caricatura política: arte revolucionária? · (nogueira, 1984: 56-57) tendo chegado ao país em...
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Caricatura política: arte revolucionária?
ALINE DELL’ORTO CARVALHO ROMON
A caricatura do século XIX é muito frequentemente entendida como essencialmente
contrária ao poder instituído, trabalhando pela contestação para a sua deposição. Quando é
encontrada na sua forma social, diz-se quase sempre que ela é fruto da censura política ou da
mediocridade e covardia do artista. Esse tipo de julgamento é tributário da tradição caricatural
francesa, que encontra seu principal representante no republicano Honoré Daumier e que
conheceu numerosos casos de processo e prisão. O contexto brasileiro aponta, no entanto,
algumas especificidades que convém levar em conta no que se refere à relação entre
caricatura e poder. É justamente por ser uma parte essencial da cultura política brasileira que
o seu caráter essencialmente contestador pode ser questionado. Nós propomos um olhar sobre
a caricatura como uma forma satírica ilustrada de saber, pois ela refletiu e levou à reflexão a
respeito dos principais debates do século XIX e tanto envolveu quanto encantou nossos
maiores intelectuais.
Apesar da caricatura brasileira ser fruto da celebridade que conheceu a caricatura
francesa no século XIX ocidental, há diferenças entre as duas que, para além das semelhanças
de traço, de formato, e de algumas claras imitações, merecem ser sublinhadas. Os artistas da
geração de Daumier são quase todos de origem social média ou baixa, raramente provenientes
das elites e, o principal, assim permaneciam. A ascensão à esfera da grande arte mostrava-se
difícil ou quase impossível para esses homens que, além de suas raízes pouco prestigiosas,
não exerciam uma profissão valorizada. Litógrafos, caricaturistas e jornalistas, combinação
desastrosa. O próprio Daumier só pôde ter seu talento reconhecido por seus contemporâneos
quando resolveu, no fim da carreira, tornar-se pintor. Ele começou a desenhar num momento
conturbado politicamente, quando a França se debatia entre legitimistas, liberais, republicanos
e as paixões políticas favoreciam o florescimento de uma caricatura política engajada. Por
conta disso, viu sua obra ser retomada e revalorizada pelo partido republicano na década de
80 com o intuito de fabricar um cânon próprio. (MELOT, 2008: 88)
Esta intervenção é inserida no quadro da tese de doutorado em História Les réseaux de la caricature à Rio de
Janeiro, 1844-1898, realizada em co-tutela entre a École des Hautes Études en Sciences Sociales e a PUC-Rio
com financiamento do Pres héSam.
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No Brasil, a situação foi outra, pois a experiência vivida por nossos caricaturistas levou
a caminhos diferentes. Manoel de Araújo Porto-Alegre, fundador da primeira publicação
satírica periódica do país, ganhou Paris em 1831, onde permaneceu até 1837. Aí foi
testemunha da agitação dos primeiros anos da Caricature e do Charivari, ambas publicações
de grande sucesso e muito perseguidas, e assistiu à instauração da censura prévia em 1835.
Sua viagem só foi possível no quadro de uma prática de financiamento de estudos no exterior
para os melhores alunos da Academia Imperial de Belas Artes. É interessante pensar que,
enviado à Europa para estudar as tendências artísticas, Porto-Alegre tenha portado sua
atenção à caricatura, que no Velho Mundo não possuía grande prestígio junto às instituições
oficiais, a imprensa sendo o depósito de talentos excedentes do mundo da arte.
A viagem à Europa era imprescindível à familiarização com a imagem satírica de
imprensa, que compreendia ainda as técnicas de impressão litográfica e xilográfica, já que seu
caráter de verdadeira experiência urbana era intransmissível. Flanar pelas ruas de Paris ou
Londres e tomar conhecimento das vitrines repletas de imagens, ouvir os comentários dos
passantes, ver a euforia causada pelos processos que sofriam os caricaturistas, eram
experiências que se precisava VIVER. Esse tipo de viagem não era no entanto dado a todos;
Araújo Porto-Alegre foi financiado pelo governo imperial como bolsa de excelência,
marcando de certa forma seu ingresso na “Boa Sociedade” através da sua arte. (MATTOS,
2004: 150) Portanto, é a sua posição de destaque na elite imperial brasileira que lhe permite
ter acesso a essa experiência moderna e se apropriar dela.
