boaventura cardoso, um (re) inventor de palavras e

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Universidade Federal do Rio de Janeiro BOAVENTURA CARDOSO, UM (RE)INVENTOR DE PALAVRAS E TRADIÇÕES Renata Souza da Silva setembro, 2008 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

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Page 1: BOAVENTURA CARDOSO, UM (RE) INVENTOR DE PALAVRAS E

Universidade Federal do Rio de Janeiro

BOAVENTURA CARDOSO,

UM (RE)INVENTOR DE PALAVRAS E TRADIÇÕES

Renata Souza da Silva

setembro, 2008

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BOAVENTURA CARDOSO, UM (RE)INVENTOR DE PALAVRAS E TRADIÇÕES

Renata Souza da Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco.

Rio de Janeiro

setembro de 2008

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BOAVENTURA CARDOSO, UM (RE)INVENTOR DE PALAVRAS E TRADIÇÕES

Renata Souza da Silva

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras

Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas), 95 páginas.

Examinada por:

_________________________________________________

Profa. Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – UFRJ

_________________________________________________

Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos – UFRJ

_________________________________________________

Profa. Doutora Renata Flávia da Silva – UFF

_________________________________________________

Profa. Doutora Gumercinda Gonda – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Profa. Doutora Edna Maria dos Santos – UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

setembro de 2008

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SINOPSE

Recortes críticos do social: um olhar de combate ao

colonialismo e a palavra que (en)canta. Tradições revisitadas em

A morte do velho Kipacaça: o animismo africano, reflexões;

tradições reinventadas: a criança, a árvore e o ancião. A palavra

forjada pelas chamas da criação e a sedução do narrar.

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DEDICATÓRIA

Ao Deus que criou o céu e a terra, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus dos meus pais, único e verdadeiro, o Deus da minha vida, que me sustentou até aqui, permitindo, contra todas as expectativas humanas, que eu subisse um degrau tão importante como este. A Ele dedico este título de mestra!

À minha mãe, Valcira, mulher que, com sua história, me ensinou a enxugar as lágrimas, engolir o choro e nunca desistir da vida, apesar das adversidades, às vezes, insistentes em nossa caminhada. Pela paciência e investimento aplicados a mim durante toda a minha formação, a ela, meu amor e respeito.

Ao meu pai, José Antônio, por forjar em mim um exemplo de caráter íntegro e raro; pelo amor incondicional dedicado a minha pessoa; por me mostrar, sempre, com um olhar poético, que a vida vale a pena ser vivida. Por, simplesmente, ser o homem mais doce desse mundo. À Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, pela orientação carinhosa, pela paciência com minhas muitas limitações, por acreditar na minha capacidade de superação e por me ensinar lições para além dos estudos africanas. Por ter sido muito mais do que uma orientadora. Pelas palavras eternas de FORÇA, encorajando-me na RETA FINAL deste grande desafio particular. Por me fazer sentir que estava AO e DO meu lado, de fato. A ela, minha gratidão.

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AGRADECIMENTOS

À Capes, pelo apoio financeiro e pela seriedade com que investe no campo da pesquisa acadêmica. À minha irmã Rosemary Gouvêa, pelos anos de cuidado dedicados ao meu crescimento físico, sendo, assim, testemunha das minhas primeiras letras; pela renúncia dos próprios projetos em prol de minha criação e pelo seu amor sempre presente. À minha irmã Valéria Gouvêa, pelas palavras de ânimo, de credibilidade, de amizade e de amor nas horas mais necessárias, por me proteger com tanta atenção; pela sua capacidade extraordinária e rara de fazer as coisas acontecerem, minha gratidão. À minha irmã Érika Gouvêa, pelo carinho, amor, amizade e sorriso tão marcantes. Às minhas sobrinhas Cíntia, Cássia e Gabriely por existirem e tornarem minha vida mais florida. À Fernanda Antunes, pelas palavras tão amorosas, certamente decisivas em meu coração; pelos anos de amizade tão importantes; por acreditar em mim incondicionalmente. À Cristiane Suzart, amiga de longas datas; pelos conselhos sábios que me levaram ao caminho do Mestrado; pelo grande carinho. Ao Tiago Cavalcante, amigo de todas as horas e conselheiro profissional, sempre paciente com minhas inseguranças e dúvidas, agradeço pelos inúmeros favores prestados tão prontamente. À Cíntia Machado, com quem tive o prazer de estudar e aprender tantas coisas e a quem sou muito grata. Ao Rafael Souza, grande amigo, que entrou na minha vida de uma maneira inusitada, tornando-a mais alegre, pela sua presença sempre positiva e carinhosa, exaltando, ainda mais, o valor do amor fraternal. À Heloise Cabral, amiga que, com simplicidade, me ensinou profundas lições para a vida. Aos amigos Eduardo da Costa Luiz e Cimere da Costa, sempre presentes em minha vida: ele, pelo apoio sincero e visitas constantes nos momentos mais sombrios desta empreitada; ela, pela alegria certa e palavras tão importantes ao meu coração. Ao Joel Elias, pela companhia sincera e oportuna nos momentos de tensão. À diretora e amiga Rônia Batista da rede estadual de ensino, pelo apoio incondicional quando eu, ainda, era, apenas, uma promessa; pela alegria com que me recebeu em sua escola, mantendo, sempre, as portas abertas pra mim; pela torcida ao longo da minha trajetória.

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À amiga Alvina Paixão, pela fé e intercessão constantes ao meu favor; pelas palavras sempre tão sábias e oportunas, direcionando-me a lugares tranqüilos e verdejantes. Aos amigos Marivalda Pereira e Jorge Luiz Pereira, pelo amor, carinho e atenção conferidos a mim durante minha caminhada. Ao professor Doutor Wellington de Almeida, pela preocupação e tratamento paternos; pelo afeto ao longo desta trajetória; pelos ensinamentos, conselhos raros e preciosos; pela firmeza de valores, característica que lhe é peculiar; pela confiança em mim depositada. À professora Doutora Renata Flávia da Silva, sempre solícita, por atender tão prontamente ao convite para compor esta banca examinadora; pela postura admirável de equilíbrio entre conhecer e compartilhar. À professora Doutora Leonor Werneck por ter acreditado em mim de forma determinante desde o primeiro momento, na turma de português VIII; pelas lições preciosas em aula e na coordenação do Pré-vestibular da UFRJ; pelo seu carinho e atenção, que, também, fizeram de mim a profissional que sou hoje. À professora Doutora Filomena Varejão, pelas orientações tão sábias de língua portuguesa no Pré-vestibular social; pela amizade, carinho e humor, aliás, marcas pessoais que comprovam a pessoa maravilhosa que é; por esperar sempre mais de mim. À professora Doutora Cinda Gonda, pelo grande carinho e apoio nesta caminhada. À professora mestra Claudia Márcia Rocha, pela amizade e conselhos, com certeza, determinantes em meu caminho; por ter despertado, em mim, o gosto pelas palavras africanas, justamente, quando me apresentava a Boaventura Cardoso. À professora Doutora Luci Ruas, pelas aulas maravilhosas, apoio, carinho e solidariedade, em momento oportuno. À professora Doutora Mônica Figueiredo, pelas aulas particulares de sabedoria, humor, inteligência e gentileza; pelas palavras inesquecíveis: “Renata, creio que, na sua história, não há espaço para a palavra ‘desistência’”. Ela, de fato, estava certa! Obrigada!

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RESUMO

BOAVENTURA CARDOSO, UM (RE)INVENTOR DE PALAVRAS E TRADIÇÕES

Renata Souza da Silva Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas), 95 páginas.

O foco da presente dissertação é a análise do livro A morte do velho Kipacaça, do escritor

angolano Boaventura Cardoso, obra em que se detecta a presença do animismo africano. Este

será estudado, a partir das metáforas da criança, da árvore e do ancião, recorrentes na

narrativa, bem como por intermédio da interpretação de provérbios, ritmos, símbolos

característicos das religiosidades e modos de vida africanos que, em alguns aspectos, foram

silenciados pela colonização portuguesa que impôs sua cultura e religião.

Palavras-chave: tradição /oralidade/ (re)invenção

Rio de Janeiro setembro de 2008

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RESUMEN

BOAVENTURA CARDOSO, UM (RE)INVENTOR DE PALAVRAS E TRADIÇÕES

Renata Souza da Silva Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumen da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas), 95 páginas.

El eje de la presente disertación es el análisis del libro A morte do velho Kipacaça del escritor

angolaño Boaventura Cardoso, obra en la que se detecta la presencia del animismo africano.

Éste será estudiado, por médio de metáforas de los chicos, del árbol y del anciano, recurrentes

en la narrativa, así como por intemedio de la interpretación del provérbio, ritmos, símbolos

característicos de las religiosidades y modos de vida africanos que, en algunos aspectos, se

fueron silenciados por la colonización portuguesa que les impusieron su cultuta y religión.

Palabras-llave: tradición / oralidad / memória

Rio de Janeiro setembro de 2008

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………….................12 2. RECORTES CRÍTICOS DO SOCIAL: um olhar de combate ao colonialismo e a

palavra que (en)canta………………………………………...........................................20 3. TRADIÇÕES REVISITADAS EM A morte do velho Kipacaça…………................…35

3.1. O animismo africano: reflexões…………………………………………...................35 3.2Tradições reinventadas: a criança, a árvore e o ancião……….………................…..46

3.2.1. A criança………………………………………………………...........…......46 3.2.2. A árvore………………………………………………….………..............…54 3.2.3. O ancião…………………………………………………….……..............…58

3.2.3.1. O velho……………………………………………………….............59 3.2.3.2. A roda……………………………………………………….........….61 3.2.3.3. O fogo………………………………………………………..........….63

3.3. A palavra forjada pelas chamas da criação e a sedução do narrar…........................68

3.3.1. A linguagem poética: a criação estética literária em Boaventura Cardoso….......................................................................................................…69

3.3.2. O ato do narrar e os gestos do ferreiro: a sedução de

contar histórias……………………………………………………………...........................74 4. CONCLUSÃO…………………………………………………………......…….........…85 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS………………………………......……..............91

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Abrirei rios em lugares altos, e fontes no meio dos vales; tornarei o deserto em lagos de águas, e a terra seca em mananciais de água (...) a mão do SENHOR fez isto.

(Isaías1)

Ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si.

(Pascal2)

1 ISAÍAS. 4:18, 20. b 2 In: BENJAMIN, W., 1987: 212.

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1. INTRODUÇÃO

É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.

(Mia Couto, 2005, p. 45)

Estudar literatura é uma questão de paixão, se, conforme a epígrafe, ela nos seduzir

para um novo despertar, para uma nova maneira de perceber a vida. A literatura precisa nos

fazer apaixonar, levando-nos a refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos. E foi exatamente a

maneira encantadora e apaixonante de fazer literatura do escritor angolano Boaventura

Cardoso que nos persuadiu a enveredar pelo terreno das Literaturas Africanas de Língua

Portuguesa. Sua forma de (re)inventar as palavras e tradições, atrelada à arte de contar – tão

escassa na sociedade capitalista atual, como observou, com base em Walter Benjamin, a

estudiosa Jeanne Marie Gagnebin (1987: 10) –, nos fez olhar alguns aspectos do contexto

angolano de origem quimbunda sob outro prisma e observar as maneiras como, na tradição

oral dessa etnia, a vida era concebida.

É nossa intenção analisar as estratégias narracionais usadas pelo escritor Boaventura

Cardoso e investigar como elas contribuem para a recuperação de lendas e mitos originais da

cultura quimbunda, uma das etnias de Angola. Nossa dissertação analisará dois contos

nucleares dos dois primeiros livros do autor: Dizanga dia muenhu (1977), O fogo da fala

(1980) e se centrará na leitura do conto A morte do velho Kipacaça (1987), focalizando o

processo literário da reinvenção das tradições empregado pelo autor, sobretudo nesta última

obra, que, dentre as três referidas, ocupará lugar proeminente em nosso trabalho. Tal proposta

de estudo parece-nos conveniente, uma vez que já existe um número expressivo de pesquisas

sobre os romances do escritor: Signo do fogo (1992), Maio, mês de Maria (1997) e Mãe,

materno mar (2001). Decidimos, assim, nos restringir aos livros iniciais do escritor, pois

notamos nesses a presença de uma trama textual que se vai formando tal qual um quebra-

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cabeça, descortinando importantes elementos das tradições angolanas, como, por exemplo, o

emprego de provérbios e técnicas de contar recriadas a partir do uso oral.

Aguessy (1977: 112) nos ensina que tradição, na concepção de mundo de um povo, é o

que determina as singularidades próprias de uma cultura transmitida de geração em geração.

Os traços culturais de uma dada etnia manifestam-se tanto:

[...] nos comportamentos actuais como nos gestos mais antigos, nas atividades manuais reflexas e refletidas, nas actividades puramente intelectuais, nas relações com os outros, nas atitudes individuais, etc. (AGUESSY, 1977, p. 112).

A tradição oral, nesse viés, determina o modo de compreender a existência e a vida em

sociedade. Assim, percebemos que sempre ocupou posição de destaque na vida africana,

sendo “veículo fundamental de todos os valores” (ROSÁRIO, 1986: 47). As narrativas orais,

pelo seu caráter didático e exemplar, se constituíram como um dos “principais veículos de

transmissão de conhecimento, mantendo a ligação entre as gerações de uma mesma

comunidade” (ROSÁRIO, 1986: 47).

Nosso interesse pelo estudo das técnicas de narrar a partir do sistema oral se justifica,

desse modo, por conta do labor criativo característico da linguagem de Boaventura Cardoso,

que reinventa mitos e lendas da tradição quimbunda: “A arte de contar é uma prática

ritualística, um ato de iniciação no universo da africanidade” (PADILHA, 1995: 15). Portanto,

é bastante representativa.

Boaventura Cardoso é um autor, cuja escrita se caracteriza não só pelo ritmo marcante

da oralidade recriada, mas também pela poeticidade, pelo uso de símbolos da tradição e pela

consciente e voluntária infração a regras morfológicas e sintáticas. O escritor começou a

escrever por volta da década de sessenta, publicando textos na página “Artes e Letras” do

jornal A Província de Angola. Também, nesse período, tornou-se um leitor assíduo de crítica

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literária. Em 1977, logo após a independência do país e, com a criação da União dos

Escritores Angolanos, teve a oportunidade de publicar seu primeiro livro de contos, Dizanga

dia muenhu (que havia sido escrito anteriormente), no qual já se observava sua grande

qualidade artística, comprovada pela “ousadia de transcriar a oratura”, como bem observou

Abdala Jr. (2003: 249). Três anos depois, veio a público O fogo da fala (1980), seu segundo

livro de contos, apresentando um acentuado salto estético, marcado pelo aprofundamento de

apropriações do sistema léxico-sintático do quimbundo e de termos oriundos da língua oral,

mesclados, criativamente, ao sistema lingüístico do português.

O título Dizanga dia muenhu – “lagoa da vida”, léxico do quimbundo falado em

Angola numa área correspondente aproximadamente aos distritos de Luanda e Malanje – e

frases como “Ma’Minga a experimentar aproximação e camião a ir mona kazule nos braços

do pai dele”; “ximbicar” – (CARDOSO, 1980: 74); “xé”; “Ih”; “Kuateno!, Kuateno!”

(CARDOSO, 1977: 11, 12) são exemplos das “arrumações” feitas pelo escritor em sua

linguagem literária e revelam o lugar de seu discurso, conforme já observou Laura Padilha

(2002). Reparemos que a expressão “mona kazule”, que significa “filho último”, é

incorporada aos processos lingüísticos da língua portuguesa como se fizesse parte deles. O

verbo “ximbicar” – “remar com a vara” –, também é adaptado, recebendo desinência verbal

de primeira conjugação “ar”. A presença das interjeições “xé”, “Ih” e do vocativo “Kuateno!”

fixa as marcas da oralidade reinventada, fio condutor que perpassa toda a obra de Boaventura,

sendo, por isso, uma peculiaridade de sua escrita. Isso, a princípio, pode parecer mero

instrumento de transgressão. Entretanto, revela-se um poderoso suporte de recriação da

cultura angolana, pois, quando Boaventura, criativamente, “transforma” em literatura a

oralidade, “oraturalizando-a” (RUI, Manuel, 1979: 542), dá voz aos valores fundamentais de

seu povo. Sobre isso, Manuel Rui escreveu:

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O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. [...] E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade. [...] Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. [...] No texto oral já disse não toco e não deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, descrevo para que eu conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial. Tem de cantar. Dançar. Em suma temos de ser nós. “Nós mesmos”. Assim reforço a identidade com a literatura. (RUI, M. In: MEDINA, 1987: 309)

É importante notar que essa escrita recriada sob uma perspectiva oral, como apontou o

escritor agora citado, não é meramente uma cópia ou transposição, mas sim um trabalho

estético, antropológico, histórico, político, cultural e literário, movido não apenas pelo desejo

de reconstrução identitária, mas também pelo prazer artístico.

E se essas obras de Boaventura Cardoso desvelam o cuidadoso trabalho do escritor

efetuando uma hibridação de vocábulos da língua portuguesa e do quimbundo, seu terceiro

livro, A morte do velho Kipacaça (1987), apresenta-se como um dos momentos altos do seu

labor criativo, pois representa uma etapa ainda mais avançada de criação estética, já que

amplia o trabalho lingüístico e efetua uma mudança considerável de cenário, conforme

afirmam Rita Chaves e Tânia Macedo (2005: 251). Nessa obra, o autor recria traços do

animismo africano, revisitando cenas da tradição quimbunda, cuja visão se fundamenta na

crença do intercâmbio entre vivos e mortos; além de muitos outros aspectos, que serão

abordados mais adiante em um dos capítulos desta dissertação.

Importa ainda enfatizar que, em A morte do velho Kipacaça, Boaventura Cardoso,

estudioso de religiões e mitos angolanos, reinventa aspectos de religiosidades locais, o que

denota grande preocupação de sua parte em relação ao tema, que também é tratado

criticamente, em seu romance Mãe, materno mar (2001).

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Depois dos três primeiros livros de contos, o autor passou a escrever somente

romances, porém deu continuidade a temas e estratégias presentes nas suas obras iniciais.

Desejamos ainda ressaltar mais alguns detalhes acerca do corpus literário escolhido

por nós para análise e explicitar como este será abordado ao longo do desenvolvimento de

nossa dissertação. Primeiro, demonstraremos que Dizanga dia muenhu focaliza, em geral, o

contexto da pré-independência, pois, apesar de ter sido publicado em 1977, foi escrito antes

de 1975. Com dez contos, este livro põe, no centro das narrativas, de maneira estratégica, o

desejo de uma Angola em que os homens fossem livres, independentemente da cor de sua

pele, conforme defendeu Luther King. Consideramos o conto “Meu toque” nuclear na defesa

dessa temática, pois evidencia a opressão colonial esmagadora do colonizado. Por tal razão,

nos centraremos, particularmente, na análise deste conto no próximo capítulo.

O fogo da fala exacerba o trabalho estético com a linguagem e faz também uma crítica

intensa à guerra colonial e às suas conseqüências nefastas para a sociedade angolana. O título

desta obra privilegia um elemento importante na cultura africana e que se mostra fundamental

à escrita de Boaventura: o fogo. Também, a poeticidade de Boaventura Cardoso é notória;

extrapola os limites da prosa, colocando-nos diante de narrativas líricas, principalmente no

conto intitulado o “Canto da fome”, outro texto que analisaremos mais profundamente no

capítulo a seguir.

Em A morte do velho Kipacaça, é marcante a presença do animismo africano. Este se

aproxima do que Irlemar Chiampi denomina como “maravilhoso, caracterizado pela

intervenção de seres sobrenaturais, divinos ou legendários (deuses, anjos, demônios, gênios,

fadas) na ação narrativa ou dramática” (CHIAMPI, 1980: 49).

Também a concepção de Kabwasa (1982) sobre a visão animista africana do universo

nos possibilitará compreender um pouco da teia complexa tecida pela narrativa de A Morte do

velho Kipacaça, que dá ênfase à noção de energia vital:

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Segundo a qual a vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em gerações sucessivas. [...] Nesta visão do mundo africana, ligada à noção de força vital, a velhice é uma etapa da existência, pois a crença na sobrevivência, na continuidade da vida e no culto aos antepassados privilegia os anciãos, que são o vínculo entre os vivos e mortos. Esta vida eterna é vista como um movimento circular, que vai do nascimento à morte e da morte ao nascimento. [...] Na concepção ambun do universo, depois da morte tem início a vida invisível dos espíritos, dos ancestrais. Nesse mundo invisível reside a força vital (...) – (KABWASA, 1982: 14)

A morte, segundo o africano, não representa o fim da existência, mas o eterno retorno,

o ciclo vital, isto é, a continuidade da vida numa atmosfera invisível, por meio da qual se

estabelecem contatos e ligação entre vivos e mortos.

