broadcast yourself o avanco do video digital

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     Broadcast yourself : o avanço do vídeo digital e oempoderamento da audiência 

    Rafael Rodrigues da Costa1 

    Resumo

    Por um período considerável na trajetória dos meios de comunicação, o monopólio daemissão de conteúdos a um público amplo coube, preferencialmente, aos meios decomunicação de perfil empresarial. O clássico modelo comunicacional frankfurtiano, que

     postulava um emissor em termos de sua capacidade de subjugar o receptor, reforçava essaassimetria entre dois pólos, no mais das vezes, inconciliáveis. Essa divisão entre emissor ereceptor, porém, se mostra cada vez mais incompatível com a profusão de imagens (e textos)fabricadas ou reposicionadas por usuários ou espectadores. Este artigo refaz o percurso dessaespécie de empoderamento dos usuários dos meios de comunicação, trazendo o foco para as

     produções audiovisuais por eles realizadas, um agrupamento de gêneros do discurso que tevena internet sua consagração. As hipóteses de que a internet instaura um regime semióticodiferenciado, bem como uma nova relação dos usuários com a plataforma midiática, serãoaqui lançadas ao longo da discussão. As chamadas mídias tradicionais não ficam alheias a tais

    reconfigurações e ampliam, de forma crescente, os interstícios onde os espectadores sãoelevados à categoria de co-responsáveis por certas enunciações televisivas.

    Palavras-chave: Mídia audiovisual, Youtube, web 2.0, televisão

    Do silêncio ao protagonismo

    “Todos serão famosos por quinze minutos”. O lema do multiartista Andy Warhol,

     proferido ainda nos anos 60 do século XX, colocou em relevo uma possibilidade inusitada

     para aquele tempo: a de que todo mundo, um dia, teria seu lugar de visibilidade no concorrido

    e restrito mundo da comunicação mediada para milhões. Não deixava de ser uma ousadia

    naquele tempo, em que se vivia a tal “sociedade do espetáculo” preconizada por autores como

    Guy Debord e potencializada pelas reflexões de contemporâneos como Edgar Morin (e seus

    estudos da chamada “cultura de massa”2). Pairava nas entrelinhas desses pensadores um certo

    1 O autor é Mestrando em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com apoio da FundaçãoCearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), e integrante do grupo de PesquisaHiperged.2

     O conceito de massa se apresenta como fundamental para a compreensão dos movimentos inaugurais dosestudos de comunicação. As primeiras concepções tinham em comum a visão da massa com um conjunto

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    senso de submissão dos públicos amplos pelos padrões e estereótipos estabelecidos ou ditados

     pelos meios de comunicação – vistos como guardiães de uma nova formação cultural que

     punha em xeque, paulatinamente, outras instituições como a família.

    A suposição de Warhol talvez fizesse ruborizar, anos antes, os pensadores ligados ao

    Instituto de Pesquisas Sociais sediado na cidade alemã de Frankfurt3, que estiveramentre os

     primeiros a mensurar os impactos da comunicação massiva. Se Morin levava em conta uma

    certa autonomia do público, à qual os meios de comunicação buscavam se adequar ao

    oferecer seus produtos, os frankfurtianos aferravam-se à ideia que tais produtos servem

    apenas para um consumo acrítico, “sem autonomia e essência” (ADORNO apud WOLF,

    1995, p. 76).

    A mira dos representantes da chamada Teoria Critica, como Theodor Adorno e Max

    Horkheimer estava apontada, especificamente, para a dinâmica da indústria cultural, termo

    cunhado por eles em 1947, na Dialética do Iluminismo. A indústria cultural é, desse ponto de

    vista, um sistema organizado que difunde produtos em série, calcados em estereótipos emarcados pela qualidade duvidosa. A circulação de bens simbólicos, assim, obedece à

    racionalidade do sistema produtivo capitalista como um todo.

