásticos de funcionários

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o monitoramento funciona como uma ferramenta preventiva de análise dos componentes do avião

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mauro Kern, vice-presidente de engenharia e tecnologia

UFrgS – graduação

Andrea barp, área de simulação e modelagem de sistemas

ItA – graduação

Fernando Fernandez, área de desenvolvimento de materiais e processos

Escola de Engenharia Industrial – graduação ItA – mestrado

Allan Kardec Pereira, desenvolvimento tecnológico

UFmg – graduação e mestrado Unicamp – doutorado e pós-doutorado

Alexandre tonelli Filogonio, área de combustíveis alternativos

UFmg – graduação Fundação Dom cabral – pós-graduação

Paulo Anchieta, área de monitoramento da saúde de aeronaves

Universidade Salesiana de lorena e Unesp de guaratinguetá – graduação

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laboratório de testes e checagem de materiais (à esquerda) e painel do legacy 450 (acima)

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na empresa, transformou-se em aprendizado para Anchieta. “Tive que fazer várias funções.” Na época, apenas 30 pessoas eram responsáveis por todas as tarefas de engenharia relacionadas à análise estrutural. Hoje, dos mais de 17 mil funcionários, 4 mil estão na engenharia, entre engenheiros e técnicos projetistas aeronáuti-cos. Ainda na década de 1990, incentivado pela empresa, Anchieta cursou várias disciplinas de pós-graduação no ITA, o que ampliou conside-ravelmente seu leque de conhecimento teórico.

Ao assumir a liderança da equipe de monitora-mento da saúde de aeronaves, Anchieta procurou parceiros para desenvolver inovações para a avia-ção comercial. Inicialmente entrou em contato com a Faculdade de Engenharia Mecânica da UFU e a Faculdade de Engenharia da Unesp de Ilha Solteira. As colaborações foram estendidas com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de pesquisadores da UFMG e do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), de Campinas. Alguns projetos já foram encerrados e renderam frutos.

DEtEcção PrEcocEA pesquisa em parceria com a federal de Uber-lândia resultou em um novo projeto para desen-volver a serialização do sistema de monitoração estrutural. “Estamos desenvolvendo um sistema de software e hardware, baseado na tecnologia chamada de impedância eletromecânica, para fazer o trabalho sensorial nos aviões”, diz An-chieta. A partir de resultados de vibração, os sensores irão apontar se existem falhas, onde se localizam e a possível severidade delas. O

sistema será aplicado primeiro nos ensaios de fadiga de aeronaves. “Haverá um ganho fantás-tico, porque a detecção de uma trinca em fase inicial evitará prejuízos futuros com a sua pro-pagação.” A próxima etapa é dar condições pa-ra que o sistema sensorial seja qualificado para utilização em voos, tanto de aeronaves militares como comerciais e executivas.

Em julho deste ano, no European Workshop Structural Health Monitoring (SHM), em Dres-den, na Alemanha, foi realizado um congresso sobre a tecnologia e Anchieta foi o vencedor do prêmio anual, indicado pelo professor de astrofí-sica Fu-Kuo Chang, da Universidade Stanford. A escolha do premiado é feita por um comitê inter-nacional, do qual participam 120 pessoas ligadas às áreas acadêmica, governamental e industrial, como a Nasa, agência espacial norte-americana, centros de pesquisa americanos, europeus, aus-traliano e japoneses, além de profissionais que atuam na Airbus, Boeing e Bombardier. n

Jatos executivos Phenom 100 (esquerda) e lineage 100 (acima) e representação artística do cargueiro militar Kc 390 (direita), em desenvolvimento

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Biolab utiliza nanotecnologia na

produção de anestésico e de

medicamento para tratar calvície

remédio em

representação artística mostra a relação de tamanho entre nanopartículas, na cor rosa, e um fio de cabelo

Evanildo da Silveira

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Fármacos produzidos na forma de cápsulas nanométricas é a nova estratégia tecnológica da Biolab, empresa farmacêutica brasilei-

ra sediada em São Paulo. A inovação se apresenta em dois medicamentos que estão em desenvolvimento, um creme anestésico e uma solução para tratamento da alopecia, principalmente na calvície ou, em menor grau, na falta de pelos no corpo A novidade é composta de nano-cápsulas feitas de um polímero, uma espécie de plástico biodegradável que libera os princípios ativos lentamente no organismo e provoca uma ação terapêu-tica mais prolongada, além de reduzir os efeitos colaterais. Os medicamentos, re-sultado de uma parceria que já dura uma década entre a Biolab e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estão em testes clínicos e deverão ficar prontos para uso no final de 2013, depois de passarem pelo crivo da Agência Na-cional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Para o diretor de pesquisa, desenvolvi-mento e inovação da Biolab, Marcio Falci, a ideia de desenvolver os dois novos pro-dutos surgiu na área de gestão do conhe-cimento da empresa. Esse setor mantém um banco de dados com todo o conheci-mento da Biolab e com informações sobre o que é feito e pesquisado no mundo no campo de atuação da empresa. “Isso nos possibilita estabelecer tendências, estudar os avanços tecnológicos relacionados com as linhas de nossos medicamentos e pes-quisas, conforme o interesse estratégico da empresa”, explica. “Também fazemos o mapeamento das instituições de pesquisa,

de universidades e seus pesquisadores, o que auxilia em muito nossa prospecção tecnológica para produtos futuros.”

Foi assim que um dos estudos realiza-dos concluiu que os mercados de anes-tésicos e de drogas capilares tinham um bom espaço para crescimento. “Para atender às necessidades médicas detec-tadas, a inovação que poderíamos incor-porar, no sentido de oferecer tratamen-tos mais eficientes e seguros, apontava para o emprego de nanotecnologia nos princípios ativos de produtos já exis-tentes”, explica Falci. “O nanoencapsu-lamento foi escolhido por já fazer parte de nossas ferramentas produtivas.”

Os princípios ativos que serão utili-zados são a prilocaína e a lidocaína, no caso do anestésico, e a finasterida para a calvície. Todos são conhecidos pela comunidade médica e usados em vários medicamentos existentes no mercado. A empresa recorreu à antiga parceria com a UFRGS que já havia dado resultado po-sitivo na formulação de outros produtos nanotecnológicas, no caso cosméticos e protetores solares (ver Pesquisa FAPESP nº 167), para absorver a nanotecnologia em seus novos produtos. Dois grupos de pesquisa atuam em conjunto na universi-dade, um coordenado pela farmacêutica Adriana Pohlmann, do Instituto de Quí-mica, e outro pela também farmacêutica Sílvia Guterres, professora da Faculdade de Farmácia.

O trabalho conjunto para a formu-lação das nanocápsulas com a Biolab começou na UFRGS em 2005, em res-posta a um edital de 2004 do Conselho

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Nacional de Desenvolvimento Científi-co e Tecnológico (CNPq). “Recebemos apoio financeiro do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação], por meio do CNPq”, conta Adriana. “A em-presa deu a sua contrapartida também e começamos o trabalho, que se esten-deu até 2007, quando depositamos um pedido de patente no INPI [Instituto Nacional de Propriedade Industrial].” A partir daí, coube à Biolab prosseguir com o desenvolvimento dos medicamentos, realizando testes em seres humanos e planejando a produção em grande escala.

Na UFRGS foi desenvolvida a tecno-logia de nanoencapsulamento dos prin-cípios ativos usados pela Biolab, que en-tram na composição do anestésico e do medicamento capilar. As nanocápsulas são esféricas, com um diâmetro médio de 200 nanômetros – 1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão. Para comparar, um fio de cabelo tem a espes-sura de cerca de 50 mil nanômetros. No caso específico dos dois medicamentos da Biolab, o uso das drogas se fará por meio de aplicação tópica na forma de suspensão, creme ou gel. “Por causa das pequenas dimensões das nanocápsulas, elas atingem apenas a camada da pele na qual será produzido o efeito terapêuti-co desejado, no caso, a derme, sem que os princípios ativos atinjam a corrente sanguínea e provoquem problemas cola-terais”, explica Falci. “Em contato com a pele, elas podem se romper ou ocorrer a erosão da parede polimérica, liberando gradualmente as substâncias ativas no local da derme que se buscou atingir.”