Pelas palavras de Kabwasa e pelos acontecimentos da narrativa, entendemos que o

“sobrenatural” – sonhos enigmáticos, montanha personificada, árvore mal assombrada e

mortos entre vivos –, ocupa lugar determinante no enredo, mesclando-se a fatos naturais. Isso

intensifica-se na última história, a que dá título ao livro: “A morte do velho Kipacaça”. Nesta,

a contundência é ainda mais acentuada, pois a morte apresenta-se no mesmo plano da vida,

como se observa pelo comentário de Maria Nazareth Fonseca: “há tradições que sustentam a

vida de diversas comunidades africanas para as quais a relação entre vivos e mortos é intensa

e propiciadora de entendimento dos ciclos a serem cumpridos pelo corpo e pelo espírito”

(FONSECA, In: Chaves (Orgs.), 2005: 97).

Considerando que, na perspectiva africana de vida, o “sobrenatural” convive com o

que é natural, não cabem designações como “fantástico”, “maravilhoso”, “insólito”. Por isso,

nós preferimos usar o termo “animismo”, que vem do latim animu e quer dizer espírito, vida.

Para esse estudo, recorreremos a estudiosos das culturas africanas, entre os quais: Hampâté

Bâ, Altuna, Ola Balogum, Kabwasa e outros.

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Com consciência da complexidade das questões das múltiplas religiões presentes,

hoje, em Angola, investigaremos como se manifesta em A morte do velho Kipacaça o

animismo africano. Este será analisado, a partir das metáforas da criança, da árvore e do

ancião, recorrentes na narrativa, bem como por intermédio da interpretação de provérbios,

ritmos, símbolos característicos das religiosidades e modos de vida africanos que, em alguns

aspectos, foram silenciados pela colonização portuguesa que impôs sua cultura e religião.

Nossa dissertação terá dois grandes capítulos: o primeiro, com base em Dizanga dia

muenhu (1977) e Fogo da fala (1980), será apenas uma breve apresentação das obras iniciais

do autor, discutindo a opressão colonial e o poder cortante da linguagem de Boaventura

Cardoso, na denúncia lúcida dos problemas sociais ocasionados pelo colonialismo e pela

violência da assimilação; o segundo, centro de nossa dissertação, analisará o livro A morte do

velho Kipacaça, estudando o animismo africano, os mitos e tradições recriados pela ficção. Aí

interpretaremos o simbolismo da árvore, da criança, do ancião, da terra, do ar, da água e do

fogo, sendo este, simbolicamente, um instrumento forjador da palavra. Para isso,

recorreremos a Gaston Bachelard, Mircea Eliade e a estudiosos africanos. Interpretaremos a

metáfora do ferreiro, concebida por Hampâté Bâ, para discorrer sobre o mistério da ação

criadora da palavra primordial africana. Em última instância, os nossos principais objetivos

são os seguintes:

§ demonstrar que a escrita de Boaventura Cardoso é fonte inesgotável de

reflexão sobre o homem angolano e sobre a vida em Angola, na medida em

que repensa as culturas locais;

§ comprovar a presença do animismo africano como uma das formas de revisitar

as tradições e religiosidades angolanas;

§ evidenciar que os provérbios, também na obra de Boaventura, expressam um

modo de ser angolano;

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§ interpretar a poeticidade da linguagem de Boaventura Cardoso, cuja alquimia

se assemelha à do ferreiro da tradição africana.

Ao abordarmos os três livros de contos de Boaventura Cardoso, procuraremos partir

de metáforas nucleadoras que estruturam cada obra. Assim, em Dizanga dia muenhu,

analisaremos apenas um conto-chave, buscando as imagens e palavras que apontam para uma

crítica afiada à opressão colonial; em O fogo da fala, estudaremos a denúncia do regime de

contrato, a metáfora do fogo e a importância das crianças na sociedade angolana; no livro A

morte do velho Kipacaça, nos centraremos nas figuras do ancião, da árvore e nas sabedorias,

investigando a questão do animismo africano.

Procuraremos, nesta dissertação, avaliar aspectos da história de Angola que causaram

o apagamento de muitas de suas tradições. Nosso trabalho, ao final, pretende responder às

seguintes questões: qual o papel do animismo africano na narrativa de Boaventura? Qual a

função dos provérbios na escrita do autor? Como o labor estético recria poeticamente a

palavra na ficção de Boaventura Cardoso?

A fundamentação teórica desta dissertação se baseará em Aguessy, Walter Benjamin,

Hampâté Ba, Óscar Ribas, Franz Fanon, Albert Memmi, Roland Barthes, Irlemar Chiamp,

Mircea Eliade, Alfredo Bosi. Recorreremos também a estudiosos das Literaturas Africanas,

cuja contribuição será essencial para o aprofundamento de nosso estudo: Alfredo Margarido,

Costa Andrade, Américo Boavida, Inocência Matta, Laura Padilha, Benjamin Abdala Júnior,

Carmen Tindó, Rita Chaves, entre outros.

Passaremos, a seguir, à análise propriamente dita dos livros de Boaventura.

Convidamos, pois, o leitor a refletir conosco sobre o (re)inventar de histórias, tradições e

palavras, cujas lições ultrapassam as linhas ficcionais e nos fazem repensar não só a história

de Angola, suas religiosidades, mas a poesia da linguagem e a da própria vida.

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2. UM OLHAR DE COMBATE AO COLONIALISMO E A PALAVRA QUE

(EN)CANTA

Começamos com uma citação do crítico Alfredo Margarido (1980), tendo em vista o

fato de esta se referir à questão de os escritores africanos terem buscado encontrar uma língua

angolana liberta/livre da imposição semântica colonial:

Certamente que a literatura angolana está longe de constituir um corpo sem fissuras. O que se compreende a partir dos dados de sua formação e das condições em que se prossegue a sua elaboração. Contudo, é bem evidente que não lhe faltam criadores poderosos, que procuram não só a homologia entre o imaginário da criação e o da prática cotidiana, mas tentam encontrar a língua angolana através da qual esta afirmação se libertará finalmente de todo o peso e de toda a imposição semântica colonial. Isto é bem suficiente para mostrar a homologia dos dois combates e até que ponto a criação literária é tornada inseparável do combate político. (MARGARIDO, 1980: 347)

Quando pensamos sobre a Literatura Angolana, precisamos considerar as condições

sociais e políticas em que esta foi formada e as estratégias literárias de

construção/reconstrução das identidades locais usadas como formas de busca da libertação.

Partimos desses dois combates mencionados por Margarido, tendo como base a seguinte

pergunta: Até que ponto, em determinados tempos históricos, a criação literária é tornada

inseparável do combate político? Para responder a essa questão, recorreremos,

principalmente, a Boaventura Cardoso, analisando o conto “Meu toque”, do livro Dizanga dia

muenhu (1977).

O processo de luta em Angola contra a presença colonialista foi perpassado por vários

entraves, entre eles, o silêncio a que era obrigada a se submeter à sociedade angolana da

época, sob risco de morte, considerando que qualquer esboço de revolução, por menor que

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fosse, culminava em retaliação por parte da Polícia Internacional de Defesa do Estado, a

PIDE. Toda essa repressão gerou longos e muitos sofrimentos na população antes da tão

sonhada independência.

É preciso lembrar, entretanto, que, durante séculos, muitas etnias angolanas resistiram

à presença portuguesa. A dominação lusitana ocorreu em Angola principalmente após 1648 e

durou até 1975. O MPLA3, criado no final da década de 1950, conscientizou o povo dos

abusos do poder colonial e instituiu a luta a partir de 1961, organizando guerrilhas no interior

de Angola, onde ocorreu a guerra colonial.

Os focos desencadeadores da rebelião popular em Luanda, nessa época, foram prisões

e o assassinato de um angolano em uma mesa de bar. Tais incidentes fizeram com que as

relações entre as comunidades brancas e negras entrassem em conflito aberto, colocando,

explicitamente, em causa a presença colonial. Ora, as tensões que sempre existiram entre

colonos e colonizados se acirraram, estendendo-se, pois, para o centro urbano luandense,

apesar da atuação da PIDE que inibia as rebeliões e críticas ao sistema colonial.

Durante a ditadura salazarista, principalmente de 1940 a 1970, Portugal oprimiu

intensamente suas colônias na África. A PIDE vetava, com violência, as manifestações do

povo angolano; estas, entretanto, não deixaram de gritar contra a censura e repressão. E aqui

entra a literatura angolana dos anos 1960 como expressão desse grito de revolta. Era a

resistência que começava a se engendrar. Os textos literários eram engajados e buscavam

afirmar as identidades silenciadas pela imposição colonial. Os escritores e poetas procuravam

subverter a semântica e o léxico coloniais.

Boaventura Cardoso, pertencente à geração de escritores que se formou, em Angola,

no período das lutas anticoloniais, apresenta uma obra que persegue a criação de um “falar

angolano”. Seus contos dos dois livros iniciais transcorrem no período colonial. Sua escrita,

3 Movimento pela Libertação de Angola.

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nesses textos, se centra no falar oral de populações de origem quimbunda, incorporando, de

modo criativo, interjeições, exclamações, termos do quimbundo: “Fininho, Zito e Féfé, poça!”

(...) “vê lá hen!” (...) “Sueu quin graxo me!” (...) “na escola sôssora sempre chatear” (...) “os

carros vum-vum sempre” (...) “Kumbú bué” (CARDOSO, 1977: 15 – 18).

O ritmo, no projeto literário de Boaventura, é fundamental para a consecução de uma

“falaescrita”4 angolana. A seguir, exemplificaremos com um trecho do conto “Meu toque”.

Com essa expressão “Meu toque”, o autor concede ao conto uma musicalidade ímpar. As

consoantes /m/, /t/ e /q/, que são, respectivamente, bilabial nasalizada, oclusiva linguodental e

oclusiva alveolar, são responsáveis por esse cadenciamento rítmico. As bilabiais produzem

um som bastante explosivo, como se fosse um estouro. Além disso, a repetição desses sons

constitui-se numa aliteração que intensifica as marcas gráficas e a mensagem do conto:

os graxas gritavam MEU TOQUE! Berridavam atrás do sapato que dava o pão. MEU TOQUE! Era o grito da fome, a luta dos homens pequenos empurrados cedo na vida dura. MEU TOQUE! Era a agonia dos explorados. MEU TOQUE! Quem quin gritou primeiro fui eu! Sueu quin graxo mé! MEU TOQUE! (CARDOSO, 1977: 16).

Em “Meu toque”, são transgredidas algumas regras gramaticais em relação à norma

culta ditada por Portugal. Há uma incorporação do vocabulário local: “mikondos, kilamas,

monangamba, kandengue” 5 – (CARDOSO, 1977: 16 – 19). O título Dizanga dia muenhu, em

quimbundo, evidencia essa atitude de rebeldia do autor, que assume claramente a efetivação

de uma quimbundização da língua portuguesa.

Recorro mais uma vez a Padilha, cujas palavras reafirmam o que dissemos

anteriormente:

4 Termo usado por Laura Padilha (PADILHA, 2002: 21) para designar o trabalho de Boaventura Cardoso, ao transcriar a fala na escrita. 5 A tradução dos termos em quimbundo é, respectivamente: “doces”, “intérpretes da kianda”, “serviçal” e “crianças’.

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A questão lingüística não se restringe, no entanto, apenas ao uso do português fora da norma culta européia. Também as línguas nacionais, sobretudo o quimbundo, assumem um novo status de objeto literário nas produções da modernidade. Desse modo, a herança cultural do silenciador sofre uma transformação profunda, ao se expressar na língua do silenciado. Sendo um mesmo, tal herança é já um outro, diferente do original – (PADILHA, 2002: 22)

Ao transcriar a língua falada pelo colonizado para o campo escrito/literário, o escritor

concede a esta uma nova condição enquanto língua e representação de mundo. A cultura

angolana, então, passa a estar no lugar antes somente ocupado pela cultura do colonizador.

A oralidade não pertence apenas ao universo africano, pois, em quase todas as

culturas, era por ela que se perpetuava a transmissão dos conhecimentos e valores nas

sociedades ágrafas em geral. Nas tradições africanas, essa transmissão se dava, muitas vezes,

em rodas à volta da fogueira. Boaventura Cardoso, em seus textos, busca criar uma

“falaescrita” que mantém o calor desses saberes ancestrais aprendidos ao redor do fogo, em

torno do qual os mais velhos contavam estórias. Exemplos dessa escrita que recria estruturas

tipicamente orais são os seguintes: “Vem cá sés home”, “Mano João éééé”, “É isso pá”,

“Ih?!” – (CARDOSO, 1977: 19, 25 e 76). As interrogações, onomatopéias, elisões comuns à

fala são, assim, apropriadas e recriadas pela escrita, dramatizando, nas letras, cenas

vivenciadas na oratura.

Boaventura Cardoso reinventa traços orais em seus textos, subvertendo normas da

língua portuguesa imposta pela colonização. Assim, se explica uma das “desobediências”

textuais do autor, que, conscientemente, quer burlar e infringir regras da língua portuguesa,

que foi veículo da dominação lusitana durante séculos. Reinventar o real é uma forma de

liberdade. Ao menos na escrita, a ficção podia inventar seu próprio ritmo, assim como o da

vida. É inicialmente pela escrita que haverá o rompimento com as estruturas do sistema

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colonizador. A quebra desse código demonstra a atitude ousada do escritor Boaventura

Cardoso, uma vez que este vence, ultrapassa barreiras e consegue criar um texto

genuinamente angolano.

A escrita de Boaventura é um ato de luta e intervenção social. Quando escreve, pensa

sobre a vida, reflete acerca do mundo à sua volta; é um jeito de não se conformar com o que

está em desacordo com sua ideologia. Sua palavra é mediadora entre o coletivo e o individual,

entre o social e o existencial. Desse ponto de vista, sua linguagem é um importante

instrumento crítico de percepção da realidade, sendo por meio dela que muitas contradições

da sociedade angolana são denunciadas.

Os contos de Dizanga dia muenhu evidenciam paradoxos gerados pelo sistema

colonial, por intermédio de várias personagens, cujas características revelam a condição sub-

humana vivenciada por muitas delas. No conto “Meu toque”, por exemplo, Kaprikitu, menino

que tenta ganhar a vida como engraxate, é uma alegoria da opressão colonial, uma vez que se

faz metonímia da inferioridade social imposta aos moradores dos musseques6. Esse livro de

contos foi escrito um pouco antes da independência de Angola, proclamada em onze de

novembro de 1975, embora só tenha sido publicado alguns anos mais tarde.

Outra denúncia feita por esse texto é a prostituição da mãe de Kaprikitu, obrigada a

vender o corpo para sanar a fome: “Munhungar o corpo é pelejar contra a fome” / “Mãe negra

é mãe é pai” – (CARDOSO, 1977:15). Isso aponta para algo bem mais grave: as injustiças

vividas pelos habitantes dos musseques e para a ação negativa do colonizador, que aparece,

em todos os contos, como desestabilizadora. O final de “Meu toque” é categórico: “Kaprikitu

olhava só a caixa, as tintas, a graxa no chão. E amanhã? Os olhos começavam a chorar a

tristeza que lhe rachava no coração. E amanhã? Tinha de pensar no dia de amanhã...Quando

vier a Totalimediata se te acaço” – (CARDOSO, 1997: 19). A independência era, dessa

6 Do vocabulário quimbundo, significa favelas.

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forma, a esperança que insistia em sobreviver e a possibilidade que se entreabria nas cenas

diárias de autoritarismo e desrespeito humano para com os pertencentes ao espaço dos

oprimidos.

Interessante notar que esse projeto literário de afirmação da identidade angolana,

através da qual muitos cidadãos de Angola puderam adquirir voz, não foi construído de forma

inconsciente. Ao contrário, em diversas situações, nos deparamos com ensinamentos de

coragem: “A lágrima não faz a luta” (CARDOSO, 1997: 70); versos desse tipo foram de suma

importância para o tom que vai, aos poucos, se incorporando às narrativas dos livros iniciais

de Boaventura: a literatura como arma de combate e resistência, ou melhor, a literatura como

motivação para a ação política e para a conquista de uma linguagem genuinamente angolana.

Ao usar o idioma do colonizador, de modo subversivo, Boaventura Cardoso serve-se

da língua do adversário contra este mesmo. Efetua uma radicalização no trabalho lingüístico

realizado; em cada livro seu, há uma inovadora dimensão dada à palavra, o descobrimento de

caminhos para a expressão de uma “nova” linguagem. E “dar dimensão nova à palavra é

colaborar igualmente no redimensionamento do pensamento” (ANDRADE, 1980: 41). Um

exemplo disso é o slogan do engraxate “MEU TOQUE”, que, tal qual um grito de guerra,

imprime ritmo e vida à narrativa, deixando de ser apenas o apelido do menino engraxate para

ser também um brado de denúncia. Os vocativos ecoam das linhas do conto e comovem o

leitor, mas essa voz da criança oprimida é abafada pelo freguês, cujo “pontapé rijo”

(CARDOSO, 1977: 18) destrói o objeto de trabalho do personagem principal Kaprikitu. Nesse

momento, o sintagma “meu toque” ganha uma outra significação, transformando-se num

toque que acorda a consciência do leitor.

A questão da identidade suscita muitas concepções e teorias. É assunto bastante

complexo. Nas Literaturas Africanas, aparece com freqüência, tendo em vista o dilaceramento

identitário, tanto cultural como histórico, vivenciado por muitos países da África. Por tal

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razão, é preciso entender com Boaventura de Souza Santos que “as identidades são múltiplas

e se encontram sempre em curso” (SANTOS, B. C., 1996: 135), principalmente em países

egressos do colonialismo.

Mia Couto, em prefácio ao livro da historiadora Leila Hernandez, pergunta: “[...]

quando se fala em África, de que África estamos falando? Terá o continente africano uma

essência facilmente capturável? Haverá uma substância exótica que os caçadores de

identidades possam reconhecer como sendo a alma africana? – (COUTO, M., In:

HERNANDEZ, L., 2005: 11). Isso nos faz entender as muitas diversidades da África,

algumas destas oriundas das experiências coloniais que dividiram a África, desrespeitando

suas etnias e fronteiras.

Os contos de Dizanga dia muenhu, em sua maioria, problematizam os males impostos

pelo colonialismo em Angola. O título desse livro, expressão que em quimbundo significa

“lagoa da vida”, aponta para o sentido de um reservatório de mitos e raízes, traços

característicos de uma Angola multifacetada que resiste e busca se manter viva.

O fogo da fala (1980), segundo livro de Boaventura Cardoso, traz, desde o título, a

imagem do fogo, cujas significações são diversas, a começar pela experimentação poética e

artesanal da linguagem. Além desse sentido, o fogo também vai metaforizar a guerra que

abalou o corpo social de Angola. O fogo pode queimar, mas é também elemento purificador.

É ambivalente por natureza. Nesta obra, portanto, ele é uma metáfora nuclear. Representa a

alquimia da palavra, do trabalho primoroso com a linguagem literária. O fogo, importante

elemento na cultura africana, remete ao prazer da narratividade oral, praticada, em geral, à

volta das fogueiras. Composto por sete narrativas, na maioria das quais a figura da criança

ganha vida e voz, por ser protagonista de quase todas as histórias, o livro assume um ponto de

vista afastado dos dogmas do mundo adulto.

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Nos contos de O fogo da fala, os narradores-crianças promovem a dramatização das

histórias contadas, imprimindo-lhes uma dicção infantil, cheia de pureza e ingenuidade. A

encenação dos diálogos dá vida ao contar: “Olhos assim, boca assim, asas assim. Assim

gigante, assim grandalhão, um passarão assim. E o passarão então abre a boca gigante e

mostra a língua vermelha (...)” (CARDOSO, 1980: 47). A carga teatral efetua uma

gesticulação do narrar, o que acentua a verossimilhança da narrativa. A linguagem do conto é

coloquial e “infantilizada”, repleta de adjetivos e onomatopéias, como vemos em “vem peixe

miúdo saltitante. (...) Tubarão grande e grande e grande” / “vieram gaviões rugindo e Pum!

Pum! Pum!” (CARDOSO, 1980: 48, 86 e 87). Os contos, de um modo geral, traçam um

quadro social de Angola, focalizando a criança no cenário da colonização e da guerra civil.

