cartografia dos métodos de composição de conflitos - alexandre araújo costa

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Cartografia dos mtodos de composio de conflitos

Cartografia dos mtodos de composio de conflitos

Alexandre Arajo Costa

1Cartografia dos mtodos de composio de conflitos

2Introduo

2I - Introduo: por uma nova cartografia

5II - Reconhecimento do terreno: avaliando as diferenas entre os conflitos

6A - Agir estratgico-indiferente e agir comprometido

9B - Relaes unidimensionais e multidimensionais

10C - Conflito e litgio

11III - Mapeando as estratgias autocomositivas

11A - Autocomposio direta

12B - Autotutela

12C - Autocomposio assistida

14IV - Entre mediao e conciliao

14A - A mediao centrada no acordo

16B - A mediao centrada no conflito

161. A orientao transformadora

182. Mediao e conflito

193. Mediao e conciliao

214. Limites da mediao

22V - Mapeando as estratgias heterocompositivas

22A - Arbitragem

24B - Jurisdio

26VI - Articulando os mapas: valiao crtica e comparativa das estratgias

26A - Mediao e Conciliao

27B - Arbitragem

29C - Modelo judicial

301. Limites inerentes ao modelo judicial

312. Limites do pensamento normativista

323. Concentrao no litgio

33D - Substituio da autonomia das partes pela autoridade estatal

35VII - Concluso: pela autonomia dos mtodos

36Bibliografia

Introduo

I - Introduo: por uma nova cartografiaConhecer construir mapas e os registros cartogrficos de territrios novos so quase sempre muito limitados. E, embora possa parecer incrvel para alguns, a resoluo de conflitos um campo novo para o direito, o que faz com que os mapas tericos de que dispomos para lidar com essa questo ainda sejam demasiadamente inseguros.

Embora o direito sempre tenha lidado com conflitos, faz muito pouco tempo que os juristas passaram a entender que esse um objeto merecedor de reflexes especficas. A histria do conhecimento repleta de situaes como essa: passamos sculos lidando com uma realidade que, pelos mais variados motivos, no tematizada pelas nossas reflexes. A escravido, a homossexualidade, a preservao ambiental, a liberdade de crena, o direito das mulheres a um tratamento igualitrio, durante muito tempo esses temas simplesmente estiveram excludos dos estudos sistemticos que normalmente chamamos de cincia ou filosofia. Em um dado momento, esses fatos passaram a ser entendidos como problemas, ou seja, como fontes de indagaes que merecem ser respondidas.

Para que um determinado objeto se transforme em um problema, necessrio que nos tornemos conscientes de que o modo tradicional de lidarmos com eles talvez no seja o mais adequado. Essa percepo de que algo poderia ser diferente em nossas vises em nosso comportamento costuma estimular, ao menos em algum, a busca de construir novos padres tericos e prticos para lidar com velhos fenmenos, vistos de forma renovada.

O conflito normalmente era visto pelos juristas como aquilo que deve ser combatido, pois uma das funes primordiais do direito resolver os conflitos sociais. Esses conflitos so inevitveis, dado que a existncia de divergncias de interesses inerente a uma sociedade formada por indivduos autnomos. Porm, a nica reao adequada ao conflito busca de sua anulao, dado que a sociedade harmnica aquela em que no h conflitos e tenses.

E como o direito pode anular os conflitos? A estratgia jurdica bsica a de estabelecer juzes, que decidem os conflitos mediante sua autoridade. Mas, em uma sociedade de homens iguais, os juzes no podem decidir de acordo com suas convices pessoais, mas precisam aplicar padres objetivos previamente fixados. Portanto, preciso haver normas jurdicas que estabeleam os padres de julgamento.

Simplificada de maneira quase grosseira, essa uma descrio do direito moderno e de sua articulao com o individualismo moderno: os indivduos tm interesses pessoais, esses interesses entram em choque, esses choques devem ser anulados mediante a aplicao de regras previamente definidas e aplicadas por juzes imparciais.

Nessa viso de mundo, que papel pode ser reservado ao conflito? Nenhum, obviamente, a no ser o de vilo da histria. Assim, como os gregos uniram todos os no-gregos no conceito de brbaro, os europeus juntaram todos os povos amerndios e africanos no conceito de primitivos e os juristas uniram todas as tenses que ameaavam a paz social no conceito de conflito. Em todos esses casos, a generalidade do conceito simplesmente desconhece as imensas diferenas entre os objetos que os compem, pois esses trs conceitos servem para identificar simplesmente aquilo contra o que nos opomos, aquilo que deve ser recusado, dominado ou anulado.

Essa viso moderna est em crise, e, no campo dos conflitos, essa crise conduziu a uma percepo crescente de que h muitas coisas escondidas sob o nome genrico de conflitos. Tenses dos mais variados tipos e origens, com os mais variados modos de desenlace, exigindo estratgias as mais diversas para o seu enfrentamento. Essa primeira abertura gerou uma primeira onda de reflexo, na esteira da qual surgiu o movimento de resoluo alternativa de disputas (RAD).

Porm, a prpria noo de que preciso valorizar mtodos alternativos significa um reconhecimento que o modo jurisdicional o mecanismo padro de resoluo, pois toda alternativa alternativa a algum padro. Alm disso, o desenvolvimento dos mtodos de RAD deu-se dentro da concepo de que o todo conflito uma disputa de mais de uma pessoa acerca de um mesmo bem e que, por isso, pode ser resolvida a partir de um acordo. Esse primeiro momento resulta, portanto, em um reconhecimento dos limites da tcnica jurdica de aplicao de normas gerais e de uma valorizao das estratgias voltadas criao autnoma de normas individuais para a resoluo da disputa. As concepes resultantes desse momento, que ainda so dominantes, so o que podemos chamar de modelos centrados na soluo de problemas (problem-solving models).

Porm, a identificao do conflito com a disputa acerca de um bem (ou de uma determinada combinao de bens) uma concepo demasiadamente restrita da dimenso conflituosa da vida em sociedade. E a insistncia no acordo como forma nica de resoluo de conflitos demasiadamente ligada noo de que os conflitos so aquilo que se precisa anular na sociedade. Com o tempo, desenvolveu-se uma percepo mais crtica acerca das peculiaridades dos conflitos e da possibilidade de resolv-los mediante acordos.

Uma das percepes fundamentais a de que a disputa no o conflito, mas uma decorrncia do conflito. Portanto, resolver a disputa no pe fim ao conflito subjacente. Quando um juiz determina com quem ficar a guarda de um filho, isso pe fim a uma determinada disputa (ou litgio, como definiremos a seguir), mas, alm de no resolver a relao conflituosa, muitas vezes acirra o prprio conflito, criando novas dificuldades para os pais e para os filhos. Ento, torna-se claro que o conflito, ao menos em muitos casos, no pode ser resolvido pelo acordo.

Mais profunda que essa mudana a percepo de que o conflito talvez no seja algo a ser anulado, mas que as relaes humanas tm uma dimenso conflitiva que as integra. As tenses no so frutos simplesmente de interesses divergentes (ou seja, de desejos diferentes que podem ser avaliados dentro de uma mesma viso de mundo), mas de diferentes maneiras de perceber o mundo. Essas diferenas no podem ser reduzidas sem violentar o direito de cada um sua prpria identidade.

Esse direito diferena um dos elementos que est na base das novas teorias sobre o conflito. Antes, a diferena era vista como algo ruim, ou admissvel apenas dentro de certos limites predeterminados, que tendiam a reduzir a diferena imediata a uma igualdade mediata. Por exemplo: duas pessoas envolvidas em um acidente de carro desejam coisas imediatamente diferentes, pois nenhuma quer arcar com os danos. Mas ambas desejam o mesmo: ser indenizadas pelo prejuzo que sofreram. Assim, muitas vezes queremos coisas diferentes porque, no fundo, queremos a mesma coisa. Somente nessas situaes faz sentido a estratgia normativa de estabelecer critrios sobre quem tem razo em desejar a mesma coisa (uma indenizao, a propriedade de um bem, a guarda de um filho, etc.).

Em outras palavras, a diferena somente era admissvel no tocante disputa, mas no no tocante ao conflito. Mas o que fazer quando o conflito no uma disputa por um determinado bem, mas o resultado de uma percepo diferente do mundo? Que fazer quando se confrontam um marido que repete padres patriarcais e uma mulher que o ama, mas tenta conquistar sua liberdade e autonomia? Ou quando desejamos aquilo que no quantificvel, como ateno, carinho ou um pedido de desculpas? Ou aquilo que nenhum acordo capaz de criar, por envolver respeito, afeto, cuidado ou qualquer coisa que envolva um sentimento sincero? Nessas situaes, os modelos de disputa falham, justamente porque h conflito sem haver propriamente disputa. O que est em jogo so desejos inconciliveis por serem divergentes e no por convergirem em relao a um bem disputado.Outra mudana fundamental foi a incorporao de certas tendncias existentes na filosofia desde meados do sculo XX, passando-se a reconhecer que a linguagem no apenas um instrumento para a realizao de acordos de interesses. Como sintetizou Dora Schnitman, la funcin primaria del lenguaje es la construccin de mundos humanos, no simplemente la transmisin de mensajes de un lugar a otro. La comunicacin se torna as un proceso constructivo, no un mero carril conductor de mensajes o de ideas.

Com isso, a linguagem deixa de ser vista como um instrumento para negociar a resoluo disputas (viso inerente primeira onda dos mtodos RAD), pois se passa a reconhecer que os prprios conflitos tm uma dimenso lingstica, no sentido de que eles so constitudos pela nossa percepo das relaes vividas, que so reconstrudas lingisticamente dentro de uma narrativa pessoal. Nessa medida, alterar a percepo que uma pessoa tem do conflito significa modifica o prprio conflito, pois possvel modificar o modo de comportamento entre as pessoas nele envolvidas.

Passou-se, ento, a pensar na interveno na prpria estrutura do conflito, alterando a dimenso simblica da relao conflituosa (ou seja, alterando o modo como as pessoas percebem os fatos que elas qualificam como conflituosos) e, conseqentemente, abrindo novas portas para a transformao dessa relao. Como elaboramos lingisticamente a prpria realidade (ou, ao menos a linguagem um elemento importante na percepo do que chamamos de realidade), possvel intervir na prpria maneira como pensamos o nosso conflito. Ora, como um conflito no existe fora da percepo (ainda que inconsciente) das pessoas, intervir na elaborao simblica do conflito significa promover a transformao do conflito em si (e no apenas nos seus resultados ou conseqncias).

Esse conjunto de percepes conduz valorizao da mediao como elemento de transformao das relaes sociais (como em Warat, Bush e Folger) e ao reconhecimento do aspecto lingstico e simblico das relaes (como em Winslade, Monk e tambm em Warat).

