clarissa nunes maia - história das prisões no brasil - 1

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Page 1: Clarissa Nunes Maia - História Das Prisões No Brasil - 1
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ORGANIZAÇÃOClarissaNunesMaia,FláviodeSáNeto,MarcosCostaeMarcosLuizBretas

HISTÓRIADASPRISÕESNOBRASIL

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO:HISTÓRIAEHISTORIOGRAFIADASPRISÕESAprisãonoOcidenteAprisãonoBrasil

1–CÁRCEREESOCIEDADENAAMÉRICALATINA,1800–1940–CarlosAguirreCastigoeprisões:daeracolonialaosnovosEstados-NaçãoAlémdapenitenciáriaPrisõeseoutroscentrosdeconfinamentoparamulheresAeradapenologiacientíficaVidacotidiananasprisõesPresospolíticosAlémdosmurosdasprisõesConclusão

2–SENTIMENTOSEIDEIASJURÍDICASNOBRASIL:PENADEMORTEEDEGREDOEMDOISTEMPOS–GizleneNeder

3–APRESIGANGAREAL(1808–1831):TRABALHOFORÇADOEPUNIÇÃOCORPORALNAMARINHA–PalomaSiqueiraFonseca.Puniçõesnahistória

4–FERNANDOEOMUNDO–OPRESÍDIODEFERNANDODENORONHANOSÉCULOXIX–MarcosPauloPedrosaCosta.Osatoreseocenário:vastassolidõesNegóciosmuirendosos:paraalémdasnecessidadesessenciaisAplateiaeospapéisTecendofamílias:sagradosmatrimôniosepecadosdeFernandoOaçoiteeafuga

5–OTRONCONAENXOVIA:ESCRAVOSELIVRESNASPRISÕESPAULISTASDOSOITOCENTOS–RicardoAlexandreFerreiraEscravoselivres:nosmesmoscódigos,nasmesmasmasmorrasenomesmobancodosréusSoboLivroVNoperíodoimperialLivreseescravoscriminososencarceradosnaprovínciadeSãoPaulo(Umanotaarespeitodarelação:criminalidadelivre,criminalidadeescravaeoproblemadasegurançaindividualsoboolhardoexecutivo)

Livreseescravosnasmesmasenxovias

6–ENTREDOISCATIVEIROS:ESCRAVIDÃOURBANAESISTEMAPRISIONALNORIODEJANEIRO1790–1821–CarlosEduardoM.deAraújo

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AescravidãourbanaeasprisõesnoséculoXVIIIAsprisõesnaCortejoanina,1808–1821Aljube:“sentinadetodososvícios”CadeiadaCortedoRiodeJaneiro,24dejaneirode1809AintendênciaGeraldePolíciadaCorteeseusdetentosConclusão

7–OCALABOUÇOEOALJUBEDORIODEJANEIRONOSÉCULOXIX–ThomasHollowayOCalabouçoOAljubeConclusão

8–TRABALHOECONFLITOSNACASADECORREÇÃODORIODEJANEIRO–MarileneAntunesSant’AnnaOImpériodoBrasileaprisãoACasadeCorreçãodaCorte:oiníciodeseufuncionamentoOtrabalhonaprisãoPerfildospresosARepúblicaeaprisãoConclusão

Sobreosautores

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A

INTRODUÇÃO:HISTÓRIAEHISTORIOGRAFIADASPRISÕES

Que vai fazer agora o governo?Vai demitir o administrador daCasa deDetenção?Daqui a pouco será obrigado a demitir ocidadãoqueosubstituir,eascoisascontinuarãonomesmopé–porqueacausadosabusosnãoresidenaincapacidadedeumfuncionário,masnumvícioessencialdosistema,numdefeitoorgânicodoaparelhopenitenciário.Enãohádeserademissãodeumadministradorquehádeconsertaroquejánasceutortoequebrado.(OLAVOBILAC)

spalavrasdeBilac,em1902,soamdegrandeatualidade.Defato,elaspoderiamserditasemqualquer momento dos últimos duzentos anos. As prisões modernas parecem já nascer sendopercebidascomo tortasequebradas.Aomesmo tempo,pareceperdurarumaesperançadeque

elas possam funcionar bem, e ser o lugar da recuperação daqueles que se desviaram das condutassocialmenteaprovadas.Recuperaçãooucastigo,boaoumásoluçãoparaacriminalidade,aprisãoéumdebatepermanente,quedurantemuitotemposerviuaosgovernoscomoexibiçãodesuamodernidade,desuaadesãoaosprincípiosliberais.Deunstemposparacá,osgovernosdeixaramdeconsideraraprisãoumbomtemapolíticoe,principalmente,umbomlugarparaoinvestimentopúblico.Continuamafalaremmais prisões, em prisões melhores – melhores para quem? para quê? – mas vão relegando-as aoabandono,comoumapêndiceincômodoquegostariamdeesquecer,doqualnãosabemcomoselivrar.Senãoforaprisão,oqueserá?

Tantasquestõesdifíceispodemsermotivoparafalarsobreaprisãoouparacalarsobreotema.Estelivroprefereaprimeiraopção.AideiadefazerumacoletâneasobreasprisõesnoBrasilprende-seaduasconstataçõessimples:primeiro,somosumpaíscomenormesproblemasnocampoprisional,assuntoquetoma,detemposemtempos,aatençãodosnoticiáriosedosjornaisequeapareceintimamenteligadoaoproblemadainsegurançapública,questãodegranderelevâncianavidacotidianadopovobrasileiroequepareceapenascresceraolongodotempo.

Quandoseobservamasexplosõesdeviolência,asuperlotaçãodosistemacarcerárioeseucolapsoiminente – e comohistoriadores percebe-se que é iminente hámuito tempo! – é inevitável pensar emcomo,nosúltimosanos,acriminalidadetomoutantovulto,comoproblemarealecomoobjetodedebate.A violência, sua aparente falta de solução, e sua punição – que não satisfaz a sociedade – não sãofenômenos recentes.EscreverahistóriadapuniçãoedoencarceramentonoBrasil é contribuirparaacompreensãodeumtemaquepersisteemconstrangerosistemademocráticodasociedade.Parecequeseestá emumapermanente reformapenal que jamais será concluída.Certamente,muitas experiências seencontramadormecidasnopassado.

Atualmente, sabe-se que o crescimento descontrolado da violência alimenta o sistema prisionalbrasileirocomcadavezmaispresos,desde2006estenúmeroultrapassou400mil.AjustiçanoBrasil,noentanto,mantémumapredileçãopelaprisãoemregimefechado.Asuperpopulaçãocarceráriaafrontaa condição humana dos detentos, aumenta a insegurança penitenciária, o abuso sexual, o consumo dedrogas,diminuiaschancesdereinserçãosocialdosentenciado,alémdecontrariarascondiçõesmínimasdeexigênciasdosorganismosinternacionais.Oquefazercomossentenciadosecomocorrigi-lossempreassombrou a sociedade. Punição, vigilância, correção. Eis o aparato para “tratar” o sentenciado.Conhecer a prisão é, portanto, compreender uma parte significativa dos sistemas normativos dasociedade.

A segunda razão para se organizar uma coletânea sobre o assunto é que não temos ainda nenhumtrabalho que contemple o tema em seus diversos períodos, que tenha procurado fazer um estudo

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comparativodessas instituiçõesnasdiferentes regiõesdopaís, apontandoasgrandescontinuidadesquepersistem no sistema carcerário brasileiro, de forma a que se abra uma discussão sobre o problema,levando-seemcontaqueapenadeprisãoéumprodutosociale,comotal,possuisuahistoricidade.Quala razãodesse silêncio?Ele chamaaindamais a atençãoquando severificao impactoque tiveramnoBrasilostextosdeMichelFoucault.Intelectualemilitante,autordeumaobraimportantíssimasobreasprisões,atraiuinúmerosseguidoresnopaís,queproduzirammuitosobreosmecanismosdecontrole,masparecem ter evitadoaprisãocomoobjeto.Entreo finaldosanos1970eo iníciodadécada seguinte,momento de maior influência do foucaultianismo no Brasil, prisões eram um objeto extremamentepróximo.Aditaduramilitar,emseusmomentosfinais,trouxeraaprisãoparaarealidadeacadêmica.Nãose tratava mais de uma experiência de disciplinarização de corpos trabalhadores mas da tortura depessoas próximas, por vezes das mesmas origens sociais. A impessoalidade das tecnologias e dospoderesdeFoucaultnãopareciasuficienteparafalardeexperiênciastãopessoais,etalvezaindamaisdifícil era lidar comodesejode colocar ditadores e torturadoresnaprisão.Comoutilizar a prisão econdená-la aomesmo tempo?Aocontráriodos temasmédicos, a história dasprisõesdeFoucault erainadequadaàsexigênciasimediatasdalutapolíticaefoideixadaàsombra.Tomoucorpoumimportantediscursosobreosdireitoshumanosnaprisãomassemacríticaradicaldomodelo.Emalgumamedida,essaambiguidadeaindapersiste.

As versões foucaultiana e marxista da história das instituições, ao tentarem elaborar uma críticadaquelesqueasconstruíram,terminaramporretratá-loscomoatorespolíticosextremamentepoderososebem-sucedidos. Adotando uma perspectiva de origem funcionalista, passaram a utilizar a ideia decontrolesocial,apresentandoosreformadoresburguesescomovitoriosos implementadoresdocontrolesobreospobres.Éprecisodesconfiardestahistóriadesucesso,epercebercomo,mesmonasinstituiçõesdecontrole,travam-seimportantesembates,numadinâmicaqueéobservadanotempopresentemasquetermina por ser negada à história.1 Os textos aqui apresentados refletem as diferentes posturas doshistoriadoresdiantedolegadodeFoucault.Nãosepretendeuproduzirumconjuntodereflexõesdelinhaúnica,masexatamentedarcontadasdiversidadesqueparticipamdaconstruçãodosnovoscaminhosnahistóriadaprisão.Muitostrabalhosapresentamumahistóriainstitucional,odiscursoadministrativoesuaargumentaçãosobreoseupoder.Outrosbuscamfontesalternativas,operfildospresos,suasformasdeinteragircomocárcere.Ahistóriadaprisãodeverefletiravariedadedematrizeshistoriográficaseosinúmerosolharespossíveissobreomesmoobjeto.

AprisãonoOcidente

DesdeaAntiguidadeaprisãoexistecomoformadereterosindivíduos.Esseprocedimento,contudo,constituíaapenasummeiodeassegurarqueopresoficasseàdisposiçãodajustiçaparareceberocastigoprescrito,oqualpoderiaseramorte,adeportação,atortura,avendacomoescravoouapenadegalés,entreoutras.ApenasnaIdadeModerna,porvoltadoséculoXVIII,équesedáonascimentodaprisãoou,melhordizendo,apenadeencarceramentoécriada.Logo,opoderqueoperaestetipodecontrolesobreasociedadenãoéatemporal,mastemsuaespecificidadenaconstruçãodeumadeterminadasociedade,nocaso,aindustrial,que,pormeiodeseusistemajudiciário,irácriarumnovotipodeinstrumentodepunição.2

ApartirdoséculoXVII,começamaocorrermudançasimportantesnosistemapenal,eaprisãoseriaoelemento-chavedessasmudanças.Oatodepunirpassaasernãomaisumaprerrogativadorei,masumdireito de a sociedade se defender contra aqueles indivíduos que aparecessem como um risco àpropriedadee àvida.Apunição seria agoramarcadaporuma racionalizaçãodapenade restriçãodaliberdade.Paracadacrime,umadeterminadaporçãode temposeria retidadodelinquente, istoé,este

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temposeriareguladoeusadoparaseobterumperfeitocontroledocorpoedamentedoindivíduopelousodedeterminadastécnicas.Osinternatos,conventos,hospitais,quartéisefábricas–todosinstituiçõestotais,istoé,aquelasquetinhamporfinalidadeadministraravidadeseusmembros,mesmoqueàreveliadesuavontade,numesforçodeproduzira racionalizaçãodecomportamentos– 3 seriamosprotótiposdasprisões.

MichellePerrotafirmaque,emfinsdoséculoXVIII,aprisãovaise transformandonoqueéhoje,assumindo basicamente três funções: “punir, defender a sociedade isolando omalfeitor para evitar ocontágiodomaleinspirandootemoraoseudestino,corrigiroculpadoparareintegrá-loàsociedade,nonívelsocialquelheépróprio”.4Atéentão,o“sistemapenalsebaseavamaisnaideiadecastigodoquenacorreçãoourecuperaçãodopreso”.5

Aindaquesuafiliaçãosedêcomasociedadeburguesa,istonãosignificaqueasprisõesdosséculosXVIIIeXIXtenhamsidoedificadascomosmesmospropósitosdasdehojeemdia,ouqueusassemosmesmos métodos de encarceramento. O que se pretendia naquela época era mais do que tudo odisciplinamento dos corpos, uma maneira de transformar corpos e mentes rebeldes em instrumentosdóceisdeseremcontrolados.6Apenaderestriçãodaliberdade,nasprisõesmodernas,teriasuasraízesemtentativasdecoibiravagabundagemqueviriadesdeoséculoXVI,comasbridewells,workhouseserasphuis.7Aprópriapuniçãode reclusãoestaria ligadaaocostumeda Igrejadepuniroclerocomtalpena; o isolamento pensado como lugar de encontro com Deus e consigo mesmo, permitindo areconstruçãoracionaldoindivíduo.

Inicialmente, a criação da pena de prisão foi vista como uma evolução dos costumes morais dasociedade, que não toleraria mais espetáculos dantescos de tortura em público. Para isso, teriacontribuídoolegadodoiluminismoeoliberalismoque,aocolocaraRazãocomopropulsoradahistóriaealiberdadecomoprivilégiodohomemmoderno,estariapondonasmãosdoshomensaoportunidadedese autotransformarem por meio da ciência e da própria vontade. Neste sentido, alguns autores jádiscutiamqualdeveriaseroobjetivodaspuniçõesepropunhamreformasnasprisões.CesareBeccariaapontavaem1764,noseulivroDosdelitosedaspenas,que,seapuniçãofossemuitoseveraemrelaçãoaqualquer tipodedelito,maiscrimeso indivíduocometeriaparaescaparaocastigoprescrito.Pedia,por isso, a eliminação completa dos códigos criminais vigentes e de suas formas cruéis de punir ocriminoso.8

OinglêsJohnHoward,sheriffdeBedfordshire,proporiaimportantesreformasnasprisõesbritânicas,imbuídodasideiasdeBeccariaedesuaprópriaexperiênciacomosheriff,quelhedavaoportunidadedeobservar as duras condições das cadeias britânicas. Em 1777 escreveu The State of the Prisons inEnglandandWales,noqualdescreviaaspéssimascondiçõesemqueseencontravamospresoseque,noseuentender,feriamacaridadecristã.ComoapoiodeparlamentarescomoBlackstoneeWilliamEden,propôs ao Parlamento inglês uma série de mudanças que tinham como inspiração as penitenciáriasamericanas e daEuropa continental, comoo confinamento solitário, o trabalho e a instrução religiosaparaospresos.9

JeremyBenthamidealizariaacriaçãodeumedifício(oPanóptico)quetivesseafunçãoderecuperaros criminosos pormeio de uma vigilância completa dia e noite e de uma vida austera e disciplinadadentrodopresídio.Deumatorrecentraldaprisão,oprisioneiropoderiasercontinuamenteobservadopelocarcereiro,ecomissoteroseutempocontroladoecolocadoaserviçodesuaregeneraçãomoral.Inúmeras iniciativas paramelhorar as condições das prisões, como a ação dogrupo religioso quacre,contribuiriamparareforçarumavisãodequeasreformasteriamocorridodevidoàaçãohumanitáriadefilantropos.10

A partir dessas ideias, nos Estados Unidos do século XIX, seriam criados os primeiros sistemaspenitenciáriosquecolocariamoisolamento,osilêncioeotrabalho,comoocernedapenadeprisão,o

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que levaria à construçãodepenitenciáriasnoestilopan-óptico.Estaspenitenciárias consagraramdoismodelos de execução da pena: o sistema da Pensilvânia propunha o isolamento completo dos presosduranteodia,permitindoque trabalhassem individualmentenascelas;o sistemadeAuburn isolavaospresosapenasànoite,obrigandoosmesmosaotrabalhogrupalduranteodia,massemquepudessemsecomunicar entre si.Este sistemapareciaomais convenienteparaospaísesmais industrializados, quecom ele utilizavam a mão de obra carcerária tanto para se sustentar quanto para realizar obras quenecessitavamdeumnúmerograndedehomensparaoserviço.EstaexploraçãodamãodeobraprisionalerafundamentadanaideiadequeoEstadonãodeveriaarcarcomosustentodopreso,alémdeserumaformadecontribuirparaareformadoindivíduo,queencontrarianadisciplinadotrabalhoummeiodenão colocarmais a sua energia em pensamentos criminosos, podendo ser reintegrado ao convívio dasociedadequandoapenaterminasse.Emalgunscasos,ospresostinhamdireitoareceberumsalárioque,descontadas as despesas com suamanutenção, poderiamguardarparaoprópriouso coma família ouparaahoradesualibertação.11

O sistema de Auburn, no entanto, trazia o problema da concorrência entre mão de obra barata etrabalhadoresassalariados.NaFrança,porexemplo,houveumaacirradadiscussãosobreosmalefíciosque tal concorrência estava causando para a classe trabalhadora.12 O século XIX formaria toda umaopiniãodequeasprisõeseraminstalaçõesondeoscriminosostinhamcasa,comidaeemprego,coisasquefaltavamparaaquelesquenãocometeramnenhumcrime.

Tanto o sistema da Pensilvânia quanto o de Auburn seriam criticados pela desumanidade notratamento dos prisioneiros, os quais,muitas vezes, terminavam enlouquecendo por não suportarem apressão psicológica imposta pelo isolamento. Com o fracasso dessas experiências, seriam criados naEuropa os chamados sistemas progressivos que, embora utilizassem técnicas de disciplinamentoadvindasdeAuburn,inseriamumnovodiferencialqueéempregadoatéosdiasdehoje–aparticipaçãodo detento na transformação de sua pena. O preso, por bom comportamento, receberia vales quesignificariam a redução da pena e a melhoria de sua condição dentro do presídio. Os sistemasprogressivos tiveram as primeiras experiências em Valência, em 1835, em Norfolk, em 1840, e naIrlanda,em1854.13

A temática penitenciária e a fundação de um novo espaço carcerário moderno constituíram umaimportanteagendadediscussõespolíticasdaFrança14comforterebatimentonoBrasil,ondeaobradeTocquevillejáétraduzidaem1846.15Oregimedepuniçãoestavaemprofundatransformação.OséculoXVIIrepresentouumacontestaçãoàpuniçãodosuplício,aopassoqueoséculoXVIIIparaoXIXtevenaprisãocelularummodeloeumparâmetrouniversaldepunição,notadamenteempolíticacriminal.

Poroutro lado,nãosedeveexagerar:estesprojetosnãoeramobjetodeumarealizaçãoprática.Aprisãocelularpermanecia,naFrançaequaseem todaparte,ummodelode“luxo”emcomparaçãoaosistemacarceráriovividopelamassadospresidiários franceses.Noanode1878, somente13prisõesdepartamentaisnopaíshaviamsidoaperfeiçoadasemodificadasparaosistemacelular.16

Algumasinterpretaçõesforamelaboradasparaosurgimentodaprisão,buscandoassociá-loaomododeproduçãovigente,analisandocomoaspuniçõeseramaplicadasdeacordocomcadaum,comofizeramGeorgRuscheeOttoKirchheimer(1939),17aoveremquenaIdadeMédiaaspuniçõesserestringiamàsmultas e penitências, enquanto que na Renascença, as mutilações e exílios visavam ao controle dosproletários. Durante as práticas mercantilistas, as punições organizariam a exploração exigida peloEstadoenafasedeascensãodocapitalismo,quecoincidiriacomadoiluminismo,teríamosapenadeprisãocomoentendemoshoje.EstacorrelaçãoentreomododeproduçãoeapenadeprisãoseriamaisevidenteemJ.ThorstenSellin,aoestudaraprisãoRasphausnaHolanda,demonstrandoquehaviaumprojetodeclasseparamanterocontrolesobreosdespossuídos.18

DarioMelossieMassimoPavarinitambémseguiriamesteviésteóricoemsuafamosaobraCárceree

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fábrica.19EstudandooscasosdossistemasprisionaisdaInglaterra,daHolanda,daItáliaedosEstadosUnidos,MelossiePavarinidestacamqueoadventodapenadeprivaçãodeliberdadeesteveligadoaodesenvolvimento do capitalismo.Em seu trabalho, eles reforçam tal aspecto, indo alémda análise deRuscheeKirchheimer:paraeles,aprisãosurgiucomouma“pré-fábrica”,ouseja,oenviodecriminososevadiosparaascasasdecorreçãotinhaafunçãoprecípuadetransformá-losemoperárioslaboriosos,treinando-osparaarotinadetrabalhonasfábricas.

Importantemencionarqueasociologia,atentaaproblemascontemporâneos,começouumaproduçãoimportantesobreaprisão.Destacam-seotrabalhodeGreshamSykes,Asociedadedecativos,publicadoem1958,eoestudodeErvingGoffman,Manicômios,prisõeseconventos,cujaprimeiraediçãodatade1961.Nestaobra,Goffmansepropõeaanalisaroqueelechamoude“instituiçõestotais”,queeledefinecomo “um local de residência ou trabalho onde um grande número de indivíduos com situaçãosemelhante, separados da sociedademais ampla por considerável período de tempo, levam uma vidafechadae formalmenteadministrada”.20Emoutraspalavras, são locaisondeaautoridadeprocuraumatotalregulamentaçãodavidadiáriadeseushabitantesque,porsuavez,realizamalitodasasatividades,desdeotrabalhoobrigatórioatéolazerearecreação.Entreestasinstituições,oautordestacaasprisões,osconventose,principalmente,osmanicômios,analisandoosefeitospsicossociaisdoisolamentonestesindivíduos.ComoconsequênciadotrabalhodeGoffman,umanovahistóriadasinstituiçõespassouaserescrita,nãoumahistóriainstitucionaldenarrativasburocráticas,massim

sobre batalhas contemporâneas dos confinados contra seu sofrimento […] Essa nova história tentaconsiderar as instituições não como uma entidade administrativa, mas como um sistema social dedominação e resistência, ordenado pelos .complexos rituais de troca e comunicação. […] O temaverdadeiro da história das instituições não é […] o que acontece dentro das paredes, mas a relaçãohistóricaentreodentroeofora.21

Mas foiMichel Foucault o filósofo quemais influenciou os estudos posteriores sobre as prisões,sendo fundamental para elevar este tema mais efetivamente aos domínios da história.22 Em Vigiar epunir,pormeiodeseumétodogenealógico,buscaaemergênciadenovosdiscursossobreaprisãoesuafunçãocorretiva,noseiodoquechamoudesociedadedisciplinar.Nestasociedadedisciplinar,surgiramvárias formas de conhecimento dos corpos, como a medicina, em escolas, hospitais e prisões,responsáveispelaemergênciadesaberesacercados indivíduos,bemcomopeloadestramentodeseuscorpos, o que Foucault chamou de “disciplina”. Esta disciplina começaria a preponderar a partir doséculoXVIII,pormeiodeumasériedesaberes/poderesqueordenam,classificam,enquadram,analisam,separam,diferenciam,absorvendoasmultidõestidasporconfusasedesordenadas,eproduzindocorposdóceis,obedienteseaptos.

Apartirdemeadosdadécadade1970eaolongodadécadade1980,ostrabalhossobreinstituiçõespenaissofreramasinfluênciasdeGoffmaneFoucault.NoBrasil,ficouquaseignoradooestudodeDavidRothman(TheDiscoveryoftheAsilum,1971),anterioraFoucault,quesecontrapunhaaostrabalhosdasdécadasanteriores,queviamnoencarceramentoumprocessohumanitáriodesubstituiçãodoscastigosfísicos,queoautorchama,criticamente,de“Escoladamarchaparaoprogresso”.23Osnovostrabalhosbuscavam inserir as prisões em um contexto social amplo que “incluía fatores culturais, políticos ereligiosos”,como“ummodelodeordemsocialqueapontaosmedosdaselites,emais,pretendegeraruma ordem social que aproxima institucionalmente, também, hospícios e asilos”.24 Numa terceiracorrente,JohnConleyapontaa“lutadeclasses”,geradaporumacriminologia“nova”ou“radical”,deinspiração neomarxista, que se concentrou “no conflito social e na importância dos interesseseconômicos nos procedimentos da justiça criminal”. Procurava, portanto, estabelecer a “relação entre

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economiaecriaçãodeleisecriminalidadeeemergênciadaprisão”.25AscríticasdeConleypodemserenumeradas,considerandooselementosnosquaisospesquisadores

dasprisõesconcentraramsuaspesquisas:noOcidente;nos“documentoshistóricos ligadosàselitesdereformadores”;nasorigensdasprisões;enodebatesobreosmodelosdeprisão.Ignoraram,noentanto,elementos bastante significativos, tais como: documentos de Estado e de prisões determinadas; oposterior desenvolvimento da prisão; “o processo político responsável pelo estabelecimento dos seusmodelos”, bem como a “administração diária da prisão”.26 O autor conclui que as pesquisas sobre aprisão chegam a definições idealizadas, descoladas da realidade social, amparadas emmetodologiaspouco rigorosas, de uma única explicação. Propõe, assim, uma metodologia integral de múltiplasexplicações,atentaàcompreensãodasforçassociais“queestãonaorigemdeumaprisão,eaqueladasforçassociaisdirigentesnautilizaçãodestaprisãoaolongodotempo”.27Seumétododepesquisabuscacomparartrêsdimensões/trêsfases:devir-ideia,aconcepçãodoprojeto,omodeloideal;devir-legítimo,o “modelo politicamente redefinido”; devir-operacional, “omodelo realista prático”.Busca perceber,nesse sentido, quais “são as origens de uma prisão, e a [origem] das forças sociais dirigentes nautilizaçãodestaprisãoaolongodotempo”.28Pormeiodeummodelocomparativo,ohistoriadorpoderáacompanharasmudanças,odesenvolvimento,astransformaçõesdaprisão,semestacionaremumadasfases.

A proposta metodológica de Conley, que oferece uma visão bastante ampla do processo detransformação da prisão, pode esbarrar no risco daquilo que Ignatieff chama de uma “históriainstitucional”,ouseja, “narrativasburocráticasdesinteressantes”.29Para Ignatieff, as respostaspara asinstituições totais se encontram para além de seus muros, nas classes trabalhadoras que sofrem suasviolências.MasnãosepodepensaremumaclassetrabalhadorapassivaesubmetidaaoEstado,comoemWeber,emqueoEstadopossuio“monopóliodosinstrumentosdelegitimaraviolêncianassociedadesmodernas”. Para o autor, deve-se questionar este monopólio e enxergar as classes trabalhadoras nãoapenascomovítimasdoEstado,mastambémcomonegociadoraseemconflito,penetrandonasbrechasecriando demandas. Isto sem “negligenciar o papel crucial que as classes trabalhadoras dependentes edominadasdesempenhamnassuasprópriassujeições,emaiscrucialmente,nacriaçãodenovasformasde poder de Estado para satisfazer às suas exigências”. Conclui afirmando que “isto seria óbvio nãofossepelaênfaseconvergenteemambasasteoriasdeinstitucionalização–ainspiradaemFoucaulteado controle social de Marx – em que as classes trabalhadoras são sempre vistas como objetos dosprocessosenuncacomoseusparticipantes.”30

Contudo, todas essas interpretações, naverdade, se complementammaisdoque se excluem, comosugereDavidGarland,permitindoqueseavanceemdireçãoaumaanálisemaisapurada,umavezquenenhumadessasbasesteóricasestruturadasemDurkheim,Marx,NorbertEliasouMichelFoucaultpossuiachavecompletaparaoconhecimentododesenvolvimentodasinstituiçõescarceráriasnoOcidente.31Osteóricosmarxistas, por exemplo, não levam em conta amútua relação entre omodo de produção e asuperestruturaquesecondicionameafetamomodeloprisional.Foucault,porsuavez,colocatodaênfasedesuaanálisenoestudoideológicodosistemapenal.NocasodoBrasil,porexemplo,comoestudá-loutilizandoapenasomodelodemododeproduçãocapitalista,umavezquenossasociedadeaindaestavanumafasepré-burguesa?

PieterSpierenburg,seguindoomodeloculturaldeNorbertElias,éumdosestudiososqueacreditamque,paraseentenderaemergênciadaprisão,deve-seexaminarcomo“asmudançasdeatitudessociaisafetaramoscriminosos,afamíliaeoprópriocorpohumano,levando-seemconsideraçãoasdiferençasnacionaiseregionaisqueseproduziramdeacordocomodesenvolvimentodecadalocal”.Istoé,seoscódigospenaisaplicavamcastigosseveros,devemoslembrarquearelaçãodospaiscomocorpodeseusfilhos poderia ser bem violenta sem que com isso estivessem violando alguma norma cultural.Havia

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padrões culturais de violência permitida que se espalhavam por todas as instituições da sociedade,inclusiveas religiosase judiciárias.32Ohistoriadordevesaberquea sociedadenão reageapenasaosimpulsos econômicos, mas que alguns outrora desprezados pelos estudiosos, como o medo, asexualidade, o preconceito, a fome, o desejo de liberdade etc., também agem como formadoras deatitudescoletivas.

Ao analisar uma população carcerária, temos de considerar que a instituição congregava gruposhumanosque–emboramarginalizados–nãoeramhomogêneos,abrigandobêbados,prostitutas,vadios,mendigos, escravos, loucos, menores, ladrões, assassinos… Alguns que sabiam que ficariam apenasalgunsdias,eoutrosquesabiamqueiriamperderavidaalidentro.Obviamente,asatitudesemrelaçãoàprisãoseriamdiferenteseasformasdecontrolaressesgrupostambém.

AprisãonoBrasil

A produção historiográfica brasileira sobre as prisões ainda está em fase de consolidação. AprincipalobrapublicadasobreotemaéolivrodosociólogoFernandoSalla,AsprisõesdeSãoPaulo,1822-1940,33quedeuumaenormecontribuiçãosobreotema.TendoaPenitenciáriadeSãoPaulocomopano de fundo, Salla percorre a história da prisão no estado deSãoPaulo desde a Independência doBrasilatéadécadade1940.Jáemsuadissertaçãodemestrado,oautordirecionavaapesquisaparaahistóriadaprisãocomumolharparaosproblemascontemporâneos,realizandoumarevisãohistóricadotrabalhopenal,relacionando-oàprivatizaçãodosistemaprisional.34OutrolivroqueaprofundouotemaéOs signos da opressão,35 de Regina Célia Pedroso, que tenta estabelecer a relação entre o modeloprisional brasileiro e osmecanismos de controle utilizados pelo Estado em suas diversas esferas deatuação, como as instituições e leis, que perpassavam a sociedade, reforçando e legitimando amentalidadedaépoca.MerecetambémdestaqueapesquisadeElizabethCancelli,queestudaumaúnicainstituição,oCarandiru.36Emsuaobra,aautoraanalisaestapenitenciáriacomoummodelodeeficiênciae higiene, construída em consonância com o Código Penal de 1890. Cancelli aponta ainda a grandeinfluênciaquemédicospsiquiatrasexerceramnotratamentodospresosnoCarandiru.

Amaiorpartedaproduçãobrasileirasobrehistóriadaprisãovemsendorealizadanoscursosdepós-graduação do país, razão pela qual muitos dos ensaios presentes nesta coletânea são de jovenshistoriadores que terminaram recentemente a dissertação de mestrado ou a tese de doutorado, e depesquisadoresquejávinhamtrabalhandocomformasdecontrolesocialequeporissoseinteressarampeloassunto.MichelFoucaultlamentavaafaltademonografiassobreasprisões,trabalhosquefizessemapareceros“discursosemsuasconexõesestratégicas”,os“formuladossobreaprisão”eos“quevêmdaprisão”.37

Temosde levaremconsideraçãoqueamanutençãoearegulamentaçãodas instituiçõescarceráriasduranteoImpérioeramdecompetênciadosgovernosprovinciais,oqueocasionavaparticularidades,porpressão dos interesses das elites locais – que permaneciam ambíguas entre as formas punitivastradicionais, privatizadas, e os atrativos damodernidade emque queriam se reconhecer.Ao longodoséculoXIX,mostrar-semodernoimplicavaaconstituiçãodeinstituiçõespúblicas,quesematerializavamem prédios de custo muito elevado, fossem eles teatros ou prisões. Os governantes provinciais, emconstantemudança,variavamentreaquelesdispostosaoinvestimentoeosreticentescomosgastos.Porisso,sejustificamosváriostrabalhosquetratamdotemaemregiõesdiferentes.Elesapresentamavisãodo processo de reforma prisional como um todo no Brasil oitocentista, e levantam novas indagaçõessobrepossíveismudançascomoadventodaRepública.

ParaocasodoRioGrandedoSul,temosapesquisapioneiradeMozartLinharesSilvaque,emsua

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dissertaçãodemestrado,estudouaCasadeCorreçãodePortoAlegre,ressaltandoqueestainstituiçãofoipensadanomomentoemqueopaísfaziasuareformaprisional,aosmoldeseuropeus,inserindo-senoroldas nações civilizadas, mas adaptando os paradigmas jurídico-penais do Velho Mundo para asnecessidadeseparticularidadesdasociedadeescravistabrasileiradoséculoXIX.Assim,paraoautor,amodernização do aparato prisional brasileiro não se deu por meio de uma mera cópia de modelosestrangeiros, mas se apresentou de maneira particular, caracterizada pela mistura de padrões,combinandoomodernoeo tradicional,o liberalismoea tradiçãoescravocrata.38Aindaa respeitodoRioGrande do Sul, temos o trabalho deCaiuáCardosoAl-Alam, que estudou o desenvolvimento deinstituiçõesepráticasrepressivasnacidadedePelotas,comoapolícia,aCasadeCorreçãodacidadeeaaplicaçãodapenademorte.Oautorprocuraanalisarcomoforamaplicadosessesmodeloseuropeusdejustiça, observando ainda a recepção de tais modelos pelos habitantes da cidade, principalmente ascamadas mais pobres da população.39 O trabalho de Sandra Pesavento apresentou a contribuição dogabinetefotográficodaprisãodePortoAlegre,chamandoaatençãoparaosesforçosdofinaldoséculoXIXemconhecerocriminoso,apartirdeseusaspectosfísicos.40

SobreoRiodeJaneiro,temosalgunsestudoscomoodeCarlosEduardoMoreiradeAraújoque,emsuadissertaçãodemestrado,analisouosistemaprisionalnoRiodeJaneironoperíodode1790–1821,procurandotraçarumpanoramadoscárceresnacapitaldovice-reinodoBrasilnofinaldoséculoXVIIIeacompanharasmudançasepermanênciasapartirdavindadacorteportuguesa.Araújoenfocadiversosaspectos da escravidãourbana e o graude interferência doEstadonas relações senhor-escravo, pois,com a expansão urbana a partir de 1808, escravos transformados em prisioneiros foram amplamenteutilizados nas obras públicas, surgindo, assim, o que o autor chamou de duplo cativeiro.41 PalomaFonseca Siqueira também se dedica ao período colonial, estudando uma forma alternativa deencarceramentoparavadiosecondenadosatrabalhosforçadosnoRiodeJaneiro–ousodenavios,oschamadospresigangas.42AorigemdaCasadeCorreçãoedoHospíciodePedroII,nacorte,emmeadosdoséculoXIX,éanalisadanadissertaçãodeMarileneAntunesSant’anna.Emsuapesquisa,Sant’annaprocuraenfocaroquelevouàcriaçãodetaisinstituições,apartirdaanálisedasideiaseprojetosdosgrupos envolvidos em sua formulação e implantação.43 A tentativa de estabelecer uma colôniacorrecionalnailhaGrande,nolitoraldoestadodoRiodeJaneiro,temmotivadoalgumaspesquisas.Otema foi tratado porVirgínia Barradas, que tentou identificar os padrões de classificação dos vadiosdestinados ao tratamento correcional. Já Myrian Sepúlveda dos Santos, em diversos artigos, abordaváriosmomentosdacolônia,desdeseuprimeiroestabelecimentoatéasrecordaçõesqueficaramentreosmoradoresdailha,apósoseulongofuncionamentocomoprisão,extintaapenasnadécadade1990.44

ComrelaçãoaoCeará,SilvianaFernandesMarizestudouaCadeiaPúblicadeFortaleza,nasegundametade do século XIX, centrando a pesquisa nos personagens envolvidos com esta prisão, desde osagentesda lei atéospresosmaispobrespara lá enviados.O trabalho relacionaaCadeiaPúblicae amodernizaçãodacidadedeFortaleza,analisandoodebateemtornodoDireitomodernoeaimplantaçãodeumagrandequantidadedecódigosdepostura.45

NaBahia,CláudiadeMoraesTrindadeutilizaainstalaçãoeofuncionamentodaCasadePrisãocomTrabalhodeSalvador,comoummeiodecompreenderoprocessodareformaprisionaldoséculoXIX,enfocando os debates entre os diferentes grupos da elite em torno da adaptação de novas ideiaspenitenciárias,numasociedadeescravistacomoeraadaBahianaqueleperíodo.46

Noquediz respeitoaMinasGerais, temosadissertaçãodeKarlaLealLuzdeSouzaeSilva,queanalisaosdiscursosdasautoridadesmineiras,noiníciodoperíodorepublicano,contraavadiagemeaociosidade, o que descambou na criação de estabelecimentos correcionais agrícolas, onde o trabalhoseriaapuniçãoporexcelêncianocombateàvadiagem.47Noentanto,éimportantefrisarquenãosetratadeumtrabalhohistoriográfico.Segundoaautora,apartirdeumaanálisehistórica,procura-severificar

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como a adoção dessas colônias objetivava solucionar dois problemas: a vadiagem e a preparação damão de obra para a lavoura. Já o sociólogoAntônioLuiz Paixão deixou alguns dosmais importantestrabalhos sobre criminalidade e justiça no Brasil. EmRecuperar ou punir? Como o Estado trata ocriminoso,fazumhistóricodaspolíticaspenitenciáriasededicaespecialatençãoaoestabelecimentodaPenitenciária Agrícola de Neves, durante muito tempo considerada modelar na política penitenciáriabrasileira,sobreaqualpublicouumartigoàparte.48

Pernambuco conta com três trabalhos sobre prisões. Em ordem cronológica de elaboração, temosprimeiramente a dissertação demestrado deMozartVergetti deMenezes, que estudou a instalação deescolascorrecionaisdentrodaCasadeDetençãodoRecife,duranteaPrimeiraRepública.Paraoautor,o Recife se inseria num rol de cidades que estavam se adaptando à nova ordem burguesa capitalistamundial, tendoemvistaqueestasescolasestavamdeacordocomospadrõesburguesesdecorreçãoeeducaçãodosmenoresinfratores.49Mesmonãosendoumtrabalhoespecificamentesobreumaprisão,nãopodemosignorá-lonestedebate,poisasescolasseinstalaramdentrodosmurosdaCasadeDetençãoemantiveramcontatoconstantecomocotidianodestepresídio.

Em seguida, temosClarissaNunesMaia que, em sua tese de doutorado, estudou as estratégias decontrole social sobre a população pobre e cativa doRecife, na segundametade do séculoXIX e nosprimeirosanosdaRepública.Paraela,aCasadeDetençãoconstituía-senaúltimainstânciadecontrolesobreascamadas“perigosas”dapopulação:quandoaleierainfringidaearepressãopolicialinicialnãoerasatisfatória,oindivíduoeramandadoàCasa,ondedeveriacumprirsuapena,deacordocomotipoeintensidadedodelitocometido,50edelásaircorrigidoemorigerado.

OutrotrabalhoacercadaprovínciadePernambucoéodeMarcosPauloPedrosaCosta,queestudouopresídiodeFernandodeNoronhanocontextodaReformaPrisionaldoImpério.Esteestabelecimento,que no período colonial era um presídio militar, passou, no século XIX, a ser uma prisão civil,recebendodetentosdeváriaspartesdoBrasil.Seufocodeanálisefoiopapeldospresosedosagentesda ordem punitiva, observando que a ação destes grupos podia transformar a rotina prisional,modificandooprojetoinicialdaspráticascotidianasnointeriordaprisão.51

É a partir da questão da reforma prisional do Império que Flávio de SáNeto estudou a Casa deDetençãodoRecife.EstareformafoipensadasegundooqueditavaoCódigoCriminalde1830evisouàconstrução de estabelecimentos onde pudessem ser aplicadas as penas de prisão simples e,principalmente,deprisãocomtrabalho,objetivandoacorreçãomoraldocriminosoesuaconsequentedevolução ao convívio social,morigerado, disciplinado e acostumado com a rotina do trabalho.Comisso,oBrasilseinserianoroldasnaçõescivilizadas,mostrava-seaomundocomaresdepaísmoderno,cujo trato dos prisioneiros podia ser comparado com os referenciais europeus e norte-americanos.Contudo,oautorlevaemconsideraçãoque,emboraaconstruçãodasprisõespenitenciáriasdoImpérioseguissemodelos estrangeiros, essesparadigmasnão foramsimplesmente copiados,masadaptadosdeacordocomasparticularidadesdasociedadeescravistabrasileira.

Destaforma,ostextosdeHistóriadasprisõesnoBrasilnasceram,emsuamaioria,dessaspesquisasoriginaisedostrabalhosmonográficosquetrataramdeformaprofundaotema.

Na primeira parte da coletânea, estão reunidos artigos que examinam as formas pelas quais asociedade interage na formação e desenvolvimento dos métodos punitivos e, consequentemente, dasinstituiçõescarcerárias.OensaiodeCarlosAguirre,porexemplo,resumeasconexõesentreahistóriadasprisõeseaevoluçãodassociedadeslatino-americanasentre1800e1940,buscandoosnexosentreasprisõeseoseufuncionamento,asformasinstitucionaisdecastigosimplementados,osmecanismosdenegociação e resistência adotados pelos presos, observando comoa ligação entreEstado e sociedadeproduz os regimes carcerários que, por sua vez, refletem e revelam esta forma específica de

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relacionamento.GizleneNederanalisacomoaideiadepuniçãosedesenvolveunaesferadosdebatessobrejustiça

criminal no Brasil, por meio do relacionamento continuado e íntimo entre cultura jurídica e culturareligiosa. A partir da análise dos debates parlamentares de 1830 e 1890, períodos em que foramaprovados, respectivamente, o Código Criminal do Império e o Código Penal republicano, a autorademonstra a influência que a seletividade penal e o processo de subjetivação, que acompanham apermanênciaculturaldelongaduraçãodesentimentosemrelaçãoàscrençasnapredestinação(aomal),tiveramsobrealegislaçãopenaldaépoca.

Paloma Siqueira Fonseca, em seu interessante artigo sobre as presigangas – navio de guerraportuguêsquedesempenhouafunçãodeprisãonoBrasilentre1808e1831–,vênelas

apontadeum iceberg quecompreendiapráticas antigas ede longaduração,quepercorreramséculosparanelaserematualizadas,emumcontextomuitoespecífico,odoprocessodeindependênciadoBrasil.Dentre as práticas antigas, o trabalho forçado e a punição corporal fizeram desse navio-presídio umreceptáculo,umaarcaqueagregousignosantigosquediziamrespeitoàpuniçãolegal.

PalomaSiqueirapercebeemseuestudoque,“senopassadoapresigangaeraumaembarcaçãoqueservia como prisão, hoje, por ocasião dos festejos dos duzentos anos da chegada da família realportuguesa ao Brasil, serve para pensar sobre permanências e rupturas nas práticas de punição nahistória”.

Em seu trabalho,Marcos Paulo PedrosaCosta analisa as rotinas da ilha-presídio de Fernando deNoronha. A partir de fontes variadas, procura demonstrar as relações estabelecidas entre ossentenciados, a administração e a população livre da ilha. Tendo como pano de fundo um conflitodesencadeadonopresídio,analisam-seasquestõesdesociabilidade,abordando-seasrelaçõesdepoder,as transações econômicas e a constituição de famílias.Além disso, avalia-se o impacto das reformasgovernamentaisnarotinadainstituição.

Nasegundapartedolivro,osartigosabordamascondiçõescarceráriasnomomentodaformaçãodoEstadonacionalbrasileiro,osdebatessobreareformaprisionalde1830eaconstruçãoefetivadasprisõespenitenciáriaspordiversasprovíncias,osregulamentoserotinasaplicadosaessasinstituições,easocializaçãoinformaldosdetentos,quecriavaumasubculturainterligadaàsociedadeexterna,atéoiníciodaRepública.

EssasreflexõesseiniciampelaprovínciadeSãoPauloque,comoavançodaeconomiacafeeiraeacrescente demanda por braços escravos no séculoXIX, constituiu local privilegiado de contato entrelivres e escravos. Esta aproximação inevitável e as condições precárias da polícia e da justiçaresultavamemcontradiçõesjurídicas,comoexplicaRicardoAlexandreFerreiraemseuartigo:

Porvezesacorrentava,aomesmotronco,prisioneirosdecondiçõesjurídicasopostas.Livreseescravos:desordeiros,suspeitos,indiciadoseatécondenadospelapráticadecrimesdividiamasmesmasenxoviasatéquesuasituaçãofosseresolvidapelaentãonascenteejámorosajustiçabrasileira.

Atentoaestasdiscrepâncias,oautorprocura“interpretaroprocessodeindistinçãodeprisioneiroslivreseescravosnoBrasildoséculoXIX”.

OsistemacarceráriodoRiodeJaneirodoséculoXVIIIaoiníciodoXXétratadoemquatroensaios.Oprimeiro,deCarlosEduardoM.deAraújo,estudaoperíodoquevaide1790a1821, traçandoum

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panoramadoscárceresnacapitaldovice-reinodoBrasilnofinaldoséculoXVIII,analisandodiversosaspectosdaescravidãourbanaeograudeinterferênciadoEstadonasrelaçõessenhor/escravo,quefariasurgiroqueeledenominoudeduplocativeiro.ComaexpansãourbanísticadoRiodeJaneironoiníciodoséculoXIX,osescravosdetidospelasautoridadespoliciaisforamamplamenteutilizadosnasobraspúblicas.Oscativospassam,então,aterdoissenhores:opoderprivadoeopoderpúblico.Osegundoartigo, de Thomas Holloway, analisa o período seguinte, que se inicia com a chegada da Corteportuguesa,em1808–quandoacomitivarealocupouachamadaCadeiaVelha, localizadaao ladodoPaçoImperial–,evaiatéofechamentodacadeiadoAljube,em1856,eatransferênciadasfunçõesdoCalabouço,aprisãodeescravos,paraaCasadeCorreção.

OartigodeMarileneAntunesSant’AnnaseaprofundanofuncionamentodaCasadeCorreçãodoRiodeJaneiroduranteasegundametadedoséculoXIX.Aautoraenfocaasreformasjurídicaseuropeiasquealcançarama legislaçãopenal doBrasil em1830, levando à aprovaçãode seu regulamento em1850,comadivisãodospresosemduascategorias:acriminal–queacresciaàpenadeprisão,otrabalho–eacorrecional,direcionadaaosvadiosemendigos.Sant’Annaanalisa“asprincipaisdemandasdadireçãoeoperfildosprisioneiros,discutindoarotinadoencarceramentonainstituição,principalmentepelopontodevistadasoficinasde trabalho, exigidaspeloMinistérioda Justiça,mascercadasde reclamaçõesebrigasemseucotidiano”.

AanálisesobreosistemacarceráriodoRiodeJaneiroterminacomoensaiodeAmyChazkel,queexplora o espaço social da Casa de Detenção do Distrito Federal do Rio de Janeiro nas primeirasdécadasdaPrimeiraRepública.Comorecursodevariadasfontescomooslivrosdematrícula,osanaisdoMinistérioda Justiça, correspondênciasadministrativasenarrativascontendo relatosde jornalistaspresos na época, a autora salienta a importância da instituiçãomais do que qualquer outra doBrasilurbano,comoumteatrovivonoqualerapossívelobservaradistânciaentreoscódigoslegaiseapráticajurídica.Emseuartigo,ChazkelexplicaapermissividadedosistemapenalqueconsentiaocontatoentreoEstadoeapopulaçãocariocadascamadasmaispobres.DurantesuapermanêncianaCasadeDetençãoantesdeseremabsolvidos,transferidosparaoutrainstituiçãopenal,ouexpulsosdoterritórionacional,gruposdedetentossurpreendentementeheterogêneos interagiamentresiecomfuncionáriosdoEstado.Sua análise sugere que as experiências dos detentos dentro da instituição prisional lhes permitiramconhecer e fazer uso das regras formais e informais que governavam a sociedade. Proporcionou aosdetentos e, indiretamente, aos seus familiares, do lado de fora da detenção, um tipo particular de“educação cívica”. Numa reflexão sugestiva e atual, que se pode estender à situação das instituiçõescarcerárias brasileiras de um modo geral, ela conclui que é possível ir além de análises sobreinstituições prisionais que descrevem os encarcerados como socialmente ‘mortos’, demonstrando ascontinuidadesentreaculturapopulareavidasocialdentroeforadosmurosdaprisão.

AimplantaçãodasprisõesnoRioGrandedoSuléotemadePauloRobertoStaudtMoreiraeCaiuáCardosoAl-Alam, enfocando os espaços da capital PortoAlegre e de Pelotas, centro econômico dascharqueadas, configurando os territórios mais próximos da experiência moderna que orientou odesenvolvimentodasprisões.

OsistemaprisionaldePernambuconooitocentosé,porsuavez,tratadoemdoisartigos.Oprimeirodeles,deFláviodeSáCavalcantideAlbuquerqueNeto,propõe-seadiscutircomoestavaasituaçãodoaparato carcerário na cidade do Recife antes da reforma promulgada pela Constituição de 1824 e oCódigoCriminalde1830,aqualsóseriapostaempráticaapósainauguraçãodaCasadeCorreçãodaCorte, em 1850, emostrar como a construção da Casa deDetenção doRecife deveria solucionar osproblemasdasprisõesdacidade.Nosegundoartigo,ClarissaNunesMaiaprosseguecomaanálisedosistema carcerário proposto para a Casa de Detenção do Recife. Em 1850, o governo provincial dePernambucocomeçariaaconstruiraCasadeDetençãodoRecife,oquevinhasendodiscutidodesdea

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décadade1830.Elalevaria17anosparasertotalmenteconcluída,masaprecariedadedasprisõesdaprovínciafariacomquecomeçasseafuncionarjáem1855.Tantoaestruturadoedifício–construídonosistemapan-óptico–comoseusregulamentosseguiammodelosdisciplinaresmuitoutilizadosnaEuropadeentão.Éjustamenteafuncionalidadeounãodessesmodelosqueaautorapretendeanalisarpormeiodosregulamentosde1855e1885dainstituição–esteúltimovigorouaté1915–edeofícioserelatóriosdos administradores, com os quais se pode reconstituir parte do cotidiano do presídio, dando-nos adimensãodasnormasimpostasàdisciplinaecorreçãodospresos.

AadministraçãodasprisõesnoCearáéobjetodoestudodeJoséErnestoPimentelFilho,SilvianaFernandesMarizeFranciscoLinharesFontelesNeto,quebuscammostrarasdimensõesdocombateaocrime e do uso da pena de prisão no Ceará imperial, por meio das ações da elite governante, e aconstruçãodesuamemórianostrabalhosdePorfíriodeLimaFilho.

MarcosLuizBretasprocura explorarosvários sentidos sociais atribuídos à figuradoprisioneiro,analisando como diferentes grupos falaram sobre ele, elaborando explicações sobre os homens e suapresençano espaço carcerário.Ahipótese do texto é que, nos primeiros anos do regime republicano,consolidou-seumaimagemprópriadocriminoso,destacadadeassociaçõestradicionaiscomoaquelaqueligavacrimeepobreza.Osrecém-constituídoscriminososencontraramnacadeiaumhabitatnatural,ondea sociedade poderia colocá-los semmaiores hesitações, porque estariam perfeitamente adaptados aomeio.

No entanto, as relações entre sociedade e prisão apresentam várias nuanças que inevitavelmenteextrapolam os muros da prisão.Manter o controle sobre a população carcerária é uma tarefa que oEstadovemtentandorealizardeváriasformas,aolongodosanos,equeparecesempreabarcarsituaçõesquefogemaodesejadoinicialmente.AsexualidadedospresosfoiumadasquestõesqueoEstadotevedeenfrentar e que encontrou resistência em alguns juristas da época.As visitas conjugais são o tema deanálise de Peter M. Beattie, tomando como base o livro de Lemos Britto, a maior autoridade empenologianoBrasil naprimeirametadedo séculoXX.Beattie enfocacomoLemosBritto interpreta asexualidademasculina para ajuizar os benefícios e os perigos de visitas conjugais nas penitenciáriasbrasileiras.

A Escola Correcional para Menores do Recife, instalada significativamente no mesmo espaçodestinadoàCasadeDetençãodoRecife,aindaquedemododescontinuado,funcionouentreosanosde1909a1929, e éestudadaporMozartVergettideMenezes.Segundooautor, comoumespaçoparaoexercício dos saberes educacional, jurídico e psicológico, essa escola pretendia ser o meio paradesmobilizar,recuperarereproduzirforçasdestrutivaseperigosas,emforçasdevidamentedisciplinadaseaptasaotrabalho.Atenderàsexigênciasdocapitalismonascentequesecoadunavaaumnovoambienteurbano/modernoeraumapreocupaçãoconstantedaselitesindustrial,comercianteeintelectual.Dentreas“classesperigosas”,quepoderiampôremxequea“inspiraçãodoprogressoedobem-estar”,constavaumapopulaçãodemenoresabandonadosnoRecifeparaaqualurdiapôrfreiosantesqueseperdessempor completo na vagabundagem das ruas; a escola seria, então, o espaço de excelência para a suacorreção.

OartigodeCarlosAlbertoCunhaMirandaanalisaa influência ideológicadamediçãodoscorpossobreosindivíduosconsideradosdelinquentes,particularmentenoBrasil,ondeseualcancefoinorteadopelo pensamento de Lombroso, da Escola Constitucionalista e da Biotipologia (estas últimasconsideradasneolombrosianas),atéosanos1950doséculoXX.OmédicoNinaRodriguesserevelouumgrandeexpoentedasideiasdeLombroso,acreditando,cientificamente,queacompleiçãobiológicaeossinaishereditáriostornavampossívelperceberodesenvolvimentodepatologiasedapredestinaçãoaocrime em determinados indivíduos. Esses estudos criminológicos foram aplicados em Gabinetes deIdentificação,manicômios,prisõesehospitaispsiquiátricos.