Dar voz à criança é, antes de mais nada, repensar a opressão dos tempos coloniais, avaliando,

com um olhar puro e crítico, criticamente os traumas gerados pela guerra no seio da sociedade

angolana.

A imagem da criança, por sua pureza e ingenuidade, se mostra ainda mais

significativa, pois permite que a compreensão da história angolana se faça de uma maneira

mais descomprometida e ousada, não repetindo opiniões já cristalizadas. Neste livro, então,

somos conduzidos pelo olhar de crianças que, no decorrer das narrativas, vão deixando seus

pareceres espontâneos e sinceros, cheios de autenticidade, sobre a situação do país.

Além da presença recorrente do olhar infantil, a metáfora do fogo, como já apontamos,

é de grande intensidade neste segundo livro de Boaventura Cardoso. Em África, o fogo é

fundador da linguagem e das culturas. Para o povo bambara, a fala está ligada aos quatro

elementos; para os dogons, “o fogo é um dos componentes do discurso e determina condições

psicológicas do sujeito falante” (SECCO, In: CARDOSO, 2001: 25). O fogo “modela”, assim,

tanto as relações sociais quanto as políticas. Considere-se aí a força transformadora e o poder

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penetrante desse elemento consagrado e repleto de religiosidade. O ouro, por exemplo,

somente ganha beleza depois que é forjado no calor ígneo.

O fogo aparece em Boaventura Cardoso como forjador da palavra oral, estando

relacionado à imagem do ferreiro tradicional, que é responsável por guardar o segredo das

transmutações. Segundo Hampâté Bâ, é “por excelência, o ‘Senhor do fogo’. Sua origem é

mítica e ele é chamado, na tradição bambara, o “primeiro filho da terra” – (HAMPÂTÊ-BÂ,

1993: 6). Os gestos do ferreiro, senhor do fogo, têm forte carga semântica: representam a

criação em ação. “Seus gestos são considerados uma linguagem. Na verdade, os gestos de

cada ofício reproduzem, mediante um simbolismo que lhes é próprio, o mistério da criação

primeira unida ao poder da Palavra.” (HAMPÂTÊ BÂ, 1993: 5).

Esse mito africano se relaciona, por analogia, à história da criação mítica da

humanidade. “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gênesis, 1995: 1); tudo passou a

existir por meio da palavra criadora. Prestemos atenção ao significado do verbo “criar”: do

hebraico, “bara”, usado exclusivamente em referência a uma atividade que somente Deus

pode realizar. Significa que, num momento, Deus criou a matéria e a substância, que antes

nunca existiram. Basta lembrar que a terra, antes desse ato, estava informe.

Também na tradição africana, a palavra é sagrada; pode ser proferida por qualquer

pessoa, desde que acompanhada de ritmo, cantos ritualísticos e fórmulas mágicas. “A palavra

é por excelência o grande agente ativo da magia africana” (HAMPÂTÉ BÂ, 1993: 5). Assim

como na Bíblia, a palavra, na África ancestral, era poderosa em seus efeitos.

Para os antigos hebreus, o poder de nomear significava dar às coisas a sua verdadeira

natureza ou reconhecê-la. “Esse poder é o fundamento da linguagem e, por extensão, o

fundamento da poesia. O poeta é o doador de sentido.” (BOSI, 1977: 141). E ao próprio ser

humano foi dado o poder de nomear: “E o homem deu nome a todos os seres vivos” (Gênesis,

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1995, 2: 19-20). Assim, a linguagem, além do poder de nomeação, pode também dar um

sentido poético ao que é dito.

Os africanos, na tradição, usavam a palavra oral como veículo sagrado de seus ritos,

religiosidades e costumes. Os escritores angolanos, principalmente os que escreveram nos

anos de 50 e 60, buscaram encenar essa palavra oralizada em suas escritas. Mas, sob domínio

das letras, a oralidade se faz reinvenção, conjugando a magia da palavra oraturizada ao prazer

poético do texto escrito. Esse é o encanto da voz e da letra, conforme já observaram diversos

estudiosos das Literaturas Africanas, entre os quais Laura Padilha, Inocência Mata, Ana

Mafalda Leite, Carmen Tindó e muitos outros.

Elegemos o conto “O canto da fome” para evidenciar como a poeticidade é construída

pelo fogo da linguagem de Boaventura Cardoso. Desejamos assinalar o salto estético do

escritor nesta obra, embora, no seu primeiro livro, já se apresente o gérmen do que nesta se

desenvolve: o primor artesanal do discurso. Há um labor lingüístico tecido por um mosaico de

invenções, reinvenções, adaptações, períodos curtos, que dinamizam o texto permeado de

hibridismos. O resultado é uma linguagem sintética, sinestésica e altamente poética. Vejamos

alguns exemplos:

• de períodos curtos: “Tinha chuva grande [...] Os pássaros já tinham passado”

(CARDOSO, 1980: 25) -;

• de hibridismos do quimbundo com o português: “kibionar”, “ximbicar”,

“kufefetou”, entre muitos outros; (Ibidem, 91)

• de interjeição na língua quimbundo: “A mam’e”, que significa “Ah Que

desgraça! Estou perdido!”; (Ibidem, 91)

• de linguagem sintética e ritmada: “Tinha chuva. Chovia. Chuva grande [...]

Canto. Trabalho. Canto. Trabalho. Canto. Trabalho” – (Ibidem, 25);

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A condensação e a brevidade das frases de Boaventura Cardoso em seus primeiros

livros apresentam, em geral, forte carga visual e rítmica. A experiência da imagem e do som é

anterior à da palavra, à da escrita e à da gramática. Acredita-se que, antes de o homem

dominar as complexas estruturas lingüísticas, sua linguagem era polifórmica e sintética. Por

isso, havia a hipótese de que essa linguagem primeira fosse curta, poética, repleta de

significações. Ao buscar esse estilo de discurso, Boaventura Cardoso procura apreender uma

linguagem cheia de poesia e calcada no falar oral dos musseques luandenses, constituindo-se,

assim, livre dos estereótipos impostos pelo colonialismo que obrigava a um uso lusitano da

língua portuguesa.

No conto “O canto da fome”, as alternâncias dos sintagmas

canto/trabalho/canto/trabalho e canto/força/canto/força/trabalho/trabalho forçado/força

assumem um importante papel na narrativa: produzem musicalidade, ritmo e beleza poética.

As imagens criadas por essas combinações se destacam, nesse texto de prosa poética, como

instrumento encantatório por excelência. Ora, não é “toda a poesia fundamentalmente

imagem?” (CORTÁZAR, 2006: 86). O sentido imagístico é o fundamento da linguagem da

poesia. Em Boaventura Cardoso, a plasticidade de imagens é de rara beleza; o ritmo e a

contundência das palavras são elementos não só de artesania estética, mas de denúncia social

também. O fogo das palavras encanta, porém queima e alerta as consciências ledoras.

Na narrativa do conto em questão, o constante alternar das palavras faz com que estas

se desdobrem em uma velocidade e em um ritmo estonteantes. Ora canto, ora trabalho, ora

canto, ora trabalho: “O canto crescia” (Ibidem, 25). Isso vai-se intensificando, conduzindo-

nos, rapidamente, ao clímax da história: “David Kassule esperava a vez dele. Não estava

quieto na fila: mexia-se muito, fechava as mãos de nervos. Ferviam pensamentos na sua

cabeça. Cada tempo que passava, ele mais nervoso ainda” (Ibidem, 27). A gradação vai

criando enorme expectativa no leitor. A cena é bela, o prazer de lê-la em voz alta é grande,

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pois acentua o ritmo. Cabe também ao ouvido de cada leitor a sensibilidade de captar tão bela

poesia.

As metáforas, de igual modo, colaboram para a plasticidade do texto, uma vez que

criam imagens polissêmicas. Elas se encontram também nos homens, não sendo privativas da

poesia, como afirmou Paulhan, explicando que a poesia surge no cotidiano e na simplicidade

do mundo. No conto “O canto da fome”, a linguagem é metafórica, o que evidencia “a

tendência humana para a concepção analógica do mundo e o ingresso (poético ou não) das

analogias nas formas da linguagem.” – (PAULHAN, 2006:86).

Essa capacidade analógica dos seres humanos existe em variados graus de intensidade

em quase todos os indivíduos. Nas culturas tradicionais de origem banto, também o

pensamento era analógico, sendo o estilo de vida africano, naturalmente, poético; assim, o

ritmo da fala, o canto, os rituais, a magia das tradições, recriados pela ficção de Boaventura,

não são apenas uma (re)invenção literária, mas a ficcionalização de práticas de vida comuns

que existiam entre os angolanos de antigas etnias rurais de Angola. Vejamos, a seguir, um

exemplo dessa encenação literária de vivências angolanas da tradição, recriadas pela pena do

escritor:

Pai Zé canoa miúdo no mar. Miúdo no mar descobrindo mar. Pai Zé no mar peixe mar. (...) Curiosidade da criança é nascente de água, parar é parar vento com mão. Vida no mar ele quer saber toda. Pai Zé responde sempre, paciência é dele. (...) Avô. Avô é! Nada. Choro solitário no mar sem ninguém. Lágrimas no rosto kandengue. Ximbicar, não sabe ximbicar, primeira vez é esta que vai no mar. (...) Pioneiro enxuga lágrima na vontade de lutar. Toma coragem e pega força nos remos e está ximbicar lento, canoa chuá chuá chuá a andar. (...) Cada gesto que faz olha no velho para ver se este aprova ou não. Se pudesse perguntava avôzinho é assim? (...) E vão indo canoa ele o miúdo e o corpo do mais-velho. (CARDOSO, 1980: 89, 91 e 92)

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Esta citação foi retirada de um dos contos de O fogo da fala; ressemantiza,

literariamente, cenas da tradição, apreendendo a magia não só dos rituais, mas a da

linguagem. O trabalho da poesia é, em geral, descobrir o mundo que existe por trás das

imagens e que, às vezes, é esquecido por diversos motivos. Cabe ao poético despertar a

capacidade que os homens têm de se admirarem e se entusiasmarem por algo profundo. A

palavra da poesia é portadora desse encantamento capaz de seduzir e emocionar a alma

humana. O trecho citado é revelador da carga mágica e sedutora da linguagem de Boaventura

Cardoso.

Outro elemento subversivo da linguagem desse escritor é o emprego de hibridismos

lingüísticos que mesclam traços do sistema da língua do colonizador, incorporando-os ao

sistema da língua do colonizado. O escritor cria palavras pela combinação de radicais do

quimbundo com sufixos da língua portuguesa. Exemplos disso são “kufefetou” (segredou),

“kujijinar” (catar). Outro procedimento usado é a inclusão de termos do léxico quimbundo,

como: “kasule” (filho mais novo), “ngamba” ( contratado), “muxima” (coração), “kindele”

(brancura, branca). Essa atitude transgressora de “modelar” a língua portuguesa com

vocábulos do quimbundo faz com que a primeira se africanize, deixando de ser apenas o

“idioma do colonizador”. Tal estratégia gera um estranhamento no texto, que, como afirmou

Padilha (2002: 20), marca o lugar de onde o escritor “fala” e quer ser ouvido. É uma atitude

de provocação, como se o autor dissesse: “se você quer me entender, levante-se do seu lugar,

saia do seu comodismo”.

No labor literário de O fogo da fala (1980), a função da alternância rítmica e

semântica presente no par canto/trabalho não se restringe à musicalidade própria da oralidade,

inerente às diversas culturas de África, mas também expressa a revolta que, gradativamente,

se vai acentuando como reação à exploração sofrida pelos contratados que iam trabalhar nas

roças de São Tomé.

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O protagonista David Kassule exemplifica essa atitude de indignação, ao reagir à ação

abusiva e cruel do patrão que não lhe pagava nada pelo trabalho prestado; entretanto, acaba

morrendo, vítima do exacerbado autoritarismo que sempre o impediu de ser um homem livre:

“David Kassule começou a sangrar. Caiu no chão [...] Disparou todas as balas, toda a fúria,

toda a raiva, tudo no corpo do contratado” (CARDOSO, 1980: 28).

O fim trágico de David Kassule revela a opressão do regime colonial que não

respeitava os direitos humanos, nem a própria vida dos colonizados. A tragédia ao final do

conto enfraquece o canto; as vozes são ensurdecidas e tudo contribui para um quadro de

derrota político-social. Todavia, emana das entrelinhas do texto um outro canto surdo que

deixa no ar um clima tenso de crítica e revolta pelas injustiças cometidas contra os

contratados.

A reação da personagem merece uma reflexão mais aguda, porque expressa a revolta

do colonizado injustiçado. A atitude do patrão, por sua vez, é alegoria de um mando

desmedido que vai até contra as leis da própria vida.

Os contos posteriores mostrarão que o advérbio “ainda” cabia perfeitamente à

realidade angolana dos colonizados e dos contratados, em particular, pois as tragédias e crises

registradas prenunciavam a revolução e as transformações sociais urgentes e necessárias que

se avizinhavam.

O tema dos “contratados” é recorrente na literatura da época e implica uma crítica a

esse tipo de escravidão interna dentro da própria África. Sabe-se que, mesmo com o fim da

escravatura, em Angola, o tráfico negreiro continuou até quase 1888, quando ocorreu a

abolição dos escravos no Brasil. Foram, por conseguinte, dois tipos de escravidão: uma

interna e outra externa. Ambas, contudo, foram cruéis, extremamente repressoras e

prejudiciais.

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34

O regime de desigualdades e a exploração do trabalho dos colonizados foram gerando

ódios e ações de protesto que acabaram desembocando nos movimentos organizados em prol

da libertação. A literatura desse período contribuiu para a conscientização da opressão

colonial e racista, denunciando “[...] a afirmação de uma prática exploratória que contrapunha

empregador e empregados no panorama cultural do império português de então.”

(DELGADO, I. G. [Coord.], 2006: 139).

Alguns dos protagonistas de O fogo da fala (1980) eram, como já mencionamos,

trabalhadores rurais e viviam em condições sub-humanas, não recebendo salários e

convivendo com a fome. Boaventura Cardoso não nos deixa esquecer tais fatos, quando

descortina, criticamente, em sua ficção, cenas vivenciadas por tais personagens.

O fogo da fala (1980) metaforiza problemas dos colonizados e, em especial, dos

contratados, através de um trabalho cuidadoso com a linguagem, por intermédio da qual é

demonstrada a crueldade do regime opressivo português nos tempos coloniais. Contudo, a

maneira como isso é conduzido por Boaventura Cardoso trilha não só caminhos de

contundente crítica social, expressando também um trabalho de pesquisa e reinvenção de

mitos e tradições angolanas orais. Desse modo, “fala” e escrita se entrelaçam, criando uma

“falaescrita” que busca reconstruir modos de ser angolanos que o colonialismo português não

conseguiu apagar totalmente. O terceiro capítulo de nossa dissertação demonstrará, pela

análise do livro A morte do velho Kipacaça, como o animismo africano é presente,

constituindo-se como uma forma de resistência à imposição colonial.

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35

3. TRADIÇÕES REVISITADAS EM A morte do velho Kipacaça

3.1 O animismo africano: reflexões

Neste capítulo, antes de iniciarmos a análise literária propriamente dita do terceiro

livro de Boaventura Cardoso – A morte do velho Kipacaça (2001) –, discorreremos sobre o

animismo africano, tendo em vista a recorrente presença de mitos e religiosidades de Angola

recriadas nessa obra do escritor.

Considerando que nosso olhar é externo ao universo mítico angolano, priorizamos, em

nossa leitura, interpretações de cunho literário, analisando as metáforas e alegóricas imagens

que expressam, figuradamente, tais religiosidades e crenças constitutivas da visão animista

angolana de mundo. É nosso desejo observar, interrogar, buscar, entender essas práticas

religiosas, cuja importância para a escrita do autor é grande. Por, justamente, percebermos

isso, movidos por inquietante reflexão, procuramos, nesta dissertação, indagar sobre o papel

do animismo africano em A morte do velho Kipacaça, obra em que, de modo mais evidente,

são ficcionalizadas algumas tradições angolanas de origem banto7, assim como diversos

costumes, rituais, ritos de iniciação, cultos, mitos existentes entre os quimbundos8 de Angola.

De acordo com Altuna, que recolheu religiosidades e mitos angolanos em seus

escritos, o “animismo pensa que (...) todos os seres estão animados de alma própria”

(ALTUNA, 1985: 364); já, para Aguessy, outro estudioso das tradições africanas, “vida, força

e unidade são os três grandes princípios das visões e percepções tradicionais [...] Diferentes

7 “O termo “banto” não se refere a uma unidade racial; pelo contrário. Abarca em seu sentido uma enorme variedade de cruzamentos. Há aproximadamente quinhentos povos bantos. O termo, em questão, aplica-se a povos que conservam a sua unidade e eram, em geral, negros. O radical “ntu”, comum em muitas línguas banto, significa “homem, pessoas humanas”. O prefixo “ba” forma o plural da palavra “muntu” (pessoa). Assim, banto significa “seres humanos”, pessoas, povos”. (ALTUNA, 1985: 17) 8 Povos de determinada região de Angola.

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36

níveis da existência e diversos seres encontram-se unidos pela força vital” (AGUESSY, 1980:

98).

Entre os bantos, havia a crença de que a vida, simbolizada pelo sangue, era

administrada pelos antepassados, pois era através deles que a força vital se mantinha; a

unidade se fazia pela harmonia e pela obediência a um rígido sistema de hierarquias: deuses,

ancestrais, mortos da família, chefes, pais etc. Por meio “dessas categorias circulava uma

energia vital, na direção dos deuses, passando pelos ancestrais, intermediários entre os vivos e

os mortos até chegar aos mais jovens, aos comuns dos mortais” (Ibidem, p. 61). Tal energia

constitui, assim, segundo a concepção animista, “um conjunto de forças hierarquizadas, entre

as quais circula (...) a força vital” (Ibidem, p.83). Esse conceito regia, de modo geral, quase

todos os segmentos de vida, na África ancestral. Isso significava que, “na visão animista

africana do universo, a vida era uma corrente eterna que fluía, em cada homem, em gerações

sucessivas” (HAMPATÈ BÂ, 1982: 14). De acordo com tal perspectiva, a vida era eterna,

sendo representada por uma esfera cíclica que ia “do nascimento à morte e da morte ao

nascimento” (HAMPÂTÈ BÂ, 1982: 14). Por isso, os povos africanos de origem banto se

perpetuavam através de sua descendência; os laços de união que ligavam os membros do

grupo não se rompiam com a morte, uma vez que os mortos continuavam vivendo por

intermédio de seus descendentes. A identidade de sangue que circulava por todas as linhagens

se denominava corrente vital, linhagem ou estirpe. Segundo Altuna, desapareciam “as

fronteiras entre o mundo invisível e o mundo natural-visível, visto que a mesma vida

circulava e se relacionava” (ALTUNA, 1985: 198). Essa idéia é seguida por outros estudiosos

como, por exemplo, Laura Padilha, para quem: “Tudo, no universo simbólico-cultural-banto,

consolida o animismo, pelo qual se reforça que todas as coisas possuem uma alma e que a

natureza, forjada em tal força anímica, solda todos os elementos que a compõem”

(PADILHA, 2005: 204 In: MATA et alii, 2005: 204).

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Na cultura banto, quase sempre, “os atos da vida giram em torno dos espíritos”

(RIBAS, 1989:25). Tudo é movido por forças espirituais que se encontram na natureza. Esta,

para os povos bantos, era dotada de alma. Tudo – árvores, rios, pedras, lagos – possuíam uma

anima (= alma). Daí gerou-se a noção do animismo africano.

Essa concepção de mundo e de vida tornava os homens religiosos, fazendo-os buscar

uma conexão com o sagrado, com o transcendental, o que, atualmente, não se costuma

encontrar no mundo moderno, em muitos aspectos, dessacralizado. Mircea Eliade reflete

sobre essa questão: “[...] a dessacralização caracteriza a experiência total do homem não-

religioso das sociedades modernas, o qual, por essa razão, sente uma dificuldade cada vez

maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas”

(ELIADE, 1992: 19). Isso, talvez, explique a dificuldade encontrada pelo homem do século

XXI em compreender os sistemas religiosos dos povos ancestrais da África que priorizavam

uma lógica diferente, um outro tipo de razão perpassada pela emoção.