Cada uma dessas teorias oferece um mapa diferente do terreno da resoluo de conflitos. Algumas estruturas permanecem um pouco alheias s movimentaes contemporneas (a arbitragem, por exemplo, no sofre grandes alteraes conceituais), mas outras esto sendo constantemente mapeadas por cartgrafos que fornecem os mapas mais diferentes (especialmente a mediao). Por tudo isso, algum que inicia o estudo do tema pode sentir-se bastante perdido, j que os livros vo apresentar, muitas vezes como verdades incontestadas, definies as mais diversas de palavras como conflito, disputa, mediao, conciliao e outras.

Por esse motivo, inevitvel fazer um estudo dos vrios mapas disponveis e creio ser conveniente traar um mapa geral, que tente organizar as vrias teorias como mapeamentos parciais, dando um sentido global ao tema da resoluo de conflitos. Para usar uma terminologia mais arcaica e pretensiosa, convm elaborar uma teoria geral do conflito.

O objetivo deste artigo delinear um mapa geral dos conflitos, a partir de uma perspectiva jurdica. O resultado certamente ainda muito lacunoso, como todo mapa de um terreno inspito, cujas fronteiras so controvertidas e no qual vrios grupos lutam por conquistar hegemonia. Mas creio que a atividade do terico no pode ser outra coisa seno esta (re)elaborao de mapas provisrios, que no se pretendem confundir com o real, mas que sabem no passar de uma orientao para que os homens possam pensar e agir em suas relaes uns com os outros.

II - Reconhecimento do terreno: avaliando as diferenas entre os conflitos

A afirmao de que o direito atua sobre os conflitos sociais talvez possa ser acolhida unanimemente pelos juristas, especialmente porque ela to vaga que cada um poderia atribuir aos termos direito, conflito e social qualquer sentido que lhe aprouvesse. De toda forma, por mais que haja debates acerca da funo especfica do direito, parece claro que ele lida com a conflituosidade social, o que indica ser conveniente pensarmos um pouco mais a fundo sobre os conflitos e os mecanismos de que dispomos para enfrent-los, para que possamos mapear devidamente esse terreno.

Tomemos o exemplo de Capitu e Bentinho, um casal de companheiros que, aps anos de convvio, decidiu separar-se, situao em que preciso enfrentar o problema da diviso dos bens que compunham o seu patrimnio. Nesse caso, pode ser que ambos estejam de acordo sobre qual seria a diviso mais justa caso em que no ocorreria conflito especfico sobre este tema , mas tambm pode ser que haja divergncia acerca da diviso dos bens.

A - Agir estratgico-indiferente e agir comprometidoHavendo divergncia, espera-se normalmente que ambos conversem, mostrem os seus pontos de vista e, respeitando as divergncias de posicionamento, busquem uma sada consensual. Trata-se este caso de uma tentativa de autocomposio, na medida em que as decises acerca do conflito so tomadas pelas prprias partes interessadas.

Quando existe uma contraposio de interesses, ela muitas vezes resolvida pelas partes mediante um processo de busca de uma deciso consensual, na qual cada envolvido tenta mudar a opinio do outro ou abre mo de parte de suas pretenses, na busca de alcanar um equilbrio de perdas e ganhos que seja minimamente satisfatrio para ambos.

No caso da separao, por exemplo, pode ser que um dos companheiros abra mo de certos discos e da mesa de jantar, enquanto o outro abre mo de alguns livros e da estante da sala, na busca de encontrar uma soluo consensual. Observe-se que no s a diviso patrimonial que precisa ser definida nesses casos, pois os ex-companheiros tambm podem decidir conjuntamente vrios outros pontos, como definir a verso dos fatos que ser exposta para as famlias e para os amigos, ou comprometer-se a no freqentar certos restaurantes ou cinemas, com o fim de evitar encontros que seriam desagradveis para algum deles.

Nesse ponto, bastante tpico que o jurista reduza a autocomposio a uma negociao de interesses contrapostos, a partir de um comportamento estratgico, no qual cada uma das partes envolvidas busca maximizar os seus prprios interesses, no estando diretamente comprometido com a satisfao (nem com a contrariedade) do interesse dos outros. Esse tipo de reduo trabalha com um modelo individualista de matriz utilitarista, no qual se considera que todo indivduo tende a fazer opes racionais no sentido de obter para si, em cada caso concreto, o mximo de prazer e o mnimo de dor.

De acordo com tal perspectiva, se uma das partes pensa na satisfao da outra, no por estar comprometido com ela, mas apenas porque um agente racional precisaria levar em considerao que ela tender a aceitar a proposta que lhe for mais vantajosa. Nesse tipo de modelo, que est na base tanto da teoria econmica clssica como da teoria dos jogos tradicional, tende-se a encarar os envolvidos no conflito como adversrios e pressupe-se que cada parte tem um compromisso apenas com a realizao dos seus prprios interesses.

Essa perspectiva, que reduz o comportamento a um agir estratgico-indiferente aos interesses dos terceiros envolvidos, bastante razovel para a anlise de muitos dos conflitos juridicamente relevantes, pois h uma infinidade de casos em que as partes so efetivamente adversrios em um conflito que pode ser reduzido a um jogo de interesses no qual cada envolvido busca maximizar seus ganhos. Nesses casos, pode-se qualificar os conflitos como adversariais, o que ocorre tipicamente nos casos de batida de carros entre motoristas que no se conhecem, de bancos que buscam cobrar dvidas vencidas, de seguradoras que buscam enquadrar uma determinada situao em uma das hipteses que as exime de ressarcir o segurado. Em nenhuma dessas hipteses parecer haver muito mais que um agir estratgico praticado por pessoas que se entendem como adversrias, pois cada uma busca maximizar seus interesses e o ganho de uma implica quase sempre uma perda para a outra.

Porm, reduzir todos os conflitos a esse modelo seria um exagero, pois h tambm uma variedade de casos em que uma das partes tem, sim, interesse na satisfao dos interesses da outra. No se trata de satisfazer parcialmente os interesses de um terceiro como uma forma de maximizar o seu interesse individual, mas de considerar o respeito aos desejos do outro como um objetivo autnomo. Nesse caso, o modelo ideal no seria o de dois adversrios que buscassem maximizar seus interesses particulares, ainda que em detrimento do outro, mas de duas pessoas que buscassem criar uma situao que seja a mais justa, maximizando o bem comum e no apenas os seus interesses particulares.

Poderamos aqui falar de um agir comprometido, pois a satisfao dos interesses do outro mostra-se como um dos objetivos relevantes das partes. Com isso, o ganho de uma parte deixa de implicar uma perda para a outra, que no vista como um adversrio, dado que as pessoas envolvidas tm efetivo interesse em satisfazer os interesses do outro e no apenas os seus prprios. Talvez Capitu e Bentinho j no mais encontrassem satisfao na vida em comum, mas continuassem partilhando uma grande amizade, ou respeito, ou qualquer sentimento que os fizesse ter interesse na felicidade do outro.Cabe ressalvar que moderna a teoria dos jogos tambm conta com modelos capazes de lidar com situaes que no so necessariamente adversariais e buscam identificar solues de maximizao dos ganhos para todas as partes envolvidas, tal como a idia do equilibrium de Nash. De toda forma, mesmo esses modelos de maximizao de ganhos para o conjunto dos interessados no ultrapassam os limites de um pensamento estratgico-indiferente aos interesses do outro, pois reduzem todos os interesses envolvidos a interesses individuais (ainda que seja no interesse individual de satisfazer o outro) e, em tais modelos, o respeito aos interesses de terceiros entendido um meio para se tentar garantir ao mximo os interesses individuais.

Assim, caracterizamos o agir comprometimento pelo fato de que o outro percebido como uma pessoa cujos desejos no nos so indiferentes. Porm, no existe apenas o que poderamos chamar de um comprometimento positivo (voltado satisfao do terceiro), mas tambm h um comprometimento que poderamos qualificar como negativo, pois ele voltado para dificultar a satisfao, ou mesmo causar sofrimento, ao outro. Por exemplo, talvez as dificuldades de convivncia entre Capitu e Bentinho poderiam ter degenerado para um rancor to grande que um estivesse comprometido com causar sofrimento ao outro. Assim, o comprometimento emocional pode fazer tanto que uma pessoa atue de forma colaborativa ou cooperativa, quanto de forma que no apenas adversarial, mas destrutiva, na medida em que uma das partes busca impedir que o outro alcance seus interesses. De um modo ou de outro, o comprometimento insere no conflito uma dimenso afetiva que deixada de lado por um modelo descritivo meramente estratgico, pois a felicidade ou o sofrimento do outro no indiferente para as partes em conflito.

As relaes humanas, contudo, no podem ser divididas binariamente em comportamentos indiferentes e comprometidos, pois raramente algum abnegado o suficiente para no pensar no seu bem-estar prprio nem individualista ao ponto de no ter qualquer compromisso com os sentimentos das outras pessoas. H vrios graus de comprometimento, ou seja, as pessoas esto dispostas a abrir mo de alguns de seus interesses pessoais perante determinados interesses de terceiros, mas apenas at um certo nvel, que varia de acordo com as partes em conflito, os interesses contrapostos, os valores ticos e ideolgicos envolvidos, etc.

E, para tornar ainda mais complexa a anlise, devemos admitir que h casos em que satisfazer o interesse do outro pode ser relevante de um ponto de vista estratgico (pense-se, por exemplo, em uma sociedade comercial que pretende garantir a fidelidade e a satisfao de seus clientes), o que geraria um agir estratgico que teria caractersticas exteriores muito semelhantes (talvez indistinguveis) aos de um agir comprometido. Para designar esses casos, talvez fosse til a expresso de um agir pseudo-comprometido, em oposio a um agir eticamente comprometido, pois ele adotaria todo o discurso do agir comprometido sem que houvesse efetivamente um respeito pela pessoa do outro: apesar da tentativa de satisfao do cliente, a felicidade dele no passaria de um objeto de avaliao estratgica.

Apesar de reconhecermos que a distino entre os tipos ideais agir estratgico-indiferente e agir comprometido implica uma grande reduo, acreditamos que ela oferece um bom alicerce base para a construo de um modelo adequado e que til para evidenciar algumas peculiaridades dos conflitos, especialmente na distino entre as espcies de autocomposio.