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Esteconjuntodetrabalhospermiteelaborarumaprimeiraabordagemdodesenvolvimentodasprisõesbrasileiras,respondendoaalgumasquestõessobreaquelesqueaspensarameaquelesqueasviveram.Muito ainda resta a ser pesquisado, especialmente o desenvolvimento mais recente dos aparatosprisionais.Esperamosterconstruídoumabaseparaasdiscussõesquevirão.

MarcosLuizBretasClarissaNunesMaia

MarcosCostaFláviodeSáNeto

1Sobreanoçãodecontrolesocial,veroartigoclássicodeMorrisJanowitz,“SociologicalTheoryandSocialControl”.AmericanJournalofSociology,v.81,nº.1(Jul.,1975),82-108,eStanleyCohen&AndrewScull,SocialControlandtheState.Oxford,Blakweel,1985.UmexcelentecomentáriosobreosabusosdeFoucaultedacrençanumefetivocontrolesocialpormeiodaprisão,daescolaedoasilonaAméricaLatinapodeserencontradoemErnestoBohoslavsky&MariaSilviaDiLiscia.“Paradesataralgunosnudos(yatarotros)”.In:LISCIAMariaSylviaDi;BOHOSLAVSKYErnesto.InstitucionesyFormasdeControlSocialenAmericaLatina,1840-1940.BuenosAires:Prometeo,2005.

2MELOSSI,Dario;PAVARINI,Massimo.Cárcereefábrica.Asorigensdosistemapenitenciário(séculosXVI–XIX).RiodeJaneiro:Revan,2006;FOUCAULT,Michel.Vigiarepunir:onascimentodaprisão.8.ed.,Petrópolis:Vozes,1991.

3Cf.FOUCAULT,op.cit.;GOFFMAN,Irving.Manicômio,prisõeseconventos.SãoPaulo:Perspectiva,2003.4PERROT,M.OsexcluídosdaHistória:operários,mulheres,prisioneiros.RiodeJaneiro:PazeTerra,1988,p.268.5VAINFAS,Ronaldo.(Org.).Cárcere.In:DicionáriodoBrasilcolonial(1500-1808).RiodeJaneiro:Objetiva,2000.6Idem.7BITENCOURT,CezarRoberto.Falênciadapenadeprisão:causasealternativas.3ª.ed.,SãoPaulo:Saraiva,2004,p.21-26.8BECCARIA,Cesare.Anessayoncrimesandpunishments(withacommentaryattributedtoMs.DeVoltaire).London,printedforJ.Almon,1767(downloadfeitonoGoogleBooks).

9MCGOWEN,R.TheWell-OrderedPrison:England,1780–1865.In:MORRIS,Norval;ROTHMAN,DavidJ.(Org.)TheOxfordhistoryoftheprison:ThePracticeofPunishimentinWesternSociety.NewYork,Oxford,OxfordPress,1998,p.78-80.

10Idem,p.86-88.11BITENCOURT,CezarRoberto.Falênciadapenadeprisão:causasealternativas.3.ed.,SãoPaulo,Saraiva,2004,p.58-63e70-79.12Idem,p.74-75;PERROT,op.cit.,p.302.13BITENCOURT,op.cit.,p.82-95.14Umabrevesíntesedahistóriadosistemapenitenciáriofrancês,organizadaemtrêsgrandesfasesaolongodoséculoXIX,podeser

encontradaemPERROT,op.cit.,p.262-266.15Relatóriofeitoemnomedacomissãoencarregadadeexaminaroprojectodeleisobreprisões,pelosr.deTocqueville.Tiradoem

linguagem,eofferecidoàComissãoincumbidadeexaminarasquestõesrelativasàcasadeprisãocomtrabalhodaBahia…eaoseuamigoosr.doutorBenevenutoAugustodeMagalhãesTaques,pelodr.JoãoJoséBarbozad’Oliveira.Bahia,Typ.DoMercantil,1846.

16PERROT,Michelle;ROBERT,Philippe.(Publiéetcommenté).CompteGénéraledeL’AdministrationdelaJusticeCriminelleenFrancePendantL’Année1880etRapportRelatifauxAnnées1826À1880.Genève,Paris:SlaktineReprints,1989,p.8.

17RUSCHE,Georg;KIRCHHEIMER,Otto.Puniçãoeestruturasocial.2ª.ed.ColeçãoPensamentoCriminológico.RiodeJaneiro:Revan,2004.

18LINEBAUGH,Peter.Crimeeindustrialização:aGrã-BretanhanoséculoXVIII.In:PINHEIRO,PauloSérgio(Org.).Crime,violênciaepoder,p.103-104.

19MELOSSI;PAVARINI,op.cit.20GOFFMAN,op.cit.21IGNATIEFF,Michael.Instituiçõestotaiseclassestrabalhadoras:umbalançocrítico.In:RevistaBrasileiradeHistória,n.14.SãoPaulo:

ANPUH/MarcoZero,1987,p.187.22FOUCAULT,op.cit.23ROTHMAN,David.TheDiscoveryoftheAsylum.SocialorderanddisorderinthenewRepublic.Boston:Little,Brown&Co.,1971.

ÉinteressantenotarqueRothman,comentandoaHistóriadaloucuradeFoucault,estabeleceocaminhodacríticahistoriográfica:“Históriadaloucuraéumatentativaidiossincrática,masfascinanteesugestiva,deexplicaraorigemdosasilosdeloucos.Foucault,noentanto,lidasócomideias,quasenuncaligando-asaoseventos.”p.XVII.Traduçãonossa.

24CONLEY,JohnA.L’HistoiredesPrisonsauxEtats-Unis:propositionpouruneméthodederecherche.In:PETIT,Jacques.LaPrison,leBagneetL’Histoire.Gèneve:LibrariedesMeridiens/MédicineetHygiène,1984,p.19.Traduçãonossa.

25Ibidem,p.20.26Ibidem,p.20.27Ibidem,p.20.28Ibidem,p.21.

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29IGNATIEFF,opcit.,p.187.30Ibidem,p.193.31GARLAND,David.PunishmentandModernSociety.Astudyinsocialtheory.Oxford:Clarendon,1990,p.7.32SPIERENBURG,Pieter.ThebodyandtheState:EarlyModernEurope.In:MORFRIS;ROTHMAN,op.cit.33SALLA,Fernando.AsprisõesdeSãoPaulo,1822–1940.SãoPaulo:Annablume,1999.34SALLA,Fernando.OTrabalhoPenal:umarevisãohistóricaeasperspectivasfrenteàsprivatizaçõesdasprisões.SãoPaulo:

Dissertaçãodemestrado.SãoPaulo:FFLCH/USP,1991.35PEDROSO,ReginaCélia.Ossignosdaopressão.Históriaeviolêncianasprisõesbrasileiras.SãoPaulo:ArquivodoEstado/

ImprensaOficialdoEstado,2003.36CANCELLI,Elizabeth.Carandiru.Aprisão,opsiquiatraeopreso.Brasília:EditoradaUnB,2005.37FOUCAULT,M.Microfísicadopoder.RiodeJaneiro:Graal,1979,p.129.38SILVA,MozartLinhares.DoImpériodaleiedastecnologiasdepuniràsgradesdacidade.Dissertaçãodemestrado.PortoAlegre,

PUCRS,1996.39AL-ALAM,CaiuáCardoso.Anegraforçadaprincesa:polícia,penademorteecorreçãoemPelotas(1830–1857).Dissertaçãode

mestrado.SãoLeopoldo:UNISINOS,2007.40PESAVENTO,Sandra.Visõesdocárcere.PortoAlegre:JEWEBEditoraDigital,2003.41ARAÚJO,CarlosEduardoMoreirade.Oduplocativeiro:escravidãourbanaeosistemaprisionalnoRiodeJaneiro,1790-1821.Riode

Janeiro:Dissertaçãodemestrado:UFRJ,2004.42FONSECA,PalomaSiqueira.Apresigangareal(1808-1831):puniçõesdaMarinha,exclusãoedistinçãosocial.Dissertaçãodemestrado.

Brasília:UNB,2003.43SANT’ANNA,MarileneAntunes.Deumlado,punir;deoutro,reformar:projetoseimpassesemtornodaimplantaçãodaCasade

CorreçãoedoHospíciodePedroIInoRiodeJaneiro.Dissertaçãodemestrado.RiodeJaneiro:UFRJ,2002.44BARRADAS,VirgíniaSenna.Modernosedesordenados.AdefiniçãodopúblicodaColôniaCorrecionaldeDoisRios(1890–1925).

Dissertaçãodemestrado.RiodeJaneiro,PPGHIS/UFRJ,2006.SANTOS,MyrianSepúlveda.Aprisãodosébrios,capoeirasevagabundosnoiníciodaerarepublicana.Topoi,v.5,nº.8,2004,p.138-169;OsporõesdaRepública:aColôniaCorrecional.Topoi,v.6,nº.13,2006,p.445-476.

45MARIZ,SilvianaFernandes.OficinadeSatanás:aCadeiaPúblicadeFortaleza(1850-1889).Dissertaçãodemestrado.Fortaleza:FaculdadedeHistória/UFC,2004.

46TRINDADE,CláudiadeMoraes.ACasadePrisãocomTrabalhodaBahia,1833-1865.Dissertaçãodemestrado.Salvador:UFBA,2007.

47SILVA,KarlaLealLuzdeSouzae.Aatuaçãodajustiçaedospolíticoscontraapráticadavadiagem:ascolôniascorrecionaisagrícolasemMinasGerais(1890-1940).Dissertaçãodemestrado.Viçosa:UFV,2006.

48PAIXÃO,AntônioLuiz.RecuperarouPunir?ComooEstadotrataocriminoso.SãoPaulo:Cortez,1987.49MENEZES,MozartVergettide.Prevenir,disciplinarecorrigir:asEscolasCorrecionaisnoRecife(1909–1929).Dissertaçãode

mestrado.Recife:CFCH/UFPE,1995.50MAIA,ClarissaNunes.Policiados:controleedisciplinadasclassespopularesnacidadedoRecife,1865–1915.TesedeDoutorado,Recife:

CFCH,UFPE,2001.51COSTA,MarcosPauloPedrosa.Ocaosressurgirádaordem:FernandodeNoronhaeareformaprisionalnoImpério.Dissertaçãode

mestrado.JoãoPessoa:CCHLA/FPB,2007.

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A

1–CÁRCEREESOCIEDADENAAMÉRICALATINA,1800-19401CarlosAguirre

sprisõessãomuitascoisasaomesmotempo:instituiçõesquerepresentamopodereaautoridadedo Estado; arenas de conflito, negociação e resistência; espaços para a criação de formassubalternasdesocializaçãoecultura;poderosossímbolosdemodernidade(ouaausênciadela);

artefatos culturais que representam as contradições e tensões que afetam as sociedades; empresaseconômicasquebuscammanufaturartantobensdeconsumocomoeficientestrabalhadores;centrosparaaprodução de distintos tipos de conhecimentos sobre as classes populares; e, finalmente, espaços ondeamplossegmentosdapopulaçãovivempartedesuasvidas,formamsuasvisõesdomundo,entrandoemnegociação e interação com outros indivíduos e com autoridades do Estado. Interessa-nos estudar asprisões pelo que nos dizem sobre elas mesmas – seus desenhos, seu funcionamento e seu lugar nasociedade – mas também pelo que dizem acerca de seus habitantes, acerca daqueles que exercemautoridade sobreestes (oEstado,osespecialistaspenais, entreoutros) e acercadasestruturas sociaisqueelasrefletem,reproduzemousubvertem.

EscreverahistóriadasprisõesnaAméricaLatinamodernanãoéumatarefafácil,poisestadeveráabarcar vários países que seguiram diferentes trajetórias sociopolíticas e distintos padrões dedesenvolvimento econômico, possuem diversas estruturas étnico-raciais e aplicaram variadosexperimentos como o castigo e o encarceramento. Estes últimos, por sua vez, são o resultado dasdiferenças na adaptação das doutrinas estrangeiras, no desenvolvimento de debates ideológicos epolíticosenasformassubalternasdeaçãoeresistência.Asdificuldadespararealizartaltarefasão,alémdisso, incrementadas se considerarmos o estado relativamente pouco desenvolvido da historiografiasobreasprisõesnaregião.Esteensaioresumeasconexõesentreahistóriadasprisõeseaevoluçãodassociedadeslatino-americanasentre1800e1940.Oobjetivocentraléoferecerumesquematentativodoscontornosgeraisdestahistória,focando-nosnasrelaçõesentreodesenhoeofuncionamentodasprisões,asformasinstitucionaisdecastigoimplementadas,osmecanismosdenegociaçãoeresistênciaadotadospelos presos e as formas específicas de relação entreEstado e sociedade que os regimes carceráriosrefletemerevelam.

Convém,contudo,fazerumesclarecimentonoiníciodesteensaio.Otermo“moderno/a”seráusadofrequentementeaonosreferirmosàssociedadeseprisõeslatino-americanasduranteoperíodoanalisado.Devemos entender este termo em duas acepções distintas. Primeiro, se trata de um uso meramentecronológico, dado que quase sempre se considera que o período “moderno” da história da AméricaLatinaéoqueseseguedofimdaépocacolonial(paraquasetodaaregião,excetoCubaePortoRico)aosprincípiosdoséculoXIX.Portanto,segundoestepontodevista,ocolonialismoeranecessariamentepré-moderno e a modernidade uma condição, ou uma possibilidade, associada exclusivamente aosEstados-Nação independentes.Porquestõespráticas, esteusodo termo“moderno” semanteráquandonosreferirmosàAméricaLatinapós-independência.Segundo,otermorefleteosobjetivos,asesperançaseaautopercepçãotantodaselitescomodosreformadoresdasprisõesnaAméricaLatina.Amodernidadeeraseuobjetivoúltimoe,aomesmotempo,amedidadosseusêxitose fracassos.Sermoderno,ouaomenosofereceraaparênciadesê-lo,eraaaspiraçãoquaseuniversaldaseliteslatino-americanas.Easprisões (quer dizer, as prisões modernas) foram imaginadas como parte desse projeto. Portanto,pareceria legítimo analisar a evolução das prisões à luz desses objetivos e projetos, ou seja, emcontrapontocomasaspiraçõesde“modernidade”queaseliteslatino-americanasproclamavamcomtanto

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orgulho.

Castigoeprisões:daeracolonialaosnovosEstados-Nação

Amaioriadospaísesdaregiãoconseguiusuaindependênciaduranteoperíodoentre1810e1825.2Depoisdaexpulsãodosregimescoloniaisespanholeportuguês,osnovospaísesindependentesiniciaramumprolongadoecomplicadoprocessodeformaçãodoEstadoedanaçãoque,namaioriadoscasos,foimoldado pelo contínuo contraponto entre os ideais importados do republicanismo, liberalismo e oimpério da lei, e a realidade de estruturas sociais racistas, autoritárias e excludentes. Em nome dosdireitos individuais promovidos pelo liberalismo, as elites crioulas que tomaram o poder do Estadoprivaramaspopulaçõesindígenasenegrasdaspequenas,masdemodoalguminsignificantes,vantagensquelhesofereciamcertasnormaslegaisepráticassociaisprotecionistasestabelecidasduranteoperíodocolonial.Detrásdafachadalegaldarepúblicadecidadãos,oqueexistiaeramsociedadesprofundamentehierárquicas e discriminatórias.A permanência da escravidão e de outras formas de controle laboral,racialesocial–apeonagem,otributoindígena,orecrutamentomilitarforçadoeasleisdevadiagem,para mencionar só algumas – contradizia flagrantemente o sistema de igualdade perante a lei e acidadania universal que a maioria das constituições da hispanoamérica prometiam.3 Dentro destecontexto, as prisões tiveram um papel importante, ainda que não necessariamente central, naimplementaçãodosmecanismosdedominaçãonoperíodopós-independência.

Durante o período colonial, as prisões e cárceres não constituíam espaços, instituições que seusvisitantesehóspedespudessemelogiarpelaorganização,segurança,higieneouefeitospositivossobreospresos. De fato, as cadeias não eram instituições demasiadamente importantes dentro dos esquemaspunitivosimplementadospelasautoridadescoloniais.Namaioriadoscasos,tratava-sedemeroslugaresde detenção para suspeitos que estavam sendo julgados ou para delinquentes já condenados queaguardavamaexecuçãodasentença.Osmecanismoscoloniaisdecastigoecontrolesocialnãoincluíamas prisões como um de seus principais elementos. O castigo, de fato, se aplicava muito maisfrequentemente pormeio de vários outrosmecanismos típicos das sociedades doAntigoRegime, taiscomo execuções públicas, marcas, açoites, trabalhos públicos ou desterros. Localizadas em edifíciosfétidose inseguros,amaioriadascadeiascoloniaisnãomantinhasequerumregistrodosdetentos,dasdatas de entrada e saída, da categoria dos delitos e sentenças. Vários tipos de centros de detençãoformavamumconjuntoalgodispersodeinstituiçõespunitivasedeconfinamento:cadeiasmunicipaisedeinquisição,postospoliciaisemilitares,casasreligiosasparamulheresabandonadas,centrosprivadosdedetenção como padarias e fábricas – onde escravos e delinquentes eram recolhidos e sujeitados atrabalhos forçados – ou cárceres privados em fazendas e plantações nos quais eram castigados ostrabalhadores indóceis. Ilhas como Juan Fernández, no Chile, San Juan de Ulúa, noMéxico, ou SanLorenzo,noPeru,epresídiossituadosemzonasdefronteiraeramtambémutilizadosparadeterecastigardelinquentes considerados altamente perigosos. Ainda assim, algumas cidades como México, Lima,Buenos Aires ou Rio de Janeiro podiam mostrar algum nível de organização na logística carcerária(incluindo regulamentos escritos e visitas à prisão levadas a cabo regularmente pelas autoridadescoloniais). Logo, o encarceramento de delinquentes durante o período colonial foi uma prática socialreguladamaispelocostumedoquepelalei,edestinadasimplesmenteaarmazenardetentos,semquesetenhaimplementadoumregimepunitivoinstitucionalquebuscasseareformadosdelinquentes.4

Duranteasguerrasdeindependênciaeoperíodoimediatamenteposterior,algunsdirigentespolíticosexpressaram críticas sobre as condições carcerárias coloniais que eram apresentadas como evidência

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doshorroresdocolonialismo.OgeneralJosédeSanMartín,porexemplo,visitouascadeiasdeLimapoucodepoisdeproclamaraIndependênciadoPerue,aoqueparece,ficouhorrorizadocomoqueviu.San Martín ordenou a liberdade imediata de alguns detentos e, pouco depois, aprovou medidaslegislativasquebuscavammelhorarascondiçõesdascadeias.Maisainda,fazendo-seecodasreformaspenaisemmarchanaEuropa,nessaépoca,anunciousuadecisãodetransformaresseslugares,“ondesesepultavam,sedesesperavamemorriamoshomenssoboanteriorgoverno”,emespaçosondeosdetentospodiamser convertidos“pormeiodeum trabalhoútil emoderado,dehomens imorais eviciosos, emcidadãos laboriosos e honrados”.5 Sem dúvida, este tipo de atitude não foi frequente, e as condiçõescarceráriasrarasvezesatraíamaatençãodoshomensdeEstadopós-independência.Algunsprometiamcorrigir as atrocidades aprovando medidas legais que buscavam implementar condições deencarceramentomaishumanasemaisseguras.Aretóricaliberal,republicanaederespeitoaoEstadodedireitoqueos líderesdestesnovosEstados independentesprofessavameraquase sempreneutralizadapordiscursosepráticasqueenfatizavamanecessidadedecontrolarasmassasindisciplinadaseimoraispor meio de mecanismos severos de punição. Formas extrajudiciais de castigo, assim como práticaspunitivastradicionalmenteaceitaspelalei,taiscomotrabalhospúblicos,execuções,açoitesedesterros,continuaramsendoutilizadasporváriasdécadasdepoisdofimdoperíodocolonial.6Sérias limitaçõeseconômicaseumasituaçãodeconstantedesordempolíticaimpediamamaioriadosEstadosdeembarcaremreformasinstitucionaisdeenvergadura.OsEstadoseram,simplesmente,demasiadodébeisefrágeis,easelitesestavamplenamenteconvencidasdafutilidadedoesforço,demodoqueeraquaseimpossívelqueexistisseamploapoioaqualquer iniciativaqueconduzisseàreformadasprisões.Apesarde tudo,algunsecosdosdebatespenaisnaEuropaenosEstadosUnidoscomeçaramaserouvidosnaAméricaLatina,enovasideiassobreocastigoeaprisãopassaramacircularemtornodadécadade1830.

Em princípios do século XIX, a penitenciária havia sido adotada como o modelo institucionalcarcerário por excelência na Europa e Estados Unidos. Ela constituía um novo padrão deencarceramento, que combinava umdesenho arquitetônicoad-hoc (inspirado no pan-óptico idealizadoporJeremyBentham),umarotinaaltamenteregimentadadetrabalhoeinstrução,umsistemadevigilânciapermanentesobreosdetidos,umtratamentosupostamentehumanitárioeoensinodareligiãoaospresos.7Omodelo penitenciário cativou a imaginação de um grupo relativamente pequeno de autoridades doEstadonaAméricaLatina,ansiosasporimitarpadrõessociaisdasmetrópolescomoumamaneiratantode abraçar a “modernidade” como de ensaiar mecanismos de controle “exitosos” sobre as massasindisciplinadas. A partir da década de 1830, os debates públicos começaram a mostrar certafamiliaridade comas reformaspenais emmarchanaEuropa eEstadosUnidos.8Damesma forma queoutros aspectos das sociedades latino-americanas, estas intervenções costumavam ressaltar o agudocontrasteentreoqueoscomentaristasilustradosviam(elhescausavavergonha)emseusprópriospaíseseos“êxitos”dasnações“civilizadas”na implementaçãodepolíticassociais,comoeraocasoda lutacontraodelitoeacriaçãoderegimescarceráriosmodernos.Estafascinaçãocomosmodelospunitivoseuropeusenorte-americanos,semdúvida,nãofoigeneralizada,aindaque,paraalgunsfuncionáriosdoEstado,areformaparecesseserumaboaideia.Estes,noentanto,nãosemostravammuitoansiososporinvestir fundos públicos e capital político na construção de edifícios e instituições, certamente caros,que, segundo pensavam, não seriam mais eficazes que as formas tradicionais e informais de castigoamplamente utilizadas nessa época. Os críticos ilustrados das formas de castigo existentes – açoites,grilhões, trabalhos públicos, cárceres privados e execuções ilegais – foramescassos, e suas vozes seperdiamemmeioaoutrosdebatesmaisurgentescomoafragmentação interna,asdivisõespolíticas,oatrasoeconômicoeasguerrascivis.Defato,asformastradicionaisdecastigoeramconsideradasmuitomaisapropriadasparaaclassedeindivíduosquesequeriacastigar:massasincivilizadasebárbaras,nãocidadãos ativos e ilustrados.Os debates sobre a implementação do sistema de jurados, por exemplo,refletiamoprofundoreceioqueaseliteslatino-americanassentiamdasmassasrurais,iletradasedecor,

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quasesemprepercebidas(incluindoaquelesreformadoresbem-intencionados)comobárbaras,ignoranteseincapazesde“civilizar-se”.

Apesardetudo,desdemeadosdoséculoXIXforamconstruídasalgumaspenitenciáriasmodernasnaregião,buscandoconseguirváriosobjetivossimultâneos:expandiraintervençãodoEstadonosesforçosde controle social; projetar uma imagem de modernidade geralmente concebida como a adoção demodelosestrangeiros;eliminaralgumasformasinfamesdecastigo;ofereceràselitesurbanasumamaiorsensaçãodesegurançae,ainda,possibilitaratransformaçãodedelinquentesemcidadãosobedientesdalei. Sem dúvida, a fundação destas penitenciárias não significou, necessariamente, que tais objetivostenham sido uma prioridade para as elites políticas e sociais. De fato, a construção de modernaspenitenciáriasfoiaexceção,nãoaregra,eseudestinonosofereceráevidênciasadicionaisdolugarmaismarginalqueocuparamdentrodosmecanismosgeraisdecontroleecastigo.

A primeira penitenciária na América Latina foi a Casa de Correção do Rio de Janeiro, cujaconstrução iniciou-se em1834, tendo sido concluída em1850.O tempoque se levoupara concluir oprojeto revela muito sobre as dificuldades financeiras e políticas que enfrentavam os primeirosreformadores das prisões.9 A construção da penitenciária de Santiago do Chile se iniciou em 1844,seguindoomodelocelularoudaFiladélfia,ecomeçouareceberdetentosem1847,massófuncionariaplenamente em 1856.10 O governo peruano iniciou a construção da penitenciária de Lima em 1856,seguindoomodelodeAuburnou “congregado”,11 ficandoo projeto terminado em1862. 12Mais duaspenitenciárias foram construídas na década seguinte: a de Quito, concluída em 1874, e a de BuenosAires,em1877.AlgunselementosmerecemserdestacadosnestaprimeirafasedereformacarcerárianaAméricaLatina.

Primeiro,odesenhoeosregulamentosdestaspenitenciáriasseguiam,invariavelmente,osmodelosdeinstituições similares nos Estados Unidos, ou seja, as penitenciárias de Auburn e Filadélfia. Váriosreformadores latino-americanos, semelhantemente aos seus colegas europeus, como Alexis deTocqueville, visitaram as prisões norte-americanas e logo participaram do desenho e construção daspenitenciárias em seus próprios países. Este grupo incluía o peruano Mariano Felipe Paz Soldán, ochileno Francisco Solano Astaburuaga e o mexicano Mucio Valdovinos. Estas penitenciárias foramconstruídas usando planos inspirados no “panóptico” de Bentham, ainda que não tenham seguido omodelo original com total fidelidade.No lugar do pavilhão circular comuma torre de observação aocentro, que teria permitido a vigilância constante e plena que Bentham projetou, estes edifíciosconsistiam em vários pavilhões retangulares com fileiras de celas em ambos os lados que partiamradialmentedeumpontocentral,emquesesituavamosgabinetesadministrativoseoobservatório.13

Segundo,aconstruçãodestaspenitenciárias,aindaqueseanunciassecomoumamudançaradicalnosesforços de cada Estado por controlar o delito e reformar os delinquentes, não foi seguida pelaimplementação de mudanças similares no resto do sistema carcerário de cada país. Durante váriasdécadas,de fato, cadaumadestaspenitenciárias representaria aúnica instituiçãopenal “moderna”emmeioaumarquipélagodecentrosdeconfinamentoquenão tinhamsidoalteradospor reformaalguma.Portanto,seuimpactofoibastantemodestoapesardasesperanças(sincerasounão)queosreformadoreshaviamposto nelas.Dado que cada uma destas penitenciárias podia abrigar apenas umas centenas dedetentos–entretrezentosequinhentosemmédia–oimpactodareformapenitenciáriasobreapopulaçãocarceráriatotalseria,certamente,limitado.

Terceiro, estas penitenciárias construídas prematuramente na América Latina enfrentaram sérios erecorrentesobstáculosfinanceiroseadministrativos.Ademais,foraminvariáveleseveramentecriticadaspornãocumpriremcomsuaspromessasdehigiene,tratohumanitárioaospresoseeficáciaparacombatero delito, bem como de regeneração dos delinquentes. A escassez de recursos era asfixiante, asuperlotaçãomalogrouoexperimento reformistadesdeocomeçoeamisturadedetentosdediferentes

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idades, condições legais, graus de periculosidade e, inclusive, sexos transformou-se em uma práticacomum.Os abusos contra os detentos desmentiam as promessas de trato humanitário, e as limitaçõeseconômicas impediam as autoridades de oferecer aos presos comida, assistênciamédica, educação etrabalho adequados. Apresentando condições mais seguras de confinamento, estas penitenciáriasimpunhamrotinasmais severas aospresose exerciamumníveldecontrole sobreestesque teria sidovirtualmente inimaginável nos cárceres preexistentes. Ainda assim, não conseguiam alcançar asexpectativasepromessasdequemashaviaconstruído.

Um elemento central no funcionamento destas penitenciárias foi a implementação de regimes detrabalho que, seguindo o modelo original, eram vistos como veículos para a regeneração dosdelinquentes e como fonte de receita que ajudaria a financiar os altos custos de manutenção destasinstituições.Otrabalhodospresosnãoestavaausentenasprisõesquenãohaviamsidoreformadas,maserausualmenterealizadodemaneirainformaleesporádica.Aspenitenciáriasincluíamexplicitamenteemseuprojetootrabalhodospresoscomoumelementocentraldaterapiapunitiva.Implementaram-se,porexemplo,oficinasdesapateiros,carpintaria, tipografiaentreoutrasatividades,àsvezessobocontrolediretodasautoridadesdaprisão,àsvezessobaadministraçãodeconcessionáriosprivados.Otrabalho,de fato, se converteuemumdoselementosmaisdistintivosdavidacotidianadentrodestasprisões, emuitosdetentosviamcombonsolhosaoportunidadedeganharalgumdinheiro,enquantoasautoridadeseos empresários privados se beneficiavam da mão de obra barata que eles representavam. Dada suaimportância,o trabalhocarcerário tornou-seumelementocentralnasnegociaçõesem tornodas regrasinternasdaprisãoenos limitesdepoderno interiordosgruposdepresos,bemcomoentreesteseasautoridadeseguardasdaprisão.

Nabasedoidealpenitenciário,talcomofoiconcebidonaEuropaeEstadosUnidos,estavaanoçãodequeosdelinquenteseram recuperáveis,quea sociedade tinhaumadívidacomeles (reconhecendo,portanto,aresponsabilidadedosfatoressociaisportrásdocometimentodedelitos),equeareformadoscriminososeraamelhormaneiradereintegrá-losàsociedadecomocidadãoslaboriososerespeitadoresdalei.Maisainda,aspenitenciáriasforamimaginadasnoOcidentecomoelementosintrínsecosàordemliberal e capitalista. O tempo dentro da prisão se concebia não só como uma forma de ressarcir asociedadeporumdelitocometido,mastambémcomoummeiode inculcarnosdetentoscertosvalorescongruentescomaordemcapitalistaeliberal.Comosustentaramdiversosautores,asformasmodernasde castigo tiveram um papel decisivo no desenvolvimento dos regimes democrático-liberais: apenitenciária foi, paradoxalmente, um componente central dos sistemas de liberdade e democraciaimplementados nas sociedades ocidentais desde princípios do século XIX.14 Na retórica dosreformadores latino-americanos, a penitenciária ocuparia um lugar similar no processo de construirsociedades liberais e democráticas, e eles pareciamconvencidos de que as prisõesmodernas podiamconverter-seem“laboratóriosdevirtude”nosquaisasmassasindisciplinadasseriamtreinadasparasetornaremcidadãoscumpridoresda leinasmodernas repúblicas.Estas expectativas,noentanto, seriamamplamente questionadas pela supremacia de modelos sociais que divergiam drasticamente dessesideais. Não se trata apenas do fato de que as penitenciárias fracassaram no cumprimento de suaspromessasdetratamentohumanoesimque,realmente,foramutilizadasparasustentarumaordememqueaexclusãopolíticaesocialdeamplossetoresdapopulaçãoseconverteuemumdeseusbaluartes.Emtalsentido,aspenitenciáriaslatino-americanassimbolizaramasambiguidadeseaslimitaçõesdosprojetosliberaisoitocentistas.

O liberalismonaAméricaLatina foi,comosabemos,a ideologiahegemônicadosEstadoscrioulo-mestiçosque,empaísescomoMéxicoouPeru,serviuparasustentarregimessociopolíticosautoritárioseexcludentes que privavam a maioria das populações indígenas e rurais dos direitos de cidadaniafundamentais.15EmpaísescomoChileouArgentina,aspráticasedireitosassociadoscomoliberalismo(liberdade de imprensa, direito ao voto, igualdade perante a lei, entre outros) estiveram restritos às

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populaçõesurbanas.Aimplementaçãodeformasbrutaisdeexclusãoeconômicaesocial,poroutrolado,produziuoextermíniodaspopulaçõesindígenasnosterritóriossulinosearepressãocontraosgaúchoseoutrossetoresrurais.NoBrasil,apermanênciatantodaescravidãocomodamonarquiaimpedia,quasepordefinição,aimplementaçãoderegimespunitivosquevisavamàformaçãodecidadãosvirtuosos.Emtodosestescasos, estruturas sociaise raciaisaltamenteestratificadasconstituíamopanode fundodastentativasporimplementarareformapenitenciária.Ospotenciaisbeneficiáriosdetalreforma,aofinal,eramvistos comoseres inferiores,bárbarose irrecuperáveis,nãocomo futuroscidadãoscomdireitoscivisiguaisaosdaquelesquepertenciamaosestratossociaissuperiores.OqueatraiuasautoridadesdoEstado para o modelo penitenciário não foi a promessa de recuperar os criminosos por meio demecanismos humanitários, e sim a possibilidade, muito mais tangível e realizável, de reforçar osmecanismos de controle e encarceramento já existentes. Essa foi, de fato, a maneira pela qual asautoridadesdoEstadoconcebiam,geralmente,a“modernidade”deseusprojetossociais.16

Aindaquetenhamsidoprojetossumamentecustososerecebidos,emcertoscírculos,comograndesconquistas sociais, nãonos esqueçamosdequeos casosmencionadosde construçãodepenitenciáriasdurante este período foram a exceção de uma trama de métodos tradicionais de castigo socialmenteaceitos.Ao lado destasmodernas penitenciárias, existia toda uma rede de cárceres “pré-modernos” einstituições privadas (incluindo algumas emmãos de ordens religiosas) que abrigavam amaioria dosdetentosondeeracorrenteousodeformasdecastigotradicionais.Deigualimportânciaéofatodequeaspráticaslegaisexistentesrepresentavamumsérioobstáculoparaaimplementaçãodeformasmodernasde punição.O devido processo (due process) era uma quimera. Osmembros das classes subalternascareciamdeproteção legal, seuacessoà representaçãoerabastantedeficiente,acorrupçãoeoabusoeramrecorrentesemtodasasinstânciasdoprocesso–desdeaprisãoatéoencarceramento–egrandepartedasredescarceráriasdestespaísespermaneciaàmargemdaregulamentaçãodoEstado,inclusive,completamenteforadesuaesferadeatenção.Oexercícioprivadoearbitráriodajustiça,assimcomoocastigo permaneceram, desde a segunda metade do século XIX, como componentes essenciais dosmecanismosdecontrolesocial.

Alémdapenitenciária

Aindaqueomodelopenitenciáriotenhacontinuadoaatrairointeressedasautoridadesnesteseemoutros países durante várias décadas,17 predominou entre os reformadores penais e as autoridades doEstadode finsdoséculoXIXumaatitudequecombinavapessimismocomumaespéciede resignaçãopragmática.Emvirtudedoqueseviacomoumfracassoemimporumaverdadeiradisciplinacarceráriasobreosdetentos,amaioriadoscomentaristasdemandavanãoummodelopunitivomaistolerante,esimummaisenérgico.Écertoquesemprehouveumgrupodeescritoresacadêmicos(médicos,advogados,criminólogos)quecriticavamoestadodascadeiasesugeriammudanças,masexistiamuitopoucoímpetodepartedasautoridadesdoEstadoparaembarcaremreformasambiciosasecustosas.Aintroduçãodenovas doutrinas penais e criminológicas estrangeiras depois de 1870 – omodelo do reformatório e acriminologia positivista, por exemplo – gerou intensos debates legais e acadêmicos assim como umaextensaliteratura,masmuitopoucasmudançasemelhoriasnossistemascarceráriosdessespaíses.Comfrequência,aprovavam-seleisqueordenavamaconstruçãodenovasedificaçõesouomelhoramentodasjá existentes, mas, na maioria dos casos, aqueles projetos ficaram inacabados. O recurso às formastradicionais de castigo continuava a ser muito utilizado, tal como denunciavam comentaristasescandalizados como viajantes, jornalistas e os próprios presos. Por vezes, torna-se tedioso ler asrepetidasdescriçõesdecárceresinfamescomoGuadalupe,emLima,Belém,naCidadedoMéxico,ouaCadeiaPúblicadeSantiagodoChile, onde a superlotação, as péssimas condições sanitárias e o trato

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despótico que os presos recebiam se combinavam com a total indiferença do Estado em relação àpopulaçãocarcerária.18

Nestecontexto,osistemacarceráriooperavacomoummecanismoinstitucionalmaispelofatodequeodesejodaselitesdeabraçara“modernidade”seviaacompanhado(esubvertido)porsuavontadedemanterformasarcaicasdecontrolesocial,racialelaboral.Porumlado,sepoderiadizerqueascadeiasserviamsomenteparasatisfazeranecessidadedemantersobcustódiasuspeitosedelinquentes,demodoqueasclassesdecentesdasociedadepudessemsesentirseguras;poroutrolado,ascadeiasreproduziame reforçavam a natureza autoritária e excludente destas sociedades, convertendo-se em peças de umesqueletomaiororientadoamanteraordemsocial.

Aindaquetudoissoseja inegável,opapeldasprisõesdentrodosdiversosprojetossociaisqueseestavam implementando na América Latina (liberalismo autoritário, integração ao mercado mundial,desenvolvimentodaseconomiasdeexportação, fortalecimentodaexclusãodaspopulações indígenasenegrasepromoçãodaimigraçãoeuropeiapara“branquear”apopulação)erabemmaismarginal.Comopodemosexplicaristo?Fundamentalmente,porqueaseliteseosEstadosqueelascontrolavamtinhamàsuadisposiçãooutrosmecanismosparaassegurarareproduçãodaordemsocial.Oencarceramentofoium componente relativamente pouco importante dentro das estruturas de poder damaioria dos paíseslatino-americanos durante a segundametade do séculoXIX, como podemos ilustrar com os casos doMéxicoeBrasil.

OMéxico havia alcançado um nível importante de estabilidade política desdemeados do séculoXIX,aomenosemcomparaçãocomascaóticasdécadasque seguirama independência.Umasériederegimes liberais impulsionou os processos confluentes de secularização, institucionalização,desenvolvimentoeconômicoeextensãodedireitoscivisasegmentosimportantesdesuapopulação.Aomesmotempo,estemesmoprocessodeconsolidaçãodoEstadoliberalabriucaminhoparaacontinuaçãoe o fortalecimento de formas de exploração econômica e controle do trabalho (peonagem por dívida,expropriaçãodeterras,servidão)queafetavamgrandessetoresdaspopulaçõesruraleindígena.Depoisde 1876, a ordem política liberal foimudada pela imposição da longa ditadura de PorfirioDíaz quedurariaaté1911.Semdúvida,asmedidaseconômicasdecorteliberal–incluindooataqueàpropriedadecomunalda terra, aaberturadopaísao investimentoestrangeiroeodesenvolvimentodaeconomiadeexportação–forammantidase,ainda,reforçadasdecisivamenteporformasbrutaisdecontrolesocialelaboralquetinhamcomovítimasaspopulaçõesruraiseindígenas.Ocrescenteníveldecontrolepolicialnas zonas rurais, por exemplo, ajudou a consolidar um sistema de servidão quase feudal no qual asclasses latifundiárias exerciam um domínio praticamente sem limite sobre sua força de trabalho.19Enquantooporfiriato20proclamavasuamodernidadeinvestindonaconstruçãodeferroviasnointeriordopaís,bulevareseteatrosnacapital,consolidava,aomesmotempo,estruturaslaboraisesociaistípicasdoAntigo Regime. Neste contexto, haviamuito pouco ímpeto para fazer avançar a reforma das prisões.DuranteamaiorpartedoséculoXIX,defato,osistemacarceráriomexicano–simbolizadopelaprisãodeBelém,naCidadedoMéxico–manteve-setãoarruinadoeabusivocomohaviasidoduranteaépocacolonial.21 Em lugar de aspirar a uma reforma carcerária, as elites mexicanas lançaram mão demecanismospunitivosopressivos,taiscomootransportedeladrõesparaoValeNacional,noestadodeOaxaca,ondeeramentreguescomomãodeobraforçadaaosfazendeiros.Dali,segundoostestemunhos,jamaisregressariam.22Adramáticaexpansãodosistemadepeonagempordívida,comseusingredientespunitivoseeconômicos,exemplificaasconexõesentreoprojetoporfiristademodernizaçãoeasformas“pré-modernas”decontrolesocialelaboralcomoaservidão,oenganche23eodesterro.

OBrasil,porseu lado,haviaalcançadoa independênciaem1822,masmanteve tantoamonarquiacomoaescravidão.Aindaqueosreformadoresdeviésliberaltenhampodidoimplementarumasériedemedidas tendentes a criar um sistema judicial moderno, estas tiveram um impacto limitado em uma

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sociedadeorganizadaemfunçãodedrásticasdivisõessociolegais(livresxescravos)eraciais(brancosxnegros).Osmétodospoliciaisepunitivos,comováriosestudiososenfatizaram,objetivavam,sobretudo,garantir a manutenção da ordem social, laboral e racial da qual a escravidão constituía o elementocentral.Osmétodoseestatísticasdeperseguiçãopolicialedetençõesemáreasdeproduçãodecaféeaçúcar,porexemplo,refletiamanecessidadedegarantiraforçadetrabalhoeocontrolesocialsobreaspopulações negras escravas e livres. As prisões e o castigo foram usados, neste contexto,fundamentalmente para promover a continuação do trabalho escravo orientado à economia deexportação.24Umreformadordasprisõesculpoua“escravocracia”pelalentidãonoprocessodereformacarcerária naBahia, onde a correçãoprivada imposta aos escravos e outros trabalhadores continuavasendoaformapunitivapreferidatantoporautoridadescomopelosproprietáriosdeescravos.25

Conformeaescravidãoe,portanto,oexercícioprivadodopodercomeçavaadeclinar,eaansiedadeem relação ao controle social se tornava mais aguda, as condições pouco desenvolvidas do sistemacarcerário brasileiro obrigaram o Estado a buscar alternativas para enfrentar o crescente número dedelinquentes, oferecer ummínimo de segurança às classes proprietárias urbanas e impormecanismosestritos de controle sobre as populações negras livres.A solução foi empregar o Exército como umainstituiçãopenal;defato,esteseconverteunomaiorinstrumentopunitivoparaosdelinquentesnoBrasilduranteasegundametadedoséculoXIX.Milharesdesuspeitos,majoritariamentepobresenegros,foramrecrutados à força, utilizando-se a conscrição como mecanismo de castigo. Estes suspeitos eramrecrutados por encontrarem-se, supostamente, fora da lei – ainda que, como é evidente, nenhumaautoridadejudicialoshouvessecondenado,eelesnãotivessemodireitoderefutartaisacusações.Emoutros casos, os juízes, de maneira “legal”, encaminhavam os suspeitos de haver cometido delitosmenoresparaservirnoExército.

O subdesenvolvido sistema penal brasileiro levou as autoridades a depender do Exército comoinstituiçãodejustiçapenal”,observaPeterBeattie,acrescentandoque“otamanhodoExércitobrasileiro,sua participação nos objetivos nacionais, e seu papel proeminente nomanejo da violência legitimadapelogovernooconverteramnoprincipalenlaceinstitucionalentreoEstadoeosubmundo‘criminoso’”.26

Enquanto,emseumomentodemáximacapacidade,osistemacarceráriocomoumtodoalojavacercade 10mil indivíduos, o Exército recrutava entre 8mil e 12mil homens e adolescentes considerados“delinquentes”.Logo,oExércitotinhaaseucargoaomenostantos“delinquentes”quantoosistemapenalbrasileiro.Nãoédesurpreender.Poristo,aseliteseasautoridadesestataisbrasileirasmostravamtãopouco entusiasmo por reformar sua rede de instituições carcerárias. Uma estrutura social em que aescravidãoemaisadianteocoronelismoeramasformasdominantesdeexercíciodopodernãoofereciamuitaspossibilidadesde implementarreformascarceráriasquehaviamsido imaginadascomopartedeprojetosdeorganizaçãosocialmuitodiferentes.27

Prisõeseoutroscentrosdeconfinamentoparamulheres

Talvez a única inovação implementada nos países latinoamericanos durante a segunda metade doséculoXIXtenhasidoaaberturadeprisõesecasasdecorreçãoparamulheres.Emgeral,aspresaseramdetidasemcárceresconcebidosespecialmenteparahomens,oquecriavacomplicaçõesevidentesparaos administradores e gerava um sem número de abusos e problemas para as próprias mulheres. Ainiciativadecriarcentrosdedetenção femininosnãoprovinha,geralmente,dasautoridadesdoEstado

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nemdos reformadoresdasprisões,masdegrupos filantrópicose religiosos.As irmãsdoBomPastor,congregação que havia sido muito ativa na administração de prisões de mulheres em países como oCanadáeaFrança,começaramaadministrartaiscasasdecorreçãoemSantiagodoChile(1857),Lima(1871)eBuenosAires(1880).Nistoreceberamoapoioentusiastadosrespectivosgovernos,ávidosporreduzir algumas das tensões que existiam dentro das prisões e por livrar-se da responsabilidade deconstruir e administrar instituições de confinamento só para mulheres. As noções mais aceitas sobrecomotratarasmulheresdelinquentes influíramtambémnestasdecisões:segundotais interpretações,asmulheres criminosas necessitavam, para se regenerar, nem tanto de uma estrutura rígida emilitarizada(comoaquelaque,supostamente,existianaspenitenciáriasdehomens)esimdeumambienteamorosoematernal.Como sugereLilaCaimari, elas “erampercebidas comodelinquentesocasionais, vítimasdaprópria debilidade moral, que resultava, em geral, da irracionalidade e falta de inteligência”.28 ÉreveladorqueosdebatesdemeadosdoséculoXIX,queconduziramàconstruçãodepenitenciárias,ouasdiscussõessobreacriminalidade, inspiradaspelacriminologiapositivistaapartirdadécadade1870,não levaram em conta seriamente o caso das mulheres criminosas e seu encarceramento. Os índicesgeralmentebaixosdecriminalidadeedetençãodemulheresparecemhaverconvencidoosreformadoresdasprisõeseoscriminólogosdequenãohavianecessidadedesepreocuparemcomotema.

O Estado não se interessou pela questão das instituições de detenção para mulheres. Estasfuncionavam como entidades semiautônomas não sujeitas à regulação ou supervisão estatal, violandoclaramente a lei, ao permitirem a reclusão de mulheres sem um mandato judicial. Apesar dosintermitentesprotestosdepartedasvítimasdessasdetenções, seus familiares, ou algunsobservadoresindependentes,amaioriadas instituiçõesdeconfinamentocontinuou funcionandoàmargemdosistemacarcerárioformal.Taisinstituições,quepodemoschamargenericamentecasasdedepósito,incluíamnãosó prisões para mulheres julgadas ou sentenciadas, mas também casas correcionais que abrigavamesposas,filhas,irmãsecriadasdehomensdeclassemédiaealtaquebuscavamcastigá-lasouadmoestá-las.29 Regras de conduta estritas e hierárquicas governavam a relação entre monjas e detentas, asprimeirasprocurandosempreevitarqueasmulheresalireclusasvoltassemaomundoexterno,tendodeenfrentartodotipoderiscosedesafios.Anoçãodequeo“caráterfeminino”eramaisdébilqueodoshomens,eaideiadequeasmulheresnecessitavamdeproteçãocontraastentaçõeseameaçasmundanasestavammuitoarraigadasentreasautoridadesestataisereligiosas.

Asprisõesecasasdecorreçãodemulheresseguiavampelomodelodacasa-convento:asdetentaseramtratadascomosefossemirmãsdesgarradasquenecessitavamnãodeumcastigosevero,masdeumcuidadoamorosoebonsexemplos.Aoraçãoeosafazeresdomésticoseramconsideradosfundamentaisno processo de recuperação das delinquentes. As detentas eram obrigadas a trabalhar em tarefas“próprias” de seu sexo (costurar, lavar, cozinhar) e, quando se considerava apropriado, levavam-naspara trabalhar como empregadas domésticas nas casas de famílias decentes, com a finalidade decompletarsua“recuperação”sobasupervisãodospatrões.30

Ainda que houvesse vozes que se opuseram ao fato de o Estado ceder sua autoridade às ordensreligiosas,amaioriadasmulheresdetidascumpriuasentençasobocontroleeaorientaçãomoraldasirmãsreligiosas.Nadécadade1920,poucoapouco,oEstadopassariaaexercerumamaiorautoridadesobreasmulherespresas,mas, aindaassim,emalgumasocasiões, asprisõesestatais femininas forampostassobaadministraçãodeordensreligiosas.Adiscussãosobre“aquemestascriminosaspertencem”(parausarafrasedeLilaCaimari)continuariaatéboapartedoséculoXX.

Aeradapenologiacientífica

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NoiníciodoséculoXX,algumasmudançasimportantesnomodelo,administraçãoefuncionamentodasprisõescomeçaramaseimplementaremváriospaísesdaAméricaLatina,todosdeumamaneiraououtraconectadoscomacrescente incorporaçãodaregiãoàeconomia internacionaleadecisiva,aindaque ambígua, marcha para uma modernização capitalista. Ao final deste século, as últimas colôniasespanholas(CubaePortoRico)haviamalcançadoaindependência(aindaquesóparaseconverterememterritórios sob o controle dosEstadosUnidos).Nomesmoperíodo, as últimas sociedades escravistas(CubaeBrasil)haviamabolidoaescravidão,easeconomiasdeexportaçãofloresciamdesdeoMéxicoe a América Central até o Chile e a Argentina. Estes processos tiveram visíveis efeitos sobre odesenvolvimentoeconômico,asrelaçõesdetrabalho,aurbanização,bemcomosobreamigraçãointernae internacional nos países da América Latina. As elites pareciam muito otimistas com relação àpossibilidade de transformar suas sociedades em países modernos e civilizados, todavia, tinham deresolveroquepercebiamcomoumobstáculoimportante:apresençadeamplossegmentosdapopulaçãoqueviviamforadalei,queresistiamaaceitaroconviteacomportarsedeumamaneira“civilizada”enãose integravam ao rápido avanço exportador e capitalista em marcha. Além disso, a maioria destespossuíaapeleescura,oqueaumentavaapreocupaçãodaseliteseuropeizantesemcuja imaginaçãosóuma população mais “branca” poderia conduzir o país para a civilização. O que fazer com aquelaspopulações–sedeviamounãoserincluídascomopartedacomunidadenacional–foiaquestãocentralqueintelectuaiseautoridadesdoEstadodebateram,conformeoséculoXIXseaproximavadofim.31

Acriminologia, comonovo terrenode investigaçãocientífica, começoua florescernamaioriadospaísesdaAméricaLatinaprecisamentenestaconjuntura,nadécadade1880.Anovaciência–importadada Europa – prometia trazer explicações e soluções para as condutas criminosas. Além disso, comosugeriuRobertBuffingtondemaneiraconvincenteparaocasodoMéxico,restabeleciaquestõescentraisrelacionadas com os debates sobre nacionalidade e cidadania.32 As noções lombrosianas sobre o“criminoso nato” foram amplamente discutidas e geralmente rechaçadas, porém outros postulados dacriminologiapositivista–aconexãoentreodelitoearaça,aherançaeasdoençasmentais,porexemplo– foram recebidos demaneiramais favorável pelos criminólogos latino-americanos de fins do séculoXIX.Talcomodemonstraramváriosestudos,amaneiracomooscriminólogosconceberamasrelaçõesentreodelitoea raçaemsuasanálisessobreacriminalidaderefletiae,àsvezes, reproduziaanoçãobastante equivocadadequeosnão-brancos erammaispropensos a cometerdelitos emaisdifíceisderecuperarqueosbrancos.33

Umadasformulaçõesmaisrecorrentespropostaspeloscriminólogoslatino-americanos–importada,umavezmais,dosdebateseuropeus–foiachamada“questãosocial”,umconceitoqueabarca–elhesdavaumsentidoderadicalurgência–diversosproblemastaiscomoacriminalidadeurbana,asdoençaseepidemias,apobrezaeodescontentamentosocialepolítico,osquaisameaçavam,napercepçãodaselites, a integridade da nação e a continuidade do crescimento econômico. Estas supostas ameaçastrouxeram para o primeiro plano as discussões sobre delito, desordem social e castigo, em quepredominavaadoutrinapositivista, recentemente importadadaEuropae amplamenteaceitanosmeiosintelectuais,legaisecientíficosnamaioriadospaíseslatino-americanos.OpositivismotambémcontavacomasimpatiadamaiorpartedosreformadoresdeprisõeseautoridadesdoEstadoe,defato,foiusadocomofontedoutrináriaemregimessociopolíticosmuitodiferentes,oqueressaltaseucaráterambíguoeadaptabilidade. Governos tão distintos como o porfiriato no México (1876–1911), o oncenio34 deAugustoLeguíanoPeru (1919–1930),asdemocraciasparlamentaristas restritasdecomeçosdoséculoXXnaArgentinaeChile,aditadurapró-norte-americanadeMachadoemCuba,comotambémoEstadopós-revolucionárionoMéxicotomaramemprestadodopositivismoideiasarespeitodagovernabilidade,daadministraçãodaspopulações,daeducação,dapromoçãodediversaspolíticasde tipo racial eosesforços para controlar o delito.35 As políticas de Estado, influenciadas pelo positivismo,compartilhavam, entre outras coisas, um mesmo impulso para a busca de soluções científicas aos

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problemas sociais, uma férrea confiança na superioridade dos modelos ocidentais e, de modo maisambíguo,umacrençananaturezahierárquicadasdivisõesraciais.Asleisecó-digosdediversospaísescomeçaramaincorporarospostuladosdopositivismopenal–porexemplo,asentençaindeterminada,anoçãode“periculosidade”eotratamentoindividualizadodocriminoso–sebemque,nemsempre,eramaplicados consistentemente na prática jurídica.36 A linguagem e a forma de diagnósticos médicoscomeçaram a ser usadas amplamente tanto nos debates acadêmicos como nas práticas do Estado –incluindo,nãoapenasosistemadejustiçacriminal,comotambémaeducação,asaúdeeasinstituiçõesmilitares,paramencionaralgumasáreasdeintervençãodoEstado–aopontodealgunsestudiososteremfaladodaemergênciadeum“Estadomédico-legal”.37

Entre1900e1930,acriminologiaeapenologiacientíficastiveramseuapogeunaAméricaLatina.Aciênciae,deformaproeminente,amedicinacomeçaramaexercerumagrandeinfluêncianoprojetodosregimes carcerários, na implementação de terapias punitivas e na avaliação da conduta dos presos.Revistasmédicasecriminológicas, tesesuniversitárias,conferênciasinternacionaise,especialmente,aimplementaçãodegabinetesdeinvestigaçãodentrodasprisõesofereciamaimagemdeelitesávidasporestudar o “problema social” do delito e por colocar em prática soluções que, embora produzidas emnomeda ciência, se esperava seremaceitas pela sociedade comoum todo.A criminologia positivistateve um visível, ainda que de todas asmaneiras ambíguo, impacto sobre os sistemas carcerários emváriospaísesdaregião.Destacam-secomoexemplosdestasmudançasaspenitenciáriasdeBuenosAirese de São Paulo (logo rebatizada como “Instituto de Regeneração”). A primeira, sob a liderança dosrenomadoscriminólogosAntonioBallvéeJoséIngenieros,transformou-seemumimensolaboratóriodeinvestigação em que especialistas emmedicina, saúde pública, psiquiatria, antropologia, psicologia ecriminologialevaramacaboinvestigações,produzindoumnúmeroimportantedeestudosqueoferecerampercepçõesvaliosasnãosósobreacriminalidade,comotambémsobreumaamplavariedadedetemassociais.Opositivismoguiavaestesesforços.ComoobservaRicardoSalvatore,“opositivismoproveuaselitesdominantesdosespaçosinstitucionais,dastecnologiasdepoderedaretóricadequenecessitavampara exercitar o poder de maneira mais efetiva no período de transição para uma república maisdemocrática”.Dentrodesseesquema,apenitenciáriadeBuenosAirese,maisprecisamente,seuInstitutodeCriminologiadesempenhariamumpapeldecisivo.38NoBrasil,oInstitutodeRegeneração,fundadoem1914, já na completa remodelaçãoda penitenciária deSãoPaulo, desempenhouumpapel similar.Nointerior de seudescomunal edifício, que seguiamais oumenosomodelo arquitetônicodopan-óptico,existiaumprestigiadoinstitutoantropométriconoqualselevavaacaboinvestigaçãocientíficausandoospresos como objeto de pesquisa. Para os criminólogos e especialistas penais da América Latina, oInstituto deRegeneração era tantomotivo de inveja como de orgulho.39 Laboratórios ou gabinetes deinvestigaçãosimilaresforamcriadosemváriasprisõesdaregião.40

Estas e outras prisões, portanto, se converteram em algo mais do que depósitos de detentos e(supostamente) centros de arrependimento e recuperação: foram, além disso, local de produção deconhecimento sobre esses mesmos detentos. Os presos eram constantemente visitados por médicos,psiquiatras e antropólogos que buscavam matéria-prima que lhes oferecesse interpretações sobre oscriminososea“questãosocial”.OsestudospioneirosdecriminologiarealizadosporJulioGuerreroeCarlosRoumagnac,noMéxico,NinaRodrigues,noBrasil,FernandoOrtizeIsraelCastellanos,emCuba,e Abraham Rodríguez, no Peru, estiveram baseados em investigações realizadas dentro das prisões.Ainda que os resultados dessas investigações nem sempre fossem originais, cientificamente rigorosos(inclusive pelos padrões da época) ou particularmente relevantes, a produção de conhecimento nelasbaseadateveumimpactonotávelsobreamaneiracomoaselitessociaisepolíticaspercebiama“questãosocial” e tratavam de enfrentar os desafios que a modernização apresentava a suas estratégias degovernabilidade.Aindaquesejadifícilresumiradiferenteproduçãodestesinvestigadoresque,porsuavez, refletiam a variedade de seus próprios contextos sociais, políticos, culturais e raciais, há alguns

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elementos comunsqueemergemdos trabalhos:1) sustentavam,comdiferentesgrausde ênfase,queascondutas criminais se explicavam por uma combinação de fatores biológicos, culturais e sociais; 2)identificavam grupos específicos de indivíduos que eram considerados “perigosos”, quando não“criminosos natos”, em geral, pobres, sem estudo e não brancos; 3) consideravam doutrinas políticascomooanarquismoeosocialismofontesperigosasdedesordemeviolênciae,portanto,causapotencialde condutas criminosas; 4) ofereciam soluções ao delito e à questão social que incluíam formasmaisenérgicas de intervenção do Estado, tais como educação compulsória, reformas urbanísticas e váriaspropostaseugênicas;5)muitospostulavamqueaassimilaçãodaspopulaçõesindígenasenegras,enãoseu extermínio (como sustentavamas teorias evolucionistas) erao caminhodesejadopara se chegar acomunidades nacionais mais inclusivas – ainda que organizadas hierarquicamente. Levando em contaseus aportes, que iam desde estudos sobre o delito até a formulação de ambiciosas propostas deengenhariasocialeconstruçãodanação,otrabalhodosinvestigadorespositivistasfoi,possivelmente,acontribuiçãomaisimportantedestaeradapenologiacientíficanaAméricaLatina.