Em Angola, às religiões originárias de matriz banto mesclaram-se as trazidas e

impostas pelos colonizadores, embora, na época das lutas libertárias de base marxista, tenham

ficado um tanto obliteradas. O escritor Boaventura Cardoso declarou isso numa entrevista:

é um aspecto fundamental na vida do africano, particularmente do angolano. Ela nunca deixou de existir. Sempre esteve presente, não obstante, em termos, no caso de Angola ter atravessado um período em que as religiões teriam um papel um tanto secundário por causa do regime partidário em que vivia a população na época. (Entrevista inédita concedida no III Encontro de Africanas na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, novembro de 2007)

A par das proibições de cultos religiosos feitas pelos marxistas mais ortodoxos, as

religiões foram importantes em Angola, principalmente entre os povos tradicionais que

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sempre viveram em universos sacralizados, em íntima ligação com a natureza, espaço, para

eles, sagrado por excelência.

De acordo com Mircea Eliade, “a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que

ele se opõe ao profano” (ELIADE, 1992: 17). O sagrado permite a entrada num universo de

dimensões misteriosas, porque sua manifestação sempre acontecerá “como uma realidade

inteiramente distinta das realidades naturais” (Ibidem, p. 16). E esse espaço caracteriza-se pela

maneira como se apresenta na natureza e no mundo: como algo tremendum9 Há, nos espaços

sagrados, um valor cosmogônico10 de orientação ritual que representa os gestos divinos da

criação.

Em muitas e diferentes culturas do mundo, existem irrupções divinas por meio de

sinais que transformam espaços comuns em locais sagrados, onde se praticam as experiências

religiosas. Mircea Eliade afirma que “todo espaço sagrado implica uma hierofonia, uma

irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o

envolve e o torna qualitativamente diferente” (ELIADE, 1992: 30). O sagrado, contudo, não

pode ser apreendido. Ele é, na verdade, uma “revelação”. Por isso, ele é indizível. As diversas

manifestações do sagrado constituem-se como “hieróglifos” para a percepção humana.

Também, as religiões tradicionais africanas se baseiam em semelhantes concepções de

sagrado. Nelas, a comunicação com o mundo invisível ocorre através de rituais, orações,

sacrifícios, festas e ritos de iniciação. São freqüentes os cultos a divindades e aos

antepassados. Há práticas religiosas com objetos também mágicos que garantem o contato

com os espíritos dos ancestrais. O mundo dos bantos está repleto de símbolos, elementos que

tornam visível a realidade sensível. Os povos de origem banto usam, em seus cultos

religiosos, uma série de simbologias. “Tudo é sinal e patenteia o que há mais além”

9 Do latim, “terrível”, “espantoso”, “extraordinário”. 10 Do grego, “designação das várias teorias que têm por objetivo explicar a formação do mundo”.

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(ALTUNA, 1985: 90). Há a crença de que os espíritos podem voltar para aconselhar,

proteger, vingar-se.

Segundo essa concepção animista de vida, os mundos visível e invisível não são

categorizados de forma dicotômica; são vistos como mundos diferentes, mas paralelos e,

completamente, unidos pela energia vital. Os ritos são importantes para promoverem o

diálogo entre esses dois mundos, mantendo a harmonia entre eles. As religiões se baseiam em

rituais, pois esses fazem circular as forças cósmicas da natureza: “O ritualismo, que engloba

todos os seus atos, elabora-se no mundo visível para ser cumprido no invisível [...] Todo rito

representa a realidade escondida” (ALTUNA, 1992: 64). Óscar Ribas mostra que “o essencial

do culto é o contato com as divindades” (RIBAS, 1989: 24). A vida é misteriosa; há um

sistema invisível de forças e energias, cujas relações secretas aparecem nos ritos. Nesse viés,

“mundo visível e mundo invisível aparecem unidos numa simbiose de vida indestrutível”

(ALTUNA, 1985: 47). Dessa forma, o esforço do homem religioso para manter-se na

atmosfera do sacratu (do latim, “sagrado”) justifica-se pela necessidade de se renovar o

tempo cósmico, no qual os deuses, os antepassados e os vivos são uma coisa só, reatualizando

a harmonia cosmogônica primordial que recria a vida pela circulação das energias vitais

existentes na natureza.

A associação, o entendimento íntimo entre o mundo visível e o invisível assume papel

interativo nas relações comunitárias e espirituais dos povos de origem banto, dependendo

delas a comunhão com o universo, com o cosmos, porque a maior tragédia para o homem

banto é o rompimento desse equilíbrio. A quebra deste provoca desarmonias e conseqüências

trágicas para todas as esferas sociais. Na concepção de vida dos povos bantos, o mundo não

pode estar estático, porque o move, constantemente, a corrente vital, plena de energias da

natureza.

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Os ritos têm função importante para manter os povos e suas culturas em

funcionamento e equilíbrio. Há rituais que dão expressão a determinadas estruturas sociais,

tornando muitas das crenças culturais compartilhadas. É essa integração que faz com que

alguns rituais sejam poderosos, tendo a capacidade de influenciar pessoas e culturas, em

curtos períodos de tempo.

Existem vários tipos de rituais. Os ritos de passagem ou transição, como o próprio

termo indica, são ritos praticados em situações de mudança de idade, de condição social, etc.

Um dos ritos de passagem que todo ser humano, em todas as culturas, experimenta é a morte.

Em sentido antropológico, é explicado como uma “tentativa de controlar as forças

sobrenaturais por meio de fórmulas, amuletos e rituais automáticos”. O animista acredita que

o mundo dos espíritos deseja comunicar-se com os seres humanos e há meios pelos quais os

seres humanos podem conhecer os desejos e pensamentos dos ancestrais. Dentre os meios de

comunicação possíveis entre vivos e mortos estão os sonhos e visões; de acordo com as

crenças animistas, se os sonhos se repetirem constantemente, é sinal da necessidade urgente

de serem oferecidos ritos propiciatórios. É crença corrente, também, que o ato de praticar o

ritual de forma correta, conforme prescrita, garantirá o sucesso na vida; já a quebra de um

ritual poderá trazer desequilíbrio e punição àqueles que infringiram as normas a serem

cumpridas.

Constatamos, pelo exposto, que o culto aos antepassados é uma prática comum aos

bantos. Estudiosos do assunto, entre os quais Altuna, em que nos baseamos para elaborar o

quadro seguinte, dividem, hierarquicamente, a pirâmide vital em torno da qual se estruturam

as sociedades de origem banto:

• Mundo invisível:

- Ser supremo, fonte da vida, fundador do primeiro clã humano

- Divindades

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- Heróis civilizadores que já morreram

- Espíritos-gênios.

- Antepassados qualificados: chefes, caçadores, guerreiros, especialistas da

magia

- Antepassados da Comunidade

• Mundo visível:

- Chefes: de reino, de tribo, clã, família

- Especialistas da magia (sacerdotes, ngangas)

- Anciãos Formas pessoais

- A comunidade

- A pessoa humana: Centro da pirâmide

- Animais

- Vegetais

- Mundo inorgânico Formas impessoais

- Fenômenos naturais

- Astros

Segundo essa representação hierárquica, o mundo invisível ocupa lugar principal na

sociedade banto; o animista crê no mundo invisível que está povoado de espíritos e

antepassados. Nele, observamos que os seres espirituais são categorizados de forma mais

complexa. No mundo invisível, estão Deus e os antepassados. Os espíritos, em geral, estão

localizados em lugares ou objetos materiais: rios, montes, cavernas, bosques, árvores,

amuletos. Nessa perspectiva, “quanto mais próximo se encontrar o homem dos seus

antepassados ou seres superiores, tanto mais gozará da plenitude vital, porque os antepassados

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prolongam-se nos seus descendentes” (ALTUNA, 1985: 59) e a comunhão com eles é

primordial.

Há inúmeros ritos entre os povos bantos. O culto aos antepassados, por exemplo, é

praticado através de ritos fúnebres que consolidam a crença na sobrevivência do homem, no

além-túmulo.

Os vivos reforçam os defuntos e estes influem sobre aqueles. O culto aos antepassados explica-se pela inter-ação ambivalente, benéfica ou maléfica. Os vivos temem o seu mau humor e propiciam o seu favor; os defuntos, sem a continuidade do culto, da lembrança e da vida dos seus descendentes, desaparecem (Ibidem, 62).

As comunidades oferecem aos antepassados a primícia; é muito comum encontrar

oferendas em árvores, sacrifícios de animais, pois tais ritos propiciam um ponto de contato

com os espíritos, representando a “expressão cultural da união vital dos dois mundos”

(Ibidem, 502). Podemos concluir, portanto, que, nessas culturas, há a crença de que “o culto

aos antepassados faz ponto de convergência entre a vida social e a religião tradicional”

(Ibidem, 468).

Com a colonização, em muitas regiões angolanas, o culto aos antepassados se

disseminou também entre os assimilados que professavam a religião católica imposta pelos

colonizadores. Atualmente, diversas heranças culturais recebidas por Angola fazem com que

seja um país multifacetado, no qual convivem diversas religiosidades e divindades. O próprio

escritor Boaventura Cardoso confirma isso:

O angolano é crente, profundamente crente; de uma forma geral, há uma crença em Deus, mas, também, em outros deuses. É uma prática, portanto, recorrente, porque, sem deixar de ser católico, professa outras religiões e porque, na estrutura, Deus está no topo, mas o diálogo com Deus está lá em cima, muito longe, tendo, por isso, que ser feito por

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intermédio de outros deuses de menor hierarquia. Porque as pessoas têm pressa na solução de seus problemas. Talvez, Deus leve muito tempo para ajudá-las [...]. (Entrevista inédita concedida no III Encontro de Literaturas Africanas na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, novembro de 2007).

Observamos, assim, que as divisões hierárquicas espirituais são bem delineadas,

segundo a concepção animista dos povos bantos, embora, num primeiro momento,

demonstrem o contrário. É que o sistema de vida dos bantos é bastante complexo e

diversificado, não podendo, por isso, ser pré-julgado e avaliado de acordo com dogmas do

Ocidente, que, sob a égide do progresso e da razão, sempre se apresentou como detentor de

saberes absolutos. Outra questão depreendida da citação anterior é a da presença do

hibridismo cultural que atravessa a cultura angolana: “Mesmo nas lutas pela independência,

quando eram proclamados os valores da terra angolana, estes já se encontravam contaminados

por heranças coloniais deixadas pelos portugueses” (SANTOS, 2007: 71).

Hoje, em Angola, outras religiões surgem, paralelamente, às religiões tradicionais e,

por vezes, se mesclando a estas: “[...] as pessoas recorrem a igrejas que prometem mundos e

fundos, prometem resolver casos complicados, prometem salvar vidas. Há igrejas messiânicas

e proféticas no geral” (Entrevista inédita concedida no III Encontro de Literaturas Africanas

na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, novembro de 2007). Vemos que

há, atualmente, em Angola, uma grande mistura de religiões tradicionais e modernas,

ocidentais e africanas, que afetam as bases das tradições, provocando um abandono de ritos e

cultos de origem banto. Contudo, a par desse processo, persistem em Angola, principalmente

em áreas rurais, certas crenças e cultos que comprovam a existência de um animismo.

Para o homem animista, há uma estreita relação entre mito e rito. Os mitos são

narrativas exemplares que explicam o mundo, a natureza; comunente, “seu conteúdo é arcaico

e refere-se a sacramentos, isto é, a atos que pressupõem uma realidade absoluta, extra-

humana” (ELIADE, 1969: 42). Os mitos, geralmente, se encontram ligados a símbolos, cultos

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e religiosidades, fazendo parte do imaginário cultural de cada povo. Na obra de Boaventura

Cardoso, mitos, ritos e cultos aparecem ficcionalizados, revelando o hibridismo religioso

existente em determinadas regiões angolanas.

No item 3.2 desta dissertação, analisaremos algumas dessas representações míticas e

religiosas que se apresentam reinventadas em A morte do velho Kipacaça. Antes, porém,

desejamos mostrar que, mesmo hoje, em Angola, há crenças animistas que cultuam os

espíritos. Para reafirmar isso, nos valemos de um trecho de uma entrevista concedida a nós

por Boaventura Cardoso, quando esteve no Brasil, em 2007:

[...] agora vem o momento da reconstrução, da pacificação dos espíritos, naturalmente, de uma esperança cada vez mais renovada, a harmonia com o cosmos, enfim, a pacificação dos espíritos; acho que, agora sim estamos nessa senha. (CARDOSO, Boaventura. Entrevista a nós concedida durante o III Encontro de Lit. Africanas na UFRJ, novembro de 2007).

As palavras de Boaventura nos levam a refletir sobre o contexto de paz recente em

Angola. Segundo a visão do escritor, o término da guerra gerou a pacificação dos espíritos.

Há somente duas formas, segundo ele, de manter essa harmonia: evitar novos conflitos

étnicos, políticos, sociais, e, principalmente, proceder à observância das tradições, o que

inclui o culto aos antepassados, entre outros. Tal atitude representa uma retomada das

tradições religiosas e culturais, sendo uma forma de resistência às fraturas geradas por anos de

imposição de costumes e crenças alheios ao universo dos povos de origem banto, originários

do continente africano.

Essa constatação nos conduz, outra vez, às palavras de Altuna: “O homem sempre

necessitou de meios sensíveis para entrar em comunhão com o mundo invisível: linguagem,

mito, religião” (ALTUNA, 1985: 87). No entanto, com a imposição católica e, depois, com o

marxismo que era ateu, a consciência de uma vida invisível, ligada direta e dinamicamente a

um mundo visível, foi questionada e foi considerada incompleta e inferior às crenças

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animistas praticadas pelos povos africanos. Tanto o colonialismo, como o marxismo

propiciaram que muitas das religiosidades de Angola ficassem silenciadas por anos. Coube à

literatura mostrar que, todavia, muitas crenças tradicionais sobreviveram, principalmente, nas

práticas do dia-a-dia das comunidades angolanas rurais. Embora os portugueses tenham

tentado “inferiorizar as religiosidades de Angola” (SANTOS, 2007: 54), as concepções

animistas de vida nunca se extinguiram de todo.

Sabemos, hoje, que não há mais como recuperar totalmente, em Angola, as

religiosidades ancestrais em seu estado genuíno. Temos consciência de que aquilo que lemos

sobre os bantos na obra de Altuna já se encontra permeado por sua visão de padre europeu.

Portanto, temos clareza quanto à mistura de práticas religiosas existentes, atualmente, em

Angola. O que nos importa, entretanto, é investigar de que forma a literatura se coloca como

instrumento crítico de resistência, reinventando cultos, religiosidades, crenças, mitos,

costumes e ritos tradicionais, de modo a afirmar traços identitários culturais que estavam em

risco de desaparecer. É isso que pretendemos evidenciar a seguir, analisando, literariamente,

A morte do velho Kipacaça. Em última instância, desejamos responder á seguinte questão:

qual a importância do animismo e da oratura angolana, ambos recriados, na narrativa do velho

Kipacaça, de Boaventura Cardoso?

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3.2 TRADIÇÕES REINVENTADAS: a criança, a árvore e o ancião

Neste capítulo, abordaremos o texto literário, propriamente dito, interpretando

metáforas referentes a elementos simbólicos das tradições banto-angolanas que exercem, nos

contos de Boaventura Cardoso, papel importante por descortinarem uma visão de mundo

bastante peculiar. Duas características se manifestam pelo modo de os narradores perceberem

a vida e emocionarem a alma humana: a sensibilidade diante dos fenômenos naturais e a

presença recorrente de traços orais reinventados nas estórias contadas.

Dessa maneira, o livro A morte do velho Kipacaça (1987) faz uma travessia que vai do

nascimento (primeira narrativa) à morte (última narrativa), juntando as duas pontas da

existência na concepção dos povos bantos: a criança e o velho, a vida e a morte. Entre estas,

encontra-se uma árvore frondosa e misteriosa, que se revelará também como importante

elemento da tradição, no decorrer das estórias.

3.2.1. A criança

Começar este subcapítulo com um movimento de regresso às origens ancestrais,

ativando a memória coletiva, um tanto esgarçada pelas guerras, pelos mega-evangelhos das

religiões eletrônicas, hoje, em quantidade, em Angola, e pelos ditames da era capitalista,

acentua a importância do projeto literário concebido por Boaventura Cardoso: reinventar ou

recriar as tradições, pois, como afirma Laura Padilha, é

(...) claro que nenhuma tradição é cristalizada. Toda tradição é transformada, já que ninguém pode simplesmente voltar ao passado. Não se trata disso. A tradição é mutante, migrante e, por isso mesmo, ela caminha, ganhando outra face, outras formas de expressão. Sendo o mesmo, a tradição já é

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irredutivelmente um outro, porque o que se conta já é parte de um presente que ela ajudou a construir. É traço mais que engessamento. (...) Inventada ou reinventada, porque há transformação. Há uma base, que eu chamaria de epistêmica do conhecimento, que não muda muito. Literatura não é “o quê”, é o “como”. Este “como” se transforma. Literatura não é o que eu conto, o que digo, o que redigo pela escrita. A beleza do texto reside justamente nesse “como” pelo qual se produz como materialidade. Não se pode, por isso mesmo, tirar uma palavra do texto; se tirar, o edifício cai. (Revista Crioula – nº 2 – novembro de 2007, Entrevista).

E esse “como” vem, justamente, a nortear nosso estudo, procurando interpretar na

literatura do autor, não somente seu “olhar” para as tradições, mas também a maneira “como”

estas se materializam, ficcionalizadas, nas linhas e entrelinhas, principalmente, das narrativas

deste terceiro livro do escritor Boaventura Cardoso. Importa ainda dizer que, conforme Jane

Tutikian, a tradição não é algo estanque, estático; ao contrário, “interage com a multiplicidade

dos significados culturais presentes na sociedade contemporânea e com suas contradições”

(TUTIKIAN, J. In: CHAVES, R. [Orgs.], 2005: 176).

Águas a marulhar. Uma mãe, um bebê, uma montanha e um narrador. Símbolos e

metáforas. Perguntas, dúvidas e reflexões múltiplas. É assim que se abre o terceiro livro A

morte do velho Kipacaça (1987), de Boaventura Cardoso.

O trecho que vai do início até o oitavo parágrafo pode funcionar como a primeira parte

da narrativa; nesta há a metáfora de uma mulher grávida transfigurada em uma montanha: “na

atribuição de ação ao bebê Titico, como se já menino andando, entrando dentro do quarto,

dormindo na cama e ainda na teatralização dos gestos fantasiados entre a mãe, o bebê, a

montanha e o narrador” (CARDOSO, B. In: PADILHA e RIBEIRO, 2008: 20). Leiamos o

próprio escritor:

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Tinha só meio tempo: o passo. (...) Titico crescia . No continente. (...) Eu e Titico, nós dois no balanço: ludicamente. Nossa imaginação traquina voando acrobacias (...) Chegamos: eu, Mãe Fina e Titico no crescimento. Correnteza do rio era trovão na força. Ela desatou o pano das costas e a vida desceu. Experimentamos então nossas vontades apesar da correnteza: o banho. (...) Titico crescia. No continente. Tinha uma vez Titico deitado na cama viu a porta do quarto a se abrir sozinha e a montanha a entrar: sorrateira. À medida que ela entrava se tornava zé pequena. Trazia zé no rosto sorriso franco a puxar confiança. Titico se levantou Zé e estendeu a mão para lhe agarrar – uma vontade. (...) Depois de algum tempo a montanha aumentou de volume, ficou grande e se abriu. Titico entrou nela dentro Se estrebuchou, esfregou os olhos e acordou – o sonho. Mergulhamos zé no rio fundo. (...) daí a pouco Titico a sair de dentro dela e a lhe subir nas costas e ela a se mexer, a se mexer. (...) Montanha parou de se mexer e ficou assim: serena e triste. (...) Mãe Fina de vez em quando ia parando e alisava o continente. (CARDOSO, 1987: 17, 18).

Observamos que, pouco a pouco, é construída a imagem de uma criança ainda no

ventre materno, imersa, pois, no líquido amniótico da bolsa uterina, o que fica ainda mais

notório nas últimas linhas citadas, quando “Mãe Fina alisava o continente” (Ibidem, 18),

estabelecendo uma associação com a imagem de uma mãe acariciando o bebê na barriga.

Essa linguagem, repleta de afetividade, ganha contornos ainda maiores pelo

desvelamento sutil em torno da concepção da vida, mostrando uma cosmovisão sensível,

singular e diferenciada, como percebemos em: “(...) e a vida desceu (...) o banho (...) esfregou

os olhos e acordou – o sonho (...)” (Ibidem, 18). O simples, então, gera uma profunda

contemplação, um deslumbramento diante do indizível.