B - Relaes unidimensionais e multidimensionaisPorm, antes de passar ao estudo das formas de autocomposio, convm explorar as relaes entre a diferenciao dos conceitos de agir meramente estratgico e comprometido e a distino entre relaes unidimensionais (ou de vnculo nico), nas quais as pessoas envolvidas esto ligadas por interesses pontuais, e relaes multidimensionais (ou de mltiplos vnculos, para utilizar a linguagem de Boaventura de Souza Santos), em que as pessoas so ligadas, entre si e com a comunidade circundante, por vrios interesses e valores inter-relacionados, tal tipicamente o caso nas relaes familiares, de vizinhana, de trabalho e de amizade ou companheirismo.

diferente deixar de pagar uma dvida frente a um banco e deixar de pagar uma dvida a um irmo ou colega de trabalho, pois essa inadimplncia gera implicaes que escapam a questo da dvida e passam a invadir outras dimenses da vida das pessoas: o modo como ele percebido pelos companheiros e parentes, seu status social, sua auto-percepo como pessoa, etc. Tambm diferente cobrar a dvida de um estranho e cobrar a dvida de um parente ou colega em dificuldades financeiras, pois, na viso do meio social circundante, o dever jurdico possivelmente seria mitigado por outros valores sociais, como caridade e solidariedade. Por exemplo, cobrar na justia uma dvida conflituosa poderia gerar conflitos nas relaes com um irmo ou um colega de turma.

As relaes multidimensionais tendem a possuir um forte componente emotivo, pois as relaes sociais so envoltas de valores (morais, religiosos, ideolgicos, etc.) que geram uma forte dimenso emotiva a conflitos que sejam gerados dentro delas. Nessa medida, o seu enfrentamento tipicamente envolve um agir comprometido, em maior ou menor grau, dependendo do caso. Alm disso, essas relaes so tipicamente continuadas, de forma que a resoluo de um conflito no encerra a convivncia entre as partes e, portanto, sempre necessrio pensar nas tenses futuras que poderiam nascer de uma abordagem excessivamente egostica das divergncias.

J as relaes de vnculo nico tendem a ter uma dimenso emocional menos acentuada, o que facilita a reduo do comportamento a um agir meramente estratgico. Alm disso, essas relaes so muitas vezes pontuais no tempo, pois, encerrada a relao ou o conflito que nela surja, no h uma perspectiva de convivncia futura. Por exemplo, paga a dvida resultante de um acidente de trnsito sem vtimas, as partes envolvidas no sinistro normalmente no vm a ter qualquer convivncia futura e os resultados do comportamento delas dificilmente teriam forte impacto nas suas outras relaes sociais.

C - Conflito e litgio

Suponha que Capitu e Bentinho no conseguiram chegar a um acordo sobre a diviso dos bens e decidissem transferir a um amigo comum o poder de dividir o patrimnio de uma maneira que ele julgasse adequada. Nesse caso, o casal no estaria submetendo ao amigo a soluo de todo o conflito, mas apenas de uma pequena parcela dele, sendo que essa parcela pode ser resolvida a partir do estabelecimento de uma norma especfica. Assim, o amigo foi chamado a editar uma norma que estabelecesse uma determinada diviso de bens, que o casal comprometeu-se a aceitar como uma regra obrigatria.

Observe-se que o amigo no foi chamado para ajudar a resolver as vrias dimenses do conflito, mas para resolver uma questo especfica que aflorou em um campo complexo de conflituosidade, e que a autoridade do amigo limita-se a resolver um problema pontual. Dessa forma o amigo no interveio no conflito como um todo, mas apenas resolveu um litgio, ou seja, uma determinada faceta do conflito, uma disputa sobre um bem determinado que pode ser solucionada por meio de uma deciso normativa.

Por isso, resolver o litgio (ou a disputa) no significa resolver o conflito que lhe deu origem, sendo que, muitas vezes, a heterocomposio do litgio pode gerar novos conflitos ou acirrar o nvel existente de conflituosidade. Se, por exemplo, o amigo comum tomasse uma deciso que desagradasse profundamente tanto a Capitu quanto a Bentinho, a deciso do litgio terminaria por criar conflitos e no por resolv-los.

Se, ainda dentro da hiptese proposta, o amigo no aceitasse a ingrata tarefa que lhe foi solicitada e Capitu decidisse levar Bentinho justia, ela no poderia simplesmente dirigir ao juiz um pedido genrico, tal como: ajude-nos a que nos separemos de uma maneira que no nos degrade e que faa jus ao amor que tnhamos. Judicialmente, esse pedido seria entendido simplesmente como nonsense, pois o judicirio no lida com toda a complexidade do conflito, mas apenas com litgios determinados. Para utilizar os conceitos de Boaventura de Sousa Santos, existe um conflito real e um conflito processado (que chamamos aqui de litgio).

Assim, para ingressar em juzo, Capitu precisaria definir o litgio que ela desejaria que o juiz resolvesse, solicitando que fosse feita uma determinada diviso de bens, que fosse concedida uma penso alimentcia, que Bentinho fosse proibido de freqentar certos lugares, ou qualquer outra coisa que desejasse. E ao juiz caberia simplesmente analisar se o pedido feito por Capitu teria ou no base no direito positivo e, com base nesse critrio, deferi-lo ou no. Dessa forma, o pedido do autor define o litgio e este determina o limite da autoridade judicial sobre o caso.

Porm, tambm possvel falar de litgios dentro de conflitos em que um terceiro no seja chamado a decidir um problema. Se, por exemplo, Capitu e Bentinho selecionarem, dentro de sua relao conflituosa, determinados pontos que elas desejam ver resolvidos normativamente, eles tanto podem negociar estes pontos especficos, em uma composio direta, como podem chamar um terceiro para auxili-los a chegar a uma acordo, e no para que ele decida o litgio.

De toda forma, preciso no confundir o conflito com o litgio, pois, embora todo litgio esteja ligado a um conflito, ele no representa toda complexidade do conflito que lhe subjacente, mas uma determinada faceta sua, a qual pode ser decidida por meio do estabelecimento de uma norma, seja esta regra imposta por um terceiro (juiz ou rbitro), seja ela fruto de um acordo direto ou assistido.

III - Mapeando as estratgias autocompositivasA - Autocomposio diretaChamamos de autocomposio direta o modo de enfrentamento de conflitos no qual as partes envolvidas buscam o consenso sem que haja a interveno de um terceiro imparcial. Quando h interveno de um terceiro imparcial (ou seja, de algum que no est vinculado defesa dos interesses de nenhuma das partes), passamos ao campo da autocomposio mediada, que ser trabalhada no prximo ponto.

Nos casos de autocomposio direta em que no h uma dimenso emocional envolvida (como uma divergncia sobre os juros incidentes sobre um emprstimo bancrio), trabalha-se tipicamente com o agir indiferente e, portanto, o enfrentamento do conflito d-se por meio de uma negociao de interesses, em que cada parte somente cede em suas pretenses caso julgue que o consenso gerado lhe seria mais vantajoso. Nessas hipteses, falamos normalmente de negociao ou transao, denominaes que acentuam o fato de tratar-se de um jogo estratgico no qual o consenso atingido ao custo de concesses mtuas.

Na negociao, possvel a interveno de um terceiro (o negociador), mas este no imparcial, pois a sua funo ser defender os interesses de alguma (ou algumas) das partes envolvidas. Esse um papel constantemente desempenhado por advogados, que muitas vezes representam (ou ao menos assessoram) seus clientes em negociaes que visam a resolver conflitos.

Porm, tambm ocorrem autocomposies diretas em casos que envolvem uma dimenso emocional acentuada, nos quais h uma tendncia para que ganhe relevncia um agir comprometido. Capitu e Bentinho, por exemplo, podem tentar chegar a um consenso sobre qual ser a verso oficial dos motivos de sua separao, sendo que ambos estejam sinceramente buscando a soluo mais justa. Tratar essa hiptese como uma negociao ou uma transao no nos parece adequado, pois esses termos remetem a um agir estratgico-indiferente que no o predominante no caso. Para tratar desses casos, falta uma terminologia definida, motivo pelo qual sugiro que tratemos hipteses desse tipo como espcies de autocomposio direta comprometida e que passemos a enquadrar a negociao como uma forma de autocomposio direta estratgica.

Possivelmente no fazem parte do senso comum conceitos especficos para tratar da autocomposio comprometida porque os casos de comprometimento positivo tendem a gerar um consenso sem a necessidade de interveno de terceiros e os casos de comprometimento negativo tendem a gerar conflitos cujo enfrentamento adequado normalmente exige a interveno de terceiros, escapando, assim, do mbito da autocomposio direta. De toda forma, essa distino parece til para definir mais precisamente o campo da negociao (em que ganhariam relevncia as abordagens meramente estratgicas, especialmente a teoria dos jogos) e para distinguir os vrios modos de autocomposio mediada.

B - AutotutelaAntes de passar para a anlise da autocomposio mediada, cabe tecer algumas consideraes sobre uma outra forma de enfrentamento de conflitos, que ocorre quando uma das partes, em vez de buscar uma composio do conflito por meio do dilogo, utilizam-se de sua prpria fora para fazerem valer os interesses que ela considera legtimos. Nesses casos, como no h a busca de uma composio das partes conflitantes, mas uma ao unilateral em que uma das partes tenta garantir o que entende como o seu direito, falamos de autotutela e no de autocomposio.

Este seria o caso, por exemplo, se Capitu considerasse que seu gosto especial pela msica lhe dava direito a ficar os discos que foram do casal e, prevendo que Bentinho no aceitaria essa proposta, em vez de negociar com o ex-companheiro, ela simplesmente se apossasse de todos os discos. A autotutela, portanto, no uma conduta que privilegia o dilogo, mas trata-se de uma imposio unilateral dos interesses de um sobre os do outro. Porm, para que se caracterize propriamente como autotutela, preciso que a parte entenda que est atuando na defesa de um direito, e no simplesmente na defesa de um interesse pessoal.

Esse comportamento visto com muitas reservas, havendo inclusive um crime, chamado de exerccio arbitrrio das prprias razes, que submete a pena de priso quem faz justia pelas prprias mos. Porm, h casos em que reconhecido o direito autotutela, como ocorre na legtima defesa, que a permisso de que a uma pessoa ameaada de dano iminente defenda seus interesses legalmente protegidos (ou seja, seus direitos) com os meios disponveis. De toda forma, ainda que a nossa sociedade acolha a autotutela em certos casos, ela considerada uma medida excepcional, que somente se justifica no caso de ser a nica sada possvel para garantir um interesse legtimo.

C - Autocomposio assistidaA autocomposio assistida aquela em que h a interveno de um terceiro imparcial, ou seja, de uma pessoa que no est envolvida diretamente no conflito nem representa os interesses de alguma das partes envolvidas. Esse terceiro imparcial pode ser conhecido das partes, pode inclusive ter uma relao afetiva com elas (uma me, por exemplo, pode mediar um conflito entre os filhos), mas seria inadequado que um processo de autocomposio assistida fosse orientado por um terceiro com interesse pessoal em uma das alternativas possveis, pois, em vez de auxiliar as partes a chegarem ao consenso ou a uma situao de equilbrio, o terceiro poderia direcionar o acordo tendo em vista seus prprios interesses.

claro que a neutralidade absoluta no existe e que o terceiro imparcial tem valores pessoais que certamente influiro na sua atividade, por mais que ele se esforce para agir de modo neutro. Porm, quando ele passa a defender os seus prprios interesses, ainda que de forma velada ou at mesmo inconsciente, ele deixa de ser um terceiro e passa a ser uma parte do prprio conflito, o que faz com que o processo tenha apenas a aparncia de autocomposio assistida. Uma me que, a pretexto de mediar um conflito entre seus filhos, pressiona um deles para aceitar uma proposta feita pelo outro, pode at propiciar a realizao de um acordo, mas no ter atuado como assistente: ela se transformaria em parte, eventualmente em negociadora, mas no poderia ser qualificada como um terceiro imparcial.