    O papel do consumidor nesse processo é pouco ativo. A impotência é o valor de base

    do processo de troca (ou melhor, de imposição) de símbolos. “Divertir-se significa estar de

    acordo”, assinalam Adorno e Horkheimer (op. cit., p. 77). Essa lacuna responsiva permitida

     pelos consumidores é a deixa para que a indústria cultural subjugue psicologicamente os

    (pseudo-) indivíduos. Não lhes é permitido o exercício do senso crítico, pois “o produto prescreve todas as reações” (op. cit., p. 78).

    homogêneo de indivíduos, que são essencialmente iguais, ainda que tenham origem em ambientes distintos(WOLF, 1995, p.22). Em primeiras análises como a da teoria hipodérmica, esse público seria capaz de responderaos mass media de formas pouco articuladas e simplistas, conforme propunha o modelo behaviorista quesustentava aquela teoria. Mais adiante, em Edgar Morin (teoria culturológica), já se vislumbra uma articulaçãodos meios de comunicação no sentido de atender as necessidades culturais dos seus públicos porém, a análise doaspecto comunicativo acaba por remeter às reações pavlovianas da teoria hipodérmica (WOLF, 1995, p. 91-93)3 Fundado em 1923, o Instituto (mais conhecido por Escola de Frankfurt) inicialmente se estruturou como uma

    coerente corrente filosófica até seu desmonte, com o advento do nazismo. A Escola se reuniu na década de 1950,sem a mesma unidade programática, porém (DOSSIÊ CULT, 2009, p.6)

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    Tal visão vai cedendo lugar, na própria academia, a visões menos deterministas do

    círculo comunicativo. Diversos estudos de comunicação passam a apontar para os usuários

    das mídias e neles observam uma instância capaz de apropriações e interpretações dos

    conteúdos a que se submetem. É o caso, por exemplo, dos Estudos Culturais, representados

     por autores como Hall (2003). As contradições e pressões da sociedade passam a ser

    encarados como elementos constitutivos do sistema cultural. Numa via de mão dupla,

    diferente do modelo unilateral da teoria da informação, o comportamento dos indivíduos –

    orientado por fatores estruturais e culturais - pode influenciar o conteúdo dos mass media(WOLF, 1995, p. 97).

     Nesse sentido, emerge como referencial a perspectiva exposta por Stuart Hall em seu

    modelo  Encoding/Decoding (HALL, 2006), que supõe a existência de diversos graus de

    adesão por parte dos consumidores/usuários, ao menos no que tange à recepção televisiva.

    Longe de uma recepção passiva, simétrica, como propunham os modelos da teoria

    hipodérmica ou da teoria da informação4, os usuários podem oscilar entre a concordância e a

    total rejeição dos conteúdos a eles oferecidos. Mazzeti (2009) lembra que a postura dos

    cultural studies estimulou a realização de inúmeros estudos de audiência, o que contribuiu

     para referendar essa virada teórico-metodológica dos estudos de comunicação.

    De forma próxima aos cultural studies, emergem outras matrizes teóricas capazes de

     propor uma descentralização da análise do modelo clássico “emissor domina receptor”. Um

    exemplo são os estudos pós-coloniais, que investigam como a diversidade cultural, num

    mundo globalizado, torna borradas as fronteiras entre alta e baixa cultura, entre ocidente e

    oriente. "A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação

    complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que

    emergem em momentos de transformação histórica" (BHABHA, 1998, p. 20-21).

     Não há dúvida que, nessa zona de escape das categorias analíticas tradicionais,

    fenômenos ainda a serem nomeados têm ocorrido. Como qualificar, por exemplo, as

    4 Segundo Wolf (op. cit.), a teoria da informação surge nos trabalhos de engenharia das telecomunicações, como

    forma de otimizar o processo de transmissão de mensagens. Nessa abordagem, a questão do significado pareceestar em segundo plano.

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     produções amadoras colocadas ao alcance de todo o mundo por meio de ferramentas de

    compartilhamento como o site Youtube? Um momento peculiar da história da mídia

    audiovisual parece iniciar em simples cliques em botões como o de upload . Justamente aí, na

    apropriação e articulação das linguagens – e na aquisição de letramentos digitais5  – que os

    usuários dos meios de comunicação se fizeram notar. Após anos servindo, de certo modo,

    como “cobaia” das criações dos meios de comunicação – os diversos gêneros em que se

    organizam os discursos do rádio, da televisão, dos jornais – os usuários começaram a

    experimentar a sensação de estar no controle. Não apenas buscando sua cidadania enquantoconsumidores, mas também eventualmente pautando a agenda dos mesmos meios aos quais,

    anos atrás, não tinham acesso.