Segundo Américo Oliveira e vários africanistas, o termo “criança” “designará todo ser

humano, sobre-humano ou infra-humano, cuja amplitude semântica compreenda uma única

ou várias das seguintes características: nascituro, recém-nascido, ser em crescimento

biológico ou social; não iniciado em grupos que pratiquem o rito de puberdade” (OLIVEIRA,

2000: 44).

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É fato que a figura da criança, ativa na primeira narrativa, sempre teve papel

primordial na cultura dos povos bantos. Conforme Raul Altuna, a renúncia à procriação é

considerada uma traição, interrompendo a árvore genealógica, pondo fim, portanto, ao ciclo

vital, ao eterno retorno (ALTUNA, 1985: 201), fundamental à preservação da vida. Vale

ressaltar que, os povos bantos de Angola, para a família ocupa lugar predominante nas

estruturas sociais e espirituais, visto que, por meio dela, o homem e a mulher garantem o ciclo

vital da existência ao gerarem filhos. A figura da criança, por conseguinte, é portadora de

mensagens inovadoras para a família e para a comunidade.

Assim, a presença da criança não se dá simples e ingenuamente – considerando-se já

aqui sua importância na sociedade banto-angolana, uma vez que é, conforme já dissemos,

uma das pontas da existência humana –, antes se apresenta envolta em símbolos que nos

revelam algumas imagens metafóricas representativas do pensamento africano. A primeira

delas, a água, desenha uma sequência de percepções diversificadas: o bebê mergulhado no

líquido amniótico; o “rio fundo” (CARDOSO, 1987: 17); ambas sentidas no plano emotivo,

da sensibilidade, confrontando-se com o plano intelectual. Ora, como podemos ver a fundura

do rio? Só podemos senti-la. O mesmo afirmamos em relação à experiência vivida por seres

humanos protegidos pela bolsa d’água: o milagre da vida. Somente pela razão, este milagre é

entendido. Mas, inexplicavelmente, sabemos que, um dia, o experimentaremos.

Dentro dessa perspectiva, cabe levantarmos possíveis significações da água, um dos

quatro elementos primordiais, intimamente relacionado às manifestações da força vital:

suas significações simbólicas podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias – e as mais coerentes também. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se, de novo, num imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova: fase passageira de regressão e desintegração,

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condicionando uma fase progressiva de reintegração e regenerescência. (...) Mas o símbolo da água, força vital fecundante, vai mais longe ainda...porque a água – ou sêmen divino – é também a luz, a palavra, o verbo gerador, cujo principal avatar mítico é a espiral de cobre vermelho (CHEVALIER, 1999: 15 - 21).

A citação acima mostra que a água é, de fato, um dos eixos fecundos da vida e é com

esta significação que aparece nos contos de Boaventura, uma vez que sua área semântica se

espraia pela narrativa, fazendo brotar significações diversas, entre elas, o retorno às tradições

ancestrais. O estar no útero materno representa a imersão nas matrizes identitárias. Não sem

propósito a figura da criança metaforiza esse (re)-nascimento. Ora, não é na água que o bebê é

formado, alimentado e gerado? A água é, por isso, um dos elementos fundamentais e

representa a fertilidade, no ciclo do eterno retorno: “a unidade do animismo negro-africano

assenta-se no culto da vida, da força, da fecundidade” (ALTUNA, 1985: 369).

À área de sentido da “água”, também, pertencem o mar, o banho, a chuva, o rio, a

fonte, as nuvens, a sede, e os verbos “mergulhar”, “borbulhar”, “flutuar”, “dormir”, “sonhar”.

Titico mergulha ludicamente, emergindo, depois, em questões inquietantes, metaforizando a

criança no ventre da mãe. É a corrente vital em sua totalidade, dando continuidade à vida. A

água tem a ver também com a saliva, a palavra úmida, a oralidade.

Ainda, a “água”, feminina, purificadora, vitalizadora, bendita, curadora e fecunda, faz

germinar novas percepções; ela é gnoseológica também, porque busca o sentido da vida,

penetrando em mistérios que cercam o homem e proporcionando um mergulho de

conhecimento na visão banto de mundo, por meio da gestação do embrião no útero de sua

progenitora.

“A renovação do tempo implica um novo nascimento” (...) “A estrutura cíclica do

tempo se renova sempre que há um novo nascimento (...) Este eterno retorno revela uma

ontologia que escapa ao tempo e ao devir” (Ibidem, 69 e 103).

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A montanha, transfiguração metafórica da mulher grávida, aparece também como uma

hierofania, compondo uma rede de símbolos, mitos e religiosidades. Chevalier afirma que o

(...) simbolismo da montanha é múltiplo: está ligado ao simbolismo da altura e ao simbolismo do centro. Na medida em que é alta, vertical, elevada, próxima do céu, a montanha participa do simbolismo da transcendência. Na medida em que é o centro de hierofanias atmosféricas e de numerosas teofanias, participa do simbolismo da manifestação. Funciona, assim, como o encontro do céu e da terra, morada dos deuses e termo da ascensão humana. (CHEVALIER, 1999: 576 - 577).

Sendo mediadora entre os homens e o Ser Supremo, a montanha, quanto mais alta,

mais no centro e mais perto do sagrado se encontra. Mircea Eliade defende que o centro é a

zona do sagrado por excelência e diz: “nada pode durar se não for ‘animado’, dotado de uma

‘alma’, através de um sacrifício; o protótipo do rito de construção é o sacrifício efetuado na

altura da criação do mundo” (ELIADE, 1992: 35). Afirma ainda que “a experiência religiosa

envolvida no simbolismo do Centro parece ser a seguinte: o homem deseja um espaço aberto

para o alto de comunicação com o mundo divino” (Ibidem, 81);

Junto à imagem da criança, por ser esta revestida de pureza e da função de dar

continuidade à família e à comunidade, figuram elementos mitológicos do imaginário coletivo

ancestral: “os mitos, nas sociedades primitivas, têm funções pragmáticas: manter as tradições

e a continuidade da cultura” (TUTIKIAN, in: CHAVES (Orgs.), 2005: 176).

Faz-se mister definirmos o conceito de “mito”:

narrativa ‘fabulosa’11transmitida pela tradição, que, sob a forma de alegoria, simboliza um fato natural, histórico ou filosófico; expressão de uma idéia, doutrina ou teoria

11 O vocábulo encontra-se entre aspas pelo fato de a designação referida ir de encontro à concepção animista de vida africana, para quem não há aparições sobrenaturais, uma vez que mundos visível e invisível encontram-se num mesmo plano e sempre em diálogo.

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filosófica sob forma imaginativa onde a fantasia sugere e simboliza a verdade que se pretende transmitir (Disponível em: www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx).

Os símbolos aparecem, então, para expressarem as experiências, darem sentido à vida

e explicarem muitos fenômenos. “A força da palavra e da imagem geram o simbolismo

banto” (ALTUNA, 1985: 90). Os mitos têm origem simbólica. O pensamento mítico nasce de

um modo muito peculiar de interpretar o mundo.

“O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve

lugar no começo do tempo” (ELIADE, 1985: 84). É a sombra do que aconteceu e

tipologia/protótipo do que se espera que aconteça, pois o homem não tem condições humanas

de receber a revelação dos mistérios cosmogônicos tal como estes são. Urge ressaltar que a

função mais importante do mito é: “fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas

as atividades humanas significativas” (Ibidem, 87).

Retomando a análise do conto de Boaventura Cardoso, observamos que a segunda

parte da narrativa, que se inicia com a frase “Titico crescia. No continente. Derepente Mãe

Fina (...)” (CARDOSO, 1987: 18), acentua o papel fundamental da magia na cosmovisão

africana, porque as possessões, as metamorfoses, as aparições que se sucedem estão

perfeitamente integradas à tradição banto. Estas aparecem, na narrativa, como experiências da

personagem Mãe Fina com o sagrado, o que gera uma espécie de epifania, ou seja, revelação,

iluminação, provocada por um episódio particular de caráter paradoxalmente trivial, como se

observa em:

Disfarçada no meio do capim ainda Mãe Fina rodeada de homens mascarados tocando batuques, fazendo algazarra. (...) Mãe Fina começou então a dançar no ritmo dos batuques. (...) Acabou a dança. Tudo tinha desaparecido: misteriosamente. (...) Vinha transfigurada, envelhecida (CARDOSO, 1987: 19 – 21).

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Mãe Fina, possuída, dançava em comunhão com o plano espiritual. O ritual da dança é

bem africano e evidencia a importância de alguns elementos, como a máscara, objeto com

forte carga mágica, que é usada em diferentes rituais: nos ritos de iniciação, nos óbitos e em

outros. As máscaras exercem importante função no contexto religioso, sendo essenciais para a

manutenção dos laços simbólicos entre a comunidade e os antepassados. Produzem elementos

epifânicos, os quais estão presentes: na transfiguração da visão – “vinha transfigurada”

(CARDOSO, 1987: 20) –; na contemplação do silêncio sagrado – “caminhávamos sem falar”

(Idem Ibidem) –; na revelação da vida – “milagrosamente” (Idem Ibidem).

A sensibilidade para com o mundo invisível, a sensação de plenitude diante da beleza

da vida e as palavras impronunciadas confirmam as manifestações epifânicas e justificam o

descortinar de uma visão pautada pelo espiritual: o contato com o mistério profundo da

existência. É característica marcante da epifania o silêncio sagrado, resultado do contato com

o próprio ser e de revelações profundas sobre a vida.

Esses fatores unidos à figura do bebê Titico, que representa, metonimicamente, a

criança na narrativa, contribuem para a formação de um quadro de subjetivações: as

percepções do mundo espiritual captadas pelo mundo físico; o sentido da vida nos mistérios

humanos; uma espécie de flashes das fases da vida numa regressão ao útero materno; as

palavras não ditas, mas sentidas no âmago do ser, enfim, um processo de revelação do ser, de

imersão ao conhecimento que desperta no leitor a capacidade de refletir acerca da

impenetrabilidade da vida.

Titico, pois, é o eixo metanímico que nos conduz às profundezas gnesealógicas do

homem pelo caminho de retorno ao passado ancestral, corroborando um aspecto importante

das culturas de origem banto: a valorização da vida humana em sua plenitude e em seu

diálogo com os mortos e antepassados.

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3.2.2. A árvore

Em “A árvore que tinha batucada”, o que se vê é uma narrativa ainda mais assentada

“na atmosfera da visão africana do mundo sob a óptica do animismo, da possessão de forças

sobrenaturais encarnadas por pessoas e seres do mundo animal, vegetal, mineral, dos astros,

dos fenômenos meteorológicos, etc” (CARDOSO, B. In: PADILHA e RIBEIRO, 2008: 20).

Assim, ao perscrutar seus possíveis significados para a cultura banto-angolana,

constatamos que a árvore está ligada a sentimentos religiosos e seu interior abriga espíritos –

“nas raízes, estão os espíritos inferiores, no tronco, os mortais, na copa, os superiores em

perfeita comunhão com o cosmos (TUTIKIAN, In: CHAVES, R. [Orgs.], 2005: 176) –,

servindo como local de adoração ancestral, conforme se lê em: “E o grito vinha do fundo das

raízes e subia pelo tronco e se espalhava pelos braços da árvore” (CARDOSO, 1987: 32). São

veneradas; perante elas são feitas práticas ritualísticas. Ora, a árvore tem significado especial

na cultura africana. Como um pilar sagrado, ela representa a existência simbólica e o contato

com os espíritos que abrem caminho para o entendimento do mundo natural e sobrenatural.

Por isso, celebram a árvore com oferendas e invocações; fazem pedidos a ela: “E tinha então

caminhantes que vinham lhe fazer pedidos para resolver casos” (Idem Ibidem, 24).

Mircea Eliade agrega algumas informações no âmbito desta pesquisa; para ele, as

manifestações sagradas, que se podem dar numa “pedra, árvore ou outros locais, revelam algo

que já não é mais a pedra nem a árvore em si, mas o mistério do próprio sagrado, que, às

vezes, descortina idiossincrasias de uma determinada sociedade” (ELIADE, 1992:18) e, aqui,

em particular, desvela aspectos míticos, culturais, religiosos da mentalidade angolana.

Se pensarmos que Angola viveu, durante muito tempo, sob um regime totalitário e

cruel, sendo censurada em muitos setores de sua vida social, cultural, religiosa, a legitimidade

da escrita de Boaventura Cardoso torna-se mais evidente para nós. Incorporar ficcionalmente

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o sagrado em sua escrita é um trabalho de (re) construção cultural que recupera

metaforicamente religiosidades, que foram proibidas durante o colonialismo: “os contos

representam ficcionalmente diversas crenças angolanas do interior, revelando a magia das

religiosidades locais que sobreviveram à imposição do catolicismo e mantiveram seus ritos e

cultos referentes à afirmação do poder cósmico da natureza e à interferência dos

antepassados” (SECCO, In: CHAVES, R. [Orgs.], 2005: 110).

Boaventura Cardoso traz para o centro da segunda narrativa a figura da árvore –

aquela que conversa, que abriga espíritos, que cuida do homem angolano, mas que, também,

amaldiçoa, pune, fere. É a árvore contrariada, envolta em um “sobrenatural” assustador, que

nos chama a atenção para vários aspectos da perspectiva africana de vida e para críticas feitas

pelo escritor tanto às intervenções maléficas do colonizador, quanto ao posicionamento do

homem angolano de origem banto-africana.

Este é o momento ideal para fazermos alusão à entrada de um elemento novo, que cria

uma tensão na narrativa: a presença do branco e as relações estabelecidas com o autóctone e

com o mágico. Disposta “a varrer a árvore para acabar com quanto a si a suposta lenda

atribuía, a autoridade colonial manda derrubá-la, mas os seus kapangas não conseguem”.

Apenas o Velho “tinha poderes sobrenaturais para o derrube – advertiram os populares

circunstantes –, mas o desfecho causou grandes suspresas, como revela a história, na breve

transcrição do seu deselance” (CARDOSO, B. In: PADILHA e RIBEIRO, 2008: 19):

O Velho se ajoelhou diante da árvore e ficou assim algum tempo. E gente atenta. E depois subiu em cima da árvore e toda gente começou a ouvir então gente conversando em cima da árvore: lá. E tempo depois, da árvore começaram então a cair trapos, pernas de galinha, ossos. E caíram então as cabaças, muitas cabaças. Ninguém se atreveu falar. Não dava mesmo para falar. Eh! Eh! Eh! O Velho desceu e ordenou então que os homens que começassem então a cortar a árvore. E os homens começaram pum! Pum! Pum! E a cada machadada a árvore gritava ai! ai! ai! E o grito vinha do fundo das raízes e subia pelo tronco e se espalhava pelos braços da

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árvore. E a gente viu: o sangue. A árvore jorrava então sangue ai! ai! ai! Seis da tarde a árvore batucante estava ainda de pé. E o Velho estava então transpirar no olhar furioso do Sô Administrador. Cinquenta e Um desconteve: a represa. Desembrulhou então a língua, enfureceu o cavalo marinho, atiçou a besta e o rio arrastou pedras, cada pedra, pedradas, pedregulhos e rebentou então: o dique. O Velho foi nas águas. (CARDOSO, 1987: 31 e 32).

A manifestação sobrenatural, mágica, retratada na possessão da árvore pelo poder dos

antepassados, revela as queixas e intenções destes, evidenciando, também, ausência de

comunhão com os vivos. A alegoria do sangue nesta árvore, que torna mais acentuado o

clímax da narrativa, metaforiza a violência, as mortes e torturas impostas pelo poder colonial.

Mais uma vez, as imagens criadas nestas estórias, como a dos feitiços que caem da

árvore, das gargalhadas vindas dela, obrigam o leitor a ativar a memória coletiva,

desenvolvendo, assim, o pensamento crítico e, consequentemente, levando-o a explorar as

mensagens contidas nesses elementos sobrenaturais. O fato de a árvore expurgar os feitiços

depositados nela demonstra o quanto a realidade física da vida banto-angolana foi e é afetada

pela presença desarmônica do homem branco, causando profundo e inevitável desequilíbrio

com o cosmos. O próprio vocábulo “expurgar”, do latim expurggare, significa “limpar de

impurezas, purificar”.

Depreendemos disso que a expulsão desses objetos mágicos, usados como oferendas, e

as gargalhadas aterrorizantes saídas de dentro da árvore, metaforicamente, maximizam as

conseqüências negativas deixadas pela intervenção do sistema colonial na sociedade

angolana.

Raul Altuna afirma que somente algumas pessoas possuem poderes para lidar com

situações como esta: o feiticeiro, o chefe, o curandeiro, o adivinho, enfim, pessoas que se

destacam por alguma especialidade, que têm uma força especial (ALTUNA, 1985: 52), sob o

risco de romper a harmonia cósmica. É bom enfatizar que, nas sociedades dos bantos, os

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espíritos ou os antepassados interferem, diretamente, na vida comunitária, exercendo, por tal

motivo, uma influência profunda sobre o comportamento dos vivos.

Entretanto, na estória, acontece o inesperado: o Velho, representante das crenças

locais, não é capaz de interferir, de forma enérgica, na realidade circunscrita, o que pode ser

um alerta crítico para a sociedade angolana, a fim de levá-la a um questionamento essencial:

até que ponto os hibridismos culturais não descaracterizaram parte da identidade cultural e

religiosa dos povos bantos?

Lourenço do Rosário afirma que “as narrativas orais são o reservatório dos valores

culturais de uma comunidade com raízes e personalidades regionais, muitas vezes perdidas no

amálgama da modernidade” (ROSÁRIO, 1989: 47). O sobrenatural, segundo ele próprio,

surge, nessas narrativas, para revelar o permitido e o não permitido em uma sociedade. Assim,

a alegoria do sangue jorrando da árvore aponta para a violência impetrada aos angolanos

pelos colonizadores.

Também um outro elemento das cosmogonias tradicionais africanas é encontrado

neste conto: a terra. Esta assume importante simbologia na história. Segundo o Dicionário de

símbolos, “algumas tribos africanas têm o hábito de comer a terra: símbolo da identificação. O

sacrificador prova a terra; dela, a mulher grávida come. O fogo nasce da terra comida”

(CHEVALIER, 1999: 440 - 442). “O direito banto está ligado a dois expoentes básicos: a

terra e o sangue. A terra é o lugar de descanso dos antepassados, fonte de vida. O sangue, o

símbolo da vida” (ALTUNA, 1985: 222). A terra é um lugar onde a semente brota – figura

muito significativa na visão banto. A atitude do velho feiticeiro, filho dessa mesma terra, foi

de grande expectativa. Os cipaios açoitaram a árvore, fizeram-na sangrar, inquietando os

espíritos que sobre ela estavam. O feiticeiro tentou dominar a árvore batucante, mas esta

resistiu.

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A árvore é, pois, alegoria da resistência das religiosidades locais que sobreviveram às

imposições coloniais. O sangue que jorrou da árvore alegoriza a vida e a ancestralidade que se

preservam nos mitos e estórias das tradições orais angolanas.

3.2.3. O Ancião

Em “A morte do velho Kipacaça”, narrativa nuclear que dá título ao livro, a tradição é

recomposta naquilo que ela tem de mais autêntico e puro, conforme Jane Tutikian

(TUTIKIAN. In: CHAVES (Orgs.), 2005: 176). Os velhos, com seus conselhos, são os

responsáveis pela sua manutenção e transmissão para as outras gerações. São os detentores da

sabedoria popular, sendo, pela força do papel que exercem no grupo, personagens principais

desta narrativa.

Subjacentes a essa idéia das tradições recontadas, presentificam-se, na história, o

“velho, a roda e a fogueira (...), elementos componentes da cena resgatada pela história e que

mostra” (PADILHA, 1995: 95) significados sugeridos pelos “símbolos que sob eles se

escondem: sabedoria (velho), comunhão-interpessoal (roda) e a própria vida (fogo)” (Ibidem,

96).

A partir daí, mergulhamos, mais profundamente, na análise do conto, cujo início já é

marcado por um ar tenso, inquietante e enigmático: a falta de chuva, drama que envolve toda

a história. A estiagem e vários outros fenômenos são, geralmente, explicados pela experiência

dos ancestrais. Na narrativa de Boaventura Cardoso, a intervenção de elementos do

“sobrenatural” é o elemento desencadeador do enredo:

Respeitosamente. Na chegada dele todos se levantam e guardam: silêncio. Eh. Toma assento no lugar dele habitual e

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os olhares se concentram ngó nele. Se acomodam todos e esperam ngó. Atentos. Eh! Motivo do encontro tem batucada muximante: quem faz a chuva não ter chuva? Seca no lugar da chuva? Eh! Eh! Eh! Cuidado zé! (...) Nossos dias tem coisas estranhas que estão acontecer na nossa povoação. Eh. Onde é que já se viu, enh, desde Setembro, enh, que não tem chuva? (...) Temos que descobrir quem fez isso! (CARDOSO, 1987: 35).