Porto-Alegre, de retorno ao Brasil, não tardou a publicar seus primeiros desenhos
satíricos avulsos, como A Campainha e o cujo, do mesmo ano de seu retorno. No entanto, é
apenas em 1844 que ele engendra a sua Lanterna Mágica, apropriando-se dos Cent et un
Robert Macaire, de Honoré Daumier e Charles Philippon. Ela foi uma publicação de 23
números onde o objetivo comercial foi desprezado pelo autor, excluído dos objetivos desta
nobre cruzada apresentada como uma obra clássica que tem por única motivação um
patriotismo GIGANTESCO. Tal recusa é um dos traços característicos do movimento
romântico: ao mesmo tempo em que se viram confrontados à necessidade de integrar-se ao
tão desprezado mercado em consequência do excedente de artistas produzidos por essa
geração, eles aderiram à visão de mundo romântica tão enraizada na época e que no Brasil,
estimulada pelo governo imperial, expressou-se muito fortemente pelo patriotismo nacional.
Araújo Porto-Alegre inaugura aquilo que nós gostaríamos de chamar de primeira onda
da caricatura brasileira, momento em que ela é uma das formas de expressão daqueles que são
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socialmente reconhecidos como artistas e se desenvolve sob a tutela do Estado Imperial,
servindo à sua ideologia nacional. O nacionalismo, para se consolidar, depende da aderência
dos sujeitos nacionais (THIESSE, 1999: ) e a caricatura tanto aderiu quanto contribuiu para a
aderência dos demais participantes da cultura política brasileira.
Port-Alegre contribuiu ainda de forma indireta ao fortalecimento dos laços entre
caricatura e poder. Os artistas que se dedicaram em algum momento a esse ramo das artes
mostram-se particularmente sensíveis à convivência entre ideal nacional e dependência do
mercado. Porto-Alegre tendo evoluído profissionalmente dentro do aparelho imperial e
chegado à direção da Academia de Belas Artes, propôs uma reforma do ensino com o
argumento de que a indústria brasileira sofreu com a exclusão dos artífices e artesãos do
mundo da arte, fazendo com que aos nossos produtos faltasse estilo, estética e gosto.
(FERRARI, 2008: s.p.) O seu objetivo é fornecer conhecimentos artísticos aos artesãos
permitindo a valorização de ambas junto à sociedade pondo em evidência sua importância
patriótica. Além de defender a utilidade dos artistas, ele aproxima sua atividade daquela dos
artesãos, visão pouco difundida entre os Românticos. Tal reforma responde às necessidades
do Império de aprimorar tanto a sua rede de ensino em geral quanto a qualidade de seus
artesãos (SQUEFF, 2000: 104) e de escoar o excedente de artistas formados pela AIBA.
O revés da realidade francesa se produz no Brasil: ao invés de esforçar-se para entrar no
mundo da arte, a caricatura brasileira emana dele, sendo grandes pintores que empunham o
lápis litográfico e que desejam fazer transbordar o seu senso de estética e o seu engajamento
nacionalista para o mundo da técnica e da indústria, ao qual pertence parcialmente a produção
satírica periódica. A imprensa é confundida com os produtos brasileiros expostos nas
Exposições Universais de 1873 (O IMPÉRIO DO BRASIL..., 1873: 323) e de 1876 (O
IMPÉRIO DO BRASIL..., 1876: 233), o que demonstra o quanto a imprensa e o seu humor
gráfico eram meios de comunicação característicos da modernidade e indispensáveis a um
país que almejava entrar no hall das nações civilizadas. Aqui, caricatura e poder tecem uma
relação ambígua e traçam caminhos que se aproximam ou se afastam.
Araújo Porto-Alegre perderia quinze anos depois o posto de mais brilhante caricaturista
com o desembarque em terras brasileiras do alemão Henrique Fleiuss, portanto saído de um
país em processo de unificação. Em companhia do seu irmão Carlos Fleiuss e do seu
companheiro de viagem Carlos Linde, ele funda o Instituto Artístico, responsável pela
publicação de litografias, xilografias, aquarelas, pinturas e fotografias. Os três artistas-
empresários entraram rapidamente na lógica de cooptação que regia então o mundo cultural
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brasileiro. (NOGUEIRA, 1984: 56-57) Tendo chegado ao país em 1858 com uma carta de
recomendação da parte de Karl von Martius endereçada diretamente ao Imperador, eles fazem
uma demanda, quatro anos depois, do título de imperial para o seu Instituto Artístico. O
requerimento foi feito dois meses após a fundação de uma escola de xilografia no seio dessa
casa, onde jovens seriam formados na arte de gravar em madeira, muito pouco difundida entre
os brasileiros. Ela certamente contribuiu para a resposta positiva que eles obtiveram em
outubro daquele mesmo ano.
