cadernos da escola do legislativo nº 22 - julho/dezembro 2012

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22 CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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Esta edição dos Cadernos da Escola do Legislativo reúne sete artigos de Ciência Política, Ciência da Informação, Comunicação e Direito. Como pano de fundo comum, abordagens que ajudam a pensar o Poder Legislativo, suas relações com outros Poderes e a sociedade, bem como o exercício de suas funções.

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ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

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Volume 14 | Número 22 | julho/dezembro 2012

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2 MESA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

Deputado Dinis PinheiroPresidente

Deputado José Henrique1º-Vice-Presidente

Deputado Inácio Franco2º-Vice-Presidente

Deputado Paulo Guedes3º-Vice-Presidente

Deputado Dilzon Melo1º-Secretário

Deputado Alencar da Silveira Jr.2º-Secretário

Deputado Jayro Lessa3º-Secretário

SECRETARIA

Eduardo Vieira MoreiraDiretor-Geral

José Geraldo de Oliveira Prado Secretário-Geral da Mesa

Cadernos da Escola do Legislativo. - Vol.1, n.1,(jan./jun. 1994) - . Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Escola do Legislativo, 1994 - .

Semestral

ISSN 1676-8450

1. Ciência política - Periódicos. I. Minas Gerais. Assembleia Legislativa. Escola do Legislativo.

CDU 32(05)

EDIÇÃO

Guilherme Wagner RibeiroCeleno Ivanovo

ESCOLA DO LEGISLATIVO

Ruth Schmitz de Castro

REVISÃO

Izabela Moreira

PROJETO GRÁFICO

Gleise MarinoMaria de Lourdes Macedo Ribeiro

EDITORAÇÃO

Maria de Lourdes Macedo Ribeiro

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Editorial

Poderes Executivo e Legislativo e estabilidade democrática: um survey dos estudos empíricos

Fernando Ribeiro

Prestação de contas, transparência e participação em portais eletrônicos de câmaras municipais

Fabiano Maury Raupp e José Antonio Gomes de Pinho

Disseminação de informações no contexto das audiências públicas: análise do uso da internet como instrumento de comunicação pública na Câmara Municipal de Belo Horizonte

Diego Roger Ramos Freitas, Elisa Maria Pinto da Rocha, Maria Celeste Reis Lobo de Vasconcelos e Simone Cristina Dufloth

Mídia, opinião pública e legitimidade democrática

Ana Paola Amorim

O debate parlamentar dos temas econômicos no governo Dutra

Ricardo de João Braga e André Sathler Guimarães

Aspectos do regime estatutário e o regime celetista na administração pública

Antônio José Calhau de Resende

Hermenêutica constitucional comparada: a contribuição da aplicabilidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro

Thiago Penido Martins e Rodolpho Barreto Sampaio Júnior

Como publicar nos Cadernos da Escola do Legislativo

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CONSELHO EDITORIAL

Álvaro Ricardo de Souza CruzFaculdade de Direito da PUC Minas

Cláudia Sampaio CostaAssembleia Legislativa de Minas Gerais

Fabiana de Menezes Soares Faculdade de Direito da UFMG

Fátima AnastasiaCentro de Estudos Legislativos/ Departamento de Ciência Política da UFMGDepartamento de Relações Internacionais da PUC Minas

Márcio Santos Assembleia Legislativa de Minas Gerais

Marta Tavares de Almeida Instituto Nacional de Administração/Portugal

Ricardo CarneiroFundação João Pinheiro

Rildo MotaCentro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor)/Câmara dos Deputados

Roberto Romano Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Unicamp

Regina MagalhãesAssembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais

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Editorial

sta apresentação dos Cadernos da Escola do Legislativo nº 22 pode ser dividida em duas partes. Na primeira, retoma-se a dis-cussão sobre a política editorial deste perió-dico, reconhecendo avanços e identifican-do lacunas na edição. Na segunda parte, são apresentados os trabalhos que temos a satisfação de trazer a público.

Esta edição dos Cadernos incorpora algumas das diretrizes que orientam a política edito-rial deste periódico. A começar pela inter-disciplinaridade, na medida em que foram selecionados artigos de ciência política, ci-ência da informação, comunicação e direito, tendo como pano de fundo comum abor-dagens que ajudam, em alguma medida, a pensar o Poder Legislativo, suas relações com os demais Poderes e com a sociedade, bem como o exercício de suas funções. Um mapeamento dos autores cujos tra-balhos vêm a público nesta edição revela a presença de outras diretrizes, como o propósito de não ser uma publicação com-posta exclusivamente de pesquisadores regionais, por mais que um predomínio de mineiros seja compreensível. Três dos sete artigos que compõem a edição vieram, respectivamente, de São Paulo, do Paraná

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2 e do Distrito Federal, revelando que os Cadernos despertam interes-se em pesquisadores de diferentes regiões do Brasil. A presença de apenas um servidor da Assembleia Legislativa de Minas Gerais entre os autores também é uma diretriz que se faz presente nesta edição. Esse mapeamento, que pode também incorporar os artigos que não foram selecionados e os que estão em processo de avaliação, revela lacunas que apontam a necessidade de os Cadernos expandirem sua interação em dois sentidos opostos: de um lado, o interior do Estado, com especial atenção para as instituições de pesquisa, como a Uni-montes e as diversas universidades federais; e, de outro, o exterior, atentando-se para a produção acadêmica sobre o Poder Legislativo e o direito parlamentar em diferentes países e idiomas. Essa interação deve ocorrer tanto na captação de artigos para os Cadernos (as duas últimas edições tiveram publicação de autores espanhol e mexicano, respectivamente) quanto na divulgação da edição, nos formatos im-presso e eletrônico.

Registre-se aqui que todos os artigos foram submetidos a pareceris-tas com notório conhecimento em suas respectivas áreas, levando os autores, em alguns casos, a revisões pontuais de seus trabalhos e, em outros, a não publicação dos textos, por decisão dos próprios autores ou por orientação do parecerista. Não resta dúvida de que esse meca-nismo de avaliação é um processo que qualifica a comunicação cientí-fica no Brasil e, por isto, é critério elementar de avaliação de qualquer periódico. Já tivemos a oportunidade de externar que, como diretriz editorial dos Cadernos, buscamos o reconhecimento das avaliações de periódicos de diferentes áreas, desde que essa pretensão não compro-meta o propósito de esta publicação ser um veículo de comunicação entre pesquisadores acadêmicos e profissionais qualificados que estão no dia a dia da administração pública e da política.

Essa comunicação entre acadêmicos e profissionais da administração pública ou da política não é fácil, porque os pesquisadores não são induzidos pelos critérios de avaliação a produzir conhecimento para esse diálogo. São efeitos colaterais de um sistema de avaliação que, embora importante, precisa de aperfeiçoamento. Os pesquisadores obtêm melhor reconhecimento, por exemplo, se publicarem em re-vistas estrangeiras, ainda que para serem lidos por um número re-

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2duzido de pesquisadores altamente especializados. Os profissionais da administração pública e da política, por sua vez, preferem leituras rápidas com respostas específicas para os problemas do dia a dia, evi-tando textos densos que ofereçam, ora um panorama amplo de sua área de atuação, ora análises profundas, em ambos os casos, sem im-pacto direto em suas tarefas diárias. Esse diálogo é uma (re)constru-ção permanente da comunicação científica e este periódico, ao lado do curso de especialização e de outras iniciativas, é um instrumento para a sua promoção pela Escola do Legislativo.

No primeiro artigo, o professor Fernando Ribeiro, circulando com maestria pela literatura especializada, aborda tema caro para aque-les que se preocupam com o aperfeiçoamento do Poder Legislativo na ordem democrática: os vínculos entre o regime presidencialista, a relação entre Poderes e a estabilidade política. Para discutir o tema, o autor analisa resultados de diferentes pesquisas comparativas, esta-belecendo um nexo com a edição anterior deste periódico, que teve como eixo estudos comparativos de parlamentos.

Ainda na esteira dessa perspectiva, o segundo texto, dos professores Fabiano Maury Raupp e José Antonio Gomes de Pinho, examinam os portais eletrônicos de câmaras municipais de Santa Catarina, um de-bate valioso em momento no qual a sociedade cobra maior transpa-rência da gestão pública, notadamente a partir da promulgação da Lei de acesso à informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011). O texto revela que o avanço das novas tecnologias não é sequer parecido entre os diversos entes federativos, o que pode representar uma am-pliação das desigualdades. Encontramos menos empregos e menos recursos nas cidades pequenas, cujas populações são, em geral, de-crescentes, porque as pessoas migram em busca de melhor qualidade de vida. Ali encontramos também menor transparência na aplicação de recursos públicos. Os critérios adotados pelo autores para avaliar os portais são boas indicações para as autoridades locais que queiram aperfeiçoar suas estratégias de disponibilidade virtual de informações. O terceiro texto, de autoria de Diego Roger R. Freitas, Elisa Maria Pin-to da Rocha, Maria Celeste Reis L. Vasconcelos e Simone Cristina Du-floth, estabelece certa continuidade em relação ao texto anterior, ao

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2 abordar a conexão entre informação e câmara municipal. Todavia, o recorte metodológico é outro, porque foca o exame em um estudo de caso, a saber, o uso das novas tecnologias para a disseminação de informações referente às audiências públicas realizadas pela Câ-mara Municipal de Belo Horizonte no período de junho a dezembro de 2011. Na perspectiva da linha editorial deste periódico, o objeto da pesquisa da qual originou o artigo em questão desperta especial interesse. De um lado, porque, embora seja a audiência pública o principal instrumento de participação popular adotado pelas casas legislativas no Brasil, não recebe a devida importância das pesqui-sas acadêmicas. O artigo, evidentemente, não supre essa lacuna, mas oferece contribuição fundamental. O segundo aspecto refere-se ao olhar para a articulação de eventos presenciais e o uso das novas tec-nologias, comumente examinados de forma estanque.

O quarto texto, de autoria de Ana Paola Amorim, tem em comum com o trabalho anterior o tema da comunicação, mas trata-se de um trabalho de cunho teórico, no qual a autora aborda a correlação entre mídia, opinião pública e legitimidade democrática. Parte-se do su-posto de que o declínio da legitimidade democrática das instituições eleitorais – em especial, o Poder Legislativo – proporciona uma des-centralização dessa legitimidade, de forma que outras instituições ganham relevo, notadamente a mídia, que tem especial responsabi-lidade na formação da opinião pública. Mais importante que pensar qual instituição – parlamento, mídia, opinião pública, judiciário – tem maior destaque na produção da legitimidade em uma sociedade de-mocrática nos dias de hoje é refletir sobre as formas de (des)articula-ção e complementaridade entre elas. Se o artigo em tela cumpre esse propósito, fica a cargo do leitor avaliar.

O quinto artigo nos foi encaminhado pelos analistas legislativos da Câmara dos Deputados Ricardo de João Braga e André Sathler Gui-marães, para abordar o debate parlamentar dos temas econômicos. O artigo alimenta uma de nossas ambições editoriais: servir de ca-nal para a reflexão histórica que contribua para pensar o lugar do Poder Legislativo nas democracias. Um outro aspecto que nos pa-rece importante no trabalho refere ao olhar atento para os debates parlamentares, que constituem fonte de justificação e legitimidade

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2para as decisões legislativas. É surpreendente como tais debates são desconsiderados na interpretação das decisões legislativas aprova-das no Parlamento, como se decisões não tivessem vínculos com os discursos e pareceres que precedem a fase decisória.

Os dois últimos artigos que compõem esta edição derivam da área do direito. O primeiro deles – sexto da edição – oferece-nos uma am-pla análise jurídica da relação entre o servidor público e o Estado, abordando o tema também com uma perspectiva histórica, pois par-te da origem dessa relação, quando “os cargos pertenciam a determi-nadas famílias”, passando pelo importante marco da Constituição da República de 1988, até os efeitos de decisões recentes do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

Por fim, Thiago Penido Martins e Rodolpho Barreto Sampaio Júnior nos brindam com uma reflexão sobre a hermenêutica constitucional comparada. É importante a recuperação desse tema para pensar o lugar do Poder Legislativo na produção do direito, seja para reafirmar este Poder como um dos intérpretes em uma sociedade aberta a di-ferentes interpretações da Constituição, seja para reconhecer que o legislador não tem o controle dos sentidos que podem ser atribuídos à norma que ele produz, por mais que sejam aplicadas as melhores técnicas legislativas de redação.

Guilherme Wagner Ribeiro Editor

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Fernando RibeiroDoutor em Ciências Sociais pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciên-cias Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Professor do Depar-tamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Insti-tuto de Ensino e Pesquisa (Insper)

Resumo: O artigo busca apresentar uma sistematização dos principais tra-balhos que lidam com a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo nos sistemas presidencialistas e a estabilidade dos regimes democráticos. Nesse sentido, serão abordados, inicialmente, as concepções teóricas e institucio-nais que definem os sistemas presidencialistas, bem como os alegados pe-rigos institucionais que esse sistema de governo encerra. Segue-se com a resenha dos principais trabalhos empíricos sobre o tema. Por fim, as conside-rações finais apontam que o presidencialismo traz tanto quanto o parlamen-tarismo elementos que podem causar rupturas dos regimes democráticos.

Palavras Chave: Presidencialismo versus parlamentarismo. Relações Executi-vo/Legislativo. Estabilidade de regimes democráticos.

Abstract: The article tries to present a systematization of the main works that deal with the relationship between executive and legislative powers in presiden-tial systems and stability of democratic regimes. In this sense, it is initially appro-ached, the theoretical and institutional concepts that define presidential systems as well as the alleged dangers that this specific system of government brings to democratic stability. It follows with a review of major empirical studies on the topic. Finally, the conclusions point that presidential government system brings as much as parliamentary government elements that can cause disruptions of democratic regimes.

Key Words: Presidentialism vs. Parlamentarism. Executive-legislative branch re-lations. Democracy Stability.

Poderes Executivo e Legislativo e estabilidade democrática: um survey dos estudos empíricos

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2 1. Introdução

Na América Latina, grassariam não apenas os conhecidos de-sequilíbrios macroeconômicos, apresentados sob a forma de patologias monetárias como a inflação, ou sob a forma da não conversibilidade de suas moedas desaguando em recorrentes crises de Balanços de Pagamentos. Nesses tristes trópicos, não apenas as moedas se desvalorizam, mas também a democracia esvazia-se de sentido, na medida em que, de forma quase que simultânea, ao menos na América do Sul, os custos de tolerância ascendem enquanto a repressão à oposição e à concorrência po-lítica transforma os sistemas políticos em hegemonias fechadas.

Essa dinâmica, segundo boa parte da literatura em ciência polí-tica comparada, resultaria, em elevadíssima medida, de um úni-co elemento: o sistema de governo presidencialista (LINZ, 1991; SHUGART e CAREY 1992; SARTORI, 2001; AMES, 2003; STEPAN e SKACH, 1994). Se tal sistema, ademais, vier acompanhado de pluripartidarismo, as chances de tal vaticínio se elevam quase com certeza (MAINWARING, 1991). Assim, abaixo do Rio Gran-de, o presidencialismo encerraria os problemas de paralisia de-cisória, de rigidez institucional, de ambiguidades sobre a legiti-midade de ambos os Poderes, etc. Apesar disso, o sistema presidencialista foi a opção adotada pe-los países que ingressaram no marco da terceira onda de de-mocratização (HUNTINGTON, 1991). Como apontam Shugart e Carey (1992), os agentes relevantes na definição dos marcos institucionais não se deixaram levar pelas qualificações nega-tivas do presidencialismo em face das benesses institucionais do parlamentarismo, tão frequentes na literatura acima citada. Nesse contexto, em que novas constituições tinham que estabe-lecer os marcos institucionais básicos da vida política, emergi-ram dúvidas se haveria alguma relação entre estabilidade de-mocrática e sistema de governo. É nesse quadro que Linz (1991, p. 63) formula e traduz a temática de um debate que prevalece ainda no início do século XXI:

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2Pode ou não ser coincidência que tantos países com regimes presidencialistas tenham encontra-do sérias dificuldades para consolidar a democra-cia, mas, com certeza, a relação entre essas insti-tuições e o processo político merece mais atenção do que tem recebido (LINZ, 1991, p. 63).

No entanto, já se vai um quarto de século de transição para a democracia e os sistemas presidencialistas lograram, em boa medida, em manterem-se estáveis a despeito de choques econô-micos, políticos e sociais, incorporando em sua dinâmica alguns sucessos, especialmente no que diz respeito à consecução da estabilização monetária, bem como de uma agenda de natureza liberal em termos de ordenamento econômico. A literatura sobre sistemas de governo é abundante e, no ge-ral, desenrola-se ao redor dos traços institucionais definidores dos sistemas presidencialista e parlamentarista e dos sistemas mistos. Naturalmente, não apenas elementos institucionais per-meiam a literatura. Questões de natureza substantiva como os padrões de dinâmica política vigentes em cada sistema, bem como inquietações sobre elementos de natureza exógena que eventualmente se articulam com a estabilidade ou não dos re-gimes democráticos em diferentes sistemas de governo, cons-tituem, conjuntamente com a problemática das instituições, as aproximações com os sistemas de governo.

Em termos do desenvolvimento deste trabalho importa siste-matizar e cotejar diferentes definições institucionais do sistema presidencialista em regimes democráticos, não se precipitando, por ora, a se apresentar uma definição de democracia, elemento a ser tratado mais adiante, quando serão apresentados elemen-tos empíricos sobre as relações entre sistemas de governo e es-tabilidade democrática. Em duas frentes, a literatura da política comparada aponta para, e problematiza, a fragilidade do sistema presidencialista na manu-tenção do regime democrático. De um lado, a literatura crítica do presidencialismo estruturou seus argumentos a partir da espera-da influência das instituições presidencialistas sobre a dinâmica

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2 política em termos de estabilidade democrática (SUÁREZ, 1982; RIGGS, 1988; LIJPHARDT, 1991, 1992 e 2003; LINZ, 1991; LINZ e VALENZUELA, 1994; MAINWARING, 1991, 1992 e 1993; STEPAN e SKACH, 1993 e 1994; VALENZUELA, 2004). Por outro lado, es-tudos empíricos buscaram identificar correlações entre o sistema presidencialista e a probabilidade de ruptura de regimes demo-cráticos (MAINWARING, 1990, STEPAN e SKACH, 1993 e 1994).

Este artigo tem por objetivo questionar a linearidade da relação entre presidencialismo e instabilidade democrática. Para tanto, após esta introdução, são desenvolvidos os seguintes pontos: na próxima seção busca-se consolidar uma definição institucional do presidencialismo. Será apresentada uma definição institu-cional dos sistemas presidencialistas que os caracteriza, como o sistema em que os mandatos de ambos os Poderes são fixos e a manutenção de cada Poder não depende de mútua confiança. Os elementos que representam os “perigos do presidencialismo” são discutidos na terceira seção. Nesse ponto, ver-se-á como a legiti-midade dual, os mandatos fixos e o Executivo unipessoal podem levar à instabilidade dos regimes democráticos. A seção seguinte se desdobra sobre o objetivo do artigo. Nela são apresentados os estudos empíricos mais representativos e são colocados os ques-tionamentos que pretendem problematizar a linearidade da re-lação entre sistema presidencialista e estabilidade dos regimes democráticos. Por fim, são alinhadas as considerações finais.

2. Uma definição institucional dos sistemas presidencialistas

Uma primeira aproximação aos sistemas de governo pode ser apreendida com base na dicotomia apresentada por Verney (1992). Os sistemas presidencialistas e parlamentaristas são es-truturados como simétricos a partir de um eixo composto de 11 pontos, que abrangem desde o processo histórico/analítico de formação de cada um dos sistemas até as especificidades de di-visão (parlamentarismo) e fusão (presidencialismo) das figuras de chefe de Governo e de chefe de Estado, além da composição do governo como um órgão colegiado nos sistemas parlamen-taristas ou como figurado em uma única pessoa nos sistemas

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2presidencialistas. Lijphart (1991, 1992 e 1999) parece ter se apropriado dessa noção de Verney, segundo a qual um traço dis-tintivo entre os sistemas de governo seria a natureza do Execu-tivo em termos do estilo da tomada de decisão, proposição a ser analisada adiante.

Entre os 11 pontos levantados por Verney (1992), contempo-raneamente e em termos puramente institucionais, sustenta-se como necessária e suficiente para a caracterização dos sistemas de governo a separação histórica e institucional do governo e da Assembleia; o mandato presidencial fixo e a responsividade política do governo (proposições 1, 2, 7 e 8, respectivamente)1. Dessa forma, observa-se na literatura certo consenso de que as fronteiras analíticas propostas por Verney (1992) para distin-guir os sistemas de governo sofrem de redundâncias, bem como apontam elementos que, a rigor, não são suficientes para uma

1 Os pontos levantados por Verney (1992) referem-se a:1) A Assembleia torna-se Parlamento (parlamentarismo); a Assembleia se mantém apenas como Assembleia (presidencialismo). 2) O Executivo divide-se em duas partes (chefe de Estado e chefe de Governo) (parlamentarismo); o Executivo é um presidente eleito por um período definido. 3) O chefe de Estado aponta o chefe de Governo (parlamentarismo); o chefe de Estado é ao mesmo tempo chefe de Governo (presidencialismo). 4) O chefe de Governo aponta o Gabinete (parlamentarismo); o presidente nomeia os ministros, que são seus subordinados (presidencialismo). 5) O Gabinete ou o chefe de Governo é um corpo coletivo (parlamentarismo); o presidente é o único Executivo (presidencialismo). 6) Os membros do Gabinete são, em geral, membros da Assembleia (parlamentarismo); Os membros da Assembleia não são elegíveis para tomar parte do governo e vice-versa (presidencialismo). 7) O governo é politicamente responsivo à Assembleia (parlamentarismo); o Executivo é responsivo à Constituição (presidencialismo). 8) O chefe de Governo pode aconselhar o chefe de Estado à dissolução do Parlamento (parlamentarismo); o presidente não pode dissolver ou coagir a Assembleia (presidencialismo). 9) O Parlamento é soberano sobre suas partes constituintes – Assembleia e Gabinete (parlamentarismo); a Assembleia é, em última instância, soberana e não há fusão entre os Poderes como há no parlamentarismo (presidencialismo).

10) O governo é apenas indiretamente responsivo ao eleitorado (parlamentarismo); o Executivo é diretamente responsivo ao eleitorado (presidencialismo). 11) O Parlamento é o centro de poder do sistema político (parlamentarismo); não há centralidade do poder no sistema político (presidencialismo).

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2 tipologia dos sistemas de governo (MAINWARING e SHUGART, 1997; SHUGART e CAREY, 1992; CHEIBUB, 2007).

Avançando sobre os elementos suficientes e necessários para a definição institucional dos sistemas de governo presidencialis-tas democráticos, observa-se que a origem do Poder Executivo e da Assembleia nacional enraíza-se em processos eleitorais distintos. Do ponto de vista da sobrevivência de cada ramo do Poder, nem o Executivo pode dissolver a Assembleia e nem esta pode, por motivos políticos, destituir o chefe de Governo. De tal sorte que os traços institucionais puros do presidencialismo po-dem ser alinhados como abaixo se segue:

• Os mandatos de ambos os Poderes são fixos e a manutenção de cada Poder não depende de mútua confiança (SHUGART e CA-REY, 1992; SARTORI, 2001; LINZ, 1991; LIJPHART, 1991 e 1999; MAINWARING e SHUGART, 1994; CHEIBUB, 2007).

• O Executivo é escolhido por eleições populares diretas (SHU-GART e CAREY, 1992; LINZ, 1991; LIJPHART, 1991 e 1999; MAINWARING e SHUGART, 1994) ou indiretas, desde que a instância intermediária ratifique com elevadíssima frequência a vontade popular (SARTORI, 2001).

• A formação do governo (do gabinete ministerial) é prerrogati-va do chefe do Executivo (SHUGART e CAREY, 1992; SARTORI, 2001; LINZ, 1991), o qual é unipessoal em contraposição ao Executivo colegiado característico dos sistemas parlamenta-ristas (LIJPHART, 1991 e 1992).

Esses elementos institucionais, segundo uma vasta literatura que tem início com a terceira onda de redemocratização de meados dos anos 1980, tornariam os sistemas presidencialistas mais pro-pensos a rupturas dos processos de redemocratização do que os sistemas parlamentaristas (LINZ, 1991; SHUGART e CAREY 1992; SARTORI, 2001; AMES, 1995 e 2003; STEPAN e SKACH, 1994).

Os elementos institucionais acima apontados constituem pon-tos de convergência na literatura referenciada, no que tange à definição dos sistemas presidencialistas. Avaliando as propos-

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2tas de modificação do sistema de governo no Brasil, Amorim Neto (2006, p. 320) opta por traçar uma definição formal do sistema presidencialista com base na aceitação dos três traços institucionais apontados.

O traço institucional que deve ser frisado é a relação entre os Poderes em termos da sobrevivência de cada Poder ou, no caso do presidencialismo, justamente a sua sobrevivência indepen-dente (novamente a questão dos mandatos fixos). Assim, fun-damenta-se uma definição de presidencialismo e, mais ainda, uma tipologia dos sistemas de governo, que têm como primeiro parâmetro a responsividade do governo: sistemas em que o go-verno é responsivo à Assembleia definem-se, a princípio, como sistemas parlamentaristas ou mistos. De outro lado, sistemas em que a sobrevivência do governo não depende da Assembleia definem-se como sistemas presidencialistas, independente-mente da ocorrência de presidentes eleitos diretamente e/ou de sua prerrogativa de definir o ministério (CHEIBUB, 2007).

Um segundo parâmetro é justamente a existência ou não de um presidente independentemente eleito. Dessa forma, dada a responsividade do governo à Assembleia, a ausência de um presidente eleito diretamente define a ampla maioria dos sis-temas parlamentaristas. Porém, em havendo, nesse caso, um presidente independentemente eleito, pode-se ter um sistema parlamentarista ou misto. A distinção entre ambos os sistemas reside, uma vez mais, na sobrevivência do governo: sistemas em que os governos respondem apenas à Assembleia serão parla-mentaristas. Sistemas mistos emergem quando a sobrevivência do governo depende tanto da Assembleia quanto do presidente.

Dessa forma, pode-se defender que os sistemas presidencia-listas caracterizam-se fundamentalmente pela sobrevivência independente do governo em relação à Assembleia, o mesmo sendo estendido à sobrevivência da Assembleia. Como visto, a existência de presidentes diretamente eleitos mostra-se como elemento presente também em sistemas mistos e parlamenta-ristas. Além disso, a prerrogativa de dirigir o governo reduz-se à questão da composição colegiada ou unitária do Poder Execu-

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2 tivo, que reproduz um traço do sistema eleitoral e não um pa-drão institucional próprio aos sistemas de governo. Conclui-se, então, que os sistemas presidencialistas caracterizam-se por:

• mandatos de ambos os Poderes são fixos e a manutenção de cada Poder não depende de mútua confiança (SHUGART e CA-REY, 1992; SARTORI, 2001; LINZ, 1991; LIJPHART, 1991, 1992 e 1999; MAINWARING e SHUGART, 1994; CHEIBUB, 2007).

Portanto, ao se restringir a definição institucional do presiden-cialismo tem-se aquilo que Sartori (2001, p. 100) designa como uma lógica sistêmica, desde logo o “ponto geral” segundo o qual é possível se agrupar os diferentes sistemas de governo.

3. Os perigos do presidencialismo: elementos institucionais

As críticas aos traços institucionais do presidencialismo e como tais traços ampliam as possibilidades de ruptura dos regimes de-mocráticos encontram tradução máxima em Linz (1991). O autor aponta quatro pontos que potencializam a ruptura da poliarquia nos sistemas presidencialistas: a) legitimidade dual; b) mandatos fixos; c) jogo de soma zero; e d) estilo da política nos sistemas presi-dencialistas. Os dois primeiros pontos remetem, respectivamente, à origem e à sobrevivência distinta dos Poderes. O terceiro mostra-se como consequência dos dois anteriores. A questão do estilo da política nos sistemas presidencialistas resultaria na concentração das chefias de Governo e de Estado na figura do presidente.

A partir dos elementos constitutivos dos sistemas de governo, Lijphart (1992) aponta três desvantagens do presidencialismo em relação ao parlamentarismo no que diz respeito à estabilidade da ordem poliárquica: a) impasse decisório entre os ramos do Poder; b) mandatos fixos; e c) jogo de soma zero, que esse ator articula a caracterização de sistema majoritário ao presidencialismo.

1 – Origem distinta: legitimidade dual

Dos três elementos apontados como desestabilizadores dos regimes presidencialistas, a questão do reclame de legitimida-

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2de democrática pelos dois agentes do eleitorado (Executivo e Assembleia) mostra-se como o mais relevante. Uma vez que a origem de cada Poder é separada mediante diferentes pleitos eleitorais, e dado que a sobrevivência de cada Poder é indepen-dente entre si, constitui-se uma estrutura institucional em que os incentivos para cooperação entre ambos os ramos do Poder são escassos, ocasionando eventos de paralisia decisória (SHU-GART e CAREY, 1992; LIJPAHART, 1992; LINZ, 1991; STEPAN e SKACH, 1993 e 1994; COX e McCUBBINS, 1993). Decorre da dualidade democrática, portanto, a falta de incenti-vos para a construção de coalizões de governo, na medida em que a sobrevivência do Executivo não depende da formação de maiorias na Assembleia (MAINWARING, 1990). Trata-se, nesse caso, de um resultado político fruto do desenho institucional presidencial, que se mostra oposto à necessidade de formação de coalizões de governo nos sistemas parlamentaristas de na-tureza mais consociada (SHUGART e CAREY, 1992; STEPAN e SKACH, 1993 e 1994).

Assim, uma forma de se “resolver” os impasses no processo de-cisório relativos à legitimidade dual dos ramos do Poder seria atribuir mais poder ao Executivo em detrimento da Assembleia. Isto resulta na ambiguidade das constituições presidenciais, que buscam dotar de mais poder o Executivo, com vistas à go-vernabilidade; mas, de outro lado, mantêm suspeitas sobre a concentração de poder no Executivo (LIJPHART, 1992).

Aponta-se, portanto, uma contradição na estrutura institucional do presidencialismo. De um lado, o presidencialismo reproduz em grau elevado as características de uma democracia majori-tária. De outro, os presidentes podem mostrar-se vulneráveis ou fracos em relação ao apoio do Congresso à sua agenda legislativa. A origem democrática do chefe do Executivo, juntamente com a concentração das chefias de Governo e de Estado, pode dar à fi-gura presidencial a impressão de imensos poderes para executar seu plano de governo, prescindindo de se buscar a construção de coalizões partidárias na Assembleia (SHUGART e CAREY, 1992; MAINWARING, 1990, 1991; STEPAN e SKACH, 1993 e 1994).

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2 Uma qualificação mostra-se inescapável nesse momento: tais elementos são, na verdade, de natureza substantiva, pois nada garante que os presidentes se sintam continuamente inflados de um “empuxo plebiscitário” que os prescinda de articular coali-zões partidárias na Assembleia, ao longo de todo o seu mandato e entre diferentes presidentes.

Se ampliar os poderes presidenciais traz riscos para o sistema político, o sistema eleitoral poderia implicar restrições ao exer-cício do Poder Executivo por meio de cláusulas constitucionais relativas à proibição de reeleição (proibição de reeleição em geral, proibição de reeleição imediata, apenas uma reeleição). Contudo, tais cláusulas parecem amplificar os elementos de ins-tabilidade dos sistemas presidencialistas: tornam o presidente mais fraco no seu único ou último mandato recolocando a ques-tão da paralisia decisória; aprofundam o problema resultante da sobrevivência independente dos Poderes, na medida em que os mandatos fixos implicam o dilema do que fazer com um pre-sidente minoritário e/ou impopular e imprime a decisão sobre o destino de um presidente bem-sucedido eventualmente im-possibilitado de dar continuidade a sua gestão. Além disso, proi-bições à reeleição esvaziam a natureza democrática da escolha do chefe do Executivo (LIJPHART, 1992).

2 – Sobrevivência independente: mandatos fixos

Mandatos fixos tanto para o Poder Executivo quanto para a As-sembleia, elementos que remetem à independente sobrevivência de cada Poder, dotam o sistema de uma rigidez que lhe impossibi-lita resolver eventuais crises entre ambos os Poderes. Dessa for-ma, podem-se ter presidentes minoritários que não conseguem fazer prevalecer suas preferências de políticas públicas na As-sembleia: presidentes minoritários têm como contrapartida com-posições partidárias oposicionistas na Assembleia (SHUGART e CAREY, 1992; STEPAN e SKACH, 1993 e 1994). Mas não é apenas isso, a sobrevivência independente do gover-no e da Assembleia leva à indisciplina partidária, na medida em que a sustentação do governo não depende da convergência

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2entre as preferências dos legisladores e do Executivo. Ou seja, a impossibilidade de dissolução do governo por parte do Executi-vo e a definição de novas eleições para a Assembleia libertam os legisladores de seu compromisso com a sustentação do governo, resultando, portanto, em indisciplina partidária (LINZ, 1991). A estabilidade do Executivo nos sistemas parlamentaristas de-pende da manutenção da confiança na Assembleia. Nesse senti-do, seja por meio da substituição do líder do partido majoritário na coalizão e, portanto, do primeiro-ministro, seja por meio da retirada de apoio de algum partido da coalizão, mudanças no gabinete representam apenas mudanças no governo sem a ne-cessidade de uma ruptura da ordem democrática. Dessa forma, a instabilidade de gabinetes representaria antes um elemento institucional capaz de fazer frente a mudanças políticas ou a mudanças nas preferências dos eleitores do que um elemento a tornar instável a ordem poliárquica. 3 – Executivo unipessoal – winner-take-all game

Uma vez que o centro do poder político está alocado na chefia do Poder Executivo, “os vencedores e perdedores são definidos em função do mandato presidencial, período durante o qual não há esperança de mudanças” (LINZ, 1991, p. 71). Ou seja, “os per-dedores terão de esperar quatro ou cinco anos para ter algum acesso ao Poder Executivo e, portanto, para participar da for-mação de gabinetes e poder distribuir recursos aos seus par-tidários” (LINZ, 1991, p. 71). Trata-se, então, de se qualificar o sistema presidencialista como um jogo de soma zero.

Nesse contexto, em que a cadeira presidencial é o principal ob-jetivo do jogo político e em que os mandatos fixos imprimem aos perdedores o senso de derrota durante todo o mandato presidencial, o processo eleitoral eventualmente ganha contor-no de radicalismo e de tensão (LINZ, 1991, p. 70-3). Ademais, em função da independência da sobrevivência entre os Poderes, não há incentivos para que a coalizão vitoriosa envolva os per-dedores em negociações para formação de gabinetes. De fato, os perdedores da corrida eleitoral para a chefia do Executivo, por

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2 seu lado, nada têm a ganhar ao disponibilizar qualquer forma de apoio ao presidente recém-eleito, constituindo mais um ele-mento de imobilização (SHUGART e CAREY, 1992).

Tais traços contrastam com o fato de que, nos sistemas parla-mentaristas, “compartilhar o poder e formar coalizões é muito comum, e os legisladores estão, portanto, muito atentos a de-mandas e interesses dos partidos menores” (LINZ, 1991, p. 74). Dessa forma, uma medida básica de desproporcionalidade da representação na figura do chefe do Executivo diz respeito sim-plesmente ao fato de que 100% das cadeiras são obtidas pelo candidato que obtiver mais votos do que seus oponentes, o que nem sempre significa uma vitória com maioria absoluta. Portan-to, o primeiro traço da natureza majoritária do presidencialis-mo traduz-se, simplesmente, na diferença entre 100% dos votos e a parcela dos votos obtidos pelo candidato vencedor. Assim, “o resultado é que o chefe de Estado e o chefe de Governo podem representar apenas uma minoria dos votos” (SHUGART e CAREY, 1992, p. 30 – citação traduzida pelo autor).

Diante de tais vaticínios, a estabilidade do regime democrático parece frágil nos sistemas presidencialistas. Porém, o que a evi-dência empírica mostra não é exatamente o que se esperaria a partir da resenha teórica acima desenvolvida.

4. Estudos empíricos

A separação dos Poderes, em termos de origem democrática e sobre-vivência, resultaria na maior probabilidade de rupturas democrá-ticas em sistemas presidencialistas do que em sistemas parlamen-taristas, nos quais vige o voto de censura. Diante dessa assertiva, também traduzida na citação de Linz (1991, p. 63), envidaram-se esforços de natureza empírica para se confirmar ou refutar as espe-radas relações entre sistema de governo e estabilidade democrática.

Dessa forma, uma primeira aproximação indicaria “a forte cor-relação entre democracias estáveis e sistemas parlamentaristas” (MAINWARING, 1990, p. 7 – citação traduzida pelo autor). Assim,

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2entre as 25 democracias mais estáveis (longevidade de pelo me-nos 30 anos; o autor utiliza uma amostra entre 1959 e 1989), ape-nas quatro operavam sob sistemas presidencialistas, outras três, sob sistemas híbridos e as 18 restantes eram parlamentaristas2.

Contudo, apontar que, entre as democracias mais longevas, os sistemas parlamentaristas são mais frequentes, não diz nada sobre as relações entre estabilidade do regime democrático e sistema de governo simplesmente porque a avaliação dessas relações deve ter como universo de análise justamente os pro-cessos de ruptura da ordem democrática. Ou seja, se em 1959 havia maior número de democracias parlamentaristas do que presidencialistas, pode-se chegar a 1989 com o mesmo resul-tado, ainda que para cada democracia parlamentarista mantida estável tenha havido mais rupturas do que para cada democra-cia presidencialista estável. Conforme será tratado adiante, importa avaliar a proporção en-tre regimes democráticos instáveis e estáveis ao longo do tem-po, levando-se em conta os sistemas de governo, bem como ou-tros elementos que, por hipótese, possam mostrar-se relevantes para a estabilidade/instabilidade dos regimes democráticos.

Seguindo as proposições de Linz (1991), segundo as quais a es-tabilidade de regimes democráticos é mais frágil em sistemas presidencialistas, Stepan e Skach (1993) buscam construir uma fundamentação empírica para:

[...] o argumento teórico de que as democracias parlamentares tendem a aumentar os graus de liberdade que facilitam a importante tarefa de reestruturação econômica e social das novas de-mocracias, bem como ajudam a consolidar as ins-tituições democráticas. (p. 4 – citação traduzida pelo autor).

2 O autor considera os casos da Colômbia e da Índia como discutíveis em termos de manutenção e exercício da ordem democrática. Também aponta as contro-vérsias sobre os sistemas de governo da França e da Finlândia, embora os clas-sifique como sistemas híbridos (semipresidencialismo).

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2 Escrevendo num momento em que processos de redemocrati-zação vinham se concluindo a partir da fragmentação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e que, portanto, ar-ranjos constitucionais vinham sendo definidos em grande me-dida a favor da adoção de sistemas presidencialistas, os autores demonstram preocupação com “a virtual não adoção de siste-mas parlamentaristas pelas novas democracias” (p. 4 – citação traduzida pelo autor). Assim, principiam seu argumento empíri-co observando as relações entre o número efetivo de partidos e os sistemas de governo numa amostra extremamente reduzida: 41 países que à época constituíam a Organização para a Coo-peração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que figuram como democracias estáveis entre 1979 e 1989.

A conclusão é que sistemas parlamentaristas operam com um número maior de partidos efetivos do que sistemas presiden-cialistas, circunstância que traduz a inexistência de estímulos à consolidação de coalizões necessárias para a estabilidade da democracia em sociedades com clivagens econômicas, étnicas, religiosas, etc. (STEPAN e SKACH, 1993, p. 6). Contudo, observan-do-se os dados trazidos pelos autores, verifica-se que a conclu-são é falsa, pois, do total de 41 países, 36 são parlamentaristas e destes apenas 11 apresentam sistemas multipartidários (30,5% da amostra). Todo o restante dos sistemas parlamentaristas apre-senta sistemas partidários com menos de três partidos efetivos.

O fato de que, na totalidade da amostra de sistemas presiden-cialistas, apenas em cinco países não há sistemas multipartidá-rios, não pode se constituir em causa para extrapolações que abracem a instabilidade democrática de outros sistemas pre-sidencialistas. Afinal, sistemas presidencialistas com sistemas bipartidários também entram em colapso, bem como sistemas parlamentaristas multipartidários também colapsaram no perío-do entre as guerras do século XX.

Além disso, observa-se que, em sistemas presidencialistas, o sistema partidário sempre operará, segundo a literatura, contra a estabilidade do regime democrático: poucos partidos efetivos significam incapacidade de construção de coalitional behavior,

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2tão necessário para acomodar clivagens no sistema político (STEPAN e SKACH, 1993, p. 6). De outro lado, o presidencialis-mo e o multipartidarismo confundem-se como causas de ins-tabilidade para a democracia, na medida em que reduziriam a possibilidade de governos majoritários (MAINWARING, 1990, 1991, 1993 e 1997).

Seguindo em sua busca por “provar” empiricamente as deficiências das instituições presidencialistas na manutenção da democracia, os autores correlacionam eventos de golpes militares de Estado com sistema de governo. Os autores não apresentam qualquer de-finição de democracia, mesmo reducionista e procedimental como é a tradição nessa espécie de estudo comparativo. A amostra para avaliar essa relação (golpe de Estado e sistema de governo) é dis-tinta de outras utilizadas no texto. De fato, as amostras parecem ser definidas de acordo com o argumento que se quer defender.

Dessa forma, apoiados em uma amostra de 53 países (excluídos países da OCDE), este é o critério dos autores para definir países onde estabilidade e prosperidade econômica poderiam ser en-dógenas à estabilidade democrática. Vale dizer que a utilização de PIB per capita seria mais adequada, que entre 1973 e 1989 estruturaram um regime democrático por ao menos um ano. Os autores concluem também, sem apresentar precisões conceitu-ais sobre o que seria um golpe de Estado militar, que, de 25 países presidencialistas que mantiveram-se democráticos por ao menos um ano, 10 passaram por golpes de Estado levados a cabo por militares, ao passo que, dos 28 sistemas parlamentaristas, ape-nas cinco foram desestabilizados por golpes de Estado (STEPAN e SKACH, 1993). As rupturas são dadas pelo valor do Gastil Political Right Scale. A metodologia de cálculo do referido índice e as jus-tificativas para a utilização de determinado valor do índice como tradutor da ruptura democrática não são apresentadas.

Shugart e Carey (1992), que se quer dialogam com o trabalho de Stepan e Skach (1993), apontam que a metodologia utilizada por Mainwaring (1990) é frágil em três pontos: primeiro, não esgota o processo político de todo o século XX (amostra de 1959 a 1989). Em segundo lugar, e como decorrência, sua amostra não contem-

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2 pla os períodos de ruptura da democracia que mais acometeram os sistemas parlamentaristas (Entre-guerras). Em terceiro lugar, superestima as derrocadas da ordem democrática sob sistemas presidencialistas ao incluir os períodos de falência da democracia que mais assolaram os sistemas presidencialistas entre meados dos anos 1960 e 1970, especialmente na América Latina.

Além disso, em quarto lugar, dado que a inclusão de algum país na amostra de democracias estáveis requer pelo menos 30 anos de estabilidade, vários sistemas presidencialistas nascidos dos processos de redemocratização na América Latina e no Centro e Leste Europeu, nos anos 1980 e 1990, não constam da amos-tra. Dessa forma, em contraste com o que aponta Mainwaring (1990), nada pode ser afirmado sobre a estabilidade/instabi-lidade da democracia em sistemas presidencialistas recém-de-mocratizados (SHUGART e CAREY, 1992).

Atentos a tais limitações, Shugart e Carey (1992, p. 39-43) bus-cam apontar correlações entre rupturas da ordem democrática e sistemas de governo partindo da expectativa de que os siste-mas presidencialistas são mais propensos a falências da ordem democrática do que os sistemas parlamentaristas. Inicialmente, apresenta-se uma composição das rupturas democráticas se-gundo sistemas de governo. Assim, os autores indicam que, ao longo do século XX (até 1991), de 39 rupturas de regimes demo-cráticos, nada menos que 21 (53,8%) ocorreram sob sistemas parlamentaristas, 12 (30,1%), sobre sistemas presidencialistas e 6 (15,4%), em sistemas híbridos. Assim, “nosso maior número de fracassos parlamentaristas do que presidencialistas é algo que não se poderia esperar com base na literatura em ciência política comparada” (p. 40 – citação traduzida pelo autor). Entretanto, eventualmente a correlação entre falência da demo-cracia e sistema parlamentarista pode estar errada se, primeiro, de maneira geral, o sistema parlamentarista for mais frequente do que a divergência entre as taxas de ruptura democrática entre os sistemas parlamentaristas e os sistemas presidencialistas. Em segundo lugar se, entre os países subdesenvolvidos, a frequência de sistemas parlamentaristas for maior do que a de sistemas

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2presidencialistas; a composição das falências da ordem demo-crática, segundo sistemas de governo, pode estar superestiman-do a fragilidade institucional dos sistemas parlamentaristas.

Diante disto, a Tabela 1, elaborada a partir de Shugart e Carey (1992, p. 38-43), indica que: 1) sistemas parlamentaristas são, em geral, mais frequentes do que sistemas presidencialistas (48 casos contra 24); 2) ainda em termos gerais, ou seja, consoli-dando os casos dos países desenvolvidos com os dos países em desenvolvimento, metade dos regimes democráticos com sis-tema presidencialista não se manteve (50%), ao passo que tal proporção nas democracias parlamentaristas cai para 43,8%3. Ou seja, atrelar a análise apenas à composição das rupturas se-gundo sistemas de governo pode ser equivocada como aponta-do acima: 21 rupturas nos sistemas parlamentarias vis-à-vis, 12 nos sistemas presidencialistas.

Tabela 1 – Rupturas e estabilidade democrática segundo sistemas de governo e desenvolvimento econômico (números absolutos e %) – Ob-servações até 1991

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Shugart e Carey (1992).

Países desenvolvidos e países em desenvolvimento

Parlamentarismo Presidencialismo

Rupturas Estabili-dade Total Rupturas/

Total (%) Rupturas Estabili-dade Total Rupturas/

Total (%)

21 27 48 43,8 12 12 24 50,0

Países em desenvolvimento

Parlamentarismo Presidencialismo

Rupturas Estabili-dade Total Rupturas/

Total (%) Rupturas Estabili-dade Total Rupturas/

Total (%)

13 9 22 59,1 12 11 23 52,2

3 Os autores consideram uma democracia estável caso tenha havido ao menos duas eleições subsequentes. Além disso, a estabilidade democrática implica uma efetiva substituição de regime e não um ajustamento, ou seja, uma ruptura da ordem democrática que é seguida pela recolocação dessa ordem não é conta-da como uma falência da democracia (SHUGART e CAREY, 1992, p. 39).