Esta época também produziu – quem sabe pela última vez – um período de relativo otimismo naimplementação de reformas carcerárias. A ideia de “recuperação” do criminoso como o principalobjetivodareformafoidealgummodoalteradapeloafãdetransformarasprisõeseminstituiçõesbemadministradas. Em outras palavras, a “reforma das prisões” fez passar a um segundo plano – semsuprimi-la completamente – a “reforma dos presos” como o principal objetivo dos penologistas. Ootimismopareceter-seoriginado,sobretudo,naconfiançaqueosfuncionários tinhamnahabilidadedoEstado para implementar efetivamente suas propostas.A crença no poder da ciência, tanto para gerarconhecimentocomoparaproporsoluçõesaumasériedeproblemassociais, inclusiveacriminalidade,alimentavaaspolíticasdeEstadosqueeram,porsuavez,maisfortesetinhammaisrecursosqueantes.UmdoslegadosmaisimportantesdestaeradapenologiacientíficafoiacrescenteintervençãodoEstadonavidacotidianadospresos,talcomoocorreutambémnavidadosgrupossubalternosemgeral.

Aimplementaçãodelaboratóriosdeinvestigaçãodentrodasprisões,defato,seconcebeucomopartedeumambiciosopacotequeincluía,entreoutrasreformas,aconstruçãodeummaiornúmerodeprisõesede estabelecimentos carcerários mais extensos, a criação de oficinas para a constante avaliação dospresos e a centralização da administração das cadeias sob uma só agência estatal. Técnicas deidentificaçãoedocumentação(comoousodefotografia,cartõesdeidentificação,cadernosbiográficosemétodos datiloscópicos) foram amplamente implementadas a partir da década de 1880.41 O métodoVucetichresumebemosêxitoseesperançasdestaeradeprogressocientíficoetecnológiconomododecontroledodelito.JuanVucetich,imigrantecroatanaArgentina,foioprimeiroadesenvolverumsistemade identificação, classificação e arquivo, baseado nas impressões digitais, que tomou o lugar doinadequado e embaraçosométodo antropométrico, desenvolvido por Bertillon e usado até então paraidentificareclassificarosdelinquentes.42OmétodoVucetichpermitiuaseucriadorresolverumcasodeinfanticídioem1892,consideradooprimeirocasocriminalresolvidoutilizando-seimpressõesdigitais,oquelhedeuprestígiointernacionalquaseimediato.Logo,seriaadotadoemváriospaíses,inclusivedeoutrasregiões,efoivistocomoumpassoimportantenaimplementaçãodeformascientíficasdecontrolepolicial do delito.43 Buscou-se também, e geralmente se conseguiu, uma colaboraçãomais próxima eeficienteentreasprisõeseasautoridadesjudiciaisepoliciais.Basesdedados,taiscomocatálogosdefotografiadosdelinquentes,fichasbiográficasdecriminosos,operárioseempregadosdomésticos,fichasdesaúdeparaospresosemuitasoutrasforamimplementadaseutilizadasdemaneiraampla,aindaquedesigual.Como resultadodisto, tantocriminólogoscomoespecialistaspenais–novamente,quiçápelaúltimavez–conseguiramumprestígioeumaautoridadeintelectualepolíticaquerepercutiammuitoalémdas paredes das prisões e dos institutos de criminologia. Como sustentou Salvatore para o caso daArgentina, a influência da criminologia positivista pode se identificar, ao menos, em duas áreasinterconectadas:

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(a) as instituições disciplinares adotaram ideias, conceitos e políticas para o controle, reabilitação eressocializaçãodepopulações“desviadas”queeramsugeridosporcriminólogospositivistas;e(b)aspráticascotidianasdoEstadocomeçaramarefletir(emrelaçãoàpopulaçãoemgeral)conceitos,categoriaseprocedimentosintroduzidosdemaneirapioneirapeloscriminólogos.44

Que efeitos teve a difusão da criminologia positivista sobre as prisões? Quais foram suasimplicações sobre o tratamento dos presos e as vicissitudes da vida cotidiana nas instituições deconfinamento? As autoridades foram capazes de reduzir, significativamente, os problemas existentescomoasuperlotação,acorrupção,osabusoseasdesumanascondiçõesemquesemantinhamospresos?Combasenosestudosexistentes,oretratoquesurgeébemmaisdecontinuidadeemrelaçãoàsituaçãoanteriorquedemudançaemelhoria.Comapossívelexceçãodeunspoucoscentrosdedetenção,comoapenitenciária de Buenos Aires, a maioria dos países latino-americanos fracassou em seu intento dereformarasprisões.Certamenteseconstruíramnovasprisões,algumasvelhascadeiasforamreformadas,as condiçõesdevidamelhoraramparaalgunsgruposdepresose se logrou impormais segurançanasprisões,mas,desdeofinaldadécadade1930,ossistemascarceráriosmostravam,namaioriadospaísesda região, claros sinaisde esgotamento, ineficiência e corrupção.SónaArgentina amodernizaçãodosistema de prisões parecia haver conseguido alguns de seus objetivos. Como escreveu Lila Caimari,resumindo asmudanças implementadas entre 1933 e 1940 – que incluíram a construção de 11 novasprisões-modeloea reformadeumasériedecadeias locais–“o idealdaprisãoordenada,modernaecientíficaconfirmavasuavigêncianocoraçãodoEstado”.45Emquasetodososdemaispaíses,oretratoqueofereciamobservadoreseadministradoreseradecorrupçãoeineficiênciae,dopontodevistadosdetentos,sofrimentoeabandono.Aciêncianãohaviacontribuídopararedimirospresos.

Vidacotidiananasprisões

Ainda que as condições carcerárias fossem usualmente deficientes, tanto para homens como paramulheres, as evidências sugerem que estas viviam em melhor situação. As prisões masculinas eramdescritas, frequentemente,comoverdadeiros infernos:superlotação,violência, faltadehigiene,comidainsuficiente,castigoscorporais,péssimascondiçõesdesaúde,abusossexuais,trabalhoexcessivosãosóalgunsdosproblemasmencionadosemrelaçãoaoperíodoqueestudamos.AprisãodeBelémnaCidadedoMéxico,porexemplo,foidescritacomouma“caixaemqueseencerramtodasasvilezasedejetosdeumasociedadeemviadeformação”.46NaprisãodeGuadalupe,emLima,segundoumatestemunha,

umapilhadehomensestendidosjaziaali,comoencarnaçãodoóciobrutal…grandessalas,úmidasemalventiladas, servem de dormitórios; a cama é comum a quarenta ou cinquenta presos. Parece incrível,nestacidade,tãoprezadaporseusesplendores,umaprisãoassim.47

VillaDevoto,umaprisãodaprovínciadeBuenosAiresdesinistrareputação,foidescritaem1909como “reino de arbitrariedade, império absoluto da imundície”.48 As condições variavam e eramsignificativamentepioresemalgumasinstituiçõesouduranteperíodosespecíficos,mas,emlinhasgerais,avidacotidiananasprisõesnãoeraparticularmenteplácida.Noentanto,é importanteatentarparaumdetalhe: ainda que as prisões mais ordenadas e regimentadas, como as penitenciárias modernas,aparentemente oferecessem a seus hóspedes melhores condições, se comparadas com as pestilentasprisõesdescritasacima,elasnãoeramnecessariamentepercebidascomovantajosasportodosospresos.Alguns talvezpreferissemestaremalgumaprisãomaisdesordenadaepobrementeadministrada,como

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Guadalupe ouBelém, onde não sentiriam a pressãodas regulações carcerárias e teriammaior espaçoparanegociarsuascondiçõesdeencarceramentocomadministradoresmais“fracos”.49

Nocasodasinstituiçõesdeconfinamentoparamulheres,ascondiçõesdevidaparecemtersidomaisamenas,aindaquedeficienteseemcircunstânciasrealmentelamentáveis.Comfrequência,sedenunciavaasuperlotação,apesardeaviolêncianãoparecertersidotãorecorrentecomonasprisõesdehomens.Acomida e a atenção para a saúde eram razoáveis, ainda que não para todas as presas.As evidênciasdisponíveissugeremqueomaltratoàspresas(incluindoocastigofísico)eraconstanteequeosabusosdas monjas constituíram sempre um ingrediente nas relações claramente hierárquicas que seestabeleceramnointeriordestasprisões-conventos.50Tantonasprisõesdemulherescomonasdehomens,semdúvida,ascondiçõesdevidadependiamdeconfiguraçõesespecíficasdepoder,prestígioestatusnointerior da população carcerária. Sempre houve aqueles que conseguiam condições de detençãorelativamenteseguraseamenas,inclusivedentrodashediondasprisõesemqueviviam.

O impacto que as relações raciais tinham na construção domundo da prisão émais difícil de seavaliar, sobretudo, por não existirem estudos suficientes para se chegar a conclusões definidas e ospaísesqueestamosestudandoapresentaremestruturasraciaiseétnicasbastantediferentes.Aprimeiraemaisóbvia conclusão éque amaioriadospresospertencia aosgruposnãobrancosda sociedade.Aspopulações carcerárias incluíam, majoritariamente, grupos indígenas, negros e mestiços, o quetransformavaoencarceramentoemumapráticalegalesocialquereforçavapoderosamenteasestruturassociorraciais dominantes nessas sociedades. No Brasil, a assustadora maioria dos detentos era afro-brasileira.Entre1860e1922,porexemplo,constituíram74%dototaldosdetentosdaCasadeDetençãodeRecife.51NoPeru,entre1870e1927,cercade85%dosdetentosnapenitenciáriadeLimapertenciamaosgruposnãobrancos,ehaviaumaporcentagemsimilar(82,6%)naprisãodeGuadalupe.52NocasodepaísescomoaArgentina,osimigranteseuropeus,quechegaramemquantidadessignificativasemfinsdoséculo XIX e começo do XX, também constituíram grande proporção da população carcerária (e,naturalmente,umafontedepreocupaçãoconstanteparaautoridadesecriminólogos).53

Em termos da administração das prisões, a classificação e separação de presos, segundo suacondiçãoracial,nãofoilegalmenteimplementada,masasdivisõesetensõesraciaisinfluíamclaramentesobreasformaseaadministraçãodocastigo,adestinaçãodeespaçofísicoeadistribuiçãoderecursoseprivilégios.54Ospreconceitosraciaisinfluíamnomodocomoospresoseramtratadospelasautoridades,pelosguardasedemaisdetentos.Osindígenasenegrosrecebiamgeralmenteumtratamentopiorqueosbrancos e mestiços. Todos estes, frequentemente, compartilhavam as noções dominantes de status e“qualidade” quando tratavam com detentos de diferentes grupos étnicos. Tomando por base o quesabemos sobre o funcionamento das prisões, parece razoável sugerir que a vida cotidiana nestasinstituiçõesreproduziaasformasdeinteração,hierarquiaseconflitosentreosdiferentesgruposétnicosque existiam na sociedade. Emmuitos casos, se criaram departamentos ou instalações especiais parapresos“distintos”,geralmentemembrosdosaltosgruposbrancosemestiços.55Portanto,seécertoqueasprisõesnãoforamconcebidascomoinstituiçõesracialmentesegregadas,comoocorriaemoutraspartesdo mundo, elas reproduziam em seu funcionamento as estruturas raciais das sociedades latino-americanas.Valeapenaenfatizarqueasdistinçõesedivisõesraciaisentreospresosnemsempreforamimpostas à força pelas autoridades das prisões, e sim, que eram amiúde promovidas pelos própriospresos,quepunhamempráticaideiasemotivaçõesraciaisquehaviamaprendidonomundoexterior.

Outroaspectoimportanteateremcontaéqueoscritérios“raciais”eramcomfrequênciamascaradospor formas de identificação sociocultural que designavam os indivíduos de “baixa condição” e queajudavam a demarcar as fronteiras das condutas toleradas, o desfrute de direitos de cidadania e aaceitação social, tanto fora como dentro das prisões. Termos como ordinário, gatuno, maltrapilho,selvagem,malandro,vagabundoemuitosoutros,aindaquenãofossemnecessariamenteidentificadores

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raciais,contribuíamparaestigmatizaramplossegmentosdapopulaçãonãobranca,queeramvistoscomopessoasdepoucoméritoequalidade.Asquestõesraciaisestavam,semdúvida,intimamenteligadascomosdebatessobreacriminalidadeeamarginalidade.Oresultadodistofoiasuperposição,noimagináriodasautoridades,criminólogos, jornalistasepessoascomuns,decategoriassociolegaiseraciais,oquecontribuiuparaaintensificaçãodaspráticasdiscriminatóriascontraossetorespopularesnãobrancoseomaltrato que recebiam dos sistemas de justiça criminal. Quando um policial, por exemplo, detia umsuspeitoeoremetiaàdelegaciacomuminformequeochamavade“gatunoconsuetudinário”,faziaalgomais que simplesmente encaminhar alguém ao intrincado labirinto do sistema judicial: de fato, davainício a uma série de ações que, na maioria dos casos, acarretava enormes desvantagens para oindivíduo.56

Igualmenteaoutrassociedades,ospresosforjaramsuaspróprias“subculturascarcerárias”.Ousodegíria e tatuagens, certas condutas associadas com a homossexualidade, o desenvolvimento damasculinidade conectada a condutas criminosas e o emprego exagerado da violência para marcardiferençaserampráticasculturaisquesedesenvolviamnointeriordaprisão,sebemquealgumasdelastivessemorigemnomundoexterior.Estasmanifestaçõesdesubculturacarceráriacontribuíramparaforjarvínculosdecooperaçãoereciprocidadeentreospresos,mastambémalimentavam(e,porsuavez,eramreforçadaspor)formasagudasdecompetiçãoeconflito.Ascomunidadesdepresos,apesardetudo,nãoconstituíamconglomeradoshumanoshomogêneos,masgruposfragmentadosediversos.Aindaassim,ospresosatuavam,geralmente,deformaproativanaconstruçãodemodosdesocialização,entretenimentoerecreação,oque lhespermitia,quandopossível, aliviar as tormentasdavidacarcerária.Apráticadofuteboledeoutrosesportes,especialmenteapartirdeprincípiosdoséculoXX,tornou-semuitopopularentreospresos,ocorrendogeralmentesobosauspíciosdasautoridadesqueviamnestasatividadesumamaneira de promover distrações “sãs” entre os encarcerados.57O consumo de álcool e drogas, assimcomo os jogos de azar, ainda que proibidos pelos regulamentos, eram frequentemente tolerados pelasautoridades, por serem convenientes aos seus interesses. Como resultado de todas estas práticas desocialização,avidanaprisãopodiaser,aomesmotempo,lúdicaeviolenta,divertidaedolorosa.

As respostas dos presos a suas condições de encarceramento não podem ser reduzidas a umadicotomia entre resistência e acomodação. Muito mais produtivo é conceber suas condutas, tantoindividuais como coletivas, como uma série de complexos, ambíguos e cambiantes mecanismos paraenfrentar as condições de vida dentro das prisões. É sempre difícil fazer generalizações, mas certasconstantes emergemdosdiversos estudos consultados.Ocomportamentodospresosvariavamuito emfunção da instituição em que estavam detidos, sua condição individual (sexo, idade, lugar de origem,condiçãoracialouétnica,statussocial,antecedentescriminaisetc.),suasituaçãolegal,aduraçãodesuasentença e as relações particulares que se estabeleciam entre eles, os guardas e as autoridadescarcerárias. A primeira conclusão a que se chega é que os presos sempre buscaram, freneticamente,conseguirmais autonomia e ummaior poder de negociação em torno das regras de funcionamento daprisão, tanto no interior da comunidade de encarcerados como entre estes e os guardas e oficiais dejustiça.Istoincluíaumasériedeestratégiasqueiamdesdeousodaviolência(ouaameaçadaviolência)atéaconstruçãodelaçosdeclientelismocomautoridadeseoutrosmembrosdacomunidadecarcerária.Convémtambémenfatizarofatodequeascomunidadesdepresoseramgruposaltamentediferenciadosnos quais existiam hierarquias de poder claramente estabelecidas, inclusive, às vezes, despóticas,baseadasemumacombinaçãodeelementos,taiscomoaexperiênciadelituosa,ocontrolederecursosenegóciosilegaiseousodaviolência.Ospresos,portanto,alémdeterdelidarcomestruturascarceráriasgeralmente opressivas, precisavam se habituar à vida dentro de uma comunidade na qual teriam denegociar sua condição enfrentando estruturas de poder que, às vezes, nem sequer entendiam porcompleto.Relaçõeshorizontaisdesolidariedade–baseadasemafinidadesraciais,regionais,sexuaiseinclusive políticas – eram comuns, ainda que frágeis. Estabelecer relações de clientelismo e

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cumplicidadecomosadministradoreseguardasdasprisõeseraumrecursobastanteutilizado,masumaperigosafacadedoisgumes.Orecursodesesperadoaformasdeprotestocomoasfugas,osmotinsouosuicídio era, certamente, uma opção, ainda que muito menos comum que as outras estratégias. Natentativadeinfluirnamaneiracomoeramtratadosdentrodasprisões,muitosdetentosescreviamcartasaosjornais,autoridadeseoutraspersonalidadesdefora,denunciandoascondiçõesdevidaechamandoaatenção para seu sofrimento, oumanipulavam a informação que ofereciam aos peritos e criminólogosdurante as entrevistas ou avaliações.58 Vez e outra, encontramos formas coletivas de resistência eorganização, mais frequentemente, quando os detentos entraram em contato com grupos de presospolíticosradicais,sobretudo,apartirdeprincípiosdoséculoXX.59

Presospolíticos

NamaioriadospaísesdaAméricaLatina,aprisãopolíticafoiusadaamplamenteaolongodoséculoXIX contramembros de facções contrárias, funcionários demaior importância dentro dos governos econspiradoresque,emgeral,pertenciamaosgruposmédiosealtosdasociedade.RegimesautoritárioscomoodeRosasnaArgentina(1829–1852)utilizaramaprisãopolíticacomoumelementocentraldesuaestratégiarepressivacontraosopositores.Outrosgovernosfaziamumusomenossistemáticodela,aindaque sempre fosseum recursodoqual lançavammão, especialmente,devidoàvolátil situaçãopolíticaque caracterizou amaioria dos países latino-americanos durante este extenso e complexo período deformaçãodoEstado.

Os presos políticos eram, em geral, reclusos em pavilhões separados no interior das cadeias,delegaciasdepolíciaequartéismilitares,poisa tradição,a legislaçãoeadeterminaçãodosprópriospresospolíticosgarantiamquenãofossemmisturadoscomoschamadospresoscomuns.Acategoriade“presopolítico”nemsempreerareconhecidacomotaleincluíaumgrupodiversointegradopormembrosdas Forças Armadas envolvidos em propósitos golpistas; autoridades dos governos a quem seconsiderava sediciosos potenciais; conspiradores que buscavam derrubar os grupos que ostentavam opoder político; indivíduos que, em várias ocasiões, buscavam interromper ou alterar processoseleitorais;e,nocasodeCubaePortoRico,ativistasemfavordesuaindependência.Aprisãopolíticafoiobjeto intermitente de denúncia, mas raramente chegava a ter um eco considerável ou lograva influirsobreosdebatespolíticos e legaismais urgentes.Umaexceção importante foi opanfleto escritopelopatriota cubano José Martí,O presídio político em Cuba (1871), um devastador questionamento docolonialismoespanholeumchamadovigorosoàaçãopatrióticacontraele.

OusodaprisãopolíticaseintensificounofimdoséculoXIXeprincípiodoXX,quandocomeçarama desenvolver-semovimentos sociais, políticos e trabalhistas radicais sob a influência de ideologiasanarquistas, socialistas, comunistas e nacionalistas. Estes movimentos, que desafiavam os Estadosoligárquicos, foram enfrentados com formas brutais de repressão, incluindo o encarceramento decentenas, talvez milhares, de militantes pertencentes, sobretudo, à classe média e trabalhadora. Osregimes de Leguía, no Peru (1919–1930),Machado, emCuba (1925– 1933), JuanVicenteGómez, naVenezuela(1908–1935),PorfírioDiaz,noMéxico(1876–1911),eváriosgovernosnaArgentina(1900–1930) fizeram uso sistemático da prisão política contra seus adversários. Prisões infames como IlhasMarias,SanJuandeUlúaeopaláciodeLecumberri,noMéxico,opresídiodeUshuaiaeaprisãodeVilaDevoto, naArgentina, o arquipélagode JuanFernandez, noChile, a penitenciáriadeLima (conhecidacomo“pan-óptico”),ailhaprisãoElFrontón,noPeru,eoPresídioModelodeCuba,abrigaramcentenasdepresospolíticos,convertendo-seemsímbolosdeopressãoecenáriosdetorturaesofrimento.Umdosaspectosmaisinteressantes(e,potencialmente,subversivo)dapresençadepresospolíticosnasprisõesfoia relaçãoqueseestabeleceuentreeleseospresoscomuns.Se talpresençagerou tensõesentreos

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doisgrupos,tambémofereceuapossibilidadededesestabilizarosistemacarcerário.Acoexistênciacompresos comuns foimotivo de constante debate e protesto por parte dos presos políticos. Embora, emgeral,estivessemalojadosemcelas,pavilhõesouedifíciosseparados,emalgunsmomentos,paratornarseucastigoaindamaissevero,ospresospolíticosforamobrigadosacompartilharomesmoespaçocomospresoscomuns.60Ospresospolíticos,emgeral,revelavamcertaanimosidadeemrelaçãoaestes.Estaatitudebaseava-senasupostafaltadeconsciênciapolíticadospresoscomuns,emsuadegeneraçãomoraleparticipaçãocomoinformantes(delatores)dapolíciapolítica,mastambémnospreconceitosraciaisedeclassequeospresospolíticostraziam.Estessempretratavamdeostentarumasuperioridademoralemrelaçãoaospresoscomunse,diantedeautoridadeseguardas,buscavamaparecercomoindivíduosdemaior “qualidade” que o gatuno vulgar e o temível assassino. Exigiam, com energia, respeito a seusdireitoseesperavamreceberumtratamentoadequadodasautoridadesoque,geralmente,significavanãoseremtratados“comodelinquentes”oumisturadosfisicamentecomestes.Aomesmotempo,apresençade presos políticos pertencentes a grupos radicais, inevitavelmente, gerava tensões que ameaçavam aordeminternadascadeias,inclusivepelapossívelinfluênciaqueexerciamsobreacomunidadedepresoscomuns.Defato,houvemomentosemqueosgruposjuntaramforçasparaenfrentarasautoridadeseexigiralgunsdireitosouocumprimentodecertasobrigações.Nessasocasiões,ospresospolíticosviramnospresoscomunspotenciaiscolaboradorese,inclusive,fizeramesforçosdeproselitismoentreeles.Comobem sugeriu Lila Caimari, a experiência da prisão permitiu aos militantes de esquerda acumularinformação sobre a realidade carcerária e tornou-os mais sensíveis em relação às necessidades dapopulaçãocriminosa.61Paraospresoscomuns,poroutrolado,apresençadospresospolíticosconstituiuumaoportunidadeparasealiaremaindivíduosque,devidoasuasconexõessociais,aoconhecimentodoslabirintos legais e judiciais e a seus níveis de organização dentro e fora da prisão, representavamimportantes recursos nos esforços por melhorar suas condições de encarceramento e, inclusive, paraconseguir a liberdade. Caimari relata o caso de um tenente que foi detido em 1932 por liderar umaconspiração fracassada.Ospresoscomuns insistiamemseproclamar inocentesdiantedele,afirmandoqueestavamcumprindopenainjustamente.Noentanto,quandosederamcontadequeotenentenãotinhaconexões com as autoridades da prisão e, portanto, não podia ajudá-los a conseguir a liberdade,terminaramporconfessarseusdelitos.62

Os presos políticos escreveram memórias e testemunhos, con-trabandearam cartas e outrosdocumentos,organizaramcélulaspartidáriasdentrodasprisõesemergulharamemmúltiplas formasdeconfrontaçãocomopoderdoEstado.Aofazê-lo,criaramumpoderosoimaginárioacercadaprisãoqueressoaria fortemente em toda a sociedade, muito mais, certamente, que as vozes dos presos comuns.Testemunhos como La tiranía del frac… (Crônica de um preso), do anarquista argentino AlbertoGhiraldo (1908), os artigos e o livro sobre oPresídioModelo deCuba, escrito pelomilitante porto-riquenhoRamóndelaTorrienteBrau,ouanovelaHombresyRejas(1937),doautoremilitanteapristaperuano Juan Seoane, sobre seu encarceramento na penitenciária de Lima, entre outros, contribuíramdecisivamenteparaampliarosdebatessobreasituaçãodasprisões.

Alémdosmurosdasprisões

Ocrescentepapeldasprisõescomoespaçosde investigaçãoemtornoda“questãosocial”ecomodestinodepresospolíticos–e,portanto,objetodedenúnciasdecaráterpolítico–veioacompanhadoporuma série de mudanças que contribuíram para ressaltar o significado das prisões no imaginário deamplos setores da população. A atenção pública para as condições das prisões e dos presos, porexemplo,semultiplicoucomaapariçãodosmeiosdecomunicaçãodemassa.Repórteresvisitavamasprisõescomclaras inclinaçõesvoyeurísticas,prontospara revelarseus“mistérios”ao leitordefora.63

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Históriassensacionalistassobrecriminososfamososserepetiameincluíam,comfrequência,entrevistascom os próprios personagens dentro de suas celas. Dramas que ocupavam as primeiras páginas dosjornais – descrevendo emdetalhes episódios de roubo, assassinato, suicídio e fugas das prisões – seconverteramemfatoscotidianosparaosleitoresnamaioriadascidadeslatino-americanas.64NoMéxico,panfletos ilustrados por artistas, como JoséGuadalupePosada, traziamcrônicas e denúncias sobre oshorrores do encarceramento, assim como relatos detalhados de crimes notáveis.65 Canções e baladaspopularescontavamhistóriassobredelinquentesepresosaosgruposderecém-chegadosàcidade,muitosdestes analfabetos. A crescente popularidade da fotografia, ilustrando as histórias sensacionalistaspublicadasporjornaiserevistas,ajudouenormementeatornarmais“conhecido”omundocriminosoecarcerárioparaapopulaçãoemgeral.66Comisso,arelaçãodopúblicocomaprisãotornou-seaomesmotempomaisíntimaemaisdistante.Porumlado,apopulaçãoemgeralpassoua“conhecer”maisdoqueantesomundodaprisão.Aspessoaspodiamquase“ver”,“cheirar”e“sentir”comoeraavidanacadeia,incluindoseusaspectosmaissórdidos.Deoutrolado,amaneirapelaqualasprisõeseramdescritasnasreportagens jornalísticas – como lugares de sofrimento, mas também como escolas de vício ecriminalidadeonde sepraticavamcondutas repugnantes– fazia comqueopúblico aspercebesse comhorrorerepulsa.Estepontoéparticularmenteimportante,poisanoçãodequeoscriminosos,enãosóasprisões,pertenciamaummundodedegradaçãoemiséria,foicrucialnaformaçãodeumaopiniãopúblicaquenãoviacomsimpatiaasiniciativasquebuscavammelhoraraqualidadedevidadosdetentos.Aindaque se necessite demais investigações para se chegar a conclusõesmais definitivas, a exposição daintimidadedavidanasprisõesnãogerounecessariamentesimpatiapelospresos,sobretudopelamaneiracomoos “criminosos” eram apresentados, ou seja, como indivíduos desafortunados e sofredores,mastambém como degenerados e imorais. Isto ajuda a explicar por que algumas campanhas em favor dareformadasprisõesiniciadasporsociedadesfilantrópicas(chamadas“PatronatosdePresos”emalgunspaíses),gruposdereligiosos,bemcomoalgumaspersonalidadeshumanitárias,quebuscavamgerarentrea opinião pública e as autoridades do Estado uma atitude mais compassiva em relação aos presos,tornaram-seatitudesquasesempreisoladas,débeisedecurtaduração.Alémdetudo,elasesbarravamem ideias arraigadasqueapresentavamosdelinquentes como indivíduosquemereciamomaltrato eosofrimentoquepadeciamnascadeias.

Conclusão

Comoemoutraspartesdomundo,asprisõesnaAméricaLatina,duranteoperíodoqueabordamos,estavam longe de serem instituiçõesmodelo que desempenharam adequadamente as funções para quehaviam sido construídas.O curto resumoque fizemosdahistória dasprisõesnaAméricaLatina entre1800 e 1940 apresentou uma avaliação particularmente negativa de seu papel nestas sociedades: osEstadoseosreformadoresfracassaram,amaioriadasvezes,emseusplanosdetransformarasprisõesemcentrosparaarecuperaçãodosdelinquentes.Asprisõesnãoofereciamascondiçõeshumanasquealei e retórica oficial prometiam. Tampouco, como sugerem diversos estudiosos, ocuparam um lugarcentralnasestratégiasdedominaçãoecontroleimplementadaspelaseliteseoEstado.

Váriosfatorespodemsermencionadosparaseentenderestasrealidades.Aslimitaçõesfinanceirasea instabilidadepolíticadãoconta,emparte,dafaltadeentusiasmonaformulaçãoe implementaçãodeambiciososprojetosparaareformadasprisões.AsestruturasestataisdébeiseosmecanismoscorruptosderecrutamentoecontrolenasdiferentesinstânciasdaburocraciadoEstadocriavamproblemasparaaadministraçãodasprisõeseaaplicaçãodasleis.Alémdestesimpedimentosadministrativosegerenciais,sem dúvida, a justificativa para a realidade das prisões reside, sobretudo, na natureza das estruturassociopolíticas destas nações. As sociedades latino-americanas pós-independência foram, em graus

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diversos, configuradas por estruturas hierárquicas excludentes, racistas e autoritárias que, por trás dafachada de liberalismo e democracia formal, mantiveram formas opressivas de dominação social econtrolelaboralqueincluíamaescravidão,apeonagemeaservidão.Direitosfundamentaisdecidadaniaforamnegadosaamplossetoresdapopulação.Profundasfraturassociais,regionais,declasseeétnicasdividiram as populações, e pequenas elites (latifundiários, financistas, empresários exportadores,caudilhosmilitares)governavamasmassasurbanaseruraisindígenasenegras.Estasituaçãoimplicavauma flagrante contradição com os ideais republicanos de igualdade cidadã e inclusão sobre os quaisestas nações supostamente se haviam fundado. No interior destas sociedades, as formas de castigoraramente eram vistas como oportunidades para buscar o arrependimento e a recuperação dosdelinquentes ou para o desdobramento de políticas de Estado de viés humanitário. Pelo contrário, ocastigoeravisto,geralmente,comoumprivilégioeumdeveremmãosdosgruposdominantesdentrodeseus esforços por controlar os grupos turbulentos, degenerados, racialmente inferiores, incapazes decivilizar-se e que, portanto, não mereciam a proteção de seus direitos civis e legais. Em lugar derepúblicas de cidadãos, como proclamavam as constituições, as sociedades latino-americanasconstituíram,duranteamaiorpartedoséculoXIX,estruturasneocoloniaisnasquaisoEstadooperava,sobretudo,comouminstrumentoemmãosdegruposoligárquicos.

EmprincípiosdoséculoXX,ocrescimentodaseconomiasdeexportação,osefeitoscombinadosdamigração e urbanização, a emergência de movimentos políticos radicais e de classe média, aimplementaçãodereformasquebuscavamampliaraparticipaçãopolíticadapopulaçãoeaconsolidaçãodeestruturasdoEstado relativamentemodernas trouxeramconsigomudançassignificativasnanaturezadasrelaçõesentreEstadoesociedade.Formularam-seeimplementaram-seprojetospolíticosesociaismais inclusivos que desafiavam a dominação das oligarquias cujo poder tinha sido sustentado porestruturaspolíticasditatoriaisemodeloseconômicosexportadores.AconsequênciamaisimportantedetodasestasmudançasfoiocrescimentoeamodernizaçãodoEstadoeamaiorcapacidadequeestetinhaagora para intervir na regulação da sociedade. Dentro deste contexto, levou-se adiante um renovadoesforçoparatransformarasprisõesemlugaresapropriadospararegularacondutadasclassespopulares,assimcomoparaaproduçãodeconhecimentossobreodelito,osdelinquentesea“questãosocial”.AsprisõeseseusocupantesforamtestemunhasdacrescentepresençadoEstado,visívelnasnovastécnicasde identificação e arquivo, nos laboratórios científicos, na centralização administrativa e na maiorintegração entre os diferentes níveis do sistema de justiça criminal. Sob a guia doutrinária dopositivismo,estesesforçospermitiramaosEstadosmaiorcapacidadeinstitucionalparaexercerummaiorcontroleeautoridadenãosósobreaspopulaçõescarcerárias,comotambémsobreasociedadeemseuconjunto. Ainda que para os presos estas mudanças tenham representado muito pouco – continuarampadecendo sob condições de encarceramento deficientes, abusos e abandono –, algumas delas (porexemplo, a presença crescente de presos políticos e amaior visibilidade da prisão na sociedade) osajudaramaabrirnovosespaçosdelutaeorganização.

TraduçãodoespanholdeMarcosPauloPedrosaCosta

1Estaéumaversãoligeiramenteatualizadadoartigo“PrisonsandPrisonersinModernisingLatinAmerica,1800-1940”,publicadooriginalmenteemFrankDiköttereIanBrown.(Ed.)CulturesofConfinement.AHistoryofthePrisoninAfrica,Asia,andLatinAmerica.Ithaca:CornellUniversityPress,2007.Agradeçoaosparticipantesdaconferênciaquedeuorigemaolivroporseusestímulos,críticasesugestões,eespecialmenteaFrankDikötterpeloconviteparafazerpartedesteprojetoeporseusvaliososcomentáriosàsversõespreliminaresdesteensaio.QueriatambémreconhecerminhadívidacommeucolegaRicardoSalvatore.Muitasdasideiasaquiexpostasforamdesenvolvidasemdiálogoenotrabalhocomeleaolongodemaisdeumadécada.

2Asúnicasexceções,comosesabe,foramCubaePortoRico,queconseguiramsuasindependênciasdocolonialismoespanholem1898.3MALLON,Florencia.IndianCommunities,PoliticalCulturesandtheStateinLatinAmerica.JournalofLatinAmericanStudies,24,p.35-55,1992.LARSON,Brooke.TrialsofNationMaking.Liberalism,Race,andEthnicityintheAndes,1810–1910.CambridgeUniversityPress,2004.

4Entreosestudosdasformasdecastigoduranteoperíodocolonial,verAUFDERHEIDE,Patrícia.OrderandViolence.SocialDeviance

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andSocialControlinBrazil,1780–1840.TesedeDoutorado,UniversidadedeMinnesota,1976.TAYLOR,William.Drinking,Homicide,andRebellioninMexicanColonialVillages.Stanford:StanfordUniversityPress,1979,p.97-106.HASLIP-VIERA,Gabriel.CrimeandPunishmentinLateColonialMexico,1692–1810.Albuquerque:UniversityofNewMexicoPress,1999.FLORESGALINDO,Alberto.AristocraciayPlebe.Lima,1760–1830.Lima:MoscaAzulEditores,1984.LEÓNLEÓN,MarcoAntonio.Justicia,ceremoniaysacrificio:unaaproximaciónalasejecucionespúblicasenelChilecolonial.Notashistóricasygeográficas.Chile:UniversidaddePlayaAncha,n.11,p.89-122,2000.LEÓNLEÓN,MarcoAntonio.Encierroycorrección.LaconfiguracióndeunsistemadeprisionesenChile(1800–1911.)Santiago:UniversidadCentraldeChile,2003,3v.t.I,p.53-125.

5GARCÍABASALO,J.Carlos.SanMartínylareformacarcelaria.Aportealahistoriadelderechopenalargentinoyamericano.BuenosAires:EdicionesArayú,1954,p.39.

6AGUIRRE,Carlos.Violencia,castigoycontrolsocial:esclavosypanaderíasenLima,sigloXIX.PasadoyPresente.Lima,n.1,p.27-37,1998.SALVATORE,RicardoD.DeathandLiberalism.CapitalPunishmentaftertheFallofRosas.In:SALVATORE,RicardoD.;AGUIRRE,Carlos;JOSEPH,Gilbert(Org.).CrimeandPunishmentinLatinAmerica,Durham,DukeUniversityPress,2001,p.308-341.LEÓNLEÓN,2003,op.cit.

7ParaumresumodestasinovaçõesnasestratégiaspenaisnaEuropaeEstadosUnidos,ver:McGOWAN,Randall.TheWell-OrderedPrison:England,1789–1865.In:MORRIS,Norval;ROTHMAN,DavidJ.(Org.).TheOxfordHistoryofthePrison.ThePracticeofPunishmentinWesternSociety.NewYork:OxfordUniversityPress,1995,p.79-109;ROTHMAN,David.PerfectingthePrison:UnitedStates,1789–1865.In:MORRIS,Norval;ROTHMAN,DavidJ.(Org.).TheOxfordHistoryofthePrison.ThePracticeofPunishmentinWesternSociety.NewYork:OxfordUniversityPress,1995,p.111-129.

8AGUIRRE,Carlos.TheLimaPenitentiaryandtheModernizationofCriminalJusticeinNineteenth-CenturyPeru.In:SALVATORE,RicardoD.;AGUIRRE,Carlos(Org.).TheBirthofthePenitentiaryinLatinAmerica.EssaysonCriminology,PrisonReform,andSocialControl,1830-1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996,p.44-77,p.53-54.LEÓNLEÓN2003,op.cit.,tomoII,capítulo3.SALVATORE,RicardoD.AGUIRRE,Carlos(Org.).TheBirthofthePenitentiaryinLatinAmerica.EssaysonCriminology,PrisonReform,andSocialControl,1830-1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996,p.1-43.

9BRETAS,MarcosLuiz.WhattheEyesCan’tSee:StoriesfromRiodeJaneiro’sPrisons.In:SALVATORE,RicardoD.;AGUIRRE,Carlos(Org.).TheBirthofthePenitentiaryinLatinAmerica.EssaysonCriminology,PrisonReform,andSocialControl,1830-1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996,p.101-122,p.104.

10LEÓNLEÓN2003,op.cit.,tomoII,p.429.11OsmodelosdeAuburneFiladélfiadisputaramapreferênciadosreformadoresduranteestasdécadas.VerROTHMAN,op.cit.,para

maioresdetalhes.12AGUIRRE1996,op.cit.,p.61-63.13TalvezaúnicaprisãonaAméricaLatinaconstruídaseguindoodesenhooriginaldeBentahmtenhasidooPresídioModelonailhadePinos,

emCuba,cujoprimeiropavilhãocircularfoiinauguradoem1928.14DUMM,ThomasL.DemocracyandPunishment.DisciplinaryOriginsoftheUnitedStates.Madison:UniversityofWisconsinPress,

1987.MERANZE,Michael.LaboratoriesofVirtue.Punishment,Revolution,andAuthorityinPhiladelphia,1760–1835.ChapelHill:UniversityofNorthCarolinaPress,1996.

15MALLON,op.cit.,p.44-46.16SALVATORE;AGUIRRE,op.cit.,p.17.FLORESGALINDO,Alberto.Latradiciónautoritaria.ViolenciaydemocraciaenelPerú.

Lima:Aprodeh/SUR,1999.17ApenitenciáriadoMéxico,porexemplo,seriainauguradaemprincípiosde1900,enquantoCubaconstruiriaasuanadécadade1920.18AGUIRRE,Carlos.TheCriminalsofLimaandtheirWorlds.ThePrisonExperience,1850–1935.Durham:DukeUniversityPress,

2005,p.101-104.PADILLAARROYO,Antonio.DeBelemaLecumberri.PensamientosocialypenalenelMéxicodecimonónico.México:ArchivoGeneraldelaNación,2001,p.203-274.LEÓNLEÓN2003,op.cit.tomoII,capítulo7.

19KATZ,Friedrich.LaservidumbreagrariaenMéxicoenlaépocaporfiriana.CidadedoMéxico:SecretaríadeEducaciónPública,1976.VANDERWOOD,Paul.DisorderandProgress:Bandits,Police,andMexicanDevelopment.Wilmington:ScholarlyResources,1992,2.ed.

20Denomina-seporfiriatooperíodode35anosdegovernodePorfírioDiaz(1876–1911).[N.doT.]21PADILLAARROYO,op.cit.ROHLFES,Laurence.PoliceandPenalReforminMexicoCity,1876–1911:AStudyofOrderand

ProgressinPorfirianMexico.TesedeDoutorado,TulaneUniversity,1983.22ROHLFES,op.cit.,p.256-63.Osversosincluídosemumpanfletointitulado“Tristíssimaslamentaçõesdeumviciado”,queincluíauma

gravuradeJoséGuadalupePosada,afirmavamqueeramelhorestarnaprisãodeBelém,“comendotoritoemcaldo/egamusacomcafé”,quenoValeNacional,oqueevidenciaoshorroresqueaísofriamosdelinquentes(opanfletoestáreproduzidoemFRANK,Patrick.Posada’sBroadsheets.MexicanPopularImagery,1880–1910.Albuquerque:UniversityofNewMexicoPress,1998,p.44).

23Sistemadetrabalhoemqueoscontratadoresrecrutavammãodeobracamponesapormeiodeadiantamentodepagamentoe,emvirtudedestadívidainicial,ostrabalhadoresseviamobrigadosamanterovínculodetrabalhocomopatronato.[N.doT.]

24HOLLOWAY,Thomas.PolicingRiodeJaneiro:ResistanceandRepressionina19th-CenturyCity.Stanford:StanfordUniversityPress,1993.HUGGINS,MarthaK.FromSlaverytoVagrancyinBrazil:CrimeandSocialControlintheThirdWorld.NewBrunswick:RutgersUniversityPress,1985.

25SALVATORE;AGUIRRE,op.cit.,p.16.26BEATTIE,PeterM.TheTributeofBlood.Army,Honor,Race,andNationinBrazil,1864–1945Durham:DukeUniversityPress,2001,

p.135-6.27SALVATORE,RicardoD.Penitentiaries,VisionsofClass,andExportEconomies:BrazilandArgentinaCompared.In:SALVATORE,

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RicardoD.;AGUIRRE,Carlos(Org.).TheBirthofthePenitentiaryinLatinAmerica.EssaysonCriminology,PrisonReform,andSocialControl,1830–1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996,p.194-223.

28CAIMARI,Lila.WhosePrisonersareThese?Church,StateandPatronatosandRehabilitationofFemaleCriminals(BuenosAires,1890–1970).TheAmericas,54,2,p.185-208,1997,p.190.VertambémZÁRATE,MaríaSoledad.ViciousWomen,VirtuousWomen:TheFemaleDelinquentandtheSantiagodeChileCorrectionalHouse,1860–1900.In:SALVATORE,RicardoD.;AGUIRRE,Carlos(Org.).TheBirthofthePenitentiaryinLatinAmerica.EssaysonCriminology,PrisonReform,andSocialControl,1830–1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996,p.78-100.CORREAGÓMEZ,MaríaJosé.Demandaspenitenciarias.DiscusiónyreformadelascárcelesdemujeresenChile(1930–1950).Historia.SantiagodeChile,38,1,p.9-30,2005.CORREAGÓMEZ,MaríaJosé.Paradojastraslareformapenitenciaria.LascasascorreccionalesenChile(1864–1940).In:BOHOSLAVSKY,Ernesto;DILISCIA,MaríaSilvia(Org.)InstitucionesyformasdecontrolsocialenAméricaLatina.1840–1940.Unarevisión.BuenosAires:PrometeoLibros,2006,p.25-48.AGUIRRE,Carlos.Mujeresdelincuentes,prácticaspenales,yservidumbredomésticaenLima,1862–1930.In:O’PHELAN,Scarlettetal.FamiliayVidaCotidianaenAméricaLatina,SiglosXVIII-XX.Lima:IFEA/InstitutoRivaAguero/PontificiaUniversidadCatólica,2003,p.203-226.

29AGUIRRE2003,op.cit.RUGGIERO,Kristin.“HousesofDeposit”andtheexclusionofwomeninturn-of-the-centuryArgentina.In:STRANGE,Carolyn;BASHFORD,Alison(Org.).Isolation.PlacesandPracticesofExclusion.NewYork:Routledge,2003,p.119-132.

30AGUIRRE2003,op.cit.,p.219-220.31Podem-severalgunsdestesdebates,emHALPERINDONGHI,Tulio(Org.).Sarmiento.AuthorofaNation.Berkeley:Universityof

CaliforniaPress,1994.QUIJADA,Mónicaet.al.HomogeneidadyNación.Conunestudiodecaso:Argentina,siglosXIXyXX.Madrid:ConsejoSuperiordeInvestigacionesCientíficas,2000.THURNER,Mark.FromTwoRepublicstoOneDivided.ContradictionsofPost-ColonialNationmakinginAndeanPeru.Durham:DukeUniversityPress,1997.MALLON,Florencia.PeasantandNation.TheMakingofPostcolonialMexicoandPeru.Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1995.FERRER,Ada.InsurgentCuba.Race,Nation,andRevolution.ChapelHill:UniversityofNorthCarolinaPress,1999.LARSON,op.cit.

32BUFFINGTON,Robert.CriminalandCitizeninModernMexico.Lincoln:UniversityofNebraskaPress,2000.33SALVATORE1996,op.cit.AGUIRRE,Carlos.Crime,Race,andMorals:TheDevelopmentofCriminologyinPeru(1890–1930);Crime,

History,Societies,2,p.73-90,1998.BUFFINGTON,op.cit.PICCATO,Pablo.CityofSuspects.CrimeinMexicoCity,1900–1931.Durham:DukeUniversityPress,2001a.

34Nomedadoaogovernode11anosdeAugustoLeguíanoPeru(1919–1930).[N.doT.]35ParaestudossobreMéxico,Cuba,PerueArgentinaver,respectivamente:BUFFINGTON,op.cit.BRONFMAN,Alejandra.Measuresof

Equality.SocialScience,Citizenship,andRaceinCuba,1902–1940.ChapelHill:UniversityofNorthCarolinaPress,2004.HERBOLD,Carl.DevelopmentsofthePeruvianAdministrativeSystem,1919–1939:ModernandTraditionalQualitiesofGovernmentunderAuthoritarianRegimes.TesedeDoutorado.YaleUniversity,1973.SALVATORE,RicardoD.(2006)PositivistCriminologyandStateFormationinModernArgentina(1890–1940).In:BECKER,Peter;WETZELL,RichardF.(Orgs.)CriminalsandtheirScientists.TheHistoryofCriminologyinInternationalPerspective.NewYork:CambridgeUniversityPress,2006,p.253-280.

36AGUIRRE2005,op.cit.,p.53-60.SPECKMANGUERRA,Elisa.Crimenycastigo.Legislaciónpenal,interpretacionesdelacriminalidadyadministracióndejusticia.CiudaddeMexico,1872–1910.CidadedoMéxico:ElColegiodeMexico/UNAM,2002,p.93-105.BUFFINGTON,op.cit.,p.120-123.

37SALVATORE2006,op.cit.,p.254.38SALVATORE2006,op.cit.,p.254.39SALVATORE;AGUIRRE,op.cit.,p.9-10.40CRUZ,Nydia.Reclusión,controlsocialycienciapenitenciariaenPueblaenelsigloXIX.SigloXIX:RevistadeHistoria,12,1992.

AGUIRRE2005,op.cit.,p.98-99.41AGUIRRE2005,op.cit.,73.42RODRIGUEZ,Julia.EncodingtheCriminal.CriminologyandtheScienceof“SocialDefense”inModernizingArgentina(1880–

1921).TesedeDoutorado.ColumbiaUniversity,1999.RUGGIERO,Kristin.FingerprintingandtheArgentinePlanforUniversalIdentificationintheLateNineteenthandEarlyTwentiethCenturies.In:CAPLAN,Jane;TORPEY,John(Orgs.).DocumentingIndividualIdentity.TheDevelopmentofStatePracticesintheModernWorld.Princeton:PrincetonUniversityPress,2001,p.184-196.

43ComoapontaKristinRuggiero,aambiciosavisãodeVucetichconverteuseumétodoemalgomuitomaisimportantequeummeroinstrumentocriminológico.Ocriadordestemétodovislumbravaumaverdadeirarevoluçãonosmeiosparaarquivarinformaçãosobreossereshumanos.Oobjetivoeracriar“umsistemauniversaldeclassificação”.RUGGIERO2001,op.cit.,p.192.

44SALVATORE2006,op.cit.,p.255.45CAIMARI,Lila.Apenasundelincuente.Crimen,castigoyculturaenlaArgentina,1880–1955.BuenosAires:SigloXXI,2004,p.123.46CitadoemPADILLAARROYO,op.cit.,p.242.47CitadoemAGUIRRE2005,op.cit.,p.103.48CitadoemCAIMARI2004,op.cit.,p.116.49Sobreascondiçõesdointeriordeváriasdestasprisões,verAGUIRRE2005,op.cit.LEÓNLEÓN2003,op.cit.,v.II,capítulo7.

FERNÁNDEZLABBÉ,Marcos.Prisióncomún,imaginariosocialeidentidadsocial,1870–1920.Santiago:EditorialAndrésBello,2003,p.107-119.PADILLAARROYO,op.cit.,p.203-249.PICCATO,op.cit.,2001a,p.189-209.

50AGUIRRE2003,op.cit.;RUGGIERO2003,op.cit.51HUGGINS,op.cit.,p.88-89.52AGUIRRE2005,op.cit.,p.228.53SALVATORE,RicardoD.Criminology,PrisonReform,andtheBuenosAiresWorkingClass.JournalofInterdisciplinaryHistory,23,2,

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p.279-299,1992.SCARZANELLA,Eugenia.Niindiosnigringos.Inmigración,criminalidad,yracismoenlaArgentina,1890–1940.BuenosAires:UniversidadNacionaldeQuilmes,2002.

54AGUIRRE2005,op.cit.,p.176-179.55PICCATO2001a,op.cit.,p.201.56PICCATO,Pablo.“CuidadoconlosRateros”:TheMakingofCriminalsinModernMexicoCity.In:SALVATORE,RicardoD.;AGUIRRE,

Carlos;JOSEPH.(Eds.)CrimeandPunishmentinLatinAmerica.Durham:DukeUniversityPress,2001,p.233-272.AGUIRRE2005,op.cit.,p.120-123.