Como não pertenciam à Academia de Belas Artes, não tinham título de nobreza ou
família tradicional, Fleiuss e seus sócios investiram-se muito para alcançar um lugar nas
periferias do poder, adquirir algum prestígio para si e, consequentemente, para os seus
negócios. O título de Imperial foi certamente um passo importante, assim como a publicação
de numerosos trabalhos supostamente movidos pelo amor de uma nação que não era a sua.
Produziram, além disso, retratos para presentear personagens importantes da vida da Corte,
como Gonçalves Dias e a própria família real. Os seus esforços frutificaram: como
recompensa pela sua “gentileza” Gonçalves Dias viu-se obrigado a colaborar com a Semana,
os membros da comissão da Exposição Nacional apoiaram junto ao Imperador a iniciativa de
Fleiuss de produzir um álbum comemorativo, ele casa-se em 1867 com a filha de um
conhecido médico e comendador e tem como testemunhas das bodas os políticos de primeira
grandeza Affonso Celso, Manuel Dantas, o Marquês de Paranaguá e Sá e Albuquerque.
(FLEIUSS, 1941: ?)
Não apenas nos aspectos sociais esses personagens estavam imersos na lógica imperial,
mas também de um ponto de vista ideológico, adotando o Romantismo como visão de mundo.
Num primeiro momento, o patriotismo prevalece e se mostra como a justificativa perfeita para
a produção de tais imagens, sejam elas de conteúdo político ou moral, como eu havia
apontado para o caso da Lanterna Mágica. Em meio a tantos serviços que o Instituto Artístico
reivindica ter prestado à pátria, encontra-se a Semana Illustrada, jornal satírico ilustrado
lançado em 1860 e o primeiro a ter uma vida perene e uma difusão relativamente ampla. A
publicação apareceu até 1876 em formato in-quarto e chegou, segundo fontes parcialmente
seguras, à tiragem de 5.000 exemplares, número bastante elevado para uma folha cujo público
era restrito principalmente em função do seu custo e levando-se em conta que a compreensão
desse tipo de humor dependia do conhecimento prévio da atualidade, logo da leitura de folhas
cotidianas ditas “sérias”.
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Eu pretendo evitar a análise anacrônica que põe em cheque a qualidade da revista em
função da ausência de engajamento com as causas que ocupariam a cena política a partir dos
anos 1860; e pretendo também evitar cair no seu oposto, qual seja, reconhecer a sua
importância exclusivamente no que diz respeito à “sátira geral dos cidadãos”. Eu gostaria de
argumentar, pelo contrário, que nesse primeiro momento de seu desenvolvimento na imprensa
brasileira, a caricatura inseriu-se no espaço de experiências e compartilhou a cultura política
dos seus contemporâneos, à maneira do seu tempo. Olhemos para a primeira imagem
publicada pela Semana Illustrada. [Imagem 1]
De maneira geral, o primeiro número apresenta ao público a revista e suas intenções,
suas filiações, seus engajamentos, visando a atrair um público leitor e, sobretudo, assinante. A
Semana Illustrada apresenta na sua edição inaugural o seu personagem-tipo, o Dr. Semana,
que está “começando a sua viagem pela América meridional”. Situado por Laura Nery na
linhagem dos gobbi do francês Jacques Callot, esse personagem é, como seu inventor,
estrangeiro a essa América que ele pretende observar satiricamente, o que fornece
legitimidade às suas críticas.
Ele se desloca com um carro puxado por seres mágicos e atrás dele uma fada carrega
um estandarte onde se lê a inscrição latina sol lucet omnibus cuja tradução poderia ser “o sol
brilha para todos”. O alto da imagem ilustra uma parte das tradições às quais Fleiuss se
remete: classicismo, cultura popular germânica e Iluminismo. É também através da metáfora
da luz que o programa da revista anuncia as suas intenções: “[...] usaremos por lanterna de
nossa boa vontade, procuraremos o homem fraco, caprichoso, reacionário, seu esconderijo
mais fundo, por entre o ouropel de suas grandezas”. O riso é uma linguagem que contém a
universalidade e a inteligência: “Faz como Martial: ri porque sabe, porque conhece nossos
senões”. Ele é uma consequência honrosa do conhecimento e conota ilustração.