    Na segunda vinda da web, uma câmera na mão

    Um garoto representa um papel de vilã de novela, enquanto um homem finge ser sua

    vítima. Falas são disparadas como que numa paródia da dramaturgia vigente. A mise-en-scène 

    se aproveita de uma casa periférica, sem retoques nem omissões. A cena se desenrola, sendoregistrada por uma câmera de baixa definição. Há risos abafados, esporádicos. Ao fim, o

    garoto exclama: “pode cortar!” As cenas descritas são de um vídeo presente no Youtube 6,

    uma produção que, entre tantas outras, materializa a ideia de colaborativismo conforme

    defendida na chamada web 2.0.

    Apoiados em Xavier (2002), para quem o hipertexto é uma tecnologia enunciativa que

    viabiliza o surgimento do modo de enunciação digital7, destacamos como traços constitutivos

    dessa tecnologia a imaterialidade, a confluência de modos enunciativos, a não-linearidade e aintertextualidade infinita.

    5 O conceito de letramento digital tem sido exaustivamente discutido no âmbito dos estudos acerca dacomunicação mediada pelo computador. Trabalhos como os de Snyder (1997) e Buzato (2007) representam umareduzida amostra acerca de um tema que mobiliza pesquisas em todo o mundo.6 http://www.youtube.com/watch?v=dswHQa09RZg. A versão foi acessada em 20 e 29 de julho de 2009, tendo

    registrado nesta última data mais de 27 mil acessos.7 Justamente aquele que se realiza, de forma plena, na internet.

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    Figura 1: vídeo “Leona – a assassina vingativa”, produção caseira anônima postada no Youtube 

    Como toda tecnologia, a hipertextual não nasceu perfeita, e nem parece disposta a

    alcançar tal perfeição. Essa mutabilidade continuamente renovada é o que se tem chamado de

    beta eterno, ou seja, um estágio desenvolvimento ainda não finalizado. Essa é uma das

    características da chamada terceira geração da hipertextualidade, possibilitada pelo conjuntode reinvenções pelas quais o hipertexto passou por meio das ferramentas da web 2.0.

    O termo surgiu como designação para uma espécie de ressurgimento da internet após o

    que se chamou de “estouro da bolha” das empresas ponto com. O que parecia o fim da

    internet, segundo previsões mais pessimistas, resultou numa celebração das potencialidades

    de inclusão dos usuários que a grande rede oferece.

    O compartilhamento cooperativo de conteúdos é uma característica definidora dachamada web 2.0. A ideia de cooperação, ou de uma "arquitetura de participação"

    (O'REILLY apud PRIMO, 2007), não se fazia presente na primeira fase dos serviços online.

     No ambiente da web 2.0, a atualização tecnológica permite enfatizar a participação dos

    usuários. Uma forma fundamental por meio da qual essa arquitetura de participação ocorre é a

    adoção de funcionalidades antes restritas a softwares  que precisariam ser instalados no

    computador. A web 2.0 proclama a migração desses serviços para dentro do ambiente online,

    uma clara consequência da expansão dos acessos por banda larga, mas também uma admissão

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    da importância que a experiência do usuário assume.

    As home pages passam a admitir comentários, os sites pessoais ocupam novos espaços

     por meio da inserção em comunidades e sistemas classificatórios comuns, assim como é

     possível aos internautas interferir em depositórios coletivos de informações, tais como a

    Wikipédia (enciclopédia online escrita e editada pelos próprios visitantes) ou páginas de

    webjornalismo cooperativo. A web 2.0, seria, por assim dizer, a era da customização8   de

    interfaces e plataformas.

    A junção dinâmica de diversas semioses possibilitada pelo hipertexto é denominada

     por Lemke (2002) de hipermodalidade. O autor parte do conceito de modalidade proposto por

    Kress & Van Leuween (2006)9 para postular o ineditismo das formas simbólicas presentes na

    internet. Para o autor, a hipermodalidade é uma forma de nomear as interações de significados

     baseados na palavra, na imagem e no som na hipermídia, isto é, em artefatos semióticos nos

    quais significantes em diferentes escalas de organização sintagmática estão linkados em redes

    complexas ou redes. Ele ressalta que esse tipo de ligação nos impele a ir além dos gênerosmultimodais tradicionais, como por exemplo o anúncio publicitário em revista, que justapõe

    elementos textuais e imagéticos sem, contudo, promover a interação entre os mesmos.