Ressalte-se que a imparcialidade do terceiro no uma exigncia lgica, mas tica, somente fazendo sentido dentro de uma perspectiva que valorize a subjetividade das pessoas e que considera legtimo apenas o acordo que realizado por uma vontade livremente expressada, o que implica a ausncia de presses externas, como ameaas, subornos ou presses. Nessa medida, exige-se do assistente que sirva como um facilitador do acordo ou do equilbrio e no como um defensor de determinado interesse, ainda que seja dos valores que ele considera justos. Esse respeito pela liberdade das partes e por sua autonomia est no centro das preocupaes com a autocomposio assistida, pois a linha que separa a parcialidade da imparcialidade pode ser muito tnue, especialmente nos casos em que o terceiro adota uma postura mais ativa.

Por fim, cabe ressaltar que, em alguns casos, obrigatrio que as partes submetam-se a um processo autocompositivo assistido, como acontece nos juizados especiais cveis. Nesses rgos do Poder Judicirio, o processo dividido em duas partes: uma etapa necessria de conciliao e uma etapa jurisdicional, que ocorre apenas quando a autocomposio infrutfera. Existe, assim, uma audincia de conciliao, na qual um conciliador (funo gratuita que pode ser exercida por qualquer pessoa que tenha uma qualificao mnima) tenta conduzir as partes realizao de um acordo, e somente quando as tentativas de conciliao so frustradas, o processo vai a um juiz, para que ele tome uma deciso a ser imposta s partes. De toda forma, embora seja obrigatria a participao no processo, as partes no podem ser obrigadas a chegarem a um acordo e o conciliador no pode impor-lhes qualquer deciso, motivo pelo qual esse mtodo continua sendo autocompositivo.

IV - Entre mediao e conciliao

Conciliao e mediao so dois termos que sempre so utilizados nas teorias que tratam dos mtodos de enfrentamento de conflitos que aqui chamamos de autocomposio mediada. A palavra mediao acentua o fato de que a autocomposio no direta, mas que existe um terceiro que fica no meio das partes conflitantes e que atua de forma imparcial. A palavra conciliao acentua o objetivo tpico desse terceiro, que busca promover o dilogo e o consenso. Assim, para o senso comum, no pareceria estranha a idia de que o mediador tem como objetivo promover a conciliao, havendo mesmo muitos autores tanto brasileiros como estrangeiros que tratam esses termos como sinnimos. Porm, na tentativa de acentuar as diferenas existentes entre as vrias possibilidades de autocomposio mediada, so vrios os autores que buscam diferenciar conciliao de mediao, ligando significados diversos a esses termos.

Nessa busca, dois so os grandes critrios em torno dos quais giram as tentativas de classificao: o modo de atuao do terceiro imparcial e o tipo de conflito envolvido. Assim, os autores que se concentram no primeiro critrio tendem a considerar que o mediador atua simplesmente como facilitador nas negociaes, enquanto o conciliador adota uma postura mais ativa, podendo inclusive propor alternativas ou exatamente o contrrio, afirmando que o papel do conciliador limita-se a induzir as partes a envolver-se ativamente na resoluo do problema. J os tericos que se concentram no segundo critrio tendem a afirmar que a mediao est ligada a conflitos mais amplos (que chamamos neste trabalho de multidimensionais ou de mltiplos vnculos), enquanto a conciliao est ligada a conflitos mais restritos (que chamamos de unidimensionais ou de vnculo nico).

Embora essas distines sejam aparentemente coerentes entre si, no possvel harmoniz-las, pois um terceiro que atuasse como facilitador em conflitos restritos seria considerado por uns como mediador e por outros como conciliador. Essa incompatibilidade fruto da opo dicotmica, em que se oferecem opes binrias (ou se um conciliador ou se um mediador) com base em critrios diferentes.

A - A mediao centrada no acordo

Para tentar superar essa dificuldade, o norte-americano Leonard Riskin props a substituio do modelo binrio por um modelo graduado e tentou harmonizar os dois critrios, na tentativa de desenvolver uma teoria que englobasse todos os aspectos do problema. Todavia, com esse passo, Riskin no poderia manter a distino entre mediao e conciliao, pois precisava tratar todas as estratgias possveis como espcies de um mesmo gnero, tendo ele optado por manter a mediao como gnero e descrever as suas possibilidades de variao.

Para englobar as duas variveis em um mesmo modelo, Riskin props que se construsse um grfico cartesiano em que um eixo representasse a amplitude dos problemas a serem resolvidos e o outro o nvel de interveno do mediador. A amplitude do problema, que poderamos designar como amplitude do litgio, varia de questes pontuais (ex: definio de uma indenizao), passa por questes mais complexas (ex: interesses comerciais e profissionais dos envolvidos), at atingir as implicaes sociais do conflito (ex: interesses comunitrios envolvidos). J o papel do mediador varia de um mero facilitador (que no poderia sequer sugerir propostas de acordo), passaria por uma etapa intermediria (em que ele pode at sugerir propostas, mas no pode oferecer sua viso pessoal), at chegar ao ponto oposto, do mediador avaliativo, que no apenas teria a possibilidade de dar a sua opinio, mas poderia at chegar ao ponto de pressionar as partes a celebrar um acordo, se tivesse meios de presso para tanto. Entendendo que os eixos se cruzam nos pontos mdios entre essas caractersticas, o grfico ficaria dividido em quatro campos, que Riskin identifica como representando as quatro linhas bsicas de orientao do mediador:

1. facilitador-restrito, que apenas orienta as partes em questes pontuais, (ex: um conciliador que, mediante perguntas, ajuda as partes envolvidas em uma batida de trnsito a compreenderem adequadamente os argumentos colocados e suas implicaes),

2. facilitador-amplo, que orienta as partes em questes mais profundas, mas deve abster-se de qualquer manifestao que implique uma avaliao do problema (ex: um mediador que tenta ajudar Capitu e Bentinho a compreenderem melhor os seus prprios interesses e as implicaes futuras da aceitao das propostas que um dirige ao outro),

3. avaliador-restrito, que deve estimular as partes a tomar decises em questes de baixa complexidade (ex: um conciliador de um juizado especial que diz a um dos envolvidos em uma batida de trnsito que os juzes normalmente decidem casos daquele tipo do modo como a outra parte sugeriu),

4. avaliador-amplo, que poderia chegar ao ponto de pressionar as partes a fecharem um acordo (ex: um juiz que diz a Bentinho que a proposta feita por Capitu to boa que dificilmente se encontraria uma sada mais justa).

Com esse modelo, Riskin oferece uma sada abrangente, pois constri um sistema em que relaciona as variveis que outras propostas tendem a tratar de forma isolada. Porm, creio essa sada no equaciona devidamente o problema, pois termina-se por substituir os problemas inerentes a dicotomias rgidas pelos problemas de uma falsa gradao. O pressuposto do modelo de Riskin o de que possvel diferenciar os conflitos a partir de gradaes, o que implicaria que a diferena entre eles no reside em critrios qualitativos, mas na quantidade de determinados elementos, quais sejam, a amplitude do problema e a postura avaliativa do mediador. Conseqentemente, se a diferena meramente quantitativa, o modelo ergue-se sobre o pressuposto de que os conflitos tm um substrato comum e que o objetivo do mediador sempre o mesmo, mudando apenas a complexidade do primeiro e a interventividade do segundo.

Esse fato indica que Riskin compartilha do que Warat chama de uma orientao acordista da mediao, que entende o conflito como um problema resolvido pelo acordo e que considera, portanto, que a funo nica da mediao construir uma soluo consensual para por fim ao conflito. Na base dessa concepo, identifica-se a teoria individualista clssica, que pensa a sociedade como um conjunto de indivduos que age estrategicamente na busca de satisfazer os seus interesses individuais, motivo pelo qual seria possvel diferenciar os conflitos apenas pela amplitude da divergncia a ser resolvida. Dentro dessa concepo, para a qual a mediao oferece a oportunidade de proporcionar uma satisfao conjunta a todos os disputantes de um conflito, Riskin desenvolveu um modelo que supera alguns limites das teorias anteriores, mas incide nos prprios limites da viso acordista.

E o principal desses limites uma indiferenciao ente conflitos ligados a um agir meramente estratgico e conflitos ligados a um agir comprometido, elementos cuja diferena qualitativa e no quantitativa, o que inviabiliza a sua incluso em grficos baseados na variao constante de um elemento comum subjacente a todos os objetos abrangidos pelo sistema. Nessa medida, por mais que devamos reconhecer a engenhosidade do modelo, julgo que o fato de Riskin no reconhecer uma diferena qualitativa entre os conflitos faz com que ele no possibilite enfrentar adequadamente a complexidade da mediao.

Por tudo isso, parece-me mais adequado reconhecer que o modelo de Riskin explica bem os conflitos que tm dimenso emocional mais restrita, que envolvem uma contraposio de adversrios que agem estrategicamente e que exigem a interveno do terceiro para catalisar um acordo, pois a sua funo a resoluo do litgio e no na transformao do conflito. Nessa medida, a teoria de Riskin restringir-se-ia basicamente ao que Warat chama de conciliao, conceito que ele diferencia do de mediao, em uma tentativa de construir uma teoria da autocomposio que transcenda os limites do modelo acordista.

B - A mediao centrada no conflito

1. A orientao transformadora

Para Warat, a diferena primordial entre conciliao e mediao est no tipo de conflito a ser enfrentado, sendo que essa distino tem reflexos diretos no papel a ser desempenhado pelos mediadores e conciliadores. Outros autores essas duas categorias como tipos distintos de mediao e, como fazem Bush, Folger, dividem a mediao em transformadora (transformative mediation) e resolutiva de problemas (problem solving mediation). Porm, prefiro a distino proposta por Warat, tanto por consider-la mais elegante (as escolha das terminologias sempre influenciada por nosso senso esttico) como por tratar devidamente um conceito j est consolidado na experincia jurdica brasileira: a conciliao. Como a conciliao ligada normalmente ao trabalho dos juizados especiais e dos juzes, cuja funo primordial (devida ou indevidamente) estimular o acordo, creio que essa distino conceitual a mais compatvel com o uso normal da palavra.