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Hoje a maior parcela desse mercado é do setor químico, 53%, seguido pelo de semicondutores, 34%.

tEmPo DE AProvAçãoNa área da saúde, a nanotecnologia é em-pregada na indústria de produtos médicos, veterinários, material para diagnóstico por imagens e, em maior quantidade, na área de cosméticos. Em relação a esses últi-mos, a Biolab já tem no mercado a linha Photoprot, de protetores solares, também desenvolvida em parceria com a UFRGS. A empresa lançou ainda a linha Skan, com-posta por um musse de limpeza e um gel--creme para o controle da oleosidade da pele. Nesses casos, o tempo entre o início do desenvolvimento do cosmético e a sua chegada às prateleiras das farmácias é me-nor, porque a legislação para a liberação desses produtos é menos rigorosa em re-lação aos novos medicamentos.

A Biolab pretende trabalhar para mu-dar esta situação, tornando mais rápida a liberação da venda de novas drogas. “Vamos solicitar ao governo que se crie uma fila especial na Anvisa para medi-camentos que tenham inovação”, diz o diretor científico da Biolab, Dante Alario Junior. “Como o incentivo à inovação faz parte da política científica do atual governo, cremos que nossa solicitação faz sentido. Hoje uma nova droga pode levar de um ano e meio a dois anos para

ser analisada e liberada pela Anvisa. Para produtos inovadores esse prazo deveria ser menor. Do jeito que está há risco de a inovação já estar velha quando a venda do medicamento for permitida.”

No caso do nanoanestésico, a Biolab estima que o mercado potencial é de cer-ca de R$ 30 milhões por ano. Quanto ao produto para a calvície, a perspectiva é maior ainda: R$ 95 milhões. “Esses pro-dutos tiveram crescimento inferior ao do mercado total farmacêutico, que aumen-tou 59% em unidades vendidas e 89,65% em faturamento nos últimos cinco anos”, conta Falci. “Em comparação, o merca-do para anestésicos cresceu, no mesmo período, 54% em vendas e 77% em fatu-ramento, e o de tratamento da alopecia, 48% e 46,7%, respectivamente.”

A empresa não revela quanto investiu nos dois novos produtos. “Na verdade, não sabemos, porque não discriminamos os gastos projeto por projeto”, justifica Alario Junior. “Investimos em pesquisa desenvolvimento e inovação entre 7% e 8% do nosso faturamento anual, que em 2012 deverá chegar a R$ 780 milhões.” Para sanar essa lacuna, a companhia con-tratou uma consultoria para analisar os investimentos em cada projeto e verificar como ela pode aproveitar melhor os be-nefícios da Lei da Inovação, a chamada Lei do Bem, que incentiva as indústrias a investirem em produtos inovadores. n

composição e ação das nanocápsulasfármacos no interior de nanoesferas agem em camada profunda da pele

FontE biolab

Princípio ativo

núcleo oleoso

Parede polimérica

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Ação as nanocápuslas conseguem ultrapassar os poros da pele e da epiderme, o que não acontece com os produtos tradicionais. nessa passagem, as paredes biopoliméricas se rompem

comPoSIção as nanocápsulas são formadas a partir de um polímero biodegradável que se solidifica contendo o princípio ativo em seu interior e um óleo que o torna solúvel

50 mil nanômetros

200 nanômetrosem média

Nanomedicamentos, como os dois de-senvolvidos pela Biolab, se inserem num contexto maior, uma verdadeira revolu-ção tecnológica que é a nanotecnologia. Trata-se da engenharia de materiais em escala de átomos e moléculas, que co-meça a causar impacto em várias áreas industriais, na agricultura, na biologia, além da medicina e farmacologia. Alguns produtos com essa tecnologia já estão no mercado. Entre eles, podem ser citados vidros e cerâmicas autolimpantes, te-cidos que não mancham, fármacos que circulam pela corrente sanguínea até chegar ao órgão doente, além dos senso-res de línguas eletrônicas mais sensíveis que a humana na distinção de sabores. De acordo com um estudo de 2010 da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), chamado Panorama da Nanotecnologia no Mundo e no Brasil, em 2004, os produtos nanotecnológicos movimentaram na economia mundial não mais do que US$ 13 bilhões, o que re-presentava menos que 0,1% da produção global de bens manufaturados naquele ano. Três anos depois, esse mercado ha-via crescido 10 vezes, chegando a US$ 135 bilhões (incluindo semicondutores e equipamentos eletrônicos). A previsão é de que esse valor chegue a US$ 1 trilhão no próximo ano e atinja US$ 2,95 trilhões em 2015 ou mais de 15% de todos os bens industrializados fabricados no planeta.

e o princípio ativo do medicamento chega à derme, mas não penetra nos vasos sanguíneos. Dessa forma, o medicamento age efetivavemente na região a ser tratada

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núcleo oleoso e parede polimérica

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noclonais, um para doenças do sistema imunológico e outro para câncer.”

Em maio surgiu a Orygen, também com capital de R$ 500 milhões, forma-da pelos laboratórios Biolab, Cristália, Eurofarma e Libbs. Para presidi-la, os quatro foram buscar em Nova York o cientista britânico Andrew Simpson, ex--diretor científico do Instituto Ludwig, que já trabalhou no Brasil e, inclusive, foi coordenador-geral dos projetos ge-nomas da bactéria Xylella fastidiosa e do câncer iniciados no final dos anos 1990 e financiados pela FAPESP (ver Pesquisa FAPESP Especial dos 50 anos). “A nova empresa quer estabelecer a capacidade de gerar anticorpos monoclonais tera-pêuticos em escala industrial no Brasil, o que possibilitará ampliar o acesso desses produtos no país, e também desenvolver novas moléculas terapêuticas por meio de um ativo centro de P, D & I”, diz Simp-son. “A fundação da Orygen e da Bionovis forma um agrupamento industrial farma-cêutico mais completo no país, tornando possível a produção e comercialização de medicamentos complexos.”

Inovação em grupo

a indústria farmacêutica nacional passa por uma nova fase. Depois da aposta nos genéricos, que aju-

dou os laboratórios brasileiros a se ca-pitalizar e fortalecer, o setor pretende agora transformar o país num polo de inovação, com foco em drogas sintéti-cas avançadas, fitoterápicas e, principal-mente, medicamentos biotecnológicos. O caminho escolhido para alcançar esse objetivo é a união de esforços. Assim, foram criadas neste ano duas grandes empresas, a Orygen e a Bionovis, cada uma formada por quatro companhias nacionais, com o objetivo de realizar pesquisas e desenvolver novos fármacos.

A criação das duas empresas foi es-timulada pelo BNDES, que desde 2003 realiza estudos e tenta apontar cami-nhos para o setor farmacêutico nacional. Em 2004, o banco lançou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Ca-deia Produtiva Farmacêutica (Profarma), que tinha, entre seus objetivos, reduzir o déficit comercial da cadeia produtiva farmacêutica, além de estimular a rea-lização de atividades de pesquisa, de-senvolvimento e inovação (P, D & I)no país. Em 2010 começou a sondagem para a criação de uma grande companhia a partir da união de nove laboratórios. Du-rante o processo de discussão, o grupo se dividiu e surgiram a Orygen e a Bionovis.