    Primo (2007) afirma que a web 2.0 é a grande plataforma na qual se materializa a

    terceira geração da hipertextualidade. Vários atributos das produções audiovisuais e dos

    canais de vídeo na internet partilham dos pressupostos da web 2.0, como a ênfase na

    arquitetura de participação, a constante atualização e ampliação dos recursos e gadgets

    disponíveis aos usuários e a integração com outras plataformas da web.

    O site Youtube é hoje o principal repositório de vídeos da internet e um exemplo bem-

    sucedido, do ponto de vista comercial, do emprego das potencialidades da web 2.0. Desde

    dezembro de 2005, quando foi lançado, o site oferece crescentes funcionalidades relacionadas

    à visualização e disponibilização de vídeos, sem que seja necessário, para isso, o download  de

    8 Custom, numa tradução do inglês, refere-se a “personalização” ou “feito por encomenda”.9

     “O termo modalidade vem da Linguística e refere-se ao valor de verdade ou credibilidade de proposiçõeslinguisticamente realizadas sobre o mundo” (KRESS & VAN LEUWEEN, 2006, p. 155, tradução nossa)

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    qualquer software. Os criadores do serviço não escondem a intenção de fazer dele a nova

    imagética dominante no mundo10. Serviços de vídeo online como o ofertado pelo Youtube

    sedimentaram a popularidade da imagem em movimento na internet, um fenômeno recente

    que tomou o lugar dos demorados streamings  de vídeo que caracterizaram o momento

    anterior à web 2.0.

    Em exemplos como o descrito anteriormente, prevalece a estética da “ausência” de

    estética. Conforme Jespers (1998), os recursos amadores são usados para reforçar a verdade

    do que está sendo narrado, portanto, não seriam considerados falhas, mas recursos retóricos.

    “Uma imagem tremida, uma câmera inóbil, microfones em campo (...) dão uma impressão de

    verdade a tal ponto que o cinema adotou esta forma para reforçar a credibilidade das

    seqüências de ficção” (JESPERS, 1998, p. 68).

    Estudos preliminares por nós realizados11  corroboram a ideia de que as produções

    audiovisuais realizadas fora do circuito dos meios de comunicação tradicionais, por usuários-

     produtores, tendem a formar teias ou constelações de gêneros

    12

     discursivos, dentre os quais se poderiam citar o vídeo-depoimento, a paródia amadora, o videoclipe amador, entre outros.

    Embora não seja o objetivo principal do trabalho realizar um mapeamento exaustivo dessas

    categorias, elas são aqui mencionadas na perspectiva de salientar a complexidade  de tais

    agrupamentos de enunciações, que se multiplicam e demarcam espaços para além da própria

    internet, como se verá mais adiante.

    Uma inserção controversa

    É a celebração do amadorismo, dizem alguns, não escondendo sua decepção com os

    rumos propostos (ou impostos) pelas tecnologias da comunicação. Outros preferem qualificar

    o fenômeno como a cultura da participação – um mundo de portas abertas para a

    10 “Em dez anos, acreditamos que a difusão online de vídeo será a mais ubíqua forma de comunicação”(HURLEY, 2008).11 Com o objetivo de subsidiar dissertação de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação emLinguística da Universidade Federal do Ceará.12 Um conceito discutido em Araújo (2006) em relação aos chats da internet  e que pode ser sumarizado como“um agrupamento de situações sócio-comunicativas que se organizam por meio de pelo menos uma

    característica comum à esfera de comunicação que os congrega, partilhando do mesmo processo formativo eatendendo a propósitos comunicativos distintos” (ARAÚJO, 2006, p. 74)

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    democratização dos dizeres socialmente aceitos. A controvérsia se instala em torno da

     participação dos consumidores/usuários na produção e difusão de bens simbólicos midiáticos.

    Embora estejamos longe de um consenso a respeito do quão saudáveis são os impactos da

    entrada definitiva dos usuários no circuito da produção midiática, fato é que ela é hoje um

    fato consumado, aferível por meio de inserções diversas tanto em mídias tradicionais quanto

    naquilo que convencionamos chamar de novas mídias.

    Algumas visões contemporâneas nos ajudam a entender como a figura do usuário-

     produtor ou consumidor empoderado tem recebido atenção difusa, entre louvações e críticas.