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2 Avaliando-se segundo o desenvolvimento econômico, tem-se que: (1) qualquer dos sistemas de governo é mais ineficaz na manutenção da democracia entre os países em desenvolvi-mento do que no total dos países e, portanto, é mais ineficaz do que nos países desenvolvidos; (2) das 22 democracias par-lamentaristas situadas nos países em desenvolvimento, ape-nas nove mantiveram-se estáveis e outras 13 se romperam, resultando na proporção de 59,1%. Entre as democracias presidencialistas, pouco mais da metade (52,2%) foi assola-da pelos “perigos do presidencialismo”. É relevante apontar que essa observação é construída justamente com relação àquela parcela do mundo “(...) onde o sucesso de qualquer tipo de democracia tem sido mínimo [...]” (p. 40 – citação tra-duzida pelo autor).

Essas taxas apresentadas pelos autores informam para cada de-mocracia (seja estável ou não) quantas foram as ocorrências de rupturas. Contudo, outra forma mais eficaz de se medir a “taxa de ruptura” da ordem democrática, segundo sistemas de gover-no, é a razão ruptura/estabilidade, ou seja, para cada ocorrên-cia de sucesso na manutenção da democracia, quantos regimes democráticos foram derrubados. Os autores não exploram essa possibilidade analítica que é estruturada neste trabalho a partir dos dados levantados pelos próprios autores.

Assim, a Tabela 2 mostra esses valores com base nas informa-ções de Shugart e Carey (1992). Aponta-se que, para o total dos países, para cada democracia parlamentarista estável, menos de uma (0,8) democracia parlamentarista é derrubada. No caso dos sistemas presidencialistas, essa proporção eleva-se à unida-de. Tal desproporção resulta da maior frequência de países ricos no conjunto de sistemas parlamentaristas e, portanto, está além de explicações de natureza institucional.

Contudo, controlando-se para o desenvolvimento econômico, observa-se, uma vez mais, que as democracias parlamentaristas nos países subdesenvolvidos são mais frágeis do que as demo-cracias presidencialistas. De fato, para cada democracia parla-mentarista mantida estável até 1991, nada menos do que 1,44

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democracia parlamentarista experimentou uma mudança no regime político. Entre as democracias presidencialistas, tal pro-porção é significativamente menor (1,1).

Tabela 2 – Rupturas, estabilidade democrática e “taxa de ruptura” se-gundo sistemas de governo e desenvolvimento econômico (números absolutos e razão) – Observações até 1991

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Shugart e Carey (1992).

Em estudo posterior, Mainwaring e Shugart (1997) apresentam um detalhamento maior das relações entre sistemas de governo e estabilidade/instabilidade dos regimes democráticos4. A par-tir do levantamento sistemático da Freedom House, os autores identificam 33 países que lograram manter a estabilidade de-mocrática entre 1972 e 1994. Buscando qualificar a manutenção da democracia nesses 33 países, segundo condições além dos arranjos institucionais dos sistemas de governo, Mainwaring e Shugart (1997) introduzem três variáveis que eventualmente respondem pelas condições

Países desenvolvidos e países em desenvolvimento

Parlamentarismo Presidencialismo

Rupturas Estabili-dade

Taxa de Ruptura(Ruptura/Estabilidade) Rupturas Estabili-

dadeTaxa de Ruptura

(Ruptura/Estabilidade)

21 27 0,8 12 12 1,0

Países em desenvolvimento

Parlamentarismo Presidencialismo

Rupturas Estabili-dade

Taxa de Ruptura(Ruptura/Estabilidade) Rupturas Estabili-

dadeTaxa de Ruptura

(Ruptura/Estabilidade)

13 9 1,4 12 11 1,1

4 Os autores adotam uma definição bastante pragmática de democracia: valen-do-se da estrutura classificatória da Freedom House, são considerados demo-cráticos países que obtiveram média menor ou igual a três no índice de direitos políticos e que em nenhum ano o índice de direitos políticos ou de liberdades civis foi maior do que quatro.

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2 de ruptura ou de estabilidade da poliarquia: classificação dos países segundo os critérios do Banco Mundial (baixa e baixa-média renda, alta-média renda e alta renda) a partir dos valores do Produto Nacional Bruto (PNB) per capita em dólares corren-tes em 1994; tamanho populacional (micro, pequenos e médio-grandes Estados) e herança colonial britânica. Embora as vari-áveis população e herança colonial britânica sejam relevantes, será despendida maior atenção às correlações entre PNB per capita e manutenção da democracia na amostra apresentada pelos autores.

Dessa forma, uma primeira aproximação mostra que, entre as 33 democracias estáveis, dois terços encontram-se no grupo de alta renda per capita. Mais ainda, entre as 22 democracias es-táveis desse grupo, nada menos do que 15, ou 68% delas, são parlamentaristas. Assim, o sistema parlamentarista aparece como mais estável em relação ao presidencialismo com apenas duas ocorrências no grupo de países mais ricos, ou seja, menos de 10% dos casos (Tabela 3). A estabilidade das democracias parlamentaristas pode não decorrer dos desenhos institucio-nais próprios a esse sistema de governo, mas sim em decor-rência de processos históricos que resultaram na sua implan-tação nos países que se industrializaram ao longo do século XIX (MAINWARING e SHUGART, 1997).

Tabela 3 – Democracias estáveis entre 1972-1994 segundo sistemas de governo e PNB per capita (números absolutos e %)

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Mainwaring e Shugart (1997).

Sistema de Governo segundo PNB per capita

Presidencialista Parlamentarista Outros Total

Nº % dototal Nº % do

total Nº % dototal Nº % do

total

Baixo eBaixo-médio 3 50 2 9,1 0 0 5 15,2

Alto-médio 1 16,7 5 22,7 0 0 6 18,2

Alto 2 33,3 15 68,2 5 100 22 66,7

Total 6 100 22 100 5 100 33 100

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2Agregando-se os resultados do processo de redemocratriza-ção iniciado em meados dos anos 1980, os autores apresen-tam uma nova amostra com 57 democracias estáveis há pelos menos 10 anos, provendo um “olhar completo sobre as de-mocracias contemporâneas, que duraram ao menos 10 anos” (MAINWARING e SHUGART, 1997, p. 24 – citação traduzida pelo autor). Nessa amostra, observa-se que: (1) o presidencia-lismo é mais frequente em países com renda per capita baixa, baixa-média e alta-média (84,6% dos casos presidencialistas estão nessas faixas de renda); (2) sistemas parlamentaristas agora aparecem com maior frequência entre as faixas menores de renda do que na amostra anterior, contudo, em relação à distribuição do sistema presidencialista nessas faixas de ren-da, as democracias parlamentaristas são relativamente menos frequentes (55,3% dos casos parlamentaristas) (Tabela 4). Entretanto, todas as democracias parlamentaristas nessas ca-tegorias de renda são ex-colônias britânicas e pouco mais da metade são micro ou pequenos Estados. Por fim, (3) os siste-mas presidencialistas são exclusivos a países com mais de 5 milhões de habitantes.

Tabela 4 – Democracias estáveis desde pelo menos 10 anos (até 1994) segundo sistemas de governo e PNB per capita (números absolutos e %)

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Mainwaring e Shugart (1997).

As conclusões gerais em relação às democracias estáveis há pelo menos 10 anos (até 1994) são de que: os sistemas par-lamentaristas são mais frequentes em países com renda alta

Sistema de Governo segundo PNB per capita

Presidencialista Parlamentarista Outros Total

Nº % dototal Nº % do

total Nº % dototal Nº % do

total

Baixo eBaixo-médio 8 61,5 12 31,6 0 0 20 35,1

Alto-médio 3 23,1 9 23,7 1 16,7 13 22,8

Alto 2 15,4 17 44,7 5 83,3 14 42,1

Total 13 100 38 100 6 100 57 100

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2 (44,7% contra 15,4% dos sistemas presidencialistas alocados nessa faixa de renda) e as democracias parlamentaristas que não estão entre os países ricos são ex-colônias britânicas e, em geral, são micro e pequenos Estados em termos populacionais. Dessa forma, o presidencialismo vem acompanhado, em ter-mos de frequência, por menores níveis de renda per capita e por países mais populosos. Observando a taxa de ruptura das democracias entre 1975 e 1994, verifica-se que, apesar dos contornos menos favoráveis ao presidencialismo, esse siste-ma de governo mostra menos rupturas do que as democracias parlamentaristas.

Nesse caso, os autores modificam o critério de estabilidade democrática em termos do período necessário para sua quali-ficação, reduzindo-o de 10 para 5 anos, nos quais o índice de direitos políticos deve ter sido menor ou igual a três e em ne-nhum ano tanto esse índice quanto o de liberdades civis pode ter apresentado um valor superior a quatro. Assim, é definida uma ruptura democrática como a ocorrência de um valor su-perior a quatro, em qualquer ano, seja para o índice de direitos políticos, seja para o relativo às liberdades civis.

A Tabela 5 indica, em termos gerais, que a probabilidade de ruptura da ordem democrática, com base nos eventos re-gistrados entre 1975 e 1994, é quase duas vezes maior nos sistemas parlamentaristas do que nas democracias presi-dencialistas (0,13 / 0,08). Segundo os níveis de renda, em-bora os sistemas presidencialistas sejam relativamente mais frequentes nas faixas inferiores (baixa e baixa-média), para cada sistema presidencialista estável ocorreu 0,13 ruptura, ao passo que, entre os sistemas parlamentaristas alocados nessa faixa de renda, a proporção de rupturas para cada de-mocracia estável monta a 0,17. Sistemas parlamentaristas nos países desenvolvidos, contudo, são mais vulneráveis do que os sistemas presidencialistas nos países em desenvolvi-mento. De fato, para cada democracia parlamentarista está-vel nos países desenvolvidos, observa-se 0,18 ruptura, contra a já assinalada proporção de 0,13 nos sistemas presidencia-listas em andamento nos países em desenvolvimento.

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Tabela 5 – Rupturas, estabilidade democrática e “taxa de ruptura” segundo sis-temas de governo e PNB per capita (números absolutos e razão) – 1975-1994

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Mainwaring e Shugart (1997).

Buscando qualificar as expectativas de instabilidade política as-sociadas aos sistemas presidencialistas, Cheibub (2007) parte de uma definição procedimental de democracia com o intuito de definir o universo de sistemas políticos passíveis de ruptura e migração para regimes não democráticos. Regimes democráticos são apresentados como aqueles em que cargos políticos (ao me-nos a chefia do Executivo e o corpo de legisladores) são compos-tos a partir de eleições concorrenciais (mais de um partido polí-tico concorre nas eleições), ou seja, nas quais haja uma oposição com efetivas chances de obter os cargos com base nos resultados eleitorais (os quais devem mostrar-se, ex-ante, incertos e, ex-post, irreversíveis, além de associados a um calendário eleitoral)5.

O conjunto obtido traduz-se em 3.273 anos de operação de regimes democráticos em 129 países entre 1946 e 2002, o que representa

Sistema de Governo

Parlamentarismo Presidencialismo

PNB per capita Rupturas Estabili-dade

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PNB per capitaAlto 3 17 0,18 0 2 0

Total 5 38 0,13 1 13 0,08

5 Tais critérios são expostos também em relação a regras a serem observadas, a fim de se enquadrar determinado sistema político no conceito de democracia estruturado pelo autor: o chefe do Executivo e os membros da Assembleia de-vem ser eleitos; mais de um partido competindo nas eleições (nesse caso, se, ao longo do tempo, o partido no Poder mudar as regras em seu favor e/ou extinguir os outros partidos do quadro formal partidário, o regime torna-se não democrá-tico); regras idênticas devem presidir a alternância de Poder (CHEIBUB, 2007).

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2 41,5% do tempo total de operação de regimes políticos (democrá-ticos e não democráticos) ao longo do mesmo período, que engloba 199 países que existiram em algum momento ao longo desse período.

Explorando-se os dados apresentados por Cheibub (2007, p. 42-48), é possível verificar que sistemas presidencialistas em geral, independentemente de variáveis “exógenas”, como PIB per capita, tamanho populacional, herança colonial ou localização geográfica, apresentam probabilidade de falência dos regimes democráticos maior do que os sistemas parlamentaristas e mistos, seja a partir da razão entre eventos de rupturas/estabilidade, seja a partir da rela-ção entre eventos de rupturas e anos de estabilidade (Tabela 2.6).

Ao se qualificar os resultados por meio do corte de renda, e va-lendo-se da classificação do Banco Mundial, obtêm-se resultados gerais semelhantes aos verificados para a totalidade dos países (sistemas presidencialistas são mais frágeis em termos de manu-tenção dos regimes democráticos do que sistemas parlamenta-ristas). Contudo, sistemas parlamentaristas em países com renda per capita inferior a PPP $11.906 em 2007 mostram-se mais frá-geis do que sistemas parlamentaristas em países ricos (Tabela 6).

Tabela 6 – Taxa de ruptura (razão eventos de ruptura/estabilidade), eventos de ruptura em relação aos anos de estabilidade (eventos de ruptura / anos de estabilidade) e duração média do período democrá-tico (ano) segundo sistemas de governo – 1946-2002

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Cheibub (2007).

Total de países

Misto Parlamentarista Presidencialista

Ruptura/ano 0,009 0,011 0,033

Taxa de ruptura 0,17 0,38 1,08

Duração média (anos) 15,5 27,4 19,4

Países em desenvolvimento

Misto Parlamentarista Presidencialista

Ruptura/ano 0,030 0,031 0,038

Taxa de ruptura 0,31 1,00 1,29

Duração média (anos) 7,9 18,8 18,2

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2Um dos elementos que explicaria a maior instabilidade dos sistemas presidencialistas em relação aos sistemas parlamen-tares seriam as alegadas diferenças na estrutura de incentivos para a formação de coalizões entre ambos os sistemas. Dada a separação dos Poderes em termos de sobrevivência, supõe-se que não haveria incentivos para a formação de coalizões no presidencialismo em oposição à definição institucional do par-lamentarismo, em que a sobrevivência do governo depende de maioria formada na Assembleia (MAINWARING, 1992; STEPAN e SKACH, 1993). Ou seja, dada a ausência de incentivos para a formação de coalizões no presidencialismo, criam-se governos minoritários, que, na estrutura do presidencialismo, levam a impasses decisórios que devem ser solucionados por meios extraconstitucionais.

Lançando mão de uma amostra de dados de todas as democra-cias entre 1946 e 1999, Cheibud, Przeworski e Saiegh (2002) indicam que “as circunstâncias sob as quais coalizões ministe-riais se formam ou não são as mesmas nos dois sistemas” (p. 189), isto porque a formação de coalizões em ambos os siste-mas depende da distância das preferências de políticas entre o partido formador da coalizão (partido presidencial ou o par-tido majoritário no sistema parlamentarista) e o partido mais próximo no espectro político. Ou seja, quanto mais diferentes foram as preferências de política entre o partido formador e o partido mais próximo no espectro ideológico, mais racional será a formação da coalizão: “Quando as preferências do parti-do formador e de algum outro (ou outros) com o qual ele cons-titui uma maioria estão próximas, o partido formador não tem nenhum incentivo para oferecer pastas ministeriais a outros partidos” (p. 189-90). Sendo assim, embora governos de coalizão sejam mais fre-quentes em sistemas parlamentaristas, esta seria uma “diferen-ça de grau, não de espécie” (p. 190). O grau de fragmentação partidária resulta em maior frequência de coalizões em ambos os sistemas de governo e, mais importante, governos minori-tários parecem ter a mesma eficácia legislativa em ambos os

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2 sistemas em relação a governos de coalizão, quer sejam ma-joritários, quer sejam minoritários. Assim, dada a pouca di-ferença na frequência de coalizões entre ambos os sistemas e dada, também, a pequena diferença na eficácia legislativa dos governos minoritários ou de coalizão, Cheibud, Przeworski e Saiegh (2002) concluem que “democracias presidencialistas são igualmente vulneráveis, sejam os governos de coalizão ou não” (p. 191).

Por fim, outro estudo empírico busca identificar as diferenças na taxa de coalescência entre os diferentes sistemas de gover-no, incluindo-se os sistemas mistos. Partindo da medida de coalescência, dada por uma adaptação do índice de proporcio-nalidade de Rose:

Índice de Coalescência =

Na qual Mi é a percentagem de ministérios detidos pelo partido; i. Si é a percentagem de cadeiras detidas pelo mesmo partido i no conjunto de cadeiras detidas pelo total de partidos que têm representação ministerial. Valores próximos à unidade denotam maior convergência entre a composição partidária do Ministé-rio e a composição partidária da coalizão de apoio ao Executi-vo. O índice varia entre zero e um (AMORIM NETO, 2002, p. 53; AMORIM NETO e SAMUELS, 2010, p. 16).

A amostra utilizada pelos autores se constitui de “tantos gabine-tes ministeriais quanto possível” a partir de dados de Wolden-dorp et. al. (2000) e de Mainwaring et. al. (2001). As evidências encontradas apontam que, nos sistemas presidencialistas, a fre-quência de gabinetes ministeriais proporcionais à composição partidária de apoio ao Executivo no Legislativo é menor do que aquela encontrada em sistemas parlamentaristas e semipresi-dencialistas: “três sistemas presidencialistas mostram os meno-res graus de coalescência (Equador, Brasil e Venezuela) e várias repúblicas ou monarquias parlamentaristas apresentam coales-cência perfeita todo o tempo” (p. 17).

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25. Considerações Finais

O que concluir com base nos estudos empíricos resenhados acima? Primeiro, em alguns casos, as definições de presidencia-lismo e parlamentarismo, bem como de semipresidencialismo, não são exatamente iguais, embora isto não consista no maior problema para estabelecer comparações. Uma das maiores res-trições à comparabilidade entre as conclusões de cada trabalho e, portanto, uma restrição à formulação normativa sobre siste-mas de governo e estabilidade democrática é o fato de que cada trabalho adota diferentes conceitos de democracia (Quadro 2.1). Em segundo lugar, os recortes temporais e espaciais das amos-tras diferem largamente entre si. A maior amplitude é apresen-tada no trabalho de Cheibub (2007), que apresenta evidências desfavoráveis ao sistema presidencialista em face do parlamen-tarismo, ainda que o autor estruture fortes e relevantes expli-cações para esse padrão (ver item 2.2.3 adiante) (Quadro 2.1). Dessa forma, construir robustas conclusões a partir da amostra de trabalhos acima resenhos mostra-se problemático e temerá-rio. É relevante apontar que aumentar a amostra de trabalhos talvez tornasse essa assertiva mais contundente. Contudo, a ausência de uma evidência empírica (tão requerida nos câno-nes do novo institucionalismo como apontado acima – item 1.2) indica, fundamentalmente, a validade de uma aproximação ao problema político que vá além das instituições e contemple uma totalização. Nas palavras de um autor relevante no campo do novo institucionalismo:

O presidencialismo é mais frequente na América Latina e na África do que em outras partes do mun-do, e essas partes do mundo podem ter enormes obstáculos para a democracia, independentemente da forma de governo. Por outro lado, o parlamen-tarismo tem sido o sistema de governo adotado na maioria da Europa e nas antigas colônias britâni-cas (uma grande percentagem das quais são mi-croestados), onde as condições para a democracia podem ser em geral mais favoráveis . Assim, há razões para ser cauteloso sobre a correlação ob-servada entre a forma constitucional e o sucesso dos regimes democráticos (MAINWARING e SHU-GART, 1997, p. 29 – citação traduzida pelo autor).

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Fabiano Maury RauppDoutor em Administração pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (EA/UFBA) / Mestre em Administração pelo Curso de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGA/UFSC) / Profes-sor da Escola Superior de Administração e Gerência da Universidade do Estado de Santa Catarina (Esag/Udesc)

José Antonio Gomes de PinhoDoutor em Planejamento Regional pela University of London (LSE) / Professor associado I da UFBA / Coordenador do Núcleo de Pós-Graduação da Escola de Administração da UFBA

Resumo: O objetivo do artigo consiste em investigar a utilização de portais eletrônicos de câmaras municipais para promover prestação de contas, trans-parência e participação. Foram analisados 93 portais de câmaras municipais de Santa Catarina em uma pesquisa descritiva, realizada por meio de um es-tudo de levantamento, com abordagem predominantemente qualitativa. O protocolo de observação foi o instrumento de coleta de dados, elaborado a partir do Modelo de Análise construído com base na observação empírica, aliada à investigação de modelos de análise de pesquisas na área de portais. Utilizou-se da análise descritiva para dar tratamento aos dados. Conclui-se, pela evidência empírica coletada, que o conjunto dos portais eletrônicos de câmaras municipais localizadas em municípios catarinenses mostra ausência de capacidade de viabilizar a construção das dimensões da accountability ana-lisadas. Os portais analisados configuram muito mais a existência de murais eletrônicos do que de espaços de construção da accountability. Os portais respondem a um requerimento, um impulso da modernidade expresso por um imperativo tecnológico dominante, porém não contribuem para o de-senvolvimento da transparência, da prestação de contas e da participação.

Palavras-chave: Accountability. Portais eletrônicos. Câmaras Municipais.

Abstract: Perspectives of Accountability. Transparency and Participation in Elec-tronic Portals of City Councils. The goal of this paper is to investigate the use of city

Prestação de contas, transparência e participação em portais eletrônicos de câmaras municipais

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2 councils’ electronic portals to promote accountability, transparency and participa-tion. 93 portals of Santa Catarina’s city councils were analyzed in a descriptive study, conducted through a survey, with qualitative approach. The observation protocol was the instrument of data collection, drawn from the Analysis Model built based on empirical observation, coupled with the investigation of analysis models of re-search on portals. Descriptive analysis was used to give treatment to the data. It is concluded, based on the empirical evidence collected, that all the electronic portals of city councils located in the municipalities of Santa Catarina show lack of ability to enable the construction of the dimensions of accountability analyzed. The portals analyzed indicates much more the existence of electronic murals than spaces for the construction of accountability. The portals respond to a requirement, an impulse of modernity expressed by a dominant technological imperative, however, does not contribute to the development of transparency, accountability and participation. Keywords: accountability; electronic portals; city councils.

1 – Introdução

Em países com características patrimonialistas/neopatrimonia-listas são inexpressivos os incentivos para o exercício da accoun-tability dos atos dos gestores públicos, haja vista que os governan-tes não se sentem obrigados a promover a prestação de contas e a transparência das ações praticadas durante o seu governo. Não se verifica também uma predisposição ao desenvolvimento de canais para participação da sociedade civil na construção dos tra-balhos do ente governamental. É neste ínterim que se vislumbra a necessidade de desenvolvimento de instrumentos que possam incentivar a promoção dos objetivos da accountability.

O patrimonialismo, herdado e implantado com a colonização lusi-tana, não morre na trajetória histórica de construção do Estado no Brasil, vindo a assumir uma forma neopatrimonialista na contem-poraneidade, por meio da combinação de aspectos modernos e tra-dicionais. O conceito de patrimonialismo se atualiza com o passar do tempo, mostrando a resistência e permanência do fenômeno em suas linhas essenciais, ainda que convivendo com aspectos da mo-dernidade capitalista. Para Pinho (1998), é possível detectar uma “resiliência” do patrimonialismo, mostrando-se este capaz de ab-sorver mudanças modernizantes na sociedade brasileira, ao exibir

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2uma capacidade de se amoldar às novas condições sem perder sua essência. Essa movimentação poderia ser entendida como um patri-monialismo “camaleônico”, que consegue não só se manter como, ao que parece, mas se reforçar no seu núcleo duro político, mesmo em face das mudanças modernizantes de porte na área econômica.

Apesar das diferentes abordagens e da dificuldade de tradução para o português, a construção de accountability pode ser entendida como a responsabilização contínua dos governantes e agentes públicos pelos atos praticados. Dos elementos que contribuem nessa construção, fez-se a escolha por analisar as condições de prestação de contas (CAMPOS, 1990; AKUTSU e PINHO, 2002; PINHO e SACRAMENTO, 2009; FILGUEIRAS, 2011), transparên-cia (PINHO e SACRAMENTO, 2009; FILGUEIRAS, 2011), e parti-cipação (AKUTSU e PINHO, 2002; LOUREIRO e ABRUCIO, 2004; FILGUEIRAS, 2011), fundamentos teóricos entendidos como ne-cessários para a compreensão do objeto empírico em observação.

Nesse contexto, o objetivo da pesquisa consiste em investigar a utilização de portais eletrônicos de câmaras municipais para promover prestação de contas, transparência e participação. Segundo Ribeiro (2010), diante de uma crise da representação parlamentar, o Poder Legislativo tenta se reinventar, adotando inovações, notadamente na forma de se relacionar com a comuni-dade. O contexto de uma nova ordem constitucional favorece essa dinâmica de reinvenção de instituições, importantes para a cons-trução do Estado Democrático de Direito. O portal eletrônico faz parte dessas inovações, sendo considerado um instrumento ca-paz de potencializar a construção de condições de accountability.

Foram analisados 93 portais de câmaras municipais de Santa Catarina em uma pesquisa descritiva, realizada por meio de um estudo de levantamento, com abordagem predominantemente qualitativa. Primeiramente, são apresentadas as considerações iniciais. Após, faz-se uma incursão teórica sobre patrimonialis-mo e accountability. Em seguida, são apresentados os procedi-mentos metodológicos adotados na pesquisa. Posteriormente, expõem-se a descrição e a análise dos resultados. Por fim, são tecidas as conclusões.

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2 2 – Fundamentos Teóricos

2.1 – Patrimonialismo

Para Weber (1999), nenhuma forma de dominação contenta-se voluntariamente com motivos puramente materiais ou afetivos ou racionais referentes a valores, como possibilidades de sua per-sistência. Dependendo da natureza da legitimidade pretendida, diferem o tipo da obediência e o quadro administrativo destinado a garanti-la, bem como o caráter do exercício da dominação.

Existem três tipos de dominação legítima: de caráter racional – baseada na legitimidade das ordens estatuídas e do direito do mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomea-dos para exercer a dominação (dominação legal); de caráter tra-dicional – baseada na crença cotidiana de ordens e poderes se-nhoriais tradicionais, vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a auto-ridade (dominação tradicional); e de caráter carismático – base-ada na veneração extracotidiana da santidade, do poder herói-co ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por ela reveladas ou criadas (dominação carismática) (WEBER, 1999).

Neste artigo o interesse recai sobre a dominação tradicional na perspectiva de discussão do papel do vereador. Nessa forma de dominação, o senhor (ou os vários senhores) emergem a par-tir de regras tradicionais, ocorrendo a obediência baseada na dignidade pessoal que lhe é atribuída pela tradição. Tal obedi-ência está assentada no hábito, resultando em um comportamen-to estabelecido com base nos costumes, o que gera uma relação de dominação enraizada nos parâmetros de funcionamento da sociedade. A dominação tradicional se legitima na validade das ordenações e nos poderes de mando construídos pela tradição. As relações estabelecidas entre o quadro administrativo (quando existe um) e o soberano não são determinadas pelo dever impos-to pelo cargo, mas por relações de fidelidade pessoal do servidor em relação ao soberano. A obediência não se dá em relação a uma ordem institucionalizada, mas à pessoa do soberano pelo estatu-to da tradição. Nesse contexto, as ordens são legítimas, em parte

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2derivadas da força da tradição, em parte pelo poder de arbítrio do soberano em interpretar essa tradição (WEBER, 1999).

Entre as diversas formas de dominação tradicional, não raro mis-turadas, de distinção fluidas ou fronteiras cinzentas, destacam-se a “gerontocracia” (governo em que o exercício do poder destina-se aos mais velhos), o “patriarcalismo” (casos em que o poder se de-fine pelo pertencimento a uma determinada família, normalmente sendo a dominação exercida por um indivíduo chefe da comuni-dade doméstica – pater familias –, determinado segundo regras de sucessão), o “sultanismo” (em que predomina o livre-arbítrio do governante, baseado em um aparato administrativo próprio mon-tado para fazer valer suas ordens), o “feudalismo” (forma de domi-nação baseada na existência de um contrato de status, entre vassa-lo e suserano, regido pelo sentimento de fidelidade pessoal entre ambos – baseado na ideia de “honra”), e, finalmente, o “patrimo-nialismo” (dominação exercida com base não em um contrato, mas em um direito pessoal, construindo-se uma relação de obediência ao chefe, de sujeição instável e íntima derivada do direito consuetu-dinário – “porque assim sempre ocorreu”) (WEBER, 1999).

Aplicando-se esse referencial à realidade brasileira, Schwartzman (1988) defende que esta pode ser mais bem entendida e explica-da com base em um referencial weberiano, não marxista, tendo em tela que no Brasil vigoram com força componentes não basea-dos em relações de classe que são importantes e decisivos para o entendimento da construção e funcionamento do poder, a saber, as estruturas de poder local e regional, baseadas em lideranças tradicionais, ainda poderosas, que não obedecem aos cânones das estruturas de classe e das sociedades modernas industriais.

O Estado brasileiro constitui-se, conforme Schwartzman (1988), de duas características predominantes. Inicialmente, por um sistema burocrático e administrativo que se denomina, para seguir a tradi-ção weberiana, de neopatrimonial, e que se caracteriza pela apro-priação de funções, órgãos e rendas públicas por setores privados, que permanecem subordinados a um poder central e dependentes dele, formando aquilo que Faoro (2008) chamou de “estamento burocrático”. Quando esse tipo de administração se moderniza, e

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2 segmentos do antigo estamento burocrático vão se profissionali-zando e burocratizando, surge uma segunda característica do Esta-do brasileiro, que é o despotismo burocrático. Do imperador-sábio D. Pedro II aos militares da Escola Superior de Guerra, passando pelos positivistas do Sul e tecnocratas do Estado Novo, os gover-nantes tendem a achar que tudo sabem, tudo podem, e que não têm, na realidade, que dar muita atenção às formalidades da lei.

2.2 – Accountability

Heidemann (2009) entende que, quer em termos conceituais, quer operacionais, a questão da accountability é particularmen-te complicada para o cidadão brasileiro, sobretudo em virtude de sua dependência histórica e cultural a regimes de governo autocráticos e até despóticos. Segundo Campos (1990), falta aos brasileiros não precisamente a palavra, ausente tanto na lingua-gem comum como nos dicionários. Na verdade, o que nos falta é o próprio conceito, razão pela qual não dispomos da palavra.

Em seu sentido amplo, a accountability corresponde à preocupa-ção central da “ética da responsabilidade”, como a define Guerrei-ro Ramos. Mas, em seu sentido estrito e aplicado, ou contextual, refere-se apenas a relações sociais circunscritas, como as previstas nos sistemas racional-burocráticos de prestação de serviços, por exemplo. Quer em sentido abrangente, quer no específico, trata-se de uma preocupação imprescindível a todo governante e agente público com genuína eficácia organizacional (HEIDEMANN, 2009).

A accountability representa, para Campos (1990), a responsabilida-de objetiva de uma pessoa ou organização responder perante outras pessoas ou organizações. A accountability envolve, portanto, duas partes: a primeira, que delega responsabilidade, para que a segunda proceda à gestão de recursos, gerando obrigação de o gestor prestar contas de sua gestão, demonstrando o bom uso de seus recursos.

Pinho e Sacramento (2009), tentando encontrar o significado mais preciso da palavra accountability, consultaram diversos dicioná-rios no sentido de apreender com maior precisão o que o termo significa em inglês e como tem sido interpretado e traduzido para

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2o português. Nessa busca, confirmaram que ainda não existe uma palavra única na língua pátria para expressar o termo em inglês, constatando que seu significado compreende responsabilidade (objetiva e subjetiva), controle, transparência, obrigação de pres-tação de contas, justificativas para as ações que foram ou deixaram de ser empreendidas, bem como premiação e/ou castigo.

Para Filgueiras (2011), a accountability não se refere apenas ao processo contábil de prestação de contas, mas também a um processo político e democrático de exercício da autoridade por parte dos cidadãos. As demandas por reformas e pelo aprofun-damento da accountability exigem, além de prestação de contas, transparência das ações do Estado diante da sociedade, criando, dessa maneira, uma política da transparência. A democratização do Estado deve promover uma abertura do sistema político, no sentido de torná-lo mais transparente e, por sua vez, mais afeito à avaliação do público. A política da transparência articula uma concepção de accountability e uma perspectiva prática balizada por desenhos institucionais e pelo discurso político. Dessa forma, as crescentes delinquências do homem público tornam necessá-ria uma política da transparência, que permita submeter o Estado e seus agentes ao controle da cidadania (FILGUEIRAS, 2011).

Somente com a accountability plena, ou seja, com informações públicas e prestações de contas confiáveis por parte dos gover-nantes, devidamente auditados pelos controles externo e inter-no dos órgãos públicos, os cidadãos podem participar ativamen-te das decisões públicas. Por outro lado, sem uma sociedade civil organizada, os gestores públicos não se sentirão obrigados a promover a accountability (AKUTSU e PINHO, 2002).

O conceito de accountability, conforme Filgueiras (2011), per-mite consolidar uma diferenciação entre o público e o privado, e proporciona formas de gestão pública abertas à participação da sociedade. Loureiro e Abrucio (2004, p. 52), por sua vez, enten-dem por “accountability ou responsabilização um processo ins-titucionalizado de controle político estendido no tempo (eleição e mandato) e no qual devem participar, de um modo ou de ou-tro, os cidadãos organizados politicamente”.

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2 3 – Procedimentos Metodológicos

O objeto de análise são as câmaras municipais de Santa Catarina que possuem portal eletrônico, investigadas confome delineamento apresentado por meio da figura 1:

Figura 1 – Tipologias da pesquisa, coleta e análise dos dados

Tipologias da pesquisa

• Pesquisa descritiva quanto aos objetivos• Pesquisa de levantamento quanto aos

procedimentos• Pesquisa quali-quantitativa quanto à

abordagem do problema

Coleta dos dados • Protocolo de observação

Análise dos dados • Análise descritiva

Fonte: Elaboração própria.

O protocolo de observação foi utilizado com o objetivo de identi-ficar a ocorrência ou não dos indicadores do modelo de análise. A elaboração do modelo de análise – subsidiada, primeiramente, pela investigação de experiências anteriores de diversos autores e insti-tuições (DINIZ, 2000; AKUTSU; PINHO, 2002; MORAES, 2004; PRA-DO, 2004; PINHO, 2008), que pesquisaram portais eletrônicos – foi necessária a fim de identificar indicadores de prestação de contas, transparência e participação para sua composição. Além de expe-riências acadêmicas anteriores em estudos com portais, foram ob-servados, também, os portais eletrônicos das câmaras municipais das 10 capitais brasileiras com o maior número de habitantes (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Porto Alegre, Belém, Goiânia), para identificar outros indi-cadores de prestação de contas, transparência e participação. O modelo de análise é apresentado por meio da figura 2.

Figura 2 – Modelo de análise

Prestação de Contas

Capacidade Indicadores

Nula Inexistência de qualquer tipo de relatório e/ou impossibilidade de sua localização

Baixa Divulgação parcial e/ou após o prazo do conjunto de relatórios legais

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Média Divulgação do conjunto de relatórios legais dos gastos incorridos no prazo

Alta Divulgação, além do conjunto de relatórios legais no prazo, de relatórios complementares dos gastos incorridos

Transparência

Capacidade Indicadores

Nula Inexistência de qualquer tipo de indicador de transparência

Baixa

Detalhamento das seções (ordem do dia, atas das seções)

Notícias da câmara municipal sobre as atividades dos vereadores

Disponibilização da legislação

MédiaDisponibilização de legislação com possibilidade de download

Vídeos das sessões legislativas

Alta

Divulgação das matérias nas fases de tramitação

Vídeos das sessões legislativas ao vivo

TV Câmara

Rádio Câmara

Participação

Capacidade Indicadores

Nula Inexistência de qualquer tipo de canal para a participação dos cidadãos

Baixa

E-mail da câmara

E-mail de setores da câmara

E-mail do vereador

Formulário eletrônico

Média

Home page do vereador

Twitter

Vídeo YouTube

Monitoramento das ações dos usuários

Alta Ouvidoria

Indicativo de retorno

Fonte: Elaboração própria.

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2 De acordo com o Modelo de Análise, será considerado com nula capacidade em prestar contas o portal no qual for observada a inexistência de qualquer tipo de relatório e/ou impossibilidade de sua localização. Caso haja uma divulgação parcial e/ou após o prazo do conjunto de relatórios legais dos gastos incorridos, o portal eletrônico apresenta baixa capacidade em prestar contas. A média capacidade do portal será indicada a partir da divul-gação do conjunto de relatórios legais dos gastos incorridos no prazo. A alta capacidade do portal será identificada se houver divulgação, além do conjunto de relatórios legais no prazo, de relatórios complementares dos gastos incorridos.

No tocante à transparência, o portal terá capacidade nula no caso de inexistência de qualquer tipo de indicador de publici-zação das atividades dos vereadores. A baixa capacidade será definida pela presença de pelo menos um dos seguintes indica-dores: detalhamento das seções (ordem do dia, atas das seções); notícias da câmara municipal sobre as atividades dos vereado-res; disponibilização da legislação. Já a média capacidade será identificada nos portais que apresentarem, de forma cumulati-va, pelo menos um dos indicadores de baixa capacidade e um dos seguintes indicadores: disponibilização de legislação com possibilidade de download, vídeos das sessões legislativas. A alta capacidade será identificada caso o portal apresente, de forma cumulativa, pelo menos um dos indicadores de baixa ca-pacidade, pelo menos um dos indicadores de média capacidade e um dos seguintes indicadores: divulgação das matérias nas fases de tramitação; vídeos das sessões legislativas ao vivo; TV Câmara; Rádio Câmara.

Em se tratando de participação, será considerado com nula ca-pacidade o portal no qual for observada a inexistência de qual-quer tipo de canal para a participação dos cidadãos. A baixa capacidade será identificada caso o portal apresente pelo me-nos um dos seguintes indicadores: e-mail da câmara; e-mail de setores da câmara; e-mail do vereador; formulário eletrônico. Será considerado com média capacidade o portal que apresen-tar, de forma cumulativa, pelos menos um dos indicadores de baixa capacidade e um dos seguintes indicadores: home page

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2do vereador; Twitter; vídeo YouTube; monitoramento das ações dos usuários. Para que o portal tenha alta capacidade, deverá apresentar, de forma cumulativa, pelos menos um dos indica-dores de baixa capacidade, pelo menos um dos indicadores de média capacidade e um dos seguintes indicadores: ouvidoria; indicativo de retorno.

4 – Resultados da Pesquisa Empírica

Na análise dos portais eletrônicos de câmaras municipais de Santa Catarina, os dados foram organizados por classes popu-lacionais. A divisão da análise em classes de população foi es-colhida considerando-se as classes de tamanho da população dos municípios brasileiros, definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

4.1 – Portais de câmaras municipais localizadas em municípios com até 5.000 habitantes

Seguindo-se as classes populacionais adotadas pelo IBGE, foram analisados, primeiramente, os portais eletrônicos de câmaras municipais localizadas em municípios com até 5.000 habitantes. A partir dos itens do protocolo, foram feitas as visitas aos por-tais eletrônicos e anotadas as informações disponíveis. Após a observação dos portais e registro dos indicadores encontrados, fez-se a consolidação do nível de capacidade dos portais para cada uma das dimensões (participação, transparência e partici-pação), obtendo-se os resultados apresentados na figura 3.

Figura 3 – Accountability/Síntese das dimensões analisadas

Nº Câmaras Municipais Participação Transparência Prestação de Contas

1 Agronômica média média baixa

2 Ermo baixa média nula

3 Galvão baixa média nula

4 Iomerê baixa média nula

5 Jupiá baixa alta nula

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6 Lacerdópolis baixa nula nula

7 Novo Horizonte nula alta nula

8 São Bernardino baixa média nula

9 São Martinho baixa baixa baixa

Fonte: Dados da pesquisa.

Na síntese das dimensões analisadas, as ocorrências para os ní-veis de capacidade dos portais em relação à prestação de con-tas foram as seguintes: nula (7), baixa (2), média (0), alta (0). A predominância é de portais com nula capacidade, ou seja, não há prestação de contas nos portais de câmaras municipais lo-calizadas em municípios com até 5.000 habitantes, nem mesmo divulgação de relatórios legais. Constata-se que essa dimensão da accountability não é uma prioridade dos legisladores dos municípios analisados e/ou não há interesse em publicizar os gastos incorridos por meio digital.

As ocorrências dos níveis de capacidade para a transparência foram as seguintes: nula (1), baixa (1), média (5), alta (2). A pre-dominância de portais com média capacidade, nesta classe de municípios, mostra que a construção da transparência pode ser mais favorável quando comparada à prestação de contas, pois não só apresentam média capacidade, a maioria, como também contemplam portais com alta capacidade.

No que concerne à participação, as ocorrências dos níveis de ca-pacidade foram as seguintes: nula (1), baixa (7), média (1), alta (0). Neste conjunto, se sobressaem os portais com baixa capa-cidade, mostrando a precariedade na construção dessa dimen-são. Não há, de fato, predisposição à participação por meio dos portais, mesmo existindo a tecnologia capaz de potencializá-la.

A análise aqui deveria, na verdade, recair naquelas câmaras que se destacam – a rigor apenas uma (Agronômica), com duas ca-pacidades “média”. Isso leva a concluir que não só as dimensões consideradas não estão presentes, como também parece que os recursos e os parâmetros digitais não chegaram a esses locais. As ocorrências nos portais de câmaras municipais localizadas

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2em municípios com até 5.000 habitantes, para a prestação de contas, transparência e participação, evidenciam a ausência de construção de accountability.

4.2 – Portais de câmaras municipais localizadas em municípios de 5.001 a 10.000 habitantes

Na sequência de observações, foram analisados os portais ele-trônicos de câmaras municipais localizadas em municípios com tamanho populacional de 5.001 a 10.000 habitantes, o que re-sultou em 8 portais analisados. Os níveis consolidados de ca-pacidade dos portais para cada uma das dimensões (participa-ção, transparência e prestação de contas) são apresentados por meio da figura 4.

Figura 4 – Accountability/Síntese das dimensões analisadas

Nº Câmaras Municipais Participação Transparência Prestação de Contas

1 Água Doce baixa média baixa

2 Anchieta baixa média baixa

3 Bom Retiro baixa nula baixa

4 Grão-Pará baixa baixa baixa

5 Irani baixa média média

6 Passo de Torres baixa média nula

7 Rio do Oeste nula média nula

8 Trombudo Central baixa média nula

Fonte: Dados da pesquisa.

Na síntese das dimensões analisadas, as ocorrências para os ní-veis de capacidade dos portais em relação à prestação de contas foram as seguintes: nula (3), baixa (4), média (1), alta (0). A pre-dominância é de portais com baixa e nula capacidades, respec-tivamente, evidenciando um inexpressivo avanço em relação à classe anterior. Esse cenário revela que, mesmo no grupo de câ-maras localizadas nos municípios de 5.001 a 10.000 habitantes, é visível a precariedade no uso dos portais para disponibilizar

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2 informações sobre os gastos incorridos no Legislativo munici-pal. Permanece, portanto, a dificuldade e/ou impossibilidade em criar condições para construção de accountability por meio da prestação de contas.

As ocorrências dos níveis de capacidade para a transparência foram as seguintes: nula (1), baixa (1), média (6), alta (0). Em relação à classe anterior, mantém-se a predominância de por-tais com média capacidade, apesar do retrocesso percebido, vis-to que não foram identificados portais com alta capacidade. Da mesma forma, a transparência também se manteve mais ativa que a prestação de contas.

No que concerne à participação, as ocorrências dos níveis de capacidade foram as seguintes: nula (1), baixa (7), média (0), alta (0). Destacam-se, nesta dimensão, os portais com baixa ca-pacidade, ou seja, não há, neste grupo de câmaras municipais, portais eletrônicos que permitam uma predisposição à partici-pação da sociedade civil.

Essas duas primeiras classes são semelhantes, não só no total de câmaras municipais mas também em termos de ocorrência dos indicadores de cada dimensão analisada. Ainda comparando com a classe anterior, nesta classe, também, apenas um municí-pio se destaca, alcançando o nível “médio” em duas dimensões, caso de Irani, novamente o município que se aproxima da classe superior. Acredita-se, inclusive, que o tratamento do legislador é o mesmo em todas as dimensões: não há prestação de contas; há indícios de transparência dos atos; e não há uma predisposição a participação. Somadas as duas classes, têm-se 17 portais que não potencializam a construção de accountability.

4.3 – Portais de câmaras municipais localizadas em municípios de 10.001 a 20.000 habitantes

A análise da terceira classe populacional, que contemplou muni-cípios de 10.001 a 20.000 habitantes, compreendeu um número mais expressivo de portais em relação às duas classes anterio-

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2res, tendo um total de 22 portais eletrônicos de câmaras munici-pais analisados, conforme os resultados apresentados na figura 5.

Figura 5 – Accountability/Síntese das dimensões analisadas

Nº Câmaras Municipais Participação Transparência Prestação de Contas

1 Balneário de Piçarras baixa baixa nula

2 Bombinhas baixa baixa nula

3 Campo Alegre baixa baixa nula

4 Corupá baixa baixa nula

5 Dionísio Cerqueira média alta nula

6 Faxinal de Guedes baixa baixa nula

7 Garopaba nula média nula

8 Imaruí baixa alta nula

9 Itapoá baixa baixa baixa

10 Lebon Régis média baixa nula

11 Massaranduba média baixa baixa

12 Morro da Fumaça média média nula

13 Nova Veneza baixa baixa nula

14 Palmitos média baixa nula

15 Papanduva média alta baixa

16 Pinhalzinho alta baixa nula

17 Pouso Redondo baixa média nula

18 Schoroeder média baixa nula

19 Seara baixa baixa nula

20 Siderópolis baixa baixa nula

21 Taió média alta nula

22 Turvo baixa alta nula

Fonte: Dados da pesquisa.

No sumário das dimensões analisadas, as ocorrências para os níveis de capacidade dos portais em relação à prestação de con-tas foram as seguintes: nula (19), baixa (3), média (0), alta (0). Percebe-se que é praticamente nula a capacidade de prestação

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2 de contas dos portais eletrônicos de câmaras localizadas em municípios de 10.001 a 20.000 habitantes, o que mostra uma in-volução em relação aos dois grupos anteriores e, talvez, permita concluir que não há nenhum automatismo em quanto maior a população, maior a condição de prestar contas.