Mas o mundo que o Dr. Semana observa não é mais aquele da Europa clássica ou do
Renascimento, nem sequer do Iluminismo, mas da moderna América do Sul. Com os
instrumentos de ótica forjados pela cultura europeia (a lanterna mágica, o binóculo, a
lanterna), o Dr. Semana deseja vigiar e punir essa população americana, assim como Fleiuss
fará com um outro instrumento europeu: a caricatura. Para entender melhor, mergulhemos
nesse mapa que ele como que sobrevoa.
Duas realidades opostas se completam: as cidades da costa, vistas como mais
desenvolvidas econômica e culturalmente, as vitrines do Império, são nomeadas e interligadas
por esse símbolo de progresso que é o trilho do trem; o interior, em oposição, é dominado por
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uma floresta virgem povoada por índios, um espaço onde a identidade americana sobrepõe-se
à brasileira pelo apagamento das fronteiras. O desenvolvimento do país, a redução das
distâncias que Porto-Alegre já em 1854 atribuía ao vapor são representados também pela
chegada de um paquete da Europa em direção ao porto do Rio de Janeiro. Esses paquetes
traziam mercadorias de qualidade, pessoas qualificadas, correspondências com novidades
vindas de fora, a imprensa recheada de modernidades, modelos a se seguir. Paralelamente, o
interior do país foi um elemento central da construção do Brasil. A filosofia imperial
assentou-se sobre uma expansão para dentro que permitia o aumento do número de súditos
brasileiros e a definição das fronteiras nacionais. A direção do carro de Fleiuss e do carro do
Brasil, metáfora corrente ao longo do século, é da costa para o interior.
A ausência de fronteiras internas aponta ainda para um outro elemento importante da
construção da nação brasileira: a centralização do poder na cidade do Rio de Janeiro,
“cabeça” do Brasil desde a chegada da família real em 1808. Ela era não apenas a residência
do Imperador, mas o local de onde irradiava todo o seu poder e toda a distribuição de favores
e privilégios de que mais tarde o próprio Instituto Artístico beneficiaria. (MATTOS, 2010)
Ainda que o pano de fundo dessa história seja natural, “selvagem”, o Rio de Janeiro, a capital,
deveria apresentar aspectos tanto clássicos, como as Belas Artes, a religião, quanto modernos,
como os valores europeus da civilização e do progresso e as novas tecnologias. Henrique
Fleiuss reforça sua adesão a essa cultura romântica, compartilhada especialmente pela
literatura, quando elege o indígena para representar o Brasil nos seus desenhos. E não é
qualquer índio: ele é civilizado, como os nas suas representações romanceadas. Esse caráter
heroico do índio a que os brasileiros já estavam tão afeitos é transposto do personagem para a
nação brasileira, apesar de variarem os “brasileiros” que estão incluídos nessa personificação
de acordo com o tom do desenho.
Ceder à cooptação não significa necessariamente conformar-se com tudo e o princípio
de uma publicação satírica é justamente a sátira, a crítica, ainda que não seja revolucionária.
Ao longo dos anos, Fleiuss observou o Rio de Janeiro sob seus aspectos políticos, sociais,
morais, sublinhando os seus defeitos, seus problemas, seus desvios. No número 10 do ano de
1860, um texto da série “Excursão” reproduz um diálogo fictício: “- E além aquele que ri tão
sardonicamente, quem é? – Não é ninguém: é a Semana Illustrada, homem incrédulo, que nos
averba de imprevidentes. Ele não crê em tantas dedicações desinteressadas pelo bem público.
Estudou os homens; pesou na balança social suas ambições e obrigações... por isso: descrê e
ri. Ri do candidato à municipalidade, que tem a mira na política. Ri do Vereador que não cura
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dos interesses de seus munícipes. Ri dos fiscais. Ri de muitos sistemas de obras; ri da falta de
cuidado em sua conservação. Ri de tanta coisa! E nós todos rimos com ele.” Como indica o
diálogo, os assuntos políticos, as eleições, o descaso dos representantes da nação, as disputas
partidárias não ficam de fora das temáticas tratadas pela revista. A posição manifestamente
neutra que reivindicam os colaboradores da revista faz todo sentido se pensarmos que a
posição do próprio governo era neutra: a nomeação de ministros pelo imperador prosseguia
oficiosamente a lógica da Conciliação, onde liberais e conservadores se revezavam no poder.