    O ensaísta Andrew Keen, em O Culto do Amador (2009), faz uma incisiva crítica à figura do

    nobre amador – o usuário médio de internet que, investido das ferramentas tornadas

    cotidianas pela web 2.0, está ameaçando “virar de cabeça para baixo” (KEEN, 2009, p. 37) as

    instituições e tradições do mundo de hoje. A metáfora é respaldada pela tese de que a

    especialização e a divisão do trabalho são os legados mais importantes do capitalismo,

    conforme o raciocínio de autores como Adam Smith ( A Riqueza das Nações). Keen vê

    ameaças sobretudo à difusão do conhecimento e da informação, com a progressiva perda de

    espaço de figuras de autoridade como os editores de jornais. Em seu lugar, emergem os

    “jornalistas-cidadãos”, os editores voluntários da Wikipedia13  e outros, cada qual com sua

    verdade.

    Já Mazzeti (2009) mostra como esse tal empoderamento deve ser margeado por aspas.

    Isso porque a crescente liberdade dos usuários no manejo das ferramentas midiáticas nada

    mais representaria, sob um certo ponto de vista, que uma permissão concedida pelas

    corporações. Os usuários, dessa forma, experimentariam uma sensação de falsa autonomia

    estando, na verdade, trabalhando de graça para as emissoras de televisão, por exemplo.

    De outro lado, uma retórica otimista se espraia pela obra de autores como Henry

    Jenkins (2008), um entusiasta da chamada “convergência das mídias”14. Jenkins considera

    13 Enciclopédia colaborativa, que pode ser editada por qualquer usuário da internet. www.wikipedia.com14 Ele é um dos cientistas integrantes do programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Mídia, do

    MIT, mantém como um de seus projetos o Convergence Culture Consortium (Consórcio da Cultura deConvergência), ou C3 (http://www.convergenceculture.org/).

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    que a disseminação de ferramentais digitais possibilitou a contingentes mais amplos de

     pessoas passarem a exercitar uma espécie de cidadania midiática. Elas se tornaram sujeitos de

    enunciações capazes de fazer tanto ou mais sucesso que um programa de televisão ou notícia

    de jornal. O autor diz que a convergência de mídias, mais do que um processo técnico, é uma

    movimentação social em direção à construção de uma inteligência coletiva – que, se hoje é

    exercitada em meios recreativos (como as redes sociais), pode no futuro ser usada para fins

    outros, mais sérios.

    Televisão e participação

    Esse movimento de empoderamento e mudança de status dos usuários dos meios de

    comunicação, que tentamos esboçar até aqui, não ocorre sem precedentes. Afinal, os

    consumidores já reclamavam seus espaços no circuito midiático “tradicional”. Na história da

    mídia audiovisual brasileira, esse tipo de manifestação acontece com gradações diversas. O

    rosto do espectador comum aparece com freqüência em matérias jornalísticas de televisão,

     programas de auditório, reality shows, enquetes diversas e mesmo trabalhos de ficção, numa participação por ele não controlada sob qualquer aspecto. A participação se intensifica em

    experiências contra-hegemônicas, como as de televisão comunitária15  e outras iniciativas

    ligadas aos movimentos sociais16, que, no entanto, não foram capazes de deslocar o eixo de

     poder do complexo televisivo empresarial brasileiro, dominado há anos por empresas como a

    Rede Globo e o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT).

    Se a televisão nacional não tem sido, ao longo do tempo, um canal de participação

     plena da audiência (assim como corporação midiática nenhuma o foi, diga-se de passagem), éa essa audiência que os produtos midiáticos se endereçam e é para ela que buscam estabelecer

    diversas agendas. Ao mobilizar sentidos, sistematizar um espaço de problematização da

    dinâmica social e, ao mesmo tempo, promover por uma espécie de unificação silenciosa entre

    um universo de espectadores, os conteúdos televisivos acabam por adquirirem a posição de

    indispensáveis para se pensar identidades e culturas nos dias de hoje. Para tanto, a televisão

    15

     Descritas por autores como Peruzzo (2004).16 Compiladas por Downing (2004).

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     potencializa, em sua linguagem, lógicas próprias de manejo do simbólico. Cria, assim, um

    universo próprio, fechado em si mesmo, internamente consistente. A televisão (e a mídia

    como um todo) teria um valor ontológico, de princípio gerador do real (SUBIRATS, 1989, p.