Para a transparência, as ocorrências dos níveis de capacidade nos portais foram as seguintes: nula (0), baixa (14), média (3), alta (5). Percebe-se que a predominância é de portais com baixa capacidade, embora alguns avanços sejam percebidos, princi-palmente pela presença de indicadores de alta capacidade. Cabe ressaltar que outros portais apresentaram indicadores de alta capacidade, mas não receberam a classificação “alta capacida-de” por não oferecer, cumulativamente, indicadores de média capacidade. No tocante à participação, as ocorrências dos níveis de capaci-dade foram as seguintes: nula (1), baixa (12), média (8), alta (1). Nesta dimensão se sobressaem, primeiramente, portais com baixa capacidade e, na sequência, portais com média capacida-de. Mesmo que este grupo mostre avanços em relação aos dois anteriores, em razão do número de portais com média capaci-dade, a realidade ainda é de portais sem condições para que se efetive a participação dos cidadãos nos trabalhos do Legislativo municipal.

Na síntese do grupo de ocorrências, há uma predominância de portais com baixa capacidade em construir a prestação de contas, transparência e participação da sociedade civil. Assim, o avanço nas classes populacionais ainda não mostra predispo-sição dos vereadores em construir a accountability.

4.4 – Portais de câmaras municipais localizadas em municípios de 20.001 a 50.000 habitantes

A quarta classe populacional de observações compreende por-tais eletrônicos de câmaras municipais localizadas em muni-cípios com tamanho de 20.001 a 50.000 habitantes, tendo um total de 29 portais analisados. Cabe ressaltar que cinco municí-

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2pios têm mais de 40.000 habitantes, aproximando-se da classe superior, embora a maioria tenha entre 20.000 e 30.000 habi-tantes. Os resultados são apresentados na figura 6.

Figura 6 – Accountability/Síntese das dimensões analisadas

Nº Câmaras Municipais Participação Transparência Prestação de Contas

1 Araquari baixa baixa nula

2 Barra Velha média média baixa

3 Braço do Norte baixa baixa baixa

4 Campos Novos baixa alta nula

5 Capinzal média baixa alta

6 Capivari de Baixo baixa baixa baixa

7 Fraiburgo baixa baixa nula

8 Guaramirim baixa baixa nula

9 Imbituba média baixa nula

10 Itaiópolis média alta nula

11 Itapema média baixa baixa

12 Ituporanga baixa baixa nula

13 Joaçaba baixa baixa baixa

14 Maravilha média baixa nula

15 Orleans baixa baixa baixa

16 Penha baixa baixa baixa

17 Pomerode baixa baixa nula

18 Porto União baixa alta baixa

19 Rio Negrinho baixa baixa baixa

20 São Francisco do Sul baixa baixa nula

21 São Miguel do Oeste alta baixa baixa

22 São Lourenço do Oeste nula baixa baixa

23 Sombrio baixa baixa nula

24 Tijucas média baixa nula

25 Timbó baixa alta alta

26 Urussanga baixa média baixa

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27 Videira baixa baixa baixa

28 Xanxerê alta alta nula

29 Xaxim média baixa nula

Fonte: Dados da pesquisa Na síntese das dimensões analisadas, as ocorrências para os ní-veis de capacidade dos portais na prestação de contas foram as seguintes: nula (14), baixa (13), média (0), alta (2). A predomi-nância é de portais com nula e baixa capacidades, respectiva-mente, mostrando uma pequena evolução em relação à última classe. Pelo tamanho populacional, eram de se esperar portais mais estruturados em termos de prestação de contas; porém, mantém-se, nesta classe, a dificuldade e/ou impossibilidade em criar condições para construção da accountability por meio da prestação de contas.

As ocorrências dos níveis de capacidade para a transparência foram as seguintes: nula (0), baixa (22), média (2), alta (5). Comparada à classe anterior, permanece nesta a predominância de portais com baixa capacidade, bem como um número redu-zido de portais com alta e média capacidades. Não há, portanto, transparência dos atos dos legisladores locais e/ou condições para sua construção.

No que concerne à participação, as ocorrências dos níveis de ca-pacidade foram as seguintes: nula (1), baixa (18), média (8), alta (2). Destacam-se, nesta dimensão, os portais com baixa capaci-dade, sem muitas expectativas para o exercício da participação, ou de contribuições efetivas à construção da accountability.

Considerando-se com bom “desempenho” aqueles portais que têm pelo menos 2 níveis (médio e/ou alto) em um total de 3 di-mensões, podem-se destacar as seguintes câmaras: Barra Velha, Capinzal, Itaiópolis (com o agravante de ter um nula), Timbó e Xanxerê. Os demais casos são desalentadores. Portanto, com ex-ceção da prestação de contas, em que a maioria das ocorrências divide-se entre a nula e a baixa capacidade, na transparência e na participação predominam portais com baixa capacidade. O

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2conjunto de portais eletrônicos de câmaras municipais localiza-das em municípios com tamanho de 20.001 a 50.000 habitantes está estruturado de forma a não possibilitar a construção da accountability, mantendo a realidade dos três grupos anteriores.

4.5 – Portais de câmaras municipais localizadas em municípios de 50.001 a 100.000 habitantes

Nesta seção apresentam-se as análises referentes aos portais de câ-maras localizadas em municípios de 50.001 a 100.000 habitantes. Após a observação dos portais e registro dos indicadores encon-trados, fez-se a consolidação do nível de capacidade para cada uma das dimensões (participação, transparência e prestação de contas), conforme os resultados apresentados por meio da figura 7.

Figura 7 – Accountability/Síntese das dimensões analisadas

Nº Câmaras Municipais Participação Transparência Prestação de Contas

1 Biguaçu média baixa nula

2 Caçador alta baixa nula

3 Camboriú baixa baixa nula

4 Canoinhas alta alta baixa

5 Concórdia média alta baixa

6 Gaspar média baixa baixa

7 Içara baixa baixa baixa

8 Indaial alta baixa nula

9 Laguna baixa baixa alta

10 Mafra baixa baixa nula

11 Rio do Sul baixa alta alta

12 São Bento do Sul baixa baixa nula

13 Tubarão baixa baixa nula

Fonte: Dados da pesquisa. A síntese realizada demonstra que os portais eletrônicos apre-sentaram as seguintes ocorrências de níveis de capacidade para

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2 a prestação de contas: nula (7), baixa (4), média (0), alta (2). Nesta dimensão se sobressaem os portais com nula capacidade, que acompanham a tendência das classes anteriores. A quase ausência de prestação de contas nos portais de câmaras loca-lizadas em municípios de 50.001 a 100.000 habitantes revela o descaso, intencional ou não, do Legislativo municipal com o processo de construção de accountability, em que haveria uma expectativa de se encontrarem câmaras mais estruturadas.

Percebe-se que os portais não atendem nem mesmo o mínimo exigido, que são os relatórios exigidos pela legislação (BRASIL, 2000; BRASIL, 2009; BRASIL, 2011). Destaca-se a publicação da Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso a Informações Públicas, que reforça a obrigação dos agentes públicos em utilizar meios eletrônicos na divulgação de informações acerca dos atos praticados na administração públi-ca. Algumas das exigências estão contempladas na Lei n.º101, de 4 de maio de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como na Lei n.º 131, de 27 de maio de 2009, deno-minada comumente de Lei da Transparência.

Em relação à transparência, foram identificadas as seguintes ocorrências: nula (0), baixa (10), média (0), alta (3). O predo-mínio de baixa capacidade mostra que há descaso e/ou falta de vontade política não apenas em veicular informações acerca dos gastos incorridos, mas também em tornar mais transparente as atividades realizadas pelos vereadores. No que concerne à participação, encontram-se as seguintes ocorrências: nula (0), baixa (7), média (3), alta (3). Esta dimen-são, apesar do predomínio de portais com baixa capacidade, apresenta-se mais ativa quando somadas as ocorrências da média e alta capacidade. A participação, considerando as clas-ses analisadas, é a primeira dimensão a apresentar indícios de construção de accountability, como era de se esperar, pelo tama-nho populacional.

Nesta classe, três municípios (Canoinhas, Concórdia e Rio do Sul) se destacam, alcançando o nível médio e/ou alto em duas

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2dimensões. Contudo, no sumário de ocorrências, percebem-se ausência de construção de prestação de contas e trans-parência e indicativo de construção de participação. Ainda assim, no conjunto, os portais não se mostram estruturados para contemplar a accountability, pois nenhum atende a to-dos os requisitos.

4.6 – Portais de câmaras municipais localizadas em municípios de 100.001 a 500.000 habitantes

A sexta e última classe populacional de observações compre-ende portais eletrônicos de câmaras municipais localizadas em municípios com 100.001 a 500.000 habitantes, tendo um total de 12 portais analisados. Cabe destacar que a Câmara Municipal de Joinville, mesmo estando localizada em um mu-nicípio com mais de 500.000 habitantes, foi agrupada na clas-se de 100.001 a 500.000 habitantes. Os resultados são apre-sentados na figura 8.

Figura 8 – Accountability/Síntese das dimensões analisadas

Nº Câmaras Municipais Participação Transparência Prestação de Contas

1 Balneário Camboriú baixa alta baixa

2 Blumenau baixa baixa baixa

3 Brusque baixa baixa baixa

4 Chapecó alta alta baixa

5 Criciúma alta alta alta

6 Florianópolis alta alta alta

7 Itajaí média baixa baixa

8 Jaraguá do Sul baixa baixa alta

9 Joinville alta alta alta

10 Lages baixa baixa baixa

11 Palhoça alta baixa baixa

12 São José alta alta baixa

Fonte: Dados da pesquisa.

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2 A partir do sumário dos níveis de capacidade dos portais para a prestação de contas, foram identificadas as seguintes ocor-rências: nula (0), baixa (8), média (0), alta (4). Percebe-se que o predomínio, mesmo na classe com o maior tamanho popula-cional, continua sendo de portais com baixa capacidade. Nesta classe observa-se, inclusive, o descumprimento da legislação, considerando que a Lei da Transparência, aprovada em 2009, estabeleceu o prazo de um ano para a União, os Estados, o Dis-trito Federal e os Municípios com mais de cem mil habitantes divulgarem, por meios eletrônicos, relatórios legais que expli-citam as despesas incorridas. A construção da prestação de contas acontece somente nos portais das Câmaras de Criciúma, Florianópolis, Jaraguá do Sul e Joinville.

Em relação à transparência, foram observadas as ocorrências: nula (0), baixa (6), média (0), alta (6). O predomínio é de portais com baixa e alta capacidade, sendo que não foram identificados portais com média capacidade. Apesar do número representa-tivo de portais com alta capacidade, 50% dos portais não estão estruturados de maneira a promover a transparência dos atos dos vereadores.

As ocorrências dos níveis de capacidade dos portais para a participação foram: nula (0), baixa (5), média (1), alta (6). Pre-dominam, nesta dimensão, os portais com alta capacidade em construir a interação entre o cidadão e os vereadores. Em ter-mos de ocorrências dos níveis de capacidade, esta dimensão contribui para a criação de condições de accountability a partir dos portais.

Há, pela primeira vez, dois portais com nível alto nas três di-mensões (Criciúma, Florianópolis, Joinville) e dois portais com nível alto (Chapecó e São José). No entanto, os restantes, sete, ainda apresentam predominância de baixa capacidade, o que é preocupante, considerando que são os municípios mais avança-dos e desenvolvidos do Estado. Em síntese, comparando com o grupo anterior, a situação melhora um pouco. Entretanto, ainda há municípios com classificação baixa em todas as dimensões (Blumenau, Brusque e Lages).

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25 – Conclusões

O artigo teve por objetivo investigar a utilização de portais ele-trônicos de câmaras municipais para promover prestação de contas, transparência e participação. No conjunto de portais analisados, a predominância é de portais com capacidade nula em prestar contas, nas câmaras municipais localizadas em mu-nicípios com até 5.000 habitantes. No grupo de câmaras dos mu-nicípios de 5.001 a 10.000 habitantes, ainda predominam por-tais com capacidade baixa e nula, evidenciando um inexpressivo avanço em relação à classe anterior. Permanece, portanto, a difi-culdade e/ou impossibilidade em criar condições para constru-ção da accountability por meio da prestação de contas. Percebe-se que é nula a capacidade de prestação de contas dos portais eletrônicos de câmaras localizadas em municípios de 10.001 a 20.000 habitantes, o que mostra uma involução em relação aos dois grupos anteriores e, talvez, permita concluir que não há automatismo em quanto maior a população maior a condi-ção de prestar contas. Na classe de 20.001 a 50.000 habitantes, destacam-se os portais com capacidade nula e baixa, respectiva-mente. Pelo tamanho populacional, eram de se esperar portais mais estruturados em termos de prestação de contas. A quase ausência de prestação de contas nos portais de câmaras locali-zadas em municípios de 50.001 a 100.000 habitantes revela o descaso, intencional ou não, do Legislativo municipal com o pro-cesso de construção de accountability, justamente onde haveria uma expectativa de se encontrar em portais mais avançados e desenvolvidos. Na última classe, de 100.001 a 500.000 habitan-tes, mesmo tendo o maior tamanho populacional, predominam portais com capacidade baixa. Nesta classe observa-se, inclusi-ve, o descumprimento da legislação, considerando que a Lei da Transparência, aprovada em 2009, estabeleceu o prazo de um ano para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de 100.000 habitantes divulgarem, por meios eletrô-nicos, relatórios legais que explicitem as despesas incorridas. O cumprimento da lei e a respectiva construção da prestação de contas acontecem somente nos portais das Câmaras de Cri-ciúma, Florianópolis, Jaraguá do Sul e Joinville, todos da última classe populacional.

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2 No tocante à transparência, há uma predominância de portais com média capacidade em municípios com até 5.000 habitantes, o que mostra que a construção da transparência pode ser mais favorável quando comparada às condições da prestação de con-tas, pois não só apresentam capacidade média, a maioria, como também contemplam portais com capacidade alta. Contudo, não dá para afirmar se as atividades dos vereadores são realmen-te “transparencializadas” ou se as matérias são editadas antes de serem veiculadas. Na classe de 5.001 a 10.000 habitantes, mantém-se a predominância de portais com capacidade média de transparência, apesar do retrocesso percebido em relação à classe anterior, visto que não foram identificados portais com capacidade alta. Da mesma forma, a transparência também se mantém mais ativa que a prestação de contas. Na classe 10.001 a 20.000 habitantes, percebe-se que a predominância é de por-tais com capacidade baixa, embora alguns avanços sejam per-cebidos, principalmente pela presença de indicadores de capa-cidade alta. Comparada ao grupo anterior, a classe de 20.001 a 50.000 habitantes mantém a predominância de portais com ca-pacidade baixa, bem como um número reduzido de portais com capacidade alta e média. Não há, portanto, transparência dos atos dos legisladores locais e/ou condições para sua constru-ção. O predomínio de portais com capacidade baixa, no grupo de 50.001 a 100.000 habitantes, mostra que há descaso e/ou falta de vontade política não apenas em veicular informações acerca dos gastos incorridos, mas também em tornar mais transparen-te as atividades realizadas pelos vereadores. Na última classe se sobressaem os portais com capacidade baixa e alta, sendo que não foram identificados portais com capacidade média.

Nos municípios com até 5.000 habitantes, pode-se perceber uma presença majoritária de portais com capacidade baixa em promover a participação. Isto ocorre também no grupo de 5.001 a 10.000 habitantes, com portais com capacidade baixa de parti-cipação, ou seja, nestes dois primeiros grupos de câmaras muni-cipais não se encontram portais eletrônicos que predisponham a sociedade civil à participação. Na classe de 10.001 a 20.000 habi-tantes, predominam portais com capacidade baixa, mas já se nota um número apreciável de portais com capacidade média de par-

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2ticipação. Nos grupos de 20.001 a 50.000 habitantes e de 50.001 a 100.000 habitantes, voltam a ter destaque (negativo, é óbvio) os portais com capacidade baixa, para o exercício da participação, superando em número aqueles com capacidade média. Na última classe, predominam os portais com capacidade alta em construir a interação entre o cidadão e os vereadores, mas não sendo des-prezível a quantidade de portais com baixa capacidade de partici-pação mesmo nessa classe de municípios maiores.

Era de pressupor que, pelo tamanho populacional, municípios maiores, com maior população, teriam suas câmaras com mais condições (financeiras, recursos humanos) de construir por-tais mais desenvolvidos, contemplando, inclusive, o quesito da accountability, partindo do princípio que seriam municípios mais desenvolvidos economicamente. Além disso, era de pres-supor também que em municípios maiores, com a existência de uma sociedade mais complexa e plural, a busca de maior cobrança dos Poderes instituídos, entre os quais o Legislativo municipal, por parte da sociedade civil, seria bem maior. Con-tudo, essas questões não foram confirmadas. Na análise reali-zada por classes populacionais, constatou-se que municípios com maior população não necessariamente apresentam por-tais dos legislativos com maiores condições de construção da accountability, uma expectativa inicial da pesquisa, que gera, assim, frustração em relação a uma possível democratização dos maiores centros.

Referências

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Diego Roger Ramos FreitasMestre em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro / Bacharel em Di-reito pela UFMG / Pesquisador pela BAT-I FJP / Advogado

Elisa Maria Pinto da RochaDoutora em Ciência da Informação pela UFMG / Pesquisadora do Centro de Esta-tística e Informações da Fundação João Pinheiro / Professora da FJP

Maria Celeste Reis Lobo de VasconcelosDoutora em Ciência da Informação pela UFMG / Coordenadora do Núcleo de Educação Stricto Sensu do Mestrado em Administração da Fundação Pedro Leo-poldo / Professora da FPL

Simone Cristina DuflothDoutora em Ciência da Informação pela UFMG / Pesquisadora em Ciência e Tecno-logia da Fundação João Pinheiro / Professora da FJP e do Centro Universitário UNA

Resumo: O objetivo deste trabalho é estudar o uso da internet como ins-trumento de comunicação pública para a disseminação de informações nas diferentes etapas das audiências públicas realizadas no âmbito da Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH). Trata-se de pesquisa exploratória, em que foram aplicados questionários aos cidadãos participantes das audiên-cias ocorridas entre junho e dezembro de 2011, desenvolvidas entrevistas semiestruturadas, feita observação direta, pesquisa documental e bibliográ-fica. O eixo teórico-analítico foi elaborado consoante caracteres do instituto das audiências e da comunicação públicas, podendo ser replicado em outras instâncias, como nas demais casas legislativas do País. A pesquisa conclui que a internet é instrumento de comunicação pouco utilizado, sobretudo na etapa em que é mais próspera: a de divulgação dos encaminhamentos/resultados das audiências. A reversão desse quadro prescinde de medidas relativamente simples, apontadas no trabalho, passíveis, a um só tempo, de realizar a essência do instituto das audiências públicas, estimular a participação dos cidadãos e

Disseminação de informações no contexto das audiências públicas: análise do uso da internet como instrumento de comunicação pública na Câmara Municipal de Belo Horizonte

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2 ampliar o (re)conhecimento do labor dos parlamentares. Nas demais etapas, como o preparatório e o executório, seu uso é apenas incidental/acessório. Na etapa publicitária, seu uso pode ser relevante, porém, limitado, haja vista a preponderância da comunicação direta (realizada pelos reeditores sociais) na mobilização das pessoas para tomarem parte na audiência pública. Ao cabo, são feitas sugestões para continuidade e aprofundamento da pesquisa.

Palavras-chave: Audiência Pública. Internet. Comunicação Pública.

Abstract: The present essay aims to study the use of internet as public communi-cation device to dissemination of information in different steps of public hearings which the City Council of Belo Horizonte (CMBH) organizes. That is an explora-tory research in which methodology used envolved questionnaire application to present citizens in public hearings organized by CMBH between jun 2011 and de-cember 2011, interviews, direct observation, content analysis beyond bibliogra-phic research. The theoretic and analytical axis motivate itself on the study of ins-titut of public hearings and public communication characteristics. That theoretic and analytical axis as that metodology can be used again in another instances, such law-making houses of Brazil. The research concludes that internet is a less used communication device, above all, at the step which is useful: the spread of information concerning referrals coming from hearings. Change of this scenery needs simple actions showed in the essay. Those actions can, at the same time, to realize essence of institut of public hearing, to motivate participation of citizens and increase knowledge about politician work. At other steps of public hearing, as preparatory and during itself, internet use is just secondary. At the publicity step of hearings, internet use can be important, however, it is limited because direct communication (by community leader, for example) is more important on mobilizing people to participe on public hearing. At the end, suggestions to keep and to deepen this research are done.

Keywords: Public hearing. Internet. Public communication.

1. Introdução

A A partir da década de 1990, assistiu-se à renovação do inte-resse da sociedade civil pela política, com a ampliação e com-plexificação das formas de participação contemporânea. Nesse sentido, proliferaram, entre outros, orçamentos participativos, conselhos gestores de políticas, conferências temáticas e audi-ências públicas (BRASIL, 2009; LAVALLE et. al., 2004).

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2A audiência pública, por sua vez, é instituto de participação aberta à população com previsão recente no Brasil, mas com emprego cada vez mais frequente. Sua realização demanda a observância de quatro etapas: preparatória, publicitária, exe-cutória e de divulgação dos encaminhamentos e resultados. Em todas essas etapas, a veiculação de informações é patente. E, para ser veiculada, a informação deve se valer de instrumentos de comunicação, entre os quais se encontra a internet, que me-rece relevo, haja vista sua difusão também a partir do início da década de 1990 acompanhada de expectativas diante das novas possibilidades que essa tecnologia provê. Além de facilitar a cir-culação de informações, a internet detém potencial democrático (PINHO, 2008) pela ampliação das formas de controle, transpa-rência e participação democrática.

Então, tem-se, de um lado, um instituto de participação-delibe-ração novo e cada vez mais utilizado. De outro, tem-se um instru-mento de comunicação dotado de potencial democrático capaz de, em tese, ampliar as formas de participação, transparência e controle. Apesar disso, verifica-se a existência de problema consistente na dificuldade de se obter informações (inclusive on-line) relativas às audiências públicas realizadas pela CMBH1, como a data de sua realização, os encaminhamentos adotados após os debates e a concretização dos resultados esperados.

Nesse contexto, este trabalho sumariza parte dos resultados de pesquisa exploratória que desenvolveu estudo de caso que teve como objetivo principal analisar como a internet é utili-zada como instrumento de comunicação pública pela Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH), para a disseminação de informações sobre as audiências públicas que organiza2. O obje-tivo é analisar como a internet vem sendo utilizada em sede das

1 Durante a investigação preliminar realizada pelo pesquisador responsável, verificou-se que o problema constatado repete-se em outras instâncias, como outras casas legislativas, e órgãos do Poder Executivo, observando-se, inclusive, esse problema de forma mais acentuada.

2 Para mais detalhes e íntegra da pesquisa, confira Freitas (2012).

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2 audiências públicas justamente para se precisar, empiricamen-te, esse “potencial democrático da internet” e para se proporem aprimoramentos capazes de consubstanciá-los onde possível.

Esta introdução apresenta o problema e sumariza os objetivos estabelecidos para a pesquisa. A seguir, são apresentados os ei-xos teórico-analíticos do estudo, que se encontram divididos em duas seções: a primeira atinente à proposta de uso da internet como instrumento de comunicação pública, e a outra relativa ao instituto das audiências públicas. Em seguida, detalha-se a metodologia empregada. Na penúltima seção, faz-se a apre-sentação e análise dos resultados obtidos para, na seção final, tecerem-se as conclusões.

2. A internet como instrumento de comunicação pública

O debate sobre a internet, no início da década de 1990, foi marcado por grande entusiasmo em virtude dos novos re-cursos por ela providos (MAIA, 2011). Os primeiros estudos focaram os potenciais dessa nova interface que resultou da convergência da tecnologia da microinformática com a das comunicações (BELL, 1977). O entendimento então corrente era o de que a internet tinha enorme potencial democrático (PINHO, 2008), podendo “aumentar a participação democráti-ca, fortalecer as organizações da sociedade civil e revigorar a democracia” (MAIA, 2011, p. 67). Parte desse entusiasmo, ain-da segundo Maia (2011), fundou-se na apreciação das caracte-rísticas dessa nova infraestrutura de comunicação digital, qual seja sua conformação descentralizada, horizontal, imediata, de baixo custo e com grande alcance, já que tem a capacidade de atingir simultaneamente inúmeros usuários. Dessa forma, a internet possibilita o acesso a enorme gama de informações instantaneamente (KUMAR, 1997), sendo que, segundo Cas-tells (2003), a capacidade de gerar, processar, aplicar e arma-zenar o conhecimento baseado nessas informações aumentou expressivamente, permitindo-se a ampliação do acervo infor-macional acessível pela sociedade a custos consideravelmente menores e em curto espaço de tempo.

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2Apesar desses potenciais da nova interface de comunicação re-presentada pela internet, atualmente, com a realização de inú-meros estudos empíricos, muito desse entusiasmo inicial vem sendo revisto (MAIA, 2011), de modo que se está redimensio-nando o potencial da internet para impactar as interações inter-pessoais, o engajamento cívico e o ativismo político (a participa-ção política). Também de acordo com essa autora, as conclusões ainda são díspares, o que dificulta o estabelecimento de gene-ralizações. A questão que se coloca é indagar em que medida o uso da internet (viabilizando a participação on-line) altera esse estado de coisas. Esse é um debate em curso, ainda inconclusivo. Contudo, vem se tornando cada vez mais evidente que “a inter-net não pode ser ‘destacada’ do contexto mais amplo da vida das pessoas, como se constituísse um mundo virtual paralelo ou à parte do fluxo das atividades cotidianas” (MAIA, 2011, p. 71). Como afirma a supracitada autora, a “internet não promove automaticamente a participação e nem sustenta a democracia; é preciso, antes, olhar tanto para as motivações dos sujeitos quan-to para os usos que eles fazem dela, em contextos específicos” (MAIA, 2011, p. 69).

Então, diante disso, a proposta deste trabalho é analisar como a internet vem sendo utilizada nas audiências públicas, justa-mente para se precisarem, empiricamente, esses “potenciais” e para se proporem aprimoramentos capazes de consubstan-ciá-los onde possível. Para isso, para o espeque deste trabalho, considera-se o uso da internet como instrumento de comuni-cação pública.

A expressão “comunicação pública” vem sendo empregada com diferentes significados, de acordo com o contexto e a região em que é empregada (BRANDÃO, 2007). Essas disparidades demons-tram que o termo ainda carece de conceito claro. No Brasil, graças ao empenho da academia, e mesmo diante dos múltiplos signi-ficados dessa expressão, é possível identificar ponto em comum que é “aquele que diz respeito a um processo comunicativo que se instaura entre o Estado, o governo e a sociedade, com o objetivo de informar para a construção da cidadania” (BRANDÃO, 2007, p. 9). Essa concepção decorre, segundo Brandão (2007), da obra

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2 de Pierre Zémor (1995). Para este autor, a comunicação pública legitima-se pelo interesse geral, público, não podendo se distan-ciar das finalidades das instituições públicas, quais sejam as de:

a) informar (levar ao conhecimento, prestar conta e valorizar); b) ouvir as demandas, as expectati-vas, as interrogações e o debate público; c) de con-tribuir para assegurar a relação social (sentimen-to de pertencer ao coletivo, tomada de consciência do cidadão enquanto ator); d) e de acompanhar as mudanças, tanto as comportamentais quanto as da organização social (ZÉMOR, 1995 apud BRAN-DÃO, 2007, p. 14).

Ainda no esforço de conceituar a comunicação pública, e focan-do-se esta na seara estatal – onde é mais fértil –, é importante extremá-la da comunicação governamental (BRANDÃO, 2007), sendo a primeira de Estado, e a segunda de Governo, em que se caracteriza pela difusão de informações integrantes da raciona-lidade estratégica dos ocupantes do poder, assumindo, muitas vezes, a forma de marketing institucional em detrimento do in-teresse público.

Portanto, a noção de comunicação pública supera a mera divul-gação de informações governamentais e de assessoria de im-prensa como mecanismo de marketing pessoal/institucional, para colocá-la como instrumento facilitador do relacionamento entre cidadãos e Estado (NOVELLI, 2007). A comunicação pú-blica se propõe a constituir espaço de informação e negociação entre os interesses das diversas instâncias de poder da vida pú-blica. Chega a caracterizar “um etos, uma postura de perceber e utilizar a comunicação como instrumento de interesse coletivo para fortalecimento da cidadania” (DUARTE, 2007, p. 60).

Para se estabelecer esse processo de comunicação pública, cum-pre que estejam presentes atores (interlocutores) e instrumentos de comunicação (utilizados para veicular as informações). Quan-to a estes últimos, utilizou-se a classificação proposta por Duarte (2007). Segundo ele, os instrumentos de comunicação podem ser classificados em três espécies: de massa, segmentada e direta.

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2A comunicação de massa é caracterizada pela difusão de infor-mação para o grande público, para o maior número possível de pessoas, que se comportam como espectadores heterogêneos. É exemplificada pelas emissoras de TV e rádio, jornais de grande circulação impressos e virtuais, e agências de notícias tradicio-nais e virtuais. É a principal fonte de construção das representa-ções sociais compartilhadas por parte da sociedade. Corrobora para o estabelecimento de agendas e debates públicos. Entre suas limitações estão as restrições ao diálogo em face das di-ficuldades de acesso ativo da maior parte dos atores sociais a esses instrumentos de comunicação.

A comunicação segmentada “é orientada para grupos de inte-resse específico, em que há maior possibilidade de domínio so-bre o conteúdo, acesso e distribuição, e de obter retorno, partici-pação e diálogo” (DUARTE, 2007, p. 66). Utiliza estratégias para manter mais próximos interlocutores com interesses e/ou carac-terísticas comuns. É exemplificada por publicações específicas, como jornais e revistas de classes/categorias profissionais e de associações de bairro, newsletters, sites e blogs temáticos, entre outros. O autor mencionado afirma que o advento da internet vem fortalecendo crescentemente esse modelo de comunicação. A comunicação direta refere-se ao contato personalizado, nor-malmente, face a face e em tempo real. É exemplificada pelos atendimentos presenciais, por telefone ou via internet, pelas reuniões, debates (inclusive em sede de audiências públicas), grupos de trabalho, fóruns de discussão, entre outros. Possui alta eficiência, já que se ajusta imediatamente às características do interlocutor durante a própria comunicação. Sua principal característica é permitir a facilidade de interação, a troca de in-formações, a reciprocidade, o saneamento imediato de dúvidas, além de corroborar para o estabelecimento de laços de confian-ça. Duarte (2007) também afirma que a proximidade entre os interlocutores garante aprendizagem mais robusta, assim como feedback mais imediato e preciso.

Relativamente aos atores envolvidos no modelo de comunica-ção pública,utilizou-se a tipologia de Toro e Werneck (2007),

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2 que os classificam em três espécies: produtor social, reeditor social e editor.

Para compreender o papel de cada um desses atores, imagine-se que se deseja realizar comunicação para mobilização, por exem-plo. Nesse caso, o produtor social (órgão ou instituição que te-nha condições técnicas, financeiras e de pessoal para viabilizar o processo de mobilização, conduzindo as negociações e os deba-tes) deve convocar diretamente, ou seja, por intermédio de meios de comunicação direta, os reeditores sociais (pessoas que, por seu papel, ocupação ou posição social, têm a capacidade de entrar em contato diretamente com o público-alvo a ser convidado, tal como ocorre com líderes comunitários e sindicais). Esses reedito-res executam precipuamente a comunicação direta relativamente ao seu público específico (a comunidade, os membros do sindica-to, etc.). A comunicação direta é marcada pela pessoalidade, sen-do mais efetiva na mobilização das pessoas para comparecer e tomar parte numa discussão3. Paralelamente a isso, os “produto-res sociais” devem manter contato com os editores (profissionais de comunicação, normalmente, ocupantes de postos na imprensa e veículos de comunicação de massa). A função dos editores, por sua credibilidade social, é dar legitimidade e amplo conhecimen-to do processo de mobilização, reforçando-o. Eles também se prestam a “posicionar” o imaginário e coletivizar a atuação dos reeditores” (TORO e WERNECK, 2007, p. 40) perante os demais atores e mesmo entre os próprios reeditores.

Essas são, portanto, as noções elementares acerca dos instru-mentos de comunicação – segundo Duarte (2007) – e dos atores envolvidos nos processos de comunicação pública – segundo Toro e Werneck (2007). Essas noções serão úteis para a análise a ser desenvolvida, nas seções seguintes, sob o paradigma da comunicação pública.

3 Duarte (2007, p. 67) também afirma que “todas as pesquisas indicam que, ape-sar das possibilidades da tecnologia, a comunicação mais efetiva ainda é a viabi-lizada pelo contato pessoal, olho no olho, em que pese as naturais dificuldades surgidas quando se estabelecem diferenças em níveis ideológicos, de valores, culturais, educativos e até de competência comunicativa entre interlocutores”.

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23. Audiência pública: conceito, características e procedimentos

Com a instauração do Estado Democrático de Direito pela Cons-tituição de 1988, assistiu-se à ampliação das formas de parti-cipação e deliberação democrática no Brasil. Warren (2002) aponta mesmo para o alargamento das práticas associadas à democracia, bem como a complexificação das formas de ação coletiva e de participação. Difundiram-se institutos como or-çamentos participativos, conselhos gestores de políticas, con-ferências temáticas, audiências públicas, comitês e uma verda-deira “febre” de inovação institucional, visando à expansão da participação na gestão pública (BRASIL, 2009; LAVALLE et. al., 2004). Esta, por sua vez, recepcionava essas formas de partici-pação e deliberação, já que, sob o advento da Reforma do Estado (PEREIRA, 1998), era alcançada pelo movimento de descentra-lização, em favor da ampliação da participação e do controle so-cial sobre as atividades estatais.

Nesse contexto, as audiências públicas, em particular, são insti-tuto de participação aberta à população, em que as partes pre-sentes expõem tendências, preferências, que, por meio da de-liberação, podem conduzir o poder público a decisão de maior aceitação conceitual. No Brasil, a previsão das audiências públi-cas é recente (PRADO JR., et. al., 2007) sendo, contudo, cada vez mais frequente sua ocorrência. Observa-se que várias entidades (como órgãos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, autarquias, agências reguladoras, entre outras) organizam au-diências públicas sobre temas da mais diversa ordem.

A caracterização do instituto das audiências públicas implica, essencialmente, que se dê ampla publicidade e transparência de sua realização e de todo o seu processo. Implica também que se proceda à abertura à livre entrada e participação de indivíduos e grupos organizados (como associações, partidos políticos, sindi-catos, empresas, órgãos da administração pública, entre outros), os quais devem adotar postura ativa/participativa para que se desenvolva verdadeiro debate entre as partes envolvidas, que devem expor oralmente tendências e preferências. Ao final dos debates, essas contribuições/manifestações deverão ser conside-

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2 radas pelo ente organizador da audiência, motivadamente aco-lhendo-as (ou não), na prolação do ato ou decisão administrativa pertinente à questão que motivou a audiência pública.

Para organizar uma audiência pública, inexiste procedimento padrão, forma precisa, necessária (GORDILLO, 2003)4. É im-portante apenas que, independentemente do formato adota-do, consiga-se realizar seus elementos nucleares, expostos no parágrafo anterior. Aquele que a organiza tem liberdade para adotar o formato que mais se ajuste às suas necessidades e pe-culiaridades, como a natureza e complexidade do tema posto em discussão, a disponibilidade de recursos, o quantitativo de participantes, entre outros. De todo modo, observam-se basica-mente quatro etapas durante a organização dessa sorte de even-to: a) preparatória; b) publicitária; c) executória; d) divulgação e acompanhamento dos encaminhamentos e resultados. A seguir, sumariza-se o teor de cada uma dessas etapas, chamando-se atenção para a centralidade do insumo “informação” presente em todas elas.

A etapa preparatória é preliminar à realização da audiência pública. Envolve fundamentalmente o levantamento de infor-mações sobre o problema que a motiva para se delimitar o tema e os atores-chave a serem convidados, além da definição das regras/regulamentação da audiência. Aqui, dá-se a realização de estudos e diligências para se aproximar do objeto da audi-ência pública e do mapeamento dos atores-chave, ou seja, das pessoas e instituições mais diretamente interessadas no debate. É também nessa etapa que se deve definir o marco regulatório da audiência, suas regras de funcionamento (caso ainda não o estejam previamente definidas). Saliente-se que é importante ter prévia e suficientemente detalhado o tema ou problemáti-ca que será submetido à discussão em audiência para, assim, se

4 Aliás, Gordillo (2003) adverte que se tenha cuidado para evitar regulamentações excessivas ao ponto de não se deixar margem de liberdade e criatividade para o organizador da audiência pública. Isto para que este tenha a possibilidade de ade-quar os procedimentos do evento às peculiaridades do tema e público, com o fito de ampliar a participação e os debates orais entre os participantes da audiência.

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2alcançar o debate eficaz (GORDILLO, 2003) com a otimização dos trabalhos. É preciso que o ente organizador tenha clareza acerca do que pretende alcançar (MÊNCIO et. al., 2005). Para isso, convém levantar a maior quantidade de informações per-tinentes ao seu alcance, estudar minimamente o tema, realizar diligências, ouvir atores que se crê serem relevantes na questão analisada (atores-chave) e, quiçá, realizar consultas públicas a fim de identificar demais atores interessados na questão. O mapeamento dos atores-chave é deveras relevante, já que seu perfil deverá repercutir no jogo de forças durante os debates, na representatividade e pluralidade das visões postas em confron-to. Por isso, não se deve poupar esforços em sua identificação, contatando-se associações, sindicatos, empresas, movimentos sociais, conselhos gestores, líderes comunitários, entre outros, tudo consoante o tema em debate. E, para cerrar as considera-ções acerca da etapa preparatória, registre-se que a previsão, em linhas gerais, dos procedimentos básicos de convocação, desen-volvimento e encaminhamento dos resultados em regulamento podem fornecer a base para o ente organizador, cuidando para que este não se perca durante o processo, transformando a au-diência pública em mera reunião popular, sem propósito firme, mas apenas com livre troca de opiniões entre o administrador e os particulares acerca de determinado tema (SOARES, 2002).

A etapa seguinte é a publicitária, que é aquela em que se dá ampla divulgação da realização da audiência pública. É de cen-tral importância, já que materializa a publicidade “ínsita al pro-cedimiento de audiencia pública” (GORDILLO, 2003, p. IX-12). A partir dela, deve-se assegurar que seu objetivo central – a audiência do público, da população – seja alcançado. A veicu-lação das informações relativas à realização da audiência deve ser feita com antecedência suficiente para que todos os parti-cipantes se preparem. A publicidade não se deve restringir aos órgãos oficiais, como os diários oficiais, por exemplo. Deve-se ter em mente que um dos objetivos das audiências públicas é justamente a participação do público, da população. Por isso, a prévia divulgação do evento deve ser feita nos canais que se jul-gue terem contato os atores-chave – mormente os “reeditores sociais”, na terminologia de Toro e Werneck (2007) – e a popu-

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2 lação em geral. Ressaem em relevância, assim, a imprensa local, os meios de comunicação de massa convencionais (televisão, rá-dio, jornais impressos, revistas, etc.); a internet, com divulgação em sites oficiais, de notícias, e em redes sociais (Facebook, Orkut, Twitter, etc.); cartazes ou faixas afixadas em locais de grande circulação, como avenidas, prédios públicos (escolas, postos de saúde, etc.), agências bancárias, entre outros, além da própria comunicação direta com os “reeditores sociais” via telefone, correspondência. Nunca é demais ressaltar que esses materiais devem ter linguagem compatível com seu público-alvo, tornan-do a participação atrativa para ele.

Na etapa executória, ocorrem os debates, com troca de infor-mações e opiniões entre os participantes, com a participação do público. Esses debates devem ser registrados. Isso pode ser feito via gravação (em áudio e/ou vídeo) ou via relatoria dos debates, por exemplo. A condução dos trabalhos deve ser feita pelo ente que a preside (SOARES, 2002). A passagem de lista de presença gera dados capazes de auxiliar na identificação do per-fil daqueles que compareceram. Além disso, é certamente útil na quantificação do público presente, o que pode fornecer subs-trato ao ente organizador quanto à verificação da eficiência da estratégia de divulgação empregada. O registro das discussões é importante para a recuperação das contribuições, críticas, su-gestões e demandas apresentadas, que podem então ser empre-gadas na definição/construção da vontade administrativa, na solução da questão que motivou a audiência pública.

Por fim, há a etapa de divulgação e acompanhamento dos en-caminhamentos e resultados, ocasião em que as informações colhidas em sede do evento são consideradas/ponderadas pelo seu ente organizador para, acolhendo-as (ou não), prolatar o ato decisório, a vontade administrativa. Aqui, é feita a divulgação dos resultados/conclusões após o encerramento dos trabalhos da audiência pública. Também são preparadas respostas aos co-mentários, sugestões, críticas e contribuições geradas durante os debates, indicando como foram (ou não, e por quê) utilizadas na decisão administrativa tomada ou nos encaminhamentos a serem desenvolvidos. Neste último caso, em que se decide pela

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2realização de diligências (encaminhamentos) para prosseguir na resolução da questão que motivou a audiência, deve ser feita também a divulgação de seus respectivos acompanhamentos/cumprimentos, ou seja, deve-se dar publicidade do estágio em que se encontram esses encaminhamentos, das medidas que fo-rem tomadas até o desfecho da questão. Para isso, podem-se uti-lizar os mesmos meios empregados para a divulgação da ocor-rência da audiência pública. Essa é medida de responsividade da administração, do ente organizador da audiência, perante a população. Uma vez tendo sido organizada por ente público, rea-lizada a expensas do dinheiro público e diretamente relacionada ao próprio interesse público, por imperativo do princípio republi-cano5, devem ser divulgados os resultados/conclusões ou mesmo dos encaminhamentos após o encerramento da audiência públi-ca, consoante sustentado por Mazzilli (1999) e Soares (2002).

Como visto, trata-se de instituto em que, em todas as suas eta-pas de realização, o insumo informação está presente: desde sua preparação até a divulgação de seus resultados. E, como dito no intróito, para produção e disseminação de informações, a inter-net é instrumento privilegiado na sociedade moderna, sendo notório que seu uso foi intensificado nas últimas décadas (CAS-TELLS, 2003). Logo, é atual e perspicaz o debate que articule essas duas temáticas (internet e audiência pública) e indague como esse instrumento de comunicação (a internet) vem sen-do utilizado para veiculação das informações correntes em sede das audiências públicas. O problema identificado consiste na di-ficuldade de se obterem informações (inclusive on line) relativas às audiências públicas organizadas pela CMBH, como a data de

5 O princípio republicano é identificado a partir do art.1º, CR/1988. Basicamen-te, sem se aprofundar no tema, tem-se que a República é forma de governo. For-ma de governo, por sua vez, refere-se à maneira pela qual é instituído o poder na sociedade e como se relacionam governantes e governados (SILVA, 2002). Ainda segundo Silva (2002, p. 102), a forma de governo “responde à questão de quem deve exercer o poder e como este se exerce”. O princípio republicano implica, principalmente, a necessidade de divisão dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo os dois primeiros derivados de eleições populares); na tempo-rariedade dos mandatos eletivos; e na necessidade de prestação de contas por parte da administração pública.

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2 sua realização e os encaminhamentos adotados após os debates. Partindo-se do ponto de vista do cidadão que não se encontra engajado politicamente em uma causa qualquer e que, por isso, não mantém contato direto com reeditores sociais (como líde-res comunitários/sindicais que mantêm contato direto com os parlamentares da CMBH e repassam informes aos seus pares), assume-se que a internet tem importante papel na difusão de informações acerca das audiências públicas. Isto porque, como será visto adiante, a divulgação desses eventos é feita funda-mentalmente pelo portal da CMBH, ou mediante solicitação de informações à Central de Atendimento ao Cidadão (via telefone ou mensagem eletrônica). Dessa maneira, é curial que se analise como (e se) a internet vem sendo utilizada como instrumento de comunicação pública em sede das audiências públicas de manei-ra a corroborar para a realização da cidadania pela promoção da participação dos cidadãos e demais interessados nas audiências.

4. Metodologia

Trata-se de pesquisa exploratória realizada a partir de estudo de caso realizado na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH). Foi feita pesquisa bibliográfica e documental, incluindo análise do conteúdo do portal da CMBH, bem como pesquisa de campo.

A pesquisa bibliográfica envolveu revisão da literatura de duas unida-des: uma sobre o uso da internet como instrumento de comunicação pública e outra relativa ao instituto das audiências públicas, ambas tratadas nas seções anteriores. Dessas duas unidades, configura-se o eixo teórico-analítico condutor da investigação e análise dos dados.

Analisou-se o conteúdo do portal da CMBH a fim de se verificar se, e como, são disponibilizadas informações e ferramentas re-lativas às audiências públicas para o fortalecimento e exercício da cidadania pela participação nelas.

A pesquisa de campo incluiu: a) questionário aplicado a pessoas presentes em audiências públicas realizadas entre junho e de-zembro de 2011; b) entrevistas semiestruturadas; c) observa-ção pessoal direta espontânea dos pesquisadores.

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2Os questionários foram aplicados no período compreendido entre 16 de junho e 1º de dezembro de 2011. Nesse período, foram realizadas 84 audiências públicas na sede da CMBH, com temas variados. Desse total, houve aplicação dos questionários em 39 audiências públicas. Em outras 11 audiências não houve público externo acompanhando o evento, apenas os convidados que compuseram a mesa, não tendo sido por isso aplicados os questionários. O público presente nas 84 audiências totalizou 1.932 pessoas. Nesse período, foram recolhidos 231 questio-nários respondidos pelos cidadãos sobre os quais foram feitas as análises. Os questionários contêm cinco questões objetivas (fechadas) e uma questão final aberta. Antes de tudo isso, há campo para identificação (facultativa) do respondente e para in-dicação de sua idade e escolaridade. Esses campos são relevantes uma vez que permitem realizar cruzamentos (correlações) entre as respostas às demais questões e o perfil (etário e socioeconô-mico) do respondente, além de auxiliar na compreensão do perfil dos cidadãos presentes em audiências públicas e/ou dos que se dispuseram a responder ao questionário. Ainda no intuito de se identificar o perfil do respondente, indaga-se, nas duas primeiras questões, o interesse do respondente em participar da audiência pública e a frequência com que participa dessa sorte de evento. As três questões seguintes buscam identificar como os cidadãos se informam acerca da realização das audiências públicas orga-nizadas pela CMBH, e por meio de quais instrumentos de comu-nicação eles costumam e pretendem manter-se envolvidos com a temática tratada em sede da audiência pública. Na questão final, de número 6, buscou-se verificar o anseio, a demanda dos res-pondentes, ao indagar qual seria, de acordo com a opinião do respondente, os três mais importantes/eficazes meios ou ins-trumentos para divulgação da realização de audiências públicas pela CMBH. Os dados provenientes dos questionários foram lan-çados, tabulados e trabalhados no software SPSS (Statistical Pa-ckage for the Social Sciences), gerando-se diversas frequências e correlações, das quais apenas pequena parte foi ora selecionada tendo em vista o recorte temático do presente artigo.