57AGUIRRE,Carlos.LosusosdelfútbolenlasprisionesdeLima(1900–1940).In:PANFICHI,Aldo(Org.).Esegolexiste.UnamiradaaPerúatravesdelfútbol.Lima:FondoEditorialdelaUniversidadCatólicadelPerú,2008,p.155-176.

58AGUIRRE2005,op.cit.,p.203-209;CAIMARI2004,op.cit.,p.137-161.59VernarrativasexaustivasdavidacarceráriaemváriospaísesemLEÓNLEÓN2003,op.cit.PADILLAARROYO,op.cit.CAIMARI

2004,op.cit..PICÓ,Fernando.Eldíamenospensado.HistoriadelospresidiariosenPuertoRico(1793–1993.)RíoPiedras:EditorialHuracán,1994.AGUIRRE2005,op.cit..FERNÁNDEZLABBÉ,op.cit..

60CAIMARI2004,op.cit.,p.124-135;AGUIRRE2005,op.cit.,p.132-139.61CAIMARI2004,op.cit.,p.126.62CAIMARI2004,op.cit.,p.126.63BRETAS,op.cit.64DELCASTILLO,Alberto.Entrelamoralizaciónyelsensacionalismo.Prensa,poderycriminalidadafinalesdelsigloXIXenlaciudadde

México.In:MONTFORT,RicardoPérezetal.Hábitos,normasyescándalo.Prensa,criminalidadydrogasduranteelporfiriatotardío.CidadedoMéxico:CIESAS/PlazayValdez,1997,p.15-73.CAIMARI2004,op.cit.SAITTA,Sylvia.Pasionesprivadas,violenciaspúblicas.Representacionesdeldelitoenlaprensapopulardelosañosveinte.In:GAYOL,Sandra;KESSLER,Gabriel(Orgs.).Violencias,delitosyjusticiasenlaArgentina.BuenosAires:Manantial/UniversidadNacionaldeGeneralSarmiento,2002.

65FRANK,op.cit.66Opapeldafotografiacriminalnosesforçosporcontrolarodelitoenaformaçãodeatitudesparaosdelinquenteséanalisadopor

FERNÁNDEZLABBÉ,op.cit.,p.197-234.

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A

2–SENTIMENTOSEIDEIASJURÍDICASNOBRASIL:PENADEMORTEEDEGREDOEMDOISTEMPOS1

GizleneNeder

política de segurança pública e de justiça criminal encontra-se presente no debate político doBrasil, desde a reestruturação doEstado sob a forma republicana, em fins do séculoXIX.Asdiscussões sobre as reformas das instituições policiais e prisionais vêm pontuadas pelas

consideraçõesecríticasqueacentuamtantoaprecariedadequantoaarbitrariedadedestasinstituições.Aprecariedade tem sido destacada pelas posiçõesmais conservadoras e repressivas e a arbitrariedadedenunciadapelasposiçõespolíticaseideológicasmaisliberais.Constituem,contudo,duasfacesdeumamesma moeda, pois implicam apropriações do pensamento moderno burguês que reclamam pormodernização e reorganização das instituições policiais e de justiça criminal. Destarte, criticando aarbitrariedadedaspolíticaspara reprimirepunir,ouapontandosuaprecariedade,asaídaapresentada(porliberaisouconservadores)temsido,nofundo,amesma:asinstituiçõespoliciaiseprisionaistêmdesermodernizadas,reformadasedotadasdemaisrecursosetecnologiasdecontrolesocial.

As propostas de modernização, reaparelhamento do sistema de justiça criminal, vêm, portanto,acompanhadas de uma indecisão pendular que atravessa toda a história republicana brasileira. Suasimplicações, no entanto, devem ser buscadas num tempo histórico bem anterior, quando já se exigiamodernização técnica e de procedimentos para punição, seguindo os ventos das inovações aplicadaspelas políticas liberalizantes relativas aos direitos (de cidadania e direitos humanos) nas formaçõeshistóricasdasduasmargensdoAtlântico,desdefinsdoséculoXVIII.Aomesmotempo,demandava-seuma política de controle e disciplinamento das classes subalternas rígida, autoritária e altamenterepressiva.Contudo,edopontodevistadaproblemáticarepublicanabrasileira,esteéodramademaisdeumséculonahistóriapolíticabrasileira,desdeofimdaescravidão(1888):comogarantirumcontrolesocialabsoluto(porqueapoiadoemfantasiasdoEstadoabsolutistadecontroletotal–político,socialeideológico)sobreamassadeex-escravos?

Trabalharemos a criminalização e apunição, como tambémaviolênciadaí decorrente, apartir daobservação de duas penas doAntigoRegime (pena demorte e degredo) na temporalidade doCódigoCriminalde1830.Enfocaremosaindaalguns indíciosdepermanênciashistóricasde longaduraçãonaformaçãoideológicaenaculturajurídico-políticabrasileiranatemporalidadedaimplantaçãodoregimerepublicano(quandodaoutorgapelogovernomilitardoCódigoPenalde1890).Paratanto,recorreremosauma interpretaçãoque levaemcontaahistóriadas ideiaspolíticas (sobrecriminalizaçãoepunição)combinadamentecomoconceitodeculturapolítica.

Formalmente,apenademorteestevepresentenacodificaçãobrasileiraimperialdemaneirarestritaaescravosrebelados.Quandodosdebatesparlamentaresemtornodaelaboração,discussãoeaprovaçãodoCódigoCriminalde1830,entretanto,nãofaltaram,comohojenãofaltam,representaçõesemdefesadapenademortemaisampla.

Recuandohistoricamentepara o período colonial, verifica-se que a presençadapenademorte nalegislação portuguesa (especialmente no Livro V das Ordenações Filipinas) tinha uma aplicaçãocomedida,restritaareisdosquaisseexigiaquefossempiosemisericordiosos,eestavacondicionadaà

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lógicajudicialdeumabsolutismopolíticodeinspiraçãotomista:adurezadapenaprevistanotextodalei combinava-se com a temperança do perdão régio,2 que fazia parte do processo de dominação esubmissãopolítica.3Apenademortevisavapredominantementeproduzirefeitosinibidores-repressivosdissuasórios. A sua aplicação, contudo, incidia mais sobre os crimes de lesa-majestade; vale dizer,crimes políticos. Não nos esqueçamos da punição com pena de morte dos cabeças de rebeliõesanticolonialistas no Brasil: Tiradentes, enforcado e esquartejado por participação na ConjuraçãoMineira, em finsdo séculoXVIII;padreRoma, fuziladoaosolhosde seus filhos–umdeles,o futurogeneral de SimonBolívar, José Inácio deAbreu e Lima – por participação daRevoluçãoLiberal de1817,4 e freiCaneca, fuziladoem1825,porencabeçaraConfederaçãodoEquador (1824).Noúltimocaso,aaplicaçãodapenademorteocorreujásoboPrimeiroReinado,poucosanosapósaemancipaçãopolítica.

Aaplicaçãodapenademortenoscasosacimamencionadosrelacionava-seàcodificaçãoportuguesaeàjustiçacriminaldeinspiraçãocoimbrenseque,desdeasreformaspombalinasdauniversidade(1772),haviadominadoodebatepolítico-religiosoentregalicistas (pelaautonomiada religião–edoclero–dito“nacional”)epapistas.AposiçãodeautonomiaemrelaçãoaRomaassumidapelo regalismo(emPortugal, como no Brasil) implicava a apropriação cultural do movimento jansenista, muito forte naFrança.Jáadefesadopapasustentadapelosjesuítas,desdeocontextodosdebatesmaisacaloradosdosquaisparticiparaBlaisePascal,nasegundametadedoséculoXVII,encontrava-seenfraquecida,diantedosavançosdasideiasrevolucionáriaseanticlericaisinspiradasnaRevoluçãoFrancesa.Nestesentido,aexpulsãodosjesuítas,deumlado,e,deoutro,aconvocaçãodaCongregaçãodoOratórioparaassumiro ensino em Coimbra, pós-reforma, acirraram em Portugal e no Brasil as disputas ideológicas (eteológicas) entre jesuitismo e jansenismo. Evidentemente, várias das questões teológico-políticasreferidasaopessimismoagostiniano,depredestinação(aomal),muitopresentenorigorismojansenistaforamapropriadaspelocampojurídiconoBrasileinfluenciaramodebatesobreamanutençãodepenasdo Antigo Regime na codificação pós-emancipação política. No entanto, vários outros pontosrelacionadosàespiritualidadeinaciana,inclusiveemrelaçãoàcriminalizaçãoeàpunição,nãodeixaramde se apresentar e foram apropriados culturalmente a partir de uma perspectiva que leva em conta apermanência histórico-cultural de longa duração. Trata-se, portanto, de um processo de circulação deideias e apropriação cultural complexo, no qual a proposta iluminista para a punição tambémcompareceu, principalmente por meio de Bentham e de Voltaire – dois autores bastante lidos emencionadospelosintelectuaisdocampododireitoemPortugalenoBrasil.

Não deixa de ser intrigante observarmos o sentimento de indiferença da sociedade brasileira, notempopresente,diantedeinúmeroscasosdemortesporexecução(pelosgruposdeextermínioeoutrasorganizaçõesparamilitaresqueatuamaoarrepiodalei),chacinasouemconfrontocompoliciais,quandoumapopulaçãomasculina,predominantementejovem,simplesmenteévitimadacomaperdadaprópriavida.Comoexplicar,então,umasociedadequesecolocamajoritariamentecontraapenademorte(pois,desdeacodificaçãocriminaldadécadade1830,entreoslegisladoresbrasileirosvempredominandoanegação desta pena) permanecer indiferente, ou aliviada, em face destas tantas mortes? Maisprecisamente,seriaocasodeperguntarmosoquantoaideiadedireitoedejustiçaestáimpregnadaporuma cultura religiosa e penitencial, cuja longa duração implica sentimentos políticos de descaso edesinteressepelosquesãoconsideradospredestinadosaomal.

Paraosestudosdocampodahistóriadasideias,eseanalisarmos,comparativamente,asformashistoricamenteestabelecidasdecriminalizaçãoepuniçãonoprocessodepassagemàmodernidade,encontraremospesquisasqueenfatizamassociedadeseuropeiasnocontextodosEstadosabsolutistas(entreosséculosXVIeXVIII).Contudo,nãopodemosdeixardepontuarapossibilidadedepensarmoso

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absolutismocompermanênciasparaalémdoséculoXVIII,estandopresentenasreferênciasatreladasàvisãodocampopolíticoexclusivamenteapartirdoEstado.Portanto,asquestõesprópriasdocampopolíticodevemservistastambémapartirdasrelaçõesdeforçassociais,políticaseideológicas.Nesseparticular,podemosestenderasanálisessobreoabsolutismoparaoséculoXIX(eséculoXX).Estaríamos,pois,considerandoaspectosdoabsolutismomuitoalém,inclusive,daspossibilidadesinterpretativasqueacentuamoneoabsolutismo(ouoabsolutismoilustrado,oudespotismoesclarecido)presentenosgrandesimpérios(ImpérioAustro-Húngaro,ImpérioTurco-Otomano,ImpérioCzarista,ImpérioBrasileiro),vigorosospeloséculoXIXafora,cujacriseterminalcontoucomodesgastepolíticosofridoapartirdaprimeiragrandeguerraeuropeia(1914–1918).5Assim,estamospensandooabsolutismoenquantoumaideiaeumsentimentopolítico,cujapermanênciaculturaldelongaduraçãofoiutilizadaeatualizadanosséculosXIXeXX,6apartirdeumsuporteideológicocravadonossentimentosabsolutistasdecontroleabsoluto.Indagamo-nos,portanto,emquemedidaasfantasiasabsolutistasdeumcontrolesocialirrestritonãoestariamaexpressarpermanênciasdeumaculturajurídico-políticabastanteantigaque,emváriosaspectos,aindasefazpresente.

A apropriação de propostas iluministas, em fins do séculoXVIII, que defendiam penas de prisãodiferenciadas segundoanaturezaegravidadedoscrimes, equecircularampelas formaçõeshistórico-ideológicas europeias (como também por Portugal e pelo Brasil), não foi suficiente para alterar aorganizaçãosocialepolíticaquefundamentavaaspráticasjurídico-penaisnessasformaçõessociais.Avisãodemundotomista,presentenapenínsulapelapráticapolíticaeideológicadosjesuítas,sustentavaumaconcepçãodesociedaderigidamentehierarquizada,produzindoosefeitosdepermanênciasculturais,comfortesdesdobramentosparaosafetoseasemoçõesdeformaçõeshistóricas7que,mesmopassadosmaisdedois séculosdesdeas rupturasensejadaspelaRevoluçãoFrancesa,dificultavamasmudançaspromovidaspelasconcepçõesiluministaseliberaissobreosdireitos.Pensamosqueaextensãonotempodetamanhapersistênciatemexplicações,defundopsicológicoeafetivo,expressivasquenãodevemserdesprezadaspeloanalistasocial.

Desde a hegemonia do liberalismo na institucionalização do constitucionalismo que acompanha aformação dos Estados Nacionais, o paradigma legalista constituiu mote ideológico que amalgama osprocessosdelegitimaçãopolítica.Comoasformulaçõesdopensamentopolíticoburguêsdecorteliberal(Locke)foramhegemônicassobreopensamentoautoritário(Hobbes),8aarquiteturapolítico-institucionaldosEstadosmodernosburguesesemoldurou-seapartirdapropostaliberal.Decorreudaícertaformadeatualizaçãohistóricaqueencaminhouapassagemàmodernidadedemodoautoritário. Incorporaram-seaspectos institucionais damodernização, com pontuações em algumas ideias liberais, a partir de umaleitura conservadora das reformas empreendidas.9A reforma pombalina da segundametade do séculoXVIIIinscreveu-senestequadro.Suafórmuladeatualizaçãohistórica(calcadanopragmatismopolíticobenthamiano)influiunosprocessosdemodernizaçãodePortugaleBrasil.10Aadoçãodenovasideiasepropostas políticas esteve demarcada por um raio de ação que atinge o estritamente necessário paragarantira inserçãodaformaçãohistóricanocontextodomercadomundial.Opragmatismopombalinoconstituiu, dessa maneira, a forma política de encaminhamento da passagem à modernidade nasformaçõeshistóricasportuguesaebrasileira.

A identificação do processo histórico que acompanhou as várias práticas punitivas inscritas noacontecer social de formações históricas específicas, como a Inglaterra, França, alguns estados daAlemanha, a exemplo da Prússia, ou da Boêmia, Holanda, Portugal (e Brasil), sugere o realce demecanismos extraeconômicos que atuaram no processo de constituição do mercado de trabalhocapitalista na transição para a modernidade, entre os séculos XVI e XVIII. Para algumas formaçõessociais da Europa oriental, da península Ibérica e dos prolongamentos ultramarinos da expansãoeuropeia,esteprocessopodeserobservadoemperíodohistóricomuitomaisrecente,semque,contudo,deixemos de considerar asmesmas questões implicadas no processo de transição. Duas outras penas

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(alémdapenademorteedegredo)devemserenfocadasquandoarticulamosabsolutismoepuniçãonesseperíodo:trabalhoforçado(galés)ecasasdecorreção.Nessemesmocontextohistórico,devem-seteremmente as mudanças ocorridas na evolução das casas de correção para as prisões modernas,estabelecendocorrelatamenteasrelaçõesentreessasmudançaseoutrasformasdecontroleedisciplina:religião(caridadeeassistênciasocialàpobreza,àmendicidade/vadiagem)eescolas.

GeorgRusche11detalhouacarênciadetrabalhadoresdisponíveisparaseremarregimentadosparaaindústriamanufatureiraemergenteeoutrasatividadesligadasàsnecessidadesdoEstado(Exército,galés,colonização etc.). Para Rusche, não houve oferecimento voluntário de trabalhadores para a indústriamanufatureira na passagem à modernidade. A bibliografia e as fontes de dados históricos quefundamentaram o trabalho de G. Rusche foram basicamente constituídas de estudos da históriademográfica francesa e de trabalhos relacionados à assistência à pobreza urbana e à caridade,produzidosnaviradadoséculoXIXparaoXX,tantonaAlemanhaquantonaFrança.Dessemodo,foipossível estabelecer-se uma relação engenhosa entre as preocupações em torno da normatização, pormeio do disciplinamento do espaço urbano e do controle da pobreza pela assistência social, com osurgimentodepreocupaçõesassistencialistaseoutrasformasdeatuaçãodisciplinardoEstadoliberalemcrise, naviradaparao séculoXX.Ruschedestacou aobradeE.Lavesseur, intituladaLa populationfrançaise, escrita entre 1889 e 1892. Lavesseur apontou as guerras (Guerra dos Trinta Anos, porexemplo) e as pestes como responsáveis pela dizimação da população europeia, sobretudo no séculoXVII. Rusche concluiu que o resultado desse processo foi o aumento dos salários e a melhoria dascondições de vida dos trabalhadores (urbanos e rurais), embora o autor frisasse que isto não erasimétriconemgeneralizado,dadas asdificuldadesde comunicaçãoede informação, semcontar asdeorganizaçãodostrabalhadoresnaquelaconjuntura.

Georg Rusche destacou, ainda, o quanto as práticas punitivas e de controle estavam ligadas àreligião.SeMichelFoucault,12apartirdosdadosdeRusche,situouonascimentodaprisãonascasasdecorreção,noséculoXVI,PhilippeAriès13sublinhoua importânciadoConcíliodeTrento(1545–1563)no processo de construção da família nuclear na passagem àmodernidade.As casas de correção queutilizavamotrabalhoforçadopassaramaseradotadas,ealiadistinçãoentremendigosaptoseinaptospara o trabalho começou a ser feita desde meados do século XVI. Na Inglaterra, as workhousesconstituíam-secasasdecorreçãoparavadios;aspoorhousesdestinavam-seàassistênciaàmendicidadeinapta;ealegislaçãoelizabetana,pormeiodaPoorLaw,estabeleceuosmarcosdarupturacomaideiade pobreza medieval. O Estatuto dos Trabalhadores (Statute of Artificiers), também promulgado noreinado de Elizabeth I, reforçou essas mudanças na ideia de pobreza e mendicidade. O combate àvadiagem implicou amesma distinção, em vários estados daAlemanha (Prússia,Westfália, Boêmia),entrearbeithausezuchthaus.NaFrança,ascasasdecorreçãoderivaramdomodelo institucionaldoshospitaux généraux, fundados em Paris no ano de 1656. Foi notável a ação dos jesuítas à frente daadministraçãodoshospitauxgénéraux.NaInglaterra,oBridewell,fundadoem1555,emLondres,foiaprimeirainstituiçãocriadaparaliberarascidadesdevagabundosemendigos.Inicialmente,ascasasdecorreção tornaram-se uma referência para o disciplinamento social de ummodo geral. Para lá eramenviados filhos,maridos e esposas “desencaminhadas”.Sublinhe-seque estas casasde correção eramlucrativas, fossem administradas pelo Estado absolutista ou por qualquer outro agente histórico queexplorasseotrabalhoforçado.EssefatofoicontundentementeapontadoporJ.Howard,emTheStateofthePrisoninEnglandandWales,publicadoem1776.

Contudo, a emergênciadeumanova ideiaqueacompanhouoprocessodeconstruçãoda ideologiaburguesadetrabalho,comasreformasreligiosas(dasIgrejasreformadasedareformacatólica),deveserdestacada.Destarte,processa-seumagrandemudançanarelaçãoentreassistência/caridade(depobresemendigos) e o direito penal. Osmendigos, as prostitutas, os dementes, as viúvas e os órfãos pobrescontinuaramarecebercuidadosdaIgreja.CharlesPaultre,emDe larepressionde lamendicitéetdu

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vagabondage en France sous l’ancien régime, publicado em 1906, mostrou que o mendigo não foiconsideradoumdelinquentenaFrançaantesdoséculoXVI.Aemergênciadoindividualismoconduziuàideiadoméritopessoal e provocouumamudançano conceitode trabalho; portanto,mudou tambémosignificadodapobrezaedavagabundagem.MaxWeber14 realçouessasmudanças frisandoopapeldocalvinismona transformaçãodamendicidade,quepassouaservistacomoumpecadode indolênciaeviolaçãodosdeveresdeamorfraterno.

Taissãoosfundamentosdanovaideiadetrabalhoquelevouàdiferenciaçãoentremendigosaptoseinaptos.Porquasetodasasformaçõeshistóricaseuropeiasa“mendicidadeapta”paraotrabalhopassouasercondenada(social,jurídicaepoliticamente);ascasasdecorreçãoviabilizaramasubstituiçãodaspenaspecuniáriasoucorporais,dandoorigemàspenasdeprisão.

Finalmente, a terceiramodalidade de pena com trabalho forçado aplicada sob o absolutismo é odegredoparaas colônias ebasesmilitaresdistantes.Nocasoda Inglaterra,ocorreuopovoamentodaAméricadoNorte(séculosXVIIeXVIII),daNovaZelândiaedaAustrália(séculoXIX).OVagrancyActde1597regulamentava,pelaprimeiravez,asdeportaçõesnoreino.

Situando o caráter draconiano do Livro V das Ordenações Filipinas, AntónioManuel Hespanha15procuroudemonstrarqueaspenasmuitorigorosas–enforcamento,deportação–erampoucoaplicadas,constandona legislaçãomais comuma função simbólica de intimidar e atemorizar que foi combinadacom o perdão real, como já destacamos anteriormente. Nesse pêndulo – temor e perdão – estaria afórmuladalegitimidadepolíticadoabsolutismoportuguês.

A ideia de um “rei pio e misericordioso” estava inscrita no imaginário e na simbologia dasmonarquiasabsolutistasqueaacuradaanálisehistórico-antropológicadeMarcBloch,umdosfundadoresdachamada“EscoladosAnalles”,aoladodeLucienFebvre,detalhou.16

A punição realizada pela monarquia absolutista portuguesa caracterizou-se por uma estratégiacorrespondenteàpróprianaturezapolíticadesta.Noplanopolítico,opoderrealseconfrontavacomumapluralidade de poderes periféricos, frente aos quais assumia o papel de árbitro, a partir de umahegemonia apenas simbólica. Domesmomodo, relativamente ao domínio da punição, a estratégia daCoroanãoseencontravavoltadaparauma intervençãopunitivacotidianaeefetiva.FaltavaàCoroaapossibilidade objetiva de concretização das funções punitivas. Assim, o caráter draconiano dacodificação penal das Ordenações Filipinas, por exemplo, visava muito mais à produção de efeitosideológicosdeinibição,jáqueaspenasmaiscruéis(penademorte,degredoetc.)erampoucoaplicadas.Operdão,outropolodapunição,possibilitavaàintervençãorégiaoexercíciodagraça.Situa-senessepontoopapelatribuídoàclemênciacomoqualidadeessencialdomonarca.Ouseja,arepresentaçãodoreicomo“pastor”e“pai”dos súditos,quemais sedeviaamardoque temer, eraumdospontosmaiscomumente usados no processo de legitimação do poder real. É bem verdade que a clemência nãopoderia converter-se em abuso e licença, deixando impunes os crimes, pois os deveres do “pastor”incluíamtambémaproteçãodo“rebanho”.Cabia,portanto,aoreiadecisãopolíticadedosaroperdão,difundindo-senoimagináriosocialaideiadequeorei,maisdoquepunir,deviaignorareperdoar,nãoseguindoàriscaorigordodireito.

Aquebra da lógica punitiva presente no absolutismoocorreu como iluminismo.Datou de 1763 aprimeiraediçãodolivrodeBeccaria,Dosdelitosedaspenas.AinspiraçãoiluministadeCartaspersas(1721)eOespíritodasleis(1748),deMontesquieu,dasCartasinglesas (1734),deVoltaire,criaramum clima favorável ao questionamento das execuções públicas e do suplício. Tanto Beccaria quantoVoltaire aludiram aos desdobramentos possíveis destas penas como capazes de provocar distúrbiossociais“perigosos”;adetençãoemprisõesfoiconsideradaamelhorformadepunição.JeremyBenthamencaminhou projetos filantrópicos próximos aos de Beccaria em seu Princípios de moral e delegislação, impresso em 1789; sua atenção estava voltada para a paz social e a eficácia do sistema

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político.Teoriadoscastigosedasrecompensas(1811)foipublicadoprimeiramenteemfrancêsedepoisem inglês, dividido em duas partes: Fundamento racional da recompensa (1825) e Fundamentoracional do castigo (1830). Nele, o autor expôs suas preocupações com as reformas sociais (dasprisões,dodireitoprocessualedaorganizaçãojudiciária),numaperspectivautilitarista.Preocupou-setambém com a organização do poder, e as reformas sociais constituíam para ele apenas ummeio deassegurar a ordem. Estava, portanto, aberto o caminho para a reforma do direito penal que foiimpulsionada no último quartel do século XVIII, com a classificação dos atos infracionais(delitos/crimes)ecomamitigaçãodaspenas.

Acirculaçãodasideiasjurídico-penaisiluministaspelasformaçõeshistóricaseuropeias,numsentidogeográfico,17 produziu efeitos ideológicos e políticos. O primeiro código criminal iluminista, o deToscana,comodissemos,datade1786;aFrançatemseunovocódigoem1791.NaregiãodaAlemanha,aPrússiaéoprimeiroEstadoaadotar,tambémem1791,umanovacodificaçãopenal.

Em Portugal, a encomenda de uma nova codificação foi solicitada num quadro de transformaçõesensejadas pela necessidade daCoroa de definir como objetivo a reforma da justiça, para aumentar aeficáciadoEstado.Asmedidaspombalinasapontaramestatendência:acertificaçãodasfontesdedireitoe adisciplinada jurisprudênciapormeiodaLei daBoaRazão (1769); a sistematizaçãoda formaçãojurídica e a disciplina do discurso dos juristas, impulsionadas pela reforma dos Estatutos daUniversidadedeCoimbra(1772);asistematizaçãododireitolegislativo,comatentativadonovocódigocriminal;18areformadaorganizaçãojudiciáriasenhorialde1790e1792(preparatóriademedidasmaisamplasdereorganizaçãojudiciária,comoadareformadascomarcas);acriaçãodaIntendênciaGeraldePolícia. Mais que isso, o crime passou a ser distinguido do pecado ou do vício, restringindo-se,consequentemente,opoderdeintervençãododireitorégio.Emsuma,redefiniu-seolugardodireitoedalei no contexto das tecnologias de disciplina social. A própria lei tornara-se um instrumento depropaganda, buscando-se técnicas de sistematização e de exposição para redigi-las a partir doracionalismo:trata-sedométodosintético,compendiário,sistemático,comooformularamosteóricosdopombalismojurídico.OsdebatesparlamentareseostextosjurídicosquecomentamoCódigoCriminalde1830atestamaapropriaçãodesseideárionaformaçãoideológicabrasileira.

Foucault trabalhou com as mesmas referências bibliográficas de G. Rusche. The Town Labourer,1760/1832, livro de J. L. e Barbara Hammond, de 1917, que mostrava como os magistrados ruraisconverteram-se no órgão mais efetivo do sistema repressivo pelo uso arbitrário das leis contra avadiagem,embasouasreflexõessobrevigilânciaepoliciamento.J.Servan,LeSoldatCitoyen,de1780,N.T.,DesEssarts,DictionnaireUniverseldePolice(1787)eN.Delamare,TraitédePolice, livrode1705,foramasprincipaisreferênciasdeMichelFoucault.

P.Colquhoun,emATreatiseonthePoliceoftheMetropolis,quetevesuasextaediçãopublicadaem1800,emLondres,apontouasdificuldadesdevigiaredisciplinarapobrezaeavadiagemurbanas.Acidadeeravistacomoesconderijo,lugarpropícioàsrevoltasurbanas19eàsdesordensdetodasorte.Naimpossibilidadedecontrole totalsobreamalhaurbana,Colquhounviabilizouoabandonodessa ideia.Rompeu,portanto,comafantasiaabsolutistadeumplenocontrolesobretudoesobretodos.Essaruptura,de corte liberal, permitiu à escola de polícia londrina estruturar estratégias de zoneamento da cidadecomoformadecontrolepossíveldoespaçourbano.Criaram-se,assim,osespaçosda“ordem”(zonasresidenciais, de “casas de família”), bempoliciados. Possibilitou-se, dessa forma, o confinamento depráticasreservadasaosespaçosda“desordem”:meretrício,vadiagemetc.

A abdicação da fantasia absolutista de controle total não foi processada na formação históricabrasileira,portanto,nemmesmoquandoseaboliuaescravidãoeseinstituiuaRepública.Persistimos,noBrasil, comesta fantasiadocontrole social (policial)absolutosobreosespaçosurbanos (naverdade,controlesobreamassadeex-escravosedetrabalhadoresurbanos,deummodogeral).Daíaênfasenas

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campanhasdeleieordemaindadiscutidaseimplementadaspelaspolíciasnoBrasil.Do ponto de vista damodernização das políticas de repressão, para situarmos nossa reflexão em

outra temporalidade – no período republicano –, não podemos deixar de considerar as reformasempreendidasnas instituiçõespoliciaise judiciais, tendoemvistaoprocessodeconstruçãodaordemburguesanoBrasil.Naquelaconjunturadesubstituiçãodamãodeobraescravapelalivre,adensava-seoprocesso de constituição do mercado de trabalho. Este processo buscava primordialmente a suaregulamentação,envolvendoaafirmaçãodaideiaburguesadetrabalho.Nesseponto,aconstituiçãodomercado de trabalho, uma criação institucional,20 assumiu importância fundamental no processo maisgeral de transição do capitalismo àmodernidade. No caso brasileiro, a transição para o capitalismoimplicou apresençade aspectosdeumamodernização conservadora aqual envolveu a construçãodaideia de indivíduo, de disciplina e de mercado, embasando a reforma da legislação penal quefundamentou o processo de criminalização dos setores subalternos. Esses aspectos conviveram (econvivemainda)comapermanênciadeumaculturajurídico-políticabaseadanaobediênciahierárquicaenafantasiaabsolutista21deumcontroletotalsobreoscorposdostrabalhadores(grandepartedelesex-escravos).

NaviradadoséculoXIXparaoXX,continuouasituaçãodeambivalênciajápresentenasociedadebrasileiradesdeostemposimperiais:aintroduçãodoideárioburguêsseinterpenetroucompermanênciashistóricas de longa duração de aspectos da cultura política do Antigo Regime e do escravismo, quederamsuporteaumapráticajurídico-políticaeaumaafetividadeabsolutista,desafiandoaracionalidadedocapitalismoeseuideário,quesequeriaimplantar.Essaambivalênciapodeservistaapartirdetrêstextoslegais,promulgadospeladitaduramilitarquedeuogolpedeEstadoeimplantouaRepública(em1889)–umanoapósaaboliçãodaescravidão(1888):oCódigoPenal(1890),aLeidoCasamentoCivil(1890)eaConstituiçãodaRepúblicadosEstadosUnidosdoBrasil(1891).

Apontar os textos legais como uma referência para nossa reflexão permite-nos destacar algunsaspectos ligados ao campo político e institucional brasileiro. Uma abordagem comparativa parecesugerir contradições entre eles, pois o Código Penal distingue-se por seu caráter eminentementerepressivo,oquepodeserobservado,porexemplo,nocapítuloreferenteaos“Crimescontraaliberdadede trabalho”,22 enquantoa seçãoconcernenteà“Declaraçãodosdireitosdoscidadãosbrasileiros”,naConstituiçãode1891,23serveparaatestaroliberalismoqueinspirousuaelaboração.Aomesmotempo,odecreto-lei sobre o casamento civil pôs fim ao debate que se estendia desdemeados do séculoXIX,quandoforaencomendadooprojetodecódigocivilaojuristaAugustoTeixeiradeFreitas.Aquestãodocasamento civil (peça-chave na modernização da legislação do direito de família) arrastou-se pordécadas; ea legislaçãoportuguesade1603só foi substituída,noBrasil, em1916!Os freiospara suaimplantação devem ser buscados na forte presença do conservadorismo clerical no país. A visão defamíliaeoprojetodedisciplinamentoedecontrolesocialesexualdaIgrejaCatólicaestavamfortementearraigados na formação histórico-ideológica e na cultura política brasileira. Com a Proclamação daRepública, sob a liderança de militares positivistas e anticlericais, esperava-se, com certeza, asecularização do casamento no país, passando-o, portanto, para o foro civil; nesse caso, o casamentoseria considerado um contrato. Todo contrato (no sentido burguês do termo) implica o destrato – odivórcio. A lei do registro e do casamento civil de 1890 transferiu para o Estado o casamento,secularizando-o; proibiu, entretanto, o divórcio.24 Estavam, portanto, definidos e garantidos doisinstrumentos legais autoritários e conservadoresparaocontrole social a ser exercido.Apromulgaçãodessesdoisdecretosumanoantesdaleimaior,aConstituiçãode1891,adquiriuumcaráterantecipatóriode seus aspectos altamente autoritários e repressivos.Os debates políticos (e teológicos) divergentesentrejansenistasepapistas(jesuitistas)refletiameincidiamsobreadinâmicasocial.Mesmoporqueadiscussãosobreofornecimentoexternodetrabalhadores,pormeiodaimigração,implicavaaresoluçãode problemas legais ligados aos direitos civis de estrangeiros residentes no país, especialmente em

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relaçãoàsopçõesreligiosasdessesimigrantes.Comoregimedepadroado,àIgreja(ligadaaoEstado)cabiaoregistrocivil(nascimento,morte,testamentoecasamento);oscasamentosconsideradosválidosjuridicamentenoBrasilaté1890,comosconsequentesefeitosnoprocessodetutela,herançaesucessão,eram aqueles ocorridos no rito e na norma do direito eclesiástico. Como empreender, portanto, umapolíticadeimigraçãoemmassa,comoaqueacabouocorrendo,semlevaremcontaessesaspectos?25Aimigraçãodeprotestantes,nomínimo,colocavaumproblemaparaagovernaçãodasociedadebrasileira,nummomentoemqueotráficoeotrabalhoescravoestavamsendofortementequestionadosdopontodevistainternacional.AdefesadeumaleidecasamentocivilparaoBrasil,emmeadosdoséculoXIX–odebateocorreuentre1850/70–,coubeaoscatólicos ilustrados(deformação jurídicacoimbrense),emoposiçãoaoultramontanismodasposiçõescontráriasàsecularizaçãodoscasamentos.

Poroutro lado,oprocessode circulaçãode ideias em termos atlânticos e transnacionaisdeve serlevado em conta, em face do processo de modernização. O discurso jurídico no Brasil buscoulegitimidadenopensamentoeuropeu,particularmentepormeioda incorporaçãodenovas reflexões.Aemergência da criminologia, no quadro específico das formações sociais europeias, decorreu danecessidadedelegitimaçãodadominaçãoburguesa,queestavasendofortementecontestadanaviradadoséculo. A busca da “cientificidade”, com a criminologia, a sociologia e a psicologia, significou aelaboração de um discurso capaz de garantir a hegemonia burguesa diante do avanço do movimentooperário europeu organizado pela II Internacional. Na definição da criminologia como nova ciência,encontramos,comfrequência,ainfluênciadocriminólogoitalianoCesareLombroso,cujasformulaçõesatrelavam-se ao racismo-biologista. Tais posturas foram assimiladas e reelaboradas em teses sobre oBrasileo“criminosobrasileiro”.Esteganhounovosadereçosrelacionadosàsteoriasdamiscigenaçãoracialeàselucubraçõessobreapresençadeex-escravosdeorigemafricananascidadesbrasileiras.26Aapropriação do determinismo lombrosiano foi (e tem sido ainda) hegemónica no campo jurídicobrasileiro (especialmente para a justiça criminal) e introduziu aspectos aparentemente “científicos”(porquesecularizados)naposturamuitoantigaherdadadaculturareligiosapessimista,ancoradanaideiadepredestinação(aomal).

Comumaenormepreocupaçãocomaeficáciadaaçãojudicial,odiscursojurídiconoBrasil,desdeoinício do período republicano, realizou um movimento que tem ido da apologia da disciplina e dotrabalho às práticas repressivas que deveriam ser as mais “modernas e eficientes”, discorrendoamplamenteacercadaspenasedoefeito ressocializadordaação judicial.Nessesentido,a instituiçãojudiciária promoveu um conjunto de práticas políticas e ideológicas que visavam a uma atuaçãodecisivamentedisciplinar,pormeioda“educaçãopeloeparaotrabalho”.Essavisãotemdominadotodoo discurso do campo jurídico para a justiça criminal pormais de um século.Contudo,mesmo com aadoção de uma perspectiva disciplinar e ressocializadora, na qual, pelomenos em tese, a questão darecuperação(peloeparaotrabalho)secolocavacomometa,apolíticaparaajustiçacriminalnoBrasilrevela-nosapermanênciadepráticas repressivasantigas, ligadasaindaà sociedadeescravista, ecomfortepresençadaaçãoreligiosadaIgrejaRomana.

ApenademortevigoravanoCódigoCriminal (1830),paraos escravos envolvidos em rebeliões;embora redigido soba formamoderna–napropostado iluminismo jurídico-penal– amanutençãodaescravidãodeucontornosabsolutistasàspráticaspunitivasna formaçãosocialbrasileira. JáoCódigoPenal(1890)nãopreviaapenademorte(dedireito).27Aocontrário,espelharam-se,aopédaletra,asnecessidadeshistóricasdaconjunturadesubstituiçãodotrabalhoescravopelolivre.Masacontingênciadeumaformaçãohistórico-socialemtransiçãoimpunhatalpena,defato.Ouseja,mesmocarecendodetrabalhadoresparaconstituireampliaromercadodetrabalho,aaçãodisciplinadoraeressocializadoradas instituições de controle social não ocorreu, vigorando uma prática punitiva ainda relacionada aoAntigoRegimeeàescravidão.Nessesentido,interpretamosaspermanênciashistórico-culturaisdelongaduraçãocomoóbicesquecondenamasmodernizaçõesdaspolíticascriminaisaofracasso.Naverdade,a

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contradiçãoquedestacamosvempercorrendotodaatrajetóriadodireitonoBrasil.Consideramos,portanto,queahistóriadajustiçacriminalefetivousuapráticaideológicamuitomais

enfatizandouma ideiaexaltadade trabalhoededisciplinadoquepropriamenteporumaação judicialque visasse à recuperação ou à ressocialização, pela reintegração à sociedade (para o mercado detrabalho).Atémesmo na conjuntura de constituição domercado de trabalho do início do séculoXX,quandodependia,ainda,defornecimentoexterno,pormeiodeumapolíticaimigrantista,aretóricaquedavasuporteàpolíticacriminalnãovinhaacompanhadadeumaaçãojudicialafinadacomoseuideário.Tantoocrimequantoapuniçãoencontravam-se,portanto,relacionadosàconstituiçãoemovimentaçãodomercadodetrabalho.Nãoconcebemos,contudo,talrelaçãoocorrendodeumaformamecânicaedireta.Menosaindacomoumaregra(mãodeobraescassa=políticaspararecuperação/ressocialização;mãodeobraabundante=aplicaçãodapenademorte).Estamos,pormeiodaanálisehistórica,relativizandotalabordagem.

Oencaminhamentodasestratégiasdecontrolesocialmodernasobedeceuaumalógicadebricolage.Defenderam-se as modernizações: criação de um sistema penitenciário – inclusive com penitenciáriaagrícola –, de uma escola para menores infratores (separando-os dos adultos) e, posteriormente, aseparaçãoporsexo(tudoissoaoladodeumaleidraconianadeexpulsãodeestrangeirosindesejados);adoção do sistemapenal daFiladélfia, combinado como deAuburn (EUA),modificado pelométodoirlandês, com prisão celular – 28 uma opção pelo modelo punitivo do puritanismo protestante norte-americano(aideiadequeoindivíduodeveriaserisoladoepermanecersópara,individualmente,refletirsobre seus erros etc.). Não se pode, no entanto, avaliar se os operadores do campo jurídico queencaminharamapromulgaçãodoCódigoPenalem1890 tinhamclarezasobreas implicaçõespolítico-religiosasdetaltipodepena,mesmoporqueainterpretaçãodaintencionalidadeúltimadasubjetividadepolítica e ideológica de agentes históricos implicados no processo social dificilmente pode serenunciadadeformaperemptória.Aoquetudoindica,osjuristasbrasileiros,envolvidosnareestruturaçãodo Estado sob a forma republicana, não estavam totalmente conscientes das implicações da culturareligiosa (pois sequer a ideia de indivíduo estava plenamente construída na formação histórico-ideológicabrasileiradeentão).Tambémnãopodemosdizerqueaculturareligiosadiferenciada(entreopuritanismocatólicoeoprotestante)estivesseforadosdebatespolíticosnocampointelectualbrasileiro,umavezquea“QuestãoReligiosa”naqualseenvolveuogovernoimperialem1873(comaprisãodosbispos de Olinda e do Pará, por desacatarem o beneplácito régio do imperador e perseguirem osreligiososquepertencessemàmaçonaria)29estavamuitovivanoiníciodaRepública.

Ocampointelectualbrasileiroesteve,entreasdécadasde1850e1890,fortementeenvolvidocomodebate político entre o catolicismo ilustrado (moderno-conservador, geralmente ligado à maçonaria,eivado de pragmatismo pombalino e antijesuitista; leitor de Bentham e Voltaire) e o ultramontano(regressista, antimodernista, conservador-clerical). Para as três questões-chave apontadas pelahistoriografia brasileira como fatores de desestabilização e queda damonarquia (“questão religiosa”,“questãoservil”e“questãomilitar”), foramintroduzidosargumentoscomparativosentreassociedadesdoNorte e doSul daEuropa e suas opções em face da reforma religiosa (protestante ou católica), eponderadas as vantagens e desvantagens de uma política de imigração de trabalhadores católicos ouprotestantes. O primeiro intelectual brasileiro a considerar a cultura religiosa em face da questãoimigrantista foiTavaresBastos,nadécadade1860.Sua reflexãomuito influenciouJoaquimNabucoesua prática política e ideológica em favor da abolição da escravidão. Não por acaso, o tema seapresentouvivamentenapenadageraçãoseguinte:omaisfamosolivrodeGilbertoFreyre(influenciado,porsuavez,porJoaquimNabuco),Casa-grande&senzala,30estabeleceumareflexãocomparativaentrea escravidão nosEstadosUnidos e noBrasil, a partir das duasmatrizes da colonização europeia nasAméricas,tendoareligião(protestantismoversuscatolicismoluso-tropical)comoumpontodeinflexão.

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Tudo isso possibilita uma interpretação acerca da ineficácia do sistema penal republicano: umaestratégiapunitivaquepressupunhaa ideiade indivíduo (presentenas sociedadesqueexperimentaramuma reforma religiosa protestante, predominantemente calvinista) foi adotada noutra sociedade pós-abolicionista,emsuamaiorparteholista,pelapresençadotomismo(apropriadoculturalmenteatémesmopelasposiçõesjansenistasesupostamenteantitomistas),emque,comtodacerteza,avisãoescravistademundoeseudesprezopelotrabalhoepelostrabalhadoresera,ainda,muitoforte.

Porseuturno,devemosrelativizarosefeitosinibidores-repressivosdascodificaçõespenais,sejanarepressãoàvadiagem(tendoemvistaaconstituiçãodomercadodetrabalho)ounoprocessodeinternalizaçãoafetivo-ideológicadomedoedasubmissão(emrelaçãoàspermanênciashistórico-culturaisdelongaduraçãodepenasdraconianasdoAntigoRegime:degredoepenademorte).

OfuzilamentodopadreRoma,em1817,nãodissuadiuseufilho,JoséInácioAbreueLima,eoutrosliberais revolucionários que participaram ativamente daConfederação do Equador, em 1824.Após ofracassode1817,AbreueLimaserefugiounaColômbiadeSimonBolívar.OexíliodeAbreueLima,naVenezuelaenaColômbia,foilongo,esuaintegraçãoàslutaspelaindependênciadasAméricasédignadenota.RetornouaoBrasilem1831,eaoRecifedepoisdequase27anoslongedaterranatal(13naColômbiae13noRiode Janeiro).Seu retornonão implicouacomodação,eAbreueLimaparticipoucomojornalistaepanfletáriodaRevoluçãoPraieira(1848),alémdascampanhasedosdebatespolíticosemtornodedireitoscivisdeestrangeirosnoBrasil(especialmenteaquelesreferidosàsecularizaçãodecemitérioseaocasamentocivilesuasimplicaçõesquantoàherança,tutela,sucessão).

Quandomorreuem8demarçode1869,foiaelenegadasepulturanoCemitérioPúblicodoRecifepelo bispo D. Francisco Cardoso Ayres – punição aplicada pelo direito eclesiástico brasileiro. Obanimento (post-mortem) aí implícito é sintomático dos efeitos produzidos nas expectativas deobediênciaesubmissãoquearelaçãoentreculturareligiosaeculturajurídicarevela.Somenteem1948,anodas comemoraçõesnoRecifedocentenáriodaRevoluçãoPraieira, pormeiodedecreto estadual,seusrestosmortaisforamremovidosdo“cemitériodosingleses”(nomegenericamenteutilizadoemtodooBrasilparadesignaroscemitériosprotestantes)paraotradicionalCemitérioPúblicodeSantoAmaro.

Diferentementedapenademorte,apenadedegredofoiexplicitadanacodificaçãopenal imperial,em1830.Pensamos,entretanto,emalgumasdiferenciaçõesquantoaosefeitosdissuasivosentreasduaspenasdoAntigoRegime.Aaplicaçãododegredofoi limitadaaoscrimesdesediçãoerevoltamilitar,predominantemente.31 Outra característica da aplicação da pena de degredo é que ela deixou de seraplicada após a reforma do código de processo criminal, em 1841. Em trabalho recente, FranciscoFerreira Jr. encontrou apenas um único caso de aplicação da pena de degredo pós-1840, paraGuarapuava. Esse município do Paraná foi fundado como colônia penal para degredados ainda pelaCoroaportuguesa,porcarta régiade1809, tendoemvistaopovoamentoeaproteçãodo territóriodefronteira.Os condenados ao degredo eram enviados paraGuarapuava pormeio de cartas-guias.Umaúnica carta-guia foi encontrada nos arquivos públicos paranaenses, após 1841: a de um falsário, JoséMariaCândidoRibeiro,degredadoportuguêsquechegouaGuarapuavaem1859.Omoedeirofalsotinha54anosevinhadaCorte,tendoantesvividonaprovínciadaBahia–ondefora,porprimeiro,condenadopelo crimede falsificaçãodemoedas.HaviavividonoRiode Janeiro, tendo recebidoumaeducaçãoaprimorada.Eraumexímiopintoreretratista,alémdefalsárioreincidente,umavezqueforacondenadoem 1840 pelomesmo crime. Foi acompanhado de um casal de seus protegidos; portanto, não estavacompletamente só. Esse degredado não deixou de manter contatos com a Corte e, de Guarapuava,comandavaseusnegóciosarticuladoaumarededecomunicaçãocomfalsáriosnoRiodeJaneiro.JoséMaria Cândido, no entanto, acabou se suicidando, embora em seu volumoso processo não houvessequalquerindícioparaessedesfechotrágico.Parece-nosqueeleficoudeprimido,comapartidadeseu

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protegidoparaaCorte,afimdetratardeseusnegócios.Portanto,foioisolamento,nãoaqueleaplicadocomo pena pelo poder público, mas o que resultou da viagem de seu protegido, que o colocou emsituaçãodesofrimento.

DopontodevistadajustiçacriminalnoBrasil(sejanoImpérioounaRepública),odegredovemsendoaplicadonoscasosdecrimespolíticos(nãonosesqueçamosdoexíliodeadversáriosdarecenteditaduramilitar–entre1964,datadogolpemilitar,e1979,leidaanistiapolítica).Entretanto,apenadedegredomantidanacodificaçãode1830traziaalgumascaracterísticasdapolíticadedegredodesferidapelasmetrópoleseuropeiasparaoprocessodecolonizaçãodesuaspossessõesultramarinas.Apenadedegredo,orecrutamentomilitarobrigatórioeasgalésforamutilizadospelasmonarquiaseuropeiasnoAntigoRegime,apartirdoséculoXVI,eestavamdiretamenterelacionadosaotrabalhocompulsório,32pelafaltadetrabalhadoressubalternosepopulaçãoparapovoamento.AmanutençãodasgalésedodegredonoCódigoCriminalde1830refletebemaquelemomentodetransiçãonoBrasil,emqueeragrandeafaltadecontingentesparaoserviçomilitareparaopovoamentodefronteiras.33Logo,emplenoséculoXIX,enfrentavam-sesituaçõesbemparecidascomasvividaspelasmonarquiasdoAntigoRegime.

Porseuturno,acodificaçãode1830nãosustentouapenademorteparaosqueeramconsiderados“cidadãos”, já que a pena demorte estava prevista para os crimes de rebelião escrava. As disputasparlamentaresnaquelaconjunturarevelamprismasdodebate ideológico,noqualpodemosobservarasimbricaçõesentre asposiçõespolíticas e as religiosas.Amanutençãodapenademorte foidefendidapelosliberaisradicais,influenciadospelasmodernizaçõespombalinasnaformaçãojurídicacoimbrense,de corte jansenista, portanto, rigorista. Desse modo, havia pouca expectativa (e, por que não dizer,crença)narecuperaçãoeressocializaçãodosistemaprisional,jáemvoganasduasmargensdoAtlânticoedefendidaspelos autoresmais citadospor estesmesmosparlamentares (BenthameVoltaire eramosautoresmaisvendidosnoBrasilnaquelaconjunturahistórica).34Osentimentopredominanteeraodequeos criminosos estavam predestinados ao mal. A posição mais conservadora era, aos olhos de umobservadordehoje,aparentementemaisflexível(nãoserialaxista?),mastambémformulavaumdiscursodecoloraçãoliberaleerasustentadaporposiçõespapistasejesuitistas,rejeitandoapenademorte.

Cabemaquiváriasperguntas.Quaisasinfluênciasdamoralreligiosajesuíticaedajansenistaentreospenalistasbrasileiros?Apesarda fortepresençacultural jesuítana formaçãoeducacionalbrasileiracomo um todo (pois tiveram o monopólio do ensino em Portugal e no Brasil até sua expulsão pelomarquêsdePombalnoúltimoquarteldoséculoXVIII),o jansenismoeoutrasformasdedoutrinaçãoevivência da espiritualidade cristã não deixaram de se fazer presentes.Onde sua influência? Se, numaprimeira leitura de algumas fontes bibliográficas de época, identificamos uma maior influência dojesuitismo e do tomismo no pensamento jurídico-penal, não podemos descartar com facilidade outrastendências.

Ahistóriadasideiasjurídicasedaculturajurídicaereligiosanocampopenalemfacedoprocessode secularização e suas influências no pensamento social e jurídico-político devem ser analisadas, atítulo de exemplificação, a partir dos debates parlamentares no Brasil no contexto da elaboração,discussãoeaprovaçãodoCódigoCriminal(1830),comdestaqueparaosdiferentesencaminhamentosemtornodapenademorteedasgalés.

Nasessãode13desetembrode1830,PintoChichorro,deputadopernambucanodoPartidoLiberal,encaminhouumrequerimentoquetratavadainclusãodapenademorteedegalésnoprojetodecódigocriminal.35Odebatequeseseguiuéinteressanteporquepossibilitaidentificarduasposiçõespolíticaseideológicas: uma, claramente a favor da manutenção de penas ainda relacionadas ao Antigo Regime(galés e pena demorte),mas que, contudo, eram articuladas pelos segmentos liberaismais radicais e

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anticolonialistas;aoutraposiçãosedeclaravacontráriaàpenademorteeinscreviaseuposicionamentoem argumentos que combinavam, a um só tempo, o iluminismo penal (vigente e vigoroso, nas duasmargensdoAtlântico),comumaatualizaçãohistóricadaideiadedireitonaturalaindaemaranhadanosfundamentos tomistas. Podemos mesmo dizer que, nesta atualização histórica, a modernidade daconcepçãotomistaéestruturantedoconjuntodosargumentosaseremencaminhadospelosjuristas(tantodaqueles que defendiamquanto dos que rejeitavam a pena demorte) que compunham a comissão quediscutia,noParlamentobrasileiro,acriaçãodeumcódigocriminalmodernonoBrasil.

Interessante observar que as penas de galés e degredo (aplicadas amplamente noAntigoRegime)forammantidas.Não encontramos grande ênfase ou polarização quanto à suamanutenção nos debatesparlamentarespesquisados.Concluímosquesuapermanênciafoiadmitidacomoumasalvaguarda.Asuaaplicação foi bastante limitada, restringindo-se à punição às sedições e revoltas militares, comomencionamos.Contudo, em relaçãoàpenademorte, encontramosumadiscussãomais acalorada. Issoporque,defato,odebatejurídico-penalestavarelacionadoaoteológico(sobrepenitênciaeperdão).OsargumentoscontráriosàpenademorteforamdefendidospelodeputadoAntônioRebouçasqueatribuíaainsistência namanutenção desta pena e das galés a ideias equivocadas dos advogados.Toda lei civildeveria,segundoele,derivar-sedaleinatural,vistacomoagrandeleiqueimpeliriaoshomensafugirdasmásaçõeseaseguirocaminhodobem,oqueosconduziriaàcivilização,apesardosesforçosqueodespotismovinhafazendo.Apromoçãodasinstituiçõespúblicas,quepermitiriaaohomemconhecerseusdireitosedeverescomanação,possibilitariaorespeitoentreossemelhantes.Esteraciocínioconduziu-oadefenderacriaçãodecasasdecorreção,quepropiciariamainstruçãoprimáriaeamoralpública.Apenademortefoidenunciadacomoinjustaedesigual,sendoaplicadaconformeapessoaenãoocrime.Talfatorevelaumagrandedissimulaçãoquantoà igualdadedosréus,argumentomuitoforte, tendoemvistaqueAntônioRebouçasfoioprimeiroparlamentarafrodescendente.

Para legitimar suas opiniões, os parlamentares recorriam a citações de juristas estrangeiros.Levingston,relacionadoaocódigocriminaldaLuisiânia(umestadoescravistadosEstadosUnidos),eraconsiderado pelos legisladores brasileiros como fonte de consulta para a elaboração do código noBrasil.FoiencomendadoumexemplardocódigocriminaldaLuisiâniae,emseguida,votou-separaquese preparasse, o mais rápido possível, uma tradução do mesmo. Vários argumentos do pragmatismopolíticoinspiradoemJeremyBenthameramutilizados:queapenademortetraziaconsigoaimpunidadeporqueninguémqueriaconcorrerparaamortedeseusemelhantee,quandoocrimepraticadopreviaestapunição,aindaqueastestemunhasnãorelutassememdeporaverdade,osjuízesevitavamumasentençafatal.Ointeressante,contudo,éque,emseguida,opragmatismopolíticocedeuaosargumentosdeordemreligiosa.OdeputadoAntônioPereiraRebouças assumiupronunciamentos fortemente inscritos na lutaconstitucionalista, mas relativamente distantes do paradigma legalista iluminista; fazia frequentesreferênciasaopoderdoscéus:considerouum“absurdoopoderquesearrogamoshomensdeaimporcontraopoderdeDeus”.Conclui,citandoBentham:“melhor foraconservaraexistênciaaocriminosoarrependidoeaptoamelhorardevidaetornar-seaindaprestávelasieàsociedade”.