De acordo com Warat, a mediao relaciona-se a conflitos com uma forte dimenso emocional e que envolvem um agir eticamente comprometido, enquanto a conciliao aborda conflitos com dimenso afetiva anmica ou inexistente e envolve um agir estratgico-indiferente. Com isso, a funo da mediao de intervir basicamente no aspecto emocional, buscando transformar uma relao conflituosa em uma relao saudvel, auxiliando as partes a compreender o conflito de forma mais aprofundada (o que implica compreender os seus prprios desejos e interesses), para que, com isso seja possvel converter um comprometimento negativo em um comprometimento positivo ou aumentar o nvel de cooperao entre as partes.

Nessa medida, o objetivo da mediao no seria o acordo, mas a transformao do conflito. Essa viso parte do pressuposto de que o conflito no fruto direto de situaes objetivas, mas fruto do modo como as pessoas interpretam uma situao e reagem a ela (uma mesma situao pode gerar conflito para certas pessoas e no para outras), de modo que possvel alterar o prprio conflito a partir da modificao do modo como as partes envolvidas o percebem. No se trataria, pois, de uma simples negociao de interesses, mas de uma compreenso dos interesses e sentimentos, com a finalidade de transformar as relaes que atingiram um grau de desequilbrio tal que a autocomposio direta j no era mais um instrumento eficaz. Nas palavras do prprio Warat, a mediao um trabalho de reconstruo simblica do conflito, que capaz de promover uma transformao no conflito por meio de uma (re)interpretao que, conferindo novas significaes relao conflituosa, recrie a possibilidade de uma convivncia harmnica das diferenas.

Essa idia tambm est presente na concepo de Winslade e Monk, que, extrapolando elementos psicolgicos da terapia narrativa (narrative therapy), desenvolveram o que chamaram de mediao narrativa (narrative mediation), uma perspectiva que acentua a dimenso lingstica dos conflitos e nega a pressuposio tradicional de que what people want (which gets them into conflict) stems from the expression of their inner needs or interests. Rather it starts from the idea that people construct conflict from narrative descriptions of events. Por isso, as vertentes ligadas orientao transformadora trabalham com as dimenses simblicas do conflito, mais que com harmonizao dos desejos derivados dessa percepo simblica da experincia pessoal.

Nesse sentido, a funo do mediador estimular as partes a reconstruir laos emocionais rompidos (ou construir novos enlaces) e, com isso, fazer com que elas possam construir uma relao de convivncia harmnica. Para usar a linguagem potica que marca as concepes de Warat, a mediao tem como objetivo reintroduzir o amor no conflito, pois o mediador precisa contribuir para que as partes erotizem o conflito, inscrevendo o amor entre as pulses destrutivas e, com isso, recolocando o conflito no terreno das pulses de vida.

Essa afirmao evidencia um outro pressuposto fundamental da viso dominante nas perspectivas centradas no conflito, que a idia de que as tenses no so um problema a ser erradicado, mas componentes intrnsecos das relaes pessoas. As pessoas so diferentes (tm diferentes desejos, interesses, sentimentos, etc.) e as relaes humanas so o ambiente em que essas diferenas se produzem como realizaes da autonomia das pessoas, gerando uma imensa riqueza em sua diversidade, embora gerando tambm tenses no entrechoque dessa mesma diversidade. Por conta disso, Warat considera o conflito como uma confrontao construtiva, pois ele entende a vida como um devir conflitivo que tem de ser adequadamente gerenciado.

Nesse contexto, o conflito mostra-se como uma das principais foras positivas na construo das relaes sociais e na realizao da autonomia individual, pois indiferena de fora puramente negativa, autodestrutiva da indiferena, o conflito brinda com um incentivo para a interao e termina erigindo-se numa possibilidade para criar, com o outro [e no contra o outro], a diferena. Por isso, normalmente um equvoco falar em resoluo de conflitos emocionais, pois o que se pode fazer nesses casos transformar o conflito, harmonizando e no anulando as tenses, motivo pelo qual Warat chama sua prpria concepo de orientao transformadora, contrapondo-a orientao acordista.

2. Mediao e conflito

Dado esse modo produtivo de encarar o conflito, no teria compreendido adequadamente a sua funo um mediador que se propusesse a anular as tenses de forma absoluta e definitiva. Esse pseudo-mediador, normalmente de boa vontade, no s estaria em busca de um objetivo inatingvel, mas tenderia a obliterar a prpria riqueza da relao em que viesse a intervir. O mediador deve ter em mente que toda relao humana plena de tenses e que nem o conflito pode ser definitivamente resolvido, nem isso desejvel, pois a conflituosidade (mantida, claro, dentro de certos limites), requisito e no empecilho a uma convivncia saudvel. Por isso, a funo da mediao transformar o modo como as partes percebem os seus conflitos, de forma a criar uma situao em que as partes sejam capazes de lidar autonomamente com a conflituosidade inerente a sua relao, no presente e no futuro.

A mediao, portanto, no pode ser reduzida busca de um acordo. O acordo uma norma a ser cumprida, ainda que ela provenha de uma deciso consensual das partes conflitantes ele pe fim a um litgio, mas resolver o litgio no implica transformar o conflito. A mediao busca tornar o acordo desnecessrio, fazendo com que o conflito no gere incompatibilidades ou tentando sanar as incompatibilidades anteriormente estabelecidas. Trata-se, pois, de ajudar as partes a desenvolverem formas autnomas para lidar com as tenses inerentes ao seu relacionamento, e no de buscar acordos que dem fim a uma controvrsia pontual.

Isso aponta outro pressuposto fundamental, que o fato de que as controvrsias que afloram em uma relao conflituosa normalmente tm razes bem mais profundas que as que normalmente so percebidas primeira vista, nem mesmo pelas partes. Como afirma Warat, em todo sentido enunciado existe um dito e um no-dito e conheceremos muito pouco se permanecermos simplesmente no nvel do sentido manifestado, pois, as partes, mais do que freqentemente se imagina, no conhecem as suas prprias intenes e perdem-se nas formas de seus prprios enunciados; so essas as armadilhas do inconsciente que o mediador deve ajud-las a trabalhar.

Esse fato aponta para uma ligao muito forte do mediador com a psicologia, pois ele precisa compreender a fundo o conflito e os modos como as pessoas lidam com eles, para possibilitar que atue de maneira eficaz na sua transformao. Como os conflitos com forte dimenso emocional normalmente resultam das tenses vividas em uma relao que se prolonga no tempo e que tem mltiplas dimenses, buscar resolver o efeito sem atacar a causa real do desequilbrio no seria uma sada razovel.

E o nico modo de atacar as causas do conflito no concentrar-se no prprio conflito (que apenas efeito), mas no sentimento das pessoas, ajudando-as a olhar para si mesmas e a sentir seus sentimentos. Por isso, o papel do mediador no o de um negociador nem o de um conciliador (ambos estrategistas em busca do acordo), mas o de um psicoterapeuta de vnculos conflitivos, que busca auxiliar as partes a inscrever o amor no meio conflito.

3. Mediao e conciliao

A partir desse fato, torna-se claro que, no centro da distino entre conciliao e mediao, est a postura do terceiro imparcial frente autonomia das partes. O conciliador, tal como o negociador, ocupa tipicamente um lugar de poder, pois, embora ele no tenha autoridade para impor uma deciso s partes, as tcnicas de que o conciliador se utiliza no so voltadas para fazer com que as partes reconheam e realizem seus prprios desejos, mas tm como objetivo conduzir as partes a realizarem os objetivos do prprio conciliador, cuja funo a de propiciar um acordo, ainda que contra a vontade das partes. Embora isso possa soar paradoxal, muitas vezes o conciliador est interessado apenas em que as partes realizem um acordo, dado que ele se percebe como um sujeito cujo objetivo fazer com que se resolva o litgio por meio de uma promessa mutuamente consentida.

Essa uma situao especialmente comum nas conciliaes institucionais, tal como as que ocorrem dentro do Poder Judicirio, tanto nas sesses de conciliao dos juizados especiais quanto nas audincias de conciliao e julgamento presididas pelos juzes. Nesses casos, o acordo no representa uma forma de valorizar a autonomia da parte, mas representa apenas uma estratgia para evitar que o juiz tenha que julgar o caso, acelerando o andamento do processo judicial. Inserida em um sistema de poder voltado para que autoridade do juiz substitua a autonomia das partes, a conciliao no poderia deixar de estar vinculada ao poder e no autonomia.

O conciliador judicial cumpre seu papel institucional e burocrtico quando o acordo assinado e, por isso, muitas vezes utiliza todos os meios de presso disponveis para fazer com que as partes aceitem algum acordo. E mais grave ainda a distoro do papel dos juzes que, para agilizar o seu prprio servio, pressionam as partes, afirmando expressamente (ou quase expressamente) a uma das partes que ela deveria aceitar uma certa proposta, pois o acordo lhe seria mais vantajoso que a deciso que ele tomaria se tivesse que resolver o litgio.

O mais trgico que essa supresso da autonomia revestida por um discurso de garantia da prpria liberdade das partes. A legitimidade do acordo baseada na idia de que ele fruto de uma deciso das pessoas envolvidas, mas, por um lado, muitos acordos resultam da presso do meio judicial (e da ignorncia das partes, que potencializa essa presso) ou de negociaes em que afloram apenas os aspectos mais superficiais do conflito, pois falta ao conciliador a formao (e muitas vezes o interesse) de explorar todas as dimenses do conflito. Ademais, aliar essa explorao das razes do conflito conscientizao das partes sobre os limites da sua liberdade, possivelmente tornaria mais difcil o acordo, cuja obteno o objetivo do conciliador, mesmo que no seja o objetivo das partes (que no querem o acordo, mas a realizao de seus prprios sentimentos de justia).

Alm disso, a cultura individualista propaga um ideal de autodeterminao bastante peculiar, que no deve ser confundido com o que chamamos aqui de autonomia, pois esse ideal tem a ver com o exerccio dos interesses de cada pessoa, mesmo que essa pessoa no conhea adequadamente seus prprios sentimentos nem seja capaz de avaliar devidamente as conseqncias de suas aes. Nesse modelo, o exerccio de um desejo imaturo e egosta, carregado de frustraes e carncias, fundado em um sentimento superficial e possivelmente passageiro, tende a ser entendido como uma legtima manifestao de autodeterminao da pessoa.

Seguindo a orientao acordista, buscar-se-ia resolver o litgio por meio de um acordo, em vez de oferecer pessoa que vive um conflito interior a possibilidade de resolver suas prprias tenses internas, para que ela possa vir a transformar adequadamente seus conflitos intersubjetivos. Por tudo isso, mesmo que o discurso do conciliador seja estabelecido em funo do acordo, o lugar do conciliador o lugar do poder que se impe (pois mesmo acordos podem ser impostos) e no o lugar da autonomia que se constri.