As entrevistas semiestruturadas detalharam as rotinas adminis-trativas adotadas para as audiências, o papel dos diferentes ato-

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2 res nos processos de comunicação e o uso da internet nas comu-nicações atinentes às audiências públicas. Foram entrevistados dois membros do corpo administrativo da CMBH – responsáveis pela comunicação institucional e pelo assessoramento das co-missões promotoras das audiências6 – e três líderes comunitá-rios/sindicais que participaram de audiências públicas no pe-ríodo de aplicação dos questionários. Com a realização dessas cinco entrevistas, visou-se complementar qualitativamente a abordagem quantitativa assumida pelos questionários de pes-quisa mencionados no parágrafo anterior. Buscou-se detalhar e confirmar determinados aspectos do objeto de estudo levanta-dos durante a pesquisa, como rotinas administrativas adotadas em sede das audiências públicas, o papel dos reeditores sociais nos processos de mobilização da população e o uso da internet nas comunicações atinentes às audiências públicas. Em todas as entrevistas, ao final, objetivou-se coletar percepções do entre-vistado, na qualidade de integrante do corpo técnico da CMBH (ou de líder comunitário/representante sindical), acerca do papel desempenhado pelas audiências públicas na atividade le-gislativa e na realização da cidadania, do grau de mobilização social em torno desse instrumento de participação e do uso da internet nesse contexto.

Durante todo esse período, foi realizada também observação di-reta não estruturada por um dos pesquisadores que acompanhou a realização de audiências públicas e de parte da rotina adminis-trativa da CMBH, o que colaborou para a compreensão da dinâ-mica das audiências e da participação do público nesses eventos.

Os dados obtidos pela pesquisa de campo identificaram o uso que é dado à internet na ótica dos produtores de informação

6 Foram entrevistadas a chefe da Divisão de Assessoramento ao Plenário e às Comissões da CMBH e a superintendente de Comunicação Institucional; a pri-meira, com o intuito principal de confirmar, aprofundar ou detalhar aspectos das rotinas administrativas da CMBH relativas às audiências públicas somente acessíveis a integrante do corpo administrativo da Casa. A segunda entrevistada, por sua vez, foi demandada, sobretudo, relativamente à dimensão comunicati-va envolvida na realização de audiências públicas pela CMBH.

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2(CMBH) e na de seu público-alvo (cidadãos em geral). Além dis-so, situaram a internet no contexto de utilização dos demais ins-trumentos de comunicação, enriquecendo a análise.

Finalmente, cumpre apontar limitações que inquinaram a pes-quisa, cujos resultados principais este artigo sumariza. Desta-que-se que a pesquisa possuía marco temporal delimitado para começo e finalização, totalizando 12 meses de trabalho. Dian-te disso, para que a coleta, o tratamento e a análise dos dados obtidos por meio dos questionários pudessem ser efetivados, foi necessário que fosse implantada logo no começo da pesqui-sa. Então, já em maio de 2011 iniciaram-se os contatos com a CMBH para a referida aplicação dos questionários. O contato com a CMBH foi institucionalizado e se iniciou a aplicação das versões-piloto do questionário. Ao todo, foram quatro rodadas de pré-testes. Já consolidada a versão final, rodou-se novo pré--teste com exatos 31 questionários, seguindo-se, a partir daí, a aplicação definitiva deles. Apesar do zelo desferido na elabora-ção do questionário, só quando se aproximava do final do pe-ríodo de coleta de dados, em dezembro de 2011, é que foram verificadas algumas inconsistências que, apesar de não com-prometerem a validade dos dados, poderiam tê-los tornados mais precisos. Essas inconsistências não puderam ser antes notadas, dado o estágio embrionário da pesquisa bibliográfica até então feita. Verificou-se que algumas questões poderiam ter alternativas mais bem trabalhadas, percebendo-se ser tê-nue, na ótica do respondente, a diferença entre algumas das alternativas disponibilizadas. Por exemplo, na questão 3, algu-mas das opções da questão misturam instrumentos de comu-nicação direta, segmentada e/ou massiva. O ideal seria que as alternativas desagregassem tais instrumentos consoante essa categorização geral.

Observou-se, também, que parte dos respondentes marcou mais de uma alternativa, quando a orientação constante do pró-prio questionário era que fosse marcada apenas uma em cada uma das cinco questões fechadas. Mas o fato é que, dado o tem-po disponível para conclusão do trabalho, tais equívocos (mes-mo os notados precocemente) não puderam ser revistos, sob

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2 pena de se comprometer toda a coleta e a amostra já levantada. Mesmo assim, apesar dessas limitações, não se comprometeu o objetivo mor dos questionários. Isso porque foram adotados critérios metodológicos objetivos e imparciais que contornaram tais limitações sem afetação dos resultados finais, o que foi ates-tado pela geração de frequências no software SPSS, descartando questionários viciados e/ou alternativas dúbias, obtendo-se, ainda assim, os mesmos resultados auferidos em toda a amos-tra de 231 questionários submetida aos supracitados critérios metodológicos objetivos e imparciais.

Mesmo assim, certo é que, em cenário de maior disponibilidade de tempo e recursos, o ideal seria que os questionários atuais se con-vertessem em “piloto” para reaplicação, com as correções propos-tas, em pesquisa futura. De todo modo, como dito, as propaladas inconsistências não afetaram a coleta e as informações geradas.

Outro fator que representou limitação foi observado em sede da própria coleta dos dados. Observou-se que era inviável a pre-sença do pesquisador responsável pela aplicação dos questio-nários em todas as audiências públicas realizadas pela CMBH. Isso porque o quantitativo de audiências públicas realizadas se-manalmente é alto, tendo algumas vezes inclusive sobreposição de horários entre elas. Diante disso, cogitou-se de se fazer recor-te temático ou por comissão legislativa da CMBH. Mas houve co-operação institucional por parte da CMBH, que, além de autori-zar a aplicação dos questionários diretamente pelo pesquisador durante as audiências públicas realizadas na sede da instituição, atribuiu ao Cerimonial da Casa o encargo de aplicar tais questio-nários sempre que o pesquisador não pudesse se fazer presente e sempre nos limites de seus encargos, ressalvando-se, assim, a prioridade absoluta de cumprimento dos deveres funcionais dos membros do Cerimonial.

Então, decidiu-se pela cobertura de todas as audiências públicas realizadas entre junho e dezembro de 2011. Entretanto, a des-peito do empenho em cooperar na aplicação dos questionários, o Cerimonial não vinha obtendo o êxito esperado no cumpri-mento do encargo. O pesquisador verificou que, entre os meses

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2de agosto e setembro de 2011, em reiteradas oportunidades, foi alegado pelo Cerimonial excesso de atribuições/encargos fun-cionais, sendo, diante disso, preterida a aplicação dos questio-nários. Isso vinha se refletindo diretamente no quantitativo de questionários recolhidos no período, aquém do volume colhi-do pelo próprio pesquisador. A situação somente foi corrigida quando a Divisão de Assessoramento ao Plenário e às Comissões (DIVAPC-CMBH) assumiu diretamente a aplicação dos questio-nários, normalizando-se assim a situação. Mesmo assim, houve redução da quantidade total de questionários, dado o baixo vo-lume de questionários colhidos inicialmente. Mas isso não com-prometeu a confiabilidade, já que, para uma população de 1.932 pessoas, a amostra foi de 231 pessoas, ou seja, 11,9%. Ademais, frise-se que: 1) por apresentar variáveis não paramétricas, não quantitativas, não há que se falar em erro amostral aplicável; e 2) as inferências e conclusões feitas se adstringem ao universo da população presente nas audiências públicas realizadas pela CMBH, não podendo ser estendidas para outras populações, como a de Belo Horizonte, por exemplo.

Para encerrar, ressalve-se que, apesar do empenho em se man-ter total objetividade e imparcialidade, reconhece-se que algum grau de viés é inevitável, mormente em relação aos dados pro-venientes dos questionários. Isto pelo próprio fato de que não se sabe a opinião daquelas pessoas que compareceram à audi-ência pública, mas, que por razões pessoais, não responderam ao questionário. Observou-se, desde o pré-teste, que as pessoas não aparentaram enfrentar qualquer dificuldade no entendi-mento da proposta do questionário. Aqueles que se mostravam dispostos a respondê-lo o faziam em, no máximo, 6 minutos. O fato de alguns não responderem, consoante observação direta in loco, deveu-se à indisposição para participar da pesquisa, di-ficuldade para leitura em virtude do esquecimento de óculos e/ou analfabetismo.

Tentou-se mitigar todas essas limitações pela acurada análise e pelo cruzamento e sobreposição de conclusões obtidas a par-tir de cada um dos instrumentos de coleta de dados adotados. Além disso, ao longo de toda a pesquisa, buscou-se a fidelidade

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2 aos pressupostos teóricos do modelo conceitual analítico cons-truído a partir da pesquisa bibliográfica em torno dos marcos teóricos da pesquisa, o que, em seu conjunto, julgou-se suficien-te para contornar as supramencionadas limitações.

5. Apresentação e análise dos resultados

Apurou-se que é relativamente recente o interesse da CMBH pela realização de audiências públicas. Nesse sentido, na última legislatura (ocorrida entre os anos de 2005 a 2008) foram reali-zadas 84 audiências públicas; já na atual (dados parciais de 2009 a dezembro de 2011) foram realizadas 395 audiências públicas. Em entrevista, Vieira (2011) afirmou que “os vereadores com-preenderam que esta é uma forma mais eficaz de resolver alguns problemas”. Segundo ela, antes, em algumas oportunidades, os vereadores é que se deslocavam até a comunidade, contatavam as autoridades envolvidas e tentavam costurar a solução das questões. Agora, os envolvidos são trazidos simultaneamente à CMBH para o debate face a face e a tentativa de solução das ques-tões. Ainda segundo ela, a orientação da Presidência da CMBH é que seja priorizada a realização de audiências públicas. Ademais, Vieira (2011) destaca que as audiências públicas são “instrumen-to de fiscalização”, sendo também por isso importantes.

Também recente é a institucionalização do setor de comunica-ção da CMBH (PEREZ, 2012). Está sendo estruturado quadro de jornalistas efetivos e alguns processos de comunicação da CMBH ainda estão sendo padronizados. Em decorrência das mudanças já implantadas, Perez (2012) notou o aumento da cobertura da imprensa sobre as atividades legislativas da CMBH, inclusive de suas audiências públicas. Outro produto importante dessa re-cente institucionalização foi a reformulação do portal da CMBH.

Relançado em 20 de agosto de 2011, o novo portal da CMBH con-ta com layout mais limpo e organizado. As informações estão or-ganizadas por atividades da vida, estando orientadas para as necessidades dos cidadãos, e não simplesmente para refletir a es-trutura departamental da organização pública (VALE, 2006), con-soante preconiza a literatura a respeito (BARBOSA, 2000; UNITED

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2NATIONS, 2001). Assim, estão distribuídas pelos grandes menus da página inicial: “CÂMARA”, “VEREADORES”, “ATIVIDADE LEGIS-LATIVA”, “CIDADANIA”. Isso torna o portal mais amigável ao usuário (internauta, cidadão), aproximando a CMBH de seu público-alvo. A proposta encampada durante a elaboração do portal, ainda segun-do Perez (2012), é a de que este funcione não somente como fer-ramenta de comunicação institucional, mas também como instru-mento de comunicação interna e externa da CMBH. É de se destacar também a consciência de Perez (2012), segundo a qual o portal “nunca está pronto (…), é uma ferramenta em constante movimen-to”, já que é sabido que os portais de governo devem estar perma-nentemente sendo revistos, para melhor atenderem a seu público.

Entre as alterações trazidas pelo novo portal, destaque-se a criação de link específico para as audiências públicas. Mas, ape-sar dos avanços, aprimoramentos ainda podem ser feitos, como a colocação de ferramenta de busca (já disponível em outra área do portal) dentro do link específico para as audiências públicas, destinando-a à recuperação de informações sobre elas e, mais importante, a alimentação, no portal, de informações relativas aos encaminhamentos e conclusões oriundas das audiências, como será adiante detalhado.

A partir dos questionários de pesquisa, verificou-se que tanto a média quanto a mediana das idades dos cidadãos presentes gi-ram em torno dos 48 anos, sendo que cerca de 39% das pessoas presentes têm entre 48 e 65 anos. Quase 60% dos respondentes têm escolaridade de nível superior ou mais7.

Estruturando-se agora a análise em torno das quatro etapas da realização das audiências públicas (tratadas anteriormente), verifica-se o seguinte:

a) quanto à etapa preparatória, verifica-se que cada comissão parlamentar da CMBH tem seus próprios critérios para definir

7 Inevitável, sobretudo nesse dado, algum grau de viés, já que há que se supor que pessoas de escolaridade mais baixa enfrentem mais dificuldades em compreen-der o questionário e, assim, podem se sentir menos dispostas a respondê-lo.

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2 as audiências que serão realizadas e os atores-chave que serão convidados. Os estudos e diligências (inclusive para mapeamen-to de atores-chave) que são realizados internamente à comissão são variados, não cabendo aqui considerações a respeito. Ine-xiste banco de dados estruturado/formalizado com dados dos atores-chave já convidados ou mais comumente convidados pela instituição, escopo para o qual a internet ou a intranet poderiam servir de suporte para disponibilizar esses dados às comissões parlamentares da CMBH. O fato é que, atualmente, da manei-ra como se encontra, a internet tem papel limitado nessa etapa preparatória. Esse papel poderia ser ampliado pela utilização do portal da CMBH como ferramenta de comunicação para auxiliar as comissões no levantamento de informações relevantes acerca de atores envolvidos e de temáticas a serem objeto de audiências públicas. Isso pode se dar à medida que se transforma o portal em repositório de informações – como matérias jornalísticas, artigos acadêmicos, releases de atividades da CMBH, entre outros – a partir dos quais as comissões podem levantar informações úteis à delimitação dos temas que serão submetidos às audiências públicas, bem como à própria identificação dos atores-chave pertinentes. Essa proposta é coerente com a lógica encampada na recente reformulação do portal da instituição.

b) quanto à etapa publicitária, uma vez definida a realização da audiência pública, a divulgação é feita, via de regra, simul-taneamente: 1) pela publicação, no portal da instituição, do requerimento aprovado pela comissão, contendo a relação de convidados, o dia, horário e tema da audiência pública, em or-dem cronológica, na seção de Atividade Legislativa > Audiências Públicas; 2) pela divulgação de nota em formato capaz de des-pertar a atenção dos interessados (PEREZ, 2012) logo na página inicial do portal da CMBH, dentro do espaço reservado às notí-cias; 3) pela inserção de link na agenda8, disponível na parte in-

8 Uma crítica oponível é a de que a divulgação nessa agenda ainda ocorre quase às vésperas do evento. Sempre que ela foi consultada, os eventos eram divulgados com menos de uma semana de antecedência, o que deve comprometer a partici-pação dos interessados que não têm, assim, tempo hábil para se programarem. Essa mesma crítica foi feita por um dos líderes comunitários entrevistados.

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2ferior do portal; 4) pelo disparo de boletim eletrônico (release) enviado aos órgãos da imprensa, informando sobre a realização da audiência pública.

Excepcionalmente, consoante Vieira (2011) e Perez (2012), alguns vereadores providenciam a divulgação, o convite e até o transporte de convidados ou público em geral. Isso ocorre segundo critérios próprios dos parlamentares e, às vezes, em decorrência da inexistência de condições para a assessoria das comissões realizar a convocação institucional. Também excep-cionalmente, algumas audiências têm divulgação nos meios de comunicação de massa, como TV e rádio, mas isso segundo cri-térios das comissões.

Certo é que, a despeito da divulgação fundamentalmente uni-forme exposta acima, algumas audiências contam com maciça participação popular. Um fator que pode justificar essa variação é o próprio tema posto em discussão, havendo temáticas supos-tamente mais sensíveis à participação. “Outras vezes, a ampla participação é decorrência do número de pessoas afetadas pelo problema” (VIEIRA, 2011). Mas o fator que aparentemente mais justifica o amplo comparecimento da população, segundo obser-vação direta não estruturada de um dos pesquisadores corrobo-rada em linhas gerais pelas entrevistas realizadas, é o grau de mobilização da população afetada. Ainda não se pode afirmar ca-tegoricamente que a ampla participação seja decorrência direta da mobilização influenciada pela atuação dos “reeditores sociais” (TORO e WERNECK, 2007), mesmo porque essa investigação não foi o objeto da pesquisa, perpassando-a apenas incidentalmen-te. Mas há fortes indícios de que o seja. Explica-se: mobilizar, se-gundo Toro e Werneck (2007, p. 5), é “convocar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados”. A mobilização inicia-se pelo chamamento, pela convocação das pessoas para uma causa e implica o engajamento, a criação de ligação duradoura em razão dessa causa, de um propósito comum. Esse propósito é um pro-jeto de futuro estável (TORO e WERNECK, 2007). Nesse esteio, a comunicação para mobilização não tem por objetivo apenas a divulgação do evento, mas também a convocação para a partici-

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2 pação. Toro e Werneck (2007), Duarte (2007) e Mássimo (2010) assumem que é a comunicação direta a que tem mais condições de promover mobilização. Os instrumentos de comunicação de massa (como TV, rádio) e segmentada (como jornais, revistas ou sites específicos) são limitados nesse sentido, atuando, contudo, em outras dimensões, como dito mais acima. Mas, em termos de mobilização, é aceito que as pessoas saem de suas rotinas pri-vadas fundamentalmente pelo estímulo direto propiciado pelos “reeditores sociais” (TORO e WERNECK, 2007), que são pessoas que, por seu papel, ocupação ou posição social, têm a capacidade de entrar em contato diretamente com o público-alvo a ser convi-dado, estimulando-o a engajar-se num dado propósito, tal como ocorre com líderes comunitários e sindicais. Nesse cenário, a maior divulgação da realização das audiências públicas pela CMBH por meio de instrumentos de comunicação de massa ou segmentada (incluindo-se aí a internet) não deve-rá acarretar, por si só, o aumento da participação popular. Essa medida, conforme literatura acima sumariada, apenas tornará a ocorrência desses eventos mais permeável, mais presente na consciência coletiva da população. Mas não garantirá a presen-ça, a mobilização dos atores sociais para participarem das au-diências públicas. Essa constatação foi confirmada em todas as entrevistas realizadas junto aos líderes comunitários/sindicais e acabou por refutar a premissa pela qual se acreditava que a maior divulgação da realização das audiências públicas pela in-ternet genericamente considerada automaticamente promove-ria maior participação.

Também os dados dos questionários de pesquisa aplicados junto aos cidadãos presentes em audiências públicas organizadas pela CMBH reforçaram essa constatação, destacando a relevância da co-municação direta, na qual se insere o papel desempenhado pelos “reeditores” (como líderes comunitários e sindicais), para a mobi-lização das pessoas estimulando-as a participarem das audiências públicas. Questionados sobre como ficaram sabendo da realiza-ção da audiência pública, 52,19% dos respondentes apontaram a comunicação pessoal (seja em visita à CMBH ou via contato com colegas de trabalho, vizinhos, lideranças da comunidade, parentes,

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2amigos, funcionários e/ou vereadores da CMBH). Em segundo lu-gar, com 21,93%, foi apontada a internet, genericamente conside-rada, acompanhada das demais respostas indicadas na Figura 1:

Categorizando as respostas da Figura 1 segundo a classificação de Duarte (2007), obtém-se a mesma conclusão já esposada (confira-se a Figura 2):

Diante dessas evidências, pode-se afirmar que, na etapa publi-citária, ao desenvolver sua estratégia de comunicação pública, a CMBH deve considerar o papel desempenhado pelos reeditores

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Figura 1 – Por qual instrumento de comunicação o responden-te teve ciência da audiência pública (em %).

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Massa Segmentada Direta

Figura 2 – Instrumentos de comunicação, classificados segun-do Duarte (2007), pelos quais os respondentes tiveram ciência da audiência pública (em %).

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2 sociais, contatando-os por meio de instrumentos de comunica-ção direta. Essa comunicação deve ser prévia o suficiente para que eles tenham tempo hábil de promover a mobilização dos cidadãos com que têm contato. Mas isso não significa que os instrumentos de comunicação direta são mais importantes que os de massa e a segmentada e que, por-tanto, estes últimos possam ser deixados de lado. Na verdade, os três tipos são necessários (TORO e WERNECK, 2007), cada qual com seu respectivo papel. A estratégia de comunicação pública deve contemplar a complementaridade entre esses instrumen-tos de comunicação. Não se pode apenas contatar diretamente os “reeditores sociais” e abandonar qualquer sorte de divulgação no portal da CMBH, ou, ainda, deixar de encaminhar nota (relea-se) aos órgãos de imprensa. Os instrumentos de comunicação de massa, como dito alhures, posicionam o imaginário e coletivizam e legitimam a atuação dos reeditores (TORO e WERNECK, 2007). Os instrumentos de comunicação segmentada aprofundam o de-bate e mantêm informados nichos específicos do público. É justa-mente sob essa ótica da complementaridade que o investimento na difusão de informações, por intermédio das diferentes mídias suportadas pela internet, mostra-se relevante. c) quanto à etapa executória, durante as audiências públicas, a assessoria das comissões parlamentares da CMBH redige ata com a pauta (tema) da audiência, bem como com o registro das deliberações e falas dos participantes. Esse documento, assim como outros pertinentes ao evento, é disponibilizado no portal da CMBH. Entretanto, são observadas dificuldades de acesso e recuperação dessas informações, o que pode ser corrigido mediante ações simples por parte da CMBH, como o remanejamento de links e a inserção de ferramenta de busca no link específico das audiências públicas no portal da insti-tuição9. Além disso, segundo Perez (2012), a CMBH está inves-tindo na transmissão, de suas audiências públicas, via site da

9 Detalhamento das recomendações feitas no sentido de se aprimorar o acesso e a recuperação de informações relativas às audiências públicas no Portal da CMBH pode ser consultado em Freitas (2012).

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2TV Câmara, tendo, inclusive, projetos para transmissão ao vivo das audiências públicas em alta resolução (gerando material passível de aproveitamento também em TV). Essas iniciativas aumentam a visibilidade e a acessibilidade às audiências, sen-do por isso válidas e devendo serem integradas às já existentes e disponibilizadas no portal da CMBH.

Finalmente: d) quanto à etapa da divulgação e acompanha-mento dos encaminhamentos e resultados, a oficialização/materialização da solução alcançada após as deliberações em sede das audiências públicas dificilmente se dá ainda no am-biente da audiência pública, devendo ser observadas formali-dades ou procedimentos pertinentes à temática para concreti-zar tal deslinde. Isso se justifica uma vez que essas temáticas quase sempre envolvem outros atores, como órgãos do Execu-tivo, empresas, entidades da sociedade civil, entre outros, que, para cumprirem o que ficou acordado, precisam de tempo e da obediência a certos procedimentos para efetivar o que res-tou definido em audiência. Por isso, mesmo as audiências que não geram encaminhamentos, como diligências externas, no-vas pesquisas, novas rodadas de diálogo, entre outros, dificil-mente se concretizam imediatamente ao alcançarem o fim dos debates, restando sempre medidas a serem observadas pelos atores envolvidos.

É nessa etapa que se observa o aspecto crítico no qual a in-ternet mais pode contribuir para a comunicação pública das audiências, representando um facilitador nesse contexto. E é também nessa dimensão que se nota maior dificuldade para se perquirirem on-line (via portal da CMBH) as soluções e/ou encaminhamentos tomados e efetivamente cumpridos após a realização das audiências públicas. Conforme se apurou por intermédio das entrevistas realizadas, bem como pela obser-vação direta dos pesquisadores, inexiste registro centralizado acerca das conclusões auferidas das diversas audiências pú-blicas realizadas pela CMBH. O controle disso fica a cargo dos próprios parlamentares e de suas respectivas comissões. Ou seja, os cidadãos (inclusive os “reeditores sociais” tratados su-pra) interessados em se informar sobre o desfecho ou sobre o

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2 estágio de cumprimento dos encaminhamentos avençados de-vem se dirigir diretamente aos parlamentares/comissões ou, então, à Central de Atendimento ao Cidadão (via telefone ou formulário eletrônico). Isto porque não há informação pública e institucionalizada a esse respeito.

Diante disso, pensa-se que a mudança dos procedimentos admi-nistrativos, da rotina pertinente às audiências públicas realiza-das pela CMBH pode alterar esse cenário. Em vez de manter os dados relativos às conclusões e/ou encaminhamentos oriundos das audiências públicas guardados pelos próprios parlamen-tares/comissões, pensa-se que estes poderiam, diretamente ou por intermédio da assessoria das comissões, repassá-los ao portal da CMBH (na seção das audiências públicas, dentro do link da respectiva audiência, juntamente com o restante da do-cumentação da audiência). Aí, podem ser registradas todas as medidas tomadas, as reuniões agendadas, as diligências feitas e, finalmente, os resultados obtidos, concretizados e definitiva-mente superados.

Observe-se que, para esse propósito, a internet é um ins-trumento de comunicação privilegiado, dadas suas caracte-rísticas peculiares, como o baixo custo operacional (PEREZ, 2012), sua estrutura horizontalizada, com grande penetração. Além disso, há que se destacar a potencialidade da internet para possibilitar o acesso a enorme gama de informações ins-tantânea e simultaneamente (KUMAR, 1997), de forma rápi-da, barata, com grande potencial para reprodução e difusão autônoma e com variada gama de recursos para conexão e in-teratividade com os cidadãos (internautas). São essas caracte-rísticas que a coloca em relevo se comparada com os demais instrumentos de comunicação, como a imprensa tradicional (jornais e revistas impressos) e os meios tipicamente de mas-sa, como a TV e o rádio.

Saliente-se, também, como dito alhures, que a divulgação dos encaminhamentos e resultados das audiências públicas é coro-lário lógico e jurídico do próprio instituto das audiências pú-blicas, de seu conceito e procedimentos elementares. Portanto,

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2este é um aspecto que articula todo o trabalho: desde a compre-ensão do instituto das audiências públicas, de suas caracterís-ticas e propósitos imanentes, até o emprego da internet que se mostra mais próspera. Ademais, a supracitada divulgação dos encaminhamentos/re-sultados é medida de responsividade e transparência do traba-lho dos parlamentares. Inclusive, nesse aspecto, de se ressaltar que essa medida contribui para divulgar trabalho efetivo dos membros do Legislativo, repercutindo positivamente na ima-gem desse Poder e de seus parlamentares perante a sociedade, em outros termos, dando maior o (re)conhecimento do trabalho desenvolvido por seus representantes no Legislativo.

Outrossim, à medida que os cidadãos percebem que sua partici-pação nas audiências públicas foi efetiva, ou seja, contribuiu e/ou foi considerada (positiva ou negativamente) na construção da decisão para a temática submetida à audiência, maior é o es-tímulo para tornarem a participar dessa sorte de evento; maior o ânimo de se inteirarem dos assuntos políticos. Nesse sentido, Maia (2011, p.57) afirma que:

[…] as pessoas se mostram mais propensas a participar em questões políticas quando sabem que suas opiniões e preferências serão levadas em consideração ou que suas ações poderão ter consequências diretas e, portanto, participar faz diferença.

Portanto, a medida presentemente tratada é de fundamental interesse para a CMBH (assim como para outras casas legisla-tivas) e para o próprio exercício da cidadania, sendo o momen-to atual favorável à sua implantação. Primeiro, porque a CMBH vem estruturando seus procedimentos de comunicação, no que se inclui o novo portal da instituição. Segundo, porque, nas en-trevistas realizadas junto aos líderes comunitários/sindicais, verificou-se que todos eles guardam expectativas positivas quanto às audiências públicas, tidas como importante instituto de participação que ganha espaço em vários segmentos do ce-nário político brasileiro.

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2 6. Conclusão

Este trabalho empreendeu esforço em sintetizar estudo de caso que analisou o uso da internet como instrumento de co-municação pública pela CMBH, na disseminação de informa-ções sobre as audiências públicas por ela organizadas. Foi feita a articulação de duas unidades temáticas (instituto das audi-ências públicas e internet como instrumento de comunicação pública) relativamente recentes no Brasil (surgidas/intensifi-cadas a partir da década de 1990) e, até por isso, de incipiente tratamento pela literatura especializada que está ávida, assim, por novas contribuições para a área, o que a pesquisa pretende representar.

Reforça-se a linha de pesquisa que é terreno fértil para a Aca-demia, que pode prosseguir e avançar com os estudos nessa área. É possível, por exemplo, o aprofundamento deste trabalho, detalhando o uso da internet em suas diferentes interfaces de comunicação. Isto porque ela suporta múltiplas possibilidades de comunicação – direta, massiva e segmentada – tudo isso con-centrado na mesma interface de comunicação. Por isso, seria pertinente a realização de estudo, detalhando o uso da internet em cada uma dessas interfaces, como, por exemplo, focando o uso das redes sociais (Twitter, Facebook, etc.), de e-mails, de fó-runs de discussão, entre outros.

Sob o ponto de vista pragmático, são feitas contribuições de ordem prática (proposições de melhorias) passíveis de serem apropriadas pela CMBH ou por quaisquer outras entidades que organizem audiências públicas (como as diferentes casas legis-lativas), já que, apesar de a pesquisa ter configurado estudo de caso da CMBH, ela pode ser estendida a outros âmbitos, o que a torna relevante do ponto de vista social, pois pode ser apropria-da por outras esferas da vida em sociedade. Aliás, isso por si só já dá azo à realização de outras pesquisas, que podem replicar a metodologia ora desenvolvida em outras dimensões ou em outras entidades, como assembleias legislativas, câmaras mu-nicipais de outras cidades ou mesmo em outras entidades que organizem audiências públicas. Para isso, crê-se que os eixos te-

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2órico-analíticos edificados a partir das duas unidades temáticas (instituto das audiências públicas e internet como instrumento de comunicação pública) forneçam categorias de análise para trabalhos futuros.

A partir da articulação dos subprodutos dos diversos instru-mentos de coleta de dados empregados, verificou-se que o uso da internet nas etapas preparatória e executória é apenas incidental/acessório. Na etapa publicitária das audiências públicas, a internet tem alcance relevante, porém limitado. Os dados levantados via questionário aplicado a cidadãos presentes em audiências públicas e as próprias entrevistas realizadas reforçaram o que a literatura advertira acerca do alcance limitado dos instrumentos de comunicação de mas-sa e segmentada para a mobilização das pessoas. Verificou-se que a maior parte dos cidadãos presentes em audiências públicas realizadas pela CMBH tiveram ciência dela por in-termédio de instrumentos de comunicação direta, feita, so-bretudo, por líderes comunitários/sindicais. Isto evidenciou que, consoante literatura específica apontada, é a comunica-ção direta, normalmente pessoal, que tem a capacidade de mobilizar as pessoas a deixarem suas rotinas e se engajarem em causa comum. Assim, entende-se que a maior divulgação da realização das audiências públicas pela CMBH por meio de instrumentos de comunicação de massa ou segmentada (in-cluindo-se aí a internet) não acarretará, por si só, o aumento da participação popular nessas audiências.

Já na etapa de divulgação dos encaminhamentos/resultados, o uso da internet mostrou-se mais promissor. Concluiu-se que essa é a etapa em que o uso da internet mais pode contribuir para o procedimento das audiências públicas organizadas pela CMBH. Demonstrou-se que a divulgação dos resultados/conclusões após o encerramento dos trabalhos na audiência pública é corolário lógico e jurídico do próprio instituto das audiências públicas, de seu conceito e seus procedimentos elementares. Entretanto, observou-se grande dificuldade em se informar (inclusive via internet) acerca desses resulta-dos/encaminhamentos, adotados e efetivamente cumpridos

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2 após a realização da audiência pública. Esta é dimensão que articula todo o trabalho: desde a compreensão do instituto das audiências públicas, de suas características e propósitos imanentes, até o emprego da internet onde esta mais se mos-tra próspera, no provimento de informações de forma rápida, barata, com grande potencial para reprodução e difusão au-tônoma e com variada gama de recursos para conexão e in-teratividade com os cidadãos (internautas). Nessa dimensão, a CMBH pode fazer da internet instrumento de comunicação pública com o qual divulga informações relativas às audiên-cias públicas apropriáveis pelos cidadãos (mormente, pelos reeditores sociais) para realização da cidadania. Ao mesmo tempo, isto representa ferramenta de publicização do labor dos parlamentares eleitos e, mais importante, tornam públi-cos os resultados das audiências, valorizando e estimulando a participação dos cidadãos.

Em suma, como dito, o estudo pode ser replicado em outras dimensões/instâncias. Algumas lacunas não ficaram total-mente esclarecidas, como o fato de algumas audiências con-tarem com grande público presente, enquanto outras vazias. O uso da internet nas etapas publicitária e de divulgação e o acompanhamento dos resultados (sobretudo) podem ser mais detalhados, precisando-se como pode se dar tal uso, uma vez considerada a ampla gama de recursos providos pela interface de comunicação baseada na internet e suas múlti-plas possibilidades como o uso via, por exemplo, das redes sociais (Twitter, Facebook, etc.), e-mail, fóruns de discussão, newsletter, entre outros. Estas são questões passíveis de ulte-rior aprofundamento.

Por ora, este trabalho limita-se às contribuições ora expendidas para o estudo de seu objeto, que envolve unidades temáticas contemporâneas e incipientes no cenário brasileiro (internet e audiências públicas), trazendo elementos empíricos sobre eles, retrabalhando elementos conceituais e realizando proposições de cunho prático assimiláveis pelos entes organizadores de au-diências públicas no intuito de aprimorarem a forma como rea-lizam audiências públicas.

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Ana Paola Amorim1

Mestre em Ciência da Informação pela Escola da Ciência da Informação da UFMG, é doutoranda em Ciência Política, no programa de Pós-Graduação do Departa-mento de Ciência Política da UFMG. Professora assistente do curso de Jornalismo da Universidade Fumec. Contato: [email protected]

Resumo: Neste artigo discute-se o papel político da mídia na organização da vida democrática a partir da constatação do declínio da legitimidade de instituições eleitorais representativas, que põem em evidência outras formas de legitimidade democrática. Uma premissa adotada neste trabalho é a de que pensar o papel da mídia numa ordem política democrática passa, obri-gatoriamente, por refletir sua relação com um processo de democratização da opinião pública, o que reforça um papel político que nem sempre é ad-mitido pela própria mídia, que, seguindo um modelo liberal, busca se legiti-mar a partir de uma noção de imparcialidade e independência em relação à política. Para isso, são mobilizadas questões de fundo em torno do tema da comunicação e política, incorporando os fundamentos filosóficos do republi-canismo como possibilidade de se construirem respostas aos impasses iden-tificados no centro da teoria liberal. A ideia é discutir não só o papel da mídia nos sistemas políticos, mas também questionar os próprios princípios que organizam a relação entre os dois sistemas, trazendo a discussão para repen-sar o conceito de público, seguindo uma dimensão discursiva da democracia.

Palavras-chave: Mídia. Opinião pública. Legitimidade. Democracia.

Mídia, opinião pública e legitimidade democrática

1As reflexões deste artigo foram originalmente elaboradas ao fim da disciplina Autoridade, legitimidade, democracia, ministrada pelo professor Fernando Fil-gueiras no programa de Pós-Graduação do Departamento de Ciência Política da UFMG. Ao professor, agradeço a interlocução. Este artigo é também tributário das muitas conversas que tenho tido com o meu orientador no programa, professor Juarez Guimarães, que tem sido responsável por ampliar minha compreensão sobre as múltiplas leituras da democracia. Agradeço também ao(à) anônimo(a) parecerista da Revista do Legislativo, pelas observações e apontamentos que con-tribuíram para aprofundar e organizar os argumentos deste artigo.

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2 Abstract: This article aims at discussing the political role of the media in the organi-zation of democratic life in face of the perceived legitimacy decline of representative electoral institutes, which brings prominence to other forms of democratic legitimacy. One of the assumptions espoused herein is that to think on the role of the media in a democratic political order is to delve on its relationship to a process of public opinion democratization, which reinforces a political role not always accepted by the media themselves who, accordingly to a liberal model, searches for legitimacy based on the notion of impartiality and independence with respect to politics. For that purpose, ba-ckground issues on the theme of communication and politics are set out, incorporating the philosophical bases of Republicanism as a possibility of building solutions to impas-ses identified in the core of the liberal theory. The intention is not only to discuss the role of the media in the political systems, but also to challenge the very principles organizing the relationship between media and politics, in order to rethink the concept of “public” (in opposition to “private”) within a discursive dimension of democracy.

Keywords: media, public opinion, legitimacy, democracy.

Introdução

Em 1980, a Unesco editou o relatório “Um mundo e muitas vo-zes – comunicação e informação na nossa época”. Era o resulta-do de uma comissão, presidida pelo jurista e jornalista irlandês Sean McBride e composta de mais 15 especialistas de diversos países2, que havia sido formada com o objetivo de fazer uma avaliação sobre o problema da desigualdade informacional na sociedade de massa, seguindo uma discussão mais ampla, ini-ciada entre os anos 1960 e 1970 pela Unesco sobre o papel da comunicação para o fortalecimento das democracias. O docu-mento se destacou pela densidade de seu conteúdo, cujo foco principal era a proposta de incentivar a implementação de polí-ticas públicas voltadas para instituir uma “nova ordem mundial

2Amarou-Mahtar M’Bow, então diretor-geral da Unesco, descreveu, na introdu-ção do documento, a comissão como uma “concentração de cérebros”. Presidida por Sean McBride, a comissão incluiu os seguintes membros: Elie Abel (EUA), Hubert Beuve-Méry (França), Elebe Ma Ekonzo (Zaire), Gabriel García Marquez (Colômbia), Sergei Losev (na época, URSS), Mochtar Lubis (Indonésia), Musta-pha Masmoudi (Tunísia), Michio Nagai (Japão), Fred Issac Akporuaro Omu (Ni-géria), Bogdan Osolnik (na época, Iugoslávia), Gamal El Oteifi (Egito), Joahnnes Pieter Pronk (Holanda), Juan Somavia (Chile), Boobli George Verghese (Índia) e Betty Zimmerman (Canadá).

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2de informação e comunicação” (trabalhada no documento sob a sigla Nomic)3. Essa proposta foi elaborada diante da constata-ção de que a concepção do livre fluxo de ideias era insuficiente para garantir a universalização do direito à comunicação, justa-mente porque desconsidera a situação de desigualdade infor-macional. O relatório sofreu boicote da Inglaterra e dos Estados Unidos, que na época se desligaram da Unesco em sinal de pro-testo e sob alegação de que o documento conteria sérios riscos à liberdade de expressão. A partir de então, não houve iniciativa, por parte da Unesco, de dar desdobramento ao documento, que também ficou conhecido como Relatório McBride. A questão da comunicação, considerada essencial na defesa da democracia e na promoção da cidadania, não sai da pauta, mas assume outro enfoque na instituição. Mais recentemente, o documento de re-ferência passa a ser Indicadores de desenvolvimento da mídia: marco para avaliação do desenvolvimento dos meios de comu-nicação4. Passa a enfatizar o papel da mídia na promoção de uma cidadania informada e, nesse contexto, estabelece indicadores que avaliem o desenvolvimento da mídia em vários países.

O resgate desse episódio é bastante ilustrativo sobre os impas-ses que envolvem o tema proposto neste artigo: discutir o papel político da mídia na organização da vida democrática a partir da constatação do declínio da legitimidade de instituições elei-torais representativas, que põem em evidência outras formas de legitimidade, democrática. A proposta é apresentar algumas reflexões com base na discussão desenvolvida por Rosanvallón (2009) sobre as novas formas emergentes de legitimidade que se estruturam como alternativa e contraponto às formas tradi-

3O relatório está entre os documentos mais detalhados sobre a importância da comunicação na sociedade contemporânea. Sobre o pioneirismo e importância do documento e detalhes da polêmica envolvendo sua publicação, ver: Lima (2008) e Ramos (s/d).

4Produto do Programa Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação (IPDC), da Unesco, o documento foi editado 30 anos após a publicação do Rela-tório McBride Foi aprovado pelo Conselho Intergovernamental do IPDC, durante sua 26ª sessão, realizada entre os dia 26 e 28 de março de 2008.

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2 cionais e centralizadoras de legitimação da autoridade demo-crática. Esses novos modelos evidenciam um pedido de descen-tramento das democracias, em especial às que se referem aos registros e mecanismos de identificar e articular as demandas por particularidade em contraposição aos paradigmas de gene-ralidade, nas dimensões da proximidade, da presença e da in-teração. Essa perspectiva evidencia a importância de formação de uma opinião pública democrática que possa validar as novas formas de legitimidade, uma vez que elas trabalham com a pers-pectiva de redefinir a relação entre governantes e governados, propondo quebrar padrões mais rígidos da hierarquia entre o poder e a sociedade (ROSANVALLON, 2009)5.

Uma premissa adotada neste trabalho é a de que pensar o papel da mídia numa ordem política democrática passa, obrigatoria-mente, por refletir sua relação com a formação de uma opinião pública democrática, o que reforça um papel político que nem sempre é admitido pela própria mídia, que, seguindo um mode-lo liberal, busca se legitimar a partir de uma noção de imparcia-lidade e independência em relação à política. No entanto, essa reivindicação de distanciamento não se sustenta por conta do próprio impasse, que gera no debate sobre a relação entre mídia e política desenvolvido no centro das democracias liberais.

A identificação da influência do sistema político na organização da mídia é tema de um trabalho pioneiro desenvolvido nos anos 1950 pelos pesquisadores estadunidenses Siebert, Peterson e Schramm (citados por HALLIN e MANCINI, 2004a). Recentemente, podemos destacar as pesquisas desenvolvidas por Hallin e Mancini, que buscam detalhar essa ligação entre sistema político e sistema de mídia, indicando uma relação de muito mais reciprocidade e in-terdependência do que indicavam os primeiros trabalhos na área.

Na linha de estudos sobre as inter-relações entre mídia e siste-ma político, estão trabalhos que exploram os desdobramentos

5Sobre essa questão, conferir principalmente o capítulo 2 da terceira parte do livro La légitime démocratique, que trata do tema “democracia de presença”.

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2postos pelos modelos deliberativos de democracia, incorpo-rando discussões sobre o papel do público e da mídia para a qualidade das deliberações6. Essas formulações se alinham ao esforço das críticas às limitações dos modelos centralizadores de legitimação da autoridade democrática, isto é, repercutem e desenvolvem os estudos das críticas elaboradas às concepções elitistas da teoria democrática. Nesse sentido, avançam em rela-ção à base do pensamento habermasiano, que fundamenta, por meio da compreensão discursiva do conceito de esfera pública, uma teoria crítica da democracia.

Este artigo direciona a atenção para questões de fundo em tor-no do tema da comunicação e política, incorporando os funda-mentos filosóficos do republicanismo como possibilidade de se construírem respostas aos impasses identificados no centro da teoria liberal7. A questão seria não só discutir o papel da mí-dia nos sistemas políticos, mas também questionar os próprios princípios que organizam a relação entre os dois sistemas. Esse caminho é adotado no artigo por considerar a leitura de crise de

6Neste grupo, podemos citar os trabalhos de Maia (2009); Gomes e Maia (2008) e Porto (2003).

7A disputa entre liberais e republicanos tem orientado o debate liberal-comuni-tário contemporâneo. Nesse exercício, aceitamos a observação de Taylor (2000 [1995]) e acolhemos sua advertência para que essa discussão seja feita iden-tificando pontos entrelaçados no debate entre comunitaristas e liberais, que, quando não são devidamente considerados, tornam-se fontes de “confusão”. O questionamento de Taylor dirige-se aos que abordam a questão como um deba-te entre dois partidos homogêneos e distintos entre si, divididos entre individu-alistas atomistas de um lado e coletivistas holistas de outro, como se a preocu-pação holística fosse exclusiva dos comunitaristas e os liberais encerrassem toda agenda individualista desprendida das dimensões coletivas da vida social. É uma crítica à simplificação da leitura, que impede perceber as fronteiras intercam-biantes entre dois campos teóricos e, com isso, não alcança as variadas e plurais matizes de análises de regimes liberais patrióticos. Contudo, acrescentamos à de Taylor uma outra advertência: o reconhecimento da existência de fronteiras intercambiantes não conduz, obrigatoriamente, à interpretação de que o debate deva ser orientado para definição de um campo comum entre as duas correntes de pensamento, como se uma linguagem fosse complementar à outra. As compre-ensões distintas de liberdade fazem com que as duas correntes de pensamento se organizem como formas diferentes de ver o mundo. Cf. Honohan (2010 [2002]).

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2 legitimidade democrática como uma crise da teoria liberal, con-siderando as revisões de literatura nas quais os modelos des-centralizados de legitimidade são apresentados como respostas ao modelo elitista por não darem conta de atender a todas as demandas de representação na sociedade. Para Rosanvallón, as crises das instituições partidário-represen-tativas da política representam muito mais uma crise da teoria do que da democracia propriamente dita (LYNCH, in: ROSANVALLÓN, 2010). Diante disso, apresenta-se a necessidade de se reformular as teorias democráticas, considerando e incorporando o caráter per-manentemente aberto da política. A comunicação carece de uma re-visão teórica com o mesmo caráter proposto por Rosanvallón, para que possa alcançar as mudanças de paradigma em curso.

Se nos debates em torno das novas formas de legitimação demo-crática sobressai o tema das instâncias deliberativas orientado pela preocupação em torno da qualidade da democratização desses espaços, isso requer uma reflexão mais aprofundada so-bre a formação de um público crítico e sobre o conceito de uma opinião pública democrática. Considerando a realidade de uma sociedade de massa mídia-centrada (Lima, 2004), isso impõe que, na comunicação, a teoria se dedique a repensar o conceito de público e reflita sobre os reflexos das novas demandas desse público sobre sua responsabilidade social. Rosanvallon (2009) articula a necessidade de se repensar o papel do jornalismo à discussão sobre desenvolvimento de novas instituições de inte-ração social, partindo da premissa de que o desenvolvimento da democracia sempre esteve articulado com as reflexões sobre a imprensa (p. 310-311). No entanto, acredito que essa discussão deva ser ampliada para o sistema de mídia como um todo, sem se restringir às questões da imprensa e responsabilidade social do jornalista, justamente por conta da característica de centralidade midiática descrita por Lima (2004), como veremos mais adiante.

Este texto traz algumas reflexões em torno da discussão propondo algumas especulações sobre a possibilidade de trabalhar o tema mais pela convergência entre comunicação e política do que pela

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2distinção mais rígida de campos, explorando uma limitação do modelo liberal. Acredito que as democracias liberais não oferecem condições para responder satisfatoriamente ao problema do papel político da mídia, porque o paradigma liberal está na origem dos impasses apresentados, sobretudo quando prevalece o esforço de manter política e comunicação em campos distintos, ainda que co-municantes e altamente permeáveis entre si. A opção pelo republi-canismo explica-se porque retoma a discussão sobre a construção política dos direitos individuais, contrapondo-se à falsa dicotomia entre liberdade política e liberdade civil difundida por leituras li-berais como as de Benjamin Constant8. Isso nos permite buscar formas alternativas para recepcionar e trabalhar o tensionamento que há na relação entre público e privado e que está presente nos estudos sobre mídia e política. Por isso, e considerando as inter-locuções entre os modelos democráticos, procura estabelecer um campo crítico-dialógico, e não antagônico, com as teorias delibera-tivas orientadas pela dimensão discursiva da política.