A primeira a ser criada foi a Bionovis, em março deste ano, unindo Aché, EMS, União Química e Hypermarcas. Com ca-pital de R$ 500 milhões – 25% de cada uma – a empresa vai pesquisar, desen-volver e comercializar medicamentos biotecnológicos. “Vamos construir em 2013 um laboratório de pesquisa e desen-volvimento e uma fábrica para produzir os remédios”, diz o presidente da nova empresa, Odnir Finotti. “Nessa primei-ra etapa, estamos fechando parcerias com duas companhias internacionais, que irão transferir para nós a tecnologia para a produção de dois anticorpos mo-

Empresas farmacêuticas brasileiras se unem para gerar

novos medicamentos

No campo institucional essas oito com-panhias e mais a Hebron se uniram e cria-ram a associação Grupo FarmaBrasil (GFB), que tem como missão fortalecer a indústria nacional de medicamentos. Juntas, elas respondem por 36% de todo o volume de remédios fabricados no Brasil e 53% dos genéricos, empregam cerca de 30 mil pes-soas e investem, em média, 6% de seu fa-turamento em pesquisa e desenvolvimen-to. Segundo o presidente da entidade, Re-ginaldo Arcuri, a associação surgiu para colocar em prática uma agenda estratégica, que vem sendo discutida desde 2010. Ela inclui a adoção de uma política industrial para o setor, visando aumentar a capaci-dade de inovação dos laboratórios nacionais e a produção de fármacos no país. “A par-ticipação das empresas nacionais no mer-cado de medicamentos passou de 4,7% em 1998 para 20,86% em 2011, o que represen-ta um crescimento de mais de 400%”, diz. “Isso significa que a indústria nacional é capaz de responder não só aos desafios, mas às oportunidades geradas pelo con-junto de políticas públicas para a área da saúde no Brasil.” n Evanildo da Silveira

Produzir medicamentos biotecnólógicos complexos é o principal objetivo das duas novas empresas

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Política imigratória do Estado novo escondia projeto de branqueamento

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Quando, em 1995, o Arquivo Histórico do Itamaraty foi aberto ao público, parte da documentação revelou que a instituição havia participado da polí-

tica racista e discriminatória de estrangeiros do Estado Novo, colocando o passado do Ministério das Relações Exteriores na incômoda posição de “porteiro do Brasil”. Uma nova pesquisa, Imi-grante ideal (Civilização Brasileira), do histo-riador Fábio Koifman, da Universidade Federal Rural Fluminense (UFRF), isenta o Itamaraty de toda a responsabilidade por essa política restri-tiva. “É um equívoco historiográfico, já que se ignora que, entre 1941 e 1945, o Serviço de Visto estava alocado no Ministério da Justiça, o real responsável pela palavra final da aceitação ou não de estrangeiros”, diz Koifman. Esse foi o único momento na história da República que a atribuição não esteve no âmbito do Itamaraty.

O pesquisador afirma que é a primeira vez que se analisa o papel central do Ministério da Jus-tiça, de seu titular, o jurista Francisco Campos (1891-1968), e de Ernani Reis (1905-1954), pare-cerista do ministério, burocrata que, através de sua interpretação, dizia, baseado na legislação, quem entrava ou não no país. Suas sugestões qua-se sempre eram aceitas pelo ministro e se basea-vam na seleção dos imigrantes “desejáveis”, que se encaixassem no projeto de “branqueamen-to” da população brasileira da ditadura Vargas. Negros, japoneses e judeus, assim como idosos e deficientes, não estavam nos padrões estabe-lecidos e eram recusados como “indesejáveis”.

A pesquisa de Koifman começou quando ele encontrou o decreto-lei 3.175, de 1941, que pas-sava o poder de decisão de concessão dos vistos do Ministério das Relações Exteriores para o Mi-nistério da Justiça. Mas o Serviço de Visto em si não foi criado por decreto, embora existisse com papel timbrado e tudo. Não foi, porém, instituído formalmente e sua verba vinha de outros órgãos. “Ele foi criado para isolar seus técnicos e tomar as decisões de forma puramente técnica e fria. Eles achavam mais fácil negar o visto do que ter de decidir no porto”, conta o historiador. “Todo o processo não chegou a conhecimento público e é nele que o Francisco Campos explica para Vargas por que o Brasil deveria restringir a imi-gração”, fala.

Funcionários do Itamaraty eram obrigados a informar o ministério com detalhes sobre a pessoa que pedia o visto e aguardar o parecer do minis-tro para concedê-lo ou não. A desobediência de

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diplomatas às diretrizes do ministério provocava ação direta de Vargas, que poderia determinar a instauração de inquérito administrativo ou até a demissão sumária do infrator. “Esse controle aumentou quando a situação europeia se agravou com a guerra e a escalada do antissemitismo na Alemanha. Judeus e perseguidos políticos come-çam a sair da Europa, gerando um aumento da demanda nos consulados. Nesse momento, a po-lítica imigratória brasileira se voltou contra eles.”

“No início do Estado Novo cabia ao Itamaraty gerir a política de vistos, mas isso mudou a partir de 1941. Essa troca refletia o debate na elite bra-sileira sobre qual era o imigrante ‘desejável’ para o ‘aprimoramento’ do povo brasileiro”, fala Koif-man. Vargas era simpatizante aberto do ideário eugênico. Em 1930, num discurso de campanha à Presidência, avisou: “Durante anos pensamos a imigração apenas em seus aspectos econômicos. É oportuno obedecer agora ao critério étnico”. Em 1934, durante a Constituinte, o lobby euge-nista, bem organizado, conseguiu a aprovação de artigos baseados nas teorias racistas. O alvo, então, era o japonês. De forma silenciosa foi ins-titucionalizado um sistema de cotas para cada nacionalidade que foi manipulado para restringir a entrada de orientais no país.

“O Brasil não foi o único a adotar medidas res-tritivas contra imigrantes e até ‘demorou’ a im-plantá-las. Democracias como os EUA e o Canadá já o faziam nos primeiros anos da década de 1920”, lembra o autor. Mas, uma vez iniciado o proces-so, foram rápidos. Não satisfeitos com as leis de 1934, setores da elite e intelectuais exigiram uma maior intervenção do Estado e uma seleção mais rigorosa na política imigratória. O resultado foi o decreto-lei 3.010, de 1938: exigia-se do solicitan-te de vistos que se apresentasse pessoalmente ao cônsul para que o diplomata visse o candidato e relatasse se era branco, negro, ou se tinha alguma deficiência física. “Segmentos letrados da socie-dade brasileira e muitos homens do governo, in-cluindo Vargas, acreditavam que o problema do desenvolvimento brasileiro estava relacionado à má formação étnica do povo. Achavam que tra-zendo ‘bons’ imigrantes, ou seja, brancos que se integrassem à população não branca, o Brasil em 50 anos se transformaria em uma sociedade mais desenvolvida”, conta o pesquisador.

O estrangeiro ideal era branco, católico e apo-lítico. A preferência pessoal de Vargas era pelos portugueses. “A maioria dos imigrantes vindos de Portugal era de origem modesta e instrução limita-

hUmAnIDADES

Navio de emigrantes, de lasar segall (1939/41), pintura a óleo com areia sobre tela, 230 x 275 cm

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de seleção de “desejáveis” e “indesejáveis” para o seu Setor de Vistos. Não conseguiu, porém, impor o ideário eugênico que admirava, sendo obriga-do a “tropicalizá-lo”. “As raças admiradas pelos americanos eram minoria num país composto majoritariamente por grupos considerados ‘infe-riores’”, lembra o historiador. Isso levou Campos a se concentrar no combate aos imigrantes “infusí-veis” que, supostamente, tinham um grau de mis-

cigenação baixo e, logo, não serviam ao projeto de “branqueamento” por miscigenação, entre esses, os judeus.

“Mas as restrições à entrada de judeus, tema recorrente nos estu-dos sobre a política imigratória do Estado Novo, devem ser vistas num contexto maior, em que vários outros grupos foram igualmente classifica-dos como “indesejáveis”. Se a con-dição de judeu dificultava a emissão de um visto, a comprovação da au-sência dessa condição tampouco era garantia de um visto”, avisa Koifman. Para o pesquisador, o antissemitismo de um fascista como Campos não era análogo ao racismo dos nazistas. “Após a Intentona Comunista de 1935 o Estado adotou uma visão genérica dos judeus que os associava ao comu-nismo, um antissemitismo de fundo político compartilhado por Vargas”, observa o pesquisador. Nas palavras de Campos: “Os judeus se tem apro-veitado do descuido das autoridades brasileiras. Embora o Brasil não se-ja fascista ou nacional-socialista, o certo é que esses elementos comu-nizantes, socialistas, esquerdistas ou liberais leem por uma cartilha que está longe de nos convir”.