Ademais, mesmo quando atua apenas como um facilitador, o discurso do conciliador estratgico e no comprometido, servindo a uma tentativa de limitar a autonomia das pessoas por meio de uma promessa formal. Se a promessa pode ser entendida, por um lado, como fruto da autonomia, ela estabelece uma priso no momento em que feita. A promessa uma norma a ser cumprida e, embora a resoluo normativa de conflitos seja uma estratgia de limitao da liberdade adequada para lidar com conflitos de pouca densidade emocional, impossvel enquadrar em normas a complexidade de uma relao multidimensional.

Possivelmente todos j tentamos estabelecer regras para regular conflitos de fundo emocional em relaes de mltiplo vnculo, e todos j nos demos conta de que a manuteno pura e simples dessas regras, longe de harmonizar a relao, termina por gerar novos conflitos e solapar a poesia. A emoo no exige o mero cumprimento estratgico da regra, mas a sinceridade em um agir comprometido com os sentimentos do outro e as normas so inteis para regular os sentimentos.

4. Limites da mediao

A esta altura, j deve ter ficado claro que a mediao (tal como definida por Warat, que podemos identificar com a mediao transformadora de Bush e Folger e, em linhas gerais, com a perspectiva narrativa de Winslade e Monk), no aplicvel a imensa gama de conflitos toda vez que o conflito no envolver uma relao afetiva entre as partes, as tentativas de autocomposio mediada sero descabidas, pois a mediao um trabalho sobre afetos em conflito, no um acordo exclusivamente patrimonial e sem marcas afetivas. Como o mediador atua justamente no restabelecimento dos laos emocionais desestabilizados pelo acirramento de um conflito que poderia ter sido mantido em um nvel razovel, o sucesso da mediao pressupe que o conflito tenha uma dimenso afetiva.

Isso, porm, no quer dizer que a mediao apenas se aplica a conflitos familiares, pois h uma dimenso emocional forte em quase toda relao de mltiplo vnculo, pois as pessoas so ligadas, entre si e com a comunidade circundante, por vrios interesses e valores inter-relacionados. Tal o caso no apenas nas relaes familiares, mas tambm nas relaes de vizinhana, relaes de trabalho, relaes de amizade ou companheirismo. De que adianta cobrar uma dvida conflituosa e impossibilitar a relao com um colega de turma com o qual se precisa conviver diariamente por mais quatro anos? Alm disso, devem ser levadas em considerao as implicaes desses fatos nas relaes com as outras pessoas interessadas, pois o modo como tratamos um colega influi no modo como toda a comunidade nos trata.

Para resolver situaes desse tipo, a aplicao de estratgias puramente normativas (seja a aplicao de regras gerais preestabelecidas ou a criao consensual de novas regras) muito pouco til, pois elas provavelmente acirrariam o conflito em vez de resolv-lo. Para dar conta dessa complexidade de vnculos, a mediao mostra-se o instrumento mais adequado, pois tem a flexibilidade necessria para avaliar as vrias implicaes do conflito e no impe s partes nenhuma espcie de obrigao ao menos de uma obrigao consubstanciada em uma regra formalmente reconhecida, como uma sentena, um laudo arbitral ou um acordo feito frente a um conciliador.

Contudo, essa flexibilidade pressupe a existncia de uma dimenso afetiva no conflito e um interesse das partes em reconstruir a sua relao em novas bases. Com isso, embora seus limites sejam razoavelmente estreitos, a mediao capaz de tratar de problemas inacessveis conciliao e arbitragem, pois pode e efetivamente trata de direitos indisponveis e, em vrios casos, uma alternativa mais adequada que a jurisdio. Todavia, preciso admitir a sua completa inutilidade nas relaes de vnculo nico ligadas a um agir estrategicamente indiferente, pois, quando h apenas uma oposio de interesses sem dimenso emocional relevante, a interveno de um conciliador ou de um juiz tende a ser mais adequada que a de um mediador.

V - Mapeando as estratgias heterocompositivasA heterocomposio um modo de composio de conflitos no qual existe a figura de um terceiro imparcial que tem autoridade para impor uma soluo para as partes em conflitos. Assim, enquanto na autocomposio mediada o terceiro limita-se a orientar as partes e no tem o poder de suprimir a autonomia dos envolvidos no conflito, na heterocomposio existe um terceiro que toma decises que podem ser impostas s partes.

Se, por exemplo, Capitu e Bentinho no chegassem a um acordo sobre a diviso dos bens que pertenciam a ambos, eles poderiam convidar um amigo comum e solicitar a ele que fizesse a diviso, comprometendo-se a aceitar as escolhas feitas pelo amigo. Como o amigo no foi chamado simplesmente para opinar, nem apenas para mediar, mas para tomar uma deciso imponvel s partes, no se trata de autocomposio mediada, mas de heterocomposio.

A - ArbitragemNo exemplo acima descrito, o amigo convidado a tomar uma deciso atuaria como rbitro, ou seja, como terceiro imparcial cuja autoridade para decidir o litgio deriva da prpria escolha das partes. No caberia falar, portanto, de uma arbitragem imposta, pois a escolha da via arbitral sempre precisa ser fruto de uma deciso autnoma das partes envolvidas no conflito.

A autoridade do rbitro, portanto, no deriva de uma autoridade superior s partes, mas da prpria autonomia das pessoas envolvidas no conflito: se elas poderiam resolver o litgio por meio de uma autocomposio, tambm podem elas escolher uma autoridade para dar fim ao litgio. Por no depender de uma autoridade superior s partes, a arbitragem a nica forma de heterocomposio existente no direito internacional, pois no h nenhuma autoridade internacional que seja hierarquicamente superior dos Estados. Portanto, se o Brasil tiver um conflito com a Argentina e no for possvel chegar a um composio consensual, no h como recorrer a uma autoridade superior, restando aos envolvidos apenas a autotutela ou a arbitragem.

Os Estados nacionais em conflito poderiam, portanto, nomear um outro Estado como rbitro, atribuindo a ele a autoridade para resolver a questo, de forma que a soluo que ele der ao caso, mediante um laudo arbitral, obrigar s partes conflitantes. Percebe-se, pois, que a arbitragem heterocomposio, pois, se h autonomia no tocante escolha dos rbitros, a deciso do rbitro vlida independentemente da vontade das partes e seria intil se assim no o fosse. Portanto, embora a via arbitral seja escolhida autonomamente as suas decises so impostas de forma heternoma.

Mesmo os chamados tribunais internacionais, como o de Haia (ou da Haia), no passa de uma corte permanente de arbitragem. Se algum Estado resolver demandar o Brasil frente ao Tribunal de Haia, a primeira coisa que essa Corte far ser perguntar ao Brasil se ele confere ao Tribunal autoridade para decidir o caso. Se o Brasil disser que no (tecnicamente diramos que o Brasil recusaria a jurisdio da Corte), o processo ser simplesmente encerrado. Se o Brasil disser que sim, ento ele conferir autoridade Corte para agir como tribunal arbitral.

Contudo, a opo pela arbitragem pode ser feita antes mesmo do afloramento do conflito. No campo internacional, por exemplo, h vrios pases que firmaram um tratado comprometendo-se a aceitar a autoridade do Tribunal de Haia, sempre que fossem demandados para resolver litgios internacionais. No direito interno brasileiro, observa-se atualmente um crescimento constante no nmero de contratos que possuem uma clusula arbitral, ou seja, uma disposio que determina que os conflitos resultantes do contrato sero resolvidos por meio de arbitragem e no pelo recurso a um juiz do Estado. Com isso, a opo pela via arbitral preexiste ao conflito, sendo que esse tipo de escolha vincula as partes arbitragem.

Alm disso, a pessoa do rbitro nem sempre precisa ser escolhida de comum acordo pelas partes, pois a maioria das clusulas arbitrais atribui a autoridade para resolver o conflito no a um indivduo, mas a uma determinada Cmara de Arbitragem. Cada Cmara de Arbitragem tem suas regras prprias e um corpo especfico de rbitros, de tal modo que, a partir da assinatura do contrato, as partes ficam vinculadas s regras da respectiva Cmara de Arbitragem, inclusive as que dispem sobre a escolha dos rbitros.

Tambm possvel aos cidados brasileiros optar pela arbitragem aps o surgimento do conflito, o que feito por meio de um contrato por meio do qual se constitui uma pessoa como rbitro para dar fim a um certo litgio. Por meio desse compromisso, alm de nomear o rbitro, deve-se estabelecer os limites do seu poder e definir os critrios que ele dever utilizar, ou determinar que sero seguidas as regras de uma Cmara Arbitral determinada.

Assim, a arbitragem posterior ao conflito somente vivel quando as partes conflitantes so capazes de eleger uma pessoa ou instituio que ambas considerem idnea o que nem sempre fcil, devido s divergncias valorativas que pode haver entre as pessoas em conflito. Por conta dessa dificuldade, a arbitragem mostra-se uma sada muito conveniente para o tratamento de questes fundamentalmente tcnicas/cientficas, pois a escolha do rbitro depender de qualificaes profissionais, mais que de seus valores ideolgicos.

Todavia, em casos muito ligados a juzos de valor, a arbitragem somente se mostraria razovel quando as partes comungassem a mesma ideologia: que rbitro seria possvel para resolver uma questo de fundo tico, como o normal das questes familiares e em outros conflitos multidimensionais? Em casos desse tipo, quando h um conflito de valores, a opo pela arbitragem no parece ser a mais indicada, pois, mesmo que a lei permita a arbitragem para resolver litgios de natureza patrimonial, o conflito subjacente pode transcender em muito a questo patrimonial que aflorou no litgio.

Alm disso, o reconhecimento dos limites da arbitragem fez com que a lei brasileira limitasse a sua aplicao aos direitos disponveis, especialmente os patrimoniais, vedando a sua utilizao em conflitos que envolvem direitos indisponveis, como a vida, a liberdade, vrios direitos ligados famlia, entre outros. Nesses casos, como o direito considerado indisponvel (a pessoa no pode abdicar dele nem negoci-lo, ainda que o deseje), o Estado reserva a si a possibilidade de resolver os conflitos a eles relativos, por via jurisdicional. Assim, a arbitragem fica praticamente restrita s questes patrimoniais as quais no so poucas em nmero, relevncia ou complexidade.

B - JurisdioProcesso judicial, modelo judicirio ou jurisdicional, adjudicao, jurisdio: todos esses nomes servem para designar um modo especfico para a resoluo de conflitos: submeter o conflito apreciao de um juiz cuja autoridade no deriva das partes, mas definida por uma organizao poltica. Embora o prprio conceito de jurisdio no envolva a submisso dos juzes a um conjunto predeterminado de regras, a jurisdio existente nos Estados de Direito marcada pelo fato de que os juzes nomeados pela organizao poltica apenas recebem autoridade para decidir os casos de acordo com um conjunto predeterminado de normas, o qual pode ser chamado de ordenamento jurdico positivo.