A primeira parte do texto apresenta a questão a partir do dilema liberal, segundo o qual a mídia busca se legitimar reivindicando uma situação de distanciamento do campo político, ao mesmo tem-po em que reivindica uma responsabilidade política de defesa da democracia. Para discutir a importância da mídia, a segunda parte encontra-se dividida em dois momentos: no primeiro, é feita uma breve passagem pela filosofia política para identificar uma impor-tante discussão sobre o princípio republicano de visibilidade e o papel da opinião pública. No segundo, a discussão é trazida para

8Comparato, no prefácio do livro de Lima (2010), aponta esse problema de abor-dagem antagônica entre as duas liberdades como herança do pensamento libe-ral do século XIX: “Benjamin Constant, em conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris em 1819, sustentava que, enquanto os gregos e os romanos só se preocuparam com a liberdade pública (...) e desconheciam a autonomia privada, os modernos atribuem ao Estado praticamente uma única função: garantir as liberdades individuais. Com isto, perdemos tanto uma quanto as outras”. (COM-PARATO, in: LIMA, 2010, p. 10). Sobre a simplificação dessa dicotomia, ampa-rada pela contextualização do texto de Constant na formulação do pensamento liberal do século XIX, cf. Bignotto (2003). O Departamento de História da Fafich/UFMG disponibiliza uma tradução do texto de Constant. Cf. Constant (s/d).

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2 o quadro contemporâneo, ao tratar das relações entre comunicação e política em um ambiente mediatizado. A ideia é tentar identificar bases para problematizar o papel da mídia diante do desafio de de-mocratizar a opinião pública no esforço de se pensar em formas des-centralizadas de legitimação democrática, tal como discutida por Ro-sanvallón. Nesse ponto, algumas considerações são descritas acerca das possibilidades de desenvolver abordagens mais politizadas da mídia; isto é, abordagens que permitem identificar o papel político da mídia considerando a relação entre comunicação e política.

Mídia e política: relações conflituosas

De acordo com Hallin e Mancini (2004b), o impacto dos meios de comunicação de massa sobre as mudanças nos sistemas po-líticos ainda não foi devidamente medido, sendo que a maior parte das investigações na área tenha se dedicado a levantar hi-póteses ou a trabalhar impactos em episódios específicos, com base em de teorias de recepção de conteúdo ou do processo de produção de notícia ou de representações. No entanto, como os autores ressaltam, não há como analisar um sistema de mídia sem considerar sua relação de interdependência com os siste-mas políticos, destacando que os sistemas de mídia não só refle-tem aspectos da organização social, mas também a influenciam (HALLIN e MANCINI, 2004a)9.

9Os trabalhos de Hallin e Mancini são citados como referência nos estudos compa-rativos de mídia e política em função da metodologia criada especificamente para estabelecer a relação entre sistemas político e midiático. A pesquisa original está publicada no livro Comparing Media Systems: three models of media and politics. Há referências importantes que, mesmo não tendo a questão da comunicação como central, remetem à importância de se discutir o impacto da mídia nos sistemas políticos e, em especial, o papel da mídia nas democracias. Para Miguel (2000), a comunicação e a mídia ainda são um ponto cego nas teorias democráticas. No Brasil, destacam-se os trabalhos de Lima (2001, 2006). Ver ainda, entre outros, Mi-guel (2002), Miguel e Biroli (2010). As hipóteses da espiral do silêncio e agenda setting são utilizadas para discutir o impacto da mídia na formação da agenda e comportamento político – conferir Wolf (1987). Para uma leitura crítica da agen-da setting, ver Fonseca (2005), Fuks (2000). Há uma compreensão emergente da necessidade de abordagens mais amplas, que não considerem exclusiva e unilate-ralmente os impactos da mídia na política. Cf. Habermas (2006), Wessler (2008).

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2Ao mesmo tempo em que há o reconhecimento da relação en-tre os dois sistemas e da centralidade crescente da mídia na organização política, verifica-se uma tendência de padroniza-ção a partir do modelo de mídia (HALLIN e MANCINI, 2004a), desenhando um impasse sobre a discussão da mídia como ator político. Pesquisando 19 países de democracia liberal (Estados Unidos e 18 países da Europa Ocidental), os autores cruzaram quatro características dos sistemas de mídia (desenvolvimento da imprensa de massa, paralelismo político10, profissionalização e intervenção estatal) com cinco características dos sistemas políticos (história política, governos majoritários ou consensu-ais, nível de organização social, papel do Estado e força da au-toridade legal-racional) e, com isso, classificaram três modelos políticos e de mídia nos quais identificaram distinções e inter-relações: i) modelo mediterrâneo ou pluralista-polarizado; ii) modelo do centro/norte europeu ou corporativista-democrá-tico e iii) modelo do Atlântico Norte ou liberal. No entanto, os pesquisadores observam que estão praticamente diminuindo as diferenças entre os sistemas nacionais de mídia analisados em seu trabalho, por conta do surgimento de uma “cultura glo-bal”, responsável pela homogeneização dos sistemas a partir do modelo liberal, que é tratado como referência e modelo de profissionalização e desenvolvimento de mídia (p. 294). Na ori-gem desse processo, estaria a prevalência do econômico sobre o político, levando a uma concepção mais individualista e menos coletivista de sociedade.

O ideal de profissionalização evidenciado pelo modelo liberal, que vem se tornando hegemônico, é construído sobre a reivindi-cação de separação entre a lógica da mídia e a lógica da política, em especial a lógica partidária, seguindo a perspectiva da teoria da diferenciação. Essa premissa orienta o processo de cresci-mento da profissionalização do setor, sobretudo no jornalismo, em que o predomínio do gênero informativo sobre os gêneros opinativos e mesmo interpretativos é, para além de uma evolu-

10O paralelismo político aqui é utilizado para identificar uma imprensa politica-mente ativa, que assume posições políticas abertamente.

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2 ção, medida de legitimidade para a conquista de públicos cada vez maiores. A partir dessa demanda, a filosofia da objetivida-de é disseminada sob a ótica da neutralidade. Por decorrência, a subjetividade do profissional é tratada como um problema a ser superado. A precedência da objetividade e da neutralidade como elementos de legitimação do jornalismo tem sido forte-mente questionada. Mas, mesmo entre as abordagens críticas, há uma forte tendência em manter o viés herdado da teoria da diferenciação, que sustenta o apelo à independência das mídias em relação a outros campos, mas sobretudo da política. Pode-se dizer que há uma base de raciocínio muito semelhante a essa em análises críticas da relação entre mídia e política, so-bretudo naquelas que se pautam por uma visão mais pessimista e apontam para efeitos perniciosos para ambas as áreas. Sobres-saem alertas sobre o risco de submissão da política à lógica da comunicação e, considerando as características de uma comuni-cação de massa, implica submissão à lógica mercantil com apelo à espetacularização, promovendo a despolitização do discurso político. Pode-se ver isso, por exemplo, na teoria habermasiana, que associa o advento das tecnologias de comunicação de massa a um declínio de uma opinião pública esclarecida. Nessa mesma lógica, desenham-se os alertas sobre o risco da “contaminação” do mundo da comunicação pela política, comprometendo o ideal de imparcialidade sob o qual se assentam as bases de profissionaliza-ção da mídia, em especial da imprensa. A própria crítica haberma-siana ao declínio de uma esfera pública esclarecida traz implícito um ideal normativo de um campo de esfera pública política pau-tado pelo livre debate das ideias, sem os vícios da lógica midiática, e uma imprensa livre burguesa, que se legitima como mediadora por excelência do debate público e formação da opinião pública – vista como instituição por excelência da esfera pública –, justa-mente em função de sua despartidarização (HABERMAS 1984).

Miguel (2002) chama atenção para o conteúdo ambíguo e pouco esclarecedor de boa parte das críticas, que, partindo do reconhe-cimento da influência da mídia na prática política, veem com des-confiança o papel dos meios de comunicação, como se a relação entre as duas áreas fosse de mão única. Na sua avaliação, parte do

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2olhar suspeito em relação à mídia guarda a mesma relação com a abordagem elitista da vida política, que ora trata da mídia como um “não problema”, porque “comunga do credo liberal de que os mecanismos de mercado bastariam para garantir a autonomia da opinião pública” (p. 159), ora aponta a influência excessiva dos meios de comunicação de massa, em particular da televisão. Mi-guel vai citar o cientista político italiano Giovanni Sartori como exemplo dessa posição. O segundo momento da crítica que re-força a desconfiança dos meios equivale à crítica dos riscos da tirania da opinião pública, encontrada em autores clássicos do liberalismo político, como John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville.

Miguel tenta perceber a mídia e a política de maneira interligada sem perder de vista a centralidade dos meios de comunicação de massa no jogo político e sem que isso comprometa a autono-mia das áreas. Para isso, ele se vale do conceito de campo desen-volvido por Bourdieu, que trabalha comunicação e política em campos distintos, porém comunicantes. A distinção é importan-te para a definição de autonomia de campos que guardam lógicas distintas e, também, para identificar os pontos de tensionamento nas interseções entre os variados campos. No caso da mídia, o au-tor chama atenção para os tensionamentos que vêm do campo da política – sobre o qual, via de regra, a própria mídia procura guar-dar distanciamento – e do campo econômico – este já um pouco mais difuso, principalmente pelo traço mercantil determinante que estrutura o funcionamento dos meios de comunicação. O exercício feito por Miguel vai no sentido de reconhecer as au-tonomias dos campos e, ao mesmo tempo, perceber os pontos de conexão entre eles. Rosanvallón (2009), ao propor uma re-flexão sobre a democracia de presença, seguindo os critérios de promover proximidade, defende que, antes, é necessário “dis-tinguir com clareza o que corresponde a uma simples estratégia de comunicação do que constitui, para falar com propriedade uma política” (p. 282). A formulação de Miguel pode ajudar a responder ao questionamento, ajudando a separar exibições de espetacularização com vistas à manipulação grosseira da opi-nião de um exercício político de formação de imagem a ser de-senvolvida por uma opinião pública.

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2 No entanto, talvez seja mais produtivo pensar menos em termos de separação e mais em termos de confluência entre as duas áreas, permitindo perceber o grau de identificação entre elas ou, nas palavras de Rosanvallón, de familiaridade, sobretudo porque política não nasce dissociada da comunicação, esse cam-po sob o qual se desenvolveu o sistema de mídia nas sociedades modernas. Acredito que não se pode compreender o papel da mídia nos sistemas políticos sem antes entender a relação entre política e comunicação. A definição de autonomia é uma referência para o desenvolvi-mento dos meios de comunicação de massa, e a reivindicação pela profissionalização com base no ideal da mensagem objetiva é uma base importante para o desenvolvimento da mídia e da imprensa modernas com ambições universalistas e com vistas a se credenciar como meio de divulgação de informação confiável e equilibrada. Mas o desafio não é só identificar os pontos de separação. Antes, é necessário buscar o entendimento de como o exercício da política está ligado a um processo discursivo e como este se articula em um ambiente midiatizado. Vale reforçar que a reflexão é sobre o papel da comunicação e da mídia com base na constatação do declínio da legitimidade de instituições eleitorais representativas, que põe em evidência outras formas de legitimidade democrática, sendo retratadas neste artigo as formas de proximidade, o que requer pensar o papel do público nos regimes e nas sociedades democráticas. Isso significa considerar os processos de circulação da informa-ção e de formação da opinião nas sociedades de massa. Nessa crise de legitimação, um dos sintomas do crescimento da cen-tralidade da mídia é exatamente a atribuição de papéis políticos a ela. A mídia não abrange todas as dimensões de estruturação do processo político, mas não há dúvida de que ela cresce no quadro de crise de legitimidade, em especial da crise dos par-tidos políticos (LIMA, 2004, p. 209)11. Dessa forma, reivindicar

11Sobre a discussão da mídia como o “príncipe eletrônico”, em substituição aos partidos políticos, ver: Ianni (1999).

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2a objetividade como esteio de uma imparcialidade por vezes falaciosa ou uma neutralidade frequentemente falsa não con-tribui para o desenvolvimento do debate porque pode impedir de perceber as implicações políticas das práticas discursivas ou reduzi-lo a impasses dialógicos.

A política e o lugar do visível

A importância que se dá à esfera da comunicação na política é pro-porcional à importância que se dá à presença de uma opinião pú-blica nas instâncias decisórias, o que envolve uma discussão mais ampla do direito à informação e o direito à comunicação, eviden-ciando uma dimensão discursiva da política. E essa importância va-ria em cada tradição política e em cada concepção de democracia.

Nas tradições republicanas, essa questão é fundamental, porque o direito à fala significa direito à participação na vida pública, que vai fazer com que a cidadã e o cidadão existam politicamen-te. Essa importância assenta-se na defesa da liberdade política como base da legitimidade do governo republicano, o que impli-ca a exigência de publicidade da ação do Estado (FILGUEIRAS, 2010, p. 82-86). A definição da liberdade republicana – que é um direito político que depende da qualidade do Estado e das leis – apoia-se principalmente no princípio da autonomia do sujei-to, que requer proteção de quaisquer riscos de arbitrariedades, seja por parte do Estado ou por parte de setores da sociedade. É uma liberdade que articula a dimensão pessoal (reconheci-mento da autonomia do sujeito em relação à sua própria vida) com a dimensão política de autogoverno (o direito de definir ou participar da definição das leis às quais se submete), respeitan-do uma outra dimensão subjetiva de valorização do livre arbítrio, considerando que mulheres e homens não são precondicionados e são senhores de sua própria história. O papel do caráter público do Estado republicano e das leis valoriza o processo de formação de uma opinião pública plural e democrática. Ou, na descrição de Pettit (citado por Filgueiras), o Estado republicano “pressupõe a existência de um público ampliado, mediante o qual exista uma razão discursiva que assegure a sua legitimidade” (p. 82-83).

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2 Uma consequência prática do fundamento público do Estado republicano é a valorização do princípio da publicidade, que en-volve pelo menos duas dimensões que se articulam em torno da promoção das dimensões da liberdade das cidadãs e dos cida-dãos. De um lado, refere-se às condições para garantir espaço de contestação por meio da participação política ativa, de modo a impedir o desenvolvimento de situações de dominação tanto por parte do Estado quanto por parte de setores da sociedade, identificados por Pettit (2001, p. 11), pelo risco de tirania por parte de uma maioria democrática ou de uma elite política em postos-chave de instâncias de poder formal e não formal. Ao mesmo tempo, essa possibilidade de contestação implica uma existência política. A cidadã e o cidadão de um Estado republi-cano, para garantir a liberdade, devem ter condições de parti-cipar da formulação das leis e também de exercitar o direito de contestar situações arbitrárias, e isso requer reconhecimen-to político. O requisito de publicidade na base da legitimação do Estado republicano não se resume apenas às exigências de transparência por parte dos órgãos de governo e das ações das autoridades, mas também como garantia de que todas as cida-dãs e todos os cidadãos e todas as cidadãs tenham voz e que essa voz tenha repercussão.

A partir daí, podemos compreender como a questão da opinião, considerada como base de sua forma política, formada em espaço público, surge como um conceito republicano, em função da cen-tralidade do processo de formulação das leis e constituição da autoridade. A relação entre representação e visibilidade é mui-to forte nas tradições republicanas e a leitura feita por Adverse (2009) sobre o papel da retórica e da política no pensamento de Maquiavel ajuda a identificar os princípios que sustentam essa relação. O exercício da autoridade (que em Maquiavel significa governar com assentimento) depende da formação de um juízo público, o que significa o domínio da política da aparência, con-siderando que a imagem é determinante na formação do juízo político. “Em Maquiavel, o problema do exercício do poder não pode ser dissociado do juízo daqueles sobre quem e com quem o poder é exercido” (ADVERSE, 2009, p. 20). O juízo e a retórica conformam o político, considerando a retórica não só como ins-

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2trumento de persuasão, mas também como “forma e meio de con-formação da realidade política” (op. cit., p. 23). O espaço público é o espaço da visibilidade, em que ser é aparecer e a ação política equivale à representação do político. Essa representação, ainda que guarde uma unidade, não significa eliminação do caráter plu-ral da opinião, como podemos perceber na seguinte citação:

Maquiavel percebe claramente que o problema da política é o da constituição de um espaço pú-blico capaz de regular a vida dos homens, não o do conhecimento da verdade. O consenso, no pen-samento maquiaveliano, não faz referência a um pacto entre os homens, mas à aquiescência a uma representação (op. cit., p. 47).

O espaço público, seguindo os princípios do pensamento repu-blicano, é o mundo das aparências e é também o campo de perda ou conservação do poder. Por isso, o príncipe tem de dominar a arte de produzir uma imagem capaz de interferir positivamente na formação do juízo. Mas a existência política a partir do espa-ço público da visibilidade vale também para definir a existência política do povo, que, ao participar do processo de formação do juízo político, tem participação ativa no processo de estrutura-ção da autoridade. Como lembra Adverse (2009), para Maquia-vel, “o poder não se estabelece sem o apelo à liberdade” (p. 54). No entanto, esse assentimento não é estável e imutável, mas di-nâmico e, por isso, a manutenção da imagem pede o exercício de alteridade por parte do governante (ADVERSE, 2009). Em Maquiavel, o espaço político é um espaço incompleto, em construção, e pede a intervenção humana constante em que um processo em que a produção do juízo se estabelece a partir do exercício da retórica da imagem e do discurso. Na base da teoria maquiaveliana, estão elementos que quebram a dicotomia entre política e retórica, na medida em que a política é, por definição, retórica, “porque o poder não pode ser exercido senão a par-tir da produção do juízo” (ADVERSE, 2009, p. 208). Esse juízo é formado em um espaço político no qual ação e palavra não se separam, sob o risco de não se efetivar a imagem que sustenta a autoridade política. Considerando que a vida cívica está atre-

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2 lada ao juízo dos membros da comunidade e estes também pre-cisam de reconhecimento político para participar da formação do juízo público, negar a condição de visibilidade compromete a formação de um espaço público que se constitua como espaço de defesa da liberdade. Na importância conferida ao espaço da visibilidade, é que se pode visualizar o papel da comunicação na formação da vida política, uma vez que esse espaço público implica a instituição de canais de comunicação orientados por um critério de acesso à visibilidade.

Nas tradições liberais, o papel político da opinião pública é insti-tuído a partir de impasses dialógicos cuja origem pode ser iden-tificada em torno do conceito de liberdade, formulado numa concepção contratualista. A liberdade liberal tem matriz hobbe-siana; é concebida como ausência de impedimento, formulada como direito privado e de existência pré-política, sendo, portan-to, usada como medida para limite à intervenção do Estado, cuja existência se justifica como meio de preservar esse direito, que assume caráter natural e se expressa nas dimensões econômi-cas e utilitárias. Essa concepção tem forte influência na formação do pensamen-to político ocidental, como demonstra Skinner (1999). Ainda que muitos dos princípios cívicos tenham sido incorporados por pensadores em formulações clássicas do liberalismo do século XIX, a retirada do fundamento público e político do conceito de liberdade promove os impasses dialógicos e dilemas em torno da participação das cidadãs e dos cidadãos comuns na vida polí-tica. A proteção das liberdades individuais passa a ser a medida para definir limites de atuação do Estado, em uma equação em que público e privado estão em constante tensionamento e, nos parâmetros da tradição liberal, chegam a assumir dimensões antagônicas. A prevalência da esfera privada reforça a compre-ensão de uma opinião formada individualmente, livre de pres-sões do Estado e também de uma opinião pública. A própria manifestação da opinião pública como agregação de vontades individuais é uma concepção mobilizada na base de teorias eli-tistas das democracias liberais pautadas na descrença da parti-cipação do homem comum na vida pública.

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2Essa abordagem é reforçada pelo pensamento weberiano, que compreende a organização da vida pública a partir da percep-ção da complexidade administrativa advinda da modernização. A característica central da política moderna, para Weber (1999), está na compreensão do aparato burocrático e da autoridade, que se confunde com a ideia de dominação e se equipara à auto-ridade das leis; é sustentada por uma tecnologia específica que permite o controle da burocracia pública. O poder, compreen-dido como domínio da técnica, é o lugar de disputa de especia-listas. Essa concepção de poder está na base da demanda pela diferenciação, referida no início deste artigo, em que se desen-volvem, em campos distintos, as diversas áreas do conhecimen-to. A política é uma delas. Assim como a economia e a comunica-ção, para tratar dos campos que são interessantes na discussão proposta. Assim, o público perde a força e a coesão requeridas nas tradições republicanas. Especializa-se e fragmenta-se. Se-guindo uma avaliação elaborada com base no conceito de auto-ridade desenvolvido por Hannah Arendt (1972), o predomínio dessa tradição weberiana reduz a teoria política, promove uma quebra do político na organização da vida pública.

No contraponto a essa concepção, Arendt (2000) desenvolve o conceito de esfera pública, revalorizando o princípio da visibili-dade e da ação política. Ela não aceita a ideia de se construir uma esfera pública a partir de interesses privados porque, na sua con-cepção, a construção de um mundo comum, que se forma na ação e no discurso, é que oferece os critérios para distinguir o que per-tence ao privado do que pertence ao público e permite pensar em torno do interesse geral, e não apenas de interesses específicos. O conceito de esfera pública é operacionalizado por Habermas, introduzindo as bases de um conceito crítico de democracia e in-fluenciando vários estudos ligados aos movimentos sociais e so-bre a relação entre mídia e política em uma matriz deliberativa (AVRITZER, 1999, 2000). Ele descreve a esfera pública burguesa como fórum argumentativo que vai contrapor e discutir decisões do Estado. Em uma leitura do conjunto da teoria habermasiana construída como uma análise crítica da cultura marxista, Guima-rães (1998) aponta a publicação da teoria da ação comunicativa,

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2 em 1981, como a origem de um novo campo teórico. Ao propor um giro linguístico, a principal contribuição de Habermas seria resga-tar a dimensão da intersubjetividade na construção da vida polí-tica. No entanto, ao descrever a esfera pública seguindo um ideal normativo que requer desenvolvimento de um debate em condi-ções de igualdade, desconhece as condições de desigualdade na formação da opinião nas esferas públicas e dificulta, quando não impede, a percepção de um caráter plural da opinião pública12.

As críticas fazem com que Habermas promova uma revisão em seu conceito original de esfera pública, incorporando a questão da pluralidade de públicos13. Ele mantém, contudo, a descrição da esfera pública voltada ao debate e controle da autoridade política e não identifica a autonomia dos diversos atores que a compõem. Ainda que estabeleça parâmetros de uma teoria crí-tica da democracia e proponha o fortalecimento das instâncias deliberativas se contrapondo às concepções mais elitistas e res-tritivas de democracia, a teoria habermasiana mantém ainda a limitação em relação à compreensão da mídia na esfera discur-siva constituidora da política. No alerta que faz para os riscos de declínio da esfera pública por meio da invasão da esfera privada, Habermas desenvolve uma crítica pouco otimista da sociedade de massas, apontando a responsabilidade da mídia na formação de uma opinião pouco esclarecida, que empobrece o debate pú-blico. Uma crítica que desemboca em um dilema dialógico em torno da liberdade como reflexo da teoria liberal que a conforma.

Mídia, público e representação

A relação entre mídia e política remete a uma reflexão sobre o papel de constituição de um público crítico, formado em bases democráticas. É uma discussão que deve se inserir em um deba-te mais amplo, que considere as áreas de influência mútua entre

12Sobre breve resumo das críticas à formulação original de esfera pública, ver: Thompson (2004) e Avritzer (2008).

13Calhoun (1992) editou textos críticos à teoria habermasiana, incluindo uma revisão do próprio Habermas.

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2a comunicação e a política. A questão é que essa comunicação se desenvolve em ambiente de massa, em uma sociedade na qual os meios de comunicação têm crescentemente aumentado sua pre-sença na vida política e social, sendo caracterizada como socieda-des media-centered (LIMA, 2004). O fato de a mídia se constituir em espaço autônomo e legitimado em critérios de objetividade não elimina a necessidade de compreender a lógica política de seu funcionamento, que, na essência, deve ser a lógica de con-formação do público. A centralidade dos meios de comunicação não se dá exclusivamente pelo fato de serem o principal canal de comunicação entre governantes e governados. Formam também um “espaço privilegiado de disseminação das perspectivas e pro-jetos dos grupos e conflitos na sociedade” e, por isso, podem ser considerados como esfera de representação política (MIGUEL, 2003, p. 133). O quadro de crise de legitimidade de instâncias tradicionais de representação reforça esse traço.

Aceitar a mídia como representação política (Miguel, 2003, 2002), implica trabalhá-la não como uma estrutura externa ao poder, mas que o integra, na sua estruturação em forma de linguagem. Isso não significa trabalhar na perspectiva de tratar a mídia como um “quarto poder”. Nessa transposição do debate para uma lógi-ca da divisão dos poderes linha de divisão de poderes, subsiste o risco de reproduzir os mesmos paradoxos presentes nas matrizes liberais. Albuquerque descreve alguns dos paradoxos, sendo que:

o paradoxo central é que somente na medida em que a imprensa reivindique e seja reconhecida como um agente ‘neutro’ e politicamente desinte-ressado, movido apenas pela técnica e pela ética profissional que ele desempenha eficientemente o papel de mediador entre os três poderes (ALBU-QUERQUE, 2010, p. 98).

A função de fiscalização do poder não pode ser tratada sem considerar o papel mais amplo de constitutivo do público. Se a questão posta na discussão da legitimidade democrática está justamente na crítica à insuficiência das instituições tradicio-nais de representação, há implícita uma concepção de que o pú-blico importa e a mídia deve ser pensada como elemento cons-

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2 titutivo desse público. As possibilidades de construção de uma opinião pública democrática dependem da organização de um sistema público e democrático de uma mídia que seja capaz de identificar e articular as diversas esferas discursivas de maneira plural e que avance para além do ideal normativo previsto nas teorias deliberativas. Isso significa colocar em questão o próprio conceito de liberdade que organiza as instituições políticas e, a partir daí, buscar uma reformulação do conceito de público que não seja exclusivamente formado em contraposição ao Estado e ao indivíduo, mas considerando as relações de configuração mútua, com reflexos nas organizações das três esferas comuni-cativas: pública, estatal e privada. As novas formas de legitimidade identificadas por Rosanvallón (2009) se manifestam no debate como demanda por condições mais exigentes para democracias mais inclusivas, com ênfase em formas democráticas de participação, orientando-se por crité-rios que estabeleçam formas mais plurais de deliberação. Isso se dá mobilizando princípios republicanos importantes, que se preocupam em estruturar formas de uma vida cívica que possam estabelecer condições para uma vida livre. Formuladas na gra-mática liberal, muitas dessas reivindicações se veem sem respos-tas satisfatórias, na medida em que convergem para impasses dialógicos, diante de uma suposta cisão entre liberdade positiva e liberdade negativa, que, se nunca se concretizou na prática, tem servido como referência para defender a existência de uma liber-dade formada e protegida na esfera individual e privada.

O papel político da mídia e a sua relação com a legitimidade de-mocrática, nesse sentido, podem ser mais bem compreendidos à luz da discussão que explore a dimensão discursiva da democracia que articule linguagem e poder. Na gramática republicana, implica investigar os mecanismos de dominação e estabelecer condições para que eles sejam combatidos. Implica reconhecer que toda co-municação se estabelece nas relações políticas e toda ação política se concretiza em práticas comunicativas. Considerando o ideal re-publicano de pluralidade, talvez a questão não seja separar e de-finir campos entre interessados e desinteressados. Acredito que isso possa trazer riscos de atribuir características equivocadas

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2aos campos: político (de interesse), comunicação (de desinteres-se). O desafio posto não seria separar e impedir manifestações de interesse na busca de um modelo normativo “puro”. Se o ideal é alcançar e respeitar a pluralidade na definição das identidades do público e do interesse público, articulando generalidade com par-ticularidade, o risco é, antes, da privatização do juízo.

Considerações finais

No exercício conceitual empreendido ao longo deste artigo, buscou-se trazer para a discussão sobre legitimidade democrá-tica o papel da mídia. Esse esforço partiu do reconhecimento da dimensão discursiva da política, considerando não só a comu-nicação como um resultado de relações políticas, mas também a própria ação política como uma prática comunicativa. Diante do desafio de se pensar em formas descentralizadas de legitimi-dade, estabelecendo relações mais próximas entre governantes e governados, essa compreensão da política e da comunicação assume uma dimensão fundamental.

Espera-se, com essas reflexões, reforçar a importância de se pensar e problematizar o papel da mídia nas teorias democráti-cas, o que significa repensar o próprio conceito de público. Isso é necessário porque as novas formas de legitimidade democrá-ticas baseadas na proximidade e identificadas por Rosanvallón (2009) apresentam condições mais exigentes para democracias mais inclusivas, o que requer pensar nas condições de formação de uma opinião pública democrática que seja capaz de estabele-cer formas mais plurais de deliberação. Trazer para a discussão o debate entre republicanismo e libera-lismo, na busca de soluções alternativas ao modelo democrático representativo é importante, na medida em que permite apro-fundar as reflexões sobre os próprios fundamentos de organi-zação política e pensar o papel do público. Reconhecer que os conceitos em questão – sobretudo os conceitos de liberdade, de-mocracia, público – estão em disputa, abertos ao debate, pode abrir um campo fértil, sobretudo quando o desafio é pensar em formas alternativas de democracia.

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Ricardo de João BragaDoutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ/Mestre em Ciência Política pela UnB/Economista pela Unesp. Atualmente, é analista legislativo da Câmara dos Deputa-dos e pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação do Centro de Forma-ção, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados

André Sathler GuimarãesDoutor em Filosofia pela UFSCar/Mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo/ Mestre em Informática pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas / Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, é analista legislati-vo da Câmara dos Deputados e pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados

Resumo: O trabalho tem por objetivo apresentar a discussão parlamentar so-bre temas econômicos, ocorrida durante o governo Dutra. A partir de discursos proferidos na Câmara dos Deputados, realiza-se pesquisa quantitativa e qualita-tiva (análise de discurso) de forma a identificar e analisar as principais questões, distribuindo-as, ainda, por partidos. A importância primeira do trabalho é o res-gate histórico do debate congressual, pouco presente na literatura. A perspectiva metodológica também valoriza o trabalho ao identificar problemas no acesso ao material primário. Por fim, enriquece a discussão sobre desenvolvimentismo e liberalismo na República de 1946 e traz mais informações sobre os partidos polí-ticos, suas perspectivas ideológicas e sua ação congressual no período.

Palavras-chave: Ciência Política. Economia e Política. Debate Parlamentar. Governo Dutra.

Abstract: The paper aims to show parliamentary debate about economic subjects during Dutra presidency. From discourses at Brazilian Chamber of Deputies, there is a quantitative and qualitative research (discourse analysis), seeking to identify and analyze the main issues, as well as their distribution amongst political parties. The paper is relevant for its historical rescue of parliamentary debate, theme rarely studied. The methodology also confers value to the research, due to the identification of access problems to raw data. Finally, the paper contributes to bring new light to the debate about development and liberalism in “Republica de 46” and aggregates information about political parties, their ideologies and action within the Congress during that timeline.

O debate parlamentar dos temas econômicos no governo Dutra

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2 Keywords: Political Science. Politics and Economy. Parliamentary debate. Dutra’s presidency.

Introdução

Este trabalho tem por objetivo analisar as discussões parlamen-tares de assuntos econômicos, ocorridas durante o governo Du-tra (1946-1951). O resgate do debate parlamentar justifica-se tanto pelo propósito mais imediato de retirar do esquecimen-to parte importante da história institucional brasileira quanto pelo realce dado à interpretação política e econômica de uma quadra peculiar da República brasileira, período que se coloca entre duas presidências de Getúlio Vargas e que não se alinha de forma unívoca ao projeto desenvolvimentista.

Parte-se da perspectiva que as opções econômicas do gover-no Dutra – um momento inicial liberal e o seguinte interven-cionista – tiveram respaldo e também reflexo na arena par-lamentar. Nessa perspectiva, o artigo insere-se na lógica das relações entre Executivo e Legislativo, ao evidenciar um Con-gresso preocupado com a estabilidade econômica e questões de interesse social amplo, o que é muito diferente das visões tradicionais do Legislativo como delegado de pequenos inte-resses paroquiais.

Trata-se de pesquisa exploratória e de natureza qualitativa, em-bora em alguns momentos recorra a procedimentos quantitati-vos. Utilizam-se a pesquisa bibliográfica e a análise documen-tal, aplicando-se uma perspectiva comparativa no momento de análise dos discursos em si. O corpus da pesquisa é constituído pelos discursos dos parlamentares que contenham os seguintes termos-chave: “economia”, “inflação”, “desenvolvimento”, “câm-bio” e “juros”. O recorte temporal foi de 1º de fevereiro de 1946 a 31 de dezembro de 1950, totalizando 62 discursos.

A escolha dos discursos como material da pesquisa relaciona-se à percepção clássica deles como instrumentos de convencimen-to. Aristóteles definiu a retórica como a capacidade de perce-

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2ber, nas mais variadas situações, os meios disponíveis para per-suasão, conjugando-se, nessa acepção, tanto os fins quanto os meios. Para Bosi (2011, p. 15):

os fins são políticos, no sentido amplo da palavra, que abrange os discursos proferidos na polis, lugar de interação social por excelência, onde não faltam ocasiões para persuadir, isto é, influir no ânimo e no comportamento dos concidadãos. Os meios são as palavras e os gestos, do orador (BOSI, 2011, p. 15).

Em uma época em que não havia cobertura televisiva das ses-sões do Parlamento, bem como internet, e a amplitude das no-vas tecnologias de informação e comunicação, assume-se que o discurso era instrumento relevante da atuação parlamentar.

Emprega-se a análise de conteúdo para apreciação do ma-terial, a partir de algumas categorias construídas durante o processo da pesquisa. De acordo com Krippendorff (1990), a análise de conteúdo é uma técnica de investigação destinada a formular, a partir de certos dados, inferências reproduzíveis e válidas que possam aplicar-se a seu contexto.

As categorias analíticas observadas na elaboração do protoco-lo de pesquisa para a análise qualitativa foram: a) identificação da origem do discurso (autoria) em relação à pertença ou não do parlamentar à base do Governo; b) abordagem do discurso, em termos de vinculação à determinada corrente econômica (liberal ou intervencionista); c) foco do discurso, se em ques-tões de interesse nacional ou interesse localizado; e d) tipolo-gia de linguagem, em acordo com a classificação funcional de Jakobson (1995) – referencial, emotiva, conativa, fática, meta-linguística e poética.

Este trabalho é assim dividido: uma seção preliminar que aponta as grandes linhas da realidade política e econômica brasileira para o governo Dutra e a República de 1946 de for-ma mais ampla; uma segunda seção com a apresentação dos resultados da pesquisa no rol de discursos seguida das consi-derações finais.

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2 1. Governo Dutra – economia e política

A economia brasileira da República de 1946 é marcada pelo avan-ço da industrialização seguindo um modelo de desenvolvimento com participação estatal e de capitais privados nacionais e estran-geiros. Dissonante a esse desenvolvimento acelerado do lado real da economia, os aspectos monetários e financeiros ainda encon-travam-se em estágio menos adiantado de desenvolvimento, em que eram escassas as fontes de financiamento para o desenvolvi-mento e a inflação era uma decorrência lógica e problema recor-rente. Destaca-se, também, no período, o relativo caráter autárqui-co das economias nacionais, que conferia margem de liberdade ao Estado na condução dos assuntos econômico-financeiros.

O período Dutra, na perspectiva econômica, tem em seu início um período liberal, caracterizado pela sua postura livre no setor ex-terno e sua ênfase no combate à inflação. Segundo Bielschowsky (1988), no início desse governo até o Partido Comunista Brasileiro (PCB) compartilhava “energicamente” a ideia prioritária do comba-te à inflação. O caráter peculiar do momento pode ser visto se con-siderado que em toda a República de 1946 apenas esses quase dois anos e o curto governo Café Filho podem ser vistos como liberais.

A gestão econômica de Dutra iniciou-se sob perspectivas favorá-veis, sobretudo pela acumulação de reservas cambiais durante a Segunda Guerra Mundial. Essa novidade positiva incentivou os gestores de política econômica a flexibilizar os controles cambiais e de comércio exterior anteriormente vigentes, sem, contudo, al-terar a taxa de câmbio em vigor desde 1939, que se mostrava va-lorizada devido à maior inflação nacional em relação a dos EUA e demais países centrais. Já em 1947, entretanto, os saldos co-merciais reverteram a situação anterior, e o País passou a ter difi-culdades com o Balanço de Pagamentos. Como resposta, o Brasil adotou o sistema de licenciamento de importações, um contro-le administrativo feito pelo governo para autorizar os negócios internacionais. A partir de então, caracteriza-se uma estratégia intervencionista, motivada pela crise cambial (RAPOSO, 2011), e que com o tempo se consolidaria numa estratégia de desenvolvi-mento nacional tanto como ação quanto reflexão teórica.

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2Três aspectos devem ser ressaltados nessa estratégia de licen-ciamento de importações. O primeiro diz respeito à opção por um controle administrativo do que poderia e não poderia ser ob-jeto de importação. O segundo aspecto diz respeito ao incentivo à industrialização. Segundo Vianna (1992), já em 1949 pôde-se constatar que o licenciamento de importações passou a ser de-liberadamente um instrumento de incentivo à industrialização1. O terceiro aspecto diz respeito ao protecionismo. A opção pelo licenciamento de importações garantiu um mecanismo efetivo de defesa à indústria nacional. Parte da discussão inicial da in-dustrialização no Brasil deu-se na crítica ao livre cambismo e necessidade de proteção à indústria nacional (BIELSCHOWSKY, 1988), mas, com a imposição do licenciamento, essa discussão estava vencida.

Em termos do combate à inflação, o período Dutra é dividido em duas fases. A primeira refere-se aos ministros da Fazenda Gas-tão Vidigal e Correa e Castro, que procuraram conduzir uma po-lítica de austeridade, a fim de debelar a inflação, diagnosticada como derivada dos déficits orçamentários do Estado, os quais tinham sido comuns no governo anterior de Getúlio Vargas. Em junho de 1949, contudo, ocorre a saída de Correa e Castro do ministério e, com isso, passa-se a uma política de maior libera-lidade na política econômica com Guilherme da Silveira. É fun-damental apontar que Silveira era anteriormente o presidente do Banco do Brasil e havia conduzido uma política mais liberal de crédito mesmo nos anos de 1947 e 1948, em antagonismo à política fiscal restritiva dirigida pelo Ministério da Fazenda (VIANNA, 1992). De fato, Silveira já havia tido problemas com Gastão Vidigal por discordâncias em relação à condução da polí-tica anti-inflacionária e venda de cambiais (LAGO, 1982).

O antagonismo entre Correa e Castro e Guilherme da Silveira é um dos episódios de conflito derivados do precário sistema de coordenação na política econômica brasileira, que colocava como

1 Bielschowsky, coincidentemente, vê o amadurecimento da ideologia desenvol-vimentista no período de 1948 a 1952.

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2 antagonistas o sistema financeiro (coordenado pela Superinten-dência da Moeda e do Crédito (Sumoc) e pelo Banco do Brasil) e o Ministério da Fazenda (responsável pela política fiscal). Ecos dessa polêmica transpareceram nos discursos analisados:

Deputado Coelho Rodrigues – Financistas aí estão, como o Sr. Guilherme da Silveira, que vêm valori-zando a moeda, saneando-a, como sempre nos prometeu (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 16 de dezembro de 1950, p. 9.839).

Deputado Daniel Faraco – Não é possível, digamo-lo francamente, pensar em qualquer forma de controle monetário ou creditório sem um Banco Central ou organismo semelhante destinado a atuar com eficiência, e não apenas decorativa-mente no cálculo de tais níveis (DIÁRIO DO PO-DER LEGISLATIVO, 1946, p. 365).

Em termos do pensamento econômico brasileiro e seus atores, Bielschowsky (1988) diz que o momento importante de defini-ção de posições e de conquistas dos desenvolvimentistas ocor-reu durante o segundo governo Vargas, pois o período Dutra cedeu menos espaço à estratégia industrializante.

Para o autor, ao longo da República de 1946 constituíram-se três grandes grupos “ideológicos”. O primeiro era o grande gru-po dos desenvolvimentistas, que se dividia em três subgrupos; todos compartilhavam a ideia de apoio integral ao projeto de desenvolvimento econômico via industrialização. O grupo de-senvolvimentista privado se aglutinou em torno do pioneiro Roberto Simonsen, que construiu uma rede de representação e estudos do setor industrial, que perdurou e mesmo cresceu após a morte do líder em 1948, especialmente a Confederação Nacio-nal da Indústria. Sua característica diferenciadora era a primazia que buscava conceder aos investimentos privados, com o Estado livre para atuar onde o capital privado não tivesse interesse, mas fosse importante para o desenvolvimento nacional.

O grupo desenvolvimentista nacionalista teria seus primeiros integrantes vindos dos órgãos e entidades de coordenação eco-nômica do primeiro governo Vargas. Seu projeto era eminen-

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2temente nacionalista e estatista, principalmente em referência aos projetos de infraestrutura econômica e o setor mineral, e teria como grande expoente, a partir dos anos 1950, o econo-mista Celso Furtado.

Já o terceiro grupo desenvolvimentista era o não nacionalista, representado por técnicos com destacada participação no setor estatal, mas que aceitavam e mesmo contavam com a participa-ção estrangeira no desenvolvimento nacional em setores estru-turantes. Roberto Campos e Lucas Lopes eram figuras líderes nesse grupo.

Na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), iniciativas do final do governo Dutra e início do governo Vargas, estavam presentes elementos dos dois últimos grupos, ainda num momento em que as diferenças e demarcações entre eles não estavam claras.

Além dos desenvolvimentistas, existiriam também os neoli-berais, que conferiam primazia à estabilidade monetária e cambial e que, embora não fossem contrários à industriali-zação, não aceitavam pôr a estabilidade em risco diante de planos de industrialização via Estado. Suas principais refe-rências eram Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões, e seus núcleos de pensamento e ação eram a Fundação Getúlio Vargas, principalmente a partir de 1953, o Conselho Nacional de Economia e a Sumoc.

O último grupo seriam os socialistas, em que a análise econô-mica não era aprofundada (submissa ao grande projeto de re-volução socialista e à necessária identificação das “etapas” do desenvolvimento capitalista), mas que teria importante papel ao enriquecer o debate com as preocupações sociais que iriam aflorar a partir do início dos anos 1960. Seus representantes eram Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, entre outros.

A democracia da República de 1946 teve como característi-cas políticas formais o presidencialismo, o federalismo e o

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2 sistema multipartidário, que atuava dentro de um Legislativo federal bicameral. Conforme aponta Almeida (2007), o auto-ritarismo, sob a batuta de Vargas, extinguiu “a Federação e as instituições democráticas e representativas” (ALMEIDA, 2007, p. 22), e coube ao governo federal e às burocracias cen-trais a mediação e arbitragem das disputas e negociações po-líticas. A retomada democrática, com a Constituição de 1946, buscou fortalecer a participação política e a representação por meio do fortalecimento do Legislativo. Merece destaque o fato de que, pela primeira vez, o Brasil experimentou um período democrático com uma organização político-partidá-ria efetivamente nacional.

Na República de 1946, a população, a urbanização e, principal-mente, o voto cresceram de forma significativa. Conforme dados do IBGE, o número de eleitores inscritos cresceu 160,69% na comparação entre 1947 e 19622 (embora um grande salto te-nha se dado já entre 1945 e 1947)3. Quanto à população, seu aumento também é expressivo no período (70,22% entre 1940 e 1960), mas deve ser ressaltada, sobretudo, a evolução da ur-banização, que, se medida pela relação entre população urbana e total, passou de 31,24% em 1940 para 44,60% em 1960, o que representa uma alteração qualitativa na sociedade.

Santos (2003) enfatiza a expansão da polis (eleitores e elegíveis) em relação ao demos (a sociedade mais ampla) no período de 1945 a 1962, pois, “para cada ponto percentual de crescimento da população, o eleitorado aumentou em 2,4 pontos percentu-ais” (SANTOS, 2003, p. 62). Tal aumento do eleitorado, que já era significativo na comparação entre 1945 e 1930, reflete a abertu-ra do acesso ao sistema político eleitoral e também o aumento

2 Conforme o IBGE, os eleitores inscritos em 1945 correspondem às eleições para os cargos do Executivo federal, do Senado e da Câmara dos Deputados, re-guladas na forma do art. 136, 1ª parte, do Decreto-Lei n° 7.586, de 28/5/1945, combinada com a Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, de 8/9/1945.

3 1947 – Eleições para os cargos do Senado e da Câmara dos Deputados, Executi-vo estadual, Assembleias Legislativas, Executivo e Câmara Municipal.

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2da urbanização e alfabetização (a participação de analfabetos na população maior de 15 anos caiu de 54,50% em 1940 para 39,50 em 1960)4.

O aumento da população eleitora na República de 1946 demons-tra o avanço deste aspecto da democracia, o direito ao voto. Se comparado ao período ditatorial de Vargas ou à República entre 1889 e 1937, pode-se afirmar que o voto popular passou a con-tar no cenário político, independentemente de quaisquer críti-cas que possam ser feitas aos sistemas eleitorais e partidários do período.

Em termos partidários, a República de 1946 atuou sob um multipartidarismo que, pela primeira vez, apresentava agre-miações de âmbito nacional5. Souza (1990), entretanto, apon-ta que o País não contou com partidos que representassem de forma adequada a estrutura social, e as raízes do problema estariam na tradição autoritária brasileira, que construíra os partidos com base nas estruturas estatais. O populismo, concebido como uma relação pessoal e direta entre o líder político e as massas, se dá nesse contexto de representação política frágil.

Fleischer (2007) divide os partidos do período em grandes, mé-dios e pequenos, com uma subclassificação para os pequenos ideológicos. Os três grandes eram o Partido Social Democrático (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a União Demo-crática Nacional (UDN). Os médios seriam o Partido Democrata Cristão (PDC) e o Partido Social Progressista (PSP). Quanto aos pequenos, Fleischer identifica 10 agremiações: Partido Comu-nista Brasileiro (PCB), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido de Representação Popular (PRP), Partido Socialista

4 Fonte: IBGE.

5 É certo que, nos anos 1930, o Integralismo e o Partido Comunista tinham ex-pressão nacional, mas o período e sua prática política não se enquadram como “democráticos”.