Sem negar o antissemitismo de membros individuais do governo

e da sociedade brasileira, Koifman acredita que o critério adotado mais importante, ao lado da “ameaça vermelha”, era a capacidade, ou não, da suposta capacidade de “fusão” dos imigrantes. “A preocupação estava no potencial de união de eu-ropeus brancos com descendentes de africanos e indígenas, condição necessária para conseguir o ‘aprimoramento’ das gerações futuras”, fala. “O Estado Novo não queria reproduzir o racismo, então muito em voga nos EUA e na Europa. A segregação deveria ser evitada a qualquer custo, pois dificultaria a miscigenação, força-motriz do ‘branqueamento’”, diz. Vargas não tolerava ra-cismos contra grupos étnicos dentro do Brasil.

Esse cuidado também se devia à manutenção de uma boa imagem internacional, para agradar, em especial, os EUA, cuja política racial para os

da, acostumados à ditadura salazarista”, diz Koif-man. Europeus, mas sem “ideias dissolventes”, ao contrário dos grupos intelectualizados originários da Alemanha, França, Áustria, entre outros países, que produziam reflexões em jornais e livros sobre as mazelas nacionais. O ministro da Justiça detes-tava particularmente os intelectuais estrangeiros e chegou a propor o fechamento total do Brasil à imigração enquanto durasse a guerra na Europa, medida que o pragmatismo de Vargas rejeitou.

“O Brasil, que não contribuiu para que se crias-sem na Europa as perseguições e as dificuldades de vida, não pode se converter numa fácil hospe-daria da massa de refugiados. Não nos serve esse white trash, rebotalho branco que todos os paí-ses civilizados refugam”, argumentava Campos, também conhecido como “Chico Ciência”. “Um dos inspiradores intelectuais do Estado Novo foi influenciado pelos fascismos português e italiano, defendendo uma legislação imigratória calcada nas teorias eugênicas americanas.” Para Campos, na contramão do entusiasmo pela imigração em voga no país desde o século XIX, estrangeiros só atrasavam o desenvolvimento do país, “parasitas” que nada contribuíam para o progresso nacio-nal. “Os judeus, por exemplo, só se dedicavam a atividades urbanas, ao pequeno comércio. O problema é que Campos e Reis logo perceberam que essas eram as mesmas atividades às quais os portugueses se dedicavam, apontando a Vargas essa contradição, para ira do ditador, que queria imigrantes de Portugal”, fala Koifman.

O que abalou Campos, cuja ideologia não era isenta de interesses pessoais. Chico Ciência dispu-tava as atenções de Vargas com Oswaldo Aranha, então à frente do Itamaraty. Para atacar o rival, martelava a tecla de que, apesar das restrições, estrangeiros continuavam a entrar no Brasil, pro-va da incompetência do Itamaraty na gestão da questão imigratória. Bem-sucedido, convenceu o ditador da validade de suas ideias e ganhou o poder

no brasil, apenas em 1934 foram criadas as primeiras leis restritivas, política que países como os Estados Unidos e canadá aplicavam desde os anos 1920

Pedido de visto feito para oswaldo aranha, com a negativa do chanceler de Vargas

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espaço na sociedade. Perceberem que ser branco no Brasil era melhor do que ser negro e também adotaram a retórica eugênica.”

“Há uma série de boletins policiais sobre brigas entre estrangeiros e negros. Imigrantes pobres não queriam ser vistos como os novos escravos e afirmavam sua superioridade atacando os negros”, conta Lesser. Se os documentos contam uma his-tória, no cotidiana do Estado Novo o movimento xenófobo não funcionou como pretendido. O bra-silianista não nega o discurso contra a imigração e o antissemitismo das elites brasileiras, mas, ao estudar casos reais, viu que a ação do governo era mais flexível do que letra “dura” dos papéis timbrados. “Um bom exemplo é que, antes de co-locar em vigor, em 1934, as leis que restringiam a entrada de japoneses, o governo brasileiro avisou o ministro das Relações Exteriores do Japão. Um diplomata brasileiro contou ao ministro japonês o que estava para acontecer e o acalmou prome-tendo que os orientais continuariam a entrar no Brasil, utilizando cotas de países como a Finlân-dia, que praticamente não eram usadas”, conta. Lesser reuniu outros casos do “jeitinho brasileiro” de tratar os entraves da legislação.

Para o americano, a história mais rocamboles-ca dessa flexibilidade que não se lê nos arquivos oficiais é a cooptação secreta pelo Itamaraty de funcionários do consulado alemão, para que eles falsificassem a assinatura do cônsul, liberando imigrantes para entrar no Brasil. “Numa palestra chamei o cônsul de nazista e pessoas da plateia ficaram indignadas, mostrando vistos assinados pelo cônsul, a quem chamavam de herói, sem imaginar que eram falsificações”, conta.

Koifman respeita a hipótese de Lesser sobre uma “negociação” das leis, mas afirma que os documentos do Serviço de Visto não sustentam essa visão. “A lei foi, sim, aplicada, e a maleabili-dade estava condicionada à origem do imigrante. Basta ver a questão pouco conhecida dos suecos: eles tinham colônia representativa no país e tam-pouco se interessavam em imigrar para o Brasil, mas o Serviço de Visto estava particularmente interessado na vinda deles” observa.

Como revela o caso de um sueco que passou mal numa viagem, desembarcou para se tratar e, quando percebeu, já estavam tratando do seu visto. Ele não queria ficar no país. “Ao mesmo tempo, muitas pessoas com todas as condições de emigrar, que tinham os documentos neces-sários, enfrentavam medidas protelatórias e pareceres que dificultavam sua entrada, se não fosse o ‘imigrante ideal’. Isso mostra como os critérios se baseavam na bandeira da eugenia”, explica. Para Koifman, isso desmascara o dis-curso nacionalista e a flexibilidade com as leis, reduzidos à sua real dimensão: a utopia de apri-moramento étnico. n

outros não refletia a sua realidade interna. “Ser acusado de racista ativo, nas décadas de 1930 e 1940, colocava qualquer nação, diplomata ou in-telectual, em posição constrangedora de alinha-mento com a política de exclusão da Alemanha nazista”, explica a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP) e autora do estudo referencial Antissemitismo na era Vargas (1987). “Ainda assim o Estado Novo, por meio do Ministério da Justiça e de uma po-lítica nacionalista, não admitia fissuras, comba-tendo grupos migrantes, vistos como elementos de ‘erosão’. O ideal do regime era a homogenei-dade em detrimento da diversidade”, continua.

AmbIgUIDADESPara o brasilianista Jeffrey Lesser, da Emory University e autor de A questão judaica no Brasil (1995), é preciso cuidado ao retratar as políticas de imigração da época apenas com base em do-cumentos oficiais, do Itamaraty ou do Ministério da Justiça. “Os escritos dão conta das ambigui-dades que regiam essa política. Como explicar, por exemplo, a entrada expressiva de judeus logo após os decretos restritivos e a absorção expres-siva desses grupos ao lado de árabes e japoneses na sociedade brasileira em fins dos anos 1930”, questiona. Para ele, houve muita incongruência entre discurso e prática, gerando curiosos para-doxos. “Os imigrantes viraram o discurso eugê-nico de brancura, que os discriminava, em favor de seus interesses e conseguiram conquistar um

1 Passaporte cancelado pelos nazistas, mas aceito pelas autoridades brasileiras

2 Visto de otto Maria carpeaux, incluído na cota de judeus católicos

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autobiografia de Josef Mengele

revela falta de empatia pelas

vítimas e culpa pelos crimes

Quando um passarinho feliz canta, ele não canta para mim. Sempre que uma estrelinha brilha ao longe, ela brilha para

outro e não para mim.” O carente autor do poema ingênuo foi capaz de injetar produtos químicos em olhos de crianças para deixá-los azuis, extrair órgãos de pessoas ainda vivas e costurar gêmeos, sua obsessão, “criar siameses”. No Brasil, Josef Mengele (1911-1979), um dos nazistas mais procurados do planeta, virou escritor.