Diversamente da arbitragem, que pode ocorrer sem a necessidade de uma autoridade que se imponha s partes, a jurisdio pressupe uma organizao poltica centralizada, pois ela somente pode ocorrer onde h a consolidao de um poder centralizado, capaz de definir certas autoridades como competentes para decidir sobre os conflitos sociais que lhe forem apresentados. Eis aqui uma das caractersticas fundamentais do modelo jurisdicional: a obrigatoriedade de submeter-se ao julgamento e acatar a deciso final. Quando uma pessoa aciona outra frente ao judicirio (tornando-se, ento, autor de uma ao), o ru no pode dizer simplesmente: no reconheo a autoridade do tribunal. No modelo de adjudicao, a autoridade do tribunal definida previamente e no depende da aceitao das partes motivo pelo qual podemos dizer que se trata de um modelo heternomo de resoluo de conflitos.

Tal heteronomia tambm se manifesta no carter impositivo do resultado do processo, pois a deciso tomada pelo juiz imposta s partes demandantes, ainda que ambas estejam descontentes com ela. Assim, a validade da sentena, bem como a autoridade do juiz, no dependem da aceitao das partes envolvidas no julgamento. Por conta disso, no existe jurisdio propriamente dita no campo do direito internacional, pois no h nesse mbito nenhuma autoridade juridicamente superior aos Estados.

J no direito interno dos estados modernos, na medida em que os Estados atuais tendem a buscar o monoplio da criao e da aplicao do direito, a jurisdio tornou-se o modelo jurdico privilegiado, especialmente porque ele refora o poder da organizao poltica institucionalizada. E por isso que esse modelo que, no Brasil, orienta a organizao do Poder Judicirio e tambm de vrios outros rgos estatais como os Tribunais de Contas, que fazem parte do Poder Legislativo, ou os Conselhos de Contribuintes, que fazem parte do Poder Executivo.

Esse modelo de deciso est to intimamente ligado ao modelo estatal contemporneo que muitas pessoas reconhecem nele a nica forma verdadeiramente jurdica de resoluo de conflitos, o que implica a identificao de jurdico e judicial. Assim, no so poucos os juristas que entendem como direito as regras utilizadas (ou utilizveis) pelos juzes e tribunais, na sua atividade jurisdicional. Esse exagero no se restringe aos positivistas normativistas, mas tambm est presente em vrios representantes das escolas sociolgicas, no sendo poucos os que definem que direito aquilo que os tribunais definem como tal.

Pela importncia desse modelo para o Estado contemporneo, quase todas as discusses jurdicas giram em torno dele. Em especial, o jurista formado quase que exclusivamente para lidar com os modelos jurisdicionais ainda que muitos deles nunca cheguem a operar nesse campo. Os cursos de direito ensinam basicamente os cdigos de processo (regras que disciplinam o comportamento dos tribunais) e as leis que estabelecem direitos e deveres para as pessoas (os quais podem ser demandados frente a um tribunal). Mas no devemos perder de vista que o espao do modelo jurisdicional vem sendo redefinido, especialmente na ltima dcada, bem como demais mtodos de composio de conflitos vm adquirindo uma importncia crescente na sociedade contempornea, especialmente em virtude de uma crescente conscincia dos limites da jurisdio.

VI - Articulando os mapas: avaliao crtica e comparativa das estratgiasH dez anos, a arbitragem era praticamente ineficaz no direito brasileiro, os juzes no tinham obrigaes reais de buscar uma conciliao entre as partes, no havia juizados especiais e sequer se tratava a mediao como uma forma jurdica de soluo de conflitos. Porm, essa situao mudou drasticamente no decorrer da ltima dcada e, se a um profissional do direito j bastou conhecer os meandros do processo judicial, hoje ele precisa saber escolher o mtodo mais adequado para o conflito que a ele cabe ajudar resolver.

Se, h dez anos, um cliente procurasse um advogado e lhe colocasse um problema, a este profissional normalmente caberia decidir que tipo de ao judicial seria a mais adequada. Hoje, contudo, ele precisa conhecer as vrias estratgias de enfrentamento dos conflitos e no pode perder de vista que pode ser mais adequado optar pela mediao, pela conciliao ou pela arbitragem ou, o que eleva bastante o nvel de complexidade da questo, por uma combinao dessas vrias estratgias. Faamos, ento, um ligeiro estudo sobre as vantagens e desvantagens de cada um desses mtodos.

A - Mediao e ConciliaoEmbora a autocomposio direta seja o incio do processo de composio de quase todo conflito, muitas vezes as partes no conseguem chegar a resultados adequados sem a interveno de um terceiro imparcial. Quando existe um comprometimento negativo ou um baixo grau de comprometimento positivo entre as partes, a utilizao de tcnicas de mediao tende a ser muito til, pois a soluo adequada de uma srie de conflitos passa pela sensibilizao de uma parte em relao justia dos interesses da outra, bem como do desenvolvimento de uma conscincia mais aprofundada de seus prprios sentimentos e desejos.

Essa transformao do conflito, contudo, nem sempre se mostra suficiente, pois h vrias situaes em que preciso estabelecer acordos, decidir questes pontuais, fazer negociaes variadas. Mesmo em um caso de direito de famlia, que o mais tpico campo de mediao, preciso definir o valor da penso alimentcia, as datas em que cada um dos pais buscar o filho na escola, que bens ficaro com cada um, alm de uma srie de outras coisas. Nessas hipteses, por maior que seja o comprometimento entre as pessoas, tcnicas de conciliao podem ser utilizadas de forma muito til na tentativa de produzir um ajuste de condutas que possa ser aceito consensualmente.

Portanto, estratgias de mediao e de conciliao precisam ser utilizadas muitas vezes em conjunto, na tentativa de possibilitar a produo de uma relao estvel entre as partes em conflito. Alm disso, essas estratgias devem ser utilizadas mesmo por juzes (e por rbitros, se for o caso), pois h regras no prprio direito positivo determinando que os juzes tm o dever de buscar inicialmente o acordo e decidir por si mesmo apenas em casos nos quais o acordo no possvel (como em direitos indisponveis) ou no foi alcanado. Portanto, essas estratgias, longe de serem incompatveis, so extremamente importantes para o prprio exerccio contemporneo do poder judicial.

Outra vantagem desses processos que, quando realizados de maneira extrajudicial, eles podem ser mantidos em sigilo, o que muito relevante em uma srie de casos. Alm disso, mesmo que no resolvam todos os problemas que aflorem dentro de uma relao conflituosa, a mediao pode ser capaz de reduzir o nvel de tenso e a conciliao pode eventualmente resolver alguns problemas pontuais, o que provavelmente facilitaria bastante a resoluo dos litgios restantes pelos modos de heterocomposio.

B - ArbitragemA conscincia dos limites do Poder Judicirio e do modo adjudicativo de resoluo de conflitos, aliada a uma mudana legislativa que autonomizou as decises arbitrais, vedando a possibilidade de que o judicirio as reavalie em seu contedo, tem feito com que a arbitragem ganhe um espao crescente no Brasil.

Os defensores da arbitragem normalmente apontam como sua vantagem mais evidente a celeridade, que pode ser garantida nesse modelo de forma muito mais eficiente que na jurisdio, pois a liberdade que as partes tm para definir o processo decisrio normalmente resulta em processos mais geis, com prazos mais curtos e pequena ou nenhuma possibilidade de recurso. Para alguns casos especficos, essa vantagem extremamente relevante, pois a demora judicial pode gerar prejuzos para ambas as partes envolvidas.

Imagine, por exemplo, uma questo em que se discutisse se um determinado componente de um satlite de telecomunicaes cumpria ou no os requisitos estabelecidos no contrato. Nessa hiptese, se a deciso final for tomada em 3 ou 4 anos, o que no seria de forma alguma anormal, a tecnologia utilizada possivelmente j seria obsoleta poca da sentena. Assim, se, no incio, era possvel resolver o litgio de modo a possibilitar a concluso do projeto (determinando-se, por exemplo, o dever de o fornecedor oferecer um equipamento adequado), a demora poderia fazer com que ningum mais tivesse interesse econmico no objeto do conflito, o que reduziria a questo a uma ao indenizatria.

A demora tornaria intil a prestao jurisdicional e a jurisdio no tem como ser rpida em casos muito complexos, pois, alm de ser necessrio observar processos burocrticos rigorosamente definidos, a garantia do direito de ampla defesa faz com que haja uma srie imensa possibilidades de recorrer das decises. Assim, por mais que se tente agilizar os processos judiciais, eles no chegariam a ser to rpidos como possvel em um processo arbitral.

Essa celeridade, porm, tem um custo que pode ser bastante elevado. Embora seja muito propagada a idia de que a arbitragem mais barata que a jurisdio, temerrio fazer uma afirmao to geral como essa, pois a arbitragem pode ter custos mais altos para as partes que a jurisdio. Isso ocorre especialmente porque, enquanto as partes precisam remunerar toda a estrutura ligada ao juzo arbitral, o Poder Judicirio praticamente sustentado pelo Poder Pblico, que arca com a maior parte dos custos, como a remunerao dos juzes e dos servidores do Poder Judicirio. J no processo arbitral, as partes tm que remunerar profissionais especializados (e conseqentemente caros), como advogados, rbitros e tcnicos, alm de sustentar toda a estrutura administrativa envolvida. Assim, embora o custo da jurisdio talvez possa ser maior, o custo final para as partes pode ser bem menor, especialmente em processos que envolvam pequenas quantias.

Entretanto, para vrios setores, esse custo plenamente compensado por uma garantia que a jurisdio no pode conferir: o sigilo. Exceto em certos casos especiais, o processo judicial pblico, as audincias so pblicas, a deciso pode ser acessada por qualquer pessoa. Para muitas pessoas, especialmente para grandes empresas, estabelecer um debate pblico acerca de uma srie de temas pode ser to desgastante para a sua imagem que um processo sigiloso, como possvel na arbitragem e as diversas formas de autocomposio, representaria uma sada mais adequada, ainda que eventualmente mais onerosa.

Apesar dessas vantagens relativas sobre a jurisdio, h um problema severo na arbitragem que normalmente deixado de lado. O resultado da arbitragem uma deciso que tem o status de ttulo executivo judicial, ou seja, ele equivale a uma sentena prolatada por um juiz do Estado. Com isso, se a parte perdedora decidir no cumprir a deciso arbitral, a execuo forada no pode ser realizada pelo rbitro, pois a lei atribui apenas ao Judicirio o poder de cobrar coercitivamente uma dvida. Assim, se a parte vencida no processo arbitral no cumprir espontaneamente a deciso, ser necessrio entrar na justia para efetuar a cobrana, o que restringiria muito (ou mesmo anularia) as vantagens iniciais de sigilo e celeridade, especialmente porque a execuo responsvel por boa parte da demora nos processos judiciais.