Oprocessodecirculaçãodeideiasdoiluminismopenalenvolveu,semdúvida,osjuristasbrasileirosqueestiveramà frenteda tarefade codificar aprimeira legislaçãopenalpós-emancipaçãopolítica.Amodernização e a atualização dos intelectuais do campo jurídico (em termos de leituras, autores ereferências) atestam esse processo. Nesse sentido, não consideramos a existência de um atraso daintelectualidadebrasileiranocampododireitoemrelaçãoaospoloseuropeus.Oatrasooudefasagem(naverdade,duploatraso:entreBrasilePortugaleentrePortugaleorestantedaEuropa)temsidoumpressupostonahistoriografiabrasileira.36Pensamosdiferentementedessahistoriografia:acirculaçãodeideiaselivrosocorriasimultaneamenteàcirculaçãodemercadoriasedepessoasnumamploprocessode trocas que envolviam várias formações históricas. A intelectualidade brasileira estava atualizadateóricaeideologicamenteemfacedasprincipaisdiscussõesdaquelatemporalidade.

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Queremos,porfim,lembraraquiasobservaçõesdeNatalieZemonDavis,emartigointitulado“Ritosdaviolência”,37noqualdiscuteaforçaculturaldeumadadapregaçãofundamentalistaeinflexívelnasguerrasreligiosasocorridasnaFrançanoséculoXVI.Partindodostextosbíblicosusadostantoporcatólicosquantoporprotestantes,NatalieDavisconstatadoisimportantesprocessosdecirculaçãodeideiasqueculminariamemritodeviolência:umdeleséodedesumanizaçãoeooutrodepurificação.Emtodososcasosconsideradosparaanálise,aautoradestacaqueoprocessodelegitimaçãodaviolênciareligiosaestavaancorado,naformaenolugar,àvidadoculto.Osatosviolentoseram,elespróprios,derivadosdeumestoquedetradiçõesdepuniçãooudepurificaçãocorrentesnaFrançadoséculoXVI.Portanto,aviolênciaeacrueldadedosatosdamultidãonosmassacresde1572(SãoBartolomeu)nãoforamumfatoexcepcional,masumacontecimentomaiorquetinhavínculoscomautoridadespolíticasesofisticadasredesdecomunicaçãopelaFrança.ConcluiDavis:

Masosritosdeviolêncianãosão,emnenhumsentidoabsoluto,umdireitoàviolência.Elesapenasnosrelembram que, se tentarmos ampliar a segurança e a confiança no interior de uma comunidade, setentarmos garantir que violência ali gerada tomará formasmenos destrutivas e cruéis, então devemospensarmenosarespeitodecomopacificaros“desviantes”emaisemcomomudarosvalorescentrais.38

CompreocupaçõespróximasdasdeNatalieZ.Davis,emrelaçãoàhistóriacultural,CarloGinzburg,em conferência pronunciada em 2006, no Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederalFluminense(UFF),aconvitedoLaboratórioCidadeePoder,trabalhouaspermanênciasculturaisdelongaduraçãoapartirdaanálisedolivrodeThomasHobbes,Leviatã.Inspiradonasdiscussõesquediferenciam o processo de laicização do de secularização,39 Ginzburg percorre a obra de Hobbesidentificando suas práticas de leitura e as metáforas e expressões por ele utilizadas, interpretadasenquantoindíciosdequeofenômenodasecularizaçãoestavabemlongedeseucumprimentonareflexãohobbesiana.IstoseobservaespecialmentenousodonomeLeviatã,quenolivrodeJódesignaumabaleia–umanimalmonstruosoetemido–enacitaçãodatraduçãolatinadeSãoJerônimo(“nãoexistepodersobre a terra comparável ao seu”) contida no frontispício da primeira edição inglesa do livro deHobbes. No desenvolvimento das ideias de sujeição, reverência e medo, Hobbes inspirou-se empassagensbíblicaselivrosreligiososquecirculavamnaInglaterra(enaEuropa)noséculoXVII.ParaGinzburg,Hobbes conclui que a secularização não se contrapõe à religião: em vez disso, invade seucampo.Na captura da expressão “awe” (temor, relacionado tanto à reverência quanto à sujeição), talcomo aparece nos textos (religiosos e do próprio Hobbes que, para grande parte da interpretaçãoiluminista, inaugurou uma concepção do Estado secularizada), Ginzburg40 alude ao fundamentalismo(neoliberal) que se apresenta na contemporaneidade, numa permanência cultural de longa duração: onomedaoperaçãomilitardeinvasãoaoIraque,apósosataquesdeOnzedeSetembro,“ShockandAwe”,guarda referências múltiplas às relações entre religião e cultura política, as quais podem bem serbuscadas na formulação hobbesiana que sofreu um processo de atualização histórica e apropriaçãocultural.

Apartirdessasduasposições,sustentamosnossosargumentosacercadaspermanênciashistóricasdelongaduraçãonosistemadejustiçacriminalbrasileiro.Podemos,portanto,retomarnossareflexãosobreestapolítica,naatualidade.Combasenostantosesforçosdocampodemocráticoemrelaçãoàlutapelosdireitoshumanos, no contextodadiscussão e aprovaçãodaConstituiçãode1988, sublinhamosque seafirmouaideiadequeosréuscondenadosdeveriamcumprirapenaempresídiospróximosdesuaregiãodemoradia,tendoemvistaaproximidadedeseusfamiliares.Logicamente,visava-se,comestadecisão,aumapolíticadejustiçacriminalemqueaspossibilidadesderecuperação,ressocializaçãoeintegraçãosocialpudessemocorrer.Noentanto,asituaçãoéumpoucomaiscomplexa.Nãosetratapropriamenteda

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distância(nosentidofísico)queafastaosfamiliaresdosquecumprempenadeprivaçãodeliberdadenoBrasile,consequentemente,acentuamaineficáciadosistema.Omaisgraveéoprocessoideológicoque,cravado na cultura política e religiosa, possibilita a desumanização dos presos, favorecendo aindiferença quanto aos maus-tratos ou à execução sumária em brigas de grupos rivais dentro dospresídios, que ocorre com tanta frequência. Fortalecem-se, assim, os argumentos de que aquelespredestinadosaomalnãocarecemdaproteçãodoEstado(mesmoquandoestãosobsuatutelaeguarda,comoéocasodospresidiários).Aomesmotempo,aausênciadecondiçõesegarantiasmínimasparaquehaja manutenção de vínculos familiares indica que a pena de degredo, ausente da codificação penalbrasileirarepublicana,continuaaseraplicada.Asmulheresefilhasdospresidiários(sobretudoestas)sãoaconselhadasaevitaravisita,poisasautoridadesdajustiçacriminalnãolhesgarantemaintegridadefísicaemoral.

Pensamos que, nos casos considerados para análise, o processo de legitimação da violência nosistemapenitenciáriobrasileiro está ancorado,na formaeno lugar,nacultura jurídicae religiosa.Osatosviolentossão,elespróprios,derivadosdeumestoquedetradiçõesdepuniçãorelacionadasapenasmuitoantigas(degredoemorte).Portanto,aviolênciaeacrueldadepresentesemnossosistemanãosãoumfatoexcepcional,masumacontecimentomaiorquetemvínculoscomasculturasjurídicaereligiosasobrepunição.

1Estetrabalhovincula-seaoProjetodePesquisa,financiadopeloConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq),intitulado“Religião,puniçãoeimpunidade:raízesteóricasdaformaçãodoutrinaldoiluminismopenal”.

2HESPANHA,AntónioManuel.Da“justicia”à“disciplina”,textos,poderepolíticapenalnoAntigoRegime.In:JustiçaeLitigiosidade,HistóriaeProspectiva.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,1993.

3NEDER,Gizlene.Iluminismojurídico-penalluso-brasileiros:obediênciaesubmissão.RiodeJaneiro:FreitasBastos/ICC,2000.4BERNARDES,DenisAntôniodeMendonça.Opatriotismoconstitucionalpernambucano,1820–1822.SãoPaulo/Recife:Hucitec/EditoradaUniversidadeFederaldePernambuco,2006.

5Aexpressão“neoabsolutismo”éempregadaporCarlSchorskeparareferir-seaoImpérioAustro-Húngaro.SCHORSKE,Carl.Pensandocomahistória.Indagaçõessobreapassagemaomodernismo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2000.

6CERQUEIRAFILHO,Gisálio.Autoritarismoafetivo.APrússiacomosentimento.SãoPaulo:Escuta,2005.7EstamostrabalhandocomaconceituaçãopresenteemlivrodenossacoautoriacomGisálioCerqueiraFilho.CERQUEIRAFILHO,Gisálio;NEDER,Gizlene.Emoçãoepolítica.(A)venturaeimaginaçãosociológicaparaoséculoXXI.PortoAlegre:S.A.FabrisEditor,1997.Adiscussãosobreosnovosparadigmascientíficosnasciênciashumanasédebatidatendoemvistaaarticulaçãodeestudosdatotalidadehistórica,combinadamentecomoenfoquedosmicropoderesesubjetividade&política,pormeiodahistória,sociologiaepsicanálise.

8CAMUSSO,GuillerminaGarmendiade;SCHNEIDER,Nelly.ThomasHobbesylosorigenesdelEstadoburgués.BuenosAires:SigloXXI,1973.

9Verodesenvolvimentodessadiscussãoemnossotexto.NEDER,Gizlene.OscompromissosconservadoresdoliberalismonoBrasil.RiodeJaneiro:Achiamé,1979.

10AsugestãodecaracterizaçãodeaspectospombalinosnosprocessosdemodernizaçãoemPortugalenoBrasilédadaporFAORO,Raymundo.ExisteumpensamentopolíticonoBrasil?SãoPaulo:Ática,1994.

11RUSCHE,Georg;KIRCHHEIMER,Otto.Puniçãoeestruturasocial.TraduçãodeGizleneNeder.RiodeJaneiro:REVAN/InstitutoCariocadeCriminologia,2.ed.,2004.GeorgRusche,pesquisadordocampododireitodaEscoladeFrankfurt,publicouem1933,naRevistadoInstituto,umartigoemqueestaquestãofoiprimeiramentelevantada,sobotítulodeArbeitsmarktundStrafvollzug.Em1939,olivrofoipublicadoemcoautoriacomOttoKirchheimer,intitulando-sePunishmentandSocialStructure.Trata-sedeumdosprimeirostextosdaEscoladeFrankfurtpublicadoemsolonorte-americano,depoisdesuatransferênciaparaNovaYork,em1934.ComodesaparecimentodeRusche,seutrabalhorecebeuacolaboraçãodeOttoKirchheimer,queescreveuaintroduçãoeoscapítulosfinais.DocapítuloIIaoVIII,otextoédeautoriaexclusivadeRusche;coincidecomseuartigonaRevista,masnãofoirevisadopeloautor.

12FOUCAULT,Michel.Vigiarepunir.NascimentodaPrisão.Petrópolis:Vozes,1978.13ARIÈS,Philippe.Históriasocialdacriançaedafamília.RiodeJaneiro:ZaharEditores,1978.14WEBER,Max.Aéticaprotestanteeoespíritodocapitalismo.Brasília:EdUnB,1981.15HESPANHA,op.cit.16BLOCH,Marc.Osreistaumaturgos.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1993.17GINZBURG,Carlo.Micro-históriaeoutrosensaios.Lisboa:Difel,1991.Apropósitodahistóriadaarteitaliana,Ginzburgsituaa

circularidadeculturalemtermosgeográfico-ideológicosdeformabastantepertinente.18FREIRE,PaschoalJosédeMello.Historiajurislusitani.Coimbra:AcademiaRealdeCiências,1778.Aprimeiratraduçãoparalíngua

portuguesadatade1968:Históriadodireitocivilportuguês,separatado“BoletimdoMinistériodaJustiça”.TraduçãodeMiguelPintode

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Meneses,N.173,174e175,Lisboa,1968.Trabalhamoscomumexemplarde1823doprojetodecódigoredigidoporPaschoalJosédeMelloFreire–EnsaiodecódigocriminalquemandouprocederD.MariaI.Lisboa:TypographiaMaiguense,1823.

19SCHORSKE,Carl.Aideiadecidadenopensamentoeuropeu.In:Pensandocomahistória.Indagaçõessobreapassagemaomodernismo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2000,p.53-73.Nesteartigo,SchorskedestacaqueopensamentoeuropeudasegundametadedoséculoXVIIItendeacaracterizaracidadecomolugardevício.

20RUSCHE,Georg;KIRCHHEIMMER,Otto.Op.cit.21NEDER,Gizlene.Op.cit,p.164-184.22CódigoPenaldaRepúblicadosEstadosUnidosdoBrasil,art.204e207,organizadoecomentadoporOscarMacedoSoares,Riode

Janeiro:LivrariaGarnier,1907.23ConstituiçãodaRepúblicadosEstadosUnidosdoBrasil,de24defevereirode1891,artigo72,parágrafos1oe31o.24SóadmitidonoBrasilapósemendanalegislaçãocivil,aprovadaem1977,nogovernodogeneralErnestoGeisel,duranteoregimemilitar.25NEDER,Gizlene.Odaguerreotipistaeosdireitos:odebatesobreosdireitoscivisdeestrangeirosresidentesnoBrasilemmeadosdoséculo

XIX.In:RevistadoInstitutoHistóricoeGeográficoBrasileiro(IHGB),v.435.Brasília:ImprensadoSenadoFederal,2007.26Como,porexemplo,areflexãoempreendidaporCARVALHO,Elysiode.Apolíciacariocaeacriminalidadecontemporânea.Riode

Janeiro:ImprensaNacional,1910.27BATISTA,Nilo.Penapúblicaeescravismo.In:NEDER,Gizlene(Org.).História&direito.Jogosdeencontrosetransdisciplinaridade.Rio

deJaneiro:REVAN,2007,p.27-62.28RelatóriodoMinistrodaJustiçaedosNegóciosInteriores,1891.29VIEIRA,DavidGueiros.Oprotestantismo,amaçonariaeaquestãoreligiosanoBrasil.Brasília:EdUNB,1980.30FREYRE,Gilberto.Casa-grande&senzala.17.ed.,RiodeJaneiro:JoséOlympio,1975.31FERREIRAJR.,Francisco.Aprisãosemmuros.GuarapuavaeodegredonoBrasildoséculoXIX.DissertaçãodeMestrado,sob

orientaçãodeGizleneNeder.ProgramadePós-GraduaçãoemHistóriadaUniversidadeFederalFluminense,Niterói,2007.32COATES,Timothy.Degredadoseórfãs:colonizaçãodirigidapelaCoroanoImpérioportuguês.1550–1755.Lisboa:CNCDP,1998.33PIERONI,Geraldo.Vadioseciganos,heréticosebruxas:osdegredadosnoBrasilcolônia.RiodeJaneiro:BertrandBrasil,2002.34FREYRE,Gilberto.InglesesnoBrasil.1.ed.,1948,RiodeJaneiro:Topbooks,3.ed.,2000.35AnnaesdoParlamentoBrasileiro.CâmaradosDeputados,RiodeJaneiro:TypographiadeH.J.Pinto,t.II,p.505,1878.Sessãode13de

setembrode1830,textoscoligidosporAntônioPereiraPinto.36FAORO,op.cit.37DAVIS,NatalieZemon.Ritosdaviolência.In:Culturasdopovo.SociedadeeculturanoiníciodaFrançamoderna.RiodeJaneiro:Paze

Terra,p.129-156.38Ibidem,p.156.39MARRAMAO,Giacomo.Poderesecularização.Ascategoriasdotempo.SãoPaulo:EdUNESP,1995;KOSELLECK,Reinhart.Crítica

ecrise.Umacontribuiçãoàpatogênesedomundoburguês.RiodeJaneiro:EdUERJ/Contraponto,1999.40GINZBURG,Carlo.“Medo,reverênciaeterror:relerHobbeshoje”,conferênciarealizadaem18/9/2006,sobosauspíciosdoDepartamento

deHistóriaedoProgramadePós-GraduaçãoemHistóriadaUniversidadeFederalFluminense(UFF),Niterói,Brasil,aconvitedaprofessoraGizleneNeder.TraduçãodeLuizFernandoFranco(versãofinal).

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A

3–APRESIGANGAREAL(1808–1831):TRABALHOFORÇADOEPUNIÇÃO

CORPORALNAMARINHAPalomaSiqueiraFonseca

presigangaeraumnaviodeguerraportuguêsqueserviudeprisãonoBrasilentre1808e1831.Estaprisãoflutuanteeracomoapontadeumicebergquecompreendiapráticasantigasedelongaduração,quepercorreramséculosparanelaserematualizadas,emumcontextomuitoespecífico,

odoprocessode independência doBrasil: do cruzamento entre estruturas e conjunturas, a presigangaemergiudemaresprofundosparaasuperfíciedosacontecimentos,doseventosrelativosàformaçãodoEstadonacional.Entreaspráticasantigas,otrabalhoforçadoeapuniçãocorporalfizeramdessenavio-presídioumreceptáculo,umaarcaqueagregousignosantigosquediziamrespeitoàpuniçãolegal.Se,nopassado,apresigangaeraumaembarcaçãoqueserviacomoprisão,hoje,porocasiãodosfestejosdosduzentosanosdachegadadafamíliarealportuguesaaoBrasil,serveparapensarsobrepermanênciaserupturasnaspráticasdepuniçãonahistória.1

AnauPríncipeReal,inutilizadaparaoserviçodecombateedesarmada,passouaservircomoprisãodepoisdetransportardepassagemarainhaDonaMariaIeoprínciperegenteDomJoãoporocasiãodatransferência daCorte portuguesa para a colônia daAmérica em 1807.À época, os navios não eramconstruídosparaseremprisões;pelocontrário,elesganhavamatribuiçõesconcernentesàmercancia,àguerraouàpesca.Sobosignodoprovisório,então,apresigangaeraumestadodonavio,quepodiaserretirado,poisserviacomoprisão.AnauPríncipeRealinaugurouoserviçodepresigangaefoiaquepormais temponelepermaneceu, entre1808e1831, fundeadanabaíadeGuanabaraaonorteda ilhadasCobras.2

O navio-presídio ficava sob os cuidados do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, umestabelecimentomanufatureirosituadonomaiorportocomercialdoAtlânticoSulàépoca,numespaçodecirculação e cruzamento de militares e civis, de embarcações de guerra e mercantes.3 O Arsenal deMarinha,dirigidoporuminspetor,desenvolviaatividadesrelacionadasaozelocomasembarcaçõesdeguerra,bemcomoatividadesprópriasaumportomilitar,assimexercendoodispositivodevigilâncianocenáriourbano-mercantedacapitalnaprimeirametadedoséculoXIX.EntreasrepartiçõesdaMarinha,eraaqueexpressavaemmaiorgrauoprincípiodealargamentodadisciplina.Comoexemplodaregradisciplinar de localização funcional, o Arsenal deMarinha militarizou o porto comercial do Rio deJaneiro,tornando-oumespaçoútil.4

Apresiganganãoera,emsimesma,umapenaouumcastigo,masumlocaldepassagemparacentenasde pessoas deslocadas, um local temporário, para estadas curtas: os presos não eram “condenados àpresiganga”,masneladepositadosporcondenaçãoouimposiçãoaotrabalhoforçado,porrecrutamentoforçado ou para receber castigo corporal. Portanto, esta prisão, emdefinitivo, não era como a prisãomoderna, ou seja, um local de reclusão de indivíduos condenados à pena privativa de liberdade.Atualmente,otermopresiganganãoécorriqueironoBrasil,indicandoqueseusignificadoseperdeunotempo e não possui equivalência com a penitenciária, hoje em dia o termo usual para designar umestabelecimentofechadoemterra.

O navio-presídio dispunha de uma guarnição formada por capelão, cirurgião, boticário, escrivão,despenseiro,oficiaismarinheiros,marinhagemetropas,aqualeraincumbidadediversastarefas:guarda

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dospresos,escoltados trabalhadores forçadosparaos locaisdos trabalhosesentinelanestesmesmoslocais,examesdesaúde,administraçãodemedicamentos,confortoespiritual,inventáriodebensezelopelocorpodaembarcação.Essacomposiçãoera semelhanteàdeumnaviodeguerra emserviço.Noentanto,otamanhodastropasdapresigangaeramuitosuperioraodorestantedaguarnição,algoquenãoocorria em um navio de guerra típico, provavelmente porque as tropas passaram a desenvolver umtrabalhoprimordialnaquelenavio,queexigiacontroledepessoassocialmenteindesejáveis.

OcomandantedapresigangaeraooficialportuguêsMarcelinodeSouzaMafra,quefoiparabordodanauPríncipeRealem5dedezembrode1808,permanecendonelalotadoatéjunhode1830,períodonoqualobteveaspatentesdemajoretenente-coronel.5AscomunicaçõesdeMarcelinodeSouzaMafraaoinspetor do Arsenal de Marinha, seu superior hierárquico, eram redigidas de próprio punho, pois acaligrafia do corpo dos ofícios é a mesma da assinatura. A letra é legível, redonda, caprichada,levementeinclinadaparaadireita.Provavelmente,ooficialdesenvolveuouaprimorouaescrita,alémdagrafia, devido à necessidade de, a toda semana, às sextas-feiras, emitir comunicação ao inspetor, os“Mapasdapresiganga”.6Mafraencerrava seusofícioscomo fecho“BordodanauPríncipeReal queservedepresiganga”.

Apresigangatinhaumprecedenteluso,umaexperiênciadeprisãoquesetrasladoudaterraaomar,em virtude das necessidades da própria Marinha portuguesa. O presídio da Trafaria, localizado emLisboa,estevesituadoemterrafirmedesdepelomenosadécadade1780,funcionandocomoumlazaretodaMarinha,ouseja,umlocalemqueosmilitarespermaneciamemquarentena,paraseremtratados,afimdemanter as guarnições dos navios em bom estado sanitário. Na década de 1790, passou também areceber degredados para seus destinos de pena, a serem conduzidos pela via marítima a bordo deembarcaçõesdeguerraemercantes.Emnovembrode1803,opresídiofoitransferidoparaumnaviodeguerra, a nau Belém, deixando novamente as instalações em terra para a recepção de doentes dasembarcaçõesdeguerra.7Quase umanomais tarde, o presídio continuava sediadononavio: quandoocomandante Antônio José Monteiro mandou embarcar 12 degredados para bordo da charrua Ativo,lembrouaogovernadordacapitaniadaBahiaanecessidadedesegurançaeremessadospresosparaseudestino–Angola.8

Opresídioconstituíaoponto intermediárioentreaaplicaçãodapenadedegredoeaexecuçãodamesma em alguma possessão portuguesa de ultramar. Portanto, era um local que recebia somentedegredados que deviam ser deslocados pela via marítima, e não aqueles que eram condenados aodegredo interno no reino. O presídio, como instituição, situava-se entre uma ampla rede judicialmetropolitana e uma extensa administração colonial, cabendo-lhe o papel de encaminhar pessoasconsideradascriminosasparaseusdestinos.Nessesentido,oestabelecimentoeraumlocaldepassagem,umlocaltemporárioparapessoasquecumpririamsuapenaemlongínquasregiõesdoImpério.

OhistoriadorTimothyCoatesrealizouotrabalhomaiscompletosobreessapena,trazendoàtonaopapel que criminosos e pecadores desempenharam como colonizadores no Império português, emdecorrênciadodegredo,duranteaproximadamentedoisséculos,de1550a1755.Nocaso,tratou-sedecolonizaçãoforçadapeloEstadoportuguês,demodoaatenderanecessidadesdoreinoeimperiais,pelousodeumaordemlegalparaestabelecerumaordemsocial.Instituiçõesestatais–Conselhos,TribunaiseSenadosdaCâmara–edeassistênciasocial–asSantasCasasdeMisericórdia–,comsedenoreinoouespalhadas pelo imenso Império, forneceramdestino e acolhida temporária aos indesejáveis, tornadosúteisnacolonizaçãoportuguesa,sejaprestandoserviçomilitarouconstituindofamília.9

Apresigangapassouacustodiarpessoascondenadasadegredoapartirde1816,quandoonavioqueservia de prisão absorveu essa incumbência do presídio daTrafaria.Ao que tudo indica, o fato de oBrasilsetornarumreinofezcomqueapresigangaassumisseafunção,nafaltadeumestabelecimentoemterra e não sendo estranha aos portugueses a ideia de uma prisão marítima. Além da custódia de

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degredados, a presiganga já servia como depósito de recrutas desde 1808 e de galés e infratoresmilitares desde 1812. Com o tempo, nela foram depositados prisioneiros de guerra e escravos emcorreção,alémdeoutrosgruposnumericamentepoucoexpressivos,comopresospolíticoseespiões.Aprisãoflutuantetinhacapacidadepararecebercercademilpessoas,somandoonúmerodepresoseodemembrosdaguarnição.

Naviagemde transmigraçãoda família realportuguesa,haviahomenscondenadosabordodanauPríncipeReal.EntreosprimeirosdecretosdoprínciperegentenoBrasil,quandodaestadanaBahia,umtratava justamente da comutação da pena de 45 galés que embarcaram e serviram naquele navio.10 OdestinodanauPríncipeReal fora seladonaquelaviagem,poisogrupodepresosmais expressivonapresigangairiaserodegalés.Otermo“galé”sereferia,originariamente,aumaembarcaçãotípicadoMediterrâneo, empregada desde aAntiguidade clássica. Em confronto com a nau (embarcação tardia,própria para viagens oceânicas), duas características as diferenciavam: altura das bordas e sistemapropulsor.Enquantoagalépossuíabordabaixaeeramovidaprincipalmentearemo,anau,aocontrário,possuía borda alta e a propulsão se fazia exclusivamente a pano. As frotas antigas doMediterrâneoutilizavamcriminosos como remadoresnasgalés, tambémabsorvidos, a partir da IdadeModerna, nasgalés que permaneceram em atividade até pelo menos o final do século XVII, nos países com costamediterrânea.11

EmPortugal,asgalésforamutilizadasentreosséculosXIIIeXVII,atéotérminodaUniãoIbérica(1580–1640), embora depois disso algumas ainda continuassem a exercer atividades eventuais. Sercondenadoagaléssignificavarealizartrabalhosnosbarcosdemesmonomeeeraconsideradaumapenamuitosevera,devidoao trabalhopesadoexercidoemcondiçõesprecárias,oquegeralmentereduziaotempodevidadoscondenados.ApartirprovavelmentedoséculoXVII,comodesusodessesnavios,sercondenadoagaléscompreendiacumprirpenadetrabalhospúblicos,geralmentenasdocasedecarátersazonal.Apenaestavareservadaahomensdopovoacusadosdecrimesconsideradosgraves,noPortugaldoAntigoRegime.Apessoaquerecebesseestapenaestavasendolegalmentedegredada,pois“galés”eracomplementodotermo“degredo”nasOrdenaçõesFilipinas(1603).Maseraumdegredomaisduro,poiscomparativamenteumanodegaléscorrespondiaadoisanosdeexílioparaoBrasil,ecompreendiaousodeferros–correntes,calcetaougrilheta.12

O degredo, como a pena principal no mundo imperial português, tinha a intenção de deslocar ocondenado de seu local de residência, mantendo-o no lugar de destino da pena, a fim de que alisobrevivesse comopudesse e expiasse sua culpa, sendo aproveitado emempresas ultramarinas, comoguerras coloniais, colonização ou conquista de novos territórios. O degredo específico para as galéstinhaofimdemanterocondenadoemumespaçocircunscrito,entreaprisãonaqualeradepositadoeosserviçosnavais,ondeeraaproveitadocomomãodeobrabaratapeloEstado.13

NoBrasil,aMarinhafoiumadasinstituiçõesresponsáveispelousodemãodeobraforçada,paraserempregadanoserviçomilitar-naval.Para tanto,algunsdeseusestabelecimentoseempreendimentossetransformaram em locais e destinos de criminosos e indesejáveis.Os trabalhos navais efetuados peloArsenaldeMarinha requeriambraçosnasoficinasem terra firme,nodiqueemconstruçãona ilhadasCobrasenosnaviosdeguerraemreparos.Osgalés,ouseja,homensquepassarampelapresiganganacondiçãodecondenadospela Justiçacomumoumilitar, constituíamamãodeobramaispermanenteenumerosa,condenadaaalgunsanosouportodaavidaaostrabalhospesados.14

Portercontatomaisprolongadocomosgalés,enãocomoutrosgruposdepresos,aequipedirigenteda presiganga, especialmente as tropas, desempenhava suas atividades, em boamedida, em relação aesse grupo: guarda, escolta, sentinela. Os conflitos existentes no depósito ou nos trabalhos, namaiorparte, advinham desse contato, ou antes, das indisciplinas e insubordinações que burlavam adiferenciação entre a equipe dirigente e os grupos de presos. Os galés que insistiam em ter conduta

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desautorizada,ferindonormas,atropelandohierarquias,nãoerambemvistospelasautoridadesnavaisemereciampunição,pois,seestavamnapresiganga,eraparaseremaproveitadospelaMarinha.15

Esseshomens condenados a trabalhos forçadospor cinco, dez anosouperpetuamente, quandonãofugiam,nãoserebelavamousesuicidavam,levavamadiantequeixaseacusaçõescontraaautoridadedeMarcelinodeSouzaMafra,elaborandorequerimentoscoletivos, juntandoforçasparaatingira imagemdocomandante.Emagostode1823,emplenacampanhadaIndependência,quandoMafratinhacercade43 anos, um fato impeliu aqueles homens a fazerem uma petição em grupo, suplicando Justiça: umaparelhadesentenciadosfugiradostrabalhosnailhadasCobrase,poressemotivo,depoisdacaptura,foiaçoitada a mando do comandante. SegundoMafra, eles receberam, cada um, 150 chibatadas; mas ossuplicantesduplicaramonúmero,afirmandoqueforamtrezentasemcadaum.

Aparelhadesentenciados,JesuínoVenâncioeJoãoVitorino,fugiudailhadasCobrasnamanhãdodia 1o de agosto e foi capturada no Catete quatro dias mais tarde, por três soldados milicianosdisfarçados,antesdoamanhecer.VenâncioforasentenciadoacincoanosdetrabalhosnoArsenaledeuentradanodepósitoem15de janeirode1823,ouseja, estavanapresigangahavia seismesesemeioquando fugiu com seu par. Vitorino, por sua vez, trabalhava nas obras da ilha por determinação docorregedordocrimeeestavanodepósitohaviaseismeses,desde3defevereiro.16Noespaçodetempoentreacapturaeaelaboraçãodorequerimento,elesforamcastigados.Oimperador,depossedapetiçãopor Justiça, exigiu esclarecimentos por portaria daMarinha de 22 de agosto. Três diasmais tarde, ocomandanteemitiaseuofício,seguidodaparticipaçãodoinspetor.

Há três razões para considerar os três documentos – o requerimento, o ofício do comandante e oofício do inspetor – como dignos de nota. Primeiro, por se tratar de um conjunto raro, incluindo três“vozes”diferentesno teor,que rumamdeumaexperiência físicadolorosa,nocasoda súplica,paraoplanodasideias,nocasodaargumentaçãodoinspetor,permitindoidentificarosgrausdepercepçãodaexperiência da punição corporal. Segundo, e também pela raridade, eles mostram detalhes dofuncionamento e das divisões internas da presiganga, que ficariam perdidos caso os galés nãoprovocassemaautoridadedeMafra.Emterceirolugar,esseconjuntodedocumentosconcentrapráticaseconcepçõesquesãoexpressaseserepetememoutrosdocumentosdeformaesparsa;aprópriaextensãodessestrêsdocumentosfogeaopadrãodaquelesqueemitemsimplesmenteumaparticipaçãoouinformeempoucaslinhas.Vamosàsqueixasprimeiro.

Os suplicantes acusaramMafra de ter mandado castigar a parelha de sentenciados com trezentosaçoitesemcadaum,cemacadadia,ecomduasdúziasdebolos,depoisdeamarradoscomumbacalhaunovo,mesmodepoisdealegaremquetinhamsidomilitaresequeeramforros.Acusaram-no,ainda,desertiranopordarcastigoporqualquermotivoempresospatriotas;demandarparaagolilhaospresosque sediziamdoentes atéqueo cirurgião fosse fazero examede cincoemcincodias;de roubardosbailéusdanauPríncipedoBrasil–quehaviasidopresiganga–pranchõesdevinháticode30palmos;edeusarotrabalhodequatropresoscarpinteirosnaconstruçãodeumcaixilhoparausodoescrivãoemsuacasa.17

Osgalésmencionaramemseurequerimentoaexistênciadeumaoutrapresiganga,anauPríncipedoBrasil, mas esta menção não nos deve confundir, pois o que ocorreu foi uma troca do serviço depresiganga,cujomotivoédesconhecido:anauPríncipedoBrasilsubstituiuaPríncipeReallogoapósoFicodeDomPedroem9de janeirode1822.Naocasião,anauPríncipeReal se tornouumabateriaflutuante,provavelmentedevidoaseumaiorporteesimbolismo,capazdefazerasegurançadabarradoRiode Janeirocontraas forçasportuguesas,nacampanhada Independência, retornandoaoserviçodepresigangaemagostode1823.

O notável no conjunto das acusações dos forçados é que elas não se restringiram a queixasparticulares;antes,tomaramapuniçãoexageradaaosdoissentenciadoscomooestopimouagotad’água

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paraareclamaçãodoscastigosquevinhamseacumulandoeatingiamnãosomenteumaououtrapessoa,masogrupodegalés.Maisqueisso,parareforçarocaráterinescrupulosodocomandante,acusaram-node roubo e de permitir o uso privativo do trabalho dos presos, o que demonstra, por parte dossuplicantes, senão uma preocupação com o destino da fazenda real, pelo menos atenção às condutasfalhas do comandante, procurando, assim, estabelecer aliança com a Coroa, ou, ao menos, obter assimpatiasdesta,devidoàdenúnciaderoubodebensdomonarca.

Uma tal depreciação do serviço daquele oficial teve como contraponto uma defesa baseada noimperativo da boa administração. Mafra deu participação ao inspetor de que, ao mandar castigar aparelha de pardos, estava cumprindo ordem superior, portanto, do próprio inspetor.Ao contrário dostrezentosaçoitesalegados,foraminfligidos150,maisexatamentecememumdiaecinquentanoseguinte,emcadaumdossentenciados,massembolos.Asseveroumaisqueosfugitivoshaviamditoteremsidosoldados,mas as guias que os acompanharam, quando da entrada na presiganga, não declaravam estainformação.Rebateramossuplicantesafirmandoque,seelefossetiranocomosgalés,seriaporqueestescometiamumasériedeindisciplinas:fumavamforadehorasnobicodeproaeferiamfogoempólvoraquelevavamescondidaparaanau;roubavamunsaosoutrosafarinhadaração;armavamjogosdepoisdetodos deitados, servindo-se da claridade da luz das abitas; levavambexigas de aguardente quando serecolhiamdotrabalho,escondidasnoschapéusoudentreaspernas;vendiamamarmitaqueaSantaCasade Misericórdia lhes dava para receberem o jantar fornecido às oito parelhas que conduziam oscaldeirões de comida para os presos daCadeia; essasmesmas oito parelhas – 16 sentenciados, pelomenos–roubavamtodasasboiasdetoucinhodoscaldeirões,arriando-osnasruasdacidade,comosefossemdescansar, julgandoa tropaqueosacompanhava–milicianaedobatalhãodeCaçadoresdeS.Paulo–queessaeraumaformadeospresossepagaremdoincômododeconduziroscaldeirões.18

Com relação aos doentes,Mafra aditou que, ao romper do dia, se algum dos presos se queixava,mandava-oparaaescotilhaparaserexaminado,masmuitosseapresentavamcomaspernasembrulhadasem trapos, que, retirados, logo diziam que estavam prontos para o serviço, e estes então é que elemandava para a golilha, por seremmandriões e mangadores. Quando da transferência do serviço depresiganga da nauPríncipe do Brasil para aPríncipe Real, Mafra iniciou uma série de arranjos oumelhorias–taparosburacosdosbailéus,formarumadespensaparamantimentoseumpaiolparaestopa,colocartravessasportrásdasportinholasdacobertaparasegurançadospresos,fazeradivisadacâmaradebaixoecamarotesparaoficiaisdetidos, fazeraobradaproapara serventiadospresose formaraenfermagem e os catres. Segundo o oficial, estas obras foram realizadas com aproveitamento dasmadeiras ou tabuados das despensas desmanchadas da antiga presiganga, e não com pranchões devinháticode trintapalmos retiradosdosbaileús.Quantoaocaixilhoparaoescrivão,Mafraconfirmouqueooficialdefazendaolevouparacasa,construídoporumdosquatropresoscarpinteirosquefaziamasobrasdemelhorias,masesteofezdemadeiravelhaemuitomalfeito,demodoqueoescrivãonemfezuso.19

Existe uma assimetria entre a formalidade administrativa, expressa no documento oficial, e aacusação que feria a imagem de um superior, expressa na petição; entre as prerrogativas de fundoracionaleosvitupériose impropériosdefundoemocional.Háumadisparidadeentre,deumlado,umoficialque,provavelmenteporforçadotipodetrabalhoqueexigiacontatocompessoas,aprendeuaterumelevadograudeautocontrole,e,poroutrolado,pessoassemeducaçãoformalqueeramhumilhadasfisicamente,sofriamnapeletodotipodecastigoscorporais.Nadefesa,Mafradeuaentenderquerecebiaordens e as cumpria, e que as informações sobre os presos eram obtidas no documento próprio deidentificação–aguia–,ouseja,seusprocedimentoserampautadosporburocraciaquelhedavarazão.Ossuplicantes,porsuavez,dirigiram-seaoimperador,acorreramaospréstimosdosoberanodizendo-sepatriotas e acusando o comandante de tirano e de ladrão, demonstrando sentimentos, expressandodescontentamentoedesrespeito.Malsabiamqueorequerimentoseriautilizadoparareforçarahonrade

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Mafrae,aomesmotempo,desqualificá-los.Francisco Antônio da Silva Pacheco, à época o inspetor do Arsenal de Marinha, utilizou uma

argumentação sofisticada em defesa do comandante. Coube a Silva Pacheco a depreciação dossentenciados, para rebater as acusações de tirania na punição e de roubo de apetrechos de navio.Valorizandoocaráter,aprobidadeeahonradeMafra,oinspetor,aomesmotempo,indicavaosinventoseaaleivosiadosqueixosos,“sentimentosdefatoindignos,masprópriosdegêniosquetendoobrigadoacensura da lei, ela mesmo os degredou da sociedade a quem atropelavam”. Colocando a ordem emprimeiro plano, omesmo inspetor afirmava que ela era alimentada pelo respeito e que só podia serobedecidapelaforçadecaráteroupeloreceiodecastigo.Acorreção,então,quandoaforçadecaráternão tinha efeito, serviaparapunir os transgressores, dar exemplo aosoutros e sustentar o respeitonodepósito.ParaSilvaPacheco,Mafranãosomenteprocediacomhumanidadenoscastigos,comotambémera honrado e capaz, pois, com relação ao uso das anteparas das despensas demolidas da antigapresigangaparaproveitonosarranjosdaPríncipeReal,“alémdenãoserarbitráriadaqueleoficial,porhaversobreissoprecedidoaprovaçãoeordemminhas,poroutraparteopõeacobertodaignominiosapersuasãocomquepretendiammancháloosquedageraçãohumanasólhesrestaaforma”.20

Eisqueoscondenadosforamdesclassificadospelo inspetor,apartirda identificaçãodofardoquerepresentavam,emprimeirolugarparaasociedade,edepoistambémparaocomandantedapresiganga,ouseja,paraaprópriaMarinha.Atropelandoasociedade,provocaramacensuradalei,queosdegredouparaosserviçosnavaiscomofimdeseremaproveitados,eaínovamentemereceramserpunidospelatransgressãoàordem.Quetransgressões?Fumare jogaremhorário impróprio,atiçarfogoempólvoraintroduzidafurtivamentenapresiganga,roubarfarinhadaraçãounsaosoutros,entrarnapresigangacomaguardente de forma também furtiva, vender a marmita que a Santa Casa doou e roubar a comidaconduzida para os presos da cadeia, todas as faltas listadas por Mafra, sem falar do caráter doscondenados – mandriões, mangadores, inventivos, aleivosos, desrespeitosos. Como vimos, a pena degalés era considerada, pela legislação comum, uma pena de degredo, só que específica, incluindo otrabalhoforçado.Aperspectivadoinspetoreraadequeodegredoparaasgalésafastavaemdireçãoaumainstituiçãofechada, tambémdotadadenormas,deordem.Nasuaótica,portanto,oônusdosgaléseraduplo:infringiamaordemsocialeadacorporação.

A historiadora Laura de Mello e Souza, em seu estudo sobre os desclassificados na sociedademineradora do séculoXVIII, trata de uma camada que não possuía estrutura social configurada, pelocontrário, era indefinida, imprecisa. Buscando especificidades e peculiaridades dessa sociedade emrelação à europeia – no caso, principalmente a escravidão e a grande propriedade agrícola paraexportação–,ahistoriadorarevelaapobrezaqueseespraioujustamentenacamadadehomenslivresqueviviamnointermédioentresenhoreseescravos.Encaradoscomovadios,ociososevirtuais infratores,esteshomens–emulheres–representavamônusaosolhosdosoligarcaseautoridades,masquepodiamsertransformadosemutilidade,poishaviamsidochamadosaocuparfunçõesqueoescravonãopodiadesempenhar,constituindo,assim,umexércitodereservadaescravidão.21

Emumaespéciedejogodoscontrários,SilvaPachecoconferiudestaquehonrosoaocomandanteedestaquedepreciativoaosgalés.Mafraagiacomhumanidadeaopunir;ossentenciados,poroutrolado,sótinhamaformahumana,nadamais.LauradeMelloeSouza,alémdeidentificaroônusquehomenslivrespobres representavamparaautoridadesmetropolitanase locaisnasMinasGeraisdooitocentos,tambémidentificououtroaspectodessaideologiadadesclassificação:asformulaçõesqueconferiamumaoutrahumanidadeouumahumanidadeinviávelparaaqueleshomens.22Incapazesdeseremsubordinados,disciplinados,deterrespeitoaossuperiores,osgaléseramprivadosdeserincluídosnahumanidade,ou,ao menos, constituíam uma outra, desregrada, desordenada, pouco afeita ao trabalho. O inspetor doArsenalpesouosdoiscomportamentosemumabalançaedeuumveredictofavorávelàquelequefazia

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jus ao ideal corporativo.O veredicto final era o do imperador, dispensador da justiça:Marcelino deSouzaMafra continuoucomocomandantedodepósitodepresospormais sete anos, indicandoqueossuplicantesnãoobtiveramajustiçarequerida.

Mafra, um bom administrador militar ou um severo castigador? As duas qualificações não seexcluíam;antes,complementavam-se:serbomadministradordapresigangapressupunha,comosrecursoshumanosdisponíveis,enquadrarosgalésnaordem,senecessário,usandoaviolência.Naspalavrasdopróprio inspetor, os castigos corporais serviam para punir os transgressores, dar exemplo aos outrosgaléserestabelecerorespeitonodepósito.

Ocasoparticular envolvendo JesuínoVenâncio e JoãoVitorinodemonstra, a princípio, quehouveexorbitâncianapuniçãoaostrabalhadoresforçados,poisambososnúmerosdechibatadas–300ou150– eram mais elevados do que as 25 chibatadas diárias previstas para diversas faltas no códigodisciplinarda armada,deorigemportuguesa.23No entanto, existia um espaço de liberdade para punirnaquele casoparticular, porduas razões.Emprimeiro lugar, osgalésnão erampraças convencionais,comomarinheiros e soldados, e assimnão figuravam como agentes de infração, pois o termo “galés”tratava somente da pena imposta aos praças. Em segundo lugar, não havia previsão de pancadas dechibata para os praças desertores,mas o artigo 80 deixava ao arbítrio do superior a punição para asculpasquenãoexigissemConselhodeGuerraequenãoestivessemprevistasnosdemaisartigos:

Todososmaisdelitos,comoembriaguez,jogosexcessivoseoutrossemelhantes,dequeosprecedentesArtigos não façam particular menção, ficarão ao prudente arbítrio do superior para impor aosdelinquenteso castigoque lhes forproporcionado;ousodagolilha,prisãonoporãoeperdimentodaração de vinho é o que se deve aplicar a oficiais-marinheiros, inferiores e artífices, assim como àmarinhagemesoldados,quepodemtambémsercorrigidospormeiodepancadasdeespadaechibata,nãoexcedendoaonúmerode25pordia,istoé,emculpasquenãoexijamConselhodeGuerra.24

Aesserespeito,odaliberdadedosuperiorparapunir,ohistoriadorÁlvaroPereiradoNascimentoobservou,noBrasildoSegundoReinado,quehaviaumapraxedoscastigoscorporais,um tribunaldoconvés em funcionamento nos navios de guerra, ou seja, um livre-arbítrio de comandantes na hora depunirmarinheiros por indisciplinas e insubordinações,mandando aplicar as chibatas conforme a faltacometida e as próprias condições físicas do infrator, com o intuito de dar exemplo ao restante daguarnição e corrigir o faltoso por meio da dor e da humilhação.25 Esta realidade apontada pelohistoriadorjáexistianasprimeirasdécadasdoséculoXIX,emumasociedadeescravista.

Aproximidadedapresigangacomesse tipodesociedadeestavaemseuparentescocomosnaviosnegreiros.Nãoéparaestranharasemelhançaentreonavio-presídioeonavio-tumbeiro,poisosgalésnelacustodiadosemsuamaioriaeramhomensdepeleescura,denominadosdepretos,pardos,crioulosou mulatos pelas autoridades navais. Além disso, ficavam acorrentados, eram submetidos a trabalhoforçadoe apunições corporais e,mais semelhante, ficavamacomodadosnodepósito como se fossemescravosnatravessiadoAtlânticoabordodosnegreiros.DeacordocomohistoriadorJaimeRodrigues,estes navios dispunham de bailéu, ou seja, uma segunda coberta móvel que servia de “alojamentoprovisório, feito de madeiras frágeis apoiadas sobre pés de carneiro, que dividia o porão em doispavimentosepermitiaalojar(deformabastantedesconfortável)osescravos”.26

Essadescriçãopodeseraplicadaaosbailéusdapresiganga,ondeprovavelmenteficavamalojadosos trabalhadores forçados. Considerando a versão dos suplicantes, o comandante havia “roubado”pranchões de vinhático de 6 ou 7metros de comprimento dos bailéus da nauPríncipe do Brasil. Naversão deMafra, madeiras e tabuados das despensas desmanchadas daquela nau foram aproveitadospara,entreoutrosarranjos,taparosburacosdosbailéusdanauPríncipeReal.Portanto,numaenoutra

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embarcação havia esse alojamento, assim como travessas por trás das portinholas da coberta parasegurançadospresos.

Alémdosbailéus,haviaumadespensaparamantimentos,comfarinhaefeijões,umpaiolparaestopa,uma câmara de baixo com divisa, uma câmara de cima para o comandante, além de camarotes paraoficiaisdetidoseumaenfermagemcomcatres.Comoapresigangaeraumnaviodesarmadoe,maisqueisso, um depósito de pessoas desclassificadas ou que não se enquadravam ao ideal corporativo desubordinaçãoedisciplina,nãohaviaumadespensaparamuniçãodefogo,comopólvoraeprojéteis,queconstituiriamumarsenalperigosonasmãosdospresos.Assimeraacomposiçãodocorpodapresiganga,em tudo semelhante à de um navio de guerra, com algumas variações devido a sua função prisional,assemelhando-se,assim,aumnavionegreirodesuaépoca.

A Santa Casa de Misericórdia, mencionada como instituição que fornecia comida aos presos nacadeia, foicriadaemPortugalnofinaldoséculoXVeproliferoupeloImpérioportuguês,surgindonoRio de Janeiro por volta de 1582.Constituída como irmandade laica comobjetivos caritativos, entreeles, visitar, alimentar e dar roupas a presos, cumpria papel de instituição voltada para a assistênciasocial.27NoRiodeJaneirodasprimeirasdécadasdoséculoXIX,aMisericórdia forneciaassistênciaalimentar aos presos na cadeia, mas não damesma forma que aos presos na presiganga: somente ospresosresponsáveisportransportarasboiasnoscaldeirõesdirigidosàcadeiarecebiamalmoçoemumamarmita,sendodessaformarestituídosdesseincômodo.Provavelmenteressentidosaonãoreceberemomesmo tipode tratamento reservadoaospresosnacadeia,osgalésvendiamamarmitae roubavamasboiasde toucinhodos caldeirõesque conduziam,procurando inverter a condição emque se achavam,comoservidoresdeoutrospresosporintermédiodaMisericórdia.Essaaçãodosgalésrevelaoutrafaceda instituição caritativa, que demonstrou ser mais caridosa com os presos na cadeia, procurandoaproveitar a mão de obra forçada da Marinha. Ao mesmo tempo, confirma a imagem depreciativaassociada aos presos na presiganga, provavelmente porque tinham cometido crimes graves, somentecorrigíveisporumainstituiçãomilitar.

A preocupação com a manutenção de documentos, associada à verificação de seu desgaste, faziapartedoementáriodadefesadeMafra,quemantinhaumarquivononavio.Comamadeiraretiradadasdespensas desmanchadas da nauPríncipe do Brasil, mandou fazer uma caixa com duas gavetas, umacarteiraeumaestante,objetosparaguardarlivroseoutrospapéispertencentesaodepósito.Entreesteslivrosoupapéis,constavamosdeordemregulamentardaMarinha:todocomandantedenavio,inclusiveo comandante da presiganga, dispunha de um exemplar doRegimento Provisional, comosArtigos deGuerraanexados.Noentanto,MafraadministravatropasnãosomentedoCorpodeArtilhariadaMarinha,asquaistinhamdeseguiarpeloRegimentoProvisional,mastambémhomensprovenientesdecorposdoExército, que não tinham nenhum vínculo com a Marinha, a não ser pelo fato de que haviam sidodestacadosparaoserviçonapresiganga.Assim,poderiamocorrerconflitosdejurisdiçãoentreMarinhaeExércitonahorademandarpunir.

Noiníciode1827,duranteacampanhadaCisplatina(1825–1828),Mafrarecorreuaosdocumentoslegaisaomandarpunirumdossoldadosdeterraqueguarneciamodepósito.Ébemprovávelque,nesteepisódiodecastigocorporal, tenha sidoaprimeiravezqueoportuguêsdecarreiramilitar impecávelteve sua honra arranhada por outra autoridademilitar respeitável.Agora já não erammais os galés aferiremsuacondiçãodeoficialresponsávelporadministraronavio-presídio;eraoministrodaGuerraquemapontavasuaimprocedênciaaomandarpunir.Vejamos,então,quaisosdelitosquemotivaramoscastigos, comooministro daGuerra semanifestou a respeito e comoo comandante argumentou a seufavor,iluminandoaspectossobreapráticadotrabalhoforçadoedapuniçãocorporalnaqueleambientemilitar.

No dia 16 de janeiro, houve escolta e sentinela dos presos que foram trabalhar noArsenal, cada

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oficialinferioresoldadodispostoemseulugar,todospertencentesàtropamilicianadosCaçadoresdeSãoPaulo:oprimeiro-sargentodobatalhão24da2a linha,JoãoAntônioCorreia,eraocomandantedaescolta;osoldadodomesmobatalhão,JosédeLemos,eraasentineladoportãodoArsenal;osoldadodobatalhão21da2alinha,ManuelAntônioFagundes,eraoarvoradodaescolta,ouseja,oresponsávelporsubstituirocomandanteemsuaausência;osoldadodestemesmobatalhão,SerafimRodrigues,eraasentineladoquarteldosalgarves, localemqueeramalojadosos remadoresdasembarcaçõesmiúdas,como barcas e catraias. O primeiro-sargento sabia ler e escrever, requisito imprescindível aocomandantedeumaescolta,principalmentesefossenecessáriorelataraMafraalgumafaltaoudesviodeseussubalternosoumesmodosgalés.Eleassimofeznaqueledia,quandoSerafimRodriguesseausentoudoserviço.