O “anjo da morte”, responsável pela seleção de quem viveria ou não em Aus-chwitz, morreu afogado em Bertioga. Apenas em 1985 a polícia descobriu seu paradeiro e, em sua casa em Diadema, en-controu mais de 3 mil páginas de escritos, hoje guardados na sede da Polícia Fede-ral. “Entre os textos há uma autobiografia que nos permite analisar a mente de um criminoso. Ele escreveu em liberdade e sem a obrigação de considerar a opinião pública, que condenava seus atos. Assim, o tom geral é de franqueza na avaliação de sua vida e atos”, explica Helmut Galle, professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP), autor de um estudo sobre os escritos de Mengele, que faz parte do Projeto Temático Escritas da violência, apoiado pela FAPESP.

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memórias plácidas do anjo da morte

A autobiografia, com 500 páginas, tem um narrador em terceira pessoa e é escri-ta em forma ficcional, com o protagonista “Andreas” como o alter ego do nazista. O livro serviria para passar “bons con-selhos” ao filho e justificar seus atos no campo de extermínio. Mengele não teve sucesso em nenhuma das duas tarefas e seu filho rejeitou a total falta de cul-pa do pai e seu silêncio sobre os crimes nas memórias. “A leitura desses escritos é uma tarefa sofrida. Há um silêncio in-cômodo sobre as atividades na guerra e uma terrível vaidade prazerosa com que conta futilidades da infância e de sua vida após a fuga em 1945.”

Apenas o nascimento e o batismo do protagonista se esparramam por longas 74 páginas. Num paradoxo, quase não há referências aos judeus, por cujas mortes ele foi responsável. Uma das poucas acon-tece durante uma conversa de Andreas com um camponês que acusa o capital judeu pela guerra. Mengele responde: “Aí muito se exagera, mas algo deve ser verdade. Seria, porém, essa guerra que o judaísmo internacional impôs à Alema-nha que impossibilitou uma solução pací-fica da questão judaica. E se esses eventos acontecessem em época de guerra, assu-miriam formas bélicas, condicionadas

“mengele quer se colocar na posição de suas vítimas para provar que é mais forte e capaz de sobreviver

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pelas situações gerais alteradas e, não finalmente, pelas reações psicológicas”.

“É estranho imaginar o nazista, no Bra-sil dos anos 1970, ainda culpando os ju-deus pelo próprio genocídio e sua total certeza ética sobre a legitimidade do Ho-locausto”, observa Galle. Mengele se mos-tra como contraponto à fraqueza judaica, dotado da força e da persistência diante dos obstáculos. Suas lembranças o levam para 1947, quando, em fuga, se refugia nu-ma fazenda na Alemanha, disfarçado de agricultor. “Não existe o esquivar, a fuga e a recusa porque a existência crua está em jogo. Andreas distribui o esterco com a força e suprime a dor infernal na arti-culação da mão, pensando que somente se pode sobreviver sendo mais duro que aquilo que a existência intransigente traz.”

SobrEvIvêncIA“Mengele quer se colocar na posição de suas vítimas para provar que é mais forte do que elas, não sucumbindo na luta pe-la sobrevivência”, analisa o pesquisador. Para Galle, o “anjo da morte” quer livrar--se da culpa mostrando a sua experiência e culpando os judeus mortos pelo seu fim. “Como o camponês, cujo corpo quer desistir e quase ‘grita’ por dores, Men-gele cria uma persona, que acredita ser

zistas. Também culpa aqueles que fize-ram ‘falsas acusações’ contra ele pela perda materna”, diz o pesquisador. Em uma carta de 1974, chega a expressar “re-morso pelos crimes que cometemos con-tra o ‘povo escolhido’”. As aspas traem a sua visão real, pois, mesmo num momen-to de raro arrependimento, considera os judeus como “absurdos”. Afinal, o que acreditava ver a seu redor parecia con-firmar suas crenças. “O Brasil é bom país para se viver, apesar da mistura racial. Mas há muitas pessoas que pensam como eu e são simpáticas ao nazismo e à ideo-logia racial”, escreve. Mas incomodava--se com as brasileiras, que “abusavam do batom e da maquiagem, sempre prontas para a promiscuidade sexual”.

Despreza as mulheres em geral. “A biologia não admite direitos iguais. Mu-lheres não deveriam trabalhar em posi-ções altas e sua atividade deve depender do preenchimento de uma cota bioló-gica. O controle de natalidade deve ser feito com esterilização daquelas com genes deficientes.” Além das mulheres, preocupava-se com a superpopulação do planeta. “O nosso experimento em raças falhou, mas é preciso tomar me-didas drásticas para combater o excesso de pessoas. Os homens precisam tomar uma decisão para sobreviver aos tempos modernos. Se a eugenia não funcionou no curto prazo, precisamos de outra so-lução igualmente radical”, anota.

As anotações refletem seus estudos de genética e antropologia nos anos 1930, que o levaram a fazer o doutorado sob a orientação do professor Otmar von Verschuer, diretor do Kaiser Wilhelm Institut. Lembrando-se dos “bons tem-pos” acadêmicos, escreve: “Sabemos que a evolução controla a natureza por sele-ção e extermínio. Os incapazes de aceitar essas regras de seres mais capacitados serão exilados ou extintos. Homens fra-cos não devem se reproduzir. É a única forma da humanidade existir e se man-ter”. A partir de 1943, o discípulo pas-sou a enviar ao mestre provas “físicas” e relatórios de seus experimentos “fasci-nantes” com seres vivos em Auschwitz.

“Fui um jovem imaturo e solitário. Tu-do seria diferente se viesse de um lar feliz com pessoas que tomassem conta de mim”, escreve o homem que ordenou a “limpe-za” de um galpão com 750 judeus dentro, jogando gás venenoso para conter uma infestação de piolhos. n carlos haagfo

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ele, capaz de suprimir esses impulsos, fingindo indiferença diante de todos. Em Auschwitz, ele teve, internamente, algum sentimento e se revoltou, em al-gum momento, com seu ‘trabalho’ cruel. Mas essa voz foi extinta pela aparência da persona fria”, observa o pesquisador.

“Nas 500 páginas do texto não há ne-nhum sinal de empatia. Só se vê o sofri-mento do protagonista e as acusações dos que lhe causam esse sofrimento. Pode-se supor que ele também não te-ve essa função psíquica.” O autor assas-sino, continua Galle, quer controlar sua imagem externa, mostrando apenas força e poder, e produz esses textos para ter controle sobre a memória que os outros tinham dele. “Uma das cenas mais signi-ficativas do livro é quando o protagonista sonha que é um bebê que passa o tempo todo dormindo ou gritando. Mengele se vê como inocente e justo, imaginando ser aquilo que nunca admitiu em si e que quis destruir em suas vítimas: a criatura física, nua e indefesa.”

Em nenhum momento aborda a ques-tão da culpa, porque, para ele, “não exis-tem juízes, apenas vingadores”. “Atribui a responsabilidade da morte da mãe aos médicos ‘incapazes’, colocados pelos Aliados no lugar dos ‘bons médicos’ na-

os diários do "anjo da morte", com suas anotações; acima, foto de Mengele em 1937, ao entrar para as ss

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marcos Pivetta

livro de cirurgião-barbeiro

português mostra as curas usadas

nas Minas gerais do século xViii

mEmórIA

em 1735, a Officina de Miguel Rodrigues publicou em Lisboa a primeira edição do livro Erário mineral, que trata das práticas médicas empregadas na então

capitania de Minas Gerais, epicentro do ciclo do ouro no Brasil Colônia. O autor da obra, apontada como um dos primeiros tratados sobre medicina brasileira ou tropical redigido em português, era o cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira. Português da região do Douro, Gomes Ferreira havia exercido sua profissão na terra natal e na Índia e morara por três anos em Salvador antes de se fixar na região da antiga Vila Rica, hoje Ouro Preto.

Quando se mudou em 1710 para essa parte da colônia, seu intuito era fazer fortuna na mineração. Mas, ao perceber que a busca por lavras auríferas não lhe seria tão rentável, decidiu tocar em paralelo as artes curativas que aprendera em Portugal. Afinal havia poucos médicos e cirurgiões-barbeiros na região e cuidar dos doentes podia ser vantajoso. Ficou famoso por suas curas, mudou constantemente de localidade em busca de novas oportunidades e deixou Minas apenas em 1731, quando atravessou o Atlântico de volta à pátria-mãe.