O Dr. Semana se atribui o papel de mediador nas disputas partidárias, sendo amigo de todos,
contanto que tenham assinatura da revista. No entanto, há uma característica importante a ser
notada: ele se permite desenhar apenas aqueles que, eleitos pelo povo, não foram diretamente
escolhidos pelo Imperador. Os ministros, que ocupam cargos por nomeação, são como que
intocáveis, suas ações representam sempre a última esperança do povo, nunca a
irresponsabilidade da categoria política.
Os desenhistas dessa primeira onda estiveram portanto envolvidos numa lógica de
cooptação e acreditavam numa visão de mundo romântica, apesar de não deixarem tanto de
compartilhar a cultura política do país quanto de trabalharem para o desenvolvimento da
modernidade brasileira que se instala.
No entanto, essa visão de um poder favorável ao desenvolvimento do país não tardaria a
sofrer uma radical mudança. Nesse processo relativamente longo de transformação, iniciado
nos anos 1860 e culminante nos anos 1870, duas visões de mundo coabitaram. É sabido que o
Império brasileiro, tendo-se engajado na maior guerra que o país já conheceu, favoreceu tanto
o nacionalismo efervescente quanto os questionamentos inconformados. O primeiro
caricaturista a ousar dirigir críticas ao Império foi Joseph Mill no seu Bazar Volante, fundado
em 1863 e impondo uma mudança que disse respeito não apenas às ideias difundidas pela
revista, mas também à sociabilidade dos caricaturistas e que ecoaria durante anos. Joseph Mill
também é originário do meio artístico cooptado pelo poder imperial. Participava das
Exposições Nacionais, tendo recebido, em 1866, menção honrosa nessa manifestação cultural.
Ele contrata um antigo desenhista da Semana Illustrada, Flumen Junius. Juntos, eles passaram
aos poucos a buscar não apenas a velha emancipação política da independência, mas a
emancipação civil da abolição, da laicização e da república. Ao mesmo tempo, eles
emanciparam a caricatura das redes imperiais, manifestando-se independentes e construindo
um grupo de desenhistas cuja sociabilidade residia no interior do meio jornalístico.
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Quatro revistas sucederam o Bazar Volante proclamando-se herdeiras umas das outras:
Arlequim, Vida Fluminense, Fígaro e A Lanterna. Nasce aqui um grupo de caricaturistas que
fará proliferar outras publicações, se identificarão com as suas próprias marcas e não aquelas
de uma outra arte, institucionalizada, vista como subserviente. Joseph Mill vai criar uma nova
origem para a caricatura: em texto de 1876, ele considera que a caricatura antes de Angelo
Agostini e João Pinheiro Guimarães havia sido embrionária, plagiária, com ideias mal
concebidas. Assim, ele elimina tudo o que foi anterior a essa nova geração de caricaturistas.
Ainda que Pinheiro Guimarães tenha desenhado para a Semana Illustrada, ele posteriormente
fez carreira nesses numerosos jornais caricatos de oposição.
Esses artistas se autoproclamam independentes e se afastam progressivamente da lógica
das medalhas e dos títulos. Como eu havia dito no início, a caricatura não conquista espaço no
mundo da arte, ela se expande para fora das suas fronteiras. Angelo Agostini e sua Revista
Illustrada fazem parte desse grupo e por isso propomos uma leitura da sua primeira capa.
[Imagem 2] A Revista Illustrada já nasce célebre por estar ligada ao nome de Angelo
Agostini, já considerado como grande desenhista da época. Mas é nessa publicação que ele
adquire toda a sua liberdade, pois, associado a um litógrafo, ele é plenamente responsável
pelo conteúdo gráfico e literário da revista. Ela era publicada em formato in-quarto, conta
com oito páginas, das quais quatro são ilustradas, e as estimativas de tiragem da Revista
oscilam entre 1.000 e 6.000 exemplares, não muito mais elevadas do que aquelas da Semana.
No centro da imagem nós podemos reparar na retomada do simbolismo da luz
materializado na vela, como referência ao saber, ao conhecimento que ela traz no seu
conteúdo, propondo um duplo sentido à palavra “ilustrada” do título. A luz funciona ainda
como ponte entre o presente e o passado, onde residem a Semana Illustrada e a Lanterna
Mágica e o ridendo castigat mores de Fleiuss é resignificado e adquire uma conotação mais
violenta, mais contestatória, ainda que não revolucionária.