DeacordocomJoãoAntônioCorreia,comassentinelasestabelecidasemseuslugares,oarvoradoFagundes,aorondaràsquatrohorasdatarde,nãoencontrouSerafimemseulugar,ausênciaqueCorreiaverificoumeiahoramaistarde,decidindoentãocolocaroutrasentinelanolugardeSerafimeordenaràdoportãoqueoprendessecasoporalientrasse.Osoldadoausentelogoapareceu,masresistiuàprisão,ferindo com sua baioneta uma perna do soldado Lemos de sentinela no portão. Nomesmomomento,Correiasurgiu,deuordemdeprisão,recolheuabaionetadeSerafimemandou-oparaalancha:quandocontouospresosparaserecolherem,deuporfaltadeumaparelha(maistardelocalizadaemserviço),mandandoumoutrosoldado,JosédaSilva,perguntaraSerafimsesabiadaquelespresos.Esterespondeuquedenadasabia,poishaviaidopassear.Comosaíradeseulugarsemlicença,desamparandoaescoltaesentinela,oprimeiro-sargentoderaessaparticipaçãoaocomandantedapresiganga.28

Portanto, Serafim desamparou a sentinela do quartel Algarves, alegando que tinha ido passear,aparentemente despreocupado com as possíveis consequências acarretadas por sua ausência, entre asquais as fugasdegalés.Em seu retorno, aopassar peloportãodoArsenal, resistiu à prisão e feriu asentinelacomabaionetaqueportava.Estesdesviosdecondutaforamomotivoparaqueocomandantedapresiganga mandasse prender a ferros o soldado infrator e aplicar-lhe 140 chibatadas, punição quedesagradou ao entãoministro daGuerra, o conde deLages.De acordo comoministro,Marcelino deSouza Mafra ultrapassou os limites de sua jurisdição, pois Serafim deveria ter sido punido porautoridadecompetente,enãocomtaisprepotênciasmuinocivasàdisciplinadoExército,que,aliás,deveserhonradoenãovilipendiado,comoofizeraosobreditocomandantedapresiganga,mandandopôraferrosumsoldadocomosefosseumfacinorosoejácomotalsentenciado.29

Cientedessas consideraçõesnada lisonjeiras e coma incumbênciade informaro inspetor sobreocastigo que mandara dar, Mafra recorreu aos documentos depositados no arquivo da presiganga,respeitantes aos regulamentos pelos quais se guiava na hora de punir e ao informe que o primeiro-sargento JoãoAntônioCorreia lhe havia passado no dia do delito. Tendo por base a participação deCorreiaeasinformaçõesdeoutrastestemunhas,

eparaque senãodeixede introduzir relaxaçãono serviçodestanau; serviçoque emsumaéguardarpresos sentenciados por graves crimes e em que a menor negligência pode ser de efeitos perigosos;mandeiimediatamentepôroditosoldadoaferros,edepoiscastigá-locomchibatadas.30

Semmencionaronúmerodechibatadas,Mafralembrouaoinspetorrecém-empossadoLuísdaCunhaMoreiraquejáhaviaparticipadoesseacontecimentoesuascircunstânciasaodefuntoinspetorFranciscoAntôniodaSilvaPacheco,omesmoquedefenderaahonradocomandante contra as imprecaçõesdosgalésem1823.Ademais,

Estetemsidoocostumeemsemelhantescasosdesdequeestounestedepósitohá19anos,enestegrande

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intervalo jamais se queixou de mim algum comandante do corpo, que para esta nau tem dadodestacamentos,sobrecastigoinjustoqueaítinhaimpostoaalgumdeseussoldados.31

Com efeito, até aquele ano de 1827, Mafra recebera diversos soldados que desamparavam asentinela,oqueresultava,emmuitoscasos,emfugadeparelhas.32Quandoocorriamasdeserçõesnãosomentedostrabalhadoresforçados,mastambémdemembrosdacorporaçãoedemarinheirosmercantesquesesubtraíamaorecrutamentoforçado,asautoridadesnavaispassavamasecomunicaramplamentecomasautoridadespoliciais,juntandoesforçosnalocalizaçãodosfugitivos.33Asevasõesdosgalés,noentanto, não se davam na presiganga, mas em terra, durante os trabalhos na ilha ou nas oficinas e,eventualmente,nosnaviosdesarmados.Ocomandantedaescolta,umoficial inferior–sargento,furrieloucabo–eraresponsabilizadopelasdeserções,quandonãoeramosprópriossoldadosencarregadosdefazer a sentinela de um número determinado de parelhas. Estas constituíam um par de presos,acorrentadosumaooutro,eeventualmentepodiamformarumternodeacorrentados.Ocomandantedaescolta,quandodafugadeumaparelha,eracastigadocomprisão;ossoldadoserampostosemferros.

QuandoSerafimRodriguesdesamparoua sentineladoquartel dos algarves, nãoocorreranenhumafugadegalés;noentanto,alémdeseretirardasentinela,resistiraàvozdeprisãoeferiraumsoldadocom baioneta,motivos que o fizeram ser posto em ferros e também receber pancadas de chibata.Oscastigos que Serafim recebeu foram justos, de acordo com o que especificava a lei? Vimos que aspancadasdechibataaplicadasaosdoisgalésdesertoresem1823não tinhamcorrespondênciacomoscrimes tipificados nos Artigos de Guerra, nos quais somente marinheiros, grumetes e soldados eramconsideradosagentesdeinfração.ComoSerafimeraumsoldado,ocastigodachibatadealgumaformaseaplicavaaumdeseusdelitos,odedeixaropostosemlicença,correspondenteaoprevistonoartigo68dosdeGuerra.34

Aaplicaçãodos ferros sópoderiaocorreremdeterminadosdelitos, especificadosem trêsartigos:Serafim,comosoldado,nãopodiaserenquadradonoartigo70,quesereferiaaooficialmarinheiroeaoartíficecomoagentesdeinfração;tambémnãoopodianoartigo65,pois,emprincípio,nãotiverabulhasoupendênciascomosremadoresdalanchaquefaziaotransportedapresigangaparaaterra;e,quantoaoartigo64,elenãoentrouexatamenteemcontendacomasentineladoportão,masferiu-acombaioneta.35

Portanto, ao fazer uso dos instrumentos de punição corporal,Mafra não levava em consideração,necessariamente, a correspondência entre o delito e a pena existente nos regulamentos, pois o oficialportuguês lidava comuma realidade que não era propriamente a de umnavio de guerra nema de umquartel. Ele comandava um navio que servia de prisão, um artefato sem menção no RegimentoProvisionaleseusArtigosdeGuerra,nemnoRegulamentodeInfantariadoExército,nememqualquerleiregulamentardePortugaloudoBrasil.Nessascircunstâncias,Mafrafaziausodesuacapacidadedejulgamento, imerso na mentalidade da época, caracterizada pelo valor à tradição, manifestando apermanênciadepráticasqueremontavamatemposantigos:comoelemesmoafirmouemsuadefesa,“ousodepôraferrosénaMarinhaantiquíssimo”,justificando-oporsuaantiguidadeelongevidade.36Essacapacidadedejulgamentoedelivre-arbítrionahoradepunirestavaespecificadanoprópriocorpodalei,noArtigo80deGuerra,comovimos.

Aspuniçõescorporais(ferros,golilha,pancadasdechibata)eramempregadasquandomembrosdacorporaçãohaviamcometidofaltasleves,enãograves.Penademorte,degredoedegredoparaasgaléseramaspuniçõesmaisseveras,utilizadasparacrimes,aísim,consideradosgravíssimos,principalmenteseocorressememtempodeguerra.Seatualmenteoscastigoscorporaissãoconsideradosumexagero,umexcessodaleiantiga,paraoshomensquemandavamaplicá-loseramamanifestaçãodopoderdepunirdosoberano.37

Segundo o historiador José Miguel Arias Neto, esse regime de suplícios, juntamente com o

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recrutamentoforçado,formaramabasedosistemamilitarconstruídoeconsolidadoaolongodoImpériobrasileiro.EssesistemasofreusucessivascrisesapósaGuerradoParaguai,culminandocomaRevoltadosMarinheirosde1910,cujoobjetivoeraimplantarmodernasrelaçõesdetrabalhoedehierarquianaArmada, demodo a superar as relações de clientela entre oficiais e praças. Naquele movimento, osmarinheirosprotagonizaramumeventonovonahistóriadasForçasArmadas,reivindicando-sesujeitosdedireitos,cidadãos.38NaprimeirametadedoséculoXIX,aexistênciadaservidãopenaledoregimedesuplícioscorroboravaasociedadeescravistadeentão.

Dessaforma,LuísdaCunhaMoreira,inspetordoArsenal,ex-ministrodaMarinha,livrouMafradequalquerprepotêncianahoradepunir:

esteoficialésemcontradiçãoumdossúditosdeS.M.ImperialquetempostoatodaaevidênciaoseuzeloeinteressepeloserviçoNacionaleImperial;poisque,noespaçodedezenoveparavinteanosqueresponsabilizaaqueleimportanteserviço,nãotemapresentadoesteoficialoutrosmotivosquenãosejamtodoselescapazesdelhefazeramaissériaapologia.39

A durabilidade da carreira militar do comandante no navio-presídio serviu como argumento paraeximi-lodequalquerprepotênciaou irresponsabilidade.Tratava-sedeumhomembastantehabituadoalidar com os tipos humanos, não só dos internados, como do nível mais baixo da equipe dirigente.Enquanto a presiganga existiu, Marcelino de SouzaMafra foi a única dessas autoridades a estar emcontatomais direto comos presos, desde 1808, quando aPríncipeReal era somente um depósito derecrutas,até1830,quandoooficialsaiudoserviço.Nesseperíodo,houvepelomenoscincomudançasdeinspetorese18alteraçõesnapastadaMarinha.Emmeioaovaivémdenomesnasesferasmaisaltasdaadministraçãonaval,Mafrapermaneceuincólumeemseuposto,peloqual,aofinaldascontas,tinhainteresseezelo,apesardasmuitascontrariedadesqueteveaoadministrarpessoas.

Puniçõesnahistória

Apesquisaquerealizeicomohistoriadora,ecujosresultadosemparteapresenteiaqui,lançou-meaomundodaprisãocomoinstituição.TiveacessoaestemundorecorrendoaopassadodoBrasil,emseuprocesso de independência. A pesquisa me mostrou o destino de homens depositados em um navio-presídiodaMarinha, empregadoscomomãodeobra forçadaemserviçosnavais e sujeitos a castigoscorporais.Hoje,otrabalhoeorecrutamentoforçados,easpuniçõescorporaisutilizadaspeloEstadonãoexistemmaisnomundoocidental,eestanãoexistênciamefezestabelecerparalelostemporais,apartirdosquaisidentifiqueidistinções,permanênciaserupturasentreopassadoeopresente,açãofundamentalparaumapessoasesituarhistoricamente,ouseja,emumaperspectivadelongoprazo.

No meu entender, a concepção de prisão sofreu variação ao longo da história, ao passo que aescravidão foiumvalordomundopré-industrial, ea liberdadeéumvalordomundomoderno.Nessesentido, o cruzamento entre estes três conceitos permite explorar aproximações e distanciamentos aolongo do tempo. A concepção de que a liberdade constituiria o oposto da prisão é típica do mundomoderno, na qual prisão se fundamenta na privação da liberdade e na transformação radical dosindivíduos,comvistasaadequá-losaocorposocial.Daíserprecipitadoalargarasconcepçõesatuaisparaopassado,comoseassociedadespretéritas,particularmenteaspré-industriais,tivessemasmesmascrenças da atual a respeito do papel da prisão. A prisão, no passado, recebeu contornos típicos desociedadesescravistas,aocontráriodaprisãomodernasituadaemummundoquevalorizaaliberdade;assim,aprisãoeaescravidãoseaproximaramnopassado,aexemplodapresiganga.40

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NoBrasilatual,nãoexistempenasdemorte(salvonocasodeguerradeclarada),decaráterperpétuo,de trabalhos forçados,debanimentonempenascruéis,mas todasexistiamàépocadapresiganga,nasprimeirasdécadasdo séculoXIX,como frutoda legislaçãodoAntigoRegime ibérico, compiladanasOrdenaçõesFilipinas(1603):penademorte,degredoedegredoparaasgalés,geralmenteacompanhadasde multa e açoites, atualmente são rejeitadas pela jurisprudência brasileira, pois estão vinculadas asociedades escravistas ou pré-industriais, quando se utilizava predominantemente a força humana nosprocessos produtivos, antes do advento daRevolução Industrial.Desde pelomenos o final do séculoXVIII, com as Revoluções Americana e Francesa, tornou-se inadmissível aplicar o degredo no pós-colonialismo, e gradativamente incômodo aplicar penas corporais, trabalho forçado e pena demorte,poisapuniçãoprincipaléapenaprivativadeliberdade,tendoemvistaquealiberdademesmasetornouumvalorprimordial.

Comparando-se a condição do escravo em sociedades préindustriais com a condição do cidadãoatual,podemosafirmarqueoescravo,grossomodo,constituíapropriedadedosenhoreestavasubmetidoa trabalho forçado, à punição corporal e ao poder demorte do senhor, enquanto o cidadãomoderno,grossomodo, é um indivíduo livre, exerce trabalho livre e recebepenaprivativade liberdade ao serconsiderado culpado por algum crime, além de usufruir direitos e garantias contra arbitrariedades degovernos. No entanto, infelizmente, ao longo do século XX, alguns países experimentaram regimespolíticos totalitários que restringiram a liberdade dos indivíduos, como nos exemplos extremos daAlemanhanazista,daUniãoSoviéticastalinistaedaChinamaoísta,quechegaramasubmetermuitosdeseuscidadãosatrabalhosforçados,acastigoscorporaiseàpenademortesemquetivessempassadoporumjulgamentolegal,assemelhando-seàcondiçãodeescravos.41

1AgradeçoaoshistoriadoresCelsoCastro,VitorIzecksohneHendrikKraaypeloconviteecomentárioscríticosaomeuartigopublicadoem“Novahistóriamilitarbrasileira”.Nele,oleitorencontraráinformaçõespreliminaresaestetexto.VerFONSECA,PalomaSiqueira.ApresigangaeaspuniçõesdaMarinha(1808–1831).In:CASTRO,Celso;IZECKSOHN,Vitor;KRAAY,Hendrik(Orgs.).Novahistóriamilitarbrasileira.RiodeJaneiro:FGV,2004,p.139-157.

2OhistoriadornavalJuvenalGreenhalgh(1890–1966)foioprimeiroafazerumestudosobreapresiganga.Verolivropóstumo:GREENHALGH,Juvenal.Presigangasecalabouços:prisõesdaMarinhanoséculoXIX.RiodeJaneiro:ServiçodeDocumentaçãodaMarinha,1998.

3VerFRAGOSO,João;FLORENTINO,Manolo.Oarcaísmocomoprojeto:mercadoatlântico,sociedadeagráriaeelitemercantilemumaeconomiacolonialtardia,RiodeJaneiro,c.1790–c.1840.4.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2001.

4Sobreoregimedisciplinar,ver:FOUCAULT,Michel.Vigiarepunir:nascimentodaprisão.Trad.RaquelRamalhete.18.ed.Petrópolis:Vozes,1998,p.115-192.

5BibliotecaNacional,DivisãodeManuscritos,ms.C-731,58,Fédeofícios,7-10-1816;Greenhalgh(1998:32-34).6Desdepelomenosagostode1823,ocomandantedapresigangaficouincumbidodeemitir,semanalmente,um“MapadoestadoatualdaguarniçãodanauPríncipeRealqueservedepresiganga”,onderegistravaagraduaçãoeonúmerodoshomenslálotados,asordensrecebidasdoinspetorduranteasemana,observaçõessobreamovimentaçãodospresos(entrada,saída,falecimentoetc.),bemcomoonúmeroexatodospresosempregadosnasobrasnavais.Destesmapassemanais,somenteconstam22nadocumentaçãoavulsadoArquivoNacional,oquenosimpededefazerumaanálisequantitativaacercadaevoluçãodonúmerodepresosedonúmerodeoficiaisepraçasempregadosnonavio.

7AsinformaçõessobreopresídiodaTrafariaforamobtidasemminhapesquisadeiniciaçãocientíficanagraduação,sobaorientaçãodaprofessoraJanaínaAmado,quehaviacoletadodocumentosemformademicrofilmenoArquivoHistóricoUltramarinodePortugalduranteseupós-doutorado.AdescobertadaexistênciadessepresídiomemotivouabuscarevidênciasdeumaprisãosemelhantenoBrasil,oqueredundounapesquisadomestrado,tambémsoborientaçãodeAmado.AcomunicaçãosobreatransferênciadopresídioparaumanauestáemArquivoHistóricoUltramarino,SérieReino,maço212(2059),Ofíciodocomandantedopresídio,30-11-1803.Ocomandantedatouoofíciodo“QuarteldopresídioabordodanauBelém”.

8BibliotecaNacional,DivisãodeManuscritos,ms.I–31,30,60,Ofíciodocomandantedo“presídioabordodanauBelém”,15-09-1804.9VeratesededoutoradodeT.Coates.COATES,Timothy.Degredadoseórfãs:colonizaçãodirigidapelaCoroanoimpérioportuguês,1550–1755.Trad.JoséVieiradeLima.Lisboa:ComissãoNacionalparaasComemoraçõesdosDescobrimentosPortugueses,1998.

10BibliotecaNacional,DivisãodeManuscritos,ms.I–31,28,28,23-02-1808.11VerGREENHALGH,op.cit.,p.9-11.12VerGREENHALGH,ibidem,p.12-13;COATES,op.cit,p.85-96.Deacordocomesteautor,noséculoXVII,emLisboa,existiaumaprisão

chamadaGalé:ummédicofrancêsquetrabalhavanoestadodaÍndia,CharlesDellon,sentenciadoinjustamenteagaléspordezanospelaInquisiçãodeGoa,cumpriusuapenanasdocasdeLisboaeelaborouumrelatosobreessaexperiência–Relationdel’InquisitiondeGoa,

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publicadoem1688.13VerRUSCHE,Georg;KIRCHHEIMER,Otto.Puniçãoeestruturasocial.Trad.GizleneNeder.RiodeJaneiro:FreitasBastos,1999.14Noápice,aquantidadedetrabalhadoresforçadosdepositadosnapresigangachegou,em1odedezembrode1827,a542homens:399galés,

107prisioneirosdeguerrae36escravosemcorreção(ArquivoNacional,maçoXM798,“Mapadapresiganga”,1o-12-1827).DeacordocomErvingGoffman,asinstituiçõestotais,comoonavio,caracterizam-sepelamortificaçãodaindividualidadedosinternos,algoqueocorrianapresiganga,poisostrabalhadoresforçadosrecebiamomesmotipodecomidaetraje(naterminologiadaMarinha,raçãoefardamento)edeviamcumprirhoráriosrígidos.GOFFMAN,Erving.Manicômios,prisõeseconventos.Trad.DanteMoreiraLeite.7.ed.SãoPaulo:Perspectiva,2001.

15OhistoriadorCarlosEugênioLíbanoSoares,aosedetersobrearebeldiaescrava–acapoeira–noRiodeJaneiro,naprimeirametadedoséculoXIX,identificouapresigangacomoolocal,porexcelência,paraondeescravoseforrosperturbadoresdaordempúblicaforamremetidosduranteadécadade1820,paradalicumpriremtrabalhosforçados.OautordeudestaqueaoaspectorepressivodoArsenaldeMarinha,considerando-ocomoomaiorcomplexoprisionaldacidadedoRiodeJaneiroaté1835.Ver:SOARES,CarlosEugênioLíbano.AcapoeiraescravaeoutrastradiçõesrebeldesnoRiodeJaneiro(1808–1850).Campinas:Unicamp;CentrodePesquisaemHistóriaSocialdaCultura,2001.Aomeuver,oArsenaldeMarinhaconstituíamaisapropriadamenteumcomplexomilitardevigilância.

16ArquivoNacional,doravanteAN,maçoXM726,Ofíciosdoinspetor,2e5-08-1823;Ofíciosdocomandantedapresiganga,1oe5-08-1823.17AN,maçoXM726,Requerimentocoletivo,semdata.Documentoincompletopornãoconterofechotradicional–abreviaturaERMce

(EsperaReceberMercê)–nemasassinaturasdossuplicantes.Osgalésprovavelmentenãoeramletrados,poisacaligrafiadorequerimentonãoélegível,lembraumagaratuja,emconfrontocomosofíciosdasautoridades.

18AN,maçoXM726,Ofíciodocomandantedapresiganga,25-08-1823.19Idem.20AN,maçoXM726,Ofíciodoinspetor,25-08-1823.21VerSOUZA,LauradeMelloe.Desclassificadosdoouro:apobrezamineiranoséculoXVIII.3.ed.RiodeJaneiro:Graal,1990.22Idem,ibidem,p.215-222.23NosArtigosdeGuerra(1799),anexadosaoRegimentoProvisionalemvigornoBrasilaté1891,estavamespecificadososdelitoseaspenas

eanunciadasasinstânciasdejulgamento,asquaiscompreendiamoprópriocomandantedonavio,alémdostribunaisdosConselhosdeGuerraedoAlmirantado.Deacordocomosartigos,omarinheiroqueexcedesseotempodelicençaem24horasreceberia25pancadasdechibata(artigo52);omarinheiroougrumetequefaltasseaoquartolevaria25chibatadas,e,reincidindo,cinquentaemdoisdiassucessivos(artigo71);seroubasse,levariacinquentaaçoites(artigo74);omarinheiro,grumeteousoldadoque,pelasegundavez,faltasseaoquartoouodeixassesemlicença,receberia25pancadasdechibataouespada(artigo68);nãocumprindooquartonoslugaresdatolda,tombadilhoecastelo,seriacastigadoasperamentecomchibata(artigo72).

24CAMINHA,HerickMarques.OrganizaçãoeadministraçãodoMinistériodaMarinhanoImpério.Pref.VicenteTapajós.Brasília;RiodeJaneiro:FundaçãoCentrodeFormaçãodoServidorPúblico;ServiçodeDocumentaçãoGeraldaMarinha,1986,p.401.

25VerNASCIMENTO,ÁlvaroPereirado.Aressacadamarujada:recrutamentoedisciplinanaArmadaImperial.RiodeJaneiro:ArquivoNacional,2001.

26RODRIGUES,Jaime.Decostaacosta:escravos,marinheiroseintermediáriosdotráficonegreirodeAngolaaoRiodeJaneiro(1780–1860).SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2005,p.150.

27Ver:COATES,op.cit.,p.43-47.28AN,maçoXM798,Participaçãodoprimeiro-sargentoJoãoAntônioCorreia,16-01-1827.29AN,maçoXM798,AvisodoministrodaGuerra,14-02-1827.30AN,maçoXM798,Ofíciodocomandantedapresiganga,19-02-1827.31Idem.32Algunscasosqueresultaramemfugadeparelhas:AN,maçoXM726,Ofíciodoinspetor,29-03-1823;Ofíciodocomandantedapresiganga,

14-05-1823.AN,maçoXM793,Ofíciodocomandantedapresiganga,31-07-1826.33DeacordocomohistoriadorThomasHolloway,aGuardadePolícia,forçapolicialdetempointegral,organizadamilitarmente,alimentouas

prisõesjuntamentecomosjuízesdocrimedurantemaisdevinteanos,de1808a1830,poisaPolícia,nessaépoca,eraaentidaderesponsávelpelacaptura,condenaçãoeremessaparaasprisõesdecriminosose“vadios”.Ver:HOLLOWAY,Thomas.PolícianoRiodeJaneiro:repressãoeresistêncianumacidadedoséculoXIX.Trad.FranciscodeCastroAzevedo.RiodeJaneiro:FGV,1997.

34Deacordocomesseartigo,omarinheiro,grumeteousoldadoque,pelasegundavez,faltasseaoquartoouodeixassesemlicença,receberia25pancadasdechibataouespada.

35Ooficialmarinheiroouartíficequefaltasseaoquartooudeleseretirassesemlicençaseriacastigadocomferrosporoitodias(artigo70),assimcomoomarinheiro,grumeteousoldadoqueentrasseemcontendaemquehouvessecontusãoporqualquerinstrumentoquenãofossefacaounavalha(artigo64).Osferrostambémseriamaplicados,dessavezsemespecificaçãodetempo,quandoomarinheiro,grumeteousoldado,emterra,tivessebulhasoupendênciascontraaprópriagentedasembarcaçõesmiúdasdosnavios(artigo65).

36Arespeitodalongaduraçãonahistória,ver:BRAUDEL,Fernand.Escritossobreahistória.Trad.J.GuinsburgeTerezaCristinaSilveiradaMota.2.ed.SãoPaulo:Perspectiva,2005,p.41-78.

37Ver:FOUCAULT,op.cit.,p.30-60.38Ver:ARIASNETO,JoséMiguel.Embuscadacidadania:praçasdaArmadaNacional(1867–1910),2001,385f.,Tese(Doutoradoem

História)–FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo.39AN,maçoXM798,Ofíciodoinspetor,14-02-1827.40Paraumahistóriadaspuniçõesnomundoocidental,ver:MORRIS,Norval;ROTHMAN,David(eds.).TheOxfordhistoryoftheprison:

thepracticeofpunishmentinwesternsociety.NewYork;Oxford:OxfordUniversityPress,1995.ParaumahistóriadaprisãonaAmérica

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Latina,ver:SALVATORE,Ricardo;AGUIRRE,Carlos(eds.).ThebirthofthepenitenciaryinLatinAmerica:essaysoncriminology,prisonreform,andsocialcontrol,1830–1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996.

41ParaotrabalhoforçadoutilizadoemregimestotalitáriosnoséculoXX,ver:MELTZER,Milton.Históriailustradadaescravidão.Trad.MauroSilva.RiodeJaneiro:Ediouro,2004.

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4–FERNANDOEOMUNDO–OPRESÍDIODEFERNANDODENORONHA

NOSÉCULOXIXMarcosPauloPedrosaCosta

Osatoreseocenário:vastassolidões

oralgumaspoucashoras,em20defevereirode1832,CharlesDarwinvisitouailhadeFernandodeNoronha.Estase lheapresentoucobertadearvoredos,noentanto,oclimaseconãomostravaumavegetaçãoexuberante.Aindaassim,achou-aagradável.“Grandescolunasdemassarochosa,

queseviamameiocaminhodamontanhaàsombradeloureiroseornadasdelindasfloresvermelhas,deárvoressemfolhas,davamàpaisagemcircunjacenteumefeitomuitoencantador.”1SeaDarwina ilhaencantou, a Beaurepaire Rohan pareceu de caráter melancólico. Duas ilhas maiores, Fernando deNoronhaeaRata,diversasoutrasmenores,muitos rochedos,2 erama“partilhadevastas solidões”.Aaçãomecânicadasmarés,lutandocontraasrochas,reduziam-nasaumestadode“degradação”,tornandooquadro“aindamaissombrio”.3

NãosesabeaocertoquandoailhadeFernandodeNoronhacomeçouaservircomoprisão.PareceremontaraoséculoXVIII,oumesmoXVII,pois,jáem1612,ClaudeD’Abbevilleencontroudesterradospelosmoradores dePernambucoumportuguês e 18 índios.Entre 1645 a 1647, os holandeses para ládesterraramtrêsmulheres.4

Fernando de Noronha, ainda no período colonial, foi ocupada por holandeses e franceses. Asinvasõesestrangeirasesua localizaçãoestratégica levaramaCoroaaemitirumacartarégiaem26demaiode1737,ordenandoqueailhafossefortificadaecultivada.Comoem1741principiaramasobrasdas fortificações, parece, então, terem chegado, neste ano, os primeiros sentenciados militares,desterradosecondenadosagalés,iniciando-seocostumedeparaláseremenviadosapenados.Contudo,oregimecivildopresídiodeFernandodeNoronhasóteveiníciocomaLeide3deoutubrode1833–leicomplementaràConstituição,aoCódigoCriminaleaoCódigodoProcessoCriminal–quemandavacumprir, na ilha, as penas de galés perpétuas ou temporárias, impostas aos moedeiros falsos.Anteriormente,eramenviadosaopresídiomilitarescondenadosaocarrinho,trabalhandonaconstruçãoemanutençãodasfortalezasdoarquipélago.Algunscondenadosagalésoudegredopassaram,também,aserenviadosaNoronhaparacumprirpena,maisporumatocostumeiro,pelofatodenãohaverlegislaçãoqueafundamentasse.Porprática,ailhatornou-se“umdepositoderéosdetodososcrimes”.5

ÉapenascomoDecretono2.375,de5demarçode1859,queseestipulam,claramente,aspenasquepoderiamsercumpridasnopresídiodeFernandodeNoronha.Sãoelas:1oOscondenadosporfabricaçãoe introdução de moeda falsa; 2o Os condenados por fabricação, introdução, falsificação de notas,cautelas,cédulasepapéisfiduciáriosdanaçãooudobanco,dequalquerqualidadeedenominaçãoquesejam;3oOsmilitarescondenadosaseisoumaisanosdetrabalhospúblicos,oudefortificação;4oOsmilitarescondenadosamaisdedoisanosdegalés;5oOscondenadosadegredo;6oOs condenados àprisão,quandonolugaremquesedeveexecutarasentençanãohajaprisãosegura;7oOscondenados,cujasentençafossecomutadaparacumprimentodepenanopresídio.

Porém, apenas em 1865 o presídio recebeu o seu primeiro regulamento, que nasceu da visita dobrigadeiroHenriquedeBeaurepaireRohan,noanode1863.

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Quantoaoclimadolocal,BeaurepaireRohanoreconheciacomoagradávelecomduasestaçõesbemmarcadas: inverno e verão. A primeira, tempo das chuvas, iniciava-se ainda em janeiro.Mas era demarço amaio omaior volume de precipitações, encerrando-se em junho. A segunda, tempo da seca,seguiaatéjaneiro.NoDiccionariochorographico,históricoeestatisticodePernambuco,deSebastiãoGalvão,lê-seque“oclimadeFernandoémuitosalubre.Équenteenãocontémhumidade,masocalorérefrescado pela constante viração que sopra”. Para corroborá-lo, cita o Diccionario de medicinapopular,dodr.Chernoviz,queconfirmasuaobservaçãosobreofrescordoar:“AilhadeFernandodeNoronhaébatidaportodososventosquereinamnessasparagens.Éumlogarsaudavel.”Suaqualidadeclimática era atestada pelo doutor, o qual lembra que, em 1881, foram enviados, em três levas, 116doentesafetadosporumaepidemiadeberibéri,sendoqueapenastrêsfaleceram.6

OclimasadioeabelezanaturalestonteantefizeramFernandodeNoronha,aindanoImpério,parecer,paramuitos,umparaíso.BeaurepaireRohandescrevequeváriosempregadosseguiram“comsatisfação,attrahidospelasinformaçõesquetinhãosobreasalubridadedailha,seusrecursosalimenticios,eoutrascomodidadesmais,quemuitoaproveitãoaosmilitares”.Noentanto,brevementedescobriamquehabitaremumailha-presídionãoeravivernos“arrabaldesdoParaísoTerreal”,comoimaginavam.7

“Entãoappareciadesgraçadamentea ideade tiraromaximopartidopossíveldasituaçãopenosaearriscadaemqueseachavão.”Destaforma,buscavam“comoumacompensação,aindaqueilegitima,dossofrimentosaqueseviãocondenados,longedosseusparentes,dosseusamigoseafastadosdequalquersociedade, que os podesse edificar pela suamoralidade”.8 Fernando era umamáquina devoradora dehomens. A todos parecia desviar. Os criminosos não se recuperavam. Os agentes da autoridade secorrompiam.Aqueles que lá estavampara edificar uma sociedade pautada namoral se contaminavamperdidos na falta de referências morais. Ou, a bem da verdade, já carregavam consigo o germe dacorrupção.Erapaisagemparadisíacaevidainfernal.

Além dos discursos reformistas, havia aqueles gerados no próprio presídio, criados pelasarticulações e estratégias de sobrevivência dos detentos. Por vezes, parecia que esses dois universosjamais se encontrariam. É recorrente, nos relatórios ministeriais, se dizer que tudo caminhavaperfeitamentebem:“NenhumsucessonotávelperturbouatranquilidadedailhadeFernandodeNoronha,nocorrerdoannofindo.”9Quando,noentanto,pareciaqueosdetentosestavamconstruindoseuprópriomundoparaleloàsreformas,àdisciplinaeàcorreção.

Não há regimen hygienico no presídio: alguns condemnados, que se consideram incorrigíveis oudesprotegidos, são amontoados emduas espaçosas salasou armazénsdeumvelhoquartel, e ahíondeapenaspoderiamcaber200seaglomerammaisde400miseraveis,representandoconstantementetodososhorroresdaprisãocommum.Foraficam1.300queseacommodamcomopodemecomobemquerem,levantandopalhoças, construindocazas, que alugamoucujodomínio transferem, complenodireitodepropriedadesobreoterrenodailhaquenãolhesfoiconcedido,esobreofructodotrabalhoquenãolhespertence. Não andam de uniforme: uns vestem-se com todo o esmero como os habitantes de nossascidades e villas, outros passam cobertos de andrajos, ou ageitam e transformam em roupa os sacosmandadosailhacommantimentos.[…]Eellesseaproveitamaindamaisdoabandonoemqueseacham,havendo tal que, dispensado do trabalho por invalido, obtem por sua industria a renda annual de1:200$000; taes que, aportando alli pobres e condenados por homicídio, apuramem14 annos fortunasuperior a 30:000$000. Há finalmente os denominados capitalistas que entram em transações com aadministraçãodopresídio,aquemchegaramaemprestardinheiroparaopagamentodasdespesas,quesefazemcomellesecomseuscamaradas!10

As relações de poder não se circunscreveram aos discursos da Corte. Circularam entre os

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vivandeiros,entreoscapitalistas,nacotaderação,noacessoàroupadesacodefarinha,nadistribuiçãodetarefas,nousodascasas.Podemserpercebidas,ainda,nautilizaçãodosmedicamentoseinternaçõesnaenfermaria.Tambémnaforçafísica,naesperteza,noalcagueteounaconstituiçãodefamílias.

O presídio de Fernando deNoronha tinha por paredes omar, e a própria ilha era a prisão. Nãoexistiaumpresídioenquantoedifício,comcelas,gradesemuros. JoséLinsdoRego,emseu romanceUsina,narra,naprimeiraparte,aprisãodomolequeRicardoemFernandodeNoronha:“Todostinhamraiva domar, um ódio igual ao que tivessem pelas grades da cadeia.Omar prendia-os, omar era ograndecarcereiro.”11Omarapresentava-se,nãoapenascomoummuro,masumvigia,umabocaquenãocansavadeavisargritandoquedalinãohaviasaída.“Omardailhanãobaixavaafúriadesuasondasnaspedras.Espumava, rugia todasashoras, enraivecido.Eraumcarcereiroquenãodormia,umelementoqueoshomensaproveitavamdeDeusparacastigaroutroshomens.”12Omarvigilantecercava,murava,confinavaospresos.Nãohaviasistemacelularoudeconfinamento.ApenasumprédiochamadoAldeiaencerrava precariamente os presos tidos como incorrigíveis e abrigava outros tantos para o pernoite.Constituía-sededoisgrandessalõesquelevavamparaumpátioemcomumdeformaretangular.Eraumaconstruçãosólida.Media30metrosdefrentee42,25metrosdefundo,ouseja,aproximadamente,1.270m².13 Em 1880, cerca de quatrocentos presos pernoitavam naAldeia, o que significava um espaço depoucomaisde3m²porpreso.14

AmaiorpartedaspessoasvivianaviladosRemédiosonde,emtornodeduaspraças,concentravam-seaadministraçãodopresídioeasmoradiasdosempregados.Pelasruasadjacentes,espalhavam-seascasasdossentenciados.Asedificaçõespúblicaseram:oArsenal,aCasadeOrdem,oalmoxarifado,asescolas, a farmácia, a enfermaria, o hospital e a Aldeia. O Arsenal, prédio bem conservado, deaproximadamente560m², tinha ao redorde seupátio central as oficinasde sapateiros,marceneiros eferreiros. Logo à frente doArsenal, estava o prédio que abrigava a Secretaria – onde funcionavam aoficina de tanoeiros, o armazém, o depósito de cal e a prisão de mulheres, que não passava de um“calabouçoimmundoesemventilação”–15eaCasadaOrdem,deondeomajordapraçadespachava.Afrente deste prédio dava para a casa do comandante. O almoxarifado ocupava diversos armazéns empontos distintos da ilha. O presídio dispunha de duas igrejas. A de Nossa Senhora dos Remédios,construídaem1772,comseus243m²,erapequenaparaatenderapopulaçãodailha.AcapeladeNossaSenhoradaConceiçãolocalizava-senocemitério.Esteeratambémpequeno,comapenas390m²,tendosido,antes,duasvezesampliado.Ocaráterdeilhafortificada,queobtevenoperíodocolonial,deixounopresídionovefortificações.Em1880,apenasasdeRemédios,SantoAntônioeConceiçãoestavamemcondiçõesdeuso.SãoJosé,DoisIrmãos,Boldró,Leão,SuesteePicoencontravam-seemruínas.Aindaexistiam duas olarias, casa de farinha, casa para extração de óleo demamona, forno de cal, casa dedebulharmilho.Asestradasligavam,praticamente,todosospontosdailha,emuitasdelaseramcalçadasdepedra,sendoduasemtodaasuaextensão.Alémdasresidênciasdos“própriosnacionais”,haviaumsem-númerodecasasdeparticularesesentenciados.

Em1864,pornãoseencontrarnemum“fileted’aguacorrente”,todaaáguapotáveldoarquipélagoprovinha de poços. Ao norte, os da horta da vila, doMulungu, do quartel de Sant’Ana, da praia daConceiçãoedoBoldró.Aosul,odoXaréu,“Massaio”doSuesteePedraAlta.Napartemaisaltadailha, abriram-se dois tanques para conter a água da chuva: um no curral de gado e outro na horta doSancho.Noentanto,aáguaeramuitobarrenta.NafortalezadosRemédios,haviaumacisternaembomestadoeumarepresafoiconstruída,porém,aobrafoitãomalexecutada,que,findaachuva,aáguaseesvaía.Aságuasdospoços,deummodogeral,eramlímpidas,masde“umgostosalino,querepugnaaosrecém-chegados”.16Noentanto,nãoeraminsalubres.NailhaRata,avertented’águaeratãodiminutaquemalpodiaatenderumaúnicapessoa.Em1880,asfontesdeáguapotáveleram13.17

A população era composta demilitares, empregados da administração, sentenciados e paisanos –

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como eram chamados, na ilha, aqueles que não cumpriam pena e não eram militares – entre estes,estavamvivandeiros,mulheres,criançaseatémesmoescravos.Apartirdatabelaaseguir,pode-seterumaideiadoqueeraapopulaçãodopresídiodeFernandodeNoronhaem1865.

Tabela1–PopulaçãodopresídiodeFernandodeNoronhaem1865

POPULAÇÃO %relativos Nº aosubtotal aototal

ADMINISTRAÇÃO Empregadoscivisemilitares 8 4,73% 0,51%FORÇAPÚBLICA Oficiaisdestacados 9 5,33% 0,57% Praçasdepret.destacadas 152 89,94% 9,65% Subtotal= 169 100,00% 10,73%PAISANOS Homenslivres 14 2,95% 0,89% Mulhereslivres 150 31,58% 9,52% Meninoslivres 148 31,16% 9,40% Meninaslivres 154 32,42% 9,78% Escravos 9 1,89% 0,57% Subtotal= 475 100,00% 30,16%SENTENCIADOS Militares 206 22,13% 13,08% Civis–Homens 707 75,94% 44,89% Civis–Mulheres 18 1,93% 1,14% Subtotal= 931 100,00% 59,11% Total= 1575 – 100,00%Fonte:RelatóriodoMinistériodaGuerrade1865.

Opresídioeradominadopelapresençamasculina:praticamente80%dapopulaçãoeraformadaporhomensemeninos.Asmulheresemeninasrepresentavam,então,osoutros20%.Onúmerodeescravos,0,57%,–aquinãoserefereaescravoscriminosos,quecumpriampena,masaindivíduosemcondiçãodeescravidão – era insignificante, além do que não aparecem referências importantes sobre eles nadocumentação.Contudo, a sua existência no presídio é algo que não se pode deixar de notar e de seperceber,portanto,oquãoamplaearraigadaeraaescravidão.Écuriosoobservaropequenopercentualqueoshomensrepresentavamentreospaisanos:apenas2,95%.Emrelaçãoaototaldapopulação,eramsomente14pessoasou0,89%.Onúmerodecriançaschegavaabeiraros20%dapopulação.Assim,ospaisanos significavam cerca de 30% dos habitantes da ilha. Número expressivo de pessoas, em setratandodeuma instituiçãopenal.Desta forma,muitodaparticularidadedeFernandodeNoronhavemdessasignificativapresençadeindivíduoslivresconvivendocomumapopulaçãocarcerária.

Olhando para os sentenciados, não é de se estranhar que oMinistério daGuerra trabalhasse paratransferiraadministraçãodainstituiçãopenalparaoMinistériodaJustiça,comoocorreuem1877,pois75,94%dossentenciadoseramcivis,contraapenas22,13%demilitares.Assentenciadasocupavamumapequenaparcelaentreosapenados.Noentanto,tornaram-seoalvopreferencialdoreformistaBandeiraFilhoedoconselheiroPáduaFleury,quenãocompreendiamenãoadmitiamapresençadessasmulheresnoarquipélago.

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Essaproporcionalidadeentresentenciadoscivis,militaresemulheresfoirelativamenteconstanteaolongodoséculoXIX,comalgunspicosdealteração,quenãoamodificam.

Osagentesdaordem,administraçãoeforçapúblicarepresentavammenosde11%dapopulaçãodopresídionumarelaçãodeumparacada5,5presos.Levando-seemconsideraçãoqueos475paisanos,emsua maioria, estavam ligados aos sentenciados – excluindo-se os familiares dos militares eadministradores–,essa relaçãopoderiasubirpara8,3pessoasparacadaagentedaordem.Éverdadeque se tratavadeumapopulação semarmasde fogo,masconstituíauma forçaque, sublevada,não sepodiaignorar,principalmente,tendo-seemvistaadistânciadocontinenteeademoranacomunicação.Onavio de guerra, que os regulamentos do presídio determinavam ficar estacionado nas águas doarquipélago,sóesporadicamenteexerceusuadestinação.Ainsegurançaobrigavaaadministraçãoaumarelaçãodúbiacomossentenciados,mantendoprivilégioseacordoscomalguns,parapoderasseguraraordemepreservarsuasprópriasvidas.Diantedadesproporçãonuméricaentrepresoseadministração,aforçanãopoderiaseroinstrumentopreferencialdecontrole.Atéporqueosprópriosdestacamentosnãoinspiravammuitaconfiança,sejaporcontadeteremsidoescolhidosentreosmilitaresindisciplinados,comoumaformadecastigo,oupelolongoconvívioentreospraçaseospresos,queacabavaporcriarrelaçõesdecamaradagem.BeaurepaireRohanacreditavaquenemtodosossentenciadosinspiravamumaameaçaàordem,pois,seaquelescondenadosàprisãoperpétuaouapenas longasseenvolvessememuma insurreiçãoque levasse auma situaçãopotencial de fuga, a administraçãopoderia contar comospresos condenados a sentenças curtas.Mesmo porque estes, preferencialmente, faziam parte da forçapública.

A ideia corrente sobre o encarceramento é que seus guardas, como explica Greshan Sykes,exerceriamumarelaçãosádicaebrutalcomopreso.Naverdade,nãoseriaessaaconstante,muitopelocontrário.Noregimeimpostopelaprisão,odetentobuscaummodusvivendideequilíbrio,poistodasasaçõesempreendidaspeloEstado,atéasdecunhosocial,reforçamafaltadeliberdade.Aliberdadedopresoélimitada,eelesempreprocuraampliá-la.Umaboarelaçãocomosguardasamplificaoalcancedamobilidadedodetento,tornando-se,assim,umcomplexopadrãoderelaçãosocial.Nocorrerdodia,sãoconstruídasrelaçõesíntimaseestreitasentresentenciadoseguardas.Estestêmfortesdificuldadesdedistanciamento, tendo em vista que o próprio apartamento físico é impossibilitado.18 Assim,ressentimentos e gratidões são estabelecidos na rotina diária. Escapar deles, em um presídio comoFernando deNoronha, parecia ser tarefa improvável. Essas relações sociais, no entanto, nem sempreeramharmônicaselivresdeconflitos.

Negóciosmuirendosos:paraalémdasnecessidadesessenciais

Porvoltadas8:30hdamanhã,dodia3dedezembrode1886,ocorreu,nomercadodopresídio,umalutaentreumsoldadoeumsentenciadocivil.Umpraçadaguardadadiretoriaprendeuosentenciadoporteriniciadoabriga.Oajudantedodiretor,otenentehonoráriodoExércitoJoséIgnácioRibeiroRoma,aosaberdofato,“prendeudoispraçasqueestiveramenvolvidosnaluta,maltratando-oscompalavraseameaçando-os com chicote”. Em seguida, buscando “vingar a affronta feita aos seus companheiros”,alguns soldados, armadosdecacete, forambaternospresosdomercado.Tambémarmados,ospresosresistiram e ferirammortalmente dois praças.Ao saberem dos fatos, um grande número de praças sedirigiramparaaArrecadação,afimdesearmaremevingarem“amortedoscamaradas”.Ocapitãoosdeteveeosobrigouaentraremformadefronteaoquartel.Quandoosânimospareciamseacalmar,eisque aparece umgrupode presos armados dirigidos “por umguarda, que avançando emattitude hostil

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desarmouumasentinella:intimadoaretroceder,sóofezdepoisqueumadescargadadapelaguardadadiretoria prostrou um dos presos que pretendia atacar outra sentinella”. Uma força de praças – “aoestampidodadescarga”, semqueos oficiais pudessemconter – partiu emdireção ao aldeamentodospresos,atirandoequeimandoalgumascasasdepalha,e“praticandotodaasortedetropellas”.Ocapitãoeoutrosoficiaiscontiveramospraçaseosfizeramretroceder.19

Aolongododia,atensãopermaneceuefoiprecisomuitoesforçodosoficiaisparaconterosânimosdossoldadosesentenciados.Emuma jangada,umsargentoe trêssentenciados levaramofíciosparaogovernodePernambuco,dandonotíciasdasocorrências.AjangadaaportounoRioGrandedoNorte.OgovernodestaprovínciacomunicouàdePernambucoque,então,enviouumvaporcomoitentapraças.OMinistério da Justiça, em seguida, também enviou um vaso de guerra para aportar nas águas doarquipélago. Os militares que lideraram o conflito foram submetidos a conselho e os demaisdisciplinarmente corrigidos. Os destacamentos foram substituídos e os sentenciados mais envolvidosencaminhadosparaRecife.20

Como se pode ver, o conflito envolveu soldados, sentenciados, oficiais e a administração dopresídio.Nãosetratavadeumarebeliãodepresoseaconsequenterepressãodosguardas.Nemdeummotimdesoldadosaquartelados.Erasimumconflitoqueexpunhamuitasdasrelaçõestraçadasnailha-presídio. O cenário do primeiro ato do conflito foi o mercado do presídio, espaço dominado pelosvivandeiros – negociantes paisanos e sentenciados que praticavam toda sorte de comércio na ilha.Compravam produtos emRecife e vendiam a retalho, sendo que alguns estabelecimentos chegavam acomprar de três a quatro contos de réis em mercadorias.21 Beaurepaire Rohan os chamava de“ratoneiros”,quetraficavameextraíam,“pormeiodeumcommerciocheiodefraude,odinheirocomqueo governo contribue para as despezas do presídio”.22 Os preços dos gêneros postos à venda, aindasegundoRohan, eramexorbitantes.O regulamentode1865proibiu a atividadedosvivandeiros, comotambémprocurourestringirsensivelmenteacirculaçãodedinheironailha,poisasdiáriasseriampagasem gêneros e não mais em espécie. Essas determinações demoraram bastante para serem postas emprática, pois apenas emmarçode1879 adiária passou a ser paga emgêneros.Até então, ovalor dadiáriaerade140réis.Emalgunsmomentos,ogovernofornecia,comadiária,sessentaréisdefarinha,valorqueeradescontado.Tendoemvistaobaixovalordadiária,eaimportânciaqueafarinhatinhanaalimentaçãodosdetentos,oMinistériodaGuerracomeçouadistribuí-ladegraça,apartirdemaiode1876.Quandoadiáriapassouaserpagaemgêneros,foielevadoseuvaloraodobro,ouseja,280réis.Nosomatóriodovalordosgênerosdistribuídos,adiáriachegavaaalcançar288réis.Adiária,em1879,constavadosseguintes itens: farinha,1 litro;charque,250g;caféempó,40g;açúcar (mascavo),100g;fumo,10g;sabão,13,333g.23

Bandeira Filho não achava a diária em gêneros insuficiente, tendo em vista que continha o“estrictamentenecessarioparaa alimentaçãodeumpreso”.24Afinal, segundo ele, trabalhavamapenasquatrooucincohoraspordiaepodiamcomplementaraalimentaçãocomumpoucomaisde trabalho.Mesmoovalordadiáriatendosidodobrado,agrandemaioriadospresoscobravaoretornoàdiáriade140 réis paga em dinheiro, pois, recebendo em espécie, os presos plantavam, pescavam e criavampequenos animais para a alimentação, reservando o dinheiro para comprar o que bem quisessem.Queixavam-se, ainda, constantemente da qualidade dos gêneros fornecidos pelo governo. O próprioBandeiraFilhoviupresosjogaremforaocharqueassimqueorecebiam,dizendoestarpodre,tendosidoelerecentementedesembarcadodovapor.25

Comonão recebiammais dinheiro, comexceçãodaqueles que se ocupavamemoficinas, e por nadiária não estar incluído o vestuário, os presos andavam na penúria, aos trapos.Alguns comandantesordenavam desmanchar os sacos de farinha vindos do continente, para transformá-los em roupas. Noentanto,comapéssimaqualidadedotecidonãoduravammuitotempo.Era“umexpectaculorepellenteo

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daquelles infelizes quase nus, pedindo a todos qualquer cousa para vestir, e resguardar-se do calorintenso que se soffre na ilha”.26 Já os sentenciadosmilitares recebiam o equivalente a dois terços doordenado de um soldado e roupa fornecida pelo Exército. Isso acabava por criar uma situação dedesigualdadeeclassesdiferenciadasdepresos.

Boapartedasqueixascontrao fornecimentodosgêneroseo retornoaopagamentodasdiáriasemdinheiro era instigada, segundo Bandeira Filho, pelos vivandeiros, que sonhavam “com orestabelecimentodocommercio,paraauferirseusescandalososlucros;ospresosarepetem,laborandoemequivoco”.27Comaproibiçãodoingressodevivandeirosquenãoeramligadosaopresídioeláiamnegociar,criou-seummonopóliodossentenciados.Em1879,aindaexistiam31vivandeirosnailha.Seiseram paisanos e 21 sentenciados. Estes últimos tiravam proveito do regulamento que permitia a umempregadoseragentedossentenciadose,assim,compravamgênerosdoRecife.Mesmocomareduçãodacirculaçãodedinheiro,osnegócioseoslucrosprosseguiam.Mensalmente,continuavaadesembarcarde sete a dez contos de réis emmercadorias.Ao conversar com um vivandeiro, que lhemostrou suaescrituração, Bandeira Filho observou que, anteriormente ao pagamento em gêneros, a renda doestabelecimentoalcançavaacifrade25mila30mil réisdiários,enaquelemomento,1879,oscilavaentre9mile15milréisdiários.Noentanto,valefrisarqueaquelenãoeradosnegociantesmaisfortes.28Os sentenciados tocavam seus negócios livremente, como comerciantes que eram.Desta forma, era osonhodequasetodosossentenciadostersuaprópriavenda.

HápoucotempoacabaramdecumprirpenaemFernandodoisportuguezes,umpor12eoutro14annos,esahiram levando ambos fortunas regulares, calculadas em mais de 30 contos de réis; um delles eracarroceiron’umacapitaldeprovíncia,e,quandocommetteuohomicidiopeloqualfoicondemnado,nadapossuia.Emvezdesoffreremosrigoresdapenalidade,estesdousindividuosaproveitaramcomella,etalvezbemdigamahoraemquesetornaramcriminosos.29

Outraspossibilidadesdenegócioserampossíveis,entreelasodeproprietário,queseconstituíaemalugarcasas,ouodecapitalista,queemprestavadinheiroa20%dejurosaomês.Estessentenciados-capitalistasemprestavamdinheiro,atémesmoomontantede7milréis,parapagardespesasdoprópriopresídio,quandosefindavamosrecursoseseesperavaachegadadovapor.Masressalte-seque,“paracúmulo de desmoralização, os sentenciados faziam o favor de não receber juros!” (grifo do autor).30Quandodaproibiçãodeosvivandeiros continuaremseucomérciona ilha, apartir do regulamentode1865,estesserevoltaramcontraocomandante,atribuindo-lheoatodaproibição,poisacreditavamqueele queria livrar-se dos concorrentes para se locupletar.31 Ora, as insinuações dos vivandeiros nãodeviamserdetodofalsas,tendoemvistaasconstantesdenúnciasdecorrupçãoeenriquecimentorápidodoscomandantes.Em1864,quandoBeaurepaireRohanvisitouopresídio,encontrouosempregadosdocomandantecontrolandoasplantaçõeseocomércio.Os rendimentosdaagriculturaeram trocadosporprodutosquevinhamdocontinentepara seremcomercializadosna ilha.Atémesmoo fornecimentodegalinhas,usadasnadietadosenfermos,paraaenfermariadopresídio,eradominadopelocomandante.Aopreçodemilréiscadauma,tornava-seumnegócio“muirendoso”,aopassoque“umadascautelasaquemais attendiãocertos commandantes,de accordocomosmedicos, era ter semprenaenfermariaomaior numero de doentes que ella pudesse admitir”.32 Então, o primeiro cenário do embate entresentenciados, soldados oficiais e direção do presídio não poderia ser outro, senão o mercado. Ali,estavamcatalisadososinteressesmaioresnosnegóciosqueailhapodiarender.Nãoosrendimentosqueos reformadores sonhavam em ver brotar daquele chão, fosse da agricultura ou da indústria, mas oslucrosqueprovinhamdocrime,deondedeveriaviracorreçãodoatocriminoso.Todavia,nãosepodeesquecer que os vivandeiros, em seus negócios escusos, possibilitavam aos presos algum alívio da

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condiçãodeprisioneiroseaaproximaçãodeumavidalivre,aoteremacessoaprodutosparaalémdasnecessidadesessenciais.

Aplateiaeospapéis

Voltandoaosacontecimentosde3dedezembro,oajudantedodiretorprendedoispraças,envolvidosna luta, e os ofende com palavras, ameaçando-os com chicote. Segundo Sykes, os guardas estãoconstantementeexpostos“aumaespéciedechantagemmoral”pelospresos.Seelesagemnosentidodereprimir essa situação, logo são ameaçados com o ridículo ou com hostilidade. Os guardas, porocuparemumpapel intermediárioentreavigilânciados sentenciadosea subordinaçãoa seusoficiaissuperiores, acabam por se encontrar em um “conflito de lealdades”.33 Somem-se a isso os constantesressentimentos dosguardas e soldados, emvirtudedas repreensões, censuras, falta de apreço e, nestecaso emparticular, ofensasmorais e ameaças físicas.Assim,osguardas acabavampor criar laçosdeidentificação com os condenados, pois também estavam sob um regime de submissão. A humilhação,portanto,sofridapelopraçaafetoutodaaguarnição.Todosforamofendidos,tiveramsuamoralafetadaequebrada.

No terceiro ato, um pequeno número de soldados, armados de cacete, vai ao mercado “vingar aaffrontafeitaaosseuscompanheiros”.Aafrontanãosereferiaapenasàsurraqueosoldadohavialevadodosentenciadocivilnomercado,mas,sobretudo,àquebradomoraldetodosossoldados.Ahumilhaçãoimposta ao praça, pelo ajudante do diretor, tivera início nomercado, na briga começada por aquelesentenciado.Assim,ossoldadosatribuíramaestefatooestopimdadesmoralizaçãosofrida.Então,umaliçãoprecisariaserdadaparaoresgatedomoraldaguarnição.Porém,ainvestidamalogra,edoispraçassãomortospelaresistênciadossentenciadosdomercado.