A experiência acumulada nas duas décadas que passou tratando os poderosos senhores de escravos e seus cativos enfermos numa terra distante e distinta de Portugal forneceu a base para as informações presentes no livro. Após o retorno à terra natal, Gomes Ferreira escreveu em menos de um ano Erário mineral. Na obra, fala dos principais males que acometiam os moradores locais, em especial os escravos, e dos tratamentos que usou para combater as doenças. Para ele, o clima frio e úmido da capitania estava por trás de quase todos os males. A alimentação, a moradia e o fato de a mineração obrigar os escravos a ficar muitas horas dentro da água ou embaixo da terra eram outros fatores associados às enfermidades.

Como as condições de vida e os problemas de saúde em Minas eram diferentes dos que predominavam na Europa, o cirurgião-barbeiro teve de se adaptar à nova

terapias para os trópicos

além de usar seus instrumentos em cirurgias, gomes ferreira tinha uma botica para fazer medicamentos

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teórica, escolástica, ainda moldada na medicina galênica e na teoria dos humores. Também não era prerrogativa dos cirurgiões-barbeiros receitar medicamentos e/ou formulá-los como se fosse um boticário. No entanto, Gomes Ferreira, que era dono de uma botica, fazia tudo isso nos sertões das Minas Gerais.

A primeira edição do Erário mineral, da primeira metade do século XVIII, pode ser baixada gratuitamente no site do Google Books. Basta digitar o título da obra e fazer uma pesquisa para chegar ao arquivo com o escrito. A versão de 2002 –  que, além do texto original, traz artigos de estudiosos com comentários sobre o livro –  também pode ser obtida na internet, mais precisamente no site da Scielo. Júnia Ferreira Furtado pretende publicar uma nova edição do Erário mineral na qual vai incorporar 50 páginas redigidas por Gomes Ferreira para uma edição dos anos 1750 do livro.

realidade. “Gomes Ferreira tinha mais liberdade e sensibilidade para absorver conhecimentos de outras fontes além da medicina europeia”, afirma a historiadora Júnia Ferreira Furtado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordenou a publicação em 2002 de uma nova edição do livro com apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

Por esse motivo, muitos remédios usados pelos índios e incorporados à medicina colonial pelos paulistas constam da obra. Receitas que incluíam ossos, gorduras, pedaços de animais ou bichos inteiros, saliva, urina e muitas plantas da região estão presentes nas páginas do livro. “O Erário mineral não foge à regra: tudo vale para curar”, afirma o médico e escritor Ronaldo Simões Coelho,

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obra incorpora conhecimento dos índios e é um dos primeiros tratados de medicina brasileira redigido em português

Página do Erário mineral, de 1735, e retrato de luís gomes ferreira: curas prescritas por um prático

realizar operações, como amputações, era tarefa dos cirurgiões-barbeiros

em um texto publicado junto com a edição patrocinada pela Fiocruz/Fapemig do livro do cirurgião-barbeiro no qual lembra que essa é, historicamente, a postura dos homens dedicados à medicina.

Não era comum cirurgiões-barbeiros, que tinham um saber baseado na prática médica, redigir livros no século XVIII. Teorizar e escrever sobre curas era uma tarefa da alçada dos médicos, que tinham uma formação

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Presença de Paulo Emilioseminário, livro e projetos

de edição de textos do

crítico confirmam seu

papel central na cultura

Paulo Emilio na sede da

cinemateca Brasileira, 1975,

são Pauloum interesse especial pela figura de Paulo Emilio Salles Gomes, como crítico, pesqui-sador e professor, notável desde sua morte

em 1977, ganhou expressão singular neste ano. O 45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro o homenageou com um seminário que reuniu crí-ticos, cineastas, professores e estudantes num debate sobre seu legado; em paralelo ao semi-nário foi publicado o livro organizado por Ma-ria do Rosário Caetano, O homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto, uma coleção de artigos e depoimentos que veio confirmar seu papel central na cultura e na formação de novas gerações desde o final dos anos 1950, quando sua intervenção crítica teve enorme repercussão a partir de sua coluna no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.

Em setembro, o grupo de pesquisa Formação do Brasil Moderno, coordenado por pesquisado-

Ismail Xavier

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Paulo Emilio entre os alunos e a apreciação do cinema, no curso da UnB, em registro também incomum

capa da revista Clima e do livro de ruy coelho sobre o movimento paulista

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res da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), debateu as reflexões de Paulo Emilio sobre o percurso do cinema brasileiro. No semi-nário de estudos anual, o grupo inseriu, desse modo, a questão do cinema em seu campo de interrogações centrado na avaliação e atualiza-ção da problemática desenvolvida por Antonio Candido em seu clássico livro Formação da lite-ratura brasileira, de 1959.

Na Inglaterra, professores do King’s College (Universidade de Londres), coordenados por Maite Conde, preparam um livro com seleção de textos de Paulo Emilio. No Brasil, está em andamento a edição de inéditos e a reedição de seus textos publicados aqui e no exterior, projeto coordenado por Carlos Augusto Calil para a Editora Cosac Naify, com o apoio da Ci-nemateca Brasileira.

Essas iniciativas marcam a amplitude da in-terlocução alcançada por ele a partir de sua in-tervenção na imprensa, sua luta pela Cinemate-ca e sua atividade como professor pesquisador. Esta última se iniciou nos anos 1960, momento em que o cinema, em muitos países, encontrou lugar na academia como área de pesquisa. Se era comum universidades incorporarem a ex-periência dos críticos e dos historiadores liga-dos às cinematecas, no caso da USP houve uma migração da cultura da Cinemateca brasileira, através dos primeiros professores de cinema da ECA, em 1967, como Paulo Emilio, Rudá de Andrade e Jean-Claude Bernardet.

Paulo Emilio estudou filosofia na USP no início dos anos 1940, momento em que criou o Clube de Cinema da Filosofia, iniciativa simultânea à fundação da revista Clima pelo grupo de jovens amigos que tiveram enorme impacto na história da crítica de cultura no Brasil: Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho, Lourival Gomes Ma-chado. Foi o momento em que se configuraram as indagações do grupo no plano da história cul-tural, e sua pergunta pelo processo de formação dirigida aos vários setores da cultura brasileira, seu empenho em consolidar, no terreno do en-saio e da pesquisa erudita, um espírito de atua-lização herdado do Modernismo. Tal espírito se expressou mais tarde na fundação da Cinemateca brasileira, em 1954, liderada por um Paulo Emilio ciente de que um arquivo de filmes era condi-ção para levar os estudos do cinema no Brasil a novo patamar, viabilizando pesquisas e atuando como centro formador. Nas universidades, seu esforço de organização do campo se consolida e seu poder aglutinador dá vida à pesquisa ci-nematográfica na USP, após sua experiência de ensino na Universidade de Brasília em 1964-65.

A par da força de sua escrita que nos encanta e esclarece, Paulo Emilio é presença singular

porque marcou de forma notável os que o co-nheceram. Erudição, sensibilidade política e rara personalidade permitiram ao intelectual empenhado uma forma de atenção a situações concretas de que resultaram as sínteses mais argutas de que dispomos. Sínteses que, partin-do do cinema, iluminaram aspectos da cultura e da formação social brasileiras. Neste sentido, o que lhe devemos é a afirmação de um espírito de pesquisa ao mesmo tempo rigoroso e abran-gente, capaz de definir um projeto de longo alcance que fez convergir inclinações parti-culares para uma investigação compreensiva da cultura, articulando diferentes aspectos do trabalho intelectual – história, crítica e teoria. Enfim, um resultado auspicioso de sua paixão pelo concreto, apontada por Gilda de Mello e Souza como o seu traço por excelência. n

Principais livros de Paulo Emilio sobre cinema:Jean Vigo [1957], cosac naify, Edições sesc sP, 2009; Humberto Mauro, Cataguazes, Cinearte, Perspectiva, 1974; Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Paz e Terra, 1980; Crítica de cinema no Suplemento Literário, 2 v., Paz e Terra, 1982; Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente, carlos calil e Teresa Machado (orgs.), Brasiliense-Embrafilme,1986

*o comentário de gilda de Mello e souza está no artigo “Paulo Emilio: a crítica como perícia”, in O Baile das quatro artes – Exercícios de leitura (são Paulo, livraria Duas cidades, 1980).