    73)

    São muitas as ferramentas de que a tevê dispõe para supostamente gerar o real, nos

    termos usados por Duarte. Real no sentido de universos críveis, minimamente verossímeis e,

    sobretudo, reconhecíveis – ou estáveis, na acepção bakhtiniana ([1979] 2000). Os mundos da

    tevê – seus formatos e gêneros – ganham tipologias diversas, mas que em geral gravitam em

    torno de duas grandes categorizações: o ficcional e o real. É o que McQuail (2003) busca

    mostrar ao mencionar a tentativa de se abranger todas as produções televisivas em quatro

    tipos básicos concebidos em torno do grau de emocionalidade e objetividade. Segundo Berger

    (apud McQUAIL, 2003), autor da categorização, a intensidade de cada uma dessas variáveis

    em cada texto televisivo determina sua inserção em um tipo. São eles concursos, atualidades,

     persuasão e dramas.

     Nessa complexa cadeia de produção de sentidos, nada se dá ao acaso; tampouco se

    está lidando com uma mera colheita de uma realidade apreensível na totalidade. Charaudeau

    (2006) é enfático ao declarar que todo e qualquer acontecimento passa pelo filtro do olhar

    forjado no âmbito discursivo – instância pela qual os acontecimentos necessariamente devem

     passar antes de publicizados mediaticamente. O agente produtor, dessa forma, é investido de

    um papel importante, na medida em que compete a ele realizar tais operações de emolduração

    de sentidos.

    Porém, de alguns anos para cá, o papel de produtor de conteúdos passa por uma

    interessante mudança. É fato que executivos, diretores e roteiristas mantêm a primazia da

    atividade de formatar e executar produtos audiovisuais televisivos. São eles que detêm a

     palavra final sobre esses conteúdos (levando-se em conta a utilização corriqueira de pesquisas

    de audiência por parte das emissoras, que podem implicar em mudanças nos produtos). No

    entanto, é cada vez mais perceptível a permissão para que os espectadores integrem-se a esses

     produtos como co-autores dos mesmos.

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    As observações já realizadas ao longo da elaboração de nosso anteprojeto de mestrado

    apontam que alguns quadros de programas possuem como elemento central de sua

    textualidade produções enviadas, via internet, por espectadores. No Fantástico, revista

    eletrônica dominical da Rede Globo, quadros como Vc no Fantástico,  Bola Cheia e Bola

     Murcha, Vem com Tudo e Detetive Virtual utilizam-se de vídeos enviados por espectadores. O

     propósitos desses quadros são diversos. Eles comentam notícias (Vc no Fantástico),

    apresentam sugestões de abordagens ou comentários sobre temas polêmicos da internet

    ( Detetive Virtual), estimulam o surgimento ou publicização de novas tendências decomportamento (Vem com Tudo) ou integram uma espécie de game futebolístico ( Bola Cheia

    e Bola Murcha).

    Em outros programas, como o Domingão do Faustão, também da Rede Globo, a

     participação dos espectadores é igualmente estimulada. Quadros como Garagem do Faustão e

    vídeos enviados para os participantes do quadro Dança dos Famosos demarcam esse espaço

    concedido à "audiência". Tanto em uma como em outra atração, gêneros como o videoclipe

    amador e o video-depoimento convivem (ou eventualmente convergem) com quadros de

    variedades, entrevistas, matérias jornalísticas e outros gêneros prototipicamente televisivos.

    Em todos esses exemplos, as características da textualidade  televisiva não parecem

    fundamentalmente alteradas, em termos de sua constituição. Primeiro porque o regime de

    articulação dos campos semióticos segue o mesmo. A TV ainda não se apresenta como

    hipermodal, no sentido da aquisição de capacidades de interação direta com o espectador. O

    envio de vídeos por parte dos usuários ocorre por meio da internet17, ocupando a TV um papel

    de exibição, mais do que de troca. Além disso, tais produções recebem edição e não têm seu

    ritmo de exibição controlado por ferramentas como os botões  play  ou  pause, presentes em

    canais como o Youtube.