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2 Brasileiro (PSB), Partido Republicano (PR), Partido Libertador (PL), Partido Trabalhista Nacional (PTN), Partido Social Traba-lhista (PST), Partido Rural Trabalhista (PRT) e Movimento Tra-balhista Renovador (MTR)6.

O PSD era majoritário em 1946, tendo elegido o general Dutra para a Presidência e 52,8% dos deputados para a Câmara dos Deputados. Posteriormente, o partido ainda elegeria o presi-dente Juscelino Kubitschek em 1955, mas veria sua liderança no Congresso diminuir paulatinamente, atingindo 28,8% das cadeiras da Câmara dos Deputados em 1962 (número pouco su-perior aos 28,4% do PTB naquele pleito) (SANTOS, 2003, p. 75). O PSD fora formado como herdeiro do espólio varguista, agluti-nando os caciques locais alçados ao poder por Vargas no Estado Novo. Sua base de apoio era sobretudo rural, que seria atingida negativamente pelo processo de urbanização.

O PTB era o braço urbano do legado varguista, criado para arregimentar a população das cidades e os trabalhadores or-ganizados nos sindicatos ligados ao Ministério do Trabalho (FLEISCHER, 2007, p. 305). Em termos ideológicos, o partido posicionava-se mais à esquerda. A legenda foi vitoriosa para a Presidência com Vargas em 1950 e elegeu João Goulart para vice-presidente duas vezes, em 1955 e 1960, respectivamente. O PTB e o PSD constituíram o núcleo central das coalizões de governo durante a República de 1946. Tal aproximação dava-se em boa medida pela origem varguista e pelo apoio ao de-senvolvimentismo. A ruptura da coalizão nos anos 1960, suas razões e consequências, estão no centro das reflexões sobre o golpe militar de 1964.

A UDN organizou-se desde seu princípio como oposição a Vargas e seu grupo (BENEVIDES, 1981). Suas origens remontam ainda aos anos 1930, quando se organizou como União Democrática

6 A classificação dos pequenos não é tão simples devido às fusões e cisões ocorri-das no período e a própria importância de fato, mas não de direito, do PCB após sua cassação em 1947.

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2Brasileira para disputar as eleições de 1938, que não ocorre-ram. Ela aglutinava a oposição rural e urbana a Vargas. Entre 1945 e 1962, sua participação na Câmara dos Deputados caiu de 26,9% para 22,2% (SANTOS, 2003, p. 75), tendo perdido para o PTB o posto de segundo maior partido no Senado Federal, em 1955, e na Câmara, em 1963. O partido se destacou pela retórica liberal e pelo golpismo. Contudo, em vários momentos compôs governos – como exemplo mais ilustrativo o governo Vargas em 1951 – e apoiou com alguma constância projetos industrializan-tes e desenvolvimentistas, como no governo JK, e na criação da Petrobras, no governo Getúlio. A UDN esteve em primeiro plano na coalizão presidencial apenas nos breves governos de Café Fi-lho (1954/1955) e Jânio Quadros (1961).

O PDC ligava-se ao pensamento católico, mas contava com li-deranças leigas como os professores universitários. Ligou-se a Jânio Quadros no governo de São Paulo e também na Pre-sidência. Segundo Fleischer, “no início da década de 1960, o PDC já contava com outros profissionais liberais, empresá-rios mais modernos e alas operárias, estudantis e universitá-rias” (FLEISCHER, 2007, p. 306). Ainda, “no final do período democrático, estava dividido em alas distintas, de esquerda, centro e direita, que tomariam rumos diferentes após a extin-ção dos partidos em 1966” (FLEISCHER, 2007, p 306). Elegeu vários governadores e chegou a ser o quinto partido no Con-gresso Nacional.

O PSP era considerado um “veículo político pessoal de Ade-mar de Barros”, interventor varguista e governador eleito de São Paulo por duas vezes (FLEISCHER, 2007, p. 306). Era considerado um partido populista de direita e muitas vezes atuava como legenda de conveniência para políticos dissi-dentes do PSD.

Como partidos ideológicos de esquerda, Fleischer considera o PCB, cassado em 1947 e cindido em 1958, com a criação do PCdoB, e o PSB, que não conseguiu crescer com o espaço deixado pelo PCB cassado; e de direita, o PRP, herdeiro do integralismo.

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2 2 Análise dos resultados – os atores e seus papéis

2.1. Dimensão quantitativa

Foi feita varredura no banco de dados de discursos da Câmara dos Deputados7, colocando-se como data inicial 1º de janeiro de 1946 e data final 31 de dezembro de 1950. No campo “Texto Integral”, foram lançados os termos: “câmbio”, “juros”, “inflação”, “desenvolvimento”, “economia”.

O rol de informações desta seção refere-se à 38ª Legislatura da Câmara dos Deputados. As eleições para o Legislativo ocorre-ram em 2 de dezembro de 1945. A Assembleia Constituinte que se seguiu foi composta de 286 deputados e 42 senadores. Em 19 de setembro de 1946 é promulgada a nova Constituição, que, no art. 11 do seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, faz ocorrer eleição suplementar para o Legislativo em 19 de ja-neiro de 1947 (passa-se a 304 deputados e 63 senadores). Essa 38ª Legislatura encerra-se em 31 de janeiro de 1951.

A Tabela 1 apresenta os resultados iniciais da busca.

Tabela 1 – Corpus da Pesquisa

Termo Discursos Encontrados Discursos Validados

Juros 3 2

Câmbio 2 0

Inflação 5 5

Economia 40 33

Desenvolvimento 12 9

Total 62 49

Fonte: Elaboração própria.

7 Disponível em: http://www2.camara.gov.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas.

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2A não validação resultou de discursos cuja temática não cor-respondia precisamente ao termo-chave proposto8. Chegou-se, portanto, a um corpus de 49 discursos para a pesquisa. Desses 49, trata-se tanto de discursos “livres” quanto aqueles vincu-lados a matérias em apreciação. Contudo, mesmo no segundo caso, os parlamentares optam por discursar sobre matérias, já que não houve identificação relevante de falas vinculadas a mo-mentos específicos do processo legislativo, como encaminha-mentos de votação.

A Tabela 2 apresenta os resultados das classificações feitas pe-los autores.

Tabela 2 – Categorias Analíticas

Termo Partidária Ideológica Espectro

Base Não base

Interven-cionista Liberal Geral Local

Juros 1 1 2 0 2 0

Inflação 4 1 4 1 4 1

Desenvolvimento 2 7 9 0 4 5

Economia 12 21 25 8 22 11

Total 19 30 40 9 32 17

Fonte: Elaboração própria.

Na categoria partidária, identificaram-se os discursos segundo a origem partidária do parlamentar. Foram considerados como base os deputados vinculados ao PSD e ao PTB. Todos os demais foram considerados não base.

O uso da terminologia não base, em vez de “oposição”, deve-se a peculiaridades da época que tornam essa classificação anacrô-nica. O presidente da República Eurico Gaspar Dutra era do PSD

8 Destaque-se que, embora inseridos em sentido amplo, os termos foram esco-lhidos em relação à sua significação técnica para a área de Ciências Econômicas.

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2 e foi eleito em coligação com o PTB. Apesar de o PTB ter partici-pado da coligação, o partido sofria grande influência de Getúlio Vargas, que rompeu com o presidente Dutra ainda em dezembro de 1946. O PCB, oposição, foi proscrito em 1947. A UDN também era oposição, contudo, segundo Skidmore (1988), só assumiu essa postura depois de setembro de 1946, após promulgada a Constituição. O PSP, de Ademar de Barros, ainda estava se or-ganizando durante a 38ª Legislatura e, anteriormente, Barros esteve filiado à UDN e manifestou apoio ao brigadeiro Eduar-do Gomes nas eleições de dezembro de 1945; posteriormente, apoiou a eleição de Vargas.

Ponto importante a qualificar a definição de governo e não governo é a análise de Santos (2003, 2007), que compreende a dinâmica partidária da República de 1946 como “faccional”, isto é, os partidos não apresentavam alta coesão e disciplina nas votações, tanto “governo” quanto “oposição”. As causas dessa dinâmica seriam as prerrogativas do Legislativo, capaz de apro-var políticas paroquiais sem necessidade de concessão do Poder Executivo, e também a inexistência de Poderes Legislativos re-levantes atribuídos ao presidente da República, incapacitando-o a exercer um controle efetivo sobre a agenda parlamentar. A coesão e a fidelidade partidária teriam como único incentivo a concessão de cargos no Executivo a membros dos partidos. Nes-se quadro, eram comuns a formação de facções e mesmo a busca de votos pelo governo em grupos da oposição.

A categoria ideológica assumiu dois comportamentos básicos do ponto de vista da economia: defesa de mais ações por parte do Estado – intervencionista; defesa de menos ações por par-te do Estado–liberal. Pode-se dizer que se trabalhou com duas visões: mais Estado ou menos Estado. Em termos de espectro, buscou-se avaliar a amplitude do tema coberto pelo parlamen-tar em seu discurso, se vinculado a questões de interesse nacio-nal ou questões de interesse local.

Parlamentares não pertencentes à coligação governista pro-nunciaram-se mais sobre os temas: 61% dos discursos. Em um

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2sistema presidencialista com as características do brasileiro, no qual the winner takes it all, o Congresso Nacional é o espaço que resta à oposição para se manifestar. Há uma predominân-cia clara do viés intervencionista (82%), com os parlamentares demandando diversos tipos de ação do Poder Executivo para re-mediar as questões apontadas nos discursos.

A maioria dos discursos (65%) tratou de questões de interesse nacional9. Nos discursos que abordaram questões locais, predo-minam os que se referem ao Nordeste e ao Norte. Dos 49 dis-cursos, 11 (22%) trataram de assuntos específicos das regiões Norte e Nordeste. O ativismo parlamentar dos representantes dessas regiões é um dos sintomas de sua desproporcionalidade de impacto e influência nos rumos nacionais.

Chama a atenção o fato de a inflação aparecer pouco, uma vez que é considerada um dos principais problemas do País . Segun-do Vianna (1992, p. 105), “confiante na evolução favorável do setor externo, o governo Dutra identificou na inflação o proble-ma mais grave e premente a ser enfrentado”. Talvez, por isso, as manifestações sobre o tema surjam da base, com apenas um par-lamentar não pertencente ao grupo tratando do assunto, ainda assim em uma perspectiva muito particularizada, destacando os efeitos da inflação na economia nordestina. Portanto, no cor-pus pesquisado, que leva em consideração apenas os discursos dos parlamentares, não é possível se confirmar a perspectiva de Bielschowsky (1988) de que até um partido notoriamente de oposição, o PCB, compartilhava vigorosamente do ideal de dar prioridade ao combate à inflação.

Também é sintomática a presença do tema “desenvolvimento” com a segunda maior frequência e assumido pela não base (7 discursos versus 2 discursos da base). O tema desenvolvimento teria destaque na campanha para as eleições de 1955, vencidas

9 Ressalte-se que os termos utilizados na pesquisa remetem a assuntos mais ge-rais por si mesmos, caracterizando um viés reconhecido da pesquisa.

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2 por Juscelino Kubitscheck, vinculado à “base” – era do PSD. No período em estudo, JK era deputado federal10.

Analisando-se os assuntos dos discursos, percebe-se uma forte presença de temas ruralistas (14 discursos), com 5 discursos es-pecíficos sobre o café, enquanto há apenas um discurso em defe-sa da indústria. Percebe-se uma resiliência do poder político das elites econômicas, situação experimentada em outros parlamen-tos. Heilbroner (1996) destaca o comportamento do Parlamento britânico por ocasião da crise do trigo, quando o preço elevou-se de forma drástica. Após estudar o assunto, o Parlamento apre-sentou como solução um aumento ainda maior do imposto sobre grãos estrangeiros, argumentando que a subida de preços a curto prazo seria um estímulo para a maior produção de trigo inglês a longo prazo. Segundo Heilbroner, “isto foi um sinal para o poder político da classe proprietária de terras de que 30 anos iriam se passar até que a Lei dos Cereais fosse por fim extirpada dos livros e grãos baratos pudessem entrar livremente na Grã-Bretanha” (HEILBRONER, 1996, p. 79). No Brasil, na época, “o rei café já ti-nha perdido a majestade”, conforme Villela (2005).

Comparando-se o comportamento da base e da não base em re-lação aos temas, tem-se algumas questões interessantes.

Tabela 3 – Categoria Ideológica

Intervencionista Liberal

Base 89% 11%

Não Base 77% 23%

Fonte: Elaboração própria.

O governo Dutra é considerado como liberal em seu início. Contudo, percebe-se, nas manifestações discursivas de parla-mentares vinculados à coligação governista, um claro viés in-

10 Para quem vê em JK um habilidoso político dos bastidores, significativo que tenha se apropriado de um tema da “oposição” e o convertido em bandeira pes-soal ao concorrer à Presidência da República.

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2tervencionista, ainda mais forte do que o de parlamentares opo-sicionistas. Os deputados viam a ação estatal como fundamental para a solução do que consideravam os diversos males do País. Assim, pode-se pensar que havia já no Parlamento espraiadas ideias de ambas as perspectivas, em apoio potencial às iniciati-vas governamentais.

Tabela 4 – Categoria Espectro

Geral Local

Base 79% 21%

Não Base 57% 43%

Fonte: Elaboração própria.

Quanto ao espectro da ação parlamentar, se geral ou local, per-cebe-se uma diferença significativa de comportamento entre parlamentares da base e da não base. Enquanto os deputados da coligação do Governo permitiram-se discorrer sobre temas de interesse nacional (possivelmente bem contemplados em seus pleitos localistas pelo Executivo federal), parlamentares da não base esforçaram-se em chamar a atenção para situa-ções específicas de suas bases eleitorais. Pode ser explicativa a hipótese de que os parlamentares do governo não precisassem enfatizar em discursos seu compromisso com o atendimento de pleitos de eleitores, devido ao fato de ao serem governo te-rem acesso livre aos órgãos do Poder Executivo e por lá viabi-lizarem suas demandas.

Com relação aos temas, chamaram a atenção a aprovação da in-dicação constitucional do Conselho Nacional de Economia (em 1946) e sua implementação (no final do governo Dutra). O Con-selho foi inserido no Texto Constitucional e foi um dos poucos órgãos públicos criados no governo Dutra.

Sugerido em emenda pelo deputado Daniel Faraco (PSD/RS), o Conselho era na sua concepção um órgão com capacidade técni-ca e legitimidade para fazer sugestões de políticas públicas ao governo. Para os favoráveis à ideia, ficava clara a importância

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2 dos temas econômicos e, sobretudo, do planejamento da econo-mia na gestão pública. Já para os contrários, como o deputado Tristão da Cunha (PR/MG), o Conselho seria uma manifestação de sociedades totalitárias:

Direi ao ilustre colega que planejamento da eco-nomia só é possível no regime totalitário, em que o Governo pode dispor arbitrariamente dos capi-tais e da mão de obra, a fim de designá-los para os pontos onde tiver de ser executado o plano (TRIS-TÃO DA CUNHA, DIÁRIO DO CONGRESSO NACIO-NAL, 10 de outubro de 1947, p. 6.734, 2ª coluna).

Outro tema importante foi o café. Como já se apontou acima, no argumento de Heilbroner, há certo hiato entre as movimenta-ções das forças econômicas e políticas. No caso específico, a for-ça do café no Parlamento se fazia diante da queda de sua impor-tância na produção econômica nacional, com perda de espaço, sobretudo para a indústria. Contudo, sua relevância ainda era significativa na Balança Comercial e, devido à premência des-se gargalo econômico, o tema tenha mudado sua natureza, mas mantido seu destaque, pois a restrição cambial era algo de bas-tante visibilidade naquele período.

Por fim, o tema do desenvolvimento tem importância na amos-tra já em primeiro lugar devido ao viés amostral, em que a ex-pressão foi usada como termo de busca. Contudo, é tema fun-damental do período, pois empolgou boa parte do discurso político na busca de votos na República de 1946. A tônica do tema demonstrava a busca de uma redenção nacional, do suces-so das novas técnicas e iniciativas econômicas sobre o passado de miséria e atraso. O tema do desenvolvimento coloca-se como um manancial de recursos quase inesgotável para o ator polí-tico, pois abre o futuro a infinitas possibilidades; era a energia inexaurível da dinamização das massas.

Ressalte-se uma restrição da pesquisa em sua dimensão quanti-tativa. No período em questão, há um total de 17.232 discursos no banco de dados da Câmara dos Deputados. O mecanismo de busca disponível no site da Câmara não realiza varreduras sin-

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2táticas, antes recorre a um processo de indexação manual, feito por meio de leitura e catalogação dos discursos. Agrega-se, ainda, o fato de que a indexação para o período foi realizada posterior-mente. Portanto, o retorno dado pelo mecanismo de busca, de apenas 62 discursos, embute esses vieses. Assim, esta pesquisa sinaliza para a necessidade de mecanismos mais apurados de mi-neração textual, que possam vir a dar mais exatidão e exaustão a pesquisas dessa natureza no site da Câmara dos Deputados.

2.2. Dimensão qualitativa

Há diversos modos de dizer e, consequentemente, diversas for-mas de se interpretar o que é dito. Parte-se do pressuposto de que toda realidade transformada em linguagem é uma forma de interpretação ou uma representação dessa realidade. Já que não existe texto neutro, sempre há interesses em torno de uma questão. Segundo Pêcheux (2002, p. 44), “o discurso não surge no vazio. O discurso remete à formação discursiva que o origi-nou e que é marcada por uma ideologia ali embutida. Na origem do processo discursivo, há uma formação discursiva permitindo as condições de sua existência”.

Todo falante ou escrevente tem uma intencionalidade, explícita em maior ou menor grau pela escolha lexical, pelo ordenamento das frases, pela composição do paratexto, pelo uso de operado-res argumentativos ou, simplesmente, pela escolha do que dizer ou não dizer. Segundo Koch (1984, p.24), “toda atividade de in-terpretação presente no cotidiano da linguagem fundamenta-se na suposição de que quem fala tem certas intenções ao comuni-car-se. Compreender uma enunciação é, nesse sentido, apreen-der essas intenções”.

Nessa etapa da pesquisa, trabalhou-se com Análise do Discurso, buscando-se uma abordagem que transcendesse a linearidade, relacionando enunciado e enunciação como elementos funda-mentais da produção de sentido: “esta distinção enunciação/ enunciado é apenas um exemplo da concepção da linguagem com o objetivo da constituição de uma teoria da linguagem

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2 como produção... o sujeito e o sentido não existem, produzem-se no trabalho discursivo” (KRISTEVA, 1988, p. 316).

Na concepção de Bakhtin, há que se entender que o texto não pode ser tomado como simples objeto de análise, sem se considerar o dialogismo e a contextualização, ou seja, deve-se ter presente:

a complexa interdependência que se estabelece entre o texto (objeto de análise e de reflexão) e o contexto que o elabora e o envolve (contexto in-terrogativo, contestatório, etc.) através do qual se realiza o pensamento do sujeito que pratica ato de cognição e de juízo. ... é impossível eliminar ou neutralizar nele (no texto) a segunda consciência, a consciência de quem toma conhecimento dele (BAKHTIN, 1997, p. 333).

Procedeu-se à análise dos discursos no tocante à tipologia de lin-guagem, em acordo com a classificação funcional de Jakobson (1995) – referencial, emotiva, conativa, fática, metalinguística e po-ética. Trata-se de abordagem estruturalista-semiológica, que ana-lisa o ato comunicativo e as funções da linguagem. Para Jakobson:

O remetente envia uma mensagem ao destinatário. Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto a que se refere, apreensível pelo destinatário e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um código total ou parcialmente comum ao remetente e ao des-tinatário; e, finalmente, um contato, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o desti-natário, que os capacite a ambos a entrarem e perma-necerem em comunicação (JAKOBSON, 1995, p. 22).

Jakobson preocupa-se em investigar os meios utilizados para que as condutas verbais adotadas alcancem sua finalidade. Nes-se percurso, considera como elementos do ato comunicativo o remetente, o contexto, a mensagem, o contato, o código e o des-tinatário. A cada um desses elementos corresponde, respectiva-mente, uma função da linguagem: emotiva, referencial, poética, fática, metalinguística e conativa.

A função emotiva, também chamada de expressiva, centra-se no remetente, visa a uma expressão direta da atitude de quem

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2fala em relação àquilo de que está falando. Transmite a sensa-ção de uma emoção, seja genuína ou dissimulada. A percep-ção da predominância dessa vertente é prejudicial, no caso de textos escritos, pois, por suas características, envolve o uso de vários recursos não verbais, carregados em si de informação contextual.

A orientação para o destinatário, a função conativa, preocupa-se com os efeitos e, portanto, tem sua expressão gramatical mais pura no vocativo e no imperativo (cf. JAKOBSON, 1995, p. 84). Observa Jakobson que as sentenças tipicamente conativas não são passíveis de serem testadas pela prova da verdade. A função referencial pende para o fator contextual, importante elemento facilitador da comunicação. A função fática preocupa-se com o funcionamento do canal de comunicação e é caracterizada, con-forme Jakobson (1995, p. 85), por “uma troca profusa de fór-mulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação”. A função metalinguística é uma con-firmação de que se está usando o mesmo código, com sentenças equacionais que fornecem informação sobre o código lexical do idioma. A função poética preocupa-se com a linguagem por ela própria, abrangendo as atividades de seleção e combinação, e está presente em diferentes manifestações verbais, que não apenas a poesia11.

Todo ato discursivo comporta uma mistura dessas funções, con-forme ressaltado pelo próprio Jakobson (1995, p. 82): “embora distingamos seis aspectos básicos da linguagem, dificilmente lograríamos, contudo, encontrar mensagens verbais que preen-chessem uma única função”. A classificação feita busca identi-ficar predomínio de um determinado tipo de linguagem. Iden-tificaram-se 45 discursos com predominância de linguagem referencial, dois com linguagem conativa e dois com linguagem poética. Em princípio inesperada em um ambiente parlamen-

11 Aliás, esse foi o ponto de partida da discussão proposta por Jakobson, no seu texto já clássico, Linguística e Poética, do qual fazemos citação à publicação de 1995, em português.

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2 tar, percebe-se a ausência de elementos perlocucionários12 ou conativos. A linguagem referencial é centralizada no referente, com o emissor buscando veicular informações sobre a realidade. Denotativa é uma linguagem, em princípio, tendente à neutralida-de, pois basicamente descreve fatos. Uma das chaves para explicar essa surpreendente predominância da linguagem referencial pode ser a atitude de credit claiming por parte dos parlamentares: com seus discursos, eles desejam mais marcar posições, posteriormen-te divulgadas junto às suas bases eleitorais, do que persuadir os seus colegas a adotarem determinadas posições (ARNOLD, 1990; MAYHEW, 1974)13. Um trecho de um dos discursos revela que o deputado faz o credit claiming de forma consciente:

Deputado Pedroso Júnior – Senhor Presidente, com essa indicação não tenho, nem poderia ter, a intenção de revelar ao Governo qualquer fórmula salvadora – porque não acredito em fórmulas sal-vadoras – nem pretendo ensinar a ninguém. Viso, sim, a dois objetivos: primeiro, valer-me da resso-nância, da repercussão que todas as palavras di-tas desta tribuna encontram no País inteiro, para uma tentativa de mobilizar a opinião nacional de provocar uma tomada de consciência nacional (DIÁRIO DO PODER LEGISLATIVO, 9 de março de 1946, grifos nossos).

Evidências do uso do discurso como instrumento de credit claiming também podem ser constatadas nos apartes. Percebe-se a pre-dominância de apartes do tipo “carona”, nos quais os parlamen-tares buscam afirmar que “também estão preocupados com aquele assunto”, como nos exemplos abaixo:

Aparte do deputado Café Filho ao deputado José Au-gusto – V. Exa. Pode falar também em nome da Ban-cada do Partido Progressista do Rio Grande do Nor-te (DIÁRIO DA ASSEMBLEIA, 20 de maio de 1946).

12 No sentido da Teoria dos Atos da Fala de Austin (1965), do ato que se realiza pela linguagem, revelando, principalmente, o caráter de busca do convencimen-to e da produção de ações.

13 Outra possibilidade, não passível de ser comprovada nesta pesquisa, é a de que os discursos tenham sido produzidos pela equipe de assessores técnicos.

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2Aparte do deputado Paulo Nogueira ao deputado João Botelho – Faço minhas palavras do nobre deputado João Botelho (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 26 de fevereiro de 1949).

Aparte do deputado Euzébio Rocha ao deputado Antonio Feliciano – Quero juntar aos protestos de S. Exa. os que tenho feito continuadamente, inclusive desta tribuna (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 2 de setembro de 1948).

A recorrência à linguagem conativa verificou-se apenas quando os deputados solicitam incisivamente determinada providên-cia. Um dos discursos no qual foi constatada a predominância da linguagem poética, secundada pela conativa, é um exemplar interessante do que ocorre nos debates parlamentares. Forte-mente aparteado, o parlamentar que discursa reage à ironia e à mordacidade, empolando a linguagem, mas buscando efeitos claros no aparteador. Termina-se a disputa com as seguintes fórmulas de cortesia:

Deputado Jurandyr Pires (aparteador): Absoluta-mente, não queria tirar Vossa Excelência da orien-tação que estava imprimindo ao seu discurso. Se aparteei, foi pelo apreço em que tenho o nobre deputado.

Deputado Dioclécio Duarte (discursador): Agra-deço sempre os apartes que vêm ilustrar o meu discurso. Por isso mesmo, eu os considero ele-mentos indispensáveis de cultura e de elegância parlamentar (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 9/6/1949, p. 4.833).

Considerações finais

Uma das expectativas em relação ao Congresso Nacional é a de que reflita a sociedade brasileira. Os assuntos econômicos perpassam a vida da sociedade e, dessa forma, espera-se que estejam presentes no Parlamento. Em uma perspectiva históri-ca, a verificação dessa presença necessita da busca de registros, entre os quais este estudo escolheu os discursos dos deputados sobre os temas “economia”, “inflação”, “câmbio”, “juros” e “de-senvolvimento”.

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2 Os resultados alcançados trazem algumas perspectivas sobre o período em questão e, mais notadamente, sobre a atuação legis-lativa e as relações entre Executivo e Legislativo, ainda pouco exploradas pela literatura, ao focar nas manifestações discursi-vas dos deputados.

O governo Dutra é tradicionalmente classificado como liberal em perspectiva política, percepção reforçada pelo fato de ter sucedido a uma ditadura. Em termos econômicos, oscilou entre um liberalismo inicial e um intervencionismo gerado pela cri-se cambial. Os dados, por sua vez, demonstram parlamentares preocupados em promover ações estatais (intervencionistas) como forma de solução de diversas situações. Essa caracterís-tica é mais forte entre os parlamentares vinculados à base. É interessante notar que, enquanto o Executivo depara-se com opções dicotômicas, intervencionista ou liberal, o Legislativo funciona como um repositório de apoios e oposições, em que convivem simultaneamente ideias opostas. É a força da reali-dade e o cálculo político que determinam as opções viáveis e mais lucrativas.

Quando se analisa o espectro das manifestações, constata-se que os parlamentares preocupavam-se com temas de interesse social amplo, não se restringindo a discutir questões paroquiais ou localizadas. A oposição se manifesta mais, demonstrando sa-ber aproveitar o campo do Legislativo como espaço de poder, no âmbito de um sistema presidencialista. Os pronunciamentos da bancada dos Estados do Norte e Nordeste são notadamente mais frequentes, revelando o ativismo parlamentar como estra-tégia clara dos representantes daquelas regiões.

Em termos de linguagem, percebe-se a predominância de uma lin-guagem neutra, denotativa (referencial), que busca contextuali-zar determinadas situações entre os pares, sem um viés claro de se buscar persuasão. Os deputados utilizaram seus discursos mais com finalidades de credit claiming do que de convencimen-to de seus pares – o que não deixa de ser uma confirmação da hipótese de conexão eleitoral (o deputado faz o discurso mais

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2preocupado com sua base do que com o alcance de um objetivo específico no âmbito decisório parlamentar). O folclore político referente ao debate parlamentar (de uma agressividade cortês ou diplomática) aparece sobretudo nos momentos em que o parlamentar é aparteado de modo negativo e se vê obrigado a reagir improvisando.

A análise dos discursos dos parlamentares assume como pressu-posto que toda realidade, quando transformada em linguagem, torna-se uma forma de interpretação ou uma representação des-sa realidade. A análise transcende, portanto, a abordagem estri-tamente linguística, pois considera as condições de produção dos textos. A abordagem interna do texto leva ao reconhecimento dos mecanismos e regras de engendramento do discurso e à análise externa, a reconstituição do contexto sociohistórico permite com-preender a construção dos sentidos de cada abordagem.

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Antônio José Calhau de ResendeMestre em Direito Administrativo pela UFMG / Consultor da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Resumo: O artigo em questão tem por finalidade analisar as principais carac-terísticas do tradicional regime estatutário ou unilateral dos servidores públi-cos, com base na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e a adoção do regime celetista na Administração Pública. O estudo demons-tra que, não obstante a utilização mais intensa do contrato de trabalho pelo Estado nos últimos anos, sobretudo até o julgamento da ADI 2.135-4/DF, e apesar das transformações por que passa a Administração, o clássico regime estatutário continua sendo o dominante e o que melhor atende às conveni-ências e necessidades do poder público.

Palavras-chave: Estatuto dos Servidores Públicos. Regime jurídico único. Re-gimes estatutário e celetista.

Abstract: This paper is aimed at analyzing the main characteristics of the tra-ditional single legal system of employment (under the Public Servant Statute), based on studies of doctrine and jurisprudence from the Supreme Federal Court, and the adoption of the CLT-ruled employment system (under the general labor law, known as CLT) within the Public Administration scope. The studies demons-trate that notwithstanding the most intense utilization of CLT-ruled contracts by the government over the last few years, even after the judgment of ADI 2.135-4/DF (a lawsuit challenging the constitutionality of such hires) and despite the transformations undergone by the Administration, the classic single legal system of employment still prevails, being considered the employment system which better meets the needs of the Public Administration.

Keywords: Single Legal System of Employment. CLT-ruled employment system, Single Legal System and CLT-ruled system.

Aspectos do regime estatutário e o regime celetista na administração pública

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2 Introdução

A natureza jurídica do vínculo existente entre o Estado e o ser-vidor é um dos temas mais controvertidos do Direito Público, tendo sido objeto de muitos debates e estudos tanto no direito estrangeiro quanto no direito pátrio, o que revela a importância e a atualidade do assunto. Muitas páginas já foram escritas por renomados juristas, seja nos tradicionais manuais de Direito Administrativo, seja em monografias específicas sobre a maté-ria, no intuito de estabelecer os elementos característicos dessa relação de emprego. Além dos estudos doutrinários, muitos de-bates foram travados no plano jurisprudencial acerca do regime jurídico que melhor atenda às exigências do serviço público.

É tradicional no Direito brasileiro a distinção entre o regime dito “estatutário” e o regime conhecido como “celetista”, de modo que o primeiro sempre esteve associado à ideia de puissance publique peculiar ao Estado, que dita normas, ao passo que o segundo é considerado o regime jurídico que deve disciplinar as relações de emprego travadas entre particulares, nos termos do contra-to de trabalho, que formaliza o vínculo entre o empregador e o empregado. Essa dicotomia clássica entre o regime estatutário e o regime trabalhista comum ainda se encontra enraizada na cultura jurídica brasileira.

Poder-se-ia afirmar que apenas o regime jurídico dos servido-res públicos é considerado como estatutário? A Consolidação das Leis do Trabalho, que contém um complexo de normas re-lativas à relação de emprego, tem traços de estatuto? O que se entende por estatuto e quais seus elementos identificadores? O regime dito “estatutário” ainda pode ser considerado como o mais vantajoso para a administração pública? As respostas a esses questionamentos são relevantes para a correta compre-ensão da matéria, e é o que procuraremos demonstrar ao longo deste trabalho.

A opção que fizemos pelo tema objeto deste trabalho está in-timamente relacionada com o processo de reforma do Estado, especialmente com o advento da Emenda Constitucional nº 19,

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2de 1998, que suprimiu do caput do art. 39 da Constituição da República de 1988 a exigência de instituição do regime jurídico único para os servidores da administração direta das entidades federadas e de suas autarquias e fundações públicas1, a par de outras alterações. A reforma administrativa implementada pela referida emenda consagrou, no plano constitucional, novas figu-ras e institutos na administração pública, além de inserir expli-citamente o princípio da eficiência no caput do art. 37, como um dos parâmetros norteadores da atividade administrativa. O cer-ne dessa reforma reside na busca de eficiência e o que se preten-de, pelo menos aparentemente, é transformar a administração burocrática e hierarquizada em uma administração gerencial, baseada em controle de resultados.

Nesse contexto de modernização, parece existir uma inclinação do governo em ampliar a utilização do regime celetista na admi-nistração pública, principalmente com o advento da Lei Federal nº 9.962, de 2000. Destarte, poder-se-ia sustentar que o regime estatutário vem perdendo importância para o poder público, o qual seria substituído gradativamente pelo regime celetista?

Entendemos que o assunto merece reflexões por parte dos es-tudiosos do Direito, razão pela qual a discussão sobre a nature-za do vínculo entre o Estado e seus agentes continua sendo um tema atual para os juristas.

Aspectos do Regime Estatutário e o Regime Celetista na Administração Pública

1 – Origem da relação funcionarial

Antigamente, os cargos públicos pertenciam a determinadas fa-mílias, que eram verdadeiras proprietárias dos ofícios públicos, de modo que o filho de um funcionário herdava as atividades

1Por força de liminar deferida pelo STF no julgamento da ADI 2.135-4/DF, o dis-positivo foi declarado inconstitucional, sendo restabelecida a redação original do caput do art. 39.

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2 do pai. Esse sistema de herança tem sua origem no feudalismo e restringia o exercício da função pública apenas aos membros da nobreza ou da burguesia, que eram as classes privilegiadas.

Mais tarde, no século XVI, os cargos públicos passaram a ser ob-jeto de venda e arrendamento. Durante muito tempo, a alienação de ofícios públicos constituiu importante fonte de renda para o Estado, prática que é atribuída a Francisco I, na França, e que foi utilizada também na Espanha, sob o reinado de Juan II, em razão principalmente dos prejuízos sofridos na guerra contra os mou-ros. Essa concepção do ofício público como passível de negocia-ção transforma o cargo público em mercadoria, o que é totalmen-te incompatível com a concepção moderna da natureza da função pública, uma vez que apenas as pessoas detentoras de grandes fortunas é que poderiam exercer atividades públicas, indepen-dentemente de qualificação ou habilitação técnica para tanto.

É claro que esse sistema de alienação e doação de cargos públi-cos, que foi utilizado em alguns países da Europa, constitui uma reminiscência histórica e justificava-se, à época, por circunstân-cias peculiares ao sistema monárquico, no qual a vontade do rei se confundia com a vontade divina, o que implicava a necessida-de de total obediência por parte dos súditos.

Outro critério utilizado para o ingresso na função pública é o sistema de eleição, prática comum na Inglaterra e nos Estados Unidos, além de ter sido muito comum nos países do Leste Eu-ropeu, inclusive a antiga União Soviética, onde os juízes eram selecionados mediante procedimento eleitoral, não se exigindo do candidato sequer a qualidade de jurista ou a habilitação em Direito. Essa técnica do sufrágio para a escolha de funcionários é compatível com os Estados democráticos, mas tem o grave defeito de aproximar muito a administração da política. Aliás, o êxito da eleição depende de várias circunstâncias (promessa, favor, simpatia pessoal) e esses fatores nem sempre coincidem com os interesses públicos.

Atualmente, nos países da Europa continental e da América Latina, prevalece o critério da seleção do funcionário por meio

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2de concurso público, procedimento que nos parece o mais ade-quado para o exercício de cargos ou empregos públicos, pois prestigia o mérito e a capacidade do agente para desempenhar atividades estatais.

No caso específico do Brasil, a vigente Constituição da Repúbli-ca, mais precisamente o art. 37, II, exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos para a investi-dura em cargo ou emprego público, salvo as hipóteses de cargo em comissão, declarado em lei de livre nomeação e exoneração.

2 – Natureza jurídica do vínculo entre o Estado e o servidor

Como foi assinalado na introdução deste estudo, muito se dis-cutiu sobre a natureza da relação de emprego travada entre o poder público e seus servidores, originariamente concebida como de natureza contratual, fruto do consentimento de ambas as partes, para culminar na teoria estatutária, frequentemente denominada “unilateral”, que expressa a supremacia de poder do Estado diante de seus agentes.

A ênfase que se dá ao regime dito “estatutário” é, em sua na-tureza legislativa, institucional. Sendo elaborado pelo próprio Estado, só por este pode ser modificado a qualquer tempo, independentemente do consentimento do servidor, para me-lhor atender às necessidades do serviço, ficando patente que tal regime jurídico não tem caráter contratual, uma vez que não resulta da produção de vontade conjunta das partes. Nes-se caso, o servidor encontra-se em uma situação legal objeti-va, geral e impessoal, de modo que inexiste direito subjetivo à continuidade do regime jurídico, embora devam ser respei-tados pelo Estado os direitos adquiridos com base na lei, tais como a licença-prêmio e o adicional de quinquênio, desde que os requisitos objetivos para a obtenção dos benefícios sejam preenchidos pelo agente. O regime estatutário, tal como vem sendo sustentado na dou-trina dominante, contém normas especiais de Direito Adminis-trativo, que pode ser objeto de disciplina jurídica de todos os

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2 entes da Federação, diferentemente da Consolidação das Leis do Trabalho, que contém regras de Direito do Trabalho, cuja com-petência normativa é privativa da União, conforme determina o art. 22, I, da vigente Constituição da República. Nessa linha de raciocínio, o regime chamado “estatutário” foi concebido para reger as relações travadas entre o Estado e seus agentes ocupantes de cargos públicos, condensando um conjunto de normas de Direito Público dispondo sobre os direitos, deveres, obrigações e prerrogativas dos servidores, passíveis de modifi-cação unilateral para a proteção do interesse público, que deve ser perseguido pelo Estado.

No tocante ao regime estatutário, ensina Carvalho Filho (2010: 648):

Essa relação não tem natureza contratual, ou seja, inexiste contrato entre o poder público e o servi-dor estatutário. Tratando-se de relação própria do direito público, não pode ser enquadrada no sistema dos negócios jurídicos bilaterais de di-reito privado. Nesse tipo de relação jurídica não contratual, a conjugação de vontades que conduz à execução da função pública leva em conta outros fatores tipicamente de direito público, como o provimento do cargo, a nomeação, a posse e ou-tros do gênero.

Na relação de Direito Público, como é o caso do regime ju-rídico do servidor, o Estado edita o ato administrativo de nomeação para o cargo público, ato que depende apenas da manifestação de vontade do Estado. Todavia, a nomeação não implica vínculo jurídico entre ele e o indivíduo, pois é indis-pensável o consentimento deste para o ingresso na função pública, o que ocorre somente com a posse, que é o ato de aceitação do cargo e das condições de execução do serviço. Não há dúvida de que a posse traduz um acordo entre o po-der público e o agente, mas tal ajuste é relevante tão somente para a formação do vínculo, hipótese em que ele passa a se submeter a um complexo de normas jurídicas previamente elaboradas pelo Estado.

Nesse particular, registre-se o magistério de Bandeira de Mello (1991: 19-20):

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2Há, efetivamente, um acordo, mas este diz respei-to, unicamente, à formação do vínculo. Cinge-se a ele. Limita-se a expressar sua concordância em inserir-se debaixo de uma situação geral e abstra-ta. Não atinge, nem pode atingir, o conteúdo da relação formada, pois este não se encontra à sua disposição como objeto de avença. Falta à relação de função pública aquela “transfusão de vonta-des”, que, na feliz expressão de Clóvis Bevilaqua, caracteriza o contrato.

Já o regime celetista, que também contém um conjunto de direitos, deveres e obrigações dos empregados e empregadores, os quais devem ser respeitados por ocasião da formalização do contrato de trabalho, foi concebido inicialmente para regular as relações de emprego entre particulares. Nesse caso, o contrato de trabalho celebrado entre as partes, com fundamento no diploma celetista, vincula o conteúdo da relação jurídica durante o tempo de sua vi-gência, não cabendo ao empregador modificar unilateralmente as cláusulas contratuais, ainda que os termos da avença sejam elabo-rados previamente pelo empregador, que os submete à aceitação do empregado, como ocorre nos chamados “contratos de adesão”.

Verifica-se, portanto, que ambos os diplomas normativos consa-gram direitos, deveres e obrigações, embora abranjam campos distintos. Entretanto, é comum e corriqueiro denominar “esta-tuto” apenas o regime jurídico do servidor. Esse fato nos leva a verificar o significado do termo e o seu alcance, a começar pela lição do dicionarista de Plácido e Silva (1993: 213):

Derivado do latim statutum, de statuere (esta-belecer, constituir, fundar), em sentido amplo, entende-se a lei ou regulamento, em que se fixam os princípios institucionais ou orgânicos de uma coletividade ou corporação, pública ou particular (privada)...Em qualquer aspecto ou sentido, pois, o estatuto, geralmente dito no plural estatutos, exibe o complexo de normas ou regras observadas por uma instituição jurídica, a serem adotadas como lei orgânica, pelos quais, então, passa a ser regida.

Conforme a explicação do citado jurista, pode-se inferir que o es-tatuto tem acepção ampla e pode compreender uma pluralidade

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2 de diplomas normativos, seja o regime jurídico dos servidores, seja o regime dos trabalhadores submetidos à Consolidação das Leis do Trabalho. Até mesmo a Constituição do Estado pode ser alcançada por esse termo, sendo um Estatuto Fundamental que contém princípios e regras sobre a organização do Estado, a se-paração de Poderes, a repartição de competências e a fixação dos direitos e garantias fundamentais, entre outras matérias típicas de uma constituição. Se o estatuto tem sentido amplo e abrange um conjunto de normas que regem determinada ativi-dade ou o funcionamento de órgãos e entidades, em princípio parece ser equivocada a tese tradicional de se identificar apenas o regime jurídico dos servidores com a noção de estatuto.

Esse assunto mereceu atenção especial de Vilhena (2002: 192), segundo o qual:

A doutrina do Direito Administrativo, em geral, não diz, em sua estrutura global, o que se consi-dera um estatuto de funcionário ou o que se con-sidera funcionário sob o prisma de um mínimo de direitos e deveres diante do Estado. Em rápida abordagem, adiantamos a concepção desdobrável de um estatuto em sentido largo e as várias acep-ções que possa ter segundo o plano de agrupa-mento das regras que o compõem, partindo-se do dado social e depois jurídico do status. Por outro lado, deixamos patente que a institucionalização das relações do funcionário com o Estado com-porta uma dupla acepção. De um lado, toma-se o funcionário como órgão do Estado, que com ele se identifica, que o presenta e que, em sua estrutura organizativa, compõe a categorização de uma fun-ção. Esse é o ângulo objetivo. Do outro lado, fun-cionário e Estado defrontam-se como sujeitos de direitos e de deveres ou obrigações recíprocos. O Estatuto passa a ser visto sob a sua face subjetiva.

Conforme o entendimento do autor, o termo “estatuto” tem sen-tido amplo e alcança outros diplomas normativos além do tra-dicional Estatuto dos Funcionários Públicos, não podendo ser visto como uma exclusividade dos agentes titulares de cargo público. Tanto o regime jurídico dos servidores quanto o regime celetista são considerados diplomas estatutários, pois consti-

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2tuem agrupamento de regras que regulam a execução de servi-ços e estabelecem direitos, deveres e obrigações. O que varia é a extensão dos direitos em cada regime jurídico, de modo que determinados institutos são peculiares ao regime dito “estatu-tário”, tais como a estabilidade, a disponibilidade remunerada, a licença para tratar de assuntos particulares e o adicional por tempo de serviço. Diga-se de passagem que, no plano federal, os dois últimos institutos foram suprimidos do regime jurídico dos servidores públicos. Na concepção do citado jurista, inexiste diferença substancial entre a relação de emprego travada entre particulares e a cons-tituída entre o particular e o Estado, pois em ambos os casos é o trabalho que está sendo objeto de tutela jurídica. A simples pre-sença do poder público em um dos polos da relação jurídica, na qualidade de sujeito de direitos, não tem o condão de modificar a natureza dessa relação, e demonstra que o Estado pode participar da relação de emprego privado e se enquadra como empregador.

3 – Pluralidade de regimes antes da Constituição de 1988

Antes da promulgação da Carta de 1988, coexistiam na adminis-tração pública três regimes jurídicos: o estatutário, o celetista e o chamado “regime especial”. O regime estatutário abrangia apenas os funcionários da administração direta titulares de car-go público, submetidos à Lei Federal nº 1.711, de 28/10/52, o que compreendia, aproximadamente, 20% do total de agentes que mantinham relação de emprego com a União. O regime ce-letista contratual abarcava em torno de 80% dos profissionais vinculados ao poder público, embora não fosse considerado o regime comum da administração pública. O regime especial, também denominado terceiro regime, tinha previsão expres-sa no art. 106 da Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, e deveria ser aplicado para as atividades de caráter tem-porário e as funções de natureza técnica especializada, nos ter-mos de lei específica a ser editada.

É interessante assinalar que o ordenamento constitucional an-terior utilizava o termo “funcionário público”, que, nos termos

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2 do art. 2º do Estatuto de 1952, era definido como “a pessoa le-galmente investida em cargo público.” Os servidores das enti-dades autárquicas, não obstante a natureza jurídica de Direito Público, não eram enquadrados na categoria de funcionários nem se sujeitavam às regras do tradicional Estatuto dos Funcio-nários Públicos Civis da União.

Pretendeu-se atribuir ao regime especial a natureza de con-trato administrativo, que é um tipo de ajuste em que o Estado participa da relação jurídica com supremacia de poder em re-lação ao contratado, dispondo de prerrogativas exorbitantes para modificar unilateralmente as cláusulas previamente pac-tuadas, a bem do interesse público, desde que preservado o equilíbrio financeiro da avença. No entanto, esse regime não chegou a ser utilizado de maneira uniforme, salvo em casos isolados, e a jurisprudência trabalhista da época admitia ape-nas dois regimes: o estatutário e o celetista, dada a inexistên-cia da lei a que se referia o citado art. 106 da Constituição de 1967/69.

A verdade é que o regime estatutário, que foi o produto da rei-vindicação dos funcionários do Estado por um regime distinto do trabalhista comum, já estava sendo colocado em segundo plano, haja vista que a grande maioria dos agentes se encontra-vam vinculados ao regime da Consolidação das Leis do Traba-lho. Essa fuga do regime de Direito Público para o regime cele-tista pode ser demonstrada com a promulgação da Lei Federal nº 6.185, de 1974, que dispôs sobre os servidores públicos civis da administração federal direta e autárquica, segundo a nature-za jurídica do vínculo empregatício.