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rebeca Richardson resolvera agora apoiar a mão direita sobre o queixo.

A posição na mesa da biblioteca era in-cômoda. Precisava esticar-se de quando em vez, alongar bem a coluna para poder voltar à leitura.

É bastante difundido o estudo do efeito de libe-ração de alimento a intervalos de tempo fixo e variável em pombos promovido por Skinner. Os animais foram dispostos numa caixa. E, descon-siderando seu comportamento, um alimento era liberado para que o consumissem.

Iniciava-se a temporada do calor úmido em São Paulo, ambiente bem diverso do Finsbury Park londrino de onde viera para o Brasil há dois anos, recém-casada e recém-formada em psicologia.

O psicólogo notou que, por um tempo determi-nado, os pombos agiam como se o alimento fosse associado ao que faziam. Um deles, por exemplo, começou a mexer a cabeça para um lado e para o outro. Um segundo animal promovia volteios na gaiola. E assim por diante.

A tese de mestrado na universidade a fizera tomar contato com autores e conceitos que não eram propriamente de sua preferência, para di-zer a verdade. A maioria eram ideias comporta-mentais de Burrhus Skinner.

Esse padrão de comportamento das aves foi cunha-do por Skinner de supersticioso. Tal trabalho de investigação comportamental foi extremamente valioso para toda uma geração de pesquisas rela-tivas à superstição em psicologia experimental.

Largou o livro pesadamente sobre a mesa ilu-minada apenas por um spot. A intensidade do gesto foi tal que os outros pesquisadores a olha-ram de modo reprovador.

A frase “os pombos podem ser supersticiosos”, em especial, a deixara mais irritada que o normal. Sua formação como psicóloga a fazia sempre pen-sar nas entrelinhas, nos sonhos e outros meandros

da existência. E ela sabia que o fato de lançar a brochura daquela maneira tão inadequada não era apenas uma prosaica neurastenia.

Desde que o tema “comportamento operante” entrara por seus olhos verdes e míopes, enchar-cara sua pele branca e aveludada, que tudo se transformara numa crônica falta de paciência.

O fato é que preferia a escola de Carl Rogers, diametralmente oposta ao pensamento determi-nista skinneriano. Não podia aceitar que fatores como controle e previsibilidade sobrepujassem os de liberdade e realização pessoal. Mais: que a clássica teoria do “estímulo-resposta” pudes-se ainda hoje conviver com estudos mais con-temporâneos. Notava que, ao começar a folhear aqueles livros – os de Pavlov também –, suas faces abrasavam-se. A raiva ganhava fortes contornos e, de uns dias para cá, a acompanhava até depois que deixava a biblioteca e ia para casa.

As lembranças da família em Londres, as difi-culdades em se relacionar com os locais e espe-cialmente as relações com o marido a irritavam de maneira despropositada. A sorte – se é que isso não é uma superstição – era Jim ser muito paciente. Tratava-a como uma princesa. Sua fala era calma e pausada, ainda agora quando Rebeca dirigia-se a ele de modo áspero.

Moravam há um tempo considerável em São Paulo, mas ainda não tinham um núcleo fixo de amigos. Talvez fosse o que apoquentava a esposa, prejulgava Jim – que era físico e bem menos afeito que ela às idiossincrasias da mente humana. Por isso tinham ido àquela festa dias atrás.

Ambos viviam para os estudos. Era preciso extravasar um pouco de vez em quando. Aconte-ceu no apartamento de Ximenes, um funcionário do Departamento de Biologia da universidade. Algo bem simples, cada um levava suas latinhas de cerveja e algum petisco. Rebeca preparou um britânico kidney pudding, que ficou totalmente esquecido sobre a mesa da cozinha, ao lado de garrafas de vinho, vodca, cascos de cerveja e cin-zeiros cheios de pontas de cigarros de maconha.

Rebeca inicialmente desgostou-se com os sons altíssimos provenientes das caixas. A música era

conto

Estímulo e respostacarlos castelo

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carlos castelo é escritor, compositor e um dos criadores do grupo musical língua de Trapo. autor, entre outros, de O caseiro do presidente (nova alexandria) e Orações insubordinadas (ateliê Editorial).

machucar bastante com as palavras. Passaram-se alguns dias e o silêncio continuava insistindo em pesar entre os dois como uma pedra fundamental.

Num final de tarde, na biblioteca da universi-dade, Rebeca decidiu digitar num programa de busca o nome da banda de Toni. A nota de um portal de cultura saltou na tela informando que ainda se apresentavam em São Paulo. E muito perto de onde ela estava. Sem pensar levantou--se, pegou um táxi e dirigiu-se ao teatro.

Assistiu ao show anonimamente. Quando teve início a música que Toni cantara na

festa, Rebeca levantou-se da poltrona e postou-se numa quina do teatro. Na mesma posição em que a ouvira aquela noite no apartamento de Ximenes.

Haveria ainda mais duas apresentações da ban-da. Rebeca compareceu a todas. E, sempre que aquela canção começava, repetia o gesto de ir pa-ra a quina do teatro para ouvi-la de pé. Na saída do último espetáculo deixou que Toni a notasse.

Ele a olhou como se tivesse uma lembrança remota de que a conhecia. Ela respirou fundo, venceu a inércia da timidez e foi até ele. Falou, firme, com seu sotaque habitual:

— Eu te vi cantando no apartamento e agora vim te ver no show.

Toni deu um meio sorriso. Beijou-lhe a boche-cha, quase fraternalmente e voltou ao camarim carregando a tatuagem de cobra no antebraço.

Rebeca e Jim voltaram a se falar, planejam ago-ra ter um filho quando ela terminar sua tese de mestrado sobre a confluência entre Wilhelm Reich e a semiótica. E, para evitar aborrecimentos, ela nunca mais leu sequer uma linha de Skinner.

boa, mas os hábitos dos brasileiros, suas danças extravagantes, meneios e a excessive familiarity cansavam-lhe a alma.

Deixou Jim na cozinha experimentando uma caipirinha preparada pela namorada de Ximenes e encostou-se numa quina da sala para observar a movimentação. Alguns casais dançavam cola-dos, outros mais soltos. O calor que emanava de seus corpos suados e em movimento embaçava os vitrôs do vetusto apartamento. Depois de al-guns minutos de frenesi, a música cessou e um rapaz moreno, troncudo e com uma tatuagem de cobra no antebraço pegou do violão e entoou uma dolente canção.

O intermediate Portuguese de Rebeca não con-seguiu compreender quase nada da letra, mas a repetição do refrão e o tom a deixaram inebriada. O rapaz moreno cantou mais três peças.

Rebeca, até então distante e calada, decidiu per-guntar a uma estudante de serviço social, que aguar-dava a vez de ir ao banheiro, quem era o cantor.

— É o Toni, ele é de Pernambuco e tem uma banda. Vão se apresentar só essa semana em São Paulo. Depois voltam pro Nordeste.

Jim, que se embriagava com facilidade, veio abra-çar Rebeca dizendo com voz pastosa: time to go. Para sua admiração, a esposa, que raramente be-bia, respondeu o pedido com um sorriso radiante:

— Just one for the road?Ficaram até Toni pegar o violão e sair andan-

do pela calçada, o sol nascendo como moldura. Os livros de Skinner agora tinham que ser dei-

xados quase que instantaneamente de lado após uma breve leitura. A irritação à simples visão do termo “behaviorista” transformava-se em ódio quase físico. Mesmo o fato de continuar estudando psicologia passou a ser colocado em xeque. Dis-cutira isso com Jim certa noite e acabaram por se

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sobre quase tudo em genética-genômica. Apenas os avanços sobre fenômenos epigenéticos dei-xarão o consultor sem resposta, o que em nada decresce o mérito do livro.