Partindoparaoquartoato,aochegaremasnotíciasdosfatosnoquartel,umgrandenúmerodepraçasbuscasearmarparavingar“amortedeseuscamaradas”.Porém,todossãocontidospelocapitãoqueosfazentraremformadefronteaoquartel.Esteúltimoéocenário,porexcelência,dominadopelocapitãodaguarnição,comooforaantespelomajordapraça.Valeaquiressaltarqueaexistênciadedesavençasentreodiretordopresídioeocomandantedaguarnição“muitocontribuiuparaqueasmedidastomadas,logo em princípio, no intuito de abafar a sublevação das praças, fossem improfícuas”.34 A luta porespaços de poder era corrente na instituição. Muitos presos se diziam, abertamente, inimigos docomandanteoudomajordapraçaenquantooutrossemostravamaliadosdeumadaspartesetrabalhavampara atrair o máximo de companheiros para o lado que apoiavam. A esta relação de disputa peloposicionamentodosindivíduoseformaçãodegruposdava-seonomedepartidos.Entende-seportomarpartido posicionar-se, apoiar, pertencer a determinado grupo. Não necessariamente os partidos seformavam de disputas entre o comandante e o major da praça ou, mais tarde, entre o diretor e ocomandante da guarnição, como no caso que agora se analisa. Os partidos também existiam entreliderançasdossentenciadosouquantoadecisõesaseremtomadassobrearotinadailha.Asrelaçõesdealiançasedavamemtodasasinstâncias.Nesteconflitoemparticular,ospartidosparecemtersaídodocontroledesuaslideranças,tendoemvistaadimensãoqueatingiu.

A menção a vingar “os camaradas” refere-se aos companheiros de tropa, pois trata-se de textoredigidopeloministrodaJustiça.Nailha,noentanto,otermocamaradaassumeumoutrocaráter.Tendoorigememantigos regulamentosmilitaresquepermitiamaoficiais teremsoldadospara atendê-los emserviçospessoais,talexpedientefoitomadocomopráticanailha.Cadaempregadopodiaocuparquatrosentenciados em seus serviçospessoais.Eraocupaçãodisputadapor eles, pois eramdispensadosdosserviços do presídio e apenas cuidavam dos interesses particulares do empregado. Nas casas onde

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trabalhavameramtratados“comoverdadeiroscreados:umservedecozinheiro,outrodecopeiro,estepasseiacomosfilhosdeseuamo,aquelepescaetc.”Eassim,“indivíduosquenãoteriamrecursosparapagarumcreado,sãoalliservidosporquatroeasvezesodobro”.35Entreosempregadosquepodiamtercamaradasestavamaindaossargentosecabos,comotambémsentenciadosquetrabalhavamnopresídio.Bandeira Filho chegou a encontrar um galé com o serviço de camaradas. Trabalhavam, ainda, nocomércio da ilha, auxiliando os proprietários das vendas. Acabavam por constituir uma classeprivilegiada, pois não estavam submetidos a trabalhos duros, alguns tinham melhor alimentação evestuário,eaindarecebiamasdiáriasdoEstado.Em1879,havia189presosocupadosnestafunção.36

Alémdoscamaradas,existiamsentenciadosempregadosnasoficinas,naguardadasporteiras,hortasecacimbas,osquefaziamopoliciamentodapovoaçãoduranteanoite,osmúsicoseosdispensos,estescompostospelosdoentese incapazesparao trabalho.ParaBandeiraFilho, a imagemdehorrorqueopresídiodespertanocontinentenãocorrespondeàverdade,poisacondiçãododetentoeraplenamentesuportável. Os sentenciados repetiam: “Em Fernando o preso vem passar a festa” (grifo do autor).Enquantoemumaprisãofechadaelesestariamsubmetidosaumregimesevero,emFernandodeNoronhamontavam casa, trabalhavam no que bem lhes conviesse e, ainda, desfrutavam de lazer, como dasapresentações de dança e teatrinho da Sociedade Thalya Beneficente, composta por presos e algunsempregados. Diante do quadro perguntava: “Quemoralidade se pode esperar de um estabelecimento,onde entre empregados e presos há taes relações de intimidade”.37Bandeira Filho chegou a assistir àapresentação do dramaMilagres de Santo Antônio. A peça o surpreendera, pois o desempenho dosatoresrevelava“grandepraticaeapuradoestudo”.Aplateiatambémnãolheescapou:

Eraumespetáculotristeodaquellaplatea,queàsvezescomcalorapplaudia:individuospervertidosedesmoralizados, condemnados à galés, escravos libertados pela natureza da pena, criminosos quedeveriam estar gemendo nos cárceres para castigo dos hediondos crimes que commetteram, allibrincavamalegremente, fazendovotosparaqueninguémse lembrede tira-losde tãoagradável retiro.Nãoépoisdeadmirar,quehouvessequem,depoisdecumprirpenaemFernando,praticassenovocrimecomointuitodevoltar;edeoutrofactopossodartestemunho.Poucoantesdeminhaviagem,tinhavindoparaoRecifeumamulherqueacabaraasentença,e,quandolámeachava,voltouellaparaoPresídio,dizendoquenãoqueriamaisvivernocontinente!38

Os laços sociais criados na ilha prendiamos sentenciados aindamais a ela.Nãonecessariamenteporqueascondiçõesdevidafossembrandascomofalavamosquevisitavamopresídio,poisoshorroreseasinjustiçaseramcorrentementepraticados.Massimpelaconstruçãodealgopelopertencimentoaumuniversoparticular.CharlesDarwinescreveuemseudiárioqueemFernandodeNoronha“oquehádemaisnotávelemseucaráteréumacolinacônicaelevando-seacercadetrezentosedezmetrosdealtura”.Assim,eledescreveoacidentegeográfico:“Arochaémonolíticaedivide-seemcolunasirregulares.Aoolhar uma dessas massas isoladas tem-se a princípio a impressão de que ela teria sido propelidabruscamenteparacimanumestadosemifluido.”39OPico,monólitoavistadoa longadistância, tambémnãofoiignoradopelossentenciados.OscondenadosagalésperpétuasseintitulavamIrmãosdoPico.40ComonadescriçãodeDarwin, chegaramalipropelidosbruscamente. Irregularese semifluidos, foramfincados e pertenciam, agora, à ilha. Eram filhos de Fernando. “Como o grande rochêdo, dali nãosahiriammais.”41Emmaiode1916,quandoMarioMelovisitouailha,seconsideravamIrmãosdoPicoaquelesqueláestavampormuitotempo.“OchefedaCompagnieTelegráphiqueSudAméricain,quealiresideaoitoannoseconstituiofamilia,declarou-seserirmãodoPico.”42

Os Irmãos do Pico, mais que irmanados entre si, estavam simbioticamente irmanados à ilha. AFernando.Eraassimquetodoschamavamailha.Chegar,estar,viver,sairdeFernando.Assimfalavam,

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fosseosentenciado,ocomandante,osoldado,oministroouoliterato.Contrapondo-seaFernandoestavaomundo,expressãolargamenteutilizadanailhaparaindicarocontinente.“Étalapropriedadedotermoque,allidemora-sealgunsdias,acabaporemprega-lainconscientemente.”43Trintaecincoanosdepoisde Bandeira Filho surpreender-se ao usar inconscientementemundo para se referir ao continente, ojornalistaehistoriadorMarioMeloviveuamesmaexperiência:“Étãovulgar,quenodiaseguintetodosnósestranhosaopresídionosreferimosaomundoemsubstituiçãoàpalavraRecife.”44NopresídiodeUshuaia,naTerradoFogo,naPatagôniaargentina,osapenadoschamavamaquelaterralongínquade“LaTierra”,45eaorestodomundodeo“Norte”.46Aprisãopelanaturezatinhatalcapacidadedeapartaropresoqueopertencimentoàsociedadedaqualfaziaparteeradiluídofluidamenteerecompostoemumoutrolugarfeitoseu.EmFernandodeNoronha,omundonãoéapenasocontinente,mastodaasociedadecivilizadade ondeo indivíduo foi banido.Todavia, às vezes, amiséria domundo era tão ingrata e acivilizaçãoprometidatãodistante,quemuitospreferiamavidaemFernando.

Assim como os galés perpétuos se identificavam pela sentença recebida, outros apenados sãoreconhecidoseagrupadospelocrimecometido.Destaforma,aquelesquepagavampenaporassassinatotinhamummaiorprestígioporserem“consideradoshomensdecoragemeresolução”.47Quantomaiorocrime,maior a consideração, aindamais que, ali, o delito costumava ser ampliado de circunstânciasfabulosas.Osassassinosdesprezavamoscondenadosporfurto.MarioMeloafirmaque,emsuavisita,viuqueosladrõesseofendiamsecomparadosaassassinosesepunhamcomosuperioresaestes.“Umjulga indigna a espécie de crime do outro.” Na visita do governador da província de Pernambuco,ManoelBorba,aFernandodeNoronha,em1916,muitospresoslhepediamoperdãodapena,mas“entreossolicitantesnãohaviaumúnicoladrão.Todoseramcriminososdemorte”.MarioMeloconcluiuqueos“gatunossereconhecemconscientementeincorrigíveis.”48

Todavia,existiaumacategoriadepresosqueeraridicularizadaportodos:oladrãodecavalos.Osdemaissentenciadososchamavamde“pitubosequatroeoito,nomededuzidodomáximodapena.Essesindivíduos formam sociedade à parte, e não são capazes de confessar o crime; quando interrogados,dizemqueestãopresosporumimpute”.49Pitubos,impute,palavrasquefaziampartedovocabuláriodegírias dos presos, mas que traduziam bem seu significado, pois pituba refere-se à pessoa medrosa,covarde,tambémaopreguiçosoe,finalmente,aoladrãodecavalo.Oimpute,umaacusação.Poisbem,tudoaquiloaqueosdemaissentenciadospodiamodiaremumcriminoso–covardiaefaltadeousadia–possuíamos ladrões de cavalos.Que históriasmiraculosas teria a contar um ladrão de cavalo a seuscompanheirosdepena?Restavadizerquerespondiamaumaacusação.Láestavamporumimpute.

GilbertoFreyre,emNordeste,nocapítulo“Acanaeosanimais”,descrevelongamenteapaixãodosenhor de engenhos pelos cavalos.Montados, eles olhavam para seus escravos e agregados como seestivessem na varanda da casa-grande, na mesma altura do alpendre. Eram verdadeiros centauros,amandooscavalosquasecomoamavamasmulheres.50Comosepodiavernaculturapopularnordestina:“Souvelho, tivebomgosto /MorroquandoDeusquiser /Amaior penaque eu levo /Cavalobomemulher.”Assim,“osenhordeengenhotinhatantohorroreódioaoladrãodecavalocomoaoladrãodenegro”.Algunssenhoreschegavamasercruéiscomeles.Freyreafirma“queaindahoje[1937,datadepublicaçãodaobra]dificilmentesepodehumilhardemodomaiscruaumhomem,noNordeste,doquechamando-odeladrãodecavalo”.51

MarioMeloconheceuaquelequeeraocondenadomaisbemcomportadodopresídio:era“umvelho,branco,maisoumenosinstruído,devozforte.Éelequemlêperanteoscompanheirosemforma,aordemdo dia do administrador”. Sempre bem-comportado, já cumpria pena em Fernando de Noronha pelaterceira ou quarta vez, bastando, todavia, voltar ao continente para retomar sua prática. Contavam ospresosque,estandoovelhonopresídio,“paramatarovicio,chegouafurtarumcavalloeesconde-lodurantedias, tratando-opor suacontanos esconderijos”.Para resolveroproblema“deram-lheou lhe

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facilitaram a compra de um cavallo.O velho é hoje possuidor dum solipede. E trata-o com especialcarinhonashorasdefolga”.52Pode-severqueoscavalosnãoeramamadosedesejadosapenaspelossenhoresdeengenho.Osladrõesdecavalo,noentanto,eramodiadospelossenhoresdeengenhoepelogrêmiodoscriminosos.Consideradaofensaextremamentedepreciativaaumhomemdebem,apráticaera,porseuturno,motivodehumilhaçãoechacota.

Tecendofamílias:sagradosmatrimôniosepecadosdeFernando

O quinto ato principia com a guarnição em formação diante do quartel da ilha. Os ânimos dossoldadosseacalmavamquando,então,surgempresosarmados,dirigidospor“umguarda”.Esteavançouhostilmentesobreumsentineladesarmando-o.Nestemesmomomento,umguardadocomandoabateumpresoe,sóassim,oguardaquelideravaossentenciadosretrocede.Aquisepodeverqueacomposiçãodos partidos não era homogênea, nem separada por condição social.O grupo de presos que atacou oquarteleralideradoporumguarda.Aguarniçãoemformaçãodiantedoquartelestavadivididaentreodiretordopresídioeocomandantedaguarnição,alémdeumoutrogrupo,foradecontrole,formadoporpraças.Estes,aoestampidodotirodoguardadocomando,dirigiram-separaascasasdossentenciados,dandoinícioaosextoato.

Ossoldadosderamtiros,queimaramcasasepraticaram“todasortedetropellas”,ouseja,confusãobarulhenta provocadapor gente em tropel.Não se podeprecisar todas as açõesviolentas provocadaspelospraças–comoostirosqueforamdisparadosequenãoparecemterprovocadomortes–masumaatitude,emparticular,nãopôdeescaparàpenadonarrador:ofatode incendiarem“algunsranchosdepalha”.Ascasas,espaçodeabrigo,moradiaeconvíviofamiliar,nãoeramdiferentesnopresídio.Atacá-lasimplicavaumflagelodoloroso,poisnãosetratavadeprédiospertencentesaogoverno,masmoradiasconstruídaspelossentenciadosouparticularesparaasuahabitaçãoouparaaluguel.

Ascasasconstruídaspeloshabitantesdailhanãoerammuitosegurasnemresistentes.Grandeparteeracobertadepalhaefeitadetaipa,nãosuportavaasintempéries,poucasvezesduravadoisinvernos.Antesde1873,quasea totalidadeera feitadessesmateriais.AlexandredeBarrosAlbuquerque,entãocomandantedopresídio,determinou“que seconcedessea todoo sentenciado,que tivessede levantarumapequenacasa,umafachinadepedraseumnumerorazoaveldepraçasparaauxilia-lonotransportedaspedraseemoutroqualquermister,dequeporventuraprecisasse”.Destemodo,eramobjetivosdocomandante“oaformoseamentodavilla,aconservaçãodaspoucasmatasqueailhapossue,etambemamaiorduraçãodaspropriascasas,cujosbeneficosresultadosrevertememutilidadedossentenciados”.53Nesteano,existiam476casasparticulares,129depedraecale347detaipa.

Houveumaumentoconsideráveldonúmerodecasasdepedraecalapartirde1873,comparticularexpressãonesteano,oquedemonstraterhavidoumcertoêxitonamedidadocomandante.Em1880,ascasasestavamdistribuídaspelasseguintesruas:doComércio,46casas;daConceição,49;doFico,53;Estrela, 85;Floresta, 32; doSol, 65; daAlegria, 57; doCurral, 44; doBaltazar, 24; daCacimba, 42;Mineiros,62edoAçude,16.NapraçaCondeD’Eu,nas ruasdoComandoedosRemédios, sóhaviaconstruçõesnacionais.54

Ascasasconstruídaspelossentenciadosacabavamporincorporar-seaopatrimôniodestespormeiodo direito de propriedade. Sabe-se que, ao fim da pena, os detentos transferiam a posse ou o uso de“suas” casas ou realizavam a transação ainda na vigência de suas sentenças. As moradias eramtransmitidaspormeiodedocumentoscomaintervençãodefuncionáriosdopresídio,sendoquemuitaspertenciamaparticularesqueasalugavam.Pode-seperceberqueoacessoàposseeaosdiferentestipos

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decasascompreendiaumarelaçãodefavoresentrepresoseempregados,comotambém,umsistemadestatusentresentenciados.Houve,dessemodo,obeneficiamentodealgunspelaadministração,poisnãoera incomumsoldadoseoficiaisfestejarem“oaniversáriodeumgalé jantandonacasadelle”.55Essascasasabrigavamasfamíliasdosempregados,soldadosdodestacamento,paisanosesentenciados,sendoque, desta maneira, eram elevadas à condição de lar. Constituindo-se em um cenário de interaçõessociais quemaximizava aindamais as contradições do espaço prisional de Fernando deNoronha, ascasas e as famílias de sentenciados resistiram longamente na ilha. Em 1943, o então capitãoAntonioLemosFilhocomandavaa2aBateriaemFernandodeNoronhaduranteaSegundaGuerraMundial–opresídionãomaisfuncionava,porémogovernomantinhaalgunscondenadosdebomcomportamentopararealizarem certos trabalhos – e ainda pôde observar que vários presos moravam “na ilha com suasfamíliaseemcasasseparadas”.56

Aoanalisarosdadossobreoscasamentos,podemosperceberumaformaçãodefamíliaquenãosediferenciavamuitodasdocontinente.Aumprimeiroolhar,poder-se-iaquestionarseteriamestescativosamesmaestrutura familiardoscativosnegrosdoBrasil escravista.57Noentanto, esta estruturapareceestarmaispróximadasrelaçõesfamiliaresdascamadasmaispobresdehomenslivres.Investigando-seosregistrosnoslivrosdecasamentodeFernandodeNoronha,procurou-secriarumquadrodasrelaçõesmatrimoniaisnailha.Aamostradosdadoscolhidoscompreendeosanosde1854a1867,58perfazendoumtotalde48casamentos.Oprimeiroaspectodaanáliseéadistribuiçãodefrequênciadosmatrimônios.

Os picos de cerimônias ocorrem entre 1861 e 1862. Este período é irregular em relação àdistribuiçãodosoutros anos estudados,podendo-se atribuir este efeito àmaiordisposiçãodospadresJoaquimVeríssimodosAnjos,capelãoalferes,edocapelãocontratadoJoséLopesDiasdeCarvalho,tendo este celebra-do 21 dos casamentos analisados, mais de 40% do total.59 Mais que um aspectosubjetivo da análise, percebe-se nessa disposição uma convergência de valorização dos sacramentos,além de uma real intenção de contribuir para a consolidação de valores cristãos num ambiente, paramuitos,destituídodeumabasemoralcapazdesurtirumefeitorestauradorsobreosapenados.

Para a celebração do casamento, o preso se dirigia ao comandante pedindo-lhe licença, e estedespachavapositivamente.Levava,então,odespachoparaaigreja,ediantedocapelãojustificavasuasituaçãode solteiroouviúvo.Como testemunhasde justificaçãodoestadodeviuvezoude solteirice,levava outros sentenciados, que narravam conhecer os nubentes e que não havia impedimentos para aobtençãodosacramento.Ajustificaçãoeraaceitaeocasamentorealizado.Astestemunhasdoprocessonãoinspiravamconfiança,porsuaprópriacondiçãoepor,muitasvezes,sóviremaconhecerosnoivosdepoisqueforamvivernailha.

Encontramosnadocumentaçãointeressanterelaçãodastestemunhasdecasamento–situaçãodiferenteda tratada acima, pois estes são convidados pelos nubentes para testemunharem o matrimônio, jáautorizadopelaIgreja,constituindo-seemumarelaçãosocialimportanteentrecatólicos–quecommaisconstânciaseapresentavamparacumpriraexigênciatestemunhaldascerimônias.Trabalhandoaindacomamesmaamostra,chega-seaumnúmerode92testemunhas,destacando-se,sobesseaspecto,afiguradomilitar.Nãoélímpidoocenárioqueenvolviaestasescolhas,tampoucoareservaouoentusiasmocomque eram acolhidas. Podemos dizer apenas que, sobre tudo isso, incidia uma dinâmica que erigiavínculos entre apenados e militares, cumprindo o papel de trazer ao cotidiano da ilha doses de umentrelaçamento que, se por um lado era exigência inegociável às aplicações dos conceitos deressocialização–pormeiodeumavidaquepropiciasseocontatocompreceitoscristãoscomopartedeumconjuntodemedidasnarecuperaçãodoapenado–,poroutrotraziaoexotismotípicoqueasrelaçõesnoespaçoprisionalsempreapresentaramnoBrasil.

Destaca-sedeprontoofatodeque,semdúvida,eramosmilitaresdemaiorpatenteoschamadosapriori.ÉocasodocoronelcomandanteAntônioGomesLeal,seisvezesapondosuaassinaturanolivro

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correspondente.IgualdestaquerecebeomajorcomandanteSebastiãoAntôniodoRegoBarros,tambémseisvezescomparecendoaservirdetestemunhanascelebrações.Sentenciados,decerto,serviammenosaestassolicitaçõesdecompadrio.Osdados,noentanto,nosmostramque,seporumladoconcentravam-seemalgumasfigurasospedidosdeapadrinhamento,poroutrosepulverizavamentremuitososrestantesdos pedidos, servindo-nos, talvez, como chave de identificação da multiplicidade de relaçõesconstruídasnailha.

No entanto, a primeira impressão das vantagens obtidas por um sentenciado, ao ter o comandantecomotestemunha,apadrinhando,assim,ocasamento,desfaz-seaovermosadocumentaçãoedetectarmosasrelativamentecurtas temporadaseconstantesmudançasdecomandantes.Aoanalisarosregistrosdecasamento da amostra estudada, pode-se perceber a preferência dos sentenciados, para testemunha decasamento,pelocasalLourençoJoséRomãoedonaAnnaLinsRomão,ouumdosdoisemcomposiçãocomoutrapessoa.HáregistrosdoalferesLourençoJoséRomãocomotestemunhadecasamento,desde1ode janeirode1857,nasbodasdeAntônioFerreiradaCosta eRaimundaMariadaConceição, ambospardos e filhos legítimos. Em 1864, Beaurepaire Rohan aponta o alferes Lourenço Romão como oresponsávelpela introdução,na ilha,de fruteirascomoaúnicapitombeirado lugar,pésdemamãodecaienaepitangueiras,plantadasemsuahorta.60Em1873,LourençoRomãoécitadocomointegrantedacomissão designada pelo comandante para arrecadar doações para vestir as crianças do presídio.Ouseja,viveunopresídiopor,nomínimo,16anos.61

Vê-senosregistrosdecasamentoqueoalferesLourençoJoséRomãogozavadeprestígio,poisforatestemunhadocasamentodePedroCarlosNogueiradeBaumam,filholegítimodotenente-coronelJoãoCarlos de Baumam e de dona Ana Nogueira de Baumam, todos do Rio de Janeiro. A nubente eraMichaellade JesusMachado, filha legítimade José JoaquimMachadoeFranciscaTeixeiraMachado,todosdoCeará.AnoivaforaparaFernandodeNoronha,emcompanhiadeseuspais,especialmenteparao casamento. Ladeava Lourenço Romão, como a outra testemunha, o major comandante, SebastiãoAntôniodoRegoBarros.Emoutrocasamento,oalferesRomãofoitestemunhadauniãoentreBelarminodaCostaRamos,segundosargentoda8acompanhiado4obatalhãodeartilhariaapé,comBelinaAugustaCarolinadaSilvaBitancourt,nascidanopresídiodeFernandodeNoronha,efilhanaturaldeMariadaSilvaBitancourt.TambémtestemunhouocasamentodomilitarAntônioMalhardo.

Todavia,foi testemunhadecasamentopelomaiornúmerodevezesentreossentenciados.Enquantoentremilitaresfoisolicitadotrêsvezes,entreossentenciadoscivisofoicinco,lembrandoqueosquatroregistros restantes, do total de 12, quenão identificama condição social dos noivos, possuemgrandechance de também serem de sentenciados. Das uniões de presos, o casal Romão, por exemplo, foitestemunha do matrimônio entre o viúvo Manoel Vieira Cordeiro, sentenciado civil, com a paisanaFrancelina Maria da Conceição. A noiva era filha natural, e sua mãe indicada como falecida, nãoconstandoonomedestanoassento.OutrosentenciadocivilqueconvidouocasalRomãoparatestemunhadeseucasamento foiAntônioJoséTorres,daParaíbadoNorte.Comosepodever,oscasamentosnopresídio abarcavam todas as categorias sociais presentes na ilha, militares, paisanos e sentenciados.Viúvoapenado,quecasacomapaisanaórfã;militar,quetrazdocontinenteanoivaeafamíliadestaparao casamento; militares, que casam com paisanas filhas de sentenciados. Assim, os militaresrepresentavamamaiorparceladetestemunhasrequisitadas.Noentanto,analisandopormenorizadamenteascelebraçõesdaamostra,pode-seconcluirqueestapreferênciaeraamplificadaentreosmilitaresqueficavammaistemponailha,comoLourençoJoséRomão,queláresidiupornomínimo16anos,enquantoalguns,mesmonaposiçãodecomandante,permaneciampoucomaisdeumano.Emboraopresídiofosseumlocaldepassagem,transitório,ossentenciadospreferiamapermanênciaàtransitoriedadenahoradeescolherastestemunhasdesuasuniõesconjugais.

Desdobra-se a escolha das testemunhas em dois veios miúdos. Um na direção dos encontros de

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interesse,emqueoslaçosfirmadosamenizamaaridezdasrelaçõesnocenáriodesgastantedocotidianoprisional.Outro,naperspectivadeque,umavezimersosnoreencontrocomosvaloresdasociedadequeagredirameque,emresposta,ossegregou,surgissealigaçãocomocaminhodereentradanosvaloresdessasociedade,paraque,umavezdeterminadosetendocumpridosuapena,pudessemaelaretornar.

Quantoàpresençadasmulheresnopresídio,numprimeiromomento,eraproibidaatémesmoparaasesposasdosmilitares,sendoqueapartirdadécadade1860se intensificao ingressodelas.Oprojetomoralizador de correção dos presos pela família, proposto por Beaurepaire Rohan, vai estimular aconstituiçãodasfamíliasevalorizarapresençadasmulheres,fatoquesempredespertoupolêmicas.62Umtexto anônimo de 1817 – que permaneceu inédito até 1883, quando foi publicado pela Revista doInstituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano –, intitulado “Revoluções, ideia geral dePernambucoem1817”,afirmavaqueFernandodeNoronhapossuíaimportantíssimaposiçãogeográficaeocupavaopapeldemais importantebaluartecontraas investidasdepiratasecorsários.Noentanto,oqueémaisrelevantenotexto,ésuavisãosobreaimportânciadoingressodasmulheresnoarquipélago.Valelembrarque,em1817,FernandodeNoronhaaindanãoeralegalmentedestinadoaocumprimentodesentenças de presos civis, porém, na prática, já tinha essa destinação, como o próprio desterro, queocorriadesdedatasbemremotas.Oautoranônimodeixaclaroqueoshomenssensatos,ouseja,zelososdobemdoEstado,dareligiãoedasoberania,lamentavamqueo“gêniodomal”tivessesaídovencedorcomestragosa“homensdamoraledobempublico”.Nãocompreendendo,porque

Tem-se teimado invencivelmente, conservar a Ilha impenetrável à mulheres, à Sanctidade dosMatrimônios, às vantagens da população: os mesmos officiaes, e Soldados casados são obrigados adeixar em Pernambuco suas mulheres, expostas ao risco da incontinência, para ellas mesmas iremobservarhumacastidadeforçada,ereprovadaportodasasboasLeis!63

Aobra,emtodooseutexto,épermeadapelomoralismodoautor.Nessetrecho,pode-seperceberocuidadocomapotencialinfidelidadeaqueasmulheresseriamsubmetidas,pois,segundoele,aausênciadasobrigaçõesmatrimoniaiscontrariavaoregimentodasboasleis,ouseja:asdaIgrejaeasdanatureza.Somava-seaissoainda,segundooautor,queossoldadosdePernambuconãotinhamideiademoraletampouco eram capazes de guardar castidade. Assim, caíam em habituais “depravadas relações”,deixandoqueanaturezaanimalseresponsabilizassepelamais“elevadatorpitude”.

Defacto,oscrimescontraanatureza,emgênerosdeLuxuria,sãotantos,tãovariados,tãoescandalosos,enefandosqueanossapenna sehororisa, e recusamenciona-los:basta-lhe escrever, que semelhantesattentadossãovulgarmentedesignados,eentendidossobomodestotitulode–peccadosdeFernando–equeonomede–SodomamuifrancamenteexprimeaIlhadeFernando!!64

TodosatribuíamaFernandodeNoronhaumcarátermasculino.Quasecomose“Fernando” tivessevida própria. O comandante JoséÂngelo deMoraes Rego afirmava “que semmulheres é impossívelgovernar Fernando”.65 Olhando a Tabela 1, percebe-se que os homens, 1.105 deles, ou 70% dapopulação, dominavam a paisagem da ilha. As mulheres adultas, 168 paisanas e sentenciadas,representavam apenas 11%, ou seja, a proporção era de 6,6 homens para cada mulher. Escassas, asmulheres valiam a própria governabilidade do presídio.Os sentenciados solteiros e viúvos cometiam“crimes contra o pudor de menores”, para poderem reparar o delito e constituírem família. Eramdenunciados,confessavamerevelavamseudesejodecasarpararepararoerro.Aquelaquetiverasuahonra ferida seguia para o continente, para a reparação e, então, retornavam casados.66 Analisando amesmaTabela1,percebe-sequeonúmerodemeninasépraticamenteigualaodemulheresadultas.Não

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eraàtoaque,em1880,AntônioHerculanodeSouzaBandeiraFilhoapontavaque:

Há necessidade urgente de arredar dali 36 desgraçadas, que dão o triste espectaculo da maiordegradação, com verdadeiro escarneo das sentenças que as condemnaram.Aspaisanas ou livres nãodiferemmuitonogênerodevida,e,salvasaspoucasexcepções,einfelizmentesãobempoucas,nãohamulher honesta naquelle logar.Aprostituição assumiuproporções assustadoras.Hámeninas de 8 a 9annos jápervertidasedepravadas,comscienciaeconsciênciadeseuspais.Oprópriocasamentoémuitas vezes procurado para fins ignóbeis, a ponto de os maridos aconselharem suas mulheres ainfidelidade,paraauferiroslucros.67

Oparecerdodr.AndréAugustodePáduaFleuryaorelatóriodeBandeiraFilhocompleta:“nãohátrabalho, nem ensino moral e religioso, nem disciplina, nem regimen penal, prega-se abertamente adissoluçãodecostumeseaprostituiçãoamaisdesenfreada”.68Comumaproporçãohomem/mulher tãodesigual,sermulherouterumamulher,aindaquecriança,defato,poderiasignificarumafontecertadelucros.Então,diantedaescassezdemulheres,aquelesqueestavamnocontinenteconcluíamqueexistiaumasodomiadesenfreadanailha.Nãoforamlocalizadosdocumentosquetratassemdahomossexualidadeno presídio.No entanto, José Lins doRego consegue captar commestria, em sua prosa ficcional, ossignificadosqueohomoerotismopoderiaternaquelailha-presídio.Eassim,tendoporcenárioacasadomédico,ondeaspersonagensserviam,narracomoomolequeRicardocainosbraçosdeSeuManuel:

AliemFernandoacoisaeraoutra.Oshomens-mulheresnãoeramraroscomonoengenho.SeuManuelcozinheiroeraum.Nãohaviamaisdúvida.AprincípioRicardotevemedo,umavergonhamaiordoqueaquela de amar sozinho. O tempo porém foi dando costume às suas repugnâncias. Lembrava-se bemdaquelanoiteescura,umventofuriososopravaforte.Viriachuvanacerta.Agameleirasofria,omédicotrancadonoquartoeelepensandoemmuitacoisaforadalidodegredo.Entãoouviuquebatiamnaporta.Umavoz soprada, chamandopor ele.Ficoucommedo,medodeumcrime,deumaapariçãode alma.Tremianaredequandoavozseelevoumais:

–Abra,menino,soueu.

Umavozangustiada,umavozdequemsehumilhavaatéomaisbaixo.

–Abra,menino,soueu.

Conheceuquemera.EraSeuManuel.Abriuseuquarto.Ofriodanoiteentrou-lhedeportasadentro.Ecomeleocompanheiroquelhechegavatremendo,defalaamedrontada,ofegante,comodeumfamintodemuitosdias.

Quandoelesefoi,Ricardopensouemmuitacoisamasdepoisumsonopesadopegou-onaredeatédemanhã,comsolalto.Omédiconemestavamaisemcasa.SeuManueljátinhafeitotodooseuserviço.Estavaalegreecantavaumamodaqualquer,muitofeliz,muitocontentedavida.Ricardonãoquisolharpara ele. Terminou olhando porque os agrados do cozinheiro, a cara alegre não consentiam naquelacerimônia.

OquenãodiriamSimãoeDeodato?OquenãodiriaumhomemcomooSeuAbílio?Isaura?SeuLucas?Passou o dia inteiro pensando. Na ilha aquilo não queria dizer nada, quase todos tinham simpatias

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daquele jeito. Asmulheres que havia por lá tinham os seus donos. SeuManuel, um homem com trêsmortes,fazendocoisasassim,feitoumamulhernocio,atrásdele,domédico.Custavacompreender.Omundodavavoltasquesóodiabosabia.EDeus?OquediriaDeusdaquilo tudo?Deusnãosabiadenada.Perdidosnomar,elesestavamperdidosdosolharesdeDeus.DeusnãodeviaolharparaopresodeFernando.69

O texto do autor anônimo atribui “aos pecados de Fernando” omotivo para os padres probos serecusarem a exercer suas funções na ilha. Por isso, para lá enviavam-se os clérigos criminosos, paraprendê-losedegredá-los.Estetipodereligioso,nolugardeinstruirnasmoralidadescristãs,serviaparaaumentar o número dos incorrigíveis e dos escândalos. É possível que estas informações sejamexageradaspeloexcessodemoralidadedotexto,masnãodeixamdeinformarsobreumtipodeimagemqueaspessoasdocontinentetinhamarespeitodailha,sobretudo,pelaimportânciaatribuídaàpresençadasmulheresedafamília.Oingressodasmulherespreservariaasfamílias,poisasesposasnãocairiamemtentaçãonemosespososemsodomia,alémdoqueapopulação,nãoapenasdoarquipélago,masadopaís,seriaaumentada.SuasopiniõesnãodiferiammuitodasdeBeaurepaireRohan,queafirmavaqueograndelapsotemporaldaspenascumpridasemFernandodeNoronharesultavaem

desordens, que o sentimento da moralidade devia ter procurado evitar. Enquanto suas mulheres,abandonadasnocontinente,procuravão,parasieseusfilhos,umrecursonadevassidão,seusmaridos,isolados no presídio, entregavão-se aos mais degradantes desvios, d’onde se originavão as únicasenfermidadesconhecidasnaquelleabençoadoclima.70

Oautoranônimodo textode1817sugeriaacolonizaçãodoarquipélagopor famíliasdeveteranosbeneméritos e acreditados que cultivariam a terra commulheres e filhos, clamando: que construíssemuma “Parochia, aonde o Parocho, escolhido… aonde… aonde… aonde…Fiat; Fiat. Amem”. Destemodoum tantoqueoriginal, o autor finaliza suas ideiaspara amoralizaçãodeFernandodeNoronha.Aquiafamíliasalvaa ilha.NoprojetodereformadopresídiodeFernandodeNoronha,propostoporBeaurepaireRohan,em1864,afamíliaassumiriaumpapeldecorreção,nãodoespaço,masdopreso.71Masatéondeesteprojetodecorreçãodopresopelafamíliafoiconcretizado?Houveumimplementononúmeroefrequênciadoscasamentos?

OquepodemosextrairdaanálisedasTabelas2e3,logoaseguir,équeoprojetodeHenriquedeBeaurepaire Rohan, anunciado em seu relatório e, supostamente, colocado em prática a partir doregulamento de 1865, não surtiu o efeito desejado. Se a intenção era estimular o casamento dosentenciado durante o período prisional para que, assim, a família servisse de esteio ao processo deressocialização,bemcomodemaisumgrilhãoaaprisionaroapenadojuntoàilha-presídio,esteintentonãoseverifica.Confrontandoosdadosdefrequênciadecasamentosocorridosentre1854e1867comosdados de frequência de cerimônias realizadas entre 1865 e 1879, construímos osGráficos 1 e 2 cujaanáliseébastanteclaranestesentido.

Osgráficosapresentamdoislapsostemporaisbasicamenteidênticos(14e15anos,respectivamente).Osdadosseinterseccionamnosanosde1865a1867afimdeque,naobtençãodalinhadetendênciadamédiamóvel do período, pudesse ser formado um bloco uno e contínuo. Se, em termos absolutos, amédiaanualdoperíodoposterioraoregulamentode1865émaiorqueadoanterior,aorecorrermosaodesenhodatendênciadamédia,encontramosumtraçadoquepercorreosdoisespectroscomsimilitudepatente.Afinal,umamédiamóvelforneceinformaçõesdetendênciaqueumamédiasimplesdetodososdadoshistóricosnãorevela.

Confrontemos,pois,astabelase,emseguida,osgráficos.

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Tabela2–CasamentosporAno(1854-1879)ANO CASAMENTO %1854 1 2,10%1855 1 2,10%1856 1 2,10%1857 4 8,30%1858 0 0,00%1859 2 4,20%1860 3 6,30%1861 10 20,80%1862 11 22,90%1863 1 2,10%1864 5 10,40%1865 4 8,30%1866 2 4,25%1867 3 6,30%

Totais= 48 100,00%Média= 3,43

Fonte:ArquivodaCúriaMetropolitanadeRecife.Livro1deCasamentodeFernandodeNoronha.

Tabela3–CasamentosporAno(1865-1879)ANO CASAMENTO %1865 4 5,30%1866 2 2,60%1867 3 3,90%1868 4 5,30%1869 4 5,30%1870 8 10,50%1871 4 5,30%1872 2 2,60%1873 1 1,30%1874 11 14,50%1875 13 17,10%1876 6 7,90%1877 8 10,50%1878 1 1,30%1879 5 6,60%

Totais= 76 100,00%Média= 5,07

Fonte:RelatóriodoMinistériodaJustiça.

Passandoaosgráficos,temos:

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Gráfico1–CasamentosporAno(1854–1867)comMédiaMóvelFonte:DadosextraídosdaTabela2.

Gráfico2–CasamentosporAno(1865–1879)comMédiaMóvelFonte:DadosextraídosdaTabela3.

Fica claro, portanto, que os casamentos obedeciam a uma dinâmica própria do convívio dosapenados,nãosecurvandoaoscaprichosdasimposiçõeslegais,nemadquirindoumacinéticadiferenteapenas porque pudesse resultar dali qualquer vantagem em termos de execução da pena. Era um

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convergirdotadodesinuosidadeprópriaacargodosilhéus,distribuindo-seaolongodotempoconformeosarranjosdeconvivêncianailha,seconsolidandoemseunaturaldesenrolar:humanoeinconstante.

Oaçoiteeafuga

O sexto ato se encerra com os oficiais tentando conter os ânimos e as tensões entre soldados esentenciados,enquantoosétimoatoexpressatodoodesapreçoedescuidonaadministraçãodopresídiopeloMinistérioda Justiça e, antes, peloMinistériodaGuerra.Na faltadonaviodeguerraquedeviamanter-se fundeado em suas águas – esta determinação vinha desde o regulamento de 1865 e era,reiteradamente, cobrada pelos comandantes –, enviou-se, em uma jangada, um sargento e trêssentenciadosparaavisaremogovernodePernambucosobreoconflito.

O oitavo e último ato é a punição dos culpados, tendo sido os militares, que tiveram papel deliderança,submetidosaconselho,eosdemaiscorrigidosdisciplinarmente.Entreossentenciados,osquetiverammaiorparticipaçãoforamenviadosaoRecife.NopresídiodeFernandodeNoronha,nãohaviaceladeisolamentoparadeteralgum“presoincorrigível”.AquelesqueprecisavamsercastigadoseramdetidosnaAldeiaeparapuniçõesseverasusavam-setroncoeferros.Oprimeiropodiaseraplicadoaospéseàsmãos;aopescoço,haviamuitocaíraemdesuso.Osegundoimplicava“correnteatadaàcinturapresa aos pés, no par demachos difficultando amarcha e finalmente na gargalheira”.72 Também parafaltas graves havia a gameleira, chibata feita com cipó desta árvore. Na presença do médico, queacompanhavaacondiçãofísicadocastigado,opresoeraaçoitadoempúblico.Emsetembrode1871,aPresidência de Pernambuco proibiu o seu uso. Bandeira Filho afirmava que esta medida deixou oscomandantes de mãos atadas para conter os ditos “incorrigíveis” e que os detentos de bomcomportamento reclamavam o retorno da gameleira. Assim, dizia que os castigos não eram como seimaginavanocontinente,poisoquesignificavaparaumcriminosoestarpresoemumagrandecelacomseuscompanheiros?Ecompleta: “Adesmoralização temchegadoa talpontoqueospresosnão fazemcaso dos castigos, e nos salões daAldêa, apostam carreiras comosmachos aos pés.”73Não se podeprecisarquaisoscastigosaplicadosaospresosqueparticiparamdosembatesde3dedezembrode1886.Um,noentanto,ébemclaro:oenvioparaRecifedossentenciadosmais“comprometidos”comoevento.Um desterro às avessas. Ironicamente desterrados da ilha longínqua para onde a sociedade os tinhaenviado.Expulsosdopresídioondetinhamfeitoseulugar,ondetinhamrecriadoavida.

Contudo,nemtodosestavamocupadosemreconstruir,reelaborarsuasvidasnailha-presídio,eváriosestavamempenhadosemevadir-se.Paramuitos,mergulharnouniversodailhaeraamelhorformadecumprirsuassentenças,eboaparteteriadepagarlongaspenas.Algunsportodaavida.Vivernailhaefazerdelásuacasaeraumanecessidadeindelével.Váriosnãoqueriamvoltaraocontinenteaofimdapena,poishaviamconstruídoummundoseu.Ali,agora,eraseulugar.Algunsprecisavamseadaptaràilha,outrosqueriamadaptá-la.Nãohaviacomofugir.Paraoutros,nãohaviacomonãofugir.Pessoasparaquemnãosepoderiaencontraraliberdadeemummundocircunscritopelomar.Indivíduosquenãomaispodiamláviver,fossepelaviolência,pelamiséria,pelainjustiça,porestaremjuradosdemorte,poraindaterem“contasapagar”nocontinente,porprecisaremreencontraraquelesqueamavam.Enfim,pessoasqueviviamdodesejoderetornarao“mundo”efugirde“Fernando”.ComoErnesto.Espíritoindomável,quenãoseviapreso.

Nãoéestranhoqueamaiorpartedosindividuosnascenalugubredaexpiaçãodocrimenãorevelãoemsiasfuncçõesdoespirito,enemtãopoucoreflectemcousaalguma,porquantoasfaculdadesintellectuaes

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n’ellesseachãocompletamenteembotadas,enoestadodeenraivecimentopelotormentonaexpiaçãodaculpa,nãotrepidãoumsóinstantepôrempraticaosplanosmaistemerariospossiveis,mormenten’estePresidio, onde existe uma população numerosa de homens indomaveis que considerão sómente a fugaparaellesumaverdadeiraemancipação.74

EntreelesestavaErnestoeseuscúmplices–AlexandreTarenze,JoséAntônioBrunoeBentoNunesPessoa–que,em11deagostode1881,fugiramemumajangada.Ocomandante,avisadodafuga,enviousentenciadosdesuaconfiançaemaisdoispraçasparapersegui-los.Emperigodeseafogarem,ErnestoOwalle e Nunes Pessoa foram capturados. Tarenze e Bruno desapareceram.75 Na relação nominal desentenciadosde6denovembrode1879,preparadapelocapitãosecretárioJoãoBaptistaPinheiroCorteReal,nãoseencontraonomedeErnestooudeseuscompanheiros.Ouseja,nomáximo,apenasumanoequatro meses após a chegada ao presídio, Ernesto e seus companheiros já procuravam “tratar daprancha”,comoospresoschamavamoplanodefuga.Ailhanãopodiadomaratodos.Paraestes,avidaestavaforadela.Paramuitostambémestava,porémsabiamserimpossívelsairvivodetalempreitada.“Sair de Fernando, fugir, era mais um encontro com a morte, um suicídio a que muitos se haviamsubmetido.”76Enfrentaromarbravionãoeraparatodos.Nemtodos,também,acreditavamserpossívelvencê-lo.Eraumexpedientedosdesesperados.JoséLinsdoRego,emsuanarrativaficcional,traduzodesejodoencarceradopelomar,avontadedeevadir-se:

As escapulasda ilha eramcontadas comoosmaiores acontecimentosquepudessemexistir nomundo.Muitos,nahistória tristedopresídio, se tinhamaventurado,muitos se tinhamperdido.Maspara estesmelhorvaliaavidaentregueàsondas,aosfuroresdaságuas,queaquelavida,aqueledestinodemorrerumdiadepernainchada,amarelo,comooberibérichupandotodoosangue,vazandoosolhos.Melhorcairnomar,nosquatropausdejangadaedeixarqueoventooslevasseàvontade.Podiaserdessememumapraia,queelespudessemaindapisaremterraquenãofosseaterramalditadailha.77

As fugas, a princípio, não representavammuito perigo ao presídio.O seu número não era grande.Inclusive,numperíododecincoanos,entre1865e1870,nãohouvenotíciasdeevasões.78Atéporque,comonos lembraBandeiraFilho,eraquasecertaamorte,poisas jangadasdepaueramosprincipaisveículos das fugas, e os fugitivos não resistiam ao cansaço e à fome. Viagem tão perigosa não era“emprehendidapeloshomens acostumados aomar, conhecedoresda insensatezda empreza”.BandeiraFilho foi informado que “os presos que tem tentado fuga em jangadas são naturaes dos sertões,inteiramenteignorantesdostrabalhosmarítimos”.Portanto,“arriscam-seprecisamentepornãopoderemcalcular os resultados da imprudência”.79 As jangadas eram construídas com paus amarrados uns aosoutros, semmateriais resistentes e commadeira imprópria, pois era o que havia na ilha. Atémesmotroncos de bananeiras eramusados.Assim, não costumavam resistir à violência das ondas. Foimuitoutilizadaparaaconfecçãodasjangadasumaleguminosadepoucopeso,chamadamolungu.Em1880,elapraticamente não mais existia, pois a administração do presídio, tentando evitar as fugas, procurouextingui-la.

Pelainsuficiênciadesoldadosparaguarneceremoslocaismaisutilizadosparaasfugas,comopassouadeterminaroregulamentode1865,eramosprópriospresosquecuidavamdestaslocalidades.Osmaisvelhoseaquelesquenãopodiamtrabalhareramdistribuídosemgruposdequatro,empequenascasasconstruídas nos pontos onde foram encontrados vestígios de evasão. Os sentenciados se vigiavammutuamente,poisnemsempreeramosdemaisconfiança,eserevezavamduranteanoitenavigilânciadapraia.Em1880,existiam33pontosdailhavigiadosporestesgrupos,oqueocupava132condenados.Mereciacuidadoespecial avigilânciadabaleeira,poisesta simdavacondiçõesdeêxitoauma fuga.

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Daquelesquefugiramembaleeiras:em1871,dosdez,seisretornaramparaopresídio;dosfugitivosde1874, todososquatro foramrecapturadoscomabaleeiranapontadoMelo,noRioGrandedoNorte.Dos13fugitivosde1875,nãoháinformações.Entreosquenãoforamrecapturados,tantonasfugascomasbaleeirascomoem jangadas,vários são indicadoscomo tendomorridoeaosdemaisécreditadoomesmodestino.80Muitasdessasfugas,acreditavamoscomandantes,podiamserevitadascomumvasodeguerraestacionadonaságuasdoarquipélago,comoordenavaosregulamentosde1865e1880.

Asfugaseramcercadaspelamorte,porém,muitasvezes,criavamhistóriasfantásticasdeousadiaecriatividade.Em4defevereirode1877,trêssentenciadoscivisfugiamemumajangadadepaussecos:doismorreramnasondas;um,emestadolastimoso,foisalvopelonavioCarrieE.Long,queseguiaparaos Estados Unidos. Após parar na América, foi reconduzido ao presídio.81 Em dezembro de 1878,duranteocarregamentodovaporGequiá,daCompanhiaPernambucana,umsentenciado,auxiliadoporsua“amasia”,conseguiuserembarcadoemumbaú.Comodecostume,comapartidadovapor,ailhasóteriacomunicaçãocomoRecifeummêsdepois.Destafeita,osentenciadodeixoucartasparadiversaspessoas e para a administração do presídio. Coincidentemente, pouco após a partida doGequiá, àtardinha, aportou na ilha a corvetaMagé. Namanhã seguinte, foram descobertas as cartas. Seguindoordens do comandante,Magé parte para o porto doRecife, chegando seis horas antes doGequiá. Asurpresamaiornãofoiparaosqueassistiamaalgotãoinusitado,masparaoprópriofugitivo,estupefatopelomalogrodeseusplanos.

“Fazeraprancha”incluíadesdefugasdesesperadas,emfrágeisjangadas,aoutrasmiraculosas,sobosbigodesdosagentesrepressores,ecomaridicularizaçãodaadministração.NopresídiodeUshuaia,na Argentina, também era a natureza o maior impeditivo das fugas, com seu mar gélido, bosques emontanhascomfriointensoporpraticamentetodooano.Noentanto,nãoforampoucososquetentaram.Assim como emFernando deNoronha, uns se lançaram loucamente contra a natureza.Outros criaramrebuscados planos, como um que, vestido demarinheiro, escondeu-se no sino da igreja. 82 Um outroprisioneiro, tendosido recapturado,“cuandoentrópor lapuertaprincipaledelcárceldijo ‘acánomesalvo’yaloutrodíaloencontraronahorcado”.83

Algunsnãosuportamoencarceramento,aindaqueomurosejaanatureza.TambémemFernandodeNoronhaosuicídiopôsfimàagoniadealguns.ComoManoelMonteiro,sentenciadocivil,queingeriugrandequantidadedeacetatodecobre,ouoenfermeiro-mor,osentenciadoManoeldosSantosLima,quecortou a jugular com um bisturi. Suspeita-se que também o sentenciado Annibal tenha se suicidado,lançando-seaomar.Recorrendomaisumavezàliteratura,pode-severaambiguidadeentrepermanecereenfrentaramortenadurarotina,oufugireenfrentá-lanaaventura.OmolequeRicardo,personagemdeJoséLinsdoRego,detidona ilha,nãosemotivaaevadir-se,comomuitosoutrosque láestiveramdefato.

Ricardo pensava naqueles todos que sacrificaram tudo para se salvar de Fernando. E ele sem estavontade, ele sozinho nomeio de centenas, nomeio dos piores homens que pudessem existir, dos queroubavam,dos quematavam, dos que faziam tudoque era ruim, ele somente, sem saber por que, sementusiasmoparavoltar,paraesperarodiagrandedapartida,umnaviopequeno,comaquelebrilhonosolhoseaquelaalegrianacaraque tinhamospresosqueembarcavamdevolta.PareciamfamintosquevoltassemparaomelhorbanquetedaTerra.84

As instituições penais podem assumir muitas formas, em sua arquitetura e em seu regime, porémalgumascaracterísticasseapresentamuniformes,comoafirmaGreshamSykes,poisse“originamdofatoinegáveldeque instituiçõespenais são locaisondegrandesgruposde indivíduos involuntariamenteseconfinamsobcondiçõesdeextremaprivação”.85Aindaqueprivaçõespossamseraliviadaspordiversas

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estratégiasdaadministração,acondiçãodeconfinamentoinvoluntárionãoédiminuída.Afugaassumeocarátermaisvisíveldenegaçãoaocárcere.Noentanto,nãoéaúnicae,nemsempre,éamaiseficiente.

OprisioneiroquefugiudopresídioemumbaúefoicapturadonoportodoRecifeeranaturaldoParáecumpriaprisãoperpétuacomtrabalhoporassassinatonaCorte.Pordiversasvezesediversosmeiostentouseevadir.SegundoBandeiraFilho,queoconheceupessoalmente, tinhaboaeducaçãoliteráriaedispunhade“imaginaçãoardentíssima”,poisemsuasobrashavia“boaspoesias”ealgunsoutrostextos“demerecimento”.Deseuspoemastranscreveasestrofesfinaisdo“CantodeStoicismo”,daquelequesejulgavamártir:

DamaisstultatyranniaafrontoDuraoppressão;

Anteapolé,opelourinhoinfame,Nãotremi,não.

Brutacadeia,emgargalheiraaocollo,Fere-meohombro;

Oh!Visesbirros,detãopoucoaindaMenãoassombro.

Lancem-meaospésosgrilhõesdeescravo,Recebo-oslouco!

Levem-mearastosaosolharesdeumcepo,Aindaépouco!

…………………….

Eia,tyrano!Apavorou-teoforte,Altivoaojugo!

Dize-meagorasiémaioromartyr,Ousioverdugo!86

Afilosofiaestoica,fundadaporZenondeCítionoséculoIIIa.C.,tinhapordoutrinaviversegundoaracionalleidanaturezae,porconseguinte,apáticoatudoquelheeraexterno.WillDurantafirmaquetantooestoicismocomooepicurismo“eramteoriassobrecomooindivíduoaindapoderiaserfelizemborasubjugadoouescravizado”.Conta-seque:

QuandoZenon,quenãoacreditavanaescravidão,estavabatendonumescravoseuporcausadealgumdelito,oescravoalegoucomoatenuanteque,segundoafilosofiadeseusenhor,eletinhasidodestinado,portodaaeternidade,acometeraquelafalta;aoqueZenonreplicou,comacalmadeumsábio,que,deacordocomamesmafilosofia,ele,Zenon,tinhasidodestinadoabaterneleporcausadela.87

Ouseja,comoconcluiDurant,avontadeindividualdelutaréinútildiantedavontadeuniversal.Sepodem parecer contraditórias as afrontas do mártir e sua falta de apatia diante da natureza daqueleuniverso, deve-se lembrar que é estoico aquele que é impassível, imperturbável, insensível, enfim,inabalável.Então,“seavitóriaforinteiramenteimpossíveldeveserdesdenhada”.88

Assimofaziao“martyr”.Apóslutardetodasasformaspelafuga,encontrou,nodesdém,suaarmapara apavorar seus algozes, seus carrascos.Bandeira Filho o julgava “um dos grandes embaraços doPresídio”.89Eleviviapreso,atépô-loa ferros já forapreciso,pois incitavaosdemaissentenciadosà

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insubordinação.Então,seu“CantodeStoicismo”,maisqueumaresignação,eraumafortalezainabalávelqueacreditavapodersobreviveraobrutaluniversodaquelelugar.