Há, entre os dois desenhos que analisamos hoje, uma importante distinção de escala:
enquanto o Dr. Semana manipulava binóculos e uma lanterna mágica ilustrava o cabeçalho da
Semana, dois instrumentos que evocam a observação, os personagens da Revista Illustrada
empunham lápis e plumas como armas, intervindo diretamente na cena. A ação adquire
importância com relação à observação. O tempo é consequentemente outro: enquanto no
mapa de Fleiuss ele parece lento, quase imóvel, misturado a essa natureza atemporal,
quebrado por alguns vapores de trem e navio, em Agostini, ele é o tempo da cidade, móvel,
moderno, agitado. A moral cristã que Fleiuss tentava manter com seu ridendo castigat mores
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desaparece e cede lugar à constante mutação trazida pela modernidade e às novas
proposições. O passado fica no passado: “Juro por esta luz, que me está iluminando, que voto
ao mais completo esquecimento tudo quando deu-se até ontem à meia noite. Tudo! O passado
passou. » (REVISTA ILLUSTRADA, 1876: 2)
Enquanto o Dr. Semana está sozinho num espaço ideal, distante da realidade, enquanto
o seu mapa é visto de longe; a página da Revista está abarrotada de uma multidão anônima,
composta por uma maioria de homens brancos, mas que também comporta alguns poucos
negros e pobres. Essa multidão preenche a página até quase transbordar e a cidade deixa de
ser um canto no mapa para tornar-se a estrela. Representantes do poder militar, religioso e
político são apresentados ao pé da composição, acuados, ou no alto dos sobrados, atacados,
mas sempre encurralados. O antigo público de deputados que liam a Semana para rir-se dos
costumes da sociedade brasileira são agora satirizados para provocar o riso de um público
muito mais amplo.
O sentimento nacional não desaparece de cena nesse segundo momento da caricatura,
ele se torna espontâneo e se desliga do seu criador, no caso, o Imperador. Assim, pode-se
continuar sendo nacionalista sem necessariamente aderir ao império. Foi o que fez boa parte
da intelectualidade brasileira, que formava provavelmente grande parte do público dessas
publicações: aderiu às causas republicana, abolicionista, laica, carregando consigo os
caricaturistas. Ela colabora assim à ascensão de um novo tipo de poder, modernizante.
Assim, vimos que a caricatura brasileira nunca esteve alheia à cultura política, mas, ao
contrário, por estar completamente imersa nela e por ter sua origem no seio das elites
culturais, engaja-se com a mesma ideologia promovida pelo Estado e evita opor-se a ele. Se
ela ganha progressivamente em autonomia com relação a ele é mais uma vez por estar imersa
na cultura política que se transforma ao longo dos anos 1860 e por acompanhar o foco do
poder que se desloca. Assim, apesar de ser sempre considerada como antagônica ao poder
instituído, eu penso que ela está permanentemente em estrita relação com ele.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRARI, Paula (org.). Manoel de Araujo Porto-Alegre: Discurso pronunciado na Academia
das Belas Artes em 1855, por ocasião do estabelecimento das aulas de matemáticas,
estéticas, etc… 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. [Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mapa_1855_discurso.htm>. Consultado em
18/03/2015]
FLEIUSS Max. Recordando... casos e perfis. Volume 1, chapitre XIV. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1941.
Letícia SQUEFF, “A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a
constituição do espaço social do artista”, Cadernos Cedes, ano XX, no 51,
novembro/2000.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Transmigrar: nove notas a propósito do Império do Brasil”. In:
PAMPLONA, Marco Antônio e Ana Maria Stuven. (Org.). Estado e nação no Brasil e
no Chile ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, v. 1.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.
MELOT, Michel. Daumier. L’art et la République. Paris: Les Belles Lettres / Archimbaud,
2008.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. As desventuras do liberalismo. Joaquim Nabuco, a Monarquia
e a República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
O Império do Brazil na Exposição Universal de 1873 em Vienna na Austria. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1873.
O Império do Brazil na Exposição Universal de 1876 em Philadelphia. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1875.
REVISTA ILLUSTRADA, n˚ 1, 1 janvier 1876, p. 2.
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THIESSE, Anne-Marie. La Création des identités nationales. Paris: Éditions du Seuil, 1999.
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[Imagem 1]: Henrique FLEIUSS, Semana Illustrada, n.1, 1861.
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[Imagem 2]: Angelo AGOSTINI, Revista Illustrada, n. 1, 1 de janeiro de 1876.