Tradicionais posições pessoais do autor sobre questões sociais específicas fazem-se presentes, e às vezes em redação que foge do estilo cientí-fico e migra para o mundo da emoção. Não obs-tante a ampla cultura geral do autor percebe--se escapar-lhe a percepção (ou aceitação) que a diversidade cultural da humanidade inclui crenças e religiosidades como traços antropo-lógicos da espécie. Vincular anticiência à reli-giosidade é generalizar preconceitos. Por outro lado, remeter aos oprimidos a responsabilidade

pela própria situação, assim como identificar nos ignoran-tes a culpa pela ignorância científica, parece pretender inocentar os opressores e re-tirar dos cientistas a respon-sabilidade de compartilhar seus saberes com as massas. A opção pela eliminação das crenças místicas e míticas a fim de construir um futuro otimista para a humanidade é refutada pela existência e pelo valor da contribuição de respeitáveis cientistas reli-giosos, no Brasil e no exte-rior. A ausência de citações de leituras sobre ética, bioé-tica e integridade científica fundamenta o livro apenas nas visões pessoais do autor.

Não há dúvida de que a ciência contribuiu, sim, para uma melhoria da vida no mundo, conforme afirma o autor, mas também assim o fizeram a ética, a filosofia, as artes plásticas, a literatura, a música, a poesia etc. Finalmente, o livro Ge-nômica e evolução – Moléculas, organismos e sociedades traz a dupla marca de Francisco M. Salzano: competência científica e depreciação da cultura religiosa dos povos.

novas descobertas, inovações e contesta-ções desafiam, no mundo da ciência, a elaboração de textos robustos, abrangen-

tes e atuais. Nesse cenário, a genética impõe-se soberana. Patrona de todas as formas de vida, com complexa origem interdisciplinar, a genética cresce no impulso dos avanços das tecnologias capazes de explorar códigos dos seres vivos, re-troiluminar histórias evolutivas, manipular geno-mas, revelar fenômenos epigenéticos e unir, cada vez mais, vida biológica e ambiente. Por tudo isso, poucos geneticistas conseguem, isoladamente, englobar em um só livro temas de genômica, evolução, moléculas, organismos e sociedades. Francisco M. Salzano, todavia, com respaldo no próprio currículo cientí-fico, produz um livro que põe o leitor em percurso cósmi-co da origem do Universo às questões das ações afirmativas do Brasil atual. Teorias sobre origem da vida e extraordi-nária riqueza de dados sobre diversidade genética, genô-mica e funcional reafirmam a amplitude de conhecimentos do autor. Visões “histórico--filosóficas” do mundo desde a Grécia clássica e conside-rações filosóficas atuais são também discutidas com pin-celadas de opiniões pessoais, quase sempre polêmicas. O conteúdo central do livro, todavia, reafirma a maestria do autor naquilo que domi-na por formação e devoção: genética, evolução, genômica, genomas humanos e não humanos. O autor “solo” também traduz notória compe-tência na articulação de enorme quantidade de conhecimentos visando condensá-los em volume único. Ao longo de todo o livro, recorre, e com bom efeito didático, a sínteses de informações compactadas em tabelas, boxes e quadros, além de algumas figuras e gráficos. Ainda que o livro esteja destinado a estudantes, colegas e “leitor bem informado”, será dos estudantes o maior benefício como fonte indispensável de consulta

o leitor em percurso cósmico

rESEnhAS

Eliane S. Azevêdo

Eliane S. Azevêdo é pesquisadora em genética e bioética, professora emérita da faculdade de Medicina e ex-reitora da Universidade federal da Bahia (UfBa).

Poucos geneticistas conseguem, isoladamente, englobar em um só livro temas de genômica, evolução, moléculas, organismos e sociedades

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em evidência a forma como a própria antropologia foi constituída. Nesse sentido, vale destacar que o modo como a antropologia formulou suas questões relaciona-se intimamente ao tipo de inquietação dos missionários em seus esforços de compreensão e descrição das populações nativas com as quais trabalhavam. Assim, temas como parentesco ou família, religião e magia, cultura ou civilização constituíram-se como categorias formadoras de um quadro de referências que permitiu a uns e a outros “traduzir” os nativos em termos passíveis de serem compreendidos no mundo ocidental.

Este tipo de perspectiva nos convida a sair do registro do contato, que marca boa parte dos es-tudos voltados a temas relativos às missões en-tre populações nativas, e a pensar esses quadros descritivos como constituídos a partir de relações entre mediadores. Isso implica, portanto, deixar de lado análises baseadas no encontro de cosmo-logias, e, por consequência, da existência de “ou-tros” ontologicamente diferentes, e passar a uma análise focada na observação do modo como os agentes constroem simbólica e praticamente os termos e possibilidades de suas relações. Estas possibilidades não são, como quiseram entender certos leitores da teoria da mediação, baseadas em acordos ou consensos construídos pacifica-mente ou sem a existência de conflitos. As noções de acordo e consenso aqui mobilizadas dizem respeito aos resultados de negociações práticas e simbólicas eivadas de disputas, mas que, de um modo ou de outro, permitiram o início ou a continuidade da convivência.

Por fim, Paula Montero em Selvagens, civili-zados, autênticos nos brinda com um texto, ao mesmo tempo, denso, saboroso e emocionante. Denso pelas razões já expostas acima e por con-ta da maneira como tece relações entre temas, contextos e teorias. Saboroso porque bem escrito e envolvente. Emocionante pelas aventuras nar-radas e por colocar em cena o rigor acadêmico, a seriedade da análise, a clareza com que os ar-gumentos são demonstrados e a provocação que sempre marcaram o estilo desta que é mestre no verdadeiro sentido do termo.

o problema do deciframento do “outro” – ou da alteridade – constitui-se objeto privile-giado da antropologia. No entanto, se, desde

meados do século XIX, esse interesse se expressa na descrição dos “outros” não ocidentais a partir de categorias cunhadas com base na organização social própria das sociedades ocidentais, o adven-to da descolonização e consequente redução das distâncias morais entre os “nós” e os “outros” nos impulsionam a olhar para a constituição destes de outra forma. E é, sobretudo, este o convite feito por Paula Montero em Selvagens, civilizados, autênticos.

Ao tomar como objeto de análise as etnografias elaboradas por missionários salesianos sobre po-pulações indígenas brasileiras – Bororo, Xavante e indígenas do alto rio Negro –, a autora pretende pensar como a prática missionária traduziu sim-bolicamente a alteridade em diferença, reduzindo um “outro” ininteligível a um diferente. Para tanto, Paula analisa a escrita missionária e seu modo de descrever os índios, partindo do pressuposto de que a forma como estes são descritos está intimamen-te relacionada ao modo como a convivência entre índios e missionários se desenrola. Esta suposição, bem como a análise realizada a partir dela, traz im-portantes consequências para o modo como o fazer antropológico foi e ainda é pensado e praticado.

Em primeiro lugar, esta empresa supõe uma análise que leve em consideração as mudanças nas relações entre índios e missionários decor-rentes do desenvolvimento de sua convivência, levando em consideração o modo como se rela-cionam, as trocas materiais e simbólicas efetua-das, as posições destes agentes frente a questões envolvendo colonos, agentes do Estado etc., bem como as transformações advindas com o passar do tempo. Esse tipo de observação permite de-cifrar as grades de leitura que tornaram possível a esses missionários formularem determinados tipos de concepção sobre esses índios. Ou seja, trata-se de um investimento num tipo de estudo que envolve a comparação ao longo do tempo e que também atente para as especificidades exis-tentes no interior do contexto de cada missão.

Por outro lado, supõe que a alteridade não é constituída ontologicamente, mas construída a partir do modo como os “outros” são descritos. Ou seja, trata-se de um investimento que coloca

Da “alteridade” à produção da diferençamelvina Afra mendes de Araújo

melvina Afra mendes de Araújo é professora de ciências sociais da Universidade federal de são Paulo (Unifesp) e pesquisadora do centro Brasileiro de análise e Pesquisa (cebrap).

Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas etnografias salesianas (1920-1970) Paula MonteroEdusp520 páginas, r$ 72,00

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