Essa lei elencou as atividades próprias de poder público, cujos servidores deveriam estar submetidos ao regime estatutário, assim consideradas as áreas mencionadas no art. 2º: segurança pública; diplomacia; tributação, arrecadação e fiscalização de tributos federais e contribuições previdenciárias; procurador da fazenda nacional; controle interno; e Ministério Público. Em se tratando de atividades não explicitadas no citado dispositivo, a lei exigia a admissão de servidores regidos pela legislação tra-

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2balhista, além de prever a possibilidade de opção de funcioná-rios estatutários pelo regime celetista.

Como se vê, o legislador ordinário federal consagrou a ampla possibilidade de aplicação da legislação do trabalho nas relações travadas com seus agentes, salvo nas hipóteses arroladas como inerentes ao Estado, o que representa uma nítida infiltração das normas da CLT no campo da administração pública. Assim, para as atividades sem correspondência no setor privado, hoje enten-didas como núcleo estratégico, era indispensável a adoção da tese estatutária, ao passo que as demais sujeitar-se-iam às regras do Direito do Trabalho.

A primeira indagação que poderia ser feita é a seguinte: a enu-meração prevista na referida lei é taxativa ou exemplificativa? O preceito legal inseriu o Ministério Público na área de atividade típica do Estado e não mencionou o Tribunal de Contas e a Magis-tratura. Seria coerente admitir que o promotor de Justiça exerce função própria de poder público, submetendo-se ao regime de Direito Público, se o mesmo não ocorre em relação ao conselhei-ro do Tribunal de Contas e ao juiz de Direito, que deveriam se submeter ao regime celetista? A nosso ver, trata-se de grave equí-voco do legislador a tentativa frustrada de explicitar as atividades inerentes ao Estado, pois tal catalogação é complexa.

Restringiu-se, pois, o campo de aplicação do regime de Direi-to Público nas relações de emprego, fato que atesta a projeção cada vez maior do regime celetista na administração direta e autárquica.

4 – A unificação do regime jurídico na Carta de 1988

A nova ordem jurídica inaugurada com a Constituição de 1988, mais precisamente na redação original do caput do art. 39, exi-gia a instituição de regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração direta das entidades fe-deradas e de suas autarquias e fundações públicas. De acordo com esse comando constitucional, a União, os Estados, o Distri-to Federal e os Municípios deveriam adotar, no âmbito de suas

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2 competências, um complexo de regras jurídicas uniformes para todos os servidores, de modo a evitar tratamento diferenciado para os agentes que se encontrassem na mesma situação jurídi-ca perante o poder público.

A diversidade de regimes jurídicos que coexistiam anteriormen-te levou o constituinte de 1988 a prever a unificação do regime de trabalho nas pessoas jurídicas de Direito Público. Entretan-to, não havia no Texto Constitucional uma indicação explícita quanto à natureza desse regime, se seria o tradicional regime estatutário ou o regime celetista, que já era o predominante na administração pública. Além disso, a nomenclatura tradicional de “funcionário público” foi substituída por “servidor público”, o que passou a abranger também os servidores das entidades autárquicas e fundacionais.

Diante desse novo quadro normativo, muitos foram os debates e discussões sobre os elementos identificadores desse regi-me único dos servidores. No plano doutrinário, uma corrente sustentava o caráter estatutário desse regime único, com fun-damento no método sistemático de interpretação do texto, en-quanto outro grupo de juristas admitia a possibilidade de opção de cada ente político pela adoção do regime estatutário ou do regime celetista, conforme o caso.

Um dos principais argumentos utilizados pelos defensores da natureza estatutária do regime único, previsto na redação origi-nal do caput do art. 39 da Carta de 1988, diz respeito ao coman-do constitucional que prevê a aplicação aos servidores públicos de determinados direitos básicos dos trabalhadores urbanos e rurais, conforme prescrição do atual § 3º do art. 39 da Constitui-ção Federal, que correspondia ao antigo § 2º, antes da promul-gação da Emenda Constitucional nº 19, de 1998. De acordo com esse comando normativo, todos os servidores públicos subme-tidos ao regime de emprego dito “estatutário”, unilateral ou ins-titucional, fazem jus a certos benefícios consagrados no art. 7º da Lei Maior, entre os quais se destacam o 13º salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria (VIII), a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (IX) e o

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2repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos (XV). Esses institutos são próprios da Consolidação das Leis do Trabalho, os quais passaram a ter força constitucional e consti-tuem direito público subjetivo dos servidores titulares de cargo público de todas as entidades federadas e de suas autarquias e fundações públicas. No tocante à combinação dos preceitos constitucionais para a identificação do regime jurídico dos servidores, é digno de re-gistro o ensinamento de Anastasia (1990: 63):

O art. 7º, referido, abriga extenso rol de direitos conferidos aos “trabalhadores urbanos e rurais”. Na verdade, tal dispositivo é um elenco de direi-tos trabalhistas inseridos na Carta Federal. Bas-ta a leitura do retrocitado § 2º do art. 39 para se ver que somente alguns dos direitos trabalhistas foram estendidos aos servidores submetidos ao regime único (é o efeito da expressão “esses servi-dores”)... É tranquila, então, a conclusão: fosse ce-letista o regime único, os servidores teriam direito a todas as prerrogativas introduzidas pelo art. 7º, que são institutos do direito do trabalho. Seria in-tolerável e odiosa a discriminação: já se viu em-pregado celetista sem direito a FGTS? O fundo, previsto no inciso III do art. 7º, não foi conferido aos servidores sob o regime único. Por quê? Em virtude de o regime único ser estatutário e seus servidores gozarem de estabilidade.

Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 492-1-DF, proposta pelo procurador-geral da República contra a Lei Federal nº 8.112, que contém o regime jurídico dos servidores da República, arguiu a inconstitucionalidade das alí-neas “d” e “e” do art. 240 da Lei nº 8.112, consagrou o regime estatutário como o regime comum da administração e o que me-lhor se harmoniza com as diretrizes constitucionais. Consoante a decisão do Pretório Excelso, negou-se aos servidores estatu-tários o direito à negociação coletiva e à ação coletiva diante da Justiça do Trabalho, afastando a competência da jurisdição tra-balhista para o julgamento dos dissídios individuais. A decisão em referência foi publicada no Diário da Justiça de 12/3/1993, atuando como relator o ministro Carlos Velloso.

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2 Uma vez confirmada pelo órgão de cúpula do Judiciário a natu-reza estatutária do regime único previsto na redação original do art. 39, caput, da Carta Magna, a teoria do estatuto voltou a ter prestígio, apesar de algumas unidades da Federação terem instituído o regime celetista para os seus servidores, principal-mente no âmbito municipal. O art. 3º da vigente Lei nº 8.112 define servidor público como “a pessoa legalmente investida em cargo público”, definição idênti-ca à de funcionário prevista na Lei nº 1.711, de 1952, que conti-nha o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União. Deve-se ressaltar, todavia, que a definição de servidor público em sentido estrito concebida pelo Direito Administrativo não corresponde à definição prevista no caput do art. 327 do Có-digo Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 1940), segundo o qual “considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce car-go, emprego ou função pública”. O § 1º do mencionado art. 327, com as modificações introduzidas pela Lei nº 9.983, de 2000, equipara a funcionário público “quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da administração pública”. A nosso ver, essa dicção normativa abrange também as pessoas físicas que exer-cem atividades nas empresas públicas e sociedades de economia mista (empregados públicos), além de abarcar os empregados das concessionárias e permissionárias de serviços públicos, das entidades do Terceiro Setor, tais como os Serviços Sociais Autô-nomos (Sesi, Senai, Sesc), das Organizações Sociais e das Orga-nizações da Sociedade Civil de Interesse Público – Oscips. Esse entendimento é sustentado por alguns juristas, entre os quais se destaca Di Pietro2, que engloba os empregados das entidades do Terceiro Setor na definição ampla de funcionário público pre-vista no Código Penal.

2Direito Administrativo, 24ª ed. São Paulo, Atlas, p. 503, 2011.

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2Sob a ótica do Direito Administrativo, servidores públicos fede-rais propriamente ditos são apenas os titulares de cargos que prestam serviços nas pessoas de Direito Público e submetidos às disposições da Lei nº 8.112, de 1990, não englobando os agentes cuja relação de emprego é disciplinada pela legislação trabalhista e formalizada mediante contrato de trabalho. De uma maneira geral, os critérios mais utilizados na doutrina e na legislação para a identificação dos funcionários são os seguin-tes: permanência no cargo ocupado, profissionalidade e o cará-ter público da relação de emprego. O primeiro critério traduz a ideia de que o funcionário é nomeado para o desempenho de atividade permanente e por prazo indeterminado, o que requer a estabilidade do agente para o melhor exercício da função pú-blica. O segundo critério tipifica o funcionário como verdadeiro profissional da administração, ou seja, uma autoridade que faz do serviço modo de vida, que aspira a uma carreira bem-suce-dida e que integra uma relação de hierarquia nos quadros da administração. Nesse caso, o elemento principal não seria pura e simplesmente a ocupação do cargo, mas o fato de o funcioná-rio fazer do exercício da atividade a sua profissão e a fonte de seu sustento. O terceiro critério consiste na relação de Direito Público entre o funcionário e o Estado, de modo que cabe ape-nas a este ditar as regras do jogo e modificá-las unilateralmente, visando sempre à prestação mais adequada do serviço público.

A combinação desses critérios pode ser constatada no Direito Positivo de vários estados, entre os quais se destacam a Alema-nha, a França e a Espanha. O Estatuto dos Funcionários da antiga Alemanha Federal, de 1953, enquadrava na categoria de funcionário o agente que se encontrasse numa relação de direito público de serviço e fide-lidade ao Estado ou a uma corporação a ele submetida imedia-tamente, a um estabelecimento público ou a uma fundação de direito público.

O Estatuto correspondente na França, de 1959, considera fun-cionário todo aquele que, nomeado para exercer um cargo per-manente, seja titular de um grau de hierarquia da administração

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2 central do Estado, dos seus serviços externos ou dos estabeleci-mentos públicos sem caráter comercial ou industrial. Essa figu-ra, denominada établissement public do Direito francês, corres-ponde à entidade autárquica do Direito Brasileiro, sendo forma de descentralização administrativa de caráter institucional. Alguns estabelecimentos públicos são instituídos para a execu-ção de serviço público típico do Estado, ao passo que outros são criados para o desempenho de atividade industrial ou comer-cial. As pessoas que prestam serviços nestas últimas entidades não se submetem às normas do Direito Administrativo, mas às regras da legislação do trabalho.

O art. 4º do atual Estatuto Geral dos Funcionários determina ex-plicitamente que o funcionário se encontra em uma “situação estatutária e regulamentar”, o que exclui a natureza contratual dessa relação de emprego. Disposição idêntica constava no art. 5º do antigo Estatuto Francês, de 1946.

Após o abandono, na França, desde o final o século XIX, da an-tiga distinção entre atos de império e atos de gestão, deixou de ter importância a diferença dela decorrente entre funcionários de autoridade e funcionários de gestão. A partir daí, firmou-se o entendimento doutrinário, legal e jurisprudencial de que o funcionário público é o que se sujeita às normas especiais do Direito Administrativo, cujos litígios decorrentes da relação de emprego são apreciados pelos tribunais administrativos. A esse respeito, é oportuno registrar o ensinamento dos publicistas Gaudemet, Laubadère e Venezia (1992: 326):

A solução do problema é hoje a seguinte. Todos os funcionários estão em uma situação de direito público, regulada por regras especiais de direito administrativo e cujos litígios devem ser decidi-dos pelos tribunais administrativos. Esta situa-ção é uma situação legal e regulamentar, e não contratual.

1º A jurisprudência consagra a primeira ideia estabelecendo a competência da jurisdição admi-nistrativa para conhecer dos litígios que opõem o funcionário à administração.

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22º o juiz aplica aos funcionários todos os elementos da situação legal e regulamentar. (tradução livre)

O Estatuto dos Funcionários da Espanha, de 1964, considera funcionário a pessoa incorporada na administração pública por uma relação de serviços profissionais e retribuídos, regu-lada pelo Direito Administrativo. O referido estatuto distingue funcionários de carreira e de emprego. Os primeiros são os que, em razão da nomeação, desempenham serviços em caráter per-manente, integrando os quadros da administração, enquanto os funcionários de emprego são eventuais ou interinos.

5 – A Reforma do Estado e a Emenda Constitucional nº 19, de 1998

Sabe-se que um dos pontos nucleares da reforma administrativa consiste na eficiência e na busca de resultados mais satisfatórios no desempenho da atividade administrativa, o que culminou na consagração constitucional do controvertido instituto denomi-nado “contrato de gestão”, instrumento básico para a realização da administração gerencial, em substituição à antiga adminis-tração burocrática, hierarquizada e autoritária.

Com a promulgação da Emenda nº 19, de 1998, foi suprimido do Texto Constitucional a exigência explícita de instituição do regime jurídico único para os servidores das entidades políticas e das autarquias e fundações públicas, modificando-se o coman-do do caput do art. 39, que passou a ter a seguinte redação:

“Art. 39 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remunera-ção de pessoal, integrado por servidores designados pelos res-pectivos Poderes.”

No entanto, o dispositivo em comento foi questionado no Supre-mo Tribunal Federal por meio da ADI nº 2.135-4/DF, proposta pelo PT, PDT, PCdoB e PSB, cuja liminar, deferida em 2/8/2007, suspendeu a eficácia do preceito até o julgamento final da ação, sob o argumento de que a matéria constante no DVS nº 9 (des-taque para votação em separado), na Câmara dos Deputados,

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2 ainda no 1º turno, não obteve o número de votos necessários para sua aprovação, contrariando o disposto no art. 60, § 2º, da Constituição da República. Não obstante a sustação da eficácia desse dispositivo, foram mantidos os atos praticados antes do julgamento da liminar.

Portanto, o motivo da impugnação do caput do art. 39 da Cons-tituição Federal, que suprimia a exigência de regime jurídico único na administração direta, autárquica e fundacional, foi a constatação de vício no processo de votação da matéria na Câ-mara dos Deputados, e não a supressão em si do regime úni-co. Como decorrência dessa decisão do STF, foi restabelecida a redação original do mencionado preceito constitucional, ou seja, continua a prevalecer a regra básica da instituição do regime único para os servidores das pessoas jurídicas de direito público, o que evidencia a excepcionalidade da situação.

Essa decisão não interferiu na situação jurídica dos emprega-dos públicos contratados anteriormente sob o regime da CLT. Todavia, há autores que defendem a tese segundo a qual a admi-nistração pública não poderá realizar novas contratações sob o regime de emprego público enquanto vigorar a decisão do STF. É o ponto de vista expressado por Justen Filho (2011: 825), o qual entende que “não será cabível a admissão de novos empre-gados públicos no âmbito da administração direta, autárquica e de fundações públicas se e enquanto permanecer vigente a de-cisão liminar adotada na ADI nº 2.135”.

Apesar do posicionamento do Pretório Excelso, ancorado em ví-cio do processo legislativo, parece-nos que a intenção dos ide-alizadores da reforma do Estado foi a de garantir à administração pública dos três níveis de governo plena liberdade para a escolha do regime que entender mais vantajoso para os servidores públi-cos, seja o regime tradicionalmente conhecido como “estatutário”, que sempre esteve relacionado com a pessoa estatal, seja o regi-me celetista, normalmente vinculado às relações de emprego efe-tivadas entre particulares. É com base na intenção do constituin-te derivado de excluir a exigência de instituição do regime único na administração pública que desenvolvemos este trabalho.

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2Alguns doutrinadores continuam a entender que o regime es-tatutário deve ser o dominante para os servidores titulares de cargos nas pessoas jurídicas de Direito Público, embora admi-tam a utilização do regime celetista em alguns casos, princi-palmente para as atividades consideradas subalternas. Outros juristas são mais contundentes ainda na defesa do regime es-tatutário, por entenderem que este é o único sistema de nor-mas compatível com a natureza do serviço público e da pessoa estatal, descartando a aplicação do regime da Consolidação das Leis do Trabalho. No primeiro grupo, destaca-se o ensinamento de Bandeira de Mello (2009: 260-261):

Que atividades seriam estas, passíveis de com-portar regime trabalhista, se a lei assim decidir? Só poderiam ser aquelas que – mesmo desempe-nhadas sem as garantias específicas do regime de cargo – não comprometeriam os objetivos (já re-feridos) em vista dos quais se impõe o regime de cargo como sendo o normal, o prevalente. Seriam, portanto, as correspondentes à prestação de ser-viços materiais subalternos, próprios dos serven-tes, motoristas, artífices, jardineiros ou mesmo de mecanógrafos, digitadores, etc., pois o modesto âmbito da atuação destes agentes não introduz riscos para a impessoalidade da ação do Estado em relação aos administrados caso lhes faltem as garantias inerentes ao regime de cargo.

Conforme o ensinamento do autor, não há qualquer incompati-bilidade de a administração pública utilizar o regime trabalhis-ta comum nas relações de emprego travadas com seus agentes, desde que esse regime seja aplicado apenas em determinadas atividades que não comprometam os objetivos que exigem a adoção do regime de cargo público, que, na sua concepção, deve ser o dominante na administração direta, nas autarquias e nas fundações de Direito Público. No segundo grupo de juristas, merece destaque a posição enfática sustentada pela constitucionalista Rocha (1999: 134-138), que, ao tratar da modificação introduzida no caput do art. 39, ensina:

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2 O que se há de indagar é se a obrigatoriedade não formalizada, explicitamente, realmente faz-se reti-rada do sistema jurídico... Sobrelevam, para a inter-pretação da matéria, todos os fundamentos jurídi-cos antes anotados, tais como a caracterização dos fins públicos, a natureza da pessoa jurídica pública, bem como a adjetivação do serviço público a ser de-sempenhado pelo servidor, entre outros. Nada disso se alterou com o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 1998... O que se tem, pois, é que o conjun-to de normas constitucionais que se estabelecerão com a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, subs-tituindo aquelas originariamente promulgadas, não transforma a essência e natureza do regime pre-visto como legítimo para o servidor público, nem o sistema constitucional em sua inteireza autoriza que se cunhe situação inteiramente diversa do que se estabeleceu fundamentadamente no direito, na experiência administrativa e na jurisprudência.

Assim, para ambos os juristas, o regime de cargo continua sendo o dominante na administração pública, não obstante a posição de outros doutrinadores que admitem a ampla aplicação das normas da legislação do trabalho para os servidores, salvo nas hipóteses de atividades constitucionalmente consideradas típi-cas de Estado, cuja identificação se encontra implícita na Consti-tuição, e que requerem a implantação do regime de cargo. Apenas a título de ilustração e exemplificação, julgamos conve-niente assinalar que o administrativista Rigolin3 também é par-tidário da tese que assegura aos entes políticos a possibilidade de opção por qualquer dos regimes atualmente existentes para os servidores públicos, que poderá ser o estatutário ou o cele-tista. Ele admite até mesmo a instituição de um regime inédi-to para o seu pessoal, contanto que respeite rigorosamente os princípios e os parâmetros constitucionais mínimos, que cons-tituem, conforme cada caso, direitos e deveres tanto dos ser-vidores quanto da administração, e que não podem jamais ser omitidos nem negligenciados. Gasparini4 também entendia que

3O servidor público na Constituição de 1988, Saraiva, 1999, p. 120.4Direito Administrativo, Saraiva, 2009, p. 203

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2o Estado poderia optar pela instituição do regime jurídico estatu-tário ou celetista antes da edição da Emenda nº 19, de 1998, que suprimiu a exigência do regime único. Entretanto, o autor mudou de posicionamento com a sobrevinda da decisão do STF, a qual declarou inconstitucional o art. 39 da Lei Maior e restaurou, até o julgamento do mérito, a redação original do dispositivo. Assim, o mencionado jurista voltou a admitir a possibilidade da adoção do regime estatutário ou institucional como o básico para os servi-dores públicos da administração direta, autárquica e fundacional, embora esse regime possa conviver com o regime celetista.

O fortalecimento da tese estatutária para os servidores das pes-soas de direito público foi manifestado por meio do julgamento da ADI nº 2.310-1/DF, proposta pelo Partido dos Trabalhado-res (PT), a qual questionou vários dispositivos da Lei Federal nº 9.986, de 2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências. O art. 1º da referida lei submeteu os servidores dessas autarquias especiais à legislação trabalhista, em regime de emprego público. Entre-tanto, tal dispositivo, entre outros, teve sua eficácia suspensa por meio de liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que a natureza das atividades exercidas pelas agências requer a aplicação do regime de cargo público, e não do regime de emprego público. Essa decisão demonstra, de forma inequívoca, que o regime estatutário continua a ser o regime comum das entidades com personalidade de direito pú-blico, não obstante a intenção do governo de ampliar o quadro de agentes admitidos pelo regime contratual celetista.

Posteriormente, o Executivo encaminhou ao Congresso Na-cional a Medida Provisória nº 155, de 2003, convertida na Lei Federal nº 10.871, de 2004, que dispõe sobre a criação de car-reiras e organização de cargos efetivos das autarquias especiais denominadas Agências Reguladoras, e dá outras providências. A mencionada lei submeteu a carreira de regulação e fiscalização de serviços públicos de tais agências ao regime de cargo públi-co, ou seja, ao regime estatutário, corrigindo o equívoco ante-rior. A Lei nº 10.871 revogou, expressamente, vários dispositi-vos da Lei nº 9.986.

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2 6 – A ampliação do regime celetista

Não é difícil perceber que o propósito do legislador federal foi o de ampliar a utilização do regime celetista na administração pública, o que resultaria, em última análise, no abandono gra-dativo das normas estatutárias para reger a grande massa de trabalhadores do Estado. Atualmente, a primeira manifestação concreta de ampliação do regime celetista foi a exclusão do caput do art. 39 da exigência de instituição do regime jurídico único para os servidores da admi-nistração direta da União, dos Estados e dos Municípios e das enti-dades autárquicas e fundacionais, fruto da Emenda Constitucional nº 19, de 1998. Posteriormente, segundo o contexto de reforma do Estado e tendo por base a citada emenda, foi promulgada a Lei Fe-deral nº 9.962, de 22/2/2000, que disciplina o regime de emprego público do pessoal da administração federal direta, autárquica e fundacional. Essa lei consagra a implantação definitiva do regime celetista nas pessoas de Direito Público, para o exercício de ativida-des em caráter permanente, e não apenas temporário, propiciando a convivência de servidores titulares de cargo público e servidores ocupantes de emprego público. Todavia, a decisão liminar do STF na ADI 2.135, que restabeleceu a exigência do regime único, jogou por terra a intenção do governo de ampliar o regime celetista e, consequentemente, fortaleceu o regime estatutário.

No plano histórico, pode-se afirmar que a Lei nº 9.962 inspirou-se na antiga Lei Federal nº 6.185, de 1974, que exigia a admissão de servidores na União e nas autarquias federais mediante con-trato de trabalho regido pela CLT, salvo nos casos de atividades consideradas inerentes ao Estado, explicitamente mencionadas na lei, hipótese em que o regime deveria ser o estatutário, tais como no caso do Ministério Público, do controle interno e da diplomacia, entre outras atividades típicas de poder público. A Lei nº 9.962, diferentemente da anterior, não elenca em seu corpo normativo as atividades reputadas típicas de Estado, mas determina, no § 2º do art. 1º, que o regime de emprego público (contratual celetista) não deve ser aplicado aos cargos públicos

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2de provimento em comissão nem aos servidores submetidos à Lei nº 8.112, de 1990, às datas das respectivas publicações.

A mencionada lei prevê a possibilidade de transformação de cargos em empregos (§ 1º do art. 1º), além de exigir que a contratação de pessoal para emprego público seja precedida de prévia aprova-ção em concurso público de provas ou de provas e títulos (art. 2º), dando ênfase à exigência prevista no art. 37, II, da Constituição da República, que utiliza os termos “cargo” e “emprego público”.

O legislador federal poderia ter atribuído, explicitamente, a esse ajuste de emprego público a natureza jurídica de contrato admi-nistrativo, pois existem elementos na lei que levam o intérprete a tal identificação, principalmente pela consagração normativa de várias hipóteses de rescisão unilateral por parte da adminis-tração (art. 3º), que é uma das características mais importantes dessa espécie de contrato, a saber: prática de falta grave, entre as enumeradas no art. 482 da CLT, que prevê 13 situações de justa causa; acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; necessidade de redução de quadro de pessoal, por ex-cesso de despesa, nos termos da lei complementar prevista no art. 169 da Constituição da República (atual Lei Complementar nº 101, de 4/5/2000); e insuficiência de desempenho. É interessante observar que as hipóteses de rescisão unilateral, a que se refere o art. 3º da Lei nº 9.962, já estão consagradas na Constituição, o que reforça o entendimento de que o contrato de emprego público sujeita-se ao regime jurídico-administrativo e, consequentemente, pode ser enquadrado na categoria de con-trato de direito público, não obstante a exigência legal de sub-missão às normas da CLT.

Nesse pormenor, diga-se de passagem que Cretella Júnior5 de-fendeu, durante muito tempo, a tese do contrato de direito pú-blico para explicar a natureza do vínculo entre o funcionário público e o Estado.

5Tratado de Direito Administrativo, Forense, v. 4, p.173.

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2 Em Minas Gerais, a Lei Complementar nº 73, de 30/7/2003, dis-ciplinou o regime de emprego público na administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo, nos moldes da le-gislação federal. A principal diferença entre as normas federal e estadual reside no fato de esta somente admitir o regime contra-tual celetista para as atividades de natureza temporária ou peri-ódica, caso em que a duração do contrato de trabalho não poderá exceder a 12 meses, prorrogável uma vez por igual período. O legislador estadual enumerou no art. 4º as atividades exclusivas de Estado no âmbito do Poder Executivo e que são incompatíveis com o regime celetista: procurador do Estado, fiscal de Tributos e Receitas Estaduais da Secretaria de Estado de Fazenda, policial civil, defensor público, policial militar e bombeiro militar. O empregado público admitido nos termos da citada lei com-plementar será contribuinte obrigatório do Instituto de Previ-dência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg), para fins exclusivos de assistência médica e hospitalar, em percentual igual ao dos ocupantes de cargo público.

Saliente-se que, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, exis-tem muitas semelhanças entre cargos e empregos, pois em ambos estão presentes os seguintes traços comuns: criação e extinção por lei; conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional cometidas ao agente; de-nominação própria; número certo; relação de hierarquia; profis-sionalidade; dependência financeira; vencimentos pagos pelos cofres públicos; e investidura mediante aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos. A diferença entre servidor titular de cargo público e servidor ocupante de emprego público reside no fato de que apenas o primeiro se submete às normas do regime estatutário, unilate-ral ou institucional, elaborado pelo Estado e somente por este modificado, para melhor atender às necessidades do serviço, ao passo que o segundo tem vínculo contratual com o Estado, nos termos da legislação trabalhista. O conjunto de direitos e obri-gações previsto no regime jurídico estatutário não é idêntico ao consagrado na CLT, haja vista que a estabilidade é um instituto

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2típico do regime de Direito Público, não alcançando os servido-res submetidos ao regime celetista. É claro que o conteúdo dos direitos e deveres dos servidores titulares de cargo pode variar em razão das peculiaridades de cada ente político, de maneira que é difícil existir uma identidade absoluta de regimes jurídi-cos instituídos pelas entidades federadas.

O problema nuclear consiste em justificar a utilização de um regime específico para os servidores ocupantes de cargo e di-ferenciá-lo do regime trabalhista comum aplicável aos titulares de emprego, já que ambos desempenham atividades semelhan-tes. Por que razão alguns são estatutários e outros são celetis-tas? A nosso ver, a natureza da atividade poderia justificar o tratamento distinto. Atividades típicas de poder público, assim consideradas as exercidas pelos magistrados, promotores e po-liciais, exigem regime especial, embora seja difícil catalogá-las de forma exaustiva. Nesses casos, parece-nos que a ideia de au-toridade com maiores poderes decisórios é patente, sendo tais atividades incompatíveis com o regime contratual celetista.

A ampliação de incidência das normas da CLT nas relações em-pregatícias travadas com o Estado e as demais pessoas públicas não pode ser vista como uma superposição do Direito do Traba-lho sobre o Direito Administrativo, pois os princípios norteadores da administração pública continuarão a ser aplicados no exercício da função pública. Se é verdade que o clássico regime rotulado de “estatutário” se encontra enfraquecido em face da nova conjun-tura político-jurídica, não é menos verdade que existe um núcleo de atividades peculiares ao Estado que a legislação do trabalho jamais poderá disciplinar, por ser inconciliável com a via nego-cial. A utilização do contrato de trabalho pela administração não afasta a obrigatoriedade de o Estado perseguir fins públicos nem exclui a aplicação de princípios básicos da atividade administra-tiva, assim considerados os que estão explícita e implicitamente mencionados no caput do art. 37 da Constituição Federal. O que se nota, portanto, nos últimos anos, principalmente até a decisão liminar do STF que restabeleceu o regime único, é o escopo de ampliação do regime contratual celetista na adminis-

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2 tração pública, embora o estatuto trabalhista tenha sido conce-bido originariamente para reger as relações de emprego entre particulares.

Conclusão

Nesse contexto de mudanças por que passa o Estado, a Emenda nº 19, de 1998, a par de consagrar explicitamente o princípio da eficiência, extirpou do caput do art. 39 da Constituição a exi-gência de adoção de regime jurídico único para os servidores da administração direta dos entes políticos e de suas entidades autárquicas e fundacionais. Parece-nos evidente que a intenção do governo foi a ampliação do regime celetista nas pessoas de Direito Público, o que se concretizaria por meio da Lei nº 9.962, de 2000, que disciplina o regime de emprego público nessas entidades da administração federal. Essa preferência manifes-ta pela legislação trabalhista nas relações de emprego travadas pelo Estado teria concorrido, de certo modo, para o desprestí-gio do regime estatutário, caso o STF não tivesse declarado a in-constitucionalidade do mencionado dispositivo e restabelecido a vigência do preceito original, mediante decisão liminar na ADI nº 2.135-4/DF.

O contrato de emprego público previsto na citada Lei 9.962, não obstante a previsão explícita de sujeição às regras da CLT, apresenta traços de contrato administrativo, instituto consagra-do na doutrina, na lei e na jurisprudência pátrias, e peculiar ao Direito Administrativo, caracterizado pela supremacia de poder do Estado na relação jurídica, o que lhe faculta modificar unila-teralmente as cláusulas e condições de execução do serviço, a bem do interesse público, além de extinguir prematuramente o vínculo, nos termos da lei. Ora, a negociação contratual, nos moldes da CLT, que também é um estatuto, já que estabelece direitos, deveres e obriga-ções relativos à vida funcional do trabalhador, não deve ser realçada como uma primazia do Direito do Trabalho sobre o Direito Administrativo. Isso porque os princípios da admi-

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2nistração pública, que dão identidade a esse ramo do Direi-to Público, não deixarão de nortear a prestação do serviço, independentemente da natureza do vínculo entre o Estado e o servidor. A evolução do Direito do Trabalho, que é fato incontestável, não implica perda de autonomia do Direito Administrativo, uma vez que determinadas áreas de atuação do Estado somente se compatibilizam com a aplicação de normas desse ramo da ciência jurídica, sobretudo as consi-deradas típicas do poder público.

A supremacia do interesse público sobre o interesse particular e a indisponibilidade dos interesses públicos são postulados que justificam a instituição de um regime jurídico específico e distinto do regime privado, de maneira que o exercício da função pública se reveste de tais particularidades. À luz da atual sistemática constitucional, é inconcebível a admissão de magistrados, promotores, procuradores e defensores públicos pela via contratual celetista, embora outras tantas atividades possam ser submetidas à legislação trabalhista. Há, pois, um nú-cleo de matérias em que o regime de cargo é inafastável e cujos agentes não se vinculam ao Estado mediante contrato firmado nos moldes da CLT, mas com base no regime jurídico-adminis-trativo, que expressa a supremacia de poder do Estado em face de seus agentes.

Apesar disso, existe uma nítida infiltração das disposições da legislação trabalhista na tutela jurídica do servidor, enquanto prestador de serviços, o que não é incompatível com a admi-nistração pública. Nesse particular, o contrato de trabalho cele-brado com o Estado, nos termos da CLT, não é substancialmente diferente do contrato travado entre particulares, uma vez que ambos são sujeitos de direitos. Dessa forma, tomando por base a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o tradicional regime estatutário continua sendo o regime comum das pessoas de Direito Público, apesar da tentativa do governo de ampliar a utilização do regime ce-letista no âmbito da administração pública direta, autárquica e fundacional.

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Resumo: Este artigo tem como objetivo precípuo, a partir da hermenêu-tica constitucional comparada, especialmente do estudo das manifesta-ções doutrinárias e jurisdicionais colhidas nos ordenamentos jurídicos europeu e colombiano, proceder à análise dos conteúdos do direito fun-damental ao livre desenvolvimento da personalidade humana e do prin-cípio da dignidade da pessoa humana, com o desiderato de apontar as se-melhanças e diferenças entre esses preceitos constitucionais, analisando em que medida é possível afirmar ser o direito ao livre desenvolvimento da personalidade um direito fundamental aplicável ao ordenamento jurí-dico brasileiro, bem como em que medida a sua adoção contribuirá para a proteção dos direitos de personalidade e para a tutela da liberdade e da autonomia privada.

Palavras-Chave: Hermenêutica Constitucional Comparada. Direitos Fun-damentais. Livre desenvolvimento da personalidade humana. Dignidade da pessoa humana. Direito comparado. Direitos da personalidade. Liber-dade e autonomia privada.

Hermenêutica constitucional comparada: a contribuição da aplicabilidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro

Thiago Penido MartinsDoutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Mestre em Direito Privado pela Faculdade de Direito Milton Campos/Especia-lista em Direito Público pela Faculdade de Direito Milton Campos/Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Rodolpho Barreto Sampaio JúniorDoutor em Direito/Professor adjunto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Professor adjunto vinculado ao Programa de Mestrado da Facul-dade de Direito Milton Campos/Procurador do Estado de Minas Gerais

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2 Abstract: The article aims to conduct a comparative study of constitutional hermeneutics, especially european and colombian doctrine and jurisprudence, analyzing the content of the fundamental right to the free development of human personality and the human dignity principle, pointing out the similarities and differences between these constitutional provisions and examining the possibility of applying the right to free development of personality in the Brazilian legal system and also its effects on protection of freedom and private autonomy.

Keywords: Constitutional Hermeneutics, Fundamental Rights, free development of human personality, human dignity, freedom and private autonomy.

1. Introdução

O direito à dignidade da pessoa humana e o direito ao livre de-senvolvimento da personalidade encontram-se positivados de forma expressa em diversos textos constitucionais europeus, especialmente nos ordenamentos jurídicos alemão, espanhol e português, nos quais assumem relevante papel na construção e no desenvolvimento da doutrina e das manifestações jurisdicio-nais das Cortes Constitucionais Europeias.

A proteção aos direitos à dignidade da pessoa humana e ao li-vre desenvolvimento da personalidade humana já se encontra-va prevista no art. 22 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), segundo o qual, toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à realização dos direitos individuais, eco-nômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.1

Na Alemanha, o Texto Constitucional que serviu de inspiração para diversos outros ordenamentos jurídicos, incorporando

1 “Art. 22 – Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade”.

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2os preceitos contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), é expresso ao preceituar em seu art. 2.1, que “todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personali-dade, desde que não violem os direitos de outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.”2

Na Espanha, o Texto Constitucional estabelece em seu art. 10.1 que a “dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da or-dem política e da paz social.”3

Em Portugal há a previsão no art. 26.1, que “a todos são reco-nhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer for-mas de discriminação.”

Na América Latina, na Colômbia, o Texto Constitucional traz em seu art. 16 preceito muito parecido com o contido no ordenamento ju-rídico espanhol, que prevê que “todas as pessoas têm o direito de li-vre desenvolvimento de sua personalidade, mas com as limitações que impõe os direitos dos demais e a ordem jurídica.”4

No Brasil, uma detida análise do ordenamento jurídico permite inferir que não existe preceito constitucional idêntico àqueles contidos nos textos constitucionais alemão, espanhol, portu-guês ou colombiano. Contudo, similarmente ao verificado nos

2 Nos termos do art. 2.1 “Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persönlichkeit, soweit er nicht die Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmäßige Ordnung oder das Sittengesetz verstößt.”

3 De acordo com o art. 10.1, “La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social.”

4 Nos termos do art. 16, “Todas las personas tienen derecho al libre desarrollo de su personalidad sin más limitaciones que las que imponen los derechos de los demás y el orden jurídico.”

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2 ordenamentos alemão e espanhol, existe expressa previsão constitucional da garantia ao direito fundamental à dignidade da pessoa humana.

Assim, diante dos objetivos deste artigo, é imperioso delimitar o conteúdo do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana, bem como ve-rificar se aquele teria como correspondente, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana, estudo que demanda a realização de análise comparativa entre os conteúdos desses preceitos normativos.

2. O conteúdo do direito fundamental ao livre desenvolvimento de personalidade

A inserção do direito ao livre desenvolvimento da personalida-de nos textos constitucionais representou grande marco para todo o constitucionalismo europeu, especialmente para o orde-namento jurídico alemão. Isto porque, logo após o período das grandes guerras mundiais, caracterizado pela ascensão dos re-gimes totalitários, pelo desrespeito aos direitos humanos e pelo extermínio de centenas de milhares de pessoas, promulgou-se a Lei Fundamental de Bonn (1949), primeiro texto constitucional a prever o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

A positivação do direito ao livre desenvolvimento da persona-lidade constituiu, no âmbito do ordenamento jurídico alemão, importante passo na ruptura com os regimes totalitários e, in-questionavelmente, uma relevante resposta à banalização e ao desrespeito aos direitos humanos ocorrida, principalmente, na Alemanha. A positivação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade promoveu a recuperação e revalorização dos conceitos de pessoa e personalidade, pois como bem destaca Stein “todo direito fundamental tem a sua raiz histórica numa prévia falta de liberdade contra a qual se dirige.”5

5 1973, p. 126.

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2Outro fator relevante para a construção do conteúdo e forta-lecimento da importância do direito fundamental ao livre de-senvolvimento da personalidade foi a implantação da Corte Constitucional alemã em 1951, que, desde sua instalação, tem ampliado e aperfeiçoado gradativamente a aplicação deste di-reito fundamental, aumentando o lastro protetivo conferido pelo Texto Constitucional alemão à pessoa humana, inclusi-ve mediante o reconhecimento da aplicabilidade deste direi-to fundamental no âmbito das relações jurídicas privadas, ou seja, do reconhecimento da sua eficácia nas relações jurídicas entre particulares.

Nos demais ordenamentos jurídicos europeus que consa-gram o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a inserção deste relevante direito fundamental nos textos cons-titucionais também refletiu um processo de ruptura com os regimes totalitários vivenciados em Portugal e na Espanha. Garantiu-se aos indivíduos um amplo e relevante espaço de liberdade e de autodeterminação, ao se impor sérias restri-ções e obstáculos a qualquer forma de intervenção do poder público e dos particulares nas esferas íntimas da existência humana relacionadas à vida privada, intimidade e autonomia privada.

A grande questão que envolve a aplicabilidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana é aquela atinente à determinação de seu conteúdo jurídico. Desde sua positivação, uma das maiores preocupações e dificuldades en-contradas por estudiosos e órgãos jurisdicionais está assenta-da justamente na complexa tarefa de se determinar o grau de abrangência do direito ao livre desenvolvimento da persona-lidade, ou seja, quais condutas ou comportamentos humanos estão protegidos por este direito fundamental. Conforme des-taca Suárez Berrío:

o interesse pelo direito ao livre desenvolvimen-to da personalidade é todo prático, a solução dos problemas jurídicos que o envolvem tem gerado a necessidade de abordar, desde a teoria jurídica, a compreensão do núcleo essencial deste direito, seu

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2 âmbito de aplicação e seus limites, e a relação deste direito com outros.6 (1999, p. 68, tradução nossa).

Conforme destacado pela Corte Constitucional colombiana, a grande questão é que o direito de livre desenvolvimento da personalidade:

se distingue de outros direitos constitucionais na medida em que não opera em um âmbito especí-fico, nem ampara conduta determinada – como fazem, por exemplo, a liberdade de expressão ou a liberdade de cultos – e estabelece uma proteção genérica, motivo pelo qual se aplica a toda condu-ta.7 (COLOMBIA, n. 309, 1997, tradução nossa).

Fora essa questão, há que se destacar que outro fator dificulta-dor da delimitação do conteúdo do direito ao livre desenvolvi-mento da personalidade está no fato de que as normas constitu-cionais que o preveem, além de terem alcance semântico muito aberto e amplo, estabelecem, de maneira geral, uma “possibili-dade muito ampla e geral de restrição, pois assinala que o limi-te ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade são os direitos dos demais e a ordem jurídica”8

É o que ocorre, por exemplo, quando o Texto Constitucional ale-mão garante o direito ao livre desenvolvimento da personalida-de “desde que não violem os direitos de outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral”, quando o Texto

6 Segue o original em espanhol: “el interés por el derecho al libre desarrollo de la personalidade es del todo practico, la solución de los problemas jurídicos que lo involucram há generado la necesidad de abordar, desde la teoria jurídica, la comprensión del núcleo esencial del derecho, su ámbito de aplicación y sus limites, y de la relación de éste com otros derechos.”

7 Segue o original em espanhol: “se distingue de otros derechos constitucionales en la medida en que no opera en un ámbito específico, ni ampara conducta determinada – como lo hacen por ejemplo la liberdad de expresión o la liberdad de cultos – ya que establece una protección genérica por lo cual se aplica en principio a toda conducta.”

8 Segue o original em espanhol: “posibilidad muy amplia y general de restricción, pues señala que él limite al derecho al libre desarrollo de la personalidade son los derechos de los demás y orden jurídico”, e “parece estar sujeto a culquier tipo de restricción” (COLOMBIA, n. C-309, 1997).

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2Constitucional espanhol garante, mas, simultaneamente, condi-ciona o exercício do direito ao livre desenvolvimento da perso-nalidade ao “respeito à lei e aos direitos dos demais”, e, por fim, o colombiano, quando estabelece como limite ao seu exercício “os direitos dos demais e a ordem jurídica.”9

A despeito das dificuldades conceituais, no âmbito dos ordena-mentos jurídicos europeus, especialmente na Alemanha, os es-tudiosos dos direitos fundamentais tendem a atribuir ao direito de livre desenvolvimento de personalidade natureza de “cláu-sula geral ou direito geral de personalidade”, que confere aos in-divíduos uma ampla, mas restringível liberdade para autodeter-minação de sua vida privada, ou seja, uma verdadeira “liberdade como faculdade de autodeterminação de todo o ser humano.”10 Neste sentido se manifesta Suárez Berrío, para quem:

Como ocorre com o direito à igualdade, o livre de-senvolvimento da personalidade tem um campo de aplicação amplíssimo (condutas nas quais se pode predicar sua aplicação normativa), não há determi-nação de um tipo de comportamento em relação aos quais se aplica este direito e de outros em que não. Daí que a jurisprudência o denomine como cláusula geral de liberdade.11 (1999, p. 72, tradução nossa).

E conclui Suárez Berrío:

Esta amplitude de aplicação nos leva a concluir que o direito ao livre desenvolvimento da perso-nalidade não tem um conteúdo normativo pró-

9 Segue o original em espanhol: “los derechos de los demás y el orden jurídico”. Há que se destacar que, como os demais direitos fundamentais, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade não é absoluto, podendo sua aplicabilidade ser relativizada em face de outros direitos fundamentais.

10 1999, p. 120.

11 Segue o original em espanhol: “Como sucede con el derecho a la igualdad, el libre desarrollo de la personalidade tiene un campo de aplicación amplíssimo (conductas en las cuales se puede predicar su aplicación normativa), no hay determinación de un tipo de comportamentos respecto de los cuales se aplique este derecho y de otros en lo que no. De ahí que la jurisprudencia lo denomine como clausula general de libertad.”

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2 prio. Este direito é o reconhecimento da faculdade genérica de eleger o modo de comportar-se de acordo com determinados fins12 (1999, p. 73, tra-dução nossa).

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, segundo entendimento predominante no âmbito do ordenamento jurí-dico alemão, encontraria dúplice fundamento. Primeiro, no di-reito fundamental de liberdade, que permite ao indivíduo a livre determinação de seu agir em observância ao ordenamento jurí-dico vigente e, segundo, no direito fundamental à igualdade, que exige que o exercício do direito de liberdade por um indivíduo não represente uma indevida restrição às liberdades alheias.

A partir da análise de algumas das principais manifestações jurisdicionais proferidas pelas Cortes Constitucionais dos Esta-dos cujas constituições preveem o direito fundamental ao li-vre desenvolvimento da personalidade, é possível inferir que estas, acompanhando as manifestações doutrinárias sobre o tema, têm conferido uma ampla interpretação e abrangência ao conteúdo deste direito, com o objetivo de abarcar as mais diversas situações jurídicas envolvendo a proteção da perso-nalidade humana.

Nesse ínterim, a partir dessa concepção protecionista à pessoa humana, os órgãos jurisdicionais europeus e colombiano têm aplicado o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, por exemplo, para proteger o direito ao nome, como nos casos de alteração do nome em decorrência de inter-venção cirúrgica para mudança de sexo, para garantir o direito a não submissão de intervenção médica contra a vontade do paciente, para o reconhecimento da legalidade da prática de eutanásia.

12 Segue o original em espanhol: “Esta amplitude de aplicación nos lleva a concluir que el derecho al libre desarrollo de la personalidade no tiene un contenido normativo próprio. Este derecho es el reconocimiento de la faculdade genérica de eligir el modo de comportarse de acuerdo com unos fines.”

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2Em outros casos, o direito ao livre desenvolvimento da perso-nalidade tem servido de fundamento jurídico para garantia do direito de liberdade de crença e religião, garantia do direito de contratar, permitindo a escolha do outro sujeito contratual e a definição do conteúdo do contrato, proteção dos direitos auto-rais, garantia da intimidade, vida privada, imagem, direito ao co-nhecimento da origem biológica, direito de autodeterminação na utilização das informações de natureza pessoal. Martins destaca que, no ordenamento jurídico alemão, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade tem se atribuído a “dois ramos fundamentais: o direito geral de personalidade, que, por sua vez, tem diversas concretizações, e a liberdade geral de ação.”13 O primeiro se destinaria à proteção dos direitos de personalidade dos indivíduos, ou seja, aqueles atinentes a sua existência como pessoa, tais como nome, sexo, identidade, imagem, intimidade, vida priva-da, honra, direito ao próprio corpo, informações pessoais.