3.2.3.1. O velho

As estruturas sociais e políticas da África ancestral eram bastante complexas. O mais

velho acabava sendo o chefe, junto a outros anciãos, os conselheiros. Nas tradições angolanas,

os mais velhos também tinham prestígio: “(...) com vossa licença eu queria dizer umas

palavras, Man Bernardo. Eh. Eh. Velho Bernardo Nikila meneia a cabeça afirmativamente,

enquanto começa a cachimbar” (CARDOSO, 1987: 36). Os anciãos tinham responsabilidade

na resolução de diversos fenômenos, uma vez que eram os mantenedores do contato com os

mortos: “Consultaram ainda velhos sabedores de coisas de outro mundo, de falas noturnas

com seres invisíveis, de passeatas da meia-noite nos cemitérios” (Ibidem, 51). “Somente os

mortos [podiam] responder às incertezas que se abatem sobre os vivos” (NAZARETH, In:

CHAVES, R. [Orgs.], 2005: 96). A narrativa de Boaventura Cardoso ficcionaliza, desse

modo, aspectos importantes das religiosidades locais de Angola.

Raul Altuna afirma que “os antepassados exigem a sabedoria dos anciãos e a

observância da tradição” (ALTUNA,1985: 222). Podemos, nessa ótica, dizer que os mais

velhos reunidos, tentando decifrar o mistério da ausência de chuva e do desaparecimento de

Kipacaça, são os que dominam as práticas animistas que se manifestam por acontecimentos

inesperados, na narrativa. Primeiro, os sinais emitidos pelo mundo invisível: “Eu tive ngó um

sonho (...) e no sonho sonhei uma pacaça (...) Nós não queremos saber de sonhos para nada”

(CARDOSO, 1987: 36). Pois, “através do sonho, por exemplo, as almas dos antepassados

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protetores comparecem a avisar os sobreviventes sobre perigos à vista ou reclamar culto. (...)

mas as almas dos antepassados conversam em sonho com os seus protegidos através não de

uma linguagem direta, referencial, mas de uma fala simbólica” (CARDOSO, B. In:

PADILHA e RIBEIRO, 2008: 20).

Depois, o surgimento da pacaça na história traz algumas simbologias de caráter

premonitório. Na cultura cokwe de Angola, os antílopes são emissários dos mortos. Outro

sinal se dá com o desaparecimento do velho Kipacaça: “quando um caçador vai na caça e o

caçador não volta...unh! é sempre uma desgraça” (CARDOSO, 1987: 37). Tal comentário

corrobora e intensifica a iminência da morte do velho Kipacaça que é o ápice da narrativa. A

volta do velho, após sua morte, revela sua força cósmica, “demonstrando o poder de

resistência das crenças e religiosidades locais” (SECCO, In: CHAVES (Orgs.), 2005: 114).

A esposa de Kipacaça, recebe uma revelação onírica: “Eh! Sonhei ngó um sonho, tu

foste na caça e não voltaste” (CARDOSO, 1987: 45). E, para além disso, “durante a noite

ouvira perfeitamente a coruja cantar” (Ibidem, 47). A coruja é tradicionalmente atributo dos

adivinhos. “Ave de Atena, simboliza a sabedoria e a reflexão que dominam as trevas. Para

muitas culturas, é considerada guardiã da morada obscura da terra. Porém, para os africanos, é

elemento de agouro” (CHEVALIER, 1999: 189).

Boaventura Cardoso se apropria de histórias tradicionais de ficção, reinventando uma

rede complexa de ensinamentos, sinais, símbolos, que se mostram reveladores de crenças

populares de Angola. Tais religiosidades se fundamentam na necessidade de manter o

equilíbrio cósmico não apenas com a natureza visível, mas também com o mundo invisível.

Por isso, é intensa a preocupação com a falta de chuva e com o sumiço do velho Kipacaça.

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3.2.3.2. A roda

“Roda se anima. Chegando: vem gente. (...) Esquentando: (...) Frenética e batucante a

música leva homens e mulheres na roda. (...) Tem silêncio, se inicia oração e se lhe seguem

cânticos em série. (...) Lelué lândula ngongo walunduka (...) wajimbilila”12 (CARDOSO,

1987: 56 – 57).

Essa roda simboliza a participação comunitária, a circulação de tradições, estórias,

valores e ensinamentos das culturas angolanas locais. A roda representa a cadeia da tradição:

a transmissão dos acontecimentos e o intercâmbio de experiências por intermédio do narrar,

conforme ensinam as teorias de Walter Benjamin sobre a narratividade oral. O círculo

congrega e se constitui, assim, como meio para a realização de dois procedimentos muito

comuns nessas culturas e que aparecem reinventados nas narrativas do escritor Boaventura

Cardoso: os ritos fúnebres e a prática das adivinhas.

Mais uma vez, recorrendo a Raul Altuna, constatamos que os cenários criados nas

narrativas de Boaventura ganham legitimidade, ao mostrarem algumas peculiaridades

decorrentes dos ritos religiosos, ou seja, dos cultos que apresentam uma natureza ambivalente,

na medida em que se realizam por meio de intensa interação entre dois mundos, interessando

tanto aos vivos, como aos defuntos (CARDOSO, B. In: PADILHA e RIBEIRO, 2008: 21):

Logo que uma pessoa morre, os seus familiares começam a chorar, a gritar e a dançar sem cessar, com um ritmo cadenciado e monótono. Lamentam a sua perda, chamam-no pelo seu nome, agradecem os seus favores, exaltam as suas virtudes, amaldiçoam o causador da morte e desejam a felicidade ao defunto (ALTUNA, 1985: 448).

Tal prática pode ser perfeitamente observada no conto de Boaventura Cardoso: “Velho

Kipacaça, exemplo de caçador corajoso! (...) Atata! Morreu o Velho Kipacaça! (...) Toquem

12 Hoje o seguidor das pegadas na mata morreu, desapareceu.

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batuqueiros (...) Faça descer os jihui do Velho Kipacaça e entrar no espírito do filho dele (...)

a roda. Frenética e batucante: a música outravez. (...) Kututa retoma fio da estória”

(CARDOSO, 1987: 56 – 59). Isso mostra que o óbito se constitui, nas tradições ancestrais,

como um grande ritual, em que cantam, dançam, comem, rezam, jogam.

Conforme já mencionamos, é significativa a retomada de jogos como as adivinhas.

Estas se valem das rodas, pois, em círculo, as perguntas e respostas se alternam mais

facilmente:

- Opelu-pelú, peléé Kate ku maxitu13 - pergunta na estimulação (CARDOSO,

1987: 60).

- Ongo soytéé Kate ku munguila14 – a resposta feita de vozes (Idem, Ibidem).

- Awa yaya, awa yassala, óhy?15 (Idem, Ibidem).

- Omema yaya, y sekele kyssala16 – vibrante, a resposta surge na boca de todos

(Idem, Ibidem).

- Nanhy kamokotyca pu kwako?17 (Ibidem, 61).

- Kala lytúbia18 (Idem, Ibidem).

- Wenda njyla, ólonda óyulu, okutuka mulungu, ly xytu yé ku munjimbo. Ohy?19

(Idem, Ibidem).

- Laháku20 (Idem, Ibidem).

- Yuúá, tupu yú. Ohy?21 (Idem, Ibidem).

- Búndu22 – todos responderam em coro.

13 Abriu-se uma picada desde a savana até ao muxito. O que é? 14 A onça é malhada desde a cabeça até a cauda. 15 Uns vão e outros ficam, o que é? 16 No leito do rio, a água vai e areia fica. 17 Qual é a coisa, qual é ela que não se pode conter num punho fechado? 18 É o carvão em brasa. 19 Anda caminhos, sobre montanhas, desce por vales e desfiladeiros, sempre com um pedaço de carne na boca. O que é? 20 São as sandálias ou os sapatos. 21 Está ali, mas está simultaneamente aqui. O que é? 22 É o nevoeiro.

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Acerca das adivinhas, Honorat Aguessy defende que esses jogos configuram-se em

importantes ensinamentos para a sociedade, pois sua repetição faz com que as práticas

culturais sejam incorporadas no imaginário coletivo. Tal concepção é semelhante à proposta

por Walter Benjamin (BENJAMIN, 1984: 51), quando teoriza sobre a narratividade oral, pois,

por meio desta, se perpetua a memória das tradições.

Os provérbios e as adivinhas recriam a vida e preparam para o enfrentamento de

problemas. Segundo Aguessy,

o que acontece é que, através da observação do jogo, talvez se possa compreender a concepção do mundo em África. É uma atividade que concretiza uma atitude perante o universo, a vida, a sociedade, quer como manifestação direta quer como compensação do comportamento cotidiano (AGUESSY, 1977:117).

A cosmovisão é uma forma de ver as coisas. Não é apenas o que vemos, mas como

vemos e percebemos aquilo que nos cerca. É a lente através da qual enxergamos – uma lente

por onde passam pressuposições, crenças, imagens, metáforas, valores e idéias que herdamos

e construímos, a partir de nossa família, de nossa comunidade e de nossa cultura. Os jogos,

portanto, são uma maneira peculiar de levar a enxergar a vida e a interpretá-la, lendo-a com

mais emoção e sensibilidade, uma vez que exigem reflexão constante sobre o dia-a-dia. As

adivinhas, além de lúdicas, servem à memorização e, por isso, são instrumentos de fixação

dos saberes culturais dos povos ágrafos.

3.2.3.3. O fogo

“O fogo não teme o declive, quando desce é para queimar” (CARDOSO, 2001: 182).

Neste provérbio, o poder alquímico das chamas do fogo, um dos elementos primordiais da

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cosmogonia, pode ser evidenciado em sua simbologia. “Já com a lenda de Fênix, a ave que

ressurgia das cinzas pelos raios solares, que é vista como símbolo da poesia (...) Fênix é

sublimação absoluta da abertura à transcendência” (BACHELARD,1999: p. 59). Portanto, o

fogo remete também à palavra, não à comum, mas à carregada de força poética.

O fogo, na qualidade de elemento que queima e consome, é também metáfora de

purificação e de regenerescência. Reencontra-se, então, neles, o aspecto positivo da

destruição: das cinzas sempre pode renascer algo. Por tal razão, essa duplicidade do fogo se

abre a múltiplos significados, relacionados à visão africana de vida: a tríade alquímica do

poder das chamas – geração, morte, regeneração (renascimento). Essa é uma imagem perfeita

do ciclo vital, do eterno retorno mítico.

Hampâté Bâ diz que “o ferreiro tradicional é depositário do segredo das transmutações

(...). Enquanto trabalha, o ferreiro pronuncia palavras especiais ao tocar cada ferramenta”

(BÂ, 1993: 6), representando, assim, o ato sagrado da criação do mundo.

No que tange à morte, o fogo surge como importante elemento nesse supremo rito de

passagem, visto que suas chamas têm o poder da forja, produzindo a metamorfose de um

estado a outro, o que corrobora a visão de Raul Altuna: “A morte ocasiona uma mudança de

estado porque é uma passagem que modifica a personalidade (...); a morte não se opõe à vida,

mas ‘muda-se de vida’ como conseqüência do otimismo existencial da participação vital”

(ALTUNA, 1985: 439 – 440).

Sobre o poder ressuscitador do fogo, “a grande marca da noite africana são as

fogueiras a brilhar, lembrando a vida da terra e dos homens. As imagens das fogueiras que

iluminam a noite se ligam à idéia de aparição, uma das mais fortes do texto” (PADILHA,

1995: 111). Isso pode ser observado no conto analisado: “Inesperadamente surge fogueira

grande se alastrando. Eh!(...) Nisso no meio da queimada se vê homem em cima de pacaça de

tamanho visto” (CARDOSO, 1987: 62).

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O fogo, cuja área semântica abrange o vermelho, o sangue, a púrpura, a estrela, por

vezes, se identifica com o ar, conforme observou Chevalier: “Ar, um dos quatro elementos,

segundo as cosmogonias tradicionais. É, como o fogo, um elemento ativo, masculino, ao

passo que a terra e a água são considerados elementos passivos. Enquanto estes dois últimos

símbolos são materializantes, o ar é um símbolo de espiritualização” (CHEVALIER, 1999: 15

- 21). Ora, não é o ar elemento de combustão para o fogo? Lembremos, também, que o

Espírito Santo é representado por uma pequena língua de fogo que metaforiza o sopro divino.

Outro ponto contundente e nevrálgico da história do velho Kipacaça é a morte, tal

como é apresentada, ou seja: na mesma perspectiva da vida. Carmen Tindó Secco argumenta

que um dos truques literários empregados pelo escritor são as “manifestações aparentemente

‘mágicas’ e ‘irracionais’ das crenças tradicionais africanas que aparecem ficcionalizadas no

texto. Ela explica que “o termo ‘mágicas’ está entre aspas, porque o que parece ‘mágico’ e

‘fantástico’ – categorias de uma crítica européia ocidental –, faz parte do animismo

característico de uma visão africana de existência” (SECCO. In: CARDOSO, 2001: 26). O

animismo africano faz com que o improvável e o impossível ocorram em situações concretas

do dia-a-dia de comunidades de origem banto-angolana, configurando-se como um tecido

complexo de ensinamentos acerca da compreensão do mundo.

Nesse sentido, deixa claro que, segundo a concepção tradicional africana da existência,

não há fronteiras entre mundo visível e invisível, visto que a morte e a vida circulam e se

relacionam. Os laços de união vital que unem os membros de um grupo não se rompem com a

morte: o morto continua vivendo em sua descendência. Isso pode ser observado no gran

finale do conto, que, conforme diz Laura Padilha, possui uma “exuberante expressividade

dramatizadora” (PADILHA, 1995: 207). A história chega ao clímax, quando o velho

Kipacaça ressurge do fogo, celebra a própria morte e anuncia sua continuidade no filho, o

novo Kipacaça: “Eu estou morto!!! Katumbila é o novo Kipacaça” (CARDOSO, 1987: 63).

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A morte de Kipacaça se constitui, pois, como o clímax da narrativa, sendo o cerne

emblemático da história, do enredo. A presença do velho Kipacaça em seu próprio funeral

fortalece a idéia de que os dois mundos, visível e invisível, estão em permanente ligação,

conforme também analisou Maria Nazareth Fonseca:

transitando em lugares diferentes, o conto propicia um mergulho em tradições que sustentam a vida de diversas comunidades africanas para as quais a relação entre vivos e mortos é intensa e propiciadora do entendimento dos ciclos a serem cumpridos pelo corpo e pelo espírito (NAZARETH, M. In: CHAVES, R. [orgs.], 2005: 97).

Boaventura Cardoso maximiza símbolos, metáforas, códigos, memória,

costumes, valores e ensinamentos do imaginário coletivo/social dos quimbundos de

Angola, (re) inventando, ficcionalmente, práticas das tradições de povos bantos. Sua

criatividade é imensa, pois ela se forja sobre a desses povos, cuja ludicidade se

expressa por jogos, brincadeiras, adivinhas:

Descobrimos nesse nível de expressão do intelecto e nesse modo de manifestação da reflexão que a unidade não nasce da repetição das mesmas imagens e das mesmas palavras para exprimir a mesma idéia, mas consiste num dinâmico esforço de metaforização onde se evidencia a criatividade de cada grupo (AGUESSY, 1977, p. 119).

Apropriando-se das estórias, dos provérbios, dos cultos e crenças dos quimbundos, a

escrita de Boaventura Cardoso reinventa tais manifestações em jogos poéticos de linguagem.

Sendo os textos literários geradores de várias interpretações, são eles que abrem as

cortinas dos diálogos possíveis com os contextos das tradições locais. Boaventura consegue

fazer isso com tal desenvoltura, que o leitor é levado a refletir acerca das concepções de vida

do mundo ancestral africano. É por este motivo que o chamamos de (re) inventor de tradições.

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Como ele próprio disse em uma entrevista, “trata-se aqui da angolanidade iluminada a partir

da questão da interação entre a tradição e a modernidade, muito presente em nossa sociedade.

(...) Eu sinto que a tradição não é imobilismo total. (...) A própria tradição sofre alterações ao

longo dos tempos. (...) A tradição entra no texto enquanto forma e não apenas tema

(CARDOSO, “Entrevista”, In: Chaves, 2005: 31). Concluímos, assim, este capítulo,

percebendo que a escrita de Boaventura Cardoso opera com uma constante tensão entre

tradição e modernidade. E isso se reflete em sua linguagem, que, com mais detalhes,

estudaremos no capítulo a seguir.

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3.3 A PALAVRA FORJADA PELAS CHAMAS DA CRIAÇÃO E A SEDUÇÃO DO NARRAR

A linguagem é como uma pele: com ela eu contacto com os outros. (BENJAMIN, W., 1987: 198)

O labor literário de Boaventura Cardoso em A morte do velho Kipacaça (1987), obra

nuclear em nossa dissertação, é comprovado pela linguagem poética, refinada, de admirável

plasticidade – as metáforas, as assonâncias, as onomatopéias, o ritmo, contribuem para isso –;

o escritor efetua, como evidenciamos no capítulo anterior, significativa recriação de

provérbios e adivinhas, marcas da oralidade reinventada, retualização estética da prática

milenar de narrar. Conforme afirmou Laura Padilha, “o elemento principal que será

mobilizado para se obter esse (...) efeito estético é a tradição oral que não é apenas recuperada

como se dá em obras anteriores, mas é usada como uma fonte de produção de sentidos novos

pelos quais se radicaliza a dimensão artística do objeto” (PADILHA, 2002: 24).

É essa reconstrução da linguagem que, como um tecido humano – tal qual menciona a

epígrafe deste capítulo –, estabelece conosco um contato sinestésico e contagiante,

aumentando nossa sensibilidade para com o texto lido e para com o mundo que nos cerca.

Todavia, essa linguagem de Boaventura não está pronta, acabada, antes, é um processo

contínuo, que se forja nas chamas da criação, sendo moldada por esse escritor que pode ser

visto como um “ferreiro das palavras” (SECCO, 2005: 107).

Faz-se mister, então, ressaltar que, para os africanos, em geral, na África ancestral, a

palavra era “uma força fundamental que emana[va] do Ser Supremo (...). [Era] o próprio

instrumento da criação” (BÂ, 1993: 16), o que justifica o fato de as antigas “culturas africanas

venera[rem] a capacidade humana de falar” (FONSECA, In: CHAVES, R. [Orgs.], 2005: 90).

Neste capítulo, como já referimos, vamos explorar a linguagem de Boaventura, observando

não só como ele recria o modo de contar das tradições, mas também como trabalha,

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esteticamente, o próprio discurso, comprometido com uma escrita, ao mesmo tempo, poética e

preocupada com uma dicção autenticamente angolana.

3.3.1 A linguagem poética: a criação estético-literária de Boaventura Cardoso

O caráter poético da linguagem consiste exatamente em seu poder de nos revelar, de

modo diferente, novas idéias, de nos fazer pensar a vida sob nova ótica, às vezes, nunca antes

experimentada. Boaventura Cardoso nos conduz por estas sendas, à medida em que sua

escrita desconstrói o convencional e confere a essa linguagem um segundo significado,

revitalizado, cujos sentidos polissêmicos instauram, nos leitores, um processo de reflexão,

conforme podemos depreender, por exemplo, no seguinte trecho: “zunante,

euviumvultoacorrereaentrarnaquelamontanha, derepente” – “vozearam”, “amachadar”

(CARDOSO, 1987: 18 - 27). Os neologismos e a inovadora escrita das palavras todas juntas,

em cadeia, tornam evidente o caráter dinâmico e lúdico da narrativa, visto que a “fala” da

criança, sem pausas, revela que se encontra ofegante e afobada. Os vocábulos, expressos sem

separação, deixam transparecer um clima tenso que manifesta, metaforicamente, o medo dos

espíritos: “vulto que entra naquela montanha.”

Essa preocupação formal com a linguagem, cujo sentido estético conota bem o caráter

imaginativo, também é vista pela abundante presença de metáforas, largamente usadas pelo

escritor, as quais designam algo novo e diferente que está além da realidade visível,

descortinando um mundo de múltiplos sentidos, como podemos verificar em: “Titico crescia.

No continente. (...) Mergulhamos no rio fundo. (...) Montanha parece nos seguia”

(CARDOSO, 1987: 17 – 18).