    Segundo, tais inserções amadoras são emolduradas a partir de variáveis/recursos

    assumidamente televisuais, como o videografismo. Os dois instantâneos de programa

    Fantástico mostrados abaixo, na Figura 2, revelam essa intervenção, capaz de adequar o

    17 No caso dos programas da Rede Globo, o envio é centralizado no portal da emissora, o G1 (g1.globo.com).

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    formato amador a padrões visuais da emissora (o uso de crédito em texto, no rodapé) com a

    mesma tipologia do restante do programa, mas, mais importante, buscar reproduzir  a estética

    associada a esses gêneros na ambiência da internet. Eis porque estão presentes os botões e

    controles de navegação pelo vídeo comuns nos canais de vídeo da web, como o Youtube. Mas

    (ainda) não é possível para o espectador, nos limites dos atuais controles remotos, dispor

    sobre tais comandos. A apropriação de formatos visuais parece simbolizar as noções de

    interatividade e colaborativismo, típicas da web 2.0, sem que, de fato, tais atributos sejam

    incorporados às enunciações em questão. No caso, sobressaem os constrangimentos, aslimitações, que cada suporte impõe aos conteúdos nele veiculados.

    Figura 2: Dois momentos de quadros do programa Fantástico, da Rede Globo: o quadro Vc no Fantástico e BolaCheia e Bola Murcha 

     Não se ignora que o repertório televisivo se renova de outras maneiras. Como

    exemplo, citamos a busca direta por conteúdo na internet. Sob a alcunha de “fenômeno da

    internet”, a cantora piauiense Stefhany foi apresentada no  Domingo Legal,  programa

    apresentado até pouco tempo por Augusto Liberato no SBT. Para descrever a trajetória da

    cantora, o programa recorreu aos vídeos (vários deles de aparência amadora) que haviam dado

    à artista notoriedade junto aos usuários do Youtube18.

    Bolter & Grusin (2002), ao discutirem a relação entre as mídias, postulam que

    qualquer mídia, em sua essência, se apropria das técnicas, das formas e do significado social

    18 É possível assistir a integra dessa edição do Domingo Legal no próprio Youtube, o que não deixa de

    corroborar a ideia de uma aproximação cada vez maior entre o audiovisual na internet e na televisão. O link éhttp://www.youtube.com/watch?v=_n9aw_F75QE.

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    de outra mídia. Assim, a história dos meios de comunicação seria, na verdade, a narrativa

    acerca de como os meios apropriam-se uns dos outros. A dupla de autores alcunha o termo

    remediação (remediation) para designar o processo pelo qual uma determinada mídia

    repagina (refashion) ou ressignifica atributos de outra. Para eles, a televisão vale-se dos

    recursos de outras mídias para evocar “imediatismo e autenticidade”, ideia que se coaduna

    com a argumentação de Charaudeau (2006) acerca do papel da imagem como capaz de

    autenticar (reforçar um efeito de verdade) certos discursos.

    Considerações finais

    Com o presente artigo, buscamos descrever como os gêneros de vídeo digital,

    sobretudo aqueles presentes no site Youtube, materializam alguns dos atributos da chamada

    web 2.0, quais sejam, o caráter colaborativo e compartilhado da produção de conteúdos. Mais

    do que isso, possibilitam ao usuário das mídias atingir um novo status: o de produtor , ainda

    que amador, de conteúdos capazes de romperem a barreira de uma audiência micro-

    localizada, para se tornarem efetivamente populares, no padrão de aferição das mídiastradicionais. Esse pretenso empoderamento (um conceito ainda a ser devidamente esmiuçado

    em sua adequação ao fenômeno aqui descrito) vingou, de certa forma, a figura do consumidor

    de mídia: após anos sendo representados pela teorias da comunicação como uma massa pouco

    autônoma, eles assumem o protagonismo de processos comunicativos relevantes ao ponto de

    chamarem a atenção da “grande mídia”.

    Alguns gêneros audiovisuais emergentes (TROSBORG, 2000) têm realizado a

    travessia entre internet e televisão. Contudo, conforme nossa argumentação, parecemtransmutar-se em função de fatores como o suporte  e o regime semiótico, diferentes na

    internet e na televisão. Esse trânsito de gêneros e também de conteúdos suscita discussões de

    diversas naturezas: tecnológica (aponta para um processo de convergência de suportes),

     jurídica (com as possíveis transgressões aos direitos autorais dos produtores audiovisuais),

    mas também linguística, nosso foco no presente trabalho. Defendemos, de forma introdutória,

    a potencialidade hipermodal das produções amadoras circulantes no Youtube, bem como sua

    capacidade de evocar determinados efeitos de verdade. Esperamos ampliar e qualificar tais

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    eixos de discussão em nossa dissertação de mestrado, que no momento se encontra em

    andamento.

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