O segundo, por sua vez, seria destinado a tutelar o indivíduo em sua liberdade de agir, isto é, mediante a atribuição da capaci-dade de autodeterminação de sua existência, em aspectos como liberdade de crença e religião, liberdade de opinião e convicção, liberdade de profissão, liberdade contratual. Ademais, há que se destacar que, no que concerne ao direito ao livre desenvol-vimento da personalidade em sua dimensão de direito geral da personalidade, preleciona Martins que:

Quanto ao Tribunal Constitucional Federal ale-mão, que, juntamente com a literatura especializa-da, trabalha com o direito geral da personalidade, ele não vislumbra diversas configurações desse direito geral em vários âmbitos da vida, como su-gere a teoria do núcleo da personalidade, mas di-ferentes modos de desenvolvimento do titular do direito, sobretudo a autodeterminação, a autocon-servação e a autoexposição, dependendo do aspec-to respectivamente relevante em determinado mo-mento na vida do titular que pretende fazer valer. Assim, ele poderá querer determinar autonoma-

13 2005, p. 188-189.

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2 mente o seu próprio destino (autodeterminação), como, por exemplo: casar-se ou não, ter filhos ou não, definir sua orientação sexual; ou se apartar do mundo externo (autoconservação), por exemplo, pelo caráter confidencial de uma consulta médica e seus documentos, caráter sigiloso de um diário ou correspondência pessoal; ou preferirá, finalmente, escolher a forma como se apresentará ao público (autoexposição), o que se dará pelo exercício de acepções do direito como direito à própria imagem, à própria voz, à honra pessoal (2005, p. 189).

Por sua vez, Suárez Berrío acentua que, no ordenamento jurídi-co colombiano, o alcance atribuído ao direito de livre desenvol-vimento da personalidade é muito parecido com o constatado no ordenamento jurídico alemão, no sentido de que:

A Corte e a doutrina têm entendido que o único sentido genuíno que se pode conferir a esse direito é o de considerar que este consagra uma proteção geral à capacidade que a Constituição reconhece às pessoas de autodeterminar-se, isto é, a atribuir-se as suas próprias normas, desenvolver planos pró-prios de vida, sempre e quando não afetem direitos de terceiros14 (1999, p. 73, tradução nossa).

Importa ressaltar que, a despeito de no ordenamento alemão o direito ao livre desenvolvimento estar precedido de preceito constitucional que consagra o direito à dignidade da pessoa hu-mana, não existem maiores digressões ou estudos apontando a existência de interligações entre estes relevantes preceitos constitucionais, o que, de certa forma, causa estranheza. Isto porque, a despeito de inexistir no ordenamento jurídico brasi-leiro norma constitucional que consagre o direito ao livre desen-volvimento da personalidade, pode-se sustentar existir pontos de aproximação entre o seu conteúdo e o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme se analisará.

14 Segue o original em espanhol: “La Corte y la doctrina han entendido que el único sentido genuíno que se puede conferir a ese derecho es el de considerar que este consagra una protección general a la capacidade que la Constitución reconoce a las personas a autodeterminarse, esto es, a darse a sus propias normas desarrollar planes propios de vida, siempre y cuando no afecten derechos de terceros.”

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23. O conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana

Após um longo período imerso em um regime ditatorial, a pro-mulgação da Constituição da República Federativa do Brasil representou um importante passo para a criação das bases e o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito. O Tex-to Constitucional, promulgado em 1988, foi responsável pela promoção de uma efetiva e importante ruptura com o regime constitucional anterior, sendo, inclusive, reconhecido pelo seu caráter cidadão, especialmente em razão de possuir um extenso rol de direitos e garantias fundamentais.

A dignidade da pessoa humana, a despeito de não ter sido po-sitivada como um direito fundamental, foi elevada pelo Texto Constitucional à essencial condição de fundamento da Repú-blica Federativa do Brasil, sendo considerada, por inúmeros estudiosos e órgãos jurisdicionais, como fundamento, base ou núcleo axiológico de todo o ordenamento jurídico brasileiro, es-pecialmente por reconhecer a pessoa não como meio, mas como fim de toda a ordem jurídica, elemento subjetivo indispensável à existência da sociedade e do próprio Estado.

Nesse sentido é que Kant parte do pressuposto de que o homem não pode ser considerado como um objeto, como um meio para atingir determinadas finalidades. Segundo o autor, o homem deve ser considerado um fim em si mesmo, ao aduzir que:

[…] no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalen-te; mas, quando uma coisa está acima de todo o pre-ço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade... Essa apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de es-pírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade (2006, p. 77).

A despeito de sua relevância para o constitucionalismo brasilei-ro, uma vez que constitui verdadeiro centro gravitacional e fun-

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2 damento axiológico para a existência de todos os direitos funda-mentais consagrados, há que se destacar que uma das questões mais complexas e controvertidas assenta-se justamente na defi-nição do conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana. Isto porque, conforme destaca Barroso, o termo é, sem dúvida, semanticamente vago, impreciso, aberto, fluido, carac-terizando-se por sua ambiguidade, porosidade e polissemia.15

A despeito da imprecisão e polissemia do termo dignidade da pessoa humana, pode-se, na esteira do entendimento de Sarlet, aduzir que a dignidade da pessoa humana é:

a qualidade intrínseca e distintiva de cada pessoa humana que a faz merecedora de mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comuni-dade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe ga-rantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (2002, p. 2).

A inserção da dignidade da pessoa humana no Texto Consti-tucional brasileiro e a sua condição de princípio fundamental do Estado brasileiro vêm desempenhando importância ímpar, principalmente ao promover a repersonalização das relações ju-rídicas, aumentando o lastro protetivo conferido ao indivíduos. Relações jurídicas antes analisadas apenas sob o prisma patrimo-nialista e individualista, influência do Direito Romano sob a le-gislação civil brasileira, passam a ser interpretadas sob um novo enfoque, o da busca pela plena promoção da dignidade humana.

Assim, de forma muito análoga ao que se infere nos ordenamen-tos jurídicos alemão, espanhol, português e colombiano, tem se verificado que, a despeito da inexistência de preceito constitucio-nal assegurando o direito ao livre desenvolvimento da persona-

15 2000, p. 196.

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2lidade, alicerçados no princípio da dignidade da pessoa humana, estudiosos e órgãos jurisdicionais brasileiros têm construído im-portantes entendimentos jurídicos para casos referentes à mu-dança de sexo e alteração de nome, direito ao conhecimento da origem biológica, direito de não se submeter a tratamento mé-dico contra a própria vontade, proteção da vida privada, da ima-gem, honra e intimidade. Isto porque, conforme destaca Moraes:

a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na auto-determinação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mí-nimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcional-mente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem me-nosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (2006, p. 16).

Infere-se, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa hu-mana, similarmente ao direito fundamental ao livre desenvol-vimento da personalidade, reconhece a cada indivíduo a capa-cidade de autodeterminar os aspectos mais relevantes de sua vida, especialmente aqueles que lhe digam respeito em caráter exclusivo, ou seja, que não afetem a interesses de terceiros ou à ordem pública, como instrumento indispensável à garantia do desenvolvimento de sua personalidade e promoção de uma vida digna, que deve ser compreendida a partir da perspectiva individual, enquanto busca por aquilo que melhor lhe promo-va como ser humano. Nos dizeres de Moureira, “reconhecer a autonomia privada no Direito é reconhecer a possibilidade da pessoa humana se construir enquanto pessoa humana” permi-tindo-se “que ela seja o que quiser e assuma as coordenadas da sua pessoalidade, na medida em que liberdades e não liberda-des lhe são legitimamente conferidas e, portanto, aceitáveis”.16

Em termos pragmáticos, a partir de uma detida análise de ma-nifestações doutrinárias e jurisdicionais europeias, colombia-

16 2009, p. 74-75.

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2 nas e brasileiras, constata-se que pouca diferença há entre o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana. Ambos consti-tuem expressões fluidas e imprecisas, o que amplia sobrema-neiramente os seus campos de aplicação na resolução de casos concretos. Assim, procedido o estudo do conteúdo do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade e do princípio da dignidade da pessoa humana, analisar-se-á se seria possível afirmar ser o direito ao livre desenvolvimento da per-sonalidade um direito fundamental tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro, bem como analisar em que medida este di-reito fundamental contribuiria para uma melhor interpretação e resolução de casos envolvendo a proteção da pessoa humana.

4. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana no ordenamento jurídico brasileiro

Um dos pontos centrais e mais relevantes deste trabalho pode ser consubstanciado pelo seguinte questionamento: é possível afirmar ser o direito ao livre desenvolvimento da personalidade um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro? Ou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade seria um direito implícito ao ordenamento jurídico brasileiro, decorrên-cia do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana?

De fato, no ordenamento jurídico brasileiro inexiste preceito constitucional que expressamente preveja o direito ao livre de-senvolvimento da personalidade. Ocorre, todavia, que, a despei-to disso, surgem algumas manifestações incipientes no sentido de ser o direito ao livre desenvolvimento um princípio implícito, que encontraria seu fundamento no conjunto de direitos funda-mentais atribuídos à pessoa humana e, especialmente, o princí-pio da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido se posiciona Ludwig, que se manifesta no sentido de que:

a partir da composição de todas as normas cons-titucionais asseguradoras de direitos e garantias fundamentais, com fulcro comum na dignidade

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2da pessoa humana, que se torna possível compre-ender o direito ao livre desenvolvimento da per-sonalidade como princípio geral do direito bra-sileiro, embora não haja, em nossos textos legais, referência expressa ao mesmo (2002, p. 292).

E completa o autor:O direito ao livre desenvolvimento da personali-dade situa-se entre os princípios fundamentais do Direito brasileiro, tendo especialíssima rele-vância no âmbito jus privado. Tanto é assim que, de acordo com Konrad Hesse, a tarefa central do direito privado atualmente se constitui na defesa do direito da personalidade, entendido tanto em seu aspecto negativo (intimidade) quanto em seu aspecto positivo (autonomia privada): resgataria, desse modo, seu caráter de baluarte da liberdade (2002, p. 292).

Ao se proceder à análise das manifestações jurisdicio-nais proferidas no âmbito dos ordenamentos jurídicos cujos tex-tos constitucionais preveem o direito ao livre desenvolvimento de personalidade, as quais tenham por base argumentativa este direito, verificar-se-á que elas pouco se diferem de manifesta-ções jurisdicionais ocorridas no âmbito do ordenamento jurí-dico brasileiro que tenham como objeto principal de análise a proteção de direito da personalidade. Isto porque, apesar de inexistir preceito específico pre-vendo o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, fato é que, além do princípio da dignidade da pessoa humana, que por si só seria suficiente em razão de sua ampla abertura se-mântica, o ordenamento jurídico brasileiro, de uma forma par-ticular e minuciosa, positiva uma série de direitos fundamentais de natureza personalíssima, tais como intimidade, vida privada, imagem, honra, autonomia e direitos autorais.

Ora, inquestionavelmente, o Texto Constitucional brasileiro, ao positivar esse extenso rol de direitos fundamentais, bem como ao elevar a condição de princípio e objetivo do Estado brasileiro à promoção da dignidade da pessoa humana, cria as bases ne-cessárias a assegurar que a pessoa promova livremente o desen-

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2 volvimento de sua personalidade, seja ao garantir um complexo de direitos da personalidade, seja ao assegurar importantes es-paços privados de liberdade de ação, de forma similar aos orde-namentos jurídicos alemão, espanhol e colombiano.

Apesar dessa conclusão, há que se concordar com o entendimen-to adotado por Ludwig, que, ao analisar a aplicabilidade do direi-to ao livre desenvolvimento da personalidade humana no orde-namento brasileiro, aduz que “a jurisprudência pátria parece não ter descoberto todas as potencialidades desse princípio implícito em nosso ordenamento jurídico, como tampouco o fez em relação ao princípio expresso da dignidade da pessoa humana.”17 Desta-que-se, todavia, que as manifestações jurisdicionais têm evoluído e, gradativamente, têm reconhecido os influxos que as normas constitucionais promovem sobre a legislação infraconstitucional e sobre as relações jurídicas privadas, especialmente no que con-cerne ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, apesar de não estar positivado como direito fundamental pelo ordenamento jurídico brasileiro, é imperioso reconhecer, com o intuito de aumentar o lastro protetivo à pessoa humana, inclusive como forma de promoção e efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade como um princípio implícito do ordenamento, a ser utilizado como um importante vetor interpretativo na reso-lução de conflitos jurídicos, não só no que tange à proteção das questões existenciais referentes à vida privada ou intimidade, mas, inclusive, em sua dimensão de cláusula geral de liberdade, destinada à tutela da liberdade individual e à autonomia privada.

5. Em defesa da aplicabilidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade

Em recente caso que bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça, este órgão jurisdicional foi instigado a se manifestar

17 2002, p. 298.

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2acerca de questão relevante afeta ao direito de livre desenvolvi-mento da personalidade, qual seja, se uma pessoa teria o direito de se recusar a tomar ciência de resultado de exame médico rea-lizado contra a sua vontade.

Um paciente, sob prescrição e orientação médica, solicitou a determinado hospital a realização de uma série de exames la-boratoriais para avaliar seu estado clínico. Ocorre, todavia, que o hospital, além de realizar os exames prescritos, realizou, por equívoco, sem que tenha havido prévia solicitação do paciente, exame anti HIV, que teve resultado positivo.

Inconformado com a conduta adotada pelo hospital, o paciente ingressou com ação judicial mediante a qual pleiteou indeniza-ção por danos materiais e morais, aduzindo, em síntese, ter ha-vido a violação ao seu direito de intimidade, decorrente de uma investigação abusiva de sua vida privada; eis que houve a reali-zação de exame médico contra a sua vontade e sem que tenha havido prescrição médica.

Ao apreciarem o caso, os juízos de primeiro e segundo grau jul-garam improcedentes os pedidos formulados na exordial sob o fundamento de que o ato praticado pelo hospital não configu-rou ato ilícito, uma vez que, apesar de ter havido a realização de exame médico sem autorização do paciente, além do resultado comunicado não ser falso, permitiu ao paciente o conhecimento da doença.

O Superior Tribunal de Justiça, analisando o Recurso Especial interposto pelo paciente, houve por bem confirmar a improce-dência dos pedidos sob o fundamento de que, por não ser o di-reito à intimidade um direito absoluto, como os demais direitos fundamentais, no caso concreto, este sucumbiria ao direito à vida, isto é, a uma vida mais saudável e longeva, razão pela qual o ato praticado não seria ilícito. Conforme a decisão:

I – o direito à intimidade não é absoluto, aliás, como todo e qualquer direito individual. Na verda-de, é de se admitir, excepcionalmente, a tangibili-dade ao direito à intimidade, em hipóteses em que

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2 esta se revele necessária à preservação de um di-reito maior, seja sob o prisma individual, seja sob o enfoque do interesse público. Tal exame, é certo, não prescinde, em hipótese alguma, da adoção do princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio basilar e norteador do Estado Democrá-tico de Direito, e da razoabilidade, como critério axiológico; II – sob o prisma individual, o direito de o indivíduo não saber que é portador do ví-rus HIV (caso se entenda que este seja um direito seu, decorrente da sua intimidade), sucumbe, é suplantado por um direito maior, qual seja, o di-reito à vida, o direito à vida com mais saúde, o di-reito à vida mais longeva e saudável; III – mesmo que o indivíduo não tenha interesse ou não quei-ra ter conhecimento sobre a enfermidade que lhe acomete (seja qual for a razão), a informação correta e sigilosa sobre seu estado de saúde dada pelo hospital ou laboratório, ainda que de forma involuntária, tal como ocorrera na hipótese dos autos, não tem o condão de afrontar sua intimi-dade, na medida em que lhe proporciona a prote-ção a um direito maior; IV – não se afigura permi-tido, tampouco razoável, que o indivíduo, com o desiderato inequívoco de resguardar sua saúde, após recorrer ao seu médico, que lhe determinou a realização de uma série de exames, vir a juízo aduzir justamente que tinha o direito de não sa-ber que é portador de determinada doença, ain-da que o conhecimento desta tenha se dado de forma involuntária. Tal proceder aproxima-se, em muito, da defesa em juízo da própria torpeza, não merecendo, por isso, guarida do Poder Judi-ciário; V – no caso dos autos, o exame efetuado pelo hospital não contém equívoco, o que permi-te concluir que o abalo psíquico suportado pelo ora recorrente não decorre da conduta do hospi-tal, mas sim do fato de o recorrente ser portador do vírus HIV, no que o hospital recorrido, é certo, não possui qualquer responsabilidade; VI – sob o enfoque do interesse público, assinala-se que a opção de o paciente se submeter ou não a um tratamento de combate ao vírus HIV, que, ressal-te-se, somente se tornou possível e, certamente, mais eficaz graças ao conhecimento da doença, dado por ato involuntário do hospital, é de seu exclusivo arbítrio. Entretanto, o comportamen-to destinado a omitir-se sobre o conhecimento da doença, que, em última análise, gera condu-tas igualmente omissivas quanto à prevenção e

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2disseminação do vírus HIV vai de encontro aos anseios sociais; VII – num momento em que o po-der público, por meio de exaustivas campanhas de saúde, incentiva a feitura do exame anti HIV como uma das principais formas de prevenção e controle da disseminação do vírus HIV, tem-se que o comando emanado desta augusta Corte, de repercussão e abrangência nacional, no sentido de que o cidadão teria o direito subjetivo de não saber que é soropositivo, configuraria indevida sobreposição de um direito individual (que, em si, não se sustenta, tal como demonstrado) sobre o interesse público, o que, data maxima venia, não se afigura escorreito; VII – Recurso Especial improvido (STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011).

Segundo fundamentos contidos na decisão, a despeito de o indi-víduo titularizar o direito à intimidade, não seria titular de um “direito subjetivo de não saber que é soropositivo”18, pois se lhe fosse atribuído este direito, tal fato “configuraria indevida so-breposição de um direito individual sobre o interesse público.”19 Isto porque, segundo entendimento que predominou, “o direito à intimidade, ainda que essencial à preservação da dignidade humana, não prepondera, em situações excepcionais, em que o sacrifício deste direito revela-se necessário à preservação de um interesse maior.”20

Mas, afinal, qual seria esse interesse maior indicado pela decisão? Quem melhor do que o próprio indivíduo para definir o que re-presenta o maior ou melhor interesse para a sua vida? Estar-se-ia garantindo a dignidade de alguém, obrigando-o a tomar conhe-cimento de uma doença contra a sua vontade, em prol de um interesse público? O que é afinal uma vida digna? Esses são questionamentos imprescindíveis a permitir uma ade-quada análise e interpretação do caso e, principalmente, evitar

18 STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011.19 STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011.20 STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011.

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2 a generalização e imposição de um conceito de “vida boa”21, as-sentado em juízos axiológicos unilaterais, que desconsideram o pluralismo e a diversidade social.22 Conforme bem define Stan-cioli, ao tecer o conceito de direitos da personalidade:

Os direitos da personalidade são direitos subje-tivos que põem em vigor, através de normas co-gentes, valores constitutivos da pessoa natural e que permitem a vivência de escolhas pessoais (au-tonomia), segundo a orientação do que significa vida boa, para cada pessoa, em um dado contexto histórico-cultural e geográfico (2010, p. 95).

Sá salienta que o ato de “viver é singular, está permeado por sensações inúmeras que, ao longo da história, moldaram a ideia que cada um desenhou para si do que seria uma vida ‘boa’ e ‘digna.”, razão pela qual, por ser “impregnado por experiências, por expectativas, por toda sorte de juízos de valores que não carecem ser inquiridos em face de uma ‘pretensão conceitua co-letiva.”23 E aqui, indispensável colacionar a indagação levantada pelo prolator do voto condutor do acórdão:

Apenas para efeito de reflexão, poder-se-ia cogitar hipótese em que o hospital demandado, por en-gano, procedesse equivocadamente ao exame de HIV e identificasse que o paciente examinado era

21Segundo Stancioli: “Outro ponto decisivo, em especial após o ocaso das teorias jusnaturalistas, foi a percepção de que não é uma fonte moral única, capaz de ser a matriz de valores que conduzam à vida boa. As teorias procedimentalistas de direito, hodiernas, bem representam isso. A opção por afirmar valores válidos para toda a sociedade é substituída pela possibilidade dada aos interlocutores de construírem, pragmaticamente, os valores constitutivos da pessoa humana, em cada contexto” (2010, p. 94).

22 Nesse sentido importa colacionar importante excerto da obra de Habermas, que, ao discursar sobre a necessidade de se proteger a esfera privada de existên-cia de cada indivíduo, permitindo-lhe elaborar seu plano de vida, sustenta que: “a ‘sociedade justa’ deixa a critério de todas as pessoas aquilo que elas querem iniciar como o tempo de suas vidas. Ela garante a todos uma mesma liberdade para desenvolver uma autocompreensão ética, a fim de formar uma concepção pessoal da ‘boa vida’ segundo capacidades e critérios próprios” (2004, p. 5).

23 2009, p. 49-50.

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2soropositivo, tal como ocorrera no caso dos autos. Porém, antes de entregar o resultado ao pacien-te, o hospital, ou o laboratório, verifica que o exa-me solicitado não era o anti HIV, mas sim o anti HCV. Indaga-se qual seria a providência correta do hospital. Evidente que, em tal hipótese, caso o hospital remanescesse inerte, o paciente jamais tomaria conhecimento de seu engano. Mas seria correto, razoável, que o hospital não informasse ao paciente sobre o seu real estado de saúde? (STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011).

Em nome do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, que encontra fundamento no direito fundamental à dignidade humana, não seria juridicamente mais adequado e legítimo que o paciente, em casos semelhantes, seja previamente consultado pelo hospital se gostaria ou não de saber o resultado do exame realizado contra a sua vontade e sua decisão respeitada, haja vista que é ele quem tem o direito de determinar as questões afetas aos aspectos mais íntimos de sua vida privada?24 Conforme aduz Rodotá:

Qual seria, em concreto, a reação do interessado diante de uma notícia deste tipo? O conhecimen-to de uma futura aparição de uma enfermidade incurável fará que sua vida inteira se torne into-lerável? Ou, ao contrário, esse conhecimento lhe permitirá utilizar da melhor maneira possível o tempo que lhe resta e, por exemplo, tomar deci-sões que possam evitar a transmissão da enfer-midade aos descendentes? E, então, há que lhe deixar em uma situação de ignorância ou ao me-nos de incerteza, criando, assim, uma situação de causalidade que poderia ser facilmente elimina-da? Há que envolver-lhe em um véu de ignorância para que sua vida seja mais grata e que determi-nados acontecimentos apareçam como se fosse fruto da fatalidade? E que o conhecimento não se traduz ocasionalmente na redução da liberdade, de modo que se pode concluir que causalidade e

24 Há que se destacar que, pela leitura dos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça, não houve qual-quer prova no sentido de que o hospital teve ciência do erro na realização dos exames ao ponto de lhe ser possível consultar previamente o paciente acerca de sua vontade em conhecer ou não o resultado do exame indevidamente realizado.

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2 liberdade se sustentam reciprocamente e, inclusi-ve, que a limitação de nossa capacidade cognitiva pode converter-se em refúgio de nossa liberdade? Sem embargo, a ignorância deliberada produz também situações de inadmissível irresponsabili-dade? (2010, p.177-178, tradução nossa)25.

Ademais, ilógico e atentatório aos direitos fundamentais à vida privada, à intimidade, ao livre desenvolvimento da personalida-de, sustentar a existência de um interesse público no caso, quan-do se está diante de uma situação restrita à pessoalidade do pa-ciente. Tanto é que a própria decisão em comento, a despeito de admitir ser do livre e exclusivo arbítrio do paciente optar por se submeter ou não ao tratamento de combate do vírus HIV26, não considerou inserido em seu direito de livre desenvolvimento da personalidade a possibilidade de optar por ter ou não ciência do resultado de exame realizado sem o seu consentimento. Cumpre destacar, dada a relevância, que a referida decisão não foi unânime, uma vez que a ministra Nancy Andrigui, em voto ven-cido, apresentou entendimento no sentido de que, por mais que não tenha havido a divulgação do resultado a terceiros, o hospital, ao realizar o exame sem prescrição médica e sem o consentimen-

25 Segue o texto original em espanhol: “Cual sería, en concreto, la reacción del interesado ante una noticia de este tipo? El conocimiento de la futura aparición de una enfermedad incurable hace que su vida entera se vuelva intolerable? O contrario, ese conocimiento le permitirá utilizar de la mejor manera posible el tiempo que le resta y, por ejemplo, tomar decisiones procreativas que puedan evitar la transmisión de la enfermedad a lós descendientes? Y entonces: hay que dejarle en una condición de ignorancia o al menos de incertumbre, creando así una situación de causalidad que podría ser fácilmente eliminada? Hay que envolverle en un velo de ignorancia para que su vida sea más grata y que determinados acontecimientos vayan apareciendo com si fueran fruto de la fatalidad? Es que el conocimiento no se traduce acaso en una reducción de la libertad, de modo que puede concluirse que casualidad y libertad se sostienen recíprocamente e incluso que la limitación de nustras capacidades cognitivas puede convertirse en refúgio de nuestra libertad? Sin embargo, es que la ignorancia deliberada no produce también situaciones de inadmisible irresponsabilidad?”

26 “Veja-se que a opção de o paciente se submeter ou não a um tratamento de combate ao vírus HIV, que, ressalte-se, somente tornou possível e, certamente, mais eficaz graças ao conhecimento da doença, dado por ato involuntário do hospital, é de seu exclusivo arbítrio” (STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011).

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2to do paciente, violou o seu direito à intimidade, mediante uma indevida invasão em sua esfera privada de existência, uma inves-tigação abusiva da vida alheia. Nos termos do seu voto:

Por mais que se possa adotar a presunção de que a constatação da doença pelo recorrido lhe propi-ciou melhores condições de tratamento, esse fato, por si só, não retira a ilicitude de sua conduta – ne-gligente – de realizar exame não autorizado nem pedido em favor do recorrente. Acrescente-se que a intimidade abrange o livre arbítrio das pessoas em querer saber ou não algo afeto unicamente à sua esfera privada. Vale dizer: todos têm direito de esconder suas fraquezas, sobretudo quando não estão preparados para encarar a realidade (STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011).

Em igual sentido, Alfonso Vargas sustenta que:

o direito ao livre desenvolvimento da personali-dade também é conhecido como direito à auto-nomia pessoal. É um direito de caráter genérico e omnicompreensivo cuja finalidade é compre-ender aqueles aspectos da autodeterminação do indivíduo, não garantido por outros direitos, de tal maneira que a pessoa goze de uma proteção constitucional para tomar, sem intromissões nem pressões as decisões que estime importantes para sua própria vida27 (2008, p.131, tradução nossa).

Lima, ao analisar o direito de o indivíduo não se submeter a exames médicos contra a sua vontade, manifesta-se no sentido de que:

a pessoa é livre para ser sujeito de pesquisas para obter diagnósticos pessoais do mesmo modo que é livre para recusar a investigação, se prefere des-conhecer a verdade genética, ou, ainda, a pessoa é livre para ser submetida a exames, mas pode re-nunciar ao direito de ser informada sobre o diag-nóstico e dados genéticos (2007, p. 163).

27 De acordo com o original em espanhol: “El derecho al libre desarrollo de la personalidade también es conocido como derecho a la autonomia personal. Es un derecho de carácter genérico y omni-comprensivo cuya finalidad es compreender aquellos aspectos de la auto-determinación del individuo, no garantizado por otros derechos, de tal manera que la persona goce de una protección constitucional para tomar sin intromisiones ni pressiones las decisiones que estime importantes en su própria vida.”

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2 A Corte Constitucional colombiana, analisando caso em que se discutia o direito de um paciente a não se submeter a tratamento médico contra sua vontade, aplicando ao caso o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, manifes-tou-se no sentindo de ser atentatório à sua capacidade de se autodeterminar e ao seu direito de livre desenvolvimento da personalidade obrigá-lo a se submeter a tratamento contra sua vontade, pois conforme restou assentado “considerar a pessoa como autônoma tem suas consequências invitáveis e inexoráveis, e a primeira e mais importante de todas consiste em que os assuntos que somente a ela atinem, somente por ela devem ser decididos.”28

Conclui a Corte Constitucional que “decidir por ela é arreba-tar-lhe brutalmente sua condição ética, reduzi-la a condição de objeto, coisificá-la, convertê-la em meio para os fins que por fora se escolhem”29. Ressalte-se, ainda, que Suárez Ber-río, analisando a referida decisão judicial, sustenta que “a liberdade tem um caráter intimo e um desenvolvimento in-terior sobre o qual não pode ingerir o ordenamento jurídico de um Estado de Direito que respeite a pessoa humana e re-conheça sua autonomia”30 Segundo o autor, o indivíduo é que deve “procurar as condições mais aptas para sua realização como pessoa”.31

28 De acordo com o original em espanhol: “considerar a la persona como autónoma tiene sus consecuencias inevitables y inexorables, y la primera y más importante de todas consiste en que los assuntos que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos” (COLOMBIA, n. C-309, 1997).

29 De acordo com o original em espanhol: “decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condición ética, reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertila en médio para los fines que por fuera de ela se eligen” (COLOMBIA, n. C-309, 1997).

30 De acordo com o original em espanhol: “la libertad tiene um carácter íntimo y un desarrollo interior sobre el cual no puede ingerir el ordenamento jurídico de un Estado de Derecho que sea respetuoso de la persona humana e reconoza su autonomia” (1999, p. 73).

31 De acordo com o original em espanhol: “procurar las condiciones más aptas para su realización como persona” (1999, p. 73).

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2Destaca-se, aqui, importante excerto extraído da obra de Rodotá, que sustenta que o direito de não informação, isto é, de não sa-ber, integra a esfera privada da existência humana, compondo o conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

O direito de não saber está diretamente relacio-nado com as modalidades de construção da esfera privada. Assim, (...) adquire especial relevância a decisão do interessado não somente de não se submeter a nenhuma espécie de teste, mas, inclu-sive, de não ser informado de seus resultados, nos casos em que eles existirem. Um direito que é ex-plicitamente reconhecido pelo Convênio Europeu sobre Direitos Humanos e Biomedicina que, em seu art. 10.2, põe em um mesmo plano o direito de saber e o direito de não saber; “toda pessoa terá o direito de conhecer toda a informação ob-tida a respeito de sua saúde. Não obstante, deverá respeitar-se a vontade da pessoa de não ser infor-mada” (2010, p.177, tradução nossa).32

Aqui não se pode olvidar da necessidade de se assegurar espaços para o livre exercício da autonomia e liberdade, pois a irrestrita e incondicionada intervenção judicial, mediante decisões de cunho paternalista, em searas que deveriam estar restritas a autode-terminação individual, acarretará situações jurídicas absurdas e insuportáveis, inclusive com o risco de se promover uma verda-deira planificação do agir humano.33 Essa controvérsia e a rele-

32 Segue a versão no original em espanhol: “El derecho a no saber está directamente relacionado con las modalidades de construcción de la esfera privada. Así (...) adquiere especial relevancia la decisión del interessado no solo de no someterse a ninguna clase de test, sino incluso de no ser informado de sus resultados, en caso de que los hubiere, Un derecho, este, explicitamente reconocido por El Convenio europeo sobre derechos humanos y biomedicina que, en su artículo 10.2, pone en un mismo plano el derecho a saber y el derecho a no saber: “toda persona tendrá derechos a conocer toda información obtenida respecto a su salud. No obstante, deberá respetarse la voluntad de una persona de no ser informada.”

33 Nesse sentido preleciona Mc Crorie: “É duvidoso que o direito privado, no qual os indivíduos atuam uns com os outros livre e arbitrariamente, seja espaço jurídico para se impor uma moral oficial” (2005, p. 45).

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2 vância da questão estão claramente representadas nas palavras de Bilbao Ubillos, segundo o qual:

Nem mesmo aqueles que advogam pela máxima eficácia dos preceitos constitucionais negam que essas áreas de imunidade ou autonomia existem. Ao fim e ao cabo, a abolição dessa es-fera privada é um dos sinais de identificação do totalitarismo. A existência dessas válvulas de escape, desses espaços de vida privada nos quais alguém atua sem ter que dar explicações, marca a diferença entre uma sociedade livre e uma sociedade ocupada pelo Estado (2007, p. 394, tradução nossa).

Cumpre, todavia, retonar à análise dos fundamentos adotados no acórdão em comento, para que seja possível refletir sobre outros questionamentos polêmicos que podem deles advir. Conforme anteriormente destacado, nos termos do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, “sob o prisma in-dividual, o direito de o indivíduo não saber que é portador do vírus HIV (caso se entenda que este seja um direito seu, de-corrente da sua intimidade), sucumbe, é suplantado por um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável.”34 Assim, de acordo com o raciocínio hermenêutico adotado, diante do conflito entre o direito de não ser informado sobre questões que atinem à sua saúde, que integra o conteúdo do direito ao li-vre desenvolvimento da personalidade, e o direito à vida, deve aquele sucumbir a este, com o desiderato de garantir uma vida com mais saúde ao paciente.

Diante desse raciocínio hermenêutico e da premissa adotada pelo Superior Tribunal de Justiça de que a garantia ao indi-víduo do direito de não tomar ciência de que é soropositivo representaria a sobreposição de um direito individual sobre um interesse público, razão pela qual não deve ser admiti-

34 STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011.

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2do”35, cumpre questionar: seria juridicamente possível que um cônjuge, um companheiro ou mesmo um indivíduo qualquer compila judicialmente a outro a realizar exames patológicos, com o objetivo de resguardar a sua saúde ou vida? O indivíduo teria o direito de obrigar outrem a se submeter ao exame de HIV como forma de prevenir e combater eventual contágio? Existe alguma obrigação jurídica que impõe ao paciente o dever de se submeter ao exame? As hipóteses ora formuladas podem parecer absurdas, frutos da ficção jurídica, porém a realidade nos demonstra como a riqueza da vida em sociedade e os problemas humanos exigem, cada vez mais, respostas dos órgãos jurisdicionais.

Recentemente foi submetido à apreciação dos órgãos jurisdi-cionais um caso que bem ilustra os questionamentos ora apre-sentados. Trata-se de pleito indenizatório por danos morais deduzido por M.A.A.D., um homossexual, em desfavor de C.R.F., seu dentista, em razão de ele ter sido submetido a situação hu-milhante e constrangedora, qual seja, ter sido publicamente exigido pelo dentista responsável pelo seu tratamento dentá-rio a realizar exames de HIV e hepatite para comprovar não ser portador das referidas enfermidades. De acordo com os fatos narrados, em uma consulta dentária, ao manusear um de seus equipamentos, o dentista teve contato direto com o sangue de seu paciente, o que lhe causou sério temor de contágio, pois, se-gundo seu entendimento, este, por ser homossexual, integraria o que se pode denominar “grupo de risco”. Em razão do aconte-cido, desesperado, com o objetivo de adotar as medidas neces-sárias para evitar o contágio e realizar o tratamento adequado, o dentista compareceu ao ambiente de trabalho de M.A.A.D. e, publicamente, exigiu que este o acompanhasse a um laboratório

35 De acordo com o excerto do voto vencedor; “Num momento em que o poder público, por meio de exaustivas campanhas de saúde, incentiva a feitura do exame anti HIV como uma das principais formas de prevenção e controle da disseminação do vírus HIV, tem-se que o comando emanado desta augusta Corte, de repercussão e abrangência nacional, no sentido de que o cidadão teria o direito subjetivo de não saber que é soropositivo, configuraria indevida sobreposição de um direito individual (que, em si, não se sustenta, tal como demonstrado) sobre o interesse público, o que, data maxima venia, não se afigura escorreito” (STJ, Resp. 1.195.995; DJE 6/4/2011).

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2 de análises clínicas para realizar os exames de HIV e hepatite, o qual, diante das circunstâncias, recusou-se a fazê-lo.

Sem adentrar especificamente nas discussões relativas ao direito de reparação pelos danos morais decorrentes do constrangimento público a que foi submetido o autor da ação, seja por não consti-tuir objeto precípuo deste trabalho, seja pelo fato de estarem es-tritamente relacionadas à conduta abusiva praticada pelo dentista, cumpre analisar a questão sob a seguinte perspectiva: poderia o dentista, com o intuito de proteger seu direito à vida e à sua saúde, propor uma ação judicial em desfavor de seu cliente para compeli- -lo a realizar os exames de HIV e hepatite?36 Ora, se se adotar o ra-ciocínio hermenêutico utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça no caso anteriormente analisado, segundo o qual o interesse pú-blico, compreendido como a proteção de uma vida saudável, deve prevalecer sob o direito individual de não ter a sua intimidade vio-lada, de não ser submetido a intervenção médica contra a sua von-tade, a resposta seria no sentido de que, para proteger sua vida e saúde e a de eventuais indivíduos que se relacionem com o cliente, poderia este ser compelido a realizar o exame de HIV e hepatite.37

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao apre-ciar o caso em questão, em decisão não unânime, houve por bem reconhecer o direito de indenização à M.A.A.D., sob o fun-damento de que C.R.F., ao exigir publicamente que seu cliente se submetesse a exame clínico de HIV e hepatite, violou a sua integridade moral, tendo agido com abuso de direito. Conforme a ementa do acórdão prolatado:

Tendo em vista a ocorrência de acidente profissio-nal em intervenção odontológica, causando lesão

36 Destaque-se que, neste caso, as discussões acerca de indenização por dano moral perderiam sentido, especialmente se o processo tramitasse em segredo de justiça, como forma de proteger a intimidade, vida privada e integridade moral do requerido.

37 Não se pode olvidar que, naquele caso em concreto, estava-se diante do con-flito de direitos fundamentais titularizados por uma mesma pessoa, diferente-mente do caso ora em comento, em que há o conflito entre o direito à vida de um indivíduo e à intimidade e vida privada de outrem.

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2no dentista e contato com o sangue do paciente presente no aparelho utilizado no procedimento, é lícito ao profissional, até por recomendação mé-dica, exigir do paciente a pronta realização de exa-mes laboratoriais para verificação da existência de eventuais doenças infectocontagiosas, viabilizan-do, inclusive, com o procedimento adequado, evitar o contágio. Contudo, ao abusar o réu do direito a ele reconhecido, adentrando no estabelecimento pro-fissional do autor e acusando-lhe em frente a seus clientes de pertencer a grupo de risco, em razão de suas opções sexuais, resta configurado o abuso de direito, afastando o excludente do exercício regular de um direito, implicando ilícito objetivo passível de indenização, nos termos do art. 187 do CC/02. Verificada a violação a direito da personalidade do autor, concernente à sua honra subjetiva e objetiva, cabível a condenação do demandado ao pagamento de indenização por danos morais (TJRS, Apelação Cível n. 70028064632; DJE 11/9/2009).

Cumpre obtemperar que, ao fundamentar que o direito de in-denização estaria assentado em abuso de direito praticado pelo dentista, o órgão jurisdicional sustentou que este teria o direi-to de compelir que o paciente se submetesse a exames labora-toriais, como forma de preservar sua vida e saúde, evitando o contágio. É o que se infere da leitura e análise do excerto dos votos vencedor e vencido. De acordo com o voto proferido pela desembargadora Liege Puricelli Pires:

Com efeito, não há dúvidas que ao réu é reconhe-cido o direito de buscar junto ao autor a realização dos exames laboratoriais necessários à verifica-ção de eventuais vírus transmissíveis pelo conta-to sanguíneo, tais como o HIV e a o da hepatite B, referidos inclusive pelo autor. Tal atitude, em tese, configura hipótese de exercício regular de direito, o qual exclui a responsabilidade civil de quem o exerce (TJRS, Apelação Cível n. 70028064632; DJE 11/9/2009).

Em idêntico sentido é o voto vencido proferido pelo desembar-gador Artur Arnildo Ludwig, para o qual:

A preocupação e ansiedade do demandado está plenamente justificada diante da gravidade da si-

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2 tuação que se encontrava, deparado com a possibi-lidade de adquirir doença infectocontagiosa grave. Havia necessidade de o réu obter certeza quanto à saúde do autor, para que tomasse as providências cabíveis, passando a consumir um coquetel de me-dicamentos. Entendo que a solicitação dos exames estava plenamente justificada. Na hipótese, não hou-ve violação à honra do autor. O requerido agiu em verdadeiro exercício do seu direito à vida, protegido constitucionalmente e amparado pelo art. 188, I, do Código Civil, que não considera ilícito o ato pratica-do no exercício regular de um direito. Não gravitam na órbita do dano moral aquelas situações que, não obstante desagradáveis, são necessárias ao exer-cício regular de direito reconhecido. (...) Diante do exposto, reconheço que o requerido estava no exercício do seu direito de preservar o seu direito à vida e saúde. Não houve ato reprovável capaz de ensejar responsabilidade civil (TJRS, Apelação Cí-vel n. 70028064632; DJE 11/9/2009).

Infere-se, portanto, que, no entender do órgão jurisdicional, desde que hajam fundadas razões, poderia um indivíduo com-pelir juridicamente a outro a se submeter a exames contra a sua vontade, desde que não haja abuso de direito e que tal preten-são seja destinada a salvaguardar os seus direitos fundamentais ou o interesse público, neste caso, por exemplo, quando verifi-cada a ocorrência de epidemias ou pandemias.

Idênticos questionamentos podem ser aventados no que diz res-peito à possibilidade de investigação genética compulsória com o desiderato de fornecer os elementos necessários para a medicina preventiva, possibilitando a realização de diagnósticos precoces de enfermidades de manifestação tardia. Poderia um familiar compe-lir um ascendente a se submeter a exames genéticos para detecção de enfermidades de manifestação tardia? Um filho, por exemplo, poderia compelir os seus pais biológicos a se submeterem a exa-mes com o intuito de salvaguardar uma vida saudável no futuro?

Não se pode olvidar, quando da análise desses questionamentos, que, identicamente ao direito à vida ou saúde, a intimidade e a vida privada são direitos fundamentais protegidos pelo ordena-

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2mento jurídico brasileiro, positivados no art. 5º, X, da Constitui-ção da República, direitos fundamentais que, inclusive, são nor-matizados pelo Código Civil, que, em seus arts. 15 e 21, é expresso e inequívoco ao tutelar a autonomia privada de cada indivíduo, inclusive permitindo-lhe optar por não se submeter a exames, tratamentos ou intervenções médicas contra a sua vontade, bem como ao garantir a inviolabilidade da vida privada.38 Acrescente--se a todo esse conjunto normativo o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao livre desenvolvimento da persona-lidade, que é um princípio implícito no ordenamento jurídico, que se encontra assentado na dignidade da pessoa humana.

Este trabalho não pretende apresentar respostas definitivas para tão difíceis e instigantes problemas atinentes à existência humana, mas, todavia, tem a pretensão de contribuir com o de-bate e para a construção de soluções que sejam hábeis e aptas a conciliar a proteção dos direitos fundamentais em conflito, especialmente a partir do reconhecimento da necessidade de proteção do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Em casos similares ao analisado, não pode o intérprete se olvi-dar da necessidade de reconhecer que determinadas decisões estão reservadas à esfera privada do existir humano39, razão pela qual não podem desconsiderar a capacidade de autode-terminação atribuída a cada indivíduo, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao princípio implí-cito do livre desenvolvimento da personalidade.

38 Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

39 Em igual sentido é o entendimento de Pargendler e Martins-Costa, para quem “A autonomia privada liga-se ao reconhecimento da existência de um âmbito particular de atuação do sujeito, com eficácia normativa. É manifestação da sub-jetividade, decorrendo da autodeterminação dos homens, princípio da Moderni-dade que reconhece liberdade individual e a autonomia do agir, segundo Hegel.” E também (AMARAL NETO, 1999, p. 26).

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2 Obviamente que não se está a defender uma absolutização da autonomia privada e do direito de livre desenvolvimento da per-sonalidade, até mesmo porque, conforme aduzido, estes pode-rão sofrer limitações em sua eficácia em face das peculiaridades do caso concreto, em especial de outros direitos fundamentais e preceitos de ordem pública.

6. Considerações finais

O objetivo do artigo não foi esgotar toda a análise do direito fun-damental ao livre desenvolvimento da personalidade, mas sim, a partir do reconhecimento de sua importância e atualidade, proceder ao estudo do direito comparado, com o desiderato de contribuir para o desenvolvimento da dogmática, fornecendo questionamentos e apontamentos que possam ser úteis para a delimitação do conteúdo do direito fundamental ao livre desen-volvimento da personalidade humana, bem como, com base em um estudo comparativo, apontar as semelhanças e diferenças entre o direito fundamental e o direito fundamental à dignidade da pessoa humana.

Foi possível inferir que, nos ordenamentos jurídicos em que há a garantia do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, tanto a doutrina quanto os órgãos jurisdicionais têm atribuído relevante função ao direito fundamental, reco-nhecendo-lhe uma dupla dimensão, quais sejam, a primeira, de “cláusula geral ou direito geral de personalidade”, destina-da a proteger questões atinentes à sua pessoalidade, tais como nome, sexo, identidade, imagem, intimidade, vida privada, hon-ra, direito ao próprio corpo, informações pessoais e, a segunda, de “cláusula geral de liberdade”, destinada a tutelar o indivíduo em sua liberdade de agir de se autodeterminar em aspectos como liberdade de crença e religião, liberdade de profissão, li-berdade contratual.

O estudo realizado também permitiu concluir que, a despeito de não estar positivado como direito fundamental pelo ordena-mento jurídico brasileiro, é imperioso reconhecer, com o intuito

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2de aumentar o lastro protetivo à pessoa humana, inclusive como forma de promoção e efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, o direito ao livre desenvolvimento da persona-lidade como um princípio implícito do ordenamento, a ser utili-zado como um importante vetor interpretativo na resolução de conflitos jurídicos, não só no que tange à proteção das questões existenciais atinentes à vida privada ou intimidade, mas, inclusi-ve, em sua dimensão de cláusula geral de liberdade, destinada a tutelar da liberdade individual e da autonomia privada.

Com base na definição do conteúdo do direito ao livre desen-volvimento da personalidade e de uma análise comparativa com o princípio da dignidade da pessoa humana, conclui-se ser possível sustentar que o intérprete não pode se olvidar da necessidade de reconhecer que determinadas decisões, por estarem umbilicalmente afetas à esfera privada do existir hu-mano, só ao indivíduo interessam e dizem respeito, razão pela qual deve ser respeitada a sua capacidade de autodetermina-ção. Isto porque, não se pode esquecer da necessidade de se assegurar espaços para o livre exercício da autonomia e liber-dade, pois a irrestrita e incondicionada intervenção judicial em searas que deveriam estar restritas à autodeterminação individual acarretará situações jurídicas absurdas e insupor-táveis, inclusive com o risco de se promover uma verdadeira planificação do agir humano, eliminando os espaços privados do agir livre e democrático.

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