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Notamos que as figuras da criança (Titico), do continente e da montanha, metáforas

significativas, criam “belas imagens estéticas” (MACEDO. In: CHAVES, R. [Orgs.], 2005:

52) que se entrelaçam: o bebê cresce, se movendo no ventre materno; a barriga da mãe

aumenta também e a montanha se mexe, tudo construções poéticas da rica imaginação de

Boaventura Cardoso. Esse cenário, repleto de vida e esteticidade, faz-nos contemplar a beleza

indizível da concepção e do dinamismo da vida ainda em seus contornos invisíveis. Os gestos

do bebê tornam a narrativa mais lúdica; o duplo sentido de figuras como a montanha e os

movimentos rápidos e ingênuos de Titico no ventre da mãe criam uma plasticidade ímpar,

como se nós próprios, leitores, pudéssemos experimentar as sensações descritas. A citação

abaixo reforça nosso comentário e desvela algumas das preciosas riquezas literárias da obra

de Boaventura Cardoso:

O protagonismo que o autor dissimula no feto, em seu estado de gestação; os gestos fantasiados de Titico (feto) que se levanta e estende a mão para agarrar a montanha, a montanha no ventre da mãe que se esquiva do feto ou Titico; as ambigüidades subjacentes à montanha orográfica que entra, sorrateira, no quarto, etc, resultam de um denso e múltiplo emprego de figuras de retórica: a personificação ou prosopopéia (montanha física, que entra na sala, se mexe, se esquiva), a metáfora (o ventre de uma mulher grávida designado por montanha), a hendíade (o feto separado do ventre, dividindo literariamente o ventre da grávida em dois entes inseparáveis na vida real), a dissimulação (o feto transformado em pessoa) numa pessoa crescida que estabelece co-ações com o ator-narrador (MACEDO, J. In: CHAVES, R. e outras, 2005, p.53).

Nessa perspectiva, constatamos, na obra de Boaventura, o recurso de conceder status

plurissignificativo às palavras. O vocábulo “montanha” é “simultaneamente metáfora,

prosopopéia e hipérbole (‘a montanha aumentou de volume’)”. Ainda conforme Jorge

Macedo, os textos de Boaventura Cardoso mostram-se potencialmente expressivos por

maximizarem conceitos e olhares peculiares acerca da vida banto-angolana. Sobre isso é

importante enfatizar que uma recorrente característica é a variedade de significados potenciais

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que uma mesma palavra contém. Os bantos, geralmente, falam por metáforas, apresentando

uma linguagem com sentidos, por vezes, poéticos, conotativos.

No que diz respeito ao ritmo, as assonâncias e aliterações são marcantes pelo seu

efeito de natureza musical, uma vez que a repetição dos sons vocálicos e consonantais podem

reforçar o valor significativo das palavras, como nos confirmam os trechos a seguir:

“Caminhantes. Vinham de muitos caminhos. Passavam e repassavam e olhavam: atônitos.

Caminhavam caminhos de muitos caminhos e: vinham. E paravam e olhavam e retomavam:

caminhos. Caminhantes” (CARDOSO, 1987: 31). Como pudemos constatar, a repetição das

vogais acaba, por extensão, estando paralelamente ligada às consoantes, produzindo

aliterações, o que aumenta, ainda mais, o ritmo, a cadência e a sonoridade de uma prosa que

se aproxima do poema, porque encharcada de poesia.

Não nos esqueçamos que “repetir” é uma característica própria dos cantos religiosos e

de rituais vários, práticas comuns em diversas culturas angolanas. Há, portanto, um caráter

sagrado na linguagem do autor, assim como nas solenidades e ritos das comunidades rurais.

Maria Olimpia dos Santos afirma que “a harmonia da palavra tradicional africana é

reconhecida por sua artesania verbal, esteticamente ritmada” (SANTOS, 2007: 75). Basta que

lembremos da entrevista de Boaventura Cardoso às organizadoras do livro A escrita em

processo (2005), quando ele enfatizou a musicalidade como um dos elementos de sua prosa,

como algo comum em todos os seus livros. Vejamos sua depoimento:

Mais que a música eu diria o ritmo, que é uma constante na cultura africana, já que a nossa vida, enquanto africanos, é muito ritmada: seja o ritmo na narrativa ou o andar das pessoas, enfim, o ritmo da vida, a nossa vida. Nós temos muito ritmo, mesmo! Então, é essa cadência rítmica que eu, talvez, de forma consciente ou inconsciente, acabo por imprimir aos textos. Na narrativa oral esse ritmo é também dado a partir das repetições, que têm carga simbólica muito forte. As interjeições que eu utilizo, abundantemente, por exemplo, em Mãe, materno mar, fi-lo intencionalmente. Porque, quando nós falamos, a nossa linguagem coloquial é

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intermeada por muitas interjeições, de forma bastante diferente dos europeus, que não usam muito isso. Isso tem a ver com nossa maneira de estar, de contar as histórias com gestos, com muitas interjeições, enfim. E é um pouco isso que eu procuro evidenciar (...) (CARDOSO, “Entrevista”. In: CHAVES [Orgs.], 2005: 29).

A música, muitas vezes acompanhada de cantos, danças e palmas, tem importante

representação nas culturas banto-angolanas, conforme chamou atenção o próprio escritor,

mostrando que é usada em diferentes rituais como, por exemplo, nos óbitos. Ela é símbolo

tanto da vida, quanto da morte; uma dinâmica; a outra, estática. Acerca do ritmo vital,

Hampâtè Bâ diz: “O vaivém de seus pés [o tecelão], que sobem e descem para acionar os

pedais, lembra o ritmo original da Palavra criadora (...), suas palavras acompanham seus

gestos; o próprio cantar da vida” (BÂ, 1993: 18) é que enfatiza esse ritmo. Cada frase

articulada mostra, nos textos de Boaventura, um repertório seletível: “os processos estéticos, a

sequência de palavras, o ritmo original, a criatividade renovadora. Sua escrita é dinâmica e

poética, rica de ritmos e de sentidos. O escritor reinventa a tradição e a oralidade, criando

significados inovadores. A presença de onomatopéias, característica do discurso oral e

recorrente em toda a sua obra, é outro recurso bastante significativo que ajuda a montar o

quadro poético do discurso do autor, num tom coloquial, musical, como o de “O sol nasceu no

poente”, nA morte do velho Kipacaça: “fundumunar (...) mé mé mé (...) katutu tui (...)

cócóricó (...) zunante (...) uá lá lá (...) xéié; “te te (...) tri...tri...tri (...) kiiuik...kiiuik”; “bofele-

felê (...) Fiu! Fiu! Fiu! (...); zás (...) cócóricó (...)” (CARDOSO, 1987: 17 – 61). Tais sons

ecoam nos ouvidos dos leitores, provocando um despertar para uma vida que se forma, a

partir de um jogo de emoções, cuja sensibilidade torna ainda mais expressiva a escrita de

Boaventura Cardoso.

Todo esse labor estético de Boaventura Cardoso, repleto de experimentações (com

imagens, sons, palavras orais), é criado pelo poder ígneo das chamas transformadoras da

linguagem poética (considerando suas plurissignificações), prenhe de sinestesias – recurso

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que tem a capacidade de fazer aflorar espontaneamente diferentes sentidos corporais,

sensações e percepções.

Nos textos do livro A morte do velho Kipacaça, os muitos e distintos sons tocam os

ouvidos dos leitores; cenas fortes e cores se alternam, encantando e impactando a visão; a

água e o fogo estimulam o tato, ampliando o campo sensorial; “as oferendas que caem das

árvores e o sangue que delas escorre” exalam odores que fazem do olfato um dos sentidos

mais eróticos, cuja ação principal é estimular a memória mítica ancestral.

Recorrendo, mais uma vez, à Laura Padilha, lembramos que: “seja por sua concepção

como “falaescrita”, seja por sua intenção crítica aliada ao ludismo, como já [dissemos, é] um

modo de intervir no real, no melhor estilo da tradição ancestral” (PADILHA, 2002: 53).

Nesse sentido, a escrita cardosiana mostra-se consoante com a teoria de Roland Barthes

(2004): saborosa e cheia de saberes múltiplos.

Assim, a linguagem (re)criada, cujo mergulho nas origens a caracteriza como uma

escrita literária poética e sinestésica, busca percepções várias, indaga sobre a vida e medita

sobre a condição do homem banto-angolano, aguçando, um pouco mais, nossa sensibilidade

para melhor podermos compreender as dimensões mítica e poética do discurso de Boaventura

Cardoso.

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3.3.2 A ato de narrar e os gestos do ferreiro: a sedução de contar histórias

Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito. A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Valéry, é típica de artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. (Walter Benjamin, 1987)

As palavras de Walter Benjamim “entram como luvas”, na medida em que revelam a

carga vital do ato de narrar, principalmente para os povos bantos. Tzvetan Todorov disse que

“a narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à morte” (TODOROV, 1970: 128).

Hampâté Bâ compara o texto oral ao simbólico gesto do artesão, mestre em transformar

coisas, um inventor por excelência, que recria a vida em cada palavra pronunciada, como se

tecesse um invisível tecido.

Boaventura se assemelha, em sua escrita, ao ferreiro (SECCO. In: CHAVES, 2005, pp.

107.114), cuja figura é bastante significativa, em razão da simbologia que possui na

perspectiva africana de vida. Como já vimos, o ferreiro, segundo Hampâté Bâ, é o senhor da

forja e do fogo. Como este pode ser associado aos sentidos poéticos da linguagem,

observamos que Boaventura Cardoso domina o discurso escrito, trabalhando a poesia e o

ritmo das palavras. Assim, ele não apenas trabalha neologismos, figuras de linguagem e

demais elementos já comentados, mas também pela maneira peculiar de forjar cada vocábulo,

os aspectos sagrados das tradições ancestrais.

O ato de narrar, tanto neste livro, quanto nos outros, é uma forma de Boaventura

(re)criar e (re)inventar a roda tradicional de contar histórias, a roda da vida cultural coletiva.

Sobre esse gesto vital, Lourenço Rosário afirma que

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na sociedade africana, em particular a campesina, onde a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores, (...) as narrativas são a mais importante engrenagem na transmissão desses valores. (...) é nas narrativas que se encontram veiculadas as regras e interdições que determinam o bom funcionamento da comunidade e previnem as transgressões (ROSÁRIO, 1986: 47).

Como podemos observar, a importância das narrativas orais se explica pela sua forte

presença nas relações interpessoais comunitárias: “A narrativa funciona igualmente como um

dos principais veículos de transmissão do funcionamento (...), é um dos meios pedagógicos

mais poderosos (...), por outro lado, não é simples instrumento metodológico de transmissão

de conhecimentos” (Idem, Ibidem), pois cada narrativa, ao ser contada, “se renova, depois de

milênios, sendo capaz de suscitar espanto e reflexão,” conforme a concepção de Walter

Benjamin (1987: 207).

O escritor Boaventura Cardoso recria a experiência de narrar que, atualmente, “está

em vias de extinção. São cada vez mais raros os contadores de estórias que sabem narrar

devidamente” (BENJAMIN, 1987: 117), uma vez que estes estão mais pobres de experiências

comunicáveis. É importante atentar para o fato de que as narrativas exemplares estão em

escassez; sua “natureza é de dimensão utilitária, seja num ensinamento moral, sugestão

prática, num provérbio ou norma de vida” (Ibidem, 200). Esses tipos de narrativas sempre

passavam ensinamentos. Boaventura Cardoso usa tal recurso, mas subverte-o, mostrando

como o colonialismo dilacerou muitos costumes das tradições angolanas locais.

Na cultura banto-angolana ancestral, a função de narrar cabia, em geral, aos mais

velhos, aqueles especializados na sabedoria de contar histórias. Aqueles que sabiam dar

conselhos, que tinham experiências de vida, como se verifica na seguinte passagem: “No meu

pensamento estou pensar é o Velho Kufuca quem pode falar ngó por que é que a chuva não

chove” (CARDOSO, 1987: 31). Vemos aí que é o ancião o guardião da cultura. Os textos de

Boaventura Cardoso exemplificam muito bem tal questão.

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De acordo com Walter Benjamin (1987), é necessário refletirmos profundamente

acerca da extinção da arte de narrar. Em plena época tecnológica, em que se divulgam, com

muito mais velocidade, conceitos e idéias do consumo que fazem a apologia de uma vida

artificial e hedonista, a prática de contar se tornou rara – hoje, dar conselhos é algo antiquado.

As relações estão esgarçadas e superficiais. As informações chegam aos lares prontas; não há

reflexão, meditação ou qualquer exercício do pensar acerca da vida e do homem. As histórias

estão pobres, menos surpreendentes. Os fatos já chegam até nós com explicações que acabam

por podar a imaginação criativa da sociedade. Antes, como Benjamin observa, “no episódio

narrado, quando o contexto psicológico não era imposto ao leitor, ele ficava livre para

interpretar a história como quisesse; com isso a narrativa atingia uma amplitude que não

existe na informação” (Ibidem, 1987: 211).

Atualmente, o questionamento que fazemos é: quem está apto a narrar exemplarmente,

já que a sacralidade ancestral que tal atividade exigia se encontra profanada pela mídia e pelo

consumo exagerado?!

Mas, retornemos à obra de Boaventura Cardoso, especialmente ao texto A morte do

velho Kipacaça, em que o narrador é responsável por mostrar ao leitor certas “verdades”

acerca de sua cultura e as conseqüências, quando estas são ignoradas.

Interessante notar que esse narrador, conselheiro, se assemelha aos velhos contadores

africanos, aqueles que davam conselhos, que levavam mensagens aos filhos da terra, uma vez

que estabeleciam diálogos por meio de “provérbios da oralidade, [adivinhas, interjeições], que

aparec[iam] reelaborados pelo [seu] discurso (...) e [iam] pontuando as críticas, bem como a

aprendizagem (...)” (SECCO. In: Prefácio, CARDOSO, 2001: 22 e 23). Com base nessa

afirmação, selecionamos alguns trechos do conto analisado que exemplificam essa criativa

(re)construção de provérbios:

Não se devem fazer carícias a um cão danado. (...) No dia em que morre um elefante, não é o mesmo em que ele apodrece

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(...) O surucucu só morde quando lhe pisam e se metem ainda o dedo na boca dele. (CARDOSO, 1987: 43 - 54).

Conforme Honorat Aguessy, os provérbios “se revelam como sendo belos resumos de

longas e amadurecidas reflexões, resultado de experiências mil vezes confirmadas”

(AGUESSY, 1977: 118). Por isso, são considerados como expressões desveladoras da

concepção africana de mundo.

Devemos, ainda, notar que os provérbios possuem valor de verdade, uma vez que se

fundamentam numa estratégia de argumentação. Sua definição, segundo o dicionário da

língua portuguesa, torna isso mais evidente: “dito popular que resume um conceito a respeito

da realidade ou uma regra social ou moral; dito, máxima” (HOUAISS, 2004: 605). Os

provérbios, por conseguinte, sintetizam, conforme já deixamos claro, conceitos acerca de

regras sociais e/ou morais.

Outro ponto relevante em relação aos provérbios é que eles não possuem data, nem

autor. Suas manifestações vêm de geração em geração, concretizando-se do passado ao

presente. Essas considerações vêm corroborar que a prática dos provérbios se insere no âmago

da experiência coletiva de vida.

Os provérbios são, desse modo, formas cristalizadas por comunidades; demonstram

uma sentença de autoridade, conforme Maingueneau (1987), pois são pronunciados por uma

coletividade, não podendo ser abreviados, nem reformulados. Além disso, encerram,

geralmente, lições metafóricas. Segundo Aguessy,

nesse nível de expressão do intelecto e nesse modo de manifestação da reflexão a unidade não nasce da repetição das mesmas imagens e das mesmas palavras para exprimir a mesma idéia, mas consiste num dinâmico esforço de metaforização onde se evidencia a criatividade de cada grupo (AGUESSY, 1977: 119).

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Por trás dos provérbios, há em geral, uma polifonia, várias vozes que são as do povo,

mais especificamente, nos textos de Boaventura Cardoso, as dos povos banto-angolanos, o

que intensifica a força proverbial que ele enfatiza haver nas relações das comunidades rurais

de Angola. Os provérbios servem, assim, para reforçarem um argumento, para resolverem um

litígio, sancionarem instituições, fazerem advertências ou admoestações. “A variedade de

imagens que oferecem comunica-lhes encanto poético. Os provérbios moralizam, realçam o

valor sacralizado e inflexível que encerra a ética tradicional” (Ibidem, 39).

Quanto às adivinhas: [“Awa yaya, awa yassala, óhy? (...) Nanhy kamokotyca pu

kwako23?” (CARDOSO, 1987: 60 e 61)], elas têm papel semelhante ao dos provérbios, pois,

também, passam importantes ensinamentos para a sociedade. Tais jogos se caracterizam por

incentivarem o raciocínio crítico, a reflexão, para que, por seu intermédio, os participantes

“possam compreender a concepção do mundo em África” (AGUESSY, 1977: 117). As

adivinhas são procedimentos significativos também no plano sociológico, pois põem em

destaque características sociais, tendo, quase sempre, um caráter de igualdade e reciprocidade,

visto que, ao criarem regras próprias, estabelecem diretrizes que trazem lições acerca de

comportamentos coletivos encontrados nas sociedades.

Estudando o trabalho que Boaventura Cardoso faz com a linguagem, segundo Maria

Nazareth Fonseca (2001), constatamos que a presença de interjeições demonstra a tentativa de

obter novas configurações dos sentimentos. Segundo Carmem Tindó, as interjeições

“expressam emoções e sonoridades próprias desse emprego oral da língua, reproduzindo, na

cena ficcional, entonações representativas de um falar coloquial angolano” (SECCO. In:

CHAVES, 2001: 108).

23 Uns vão e outros ficam, o que é?; Qual é a coisa, qual é ela que não se pode conter num punhado fechado? (CARDOSO, 1987:61).

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Mais uma vez recorrendo a Aguessy (1977), compreendemos que a oralidade permite

privilegiar aspectos coloquiais na transmissão de conhecimentos e valores, dispondo de meios

de fixação específicos. Boaventura Cardoso, em seus textos, recria esses procedimentos,

conforme podemos observar nos seguintes exemplos: “Cuidado Zé! (...) Eh! Eh! Eh! Velha

Kaxiquela: intempestivamente. Eh (...) unh! (...) Ah! Ah! Ah! (...) Ehé. Ehé. Ehé”

(CARDOSO, 1987: 35 e 53). Tais interjeições permitem ao leitor aproveitar as pistas dadas,

ao longo da narrativa, pelo narrador, deixando expressas ora suas opiniões, ora suas

reprovações, ora suas críticas, através de elementos diversificados no tecido textual.

Os narradores têm, dessa forma, grande importância nas estórias, como reafirma a

seguinte citação de Maria Nazareth Fonseca:

O narrador faz uso do privilégio que tem para explicar ao leitor tanto os motivos das interpelações da Velha Kaxiquela às explicações de Ngna Kapiapia, quanto para fazer prosseguir o relato. O narrador assume a palavra no texto, ainda que, na situação encenada, o Velho Bernardo Nikila, aquele a quem de direito pertence o comando da reunião, tenha sentenciado: ‘Se acabou tudo! Aqui não tem mais assunto para tratar’. Intercambiam-se, portanto, diferentes instâncias narrativas que se encarregam de contar a história na qual intervêm fatos ‘fantásticos’ reveladores das crenças da cultura popular de Angola e, por certo, de grande parte da África (FONSECA, In: CHAVES, 2005: 97 – 98).

Esse narrador, cujo tom da “fala”, às vezes, é ameaçador, conduz a história e reforça a

idéia de que o afastamento das tradições pode trazer graves conseqüências negativas para o

povo: “Eh! Motivo do encontro tem batucada muximante: quem faz a chuva não ter chuva?

Seca no lugar de chuva? Eh! Eh! Eh! Cuidado Zé!” (CARDOSO, 1987: 35). Suas perguntas

geram, no leitor, reflexões que reativam aspectos esquecidos da memória coletiva, das

tradições quimbundas de Angola.