Outros problemas relativos arbitragem sero discutidos no ponto seguinte, pois so idnticos aos enfrentados na adjudicao. Isso ocorre porque esses dois modelos so extremamente similares, pois ambos envolvem a atribuio a um terceiro do poder de decidir um litgio, de acordo com regras predeterminadas. Como afirma Warat, tanto o rbitro como o juiz julgam baseados na verdade formal (ou seja, julgam apenas com base nas evidncias trazidas para o processo) e decidem o litgio baseados nas verses apresentadas pelos representantes das partes (que nem sempre expressam a verdadeira vontade dos representados, seja por no a conhecerem ou por no lhes convir diz-las), e tanto a sentena como o laudo arbitral apenas determinam o encerramento do litgio, no resolvendo a relao afetivo-conflituosa das pessoas envolvidas. Todas essas semelhanas fazem com que a maior parte das crticas apontadas ao modelo judicial seja tambm aplicvel ao modelo arbitral, especialmente no tocante ao pensamento normativista e limitao ao litgio.

Por fim, cabe ressaltar que a arbitragem a via que menos tipos de conflitos pode atingir, pois limita-se aos direitos disponveis, especialmente os patrimoniais. Embora esse seja um grande campo, o qual envolve todas as relaes comerciais e muitas das relaes civis, h uma srie de questes relevantes que no so abrangidas pela arbitragem em campos como o direito de famlia. Alm disso, a arbitragem no pode ser utilizada nos conflitos que envolvem o Estado, o que retira de seu campo de abrangncia todo o direito pblico. Porm, embora se trate de uma via relativamente estreita, ela pode ser bastante eficaz para a resoluo de uma srie de controvrsias, especialmente em matrias de fundo tcnico ou que tm uma dimenso emocional reduzida, quando for muito provvel que o perdedor cumpriria espontaneamente as decises do rbitro.

C - Modelo judicialO modelo judicial responde bem ao individualismo das sociedades contemporneas, pois tende a tratar as pessoas de forma igualitria e possibilita a resoluo de conflito entre pessoas estranhas entre si e que no tm qualquer interesse convergente. Alm disso, trata-se de um modelo capaz de adquirir um alto grau de institucionalizao, gerando carreiras especializadas, o que pode elevar a eficincia do sistema. Todavia, a burocracia assim criada pode ter uma srie de problemas, como excesso de formalismo e afastamento dos conflitos reais, bem como a criao de mecanismos de excluso e manuteno do status quo.

Assim, se o estabelecimento de regras predeterminadas uma estratgia bastante adaptada racionalidade burocrtica tpica dos Estados modernos, voltada definio de padres claros e previsveis de organizao, ela tambm gera alguns problemas. Um sistema judicial organizado de forma burocrtica normalmente funciona por meio da aplicao de normas gerais aos casos concretos, definindo assim uma soluo juridicamente correta. Trabalhar sempre com regras predefinidas uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que limita certos tipos de arbitrariedade, cria certos espaos de arbitrariedade legitimada (ou discricionariedade, para usar um termo mais tcnico).

preciso interpretar as normas. necessrio definir o significado de expresses ambguas. preciso lidar com os casos em que as normas so omissas ou contraditrias. Esses so os limites de todo sistema fundado em regras gerais preestabelecidas e esses limites so o objeto principal de estudo da presente disciplina. Por trabalhar com regras predeterminadas, apenas os critrios fixados nas normas so considerados juridicamente relevantes. Assim, o sistema pode tornar-se excessivamente rgido, como testemunha o velho adgio latino dura lex, sed lex (a lei dura, mas a lei), o qual, alis, j foi usado para justificar muitas arbitrariedades praticadas em nome da lei.

Por outro lado, a flexibilizao do sistema, quando se trabalha com normas predeterminadas, apresenta uma srie de dificuldades. Podemos atribuir um sentido a uma palavra constante em uma lei e, logo em seguida, atribuir significado completamente diverso mesma palavra quando ela ocorre em uma outra norma? Quando possvel tratar desigualmente as pessoas? Como evitar a influncia exagerada da subjetividade do juiz? Essas questes sempre so conturbadas, quando tratamos de um modelo jurisdicional fundado em normas preestabelecidas.

1. Limites inerentes ao modelo judicialComo foi ressaltado, o modelo jurisdicional de resoluo de conflitos desempenha o papel de maior relevo no tocante justia oficial: o Poder Judicirio que tem o dever de aplicar as regras criadas pelo prprio Estado, fazendo com que a sociedade conforme-se a esses padres. Dessa forma, no se deve estranhar o fato de que a prpria Constituio Federal estabelea, no seu art. 5o, que nenhuma leso ou ameaa a direito pode ser excluda da apreciao do judicirio. Assim, h um princpio jurdico que exige a universalidade da jurisdio: a sua aplicao, ao menos potencial, a todo e qualquer conflito surgido no mbito de poder do Estado. Ressaltamos que esse princpio pode ser visto (ao menos) por duas perspectivas muito diversas.

Para aqueles que enxergam no Judicirio a forma de se fazer justia, o princpio da universalizao do acesso ao Judicirio visto como uma grande conquista democrtica, pois nem mesmo a lei pode fazer com que certas pessoas ou atos sejam imunes interveno judicial. Nessa medida, o princpio do acesso justia entendido como um dos pilares de um Estado de direito.

Todavia, para aqueles que entendem que o Estado deve abster-se o mais possvel de interferir na vida das pessoas, a universalizao da autoridade judicial pode ser entendida como um poder demasiado grande nas mos do Estado. Quando um Estado determina que um direito indisponvel, isso significa que a ltima palavra quanto a esse direito sempre estar nas mos do prprio Estado. E qual o limite da autoridade do Estado?

Pode um doente terminal decidir pela eutansia? Pode algum enterrar seus mortos no jardim de sua casa, para obedecer sua ltima vontade? Pode algum ser racista? E pode ensinar essa postura a seus filhos? Pode algum ser um mendigo, ainda que tenha possibilidades de trabalhar? Pode o Estado determinar que todo rgo de uma pessoa morta pode ser utilizado em transplantes? Pode o Estado obrigar um judeu a trabalhar em uma eleio realizada em um sbado? Pode o Estado estabelecer que o topless proibido na Praia de Copacabana?

Independentemente das respostas que vocs ofeream a essas perguntas, pode o Estado estabelecer que ser sempre dele a ltima palavra quando essas questes vierem tona? Talvez seja a opo mais conveniente. Talvez seja a opo mais aceitvel, mas comporte algumas excees. Talvez seja uma forma de ocultar a dominao por meio de uma estrutura burocrtica. As respostas a essa pergunta sero resultado das posturas ideolgicas de cada um no parece razovel admitir que existe apenas uma resposta correta para essa questo.

E fazemos essas observaes por um nico motivo. No estudo do direito, normalmente o Judicirio apresentado aos estudantes apenas em sua face bela: uma instituio voltada para fazer justia ou ao menos para aplicar as regras que formam a justia possvel. As suas faces obscuras normalmente so ocultadas deixamos para que vocs a conheam na sua vida prtica. Todavia, mesmo para os que conhecem essas vicissitudes, os problemas so encarados como excees, como imperfeies na aplicao de um modelo adequado. Raramente se critica o modelo judicial, embora se admita que a sua prtica muitas vezes desvirtuada.

E gostaria de chamar a ateno para o fato de que o prprio modelo judicial tem seus limites. Certos pontos que alguns descreveriam como aplicao imperfeita poderiam ser classificados como uma imperfeio inerente ao modelo. O juiz sempre um homem e, portanto, no podemos supor que ele ser imparcial, onisciente e incorruptvel. As regras gerais tm vrios significados possveis. A jurisdio atual segue um modelo centralizador e burocrtico e no pode ser entendido fora do contexto do Estado capitalista contemporneo, com todas as suas virtudes e limitaes.

Portanto, preciso no ter uma viso idealizada do direito e do Poder Judicirio: essas figuras precisam ser entendidas dentro de suas prprias contradies, como qualquer outra instituio criada pelo homem. Como disse Tercio Sampaio Ferraz Jr.:

O direito contm, ao mesmo tempo, as filosofias da obedincia e da revolta, servindo para expressar e produzir a aceitao do status quo, da situao existente, mas aparecendo tambm como sustentao moral da indignao e da rebelio. O direito, assim, de um lado, nos protege do poder arbitrrio, exercido margem de toda regulamentao, nos salva da maioria catica e do tirano ditatorial, d a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos. Por outro lado, tambm um instrumento manipulvel que frustra as aspiraes dos menos privilegiados e permite o uso de tcnicas de controle e dominao que, pela sua complexidade, acessvel apenas a uns poucos especialistas.

Assim, o direito tem contradies internas e complexidades que no podem ser reduzidas a um modelo coerente e simples. Portanto, no se pode esperar outra coisa de uma instituio que tem como funo dizer o direito: uma tentativa constante de coerncia, mas uma estrutura e uma prtica necessariamente contraditria. E fazer com que as pessoas relevem os problemas da prtica cotidiana por identific-la prtica imperfeita de um modelo ideal um dos mais antigos instrumentos de ocultao ideolgica da realidade.

Ademais, o direito e o judicirio so instrumentos e, como todo instrumento, so muito teis para certas tarefas, porm inteis, e at mesmo perversos, para outras. preciso, pois, conhecer os limites dos nossos instrumentos, para que no exijamos deles mais do que eles podem nos proporcionar. E o objetivo deste curso justamente o estudo de alguns desses limites.

2. Limites do pensamento normativistaComo j foi dito anteriormente, possvel existir um modelo jurisdicional no qual o papel do juiz seja o de resolver os conflitos apenas com base em suas percepes subjetivas. A sabedoria do rei Salomo, por exemplo, estava na sua capacidade de tomar decises justas e no na sua habilidade em aplicar regras preexistentes aos problemas do presente. O rei absolutista no estava submetido s regras jurdicas que ele mesmo criava, pois poderia modific-las a qualquer tempo. Assim, a sua vontade era o padro pelo qual ele julgava os conflitos a ele submetidos.

Todavia, esse no o modelo jurisdicional vigente nos atuais Estados de Direito. Nesse tipo de organizao poltica, todas as pessoas esto submetidas s regras jurdicas e a funo dos juzes a de resolver os conflitos com base nas normas do Direito. Do juiz no se exige que seja sbio, virtuoso ou justo (afinal, o que a sabedoria, a virtude ou a justia?), mas que aplique devidamente as regras preestabelecidas ou ao menos essa a concepo dominante no senso comum dos juristas. A partir do momento em que se entende que os conflitos sociais devem ser resolvidos por meio da aplicao de regras gerais preexistentes, a funo jurisdicional ganha contornos mais ou menos claros e tende a formar uma estrutura burocrtica especializada.

Temos, ento, pessoas escolhidas para ocupar permanentemente o cargo de juzes, as quais precisam ter uma formao especial para desempenhar