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Deve-se destacar ainda que o comando da narração é feito por um narrador que emite

opiniões nas estórias. E essa condução se faz por intermédio de uma série de repetições

contínuas da própria estória em si mesma; há uma estória dentro da outra se repetindo

continuamente, isto é, há uma repetição em cadeia, cheia de “encaixes”, termo criado por

Tzvetan Todorov, que sobre este assunto assim teoriza:

a importância do encaixe se encontra indicada pelas dimensões das histórias encaixadas. Pode-se falar de digressões quando essas são mais longas que a história da qual se afastam? (...) O mesmo acontece no manuscrito: enquanto a história de base parecia ser a de Alphonse, é o loquaz Avadoro que finalmente recobre com suas narrativas mais de três quartos do livro. Mas qual é a significação interna do encaixe, por que todos esses meios se encontram reunidos para lhe dar importância? A estrutura da narrativa nos fornece a resposta: o encaixe é uma explicitação da propriedade mais profunda de toda narrativa. Pois a narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa. Contando a história de uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente (TODOROV, 1970: 126).

O que queremos explicitar com essa citação, é que o narrador de “A morte do velho

Kipacaça”, terceiro conto do livro, utiliza, largamente, este recurso não apenas para reiterar a

mesma estória, enfatizando-a, mas também para concretizar a transmissão do conteúdo de sua

mensagem aos seus ouvintes: “O narrador espera que seu auditório tire da narração a lição

devida, que siga a via que a narrativa aponta e obtenha satisfação” (AGUESSY, 1970: 130). É

correto afirmar, então, que, nesse prisma, a “fala” do narrador quase nunca aparecerá na

forma injuntiva, porque o próprio ouvinte, ele mesmo, deverá tirar suas conclusões das

estórias contadas e aplicá-las à sua vida prática. O que acontece, entre o narrador e o(s)

interlocutor(es)/ouvinte(s), é uma interação de fatos, questionamentos morais, respostas. É

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isso que mantém o diálogo vivo, fazendo com que os interlocutores tenham liberdade de

imaginação para retirarem dali suas autoconclusões.

Constatamos, assim, que essa terceira narrativa se desdobra em várias estórias como

demonstram os exemplos abaixo: a primeira e principal gira em torno da explicação para a

falta de chuva, narrando “o caso” (CARDOSO, 1987: 35); a segunda, paralela a esta, conta

sobre o sumiço do velho caçador Kipacaça: “Se o velho Kipacaça está vivo está onde então?”

(Ibidem, 37); depois, segue-se a narrativa do julgamento de Ngana Kapiapia, flagrado por

Velha Kaxiquela no rio, à volta da fogueira: “Só mesmo julgamento é que podia serenar um

pouco ânimos exaltados. (...) Parecia escoltado, Kapiapia conseguiu sair de casa.” (Ibidem,

43); mais à frente, temos a estória de Mana Teresa, à espera do velho Kipacaça: “Tinha sete

noites Mana Teresa não estava dormir.” (Ibidem, 44); dentro desta narrativa, há outra: a da

revelação do sonho premonitório de Mana Teresa a Kipacaça: “Eh! Sonhei ngó um sonho, tu

foste na caça e não voltaste!” (Ibidem, 45); há também a de Kipacaça contando sobre suas

caças à mulher:

Mana Teresa já conhecia a estória de tantas vezes a ouvir contar. Kipacaça conta essa aventura nos amigos, na casa, nos óbitos, nas reuniões familiares. Só que cada vez que contava essa aventura, cada vez metia sempre coisas novas, cadavez mais pormenores, muita fantasia e muita aldabrice no meio cadavez (Idem, Ibidem).

Como vemos, muitos são os fios de estórias que se entrelaçam. Além das já

mencionadas, há outras: a da partida do velho para a caça e a de Mana Teresa tendo visões:

“pegou ngó caçadeira da caça e se despediu da mulher (...) Eh! Olhou mais uma vez e reparou

que os animais estavam a sorrir” (Ibidem, 47); a de Kipacaça, de fato, na caça: “Eh! Com um

pau, derribou capim alto que ameaça cobrir templo” (Ibidem, 48); a da volta da chuva:

“Miudinha: a chuva veio” (Ibidem,49); a do encontro da Velha Kaxiquela com Kufuca,

possuidor de poderes especiais: “Velha Kaxiquela se aproxima ngó, toma benção e anuncia:

viemos te falar” (Ibidem, 50); a da filha de Kusebeca: “Um dia chegou: a notícia! Kusebeca

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filha dele tinha dado á luz uma porca! (...) desgraça” (Ibidem, 51); a do desaparecimento de

Kusebeca, que abriu suposições para o sumiço de Kipacaça: “Misteriosamente corpo dele não

estava aparecer” (Idem, Ibidem); a da retomada da estória principal, tendo como cenário a

reunião dos mais velhos: “Quem terá feito desaparecer: Kipacaça? Eh! (...) Todos se

inquietam ngó. Eh! Kapiapia está pedir licença” (Ibidem, 52); a da rivalidade entre os anciãos

Kapiapia e Velha Kaxiquela: “Tem calada desde há muito fúria dele contra velha saliente (...)

Isso é uma grande falta de respeito. Não posso consentir que aqui se lute” (Ibidem, 53); a da

roda animada com danças e a da interrupção da estória para o início dos cânticos dos rituais

funerários: “Roda animada faz paragem. Kututa interrompe: a estória. (...) Tem silêncio, se

inicia oração e se lhe seguem cânticos em série” (Ibidem, 56); a da volta da roda animada,

frenética e batucante: “a música outravez. (...) Kututa retoma fio da estória: _Um dia estava

assim no pundu a descansar (...) tinha três dias fora de casa (...) quando ouvi um barulho

estranho (...) Kututa, contador de estórias, desatando a língua” (Ibidem, 59 - 60); e a do

retorno do velho Kipacaça, morto, vindo do meio da fogueira crepitante: “Eh! Nisso no meio

da queimada se vê homem em cima da pacaça de tamanho nunca visto (...) Eu estou morto!!!

Katumbila é o novo Kipacaça” (Ibidem, 62 – 63).

Como comprovamos, a existência dos encaixes dentro de uma narrativa serve de

recurso para passar ensinamentos a um grupo: “O encaixe é uma explicitação da propriedade

mais profunda de toda narrativa” (...) “A narrativa se torna um meio de convencer o

interlocutor (...) precede ou acompanha a máxima, ou as duas coisas” (TODOROV, 1970: 126

e 131). Nas antigas sociedades banto-angolanas, “as narrativas [eram] formadas com

elementos míticos, tendo por finalidade instruir, divertir e entreter: geralmente, terminam com

uma moralidade clara ou disfarçada e realçam sempre qualquer valor social” (ALTUNA,

1985: 38).

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Essa técnica constitui-se como um dos meios criativos de (re)construção das tradições,

uma vez que traz para o “centro da roda”, metaforicamente, práticas ancestrais, cuja

configuração se dá através de elementos integrantes do mundo angolano: a roda, a fogueira, o

diálogo coletivo, a autoridade dos mais velhos na sociedade, as danças, assim como muitos

traços da oratura, recriados esteticamente, poetizados por uma escrita que, do início ao fim do

conto, busca afirmar diversos aspectos identitários de determinadas culturas de Angola.

A figura do “herói Kipacaça, caçador de fama, grande contador de estórias, não se

auto-representa, [assim, assumindo papel fundamental]; como os heróis das narrativas

populares, simboliza a voz coletiva que nunca se permitiu emudecer” (PADILHA, 2002: 25).

Quando o “velho” ressurge, depois de morto, põe em cena crenças ancestrais africanas que

não segregavam vivos e mortos. Ao contar mais uma estória, o velho torna-se porta-voz das

tradições e sabedorias coletivas, sendo, por isso, emblemático, pois eterniza o ato de narrar; é

como se a volta dele constituísse o que as pessoas de sua comunidade contaram quando ele

morrera. Seu retorno, por conseguinte, ultrapassa a esfera do “fantástico”, uma vez que faz

conviverem o mundo visível e o dos espíritos, provando que, em África, a vida e a morte não

se separam. A permanência do velho Kipacaça alegoriza, portanto, a continuidade das

estórias, a perpetuação das narrativas exemplares.

Walter Benjamin declara que “é no momento da morte que o saber e a sabedoria do

homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias –

assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1987: 207). Tal

constatação nos leva à seguinte reflexão: a aparição é o apogeu da narrativa do Velho

Kipacaça não somente por colocar no mesmo plano dois mundos absolutamente diferentes e

contrários como a vida e a morte, mas também por recuperar, em sua essência, uma das

práticas tradicionais mais significativas dos povos bantos: a transmissão plena de valores

tradicionais de geração a geração pela arte de narrar. Ou seja, é no momento da morte que o

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narrador melhor pode contar tudo; é na hora da morte que sua memória coletiva é mais

ativada, transmitindo ensinamentos. A narrativa, portanto, por ser um canal didático, exige

sempre refinamento e astúcia para prender a atenção dos ouvintes, promovendo, assim, uma

renovação cíclica em sua própria estrutura de forma e conteúdo, nas mensagens que sustenta e

na maneira como é administrada pelo narrador e nas mensagens que sustenta.

A narrativa de A morte do velho Kipacaça, de Boaventura Cardoso, é, por sua

estrutura – com suspense, vários núcleos narrativos, participação intensa do narrador –, quase

um embrião de um romance. É Laura Padilha quem o considera assim, afirmando ser essa

narrativa o gérmen da ficção romanesca do autor, sendo a obra que faz a transição entre seus

livros de contos e seus romances. Essa leitura da Professora Laura é confirmada pelas

palavras do próprio escritor, em uma de suas entrevistas: “Quando li A morte do velho

Kipacaça, tive um dos meus grandes deslumbramentos estéticos e percebi que ali estava o

embrião de um belo romance” (“Entrevista”. In: Revista Crioula – nº 2 – novembro de 2007).

Esse aspecto apontado por Laura Padilha é bastante interessante, mas não o

estudaremos aqui, uma vez não ser o objetivo desta dissertação. Nossa intenção foi trabalhar

as tradições revisitadas, a palavra forjada pelas chamas da criação estética e pela sedução do

narrar. Acreditamos, ao fim de nossa análise, que atingimos essas metas, traçadas em nossa

introdução. Passemos, então, às conclusões a que chegamos, após a leitura atenta dos contos

de Boaventura Cardoso.

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4. CONCLUSÃO

Durante algum tempo, os estudos das Literaturas Africanas foram permeados pela

preocupação com a busca da identidade nacional. Tal atitude revela o desejo de resistir a

fissuras provocadas pelo longo tempo de regime opressor colonialista. Atualmente, embora as

questões identitárias continuem importantes, sabemos que as identidades são múltiplas em

cada nação.

Depois, de percorrerremos os meandros ficcionais de Dizanga dia muenhu, O fogo da

fala e, sobretudo, A morte do velho Kipacaça, comprovamos que a escrita de Boaventura

Cardoso cumpre, com excelência, assim como a de outros escritores africanos lidos no Brasil,

não somente o papel de recriar o imaginário popular banto-angolano, como também

demonstra refinamento estético e multicriatividade pela maneira escolhida para execução de

seu projeto literário: a da (re)invenção de palavras e tradições. Observemos, atentamente,

algumas perguntas feitas ao escritor e suas respostas, durante o III Encontro de Literaturas

Africanas, realizado no Brasil, pela UFRJ, em novembro de 2007:

– De acordo com sua entrevista para o livro A escrita em processo, o Sr não condena e, pelo contrário, acha até muito produtivo o pluralismo em Angola, defendendo uma visão múltipla de mundo. Porém, sabendo da conturbada e complexa história do país, não é perigoso o risco de se cair em um apagamento das tradições? Como o Sr mesmo disse, “se não houver essa preocupação, perdemo-la no espaço global”. O que aconselha, então? Resposta: O fator guerra provocou uma migração de povos das zonas afetadas para os centros das cidades. Morreu muita gente: muitos velhos, muitas crianças. Então, o panorama social se alterou por completo. E os velhos, quando passam para os centros urbanos, acabam por esquecer muitos costumes ancestrais tradicionais, que praticavam no interior. Este caso é mais grave no caso da língua, das línguas nacionais; não no caso dos mais velhos. Os jovens que saem do interior, que fugiram por causa da guerra para os centros urbanos, depois, com o tempo, deixam de praticar as suas línguas maternas e começam a falar português. Esse

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fenômeno, particularmente em Luanda, é cada vez maior: muitas são as pessoas, sobretudo jovens, que vieram do interior para os grandes centros urbanos, nomeadamente Luanda, e que deixaram de praticar as suas línguas maternas por razões de comunicação. Com a tradição também acontece o mesmo. E eu procuro valorizar isso, procriando, (re)ensinando, (re)atualizando as tradições. É uma constante em minha obra (Entrevista inédita, concedida no III Encontro de Africanas na UFRJ –Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, novembro de 2007).

Nessa entrevista, as palavras do escritor são reveladoras, na medida em que

descortinam uma inquietação expressiva de ordem sociológica e estética em seu constante

processo de criação e (re)criação da própria escrita literária. Seus livros evidenciam um

grande trabalho de linguagem, com experimentações várias, forjado, figuradamente, pelas

chamas alquímicas do fogo. Boaventura Cardoso não “aprisiona a tradição oral, limitando-se

[a reinventar na] escrita as temáticas mais [recorrentes; assim,] potencializa a riqueza da

oralidade evocando-a de forma inventiva” (CHAVES, R.,: Disponível em: www.uea-

angola.org/mostra_entrevistas.cfm?D=710, Acesso em 30/10/2007). Por isso, podemos

chamá-lo de “ferreiro das palavras” (SECCO, 2005: 107).

A forma como utiliza a língua portuguesa, já explorada no decorrer desta dissertação,

maximiza, criativamente, os modos peculiares pelos quais ela é falada pelos povos angolanos:

“não se trata simplesmente de registrar as subversões impostas à língua oficial, mas de

aproveitar as potencialidades que os muitos usos facultam, transformando-a numa língua

nova” (CHAVES, R., www.uea-angola.org/mostra_entrevistas.cfm?D=710). A forte presença

de ritmo, de musicalidade, de onomatopéias, de figuras de linguagem, de adivinhas, de

provérbios, de rituais comprova, portanto, o labor estético de Boaventura Cardoso e nos põe

em contato com uma literatura repleta de “procedimentos artísticos da chamada oratura (...),

metaforseados, transcriados ao nível da escrita literária, com marcas de diferenças inovadoras

que situam essas produções dentro do estatuto moderno da angolanidade” (ABDALA, 2003:

249).

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Essa questão da criação artística, enfatizada pelo escritor em diversas entrevistas, vai

um pouco além e se abre a considerações importantes que fazem a denúncia crítica às

seguintes questões: a destruição de muitos aspectos do país, provocada pela guerra; o

apagamento de práticas e costumes ancestrais; o esquecimento das línguas africanas pelas

novas gerações angolanas.

Boaventura Cardoso não renuncia à tradição oral, sabendo que esta é o fundamento da

sociedade banto, sendo, por tal razão, o canal mais apropriado e subversivo para a retomada

das multifacetadas identidades culturais presentes no território angolano, mas ele também tem

clareza de que deve confrontar as práticas ancestrais com o pensamento da geração atual,

aguçando a imaginação e fomentando a reflexão crítica sobre determinadas marcas

identitárias angolanas que sobreviveram ao colonialismo português, à luta contra o

salazarismo e à terrível guerra civil. Tal atitude vem ratificar a preocupação do escritor em

(re)ensinar e (re)traçar os caminhos genuínos em direção aos costumes tradicionais como

formas de resistência cultural, política, e social.

Ainda é fundamental ressaltar que, embora tenhamos enfatizado mais essa questão

social nos dois primeiros livros, ela, também, se faz presente em A morte do velho Kipacaça,

na segunda narrativa “A árvore que tinha batucada”, com críticas importantes e

conscientizadoras quanto à ação maléfica do colonizador no cotidiano do povo angolano.

A quase ausência do uso das línguas africanas entre os jovens angolanos de hoje

justifica o projeto literário de Boaventura, no qual a (re)criação da linguagem é primordial. E

“é, em relação a essa nova norma lingüística e às configurações desse imaginário angolano,

que a escrita [dele] materializa, que tem sido estabelecido novo campo de competências

literárias” (Ibidem, 257). Isso demonstra que o trabalho estético com a linguagem é

importante e propicia a (re)invenção das tradições em seus aspectos sociais, literários e

culturais.

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A segunda parte da entrevista de Boaventura Cardoso, nos leva a outras conclusões:

– No que diz respeito à preocupação com as tradições, sua escrita parece ter um elemento diferencial: trabalha com o “maravilhoso africano”. Fale um pouco desse recurso literário. Resposta: Eu acho que, para mim, enquanto africano e falando particularmente do “fantástico”, este não é nada mais do que o outro lado da vida. E acho que esse elemento está muito presente na nossa maneira de estar no mundo, de nos comportar. Ele aparece diferenciado em vários contos, provérbios, em várias práticas. Eu procuro valorizar esse aspecto em vários trabalhos, sobretudo nA morte do velho Kipacaça. (...) é um elemento presente em toda a minha obra literária e acho que é, como eu disse, algo que faz parte de nossa realidade (Entrevista inédita concedida no III Encontro de Africanas na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, novembro de 2007).

Depreendemos, em nossa análise, o que a entrevista confirma: a presença intensa do

“fantástico” e do “maravilhoso”, que preferimos chamar de animismo africano, outro viés

recorrente da ficção de Boaventura. A visão animista africana de mundo constitui-se, segundo

o escritor, como um dos

meios privilegiados de percepção e interpretação do cosmos. Forma de pensar e de sentir que nos colocam frente a dois modos diferentes de olhar o mundo: um pela lógica dos números e o outro pela lógica da afetividade, suscitada pelo fascínio que a imaginação criativa sente frente ao encanto do mundo visível e invisível, que a envolve (CARDOSO, B. In: PADILHA & RIBEIRO, 2008: 25).

Dois pontos na “fala” do autor nos chamam a atenção: a definição dada por ele ao

termo “fantástico” – o outro lado da vida –, e o fato da valorização deste enfatizar realidades

da perspectiva africana de vida. Como analisou Abdala Júnior, esse recurso permite ao leitor

adentrar, metaforicamente, em cenários que são partes integrantes do modo africano de

conceber a existência e suas complexidades. Por exemplo: a união harmônica entre morte e

vida, a crença na força vital existente nos elementos da natureza.

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A criatividade de Boaventura é associada ao uso de provérbios, que, segundo ele, são

expressões que trazem os ensinamentos das tradições banto-angolanas; exaltam a sabedoria

anciã, suas experiências, enfim, sua importância na cultura africana ancestral. Vejamos o que

diz o próprio escritor:

– Entre outros recursos que caracterizam sua produção literária, fale um pouco da presença dos provérbios em seus livros. Resposta: Os provérbios aparecem nA mrote do velho Kipacaça, Maio, mês de Maria, Mãe, materno mar... São elementos da tradição que eu procuro valorizar, porque essas máximas, esses provérbios encerram muita sabedoria e veja que, naturalmente, por trás dos provérbios, está o mais velho, que é o sabedor, o guardião da tradição, da sabedoria ancestral. Os provérbios saem da boca de alguém que tem uma longa experiência de vida. Portanto, a presença dos mais velhos está, constantemente, em minhas obras. (Entrevista inédita concedida no III Encontro de Africanas na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro –, Brasil, novembro de 2007).

Ao trazer, para seus textos, as vozes e a mentalidade dos mais velhos, a escrita de

Boaventura Cardoso estabelece um equilíbrio entre o moderno e o antigo, fundindo técnicas

ancestrais de narrar com procedimentos enunciativos atuais.

Arrematando nossa leitura sobre a obra literária “desafiadora” de Boaventura Cardoso,

percebemos, ao fim de nossa análise, que não demos conta toda a riqueza oferecida pelos

textos de Boaventura Cardoso eleitos como corpus de nossa dissertação. Sabemos que

ficaram lacunas a serem preenchidas por outros estudos. Afinal, nunca tivemos a pretensão de

esgotar as muitas possibilidades de diferentes olhares sobre a literatura do escritor. Temos

consciência de que as obras literárias de qualidade sempre se abrem a novas leituras. Por

outro lado, acreditamos, contudo, que conseguimos levantar reflexões e diálogos importantes

acerca do papel das Literaturas Africanas e acerca da ficção de Boaventura Cardoso.

Sabendo que todo estudo de literatura é, até certo ponto, inacabado por natureza,

esperamos que outras vozes e letras se juntem às nossas, nessa festa de “saber e sabor”

(parafraseando Roland Barthes em seu livro Aula) da escrita cardosiana. (Re)invenção e

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tradição, portanto, são termos fundamentais na ficção de Boaventura Cardoso, cujo discurso

revisita, inventivamente, aspectos da memória coletiva cultural banto-angolana, fundando

uma nova “escrita da angolanidade”, sempre múltipla e em processo, sobretudo no que se

refere à recriação estética da linguagem.

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