Fernando de Noronha era o antiparaíso. Corpo de anjo. Alma de demônio. Corrompia até quemdeveriaserveículodemoralidades.Aindaquesaibamosquemuitosiamatraídospelaoportunidadedeenriqueceràcustadeselocupletardoerárioedaexploraçãodossentenciados.Mas,mesmoosdeboavontade, Fernando parecia fazê-los desviar do caminho damoral. Parecia não ser possível o resgatedessesindivíduosparaasociedade.Elesjátinhamconstruídosuaprópriasociedadeque,aosolhosdomundo, era desvirtuada ao ponto de ser um foco de contaminação e irradiação da imoralidade,perversidade e corrupção à “sociedade sadia”. Fernando a todos encarcerava, fossem livres ousentenciados. Todos submetidos ao seu regime, à sua sociedade, para além das reformas externas.Incólumeàsreformas.Ignorando-as.Rindodelas.Masoque,àprimeiravista,podeparecerseravitóriadeumasociedadedeapartados,porcriaremummundoseu, talvezrepresenteosucessodeumprojetocivilizador.FernandodeNoronhaeraocontrapontodopaísquesequeriaconstruir.Eraoseuoposto.Eradescivilização.Precisavaexistirparaquetodosvissemoquenãoeraacivilização.

1Registrofeitoemseudiáriosobreaviagem,realizadanonavioBeagle,pelohemisférioSul.DARWIN,Charles(1839).Viagemdeumnaturalistaaoredordomundo.RiodeJaneiro:SociedadeEditoraeGráficaLmtd.,Sedegra,s/d,.v.1,p.30.

2Oarquipélagoéformadopor21ilhas,ilhotaserochedos,suaextensãoaproximadaéde26km².Ailhaprincipalchegaaos17km²,aumadistânciade554kmdoRecifeea2.700kmdaÁfrica.FernandodeNoronhaestásituadanascoordenadas3º54’Sdelatitudee32º25’Wdelongitude.http://www.noronha.pe.gov.br/ctudo-turismo-info-localizacao.asp(acesso:20/5/2007).

3ROHAN,HenriquedeBeaurepaire.AIlhadeFerandodeNoronha:consideradaaoestabelecimentodeumacolôniaagrícola-penitenciaria.In:BARBUDA,JoséEgydioGordilhode.RelatóriodoMinistériodaGuerrade1864,apresentadopeloministroJoséEgydioGordilhodeBarbuda,àAssembleiaGeralLegislativa.MinistériodaGuerra.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1865,p.6.

4MELO,Mário.ArchipélagodeFernandodeNoronha,geographiaphisycaepolítica.Recife:ImprensaIndustrial,1916,p.12.5MAC-DOWELL,SamuelWallace.RelatóriodoMinistériodaJustiçade1886,apresentadopeloministroSamuelWallaceMac-DowellàAssembleiaGeralLegislativa.MinistériodaJustiça.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1887,p.161.

6GALVÃO,SebastiãodeVasconcelos.Diccionariochorographico,históricoeestatisticodePernambuco.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1908,v.1,p.242e243.

7ROHAN,op.cit.,p.29.8Ibidem,p.29.9PARANHOS,JoséMariadaSilva.RelatóriodoMinistériodaGuerrade1870,apresentadopeloministroJoséMariadaSilvaParanhos.MinistériodaJustiça.RiodeJaneiro:TypographiaUniversaldeLeammert,1871,p.63.

10FLEURY,AndréAugustodePádua.OpresídiodeFernandodeNoronhaenossasprisões.AnexoaoRelatóriodoMinistériodaJustiçade1880.MinistroManoelPintodeSouzaDantas.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1880,p.7-8.

11REGO,JoséLinsdo.Usina.FicçãoCompleta,v.1.RiodeJaneiro:NovaAguilar,1987,p.687.12Ibidem,p.692.13BANDEIRAFILHO,AntonioHerculanodeSouza.InformaçõesSobreoPresídiodeFernandodeNoronha.In:DANTAS,ManoelPintode

Souza.RelatóriodoMinistériodaJustiçade1880,apresentadopeloministroManoelPintodeSouzaDantasàAssembleiaGeralLegislativa.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1881,p.51.

14Hoje,noBrasil,aáreamínimadacelaocupadaporcadapresodeveserde4m2.Resoluçãonúmero16,de12dedezembrode1994,quecriouasDiretrizesparaaElaboraçãodeProjetoseConstruçãodeUnidadesPenaisnoBrasil.

15BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.52.16ROHAN,op.cit.,p.6.17Biboca,Viração,Conceição,Remédios,Caraça,Água-Branca,Buracão,Mulungu,Boldró,Comando,Sambaquixaba,GameleiraeCachorro.

BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.55.18SYKES,Gresham.Crimeesociedade.RiodeJaneiro:BlochEditores,1969,p.86-89.19MAC-DOWELL,op.cit.,p.24-25.20Ibidem,p.24-25.21BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.30.22ROHAN,op.cit.,p.25.23BANDEIRAFILHO,op.cit.24BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.38.25Ibidem,p.38.26Ibidem,p.40.27Ibidem,p.38.

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28Ibidem,p.31.29Ibidem,p.32.30Ibidem,p.32.31Ibidem,p.12.32ROHAN,op.cit.,p.43.33SYKES,op.cit.,p.88.34MAC-DOWELL,op.cit.,p.25.35BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.24.36Ibidem,p.24.37Ibidem,p.24.38Ibidem,p.24-25.39DARWIN,op.cit.,p.30.40BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.27.41MELO,op.cit.,p.67.42Ibidem,p.67.43BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.29.44MELO,op.cit.,p.66.45VAIRO,CarlosPedro.ElPresidiodeUshuaia:unacolecciónfotográfica.BuenosAires:Zagier&Urruty,1997,p.95.46CAIMARI,Lilá.ApenasunDelincuente:crimen,castigoyculturaenlaArgentina,1880–1955.BuenosAyres:SigloXXI,2004,p.65.47BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.27.48MELO,op.cit.,p.65-66.49BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.27.50FREYRE,Gilberto.Nordeste:aspectosdainfluênciadacanasobreavidaeapaisagemdoNordestedoBrasil.RiodeJaneiro:José

Olympio,1985,p.65-72.51Ibidem,p.72.52MELO,op.cit.,p.66.53ALBUQUERQUE,AlexandredeBarros.Relatóriode1873docomandantedoprésídiodeFernandodeNoronha,AlexandredeBarros

Albuquerque,apresentadoaoministrodaGuerraJoãoJosédeOliveiraJunqueira.In:JUNQUEIRA,JoãoJosédeOliveira.RelatóriodoMinistériodaGuerrade1873,apresentadopeloministroJoãoJosédeOliveiraJunqueiraàAssembleiaGeralLegislativa.MinistériodaGuerra.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1874,p.4.

54BANDEIRAFILHO,op.cit.,tabelasanexas.55Ibidem,p.35.56LEMOSFILHO,AntonioSáBarreto.FernandodeNoronhasemretoques.RiodeJaneiro:DepartamentodeImprensaNacional,1957,p.

99.57Paraesseassuntoconsultar:FRAGOSO,João;FLORENTINO,Manolo.Marcelino,filhodeInocênciaCrioula,netodeJoanaCabinda:um

estudosobrefamíliasescravasemParaíbadoSul(1835–1872).EstudosEconômicos,v.17,n.2,p.151-74,1987;SLENES,Robert.Nasenzalaumaflor.Esperançaserecordaçõesnaformaçãodafamíliaescrava.Brasilsudeste,séculoXIX.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1999.

58ArquivodaCúriaMetropolitanadeRecife.Livro1deCasamentodeFernandodeNoronha.59ArquivodaCúriaMetropolitanadeRecife.Livro1deCasamentodeFernandodeNoronha.60ROHAN,op.cit.,p.35-36.61ALBUQUERQUE,op.cit.,p.9.62VeroCapítulo2deCOSTA,MarcosPauloPedrosa.Ocaosressurgirádaordem:FernandodeNoronhaeareformaprisionalnoImpério.

Dissertaçãodemestrado.UFPB/PPGH,2007.63Anônimo.Revoluções,ideiageraldePernambucoem1817.RevistadoInstitutoArqueológicoeGeográficoPernambucano.Tomo4,2o

semestrede1883,n.29.Recife:TypographiaIndustrial,1884,p.32.64Ibidem,p.33.65REGO,JoséÂngelodeMoraes.RelatórioapresentadopelocomandantedopresídiodeFernandodeNoronha,JoséÂngelode

MoraesRego,aoMinistériodaGuerraem1878.66MELO,op.cit.,p.64-65.67BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.32.68FLEURY,op.cit.,p.8.69REGO,op.cit.,p.684-685.70ROHAN,op.cit.,p.29.71VerCOSTA,op.cit.72BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.28.73Ibidem,p.28.74MELLO,1873,op.cit.,p.2.75DANTAS,ManoelPintodeSouza.RelatóriodoMinistériodaJustiçade1880,apresentadopeloministroManoelPintodeSouzaDantas

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àAssembleiaGeralLegislativa.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1881,p.159.76REGO,op.cit.,p.687.77Ibidem,p.687.78BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.69.79Ibidem,p.69.80RelatóriosdoMinistériodaJustiça,anosde1871–1878.81PEREIRA,LafayetteRodrigues.RelatóriodoMinistériodaJustiçadoanode1877,apresentadopeloministroLafayetteRodrigues

Pereira.MinistériodaJustiça.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1878,p.96.82VAIRO,op.cit.,p.107.83Ibidem,p.169.84REGO,op.cit.,p.687.85SYKES,op.cit.,p.85.86BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.26.87DURANT,Will.Ahistóriadafilosofia.SãoPaulo:NovaCultural,1996,p.110.88DURANT,op.cit.,p.111.89BANDEIRAFILHO,op.cit.,p.26.

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A

5–OTRONCONAENXOVIA:ESCRAVOSELIVRESNASPRISÕESPAULISTASDOSOITOCENTOS1

RicardoAlexandreFerreira

Ahistória brasileira costuma desafiar a compartimentalização e a categorização.Adotar uma abordagembinária e enfatizar adicotomia–negro/branco,escravo/livre,resistência/acomodação–éforçaroqueéfluidoeporosoacabernumrecipienterígidoedesconfortável(A.J.RUSSEL-WOOD).2

manutenção do cativeiro legal de africanos e descendentes no Brasil independente geroupeculiaridadesnaparticipaçãodojovempaísnoprocessoderupturaepistemológicaqueassinalaofimdaspráticaspunitivasvigentesnoAntigoRegimeeuropeu.Algunsjuristas,noBrasileno

exterior, saudaramoCódigoCriminalde1830comoumsinal inequívocodaconstruçãodeumEstadomodernoecivilizado;outros,porém,pareciamlamentara inexistênciadeumequivalentebrasileirodoCodeNoir.

EmOfeitorausente, obrapioneirana interpretaçãodahistóriadenossa escravidãourbana,LeilaMezanAlgrantidestacaodescompassonasmudançasnasconcepçõesdepunirnaEuropaenoBrasilapartirdefinsdoséculoXVIII.Lançandomãodo,hoje,jásobejamentedebatidoVigiarepunirdeMichelFoucault,3 a autora assevera que “enquanto o Velho Mundo assistia ao fim dos suplícios […], nasociedade escravista brasileira não só permaneciam os castigos corporais, como também eramacirrados”.4Esseaumentodaaplicaçãodepenascorporaisestavadiretamentevinculadoaocrescimentodapopulaçãoescravanasprimeirasdécadasdosoitocentos.Ademais,segundoaautora,sobopontodevistadasociedadedaépoca,umapuniçãoqueatingisseaalma,ointelecto,avontadeenãoocorpodoescravoerainócua.Aideiadereeducaçãoeraincompatívelcomocotidianodocativeiro.“Reeducarumcativoparaquê, cabeperguntar. Integrá-lo aqual sociedade?Ele constituía-senumpária emqualquerambiente que vivesse.”5 O raciocínio mais imediato que decorre destes argumentos aponta para adistinçãoentrecriminososlivreseescravos.Alémdoscastigoscorporaisinfligidosaosescravospelossenhoreseseusprepostos,após1830,comaentradaemvigordoCódigoCriminaldoImpério–emcasodecondenaçõesàprisão–enquantoaoslibertoselivres,pelomenosemtese,cabiamasentãomodernasformasdepunir(reeducareressocializar),aoscativoscontinuavareservadaapenadeaçoites.Penaestaque,emcasosextremos,deatéoitocentosaçoites,eracaracterizadapelospráticosecirurgiõesqueasacompanhavamcomomortecomsuplício–típicapuniçãodoAntigoRegime.

Entretanto,quandoasfontessubmetidasàcríticadohistoriadorconstamdeprocessos-crime–enãodoregistrodomovimentodiáriodeprisõesfeitaspelapolícia,entendidacomoórgãoestatalencarregadodocontrolesocialdapopulaçãoescrava,aserviçodossenhoressemfeitoresdascidades–éprecisoasseverarqueprisãoecumprimentodepenanãoseconstituíam,necessariamente,emsinônimosnoImpériodoBrasil.Principalmente,noqueconcerneaoschamadoscrimesdesangue(ferimentos,homicídiosetentativas),quecausavammaiorrepercussãolocaleampliavamasdificuldadesparaqueosproprietáriosimpedissemaaçãodoEstado.Comoveremosadiante,dezanosapósorompimentopolíticocomPortugal,opaísjácontavacomumdetalhadoCódigodeProcedimentosPenaisencarregadodedefinirtodosospassosaserempercorridospelasautoridadespoliciaisejudiciáriasentreoconhecimentoformaldeumapotencialpráticacriminosaeoestabelecimento,emúltimainstância,daverdadejurídicaarespeitodaculpaouinocênciadossuspeitos.Muitasvezes,apermanêncianaprisãoeraafaseintermediáriadeumprocessopolicialejudiciárioquepoderiaterminarsemacondenaçãoea

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puniçãodoindiciadoouréu–fosseelelivreouescravo.Alémdosinteressesemjogo,dopoderpolíticoeeconômicodesenhores,patrõesoupaisdosencarcerados,dosvalorespessoaisepressõesquebalizavamomaioroumenorinteressedeadvogados,promotores,juízese,principalmente,dosjurados,éprecisoconsiderarqueumacondenaçãojudicialemúltimainstância–quedefiniriaporpenadeprisãoparaoslivresouaçoitesparaosescravos–nãoeranadasimples.Cadafasedoprocessopodiaserquestionadaporambasaspartes(defesaeacusação),oqueresultavaemnovainquiriçãodetestemunhas,novosexamesenovosargumentos.Emalgunscasos,principalmentenasegundametadedosoitocentos,mesmoemlocalidadesdistantesdaCortedoRiodeJaneiro,defesaeacusaçãomontavamversõesabsolutamenteopostaseconvincentesbaseadasnasmesmasevidênciasenosdepoimentosdasmesmastestemunhas.Istotudosemmencionaraspossibilidadesdeadulterações,doconstrangimentodetestemunhasedaintimidaçãodejurados.Atéquetodasasfasesdoinquéritoedoprocessofossemresolvidas,achancedeoencarceradopermanecerdias,meseseatéanosnaprisãoeraconsiderável.Comoresultadodesteproblema,épossívelapontarque,aolongodosoitocentos,nacapitalenasinúmerasvilasdointeriordaprovínciadeSãoPaulo,ainfraestruturaprecáriadisponívelàpolíciaeàJustiça,porvezes,acorrentava,aomesmotronco,prisioneirosdecondiçõesjurídicasopostas.Livres,libertoseescravos:desordeiros,fugitivos,suspeitos,indiciadoseatécondenadospelapráticadecrimesdividiamasmesmasenxovias,atéquesuasituaçãofosseresolvidapelaentãonascenteejámorosaJustiçabrasileira.

Atento a tais questões, o presente texto pretende inverter o pressuposto interpretativoda distinçãoentre cativos e livres na esfera da Justiça criminal para avançar na compreensão do processo deequiparação de criminosos e prisioneiros livres e escravos no Brasil do século XIX. Para tanto –concebendolegislação,crimeepuniçãocomoelementos indissociáveis,e,apartirda interpretaçãoderelatóriosemitidospelaPresidênciadaprovínciadeSãoPaulo,deofíciosadministrativos,deautosdecrimesedeobras jurídicasproduzidos,principalmente,entre1830e1888–,o textoserádivididoemduaspartes.Aprimeiraseiniciacomaabordagemdotemadaindistinçãodelivres,libertoseescravosnoâmbitoespecíficododireitopenaledoprocessocriminalnoImpério,norteadopelaseguintequestão:a passagem de um modelo de Justiça fundado nos pressupostos punitivos expressos nas antigasordenações portuguesas para outro, alicerçado em princípios que visavam à constituição de códigoscriminais modernos representou uma ruptura para o entendimento do cativo em juízo no Brasil? Asegunda parte confere especial atenção à situação de livres e escravos encarcerados nas enxovias daprovínciadeSãoPaulo.Lugarque,apartirdemeadosdosoitocentos,constituiusecomoumdosmaissignificativos da história do cativeiro de africanos e descendentes no Brasil, uma vez que combinougrandes,médiasepequenaspossesdeescravosempregadasnasmaisvariadasatividadese,nãoraro,emestreitocontatocotidianocomapopulaçãolivre.

Escravoselivres:nosmesmoscódigos,nasmesmasmasmorrasenomesmobancodosréus

Em relação ao processo, devemos observar que não há entre nós autoridades, juízes, ou tribunaisespeciais,queconheçamdelitoscometidospelosescravos.Sãoprocessados,pronunciadose julgados,conformeosdelitoselugares,comoosoutrosdelinquenteslivresoulibertos,salvomodificaçõesdequetrataremos.São,portanto,aplicáveis,emregra,aosescravososprincípiosgeraisdodireitopenaledoprocessocriminal(AgostinhoMarquesPerdigãoMalheiro).6

NãoexistiunoBrasil,desdeoperíodocolonial,umCódigoNegroformal.OCodeNoir,umdecreto

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real baixado em 1685 por Luiz XIV, legislava a respeito do regime interno das colônias francesas,conferindoespecialatençãoàvidadosescravosesuasrelaçõescomossenhores.Seussessentaartigosnãoabrangiamapenasaescravidão,poistratavamtambémdaobrigatoriedadedaobservaçãodareligiãocatólica,contudo, regulamentavam temascomooscasamentosdeescravos,osdireitosdos libertos,asindenizações a senhores e as punições de cativos criminosos.7 Havia noBrasil, entretanto, obras querecomendavamaossenhoresotratamentomaiscristãoemrelaçãoaoscativos,comoasdosjesuítasJorgeBenci8eAndréJoãoAntonil,9ouagestãoescravistamaiseficiente,comoosmanuaisdeagricultoresdoséculoXIX.10

Porém, tanto na colônia portuguesa11 quanto no Império brasileiro, a legislação a respeito dosescravosetambémdoslibertosencontrava-sedispersapeloscódigoslegaisenaformadecartasdelei,posturasmunicipais,alvarás,decisões,decretos,avisos,aditamentos,regulamentoseleisexcepcionais.12Especificamente, a conceituação das ações consideradas criminosas, a definição e o cumprimento daspenas a serem aplicadas, bem como as regras de funcionamento dos tribunais não eclesiásticos eramprincipalmenteregulamentadospelasordenaçõesportuguesasaté1830e,posteriormente,peloscódigoscriminaledeprocessocriminaldoImpérioesuasreformas.

SoboLivroV

PrecedidaspelasOrdenaçõesAfonsinas(promulgadasemmeadosdoséculoXV)eManuelinas(primeiraediçãode1514esegundaediçãode1521),entraramemvigência,apartirde1603,emtodooterritórioportuguês,asOrdenaçõesFilipinas.13SeuLivroVocupou,noBrasilaté1830,afunçãodeCódigoPenal.Nestaobra,queguardaascaracterísticasmaiscomunsàs legislaçõespenaisvigentesemalgunspaíseseuropeusatéoperíodocompreendidoentrefinsdoséculoXVIIIeoiníciodoXIX,ostítulosquedefinemoscrimesesuaspuniçõessão,emgeral,marcadospeladistinção, tantoentrecriminosos,quantoentrevítimas.Esta distinção iamuito alémda diferenciação entre livres e escravos.Os crimes se dirigiaminicialmente contra o poder representado na pessoa do rei14 e, posteriormente, eram conceituados deacordocoma“qualidadedosenvolvidos”–fidalgos,escudeiros,peões,mulheres,libertos,15escravos.Vejamosalgunsexemplos:

[Título]8DosqueabremascartasDel-ReioudaRainha,oudeoutraspessoas–Qualquerqueabrirnossacartaassinadapornós,emquesecontenhamcoisasdesegredo[…]edescobrirosegredodela,doqueanóspoderiaviralgumprejuízooudesserviço,mandamosquemorrapor isso. […]Eseasditascartasnossobreditoscasosabrirenãodescobrirossegredosdelas,serforescudeirooupessoadeigualoumaiorcondição,percaosbensquetiverparaaCoroadoReinoesejadegredadoparaaÁfricaparasempre;esetalnãofor,alémdoditodegredo,sejapublicamenteaçoitado.16

[Título]36Daspenaspecuniáriasdosquematam,feremoutiramarmanaCorte–TodoaquelequematarqualquerpessoanaCorteondenósestivermosounotermodolugarondenósestivermos,atéumalégua,[…]seforemrixanovapaguecincomilequatrocentosréis,esefordepropósitopagueodobro.[…]Eestaspenasnãohaverãolugarnoquetirararmaouferiremdefesadeseucorpoevida,nemnosescravoscativosquecompauoupedraferirem,nemnapessoaquefordemenosidadedequinzeanosquecomqualquerarmaferiroumatar,orasejacativo,oraforro;nemnasmulheresquecompauoupedraferirem,nemnaspessoasquetiraremarmasparaestremar[apartarbrigasoupessoasqueestãobrigando]enãoferirem acintemente, nem em quem castigar criado ou discípulo, ou sua mulher ou seu filho ou seuescravo, nem em mestre ou piloto de navio que castigar marinheiro ou servidor do navio enquanto

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estiveremsobseumandado.17

[Título]38Doquematousuamulherporaacharemadultério–Achandoohomemcasadosuamulheremadultério,licitamentepoderámatarassimaelacomooadúltero,salvoseomaridoforpeãoeoadúlterofidalgoounossodesembargador,oupessoademaiorqualidade.18

Comobem assevera FernandoSalla,19 não há, para os crimes previstos nasOrdenações, nenhumapenaquecorrespondasomenteàprisão,nosentidoderessocialização,poisestanãoeraumaconcepçãodepuniçãoparaaépocaemqueotextofoiescrito.Aindaassim,havia,tantoemPortugal,quantoemsuacolôniadaAmérica,edificaçõesdestinadasaoencarceramento.Prendia-seumindivíduo,porexemplo,paraforçá-loacumpriropagamentodeumamulta.BemcomoocorreriamaistardenoImpériodoBrasil,naAméricaportuguesaaprisão,alémdeabrigaraquelesqueaguardavamdecisõesjudiciais,constituía-secomoumsímbolodacontençãodosqueseindispunhamcontraosdetentoresdopoder.

AlémdasvariaçõesdasdemaispenasprevistasnoLivroV–degredos,espancamentos,marcaçõescom ferro em brasa, utilização de tenazes ardentes e outros espetáculos punitivos executados nospelourinhossemprelocalizadosempontosdedestaquenasvilas–,segundoamaioroumenorqualidadedoscriminososedesuasvítimas,nasexecuçõesdaspenasdemorte,aos“bemnascidos”erareservadoomachado, e aos demais restava a corda, consideradamorte desonrosa.20 Faz-se necessário, entretanto,lembrarqueainterpretaçãoqueressaltaoaspectode“desigualdadeperantealei”comocaracterísticaintrínsecaenegativadoEstadonoAntigoRegimeé tributária,emgrandemedida,dacríticaelaboradaaindanoséculoXIXpormembrosdetendênciasliberaisesocialistasemsuaslutascontraosprincípiosatribuídosàsociedadequeprecedeuaRevoluçãoFrancesa.21EmDireitoeJustiçanoBrasilcolonial,ArnoWehlingeMariaJoséWehlingafirmamque,alémdolegadotransmitidopeloscríticosoitocentistas,é preciso ainda considerar que a noção de justiça praticada noAntigoRegime fundamentava-se numavisãoreligiosaquecomportava“umaconcepçãointegradadouniverso,inteiramenteantagônicaàsideiaspós-renascentistasquedistinguemdiferentesesferasdarealidade”.22

Na ordem jurídica romano-germânica, como na common law inglesa, a integração entre fundamentosteológicos,preceitosmoraisenormasjurídicasfoiintensanoAntigoRegime,oqueserefletenoâmbitojurídico– lei, doutrina e jurisprudência–pelagrandequantidadede tipospenaisque seoriginamemartigosdefé.AtradiçãojurídicaportuguesademonstraissonaprópriaorganizaçãododireitopenalnoLivroVdastrêsOrdenações–Afonsinas,ManuelinaseFilipinas:todosprincipiampelatipificaçãodoscrimesdeheresiaesuaspenas.23

No caso específico do escravo em juízo nos domínios portugueses, predominavam, segundo osWehling, as ambiguidades. O problema residia no conflito que muitas vezes opunha os fundamentoscristãosdasociedadedeumlado,eosinteressesdeproprietáriosruraisecomerciantesdeescravosdeoutro.Em razãode ser exercido sobreo escravoodireitodepropriedade, na área civil, ele figuravacomoobjetodarelaçãojurídica.Contudo,porlheserapráticadecrimesimputável,ocativofiguravanaáreapenalcomosujeitoeobjetodarelaçãojurídica.24

Os atos de rebeldia coletiva dos escravos podiam ser considerados, em casos mais graves, atémesmocomocrimedelesa-majestade(traição).Testemunhodisso,comoafirmouSilviaHunoldLara,25éoalvaráde10demarçode1682:

EuoPríncipeRegenteeGovernadordosReinosdePortugaleAlgarves.Façosaberaosqueestemeu

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Alvarávirem,quepedindoaconveniênciapúblicadosossegoequietaçãodosmeusvassalosdo“EstadodoBrasil”prontoremédiosobreosNegrosfugidosparaoSertão:Fuiservidoresolverquecomgentearmadafossemdominados;eporquesucedendomaiorasuaresistêncianaCapitaniadePernambuco,setravouemdemandadeles tãocruapelejaque,durandohámuitosanos,aindahojenãoestão reduzidostodos […] encomendomuito ao […]meuGovernador que ponha todo cuidado em que se continue areduçãodosditosNegrosfugidospelomeiodearmas[…]enquanto,porém,senãoaveriguarainocênciaouculpadetodos,queforampresosecativos,estarãonestaCorte,comoemdepósitojudicial,ganhandode comer para seu sustento no serviço daRepública; porque destemodo não são castigados antes daprovadocrime,seestivereminocentes,nemde todo livresparase faltaraocastigo,secontraelesseprovarqueomereceram.Nomeiopara fazer estaaveriguaçãoaoDoutorFranciscodaSilveiraSouto-Maior,DesembargadordaBahia[…]TiraráoditoDesembargadordevassadocrimedetraição,queodito meu Governador avisou intentaram fazer os ditos Negros de Palmares […] sendo finalmentesentenciadossemandaráfazernelesaexecuçãopelaspenasdeclaradaseimpostasnassentenças;eserãolevadasascabeçasdosdoisprincipaisconspiradores,queforemcondenadosàmorte,aolugardodelito,ondeserãolevantadasempostesaltosepúblicos,quepossamserdetodosvistas,esenãopoderãotiraratéqueo tempoas consuma,paraque sirva este exemplo, não somentede satisfação à culpa,masdehorroraosmais,quesenãoatrevamacometeroutrossemelhantes.26

Emdiferentes títulosdoLivroVdasOrdenaçõesFilipinas,hádestaquesparaocasodeescravos,impondoaestespenasdiferentesdetodososdemaistiposdeculpadosporumamesmaespéciedecrime.Otítulo86,destinadoàpuniçãodosquepusessemfogoecausassemdanos,previapenasquevariavamdavendadebensparaopagamentodosprejuízos(nocasodosfidalgos)atéaprisão,oressarcimentododanoeodegredoparaaÁfrica(nocasodeescudeirosepeões).Aosescravos,noentanto,amesmaleiimpunhaapenadesofreraçoitespúblicos,permanecendoosenhorcomaobrigaçãodearcarcomodanocausado por seu cativo. Já o título 60 impunha a pena de açoites públicos “a qualquer pessoa” quefurtasse “valia de quatrocentos réis e daí para cima”, e para os escravos açoites com baraço (laçopassadoemvoltadopescoçodocondenado)epregão(aproclamaçãoemvozaltapelocarrascodaculpaedapena),mesmoquefurtassem“valiadequatrocentosréisparabaixo”.NoLivroV,haviaaindaumaleiespecíficaparaapuniçãoexemplardosescravosqueatentassemcontraavidadosseussenhores.Otítulo41dispunhaque,antesdeserexecutado“pormortenaturalnaforcaparasempre”,oescravoquematasse“seusenhorouofilhodeseusenhor”teriasuascarnesapertadasportenazesardenteseasmãosdecepadas.Caso o cativo,mesmo sem ferir o senhor, arrancasse contra ele uma arma, seria açoitadopublicamenteeteriaumadasmãoscortadas.27

Contudo, não havia, sob a vigência das leis portuguesas no Brasil, tribunais específicos para ojulgamentodoscasosqueenvolviamescravos.Os“processoscorriamregularmentecomoosdoshomenslivres,quercomosjuízesordinários,osouvidoresounainstânciadoTribunaldaRelação”.28Cabiaaossenhores a possibilidade de entrar com recursos contra as sentenças impostas aos cativos damesmamaneira que ocorria com os homens livres, guardadas as distinções de posição na hierarquia socialprevistasnalegislaçãodaépoca.

Consideradodeínfimacondiçãoe,portanto,dignodasmaisseveraspuniçõesprevistasnoLivroV,oescravo criminoso deixava de ser juridicamente coisa. Embora sujeitos a todos os tipos de açõespunitivas privadas que lhes fossem impostas pelos senhores, os cativos submetidos a julgamentos noTribunaldaRelaçãodaBahia,noperíodocolonial,eram,segundoStuartSchwartz,maisfrequentementesoltos, por meio da intercessão de seus proprietários, do que os libertos ou livres sem posses.29 Asituaçãoambíguados escravosnodireito colonial, demuitasmaneiras, acompanhouaperpetuaçãodoescravismonasleispenaisproduzidasnoBrasilindependente.

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Noperíodoimperial

DuranteasprimeirasdécadasdoséculoXIX,eaindasobastensõesdaIndependência,osdeputadosbrasileiros se reuniram em Assembleia Geral Constituinte. Na sessão de 3 de maio de 1823, osrepresentantesdanaçãopostaram-separaouvirSuaMajestadeImperial.

Éhojeodiamaior,queoBrasiltemtido;diaemqueelepelaprimeiravezcomeçaamostraraoMundo,queéImpério,eImpériolivre.QuãograndeéMeuprazerVendojuntosRepresentantesdequasetodasasProvínciasfazeremconhecerumasasoutrasseusinteresses,esobreelesbasearemumajusta,eliberalConstituiçãoqueosreja!30

Principiaram os debates. Um Império livre e uma liberal Constituição sugeriam a então modernanoção de cidadania no lugar da distinção entre pessoas demaior oumenor qualidade.No entanto, osproblemas eram tãonumerososquantoos conflitosde interesses. Ideiasdebase iluminista epossedeescravoseramduascaracterísticasaparentementedivergentesqueacabavamporseencaixardeacordocom as mais variadas interpretações em diferentes partes da Europa e das Américas, permeando oaparatoinstitucionaldasex-colônias.31

Dissolvida a Assembleia, ainda em novembro de 1823, foi outorgada a Constituição Política doImpério por Pedro I em 25 de março de 1824. Quanto à cidadania, diz o artigo 6o item 1o que sãocidadãos brasileiros todos os nascidos no Brasil quer sejam ingênuos (os descendentes de africanosnascidoslivres,ouseja,quenuncaforamescravos)oulibertos.Noentanto,cidadanianãoera,notextoda lei, sinônimodeplenitudededireitospolíticos.Aquelesqueumdia foramescravos e tornaram-selibertos,juntamentecomtodososlivresquenãopossuíamrendalíquidaanualde200mil-réisporbensdeindústria,raiz,comércioouempregos,eainda,oscriminosospronunciados,nãopoderiamvotarnaseleiçõesparadeputados,senadoresemembrosdosconselhosdeprovíncias,conformeoartigo94.32

EmO fiador dos brasileiros, Keila Grinberg, ao reconstruir a trajetória política e jurídica deAntonio PereiraRebouças, argumenta que não havia teoricamente, na interpretação deRebouças, umacontradiçãoentreserliberalenãodeixardeserescravista.Noentanto,“enquantohouveescravidão,nãohouve Código Civil no Brasil”.33 Segundo a autora, um dos maiores empecilhos ao Código era atransitoriedadedacondiçãocivildocativoquesetornavacidadãoaoconquistarsuaalforria.Sobreoslibertos sempre pairava a suspeita de serem cúmplices em levantes de escravos ocorridos nas maisvariadas regiões dasAméricas. A conjugação das ideias de cidadania e segurança pública esteve nocentrodosdebates.Concederigualdadededireitospolíticosatodosfoiumtemadeconstantesembatesentrejuristasepolíticos,permanecendosemsoluçãonoImpériodoBrasil.34

SeoCódigoCivilsópassouavigorarnaRepública,em1odejaneirode1917,35oCódigoCriminaldoImpério,apósarealizaçãodealgunsdebatesedisputasnacomissãomistadaCâmaraedoSenadoque trabalhounoprojetodeBernardoPereiradeVasconcelos,36entrouemvigor logoemdezembrode1830.Onovocódigoafirmou-seentremuitos juristasdosoitocentoscomoumcorpode leismoderno,produzido em sintonia com asmudanças de seu tempo. Norteado pelo artigo 179 da Constituição de1824,oCódigoCriminalnãoadotouapuniçãocomamarcade ferroquente.Ocrimenãopassavadapessoa do delinquente estendendo-se a seus descendentes. Crime e delito, entendidos como palavrassinônimas,não tinhamefeito retroativo,poisnenhumdelitopoderia existir semuma lei anteriorqueoqualificasse. A pena de morte foi sustentada, mas sem a distinção entre a forca e o machado –prevalecendoaprimeira.37

Noentanto,apesardeelogiadoetidocomoinspiraçãoparaoCódigoPenalEspanholde1848,bemcomoparaoutroscódigosdepaísesdaAméricaLatina,38alegislação,queem1832foicomplementada

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peloCódigodoProcessoPenal,guardava,quantoàescravidão,ambiguidadessemelhantesàsdoperíodocolonial.ComoapontouLuizFelipedeAlencastro,paraacontinuaçãodosistemaescravistanoImpériofoidecisivo“oenquadramentolegal”.Odireitoassumiu“umcaráterquaseconstitutivodoescravismo”.

[…]oescravismonãoseapresentacomoumaherançacolonial,comoumvínculocomopassadoqueopresenteoitocentistaseencarregariadedissolver.Apresenta-se,istosim,comoumcompromissoparaofuturo: o Império retoma e reconstrói a escravidão no quadro do direitomoderno, dentro de um paísindependente,projetando-asobreacontemporaneidade.39

AConstituiçãode1824,apesardeconterexceçõescomoaquelimitavaacidadaniadoslibertosnaseleições,nãocontinhanenhumaregraparaadefiniçãojurídicadosqueseencontravamnocativeiro.Porumlado,épossívelafirmarqueosilênciodotextoconstitucionalquantoaoscativoserajuridicamentesustentávelereafirmavaaescravidãonãoincluindocoisasouobjetosdepropriedade(osescravos)emregrasdestinadasacidadãos.Poroutrolado,essafaltadeprincípiosconstitucionaisnorteadoresgerouuma consequência direta: os escravos continuaram a ocupar até a abolição asmesmas leis, omesmobancodosréuse,emalgunscasos,asmesmasprisõesdosencarceradoslibertoselivres.40

Apesar da existência da Constituição de 1824 e das novas diretrizes legais em vigor, com o CódigoCriminaldoImpério,de1830,eoCódigodeProcessoCriminal,de1832,opaíscontinuoupormuitotempomergulhadoempráticaserotinasdeencarceramentoquenãosedistanciavamdaquelasrealizadasduranteomundocolonialeque frequentementedenunciavamoviésviolentoearbitráriodasociedadeescravista.Enestesentido,ascasasdecorreção,inauguradas[nacidadedeSãoPauloenaCortedoRiodeJaneiro]nadécadade [18]50,nãosó foram impotentespara reverterestequadroe imporumnovopadrãoaoencarceramentonopaís,comonaverdadeserviramdedepósitos,melhorconstruídosemaisorganizados,paraumvariado lequede indivíduosquepara láeram recolhidos, envolvendonão sóoscondenadospropriamenteàpenadeprisãocomtrabalho,mastambémvadios,menores,órfãos,escravoseafricanos‘livres’.41

Jurisconsulto, parlamentar e presidente do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros42 entre1861 e 1866, AgostinhoMarques PerdigãoMalheiro foi um dos mais destacados pesquisadores dosfundamentosjurídicos–principalmentealicerçadosemargumentosprovenientesdodireitoromano–quesustentaramalegislaçãoarespeitodosescravosnoBrasil.Emsuaobramaisconhecida,AescravidãonoBrasil,publicadaentre1867e1868,oautoréenfático:

Emrelaçãoàleipenal,oescravo,sujeitododelitoouagentedele,nãoécoisa,épessoanaacepçãolatado termo, é um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seussemelhantes.Responde,portanto,pessoalediretamentepelosdelitosquecometa;oquefoisempresemquestão.43

Entretanto – como é possível notar na epígrafe que inicia esta primeira parte do texto – PerdigãoMalheiro assevera que as variações de penas relativas, especificamente, ao caso de condenadosescravos,eramentendidascomoexceçõesouexcepcionalidades.OCódigoCriminaldoImpérioimpunhaexclusivamenteaocondenadoescravo,quandosentenciadoaoutraspenas,quenãoàdemorteougalésperpétuas,44asubstituiçãodapenadeprisãopeladeaçoites,quenãopoderiamultrapassaraquantidadede cinquenta por dia, complementada pelo uso de ferros nos pés ou pescoço durante o período

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determinado pelo juiz. Pena exclusiva dos escravos desde as últimas décadas do século XVIII,45 osaçoitessóforamabolidosnoBrasilem1886.46

DiferentedoLivroV,nãohavianoCódigodoImpériodestaques,artigoaartigo,queexplicassemamaneira de se imputar pena aos escravos. Havia um artigo (o de número 60) que se encarregava deprescreveraexceçãoparaocasodoscondenadosescravos,oqualdeveriaserconsideradopelosjuízesna aplicaçãode todas as leis penais entãovigentes.Omesmocódigo, entretanto, nãopossuía uma leiespecíficaparaapuniçãodoescravoqueassassinasseseusenhorouqualqueroutrapessoa,salvoquandosecaracterizavaocrimedeinsurreição.

NassuasanotaçõesteóricasepráticasaoCódigoCriminaldoImpério,ojuristaoitocentistaThomasAlves Júnior encontrava no crime de insurreição uma das maiores falhas da obra. Segundo ele, aescravidãogeravaumapopulaçãodiversaemdireitosedeveresdorestantedosmembrosdasociedade,logo,estesdireitosedeveresdistintosnãopodiam“serclassificadosedefinidosporumcódigocomum”.Ele ia mais longe, argumentava que os crimes cometidos por escravos revestiam-se de “caráter egravidadeespeciais”,enecessitavamdeleis,procedimentosprocessuaisejulgamentosespeciais.47Nãoobstante, os partidários doque seria uma espécie de “códigonegrobrasileiro” não foramouvidos.Ocrimedeinsurreiçãonãosódefiniaapuniçãoparaasreuniõesdevinteoumaisescravos“parahaverema liberdade pormeio da força”, como estendia amesma punição dos cativos aos livres identificadoscomocabeças do levante, punindo ainda, na formado artigo115, todos aqueles queparticipassemdainsurreiçãoincitandoouajudandoosescravosaserebelar“fornecendo-lhesarmas,muniçõesououtrosmeios para o mesmo fim”.48 Estudioso de uma das insurreições de escravos que mais repercutiu noImpério,oLevantedosMalêsocorridoemSalvador,naBahia,em1835,JoãoJoséReisargumentaque:

Oartigo115 tinhacomoúnicoobjetivoatribuir aohomem livre,mas sobretudoao liberto,umamaiorpericulosidadeparadistingui-lodoescravoejustificarsentençasmaisduras.Eoalvoprincipaldessaleieramforrosdeorigemafricana,poiseleseseuspatríciosescravoseramosqueserebelavamcommaiorfrequêncianoBrasil,enaBahiaemparticular.49

Contudo, mesmo julgados culpados pelos crimes punidos com a morte (insurreição, homicídioagravado50 e roubo com morte), livres e escravos condenados em primeira instância só subiriam aopatíbulo após serem negados todos os recursos jurídicos previstos (apelação, protesto por novojulgamentoerevista).51Aindaassim,antesdaforcaerafacultadoaocondenadoodireitoderecorreràImperialClemênciaque,pormeiodeumadasatribuiçõesdoPoderModerador,podiaperdoá-lo,mudara pena (comutação) ou mandar executar a sentença. Até então, no caso dos réus escravos, caso oproprietário – ávido pelo retorno do escravo ao trabalho, ou, como ocorria mais frequentemente, àpossibilidadedeservendidosecretamenteparaumalocalidadedistante–nãoconseguisseasolturadeseucativo,pormeiodeumhabeascorpus,dopagamentodefiançaoumesmolançandomãodopoderedainfluência,elepermaneceriapreso.

MenosdecincoanossepassaramdesdeapromulgaçãodoCódigoCriminaldoImpérioem1830,osproblemascomnotíciasdeplanejamentodeinsurreiçõeseassassinatosdesenhoresseimpuseram,ealeino 4 de 10 de junho de 183552 suspendeu a possibilidade dos recursos aos cativos condenados peloassassinato ou prática de ferimentos graves contra seus senhores, os familiares dos seus senhores eprepostos (administradores e feitores, bem como asmulheres que com eles vivessem). Estabeleceu amesmaleique,nestescasos,noscrimesdeinsurreiçãoeemoutroscometidosporcativosparaosquaisestivesseprevistaapenademorte,ojulgamentofosserealizadoomaisbrevementepossível,reunindo-seextraordinariamenteo júrido termosenecessário.Aspenasvariavamdosaçoites, casoos ferimentosfossemconsideradosdemenorgravidade,atéamorte,quenãopoderiaserdecididapormaioriasimples.

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Ouseja,paraquesecondenasseoescravoàmorteeranecessárioquedoisterçosdosjuradosvotassempelaculpadoréu.53

É significativo observar que, ainda no século XIX, ao comentar o título 41 do Livro V dasOrdenações Filipinas – o qual, como foi visto no tópico anterior deste capítulo, punia com a morteprecedidadetormentosoescravoquematasseosenhor–,ojuristaCândidoMendesdeAlmeidasevejaimpelidoacolocarumanotanaexpressãomatarosenhor,quediz:“estecrimetemleiespecialentrenós,oDecretode1835”.Pormaisque sepossa argumentarqueestanota eraumcorriqueiro exercíciodeerudiçãodojurista,aosolhosdopresente,elasugereumalinhadecontinuidadeentreotítulo41doLivroVealeide1835queintegrouaColeçãodasleisdoImpériodoBrasil.

PerdigãoMalheirocerravafileirascomoscríticosdaleide1835:

Esta legislaçãoexcepcionalcontraoescravo,sobretudoemrelaçãoaosenhor,aaplicaçãodapenadeaçoites,oabusodademorte,ainterdiçãoderecursos,carecemdereforma.Nemestãodeacordocomosprincípios da ciência, nem esse excesso de rigor tem produzido os efeitos que dele se esperavam.AhistóriaeaestatísticacriminaldoImpériotêmcontinuadoaregistrarosmesmosdelitos.Esómelhorará,à proporção que os costumes se forem modificando em bem do mísero escravo, tornando-lhe maissuportáveloumenosintolerávelocativeiro,efinalmenteabolindo-seaescravidão.54

Mesmo sofrendodiversos ataques como este, a lei de 1835nunca foi totalmente abolida enquantovigeuocativeironoBrasil.Apenasalgumascorreçõesforamfeitas.Numprimeiromomento,aimediataexecuçãoda sentença foi suspensa,paraquehouvesse tempodeseempreenderuma revisãodosautosantesdaconsumaçãodapena.Posteriormente, em1837,o recursoàGraça Imperial foipermitidoaoscativos condenados àmorte por homicídios que não vitimaram seus proprietários.Um aviso de 1849mandavaestenderaoscativoscondenadosna leide1835umdispositivogeraldoCódigodoProcessoqueproibiaaaplicaçãodapenademortenoscasosemqueaúnicaprovacontraoréueraaconfissão.Maistarde,em1854,osescravosquevitimaramseussenhorestambémpuderamfazersuascondenaçõessubiremàapreciaçãodaClemênciaImperial.55Nostribunais,osinteressesemjogotornavamasituaçãobemmais complexa.Casoa caso–comatuaçãodos solicitadoresdecausas e advogadoscontratadospelos senhores ou mesmo daqueles que defenderam os cativos réus por seus próprios ideais – 56 asinstâncias superiores da Justiça foramobrigadas a emitir uma infinidade de interpretações e senões àaplicaçãoda leide1835.Em1868,umacórdãodoTribunaldaRelaçãodaCortediziaque,havendoempatenoquesitosobreaqualidadedefeitordavítima,seriaoréujulgadocombasenocódigoenãonalei de 1835. Em 1873, outra decisão da Relação da Corte desclassificava da lei de 1835 o escravomenor.ARelação daBahia afirmouquematar e tentarmatar eram crimes distintos, assim entendeu oTribunalqueatentativademortenãoestavacontempladanaleide1835,devendooescravoserjulgadocombasenocódigo.OutroacórdãodaRelaçãodaCortede1880confirmavaainterpretaçãodoTribunaldaBahiaquantoàexclusãodoscrimesnãoconsumadoseentendiaqueoscativosréusporcumplicidadetambémestavamforadaleide1835.Porfim,umnovoacórdãodaRelaçãodaCorte,de1881,diziaqueo escravo quematasse o feitor e fosse abandonado pelo senhor no correr do processo não devia serjulgadocombasenaleide1835.57

Acadaumadestasconquistas,frutodaquedadebraçoentreoEstado–interessadoempunir–eosproprietáriosdosescravos–dispostosàsmaisvariadasartimanhasparanãoperderovalorinvestidonoescravoacusadodeumcrimecujapenaeraopatíbuloouasgalés–,otempodepermanênciadeumréuescravonaprisão,aoladodelibertoselivres,seestendia.SerjulgadocombasenoCódigoCriminalenãonaleide1835erasemdúvidaumavitóriadadefesaocorridaantesmesmodadecisãodosjuradospelaculpaouinocênciadocativo.Significavaapossibilidadedeoréuescravorecuperar,pelomenos

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emparte,osmesmosdireitoseinstrumentosdedefesadosréuslivres.Era,porexemplo,apossibilidadede os defensores contarem com a argumentação de que para a prática do crime existiu alguma dascircunstâncias atenuantes previstas no Código Criminal – estratégia que uma vez acatada pelo júriresultava efetivamente na diminuição da pena.Em caso de condenação pelo código e não pela lei de1835 retornava a possibilidade de o defensor impetrar recursos contra as sentenças condenatórias àsinstânciassuperioresdaJustiça.

VicenteAlvesdePaulaPessoa–umdosmaiscitadosanotadoreseintérpretesdoCódigoCriminaldoImpérioentreseuspares–afirmavanãoconhecernenhumajustificativaparanãoseestenderemaoscasosdaleide1835todososrecursosjurídicosprevistosparaosoutrostiposdecrime.

Nãovemosnistoomenorperigoenemoadmitimosquandoareflexão,acalma,averdadeeajustiçanãopodemserexcluídasdasaçõeshumanas,maximetratando-sedeumjulgamentoemquemuitasvezesentraapaixãoetantomaisseconsiderarqueoescravonãoétidopormuitoscomoumserracional.Hajaamáxima severidadequandoo crimeéoda lei de1835,mas admitam-se todosos recursos e todososmeios de defesa, tantomais necessários por isto que o escravo é de uma triste e infeliz condição.Asociedadenãotemodireitodetaismeiosparasemanterenemorigordemasiadomoralizoununca.58

Éprecisoasseverar,contudo,quealeitevelongevidade.Osescravosassassinosdeseussenhores,feitoreseadministradorescontinuaramasubiraopatíbuloatéasegundametadedosoitocentos,quandoapráticadasubstituiçãodapenademortepeladegalésperpétuasouprisãoperpétuacomtrabalhos,paracondenados escravos ou livres, tornou-se uma recorrência imposta pela intervenção do PoderModerador,obrigatoriamenteouvidoantesdasexecuções.

Nofimdosanos1860,quandoeraaindaumjovemestudantededireitonoRecife,JoaquimNabucoatuou em três julgamentos de escravos. Em suas palavras, “eram todos crimes de escravos, ou antesatribuídos a escravos […] alcancei três galés perpétuas”.59Nesse período de fim da vida acadêmica,Nabucopreparavaumestudo,queclassificoucomo“umaespéciedePerdigãoMalheiroinéditosobreaescravidãoentrenós”,60oqualficouincompleto.EraAescravidão,escritoem1870,maspublicadopelaprimeiravezapenasemmeadosdoséculoXXpelo InstitutoHistóricoeGeográficoBrasileiro.Nessetexto,Nabucoexpressasuainconformidadecomasleisdeexceçãocontraosescravosedefendeaideiade que, apesar de “não ter o escravo o direito dematar o seu senhor, assim como não é atenuante acondiçãoservil”,61maiorqueocrimedeumescravoéocrimedeescravidão.OautorcitaaVirgínia,entãoum“dosestadosescravagistasdaUniãoamericana”,62quepossuíaemsualegislação71casosdepenademorteexclusivamenteparaosnegros,masnãodeixadequalificaraleibrasileirade1835,comoonossocódigonegro.

Comparadosalgunsaspectosdaspuniçõesprevistasparacativose livrescriminosos,pela Justiça,nosperíodosanterioreposterioràIndependência,épossívelconcluirquenãohaviaumdescompassoouum atraso das leis penais brasileiras do período imperial em relação a outros países que tambémabandonaram legislações baseadas nos fundamentos doAntigoRegime para reger-se por leis de baseiluminista.O que existia era amanutenção do cativeiro e com ele a perpetuação de uma situação deexceçãoqueseacomodouàsociedade,atéqueaprópriasociedade–inclusiveosescravos–,63movidapor interesses, pressões, ideais e aspirações, derrubasse o escravismo. Antes que isso ocorresse,entretanto,livreseescravoscontinuaramadividirespaços–dentreeles,asprisões.

LivreseescravoscriminososencarceradosnaprovínciadeSãoPaulo

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(Umanotaarespeitodarelação:criminalidadelivre,criminalidadeescravaeoproblemadasegurança

individualsoboolhardoexecutivo)

Quandopensamosemcriminalidadeescrava,quasesemprenosvêmàmenteoassassinatodesenhores,feitoresouapreparaçãodeplanosinsurrecionais.Entretanto,ahistoriografiadedicadaàanálisedoscrimescometidosporescravostemapresentado,nosúltimosanos,principalmenteemáreasruraisdepredomíniodaspequenaspossesdecativos,umaparcelasignificativadecrimesqueenvolveramescravoscomlibertoselivresdistintosdopodersenhorial.64TaiscrimestambémestavampresentesnosrelatóriosoficiaisanualmenteapresentadospelospresidentesdaprovínciadeSãoPauloàAssembleiaLegislativaProvincial.Seulugareraodoschamadoscrimescontraasegurançaindividual.

Noalvorecerdasegundametadedosoitocentos,oexecutivodaprovínciapaulistafaziacorocomasededoImpério,noquerespeitavaaoproblemadasegurançaindividual.OmesmopresidentePiresdaMotta,queem1848alertaraos legisladoresquantoàpossibilidadedenovas revoltasdeescravosemSão Paulo, típico problema de segurança pública para a época,manifestou na reunião de abertura daAssembleiaProvincial,doisanosdepois,suasprecauçõesquantoaoscrimesviolentoscometidospelapopulação em geral, os quais, em diferentes circunstâncias do cotidiano, envolviam livres, libertos eescravos.Emseudiscursorelativoaoanode1850,opresidentePiresdaMottaasseverou:

Estão quase extirpados os últimos restos da revolta em Pernambuco [Praieira], e todas as provínciasgozamdepaz.Nestaprovíncia[deSãoPaulo]aordemeatranquilidadepermaneceraminalteráveis,edevemosesperarquecontinueesseestadofeliz.Se,porém,não têmaparecidocrimes,queameacemosossegopúblico,émuitoparalamentar,queomesmosenãopossadizerdosatentadoscontraasegurançaindividual.Não são raros os delitos contra a propriedade,mas a frequência das violências contra aspessoas assusta e horroriza. Constantemente recebem-se participações de homicídios, algunsacompanhadosdecircunstânciasasmaisagravantes,eodiosas.65

Os temores pareciam não ser de todo injustificados. Se no final dos anos 1840, o avanço dacriminalidadepreocupavaasautoridadesadministrativasprovinciais,duasdécadasmais tarde (1870),noaugedaexpansãodaproduçãocafeeira,SãoPaulofiguravanaestatísticapolicialdoImpériocomoaterceira colocada na lista das províncias com maior número total de delitos praticados. Na época,segundoorelatóriodochefedepolícia,SãoPauloperdiaapenasparaPernambuco,cujapopulaçãoeramaior“narazãodeumterço”,eparaoCeará,quetinhametadedoshabitantesdaprovínciapaulista.66

OentãofuturoministrodaJustiça,JoséThomazNabucodeAraújo, tomoupossenaPresidênciadeSãoPauloem27deagostode1851,quandoaindapertenciaaoPartidoConservador.Noanoseguinte,damesmamaneiracomofarialogoaseguiràfrentedapastadaJustiçanaCorte,providenciouapreparaçãodasestatísticascriminaisejudiciárias67daprovíncia.OspadrõesconstantesnosmapasdeSãoPaulonãodestoavam daquele apresentado em relação ao restante do Império.Consta que foram submetidos aostribunaisdojúrideprimeira instânciaemSãoPaulo,noanode1851,176crimesem151processos.68Mais de 80% tratavam de crimes particulares, e dentre estes, quase 90% se referiam a homicídios eferimentos. No entanto, mais recorrentemente do que ocorria nos mapas criminais do Ministério daJustiça,relativosatodooImpério,naprovínciadeSãoPauloonúmeroderéusescravosera,emalgunscasos,divulgadoseparadamentedosréuslivreselibertos.Aindaassim,entreosprocessosjulgadosnascomarcasdeSãoPauloem1851,opequenonúmerode réuscativos (11,1%) 69 em relação aos livresratificouatendênciaentreosnúmerosapuradosparaopaíscomoumtodo.Nosanosseguintes,mesmoconsiderando-se que ora constavam estatísticas criminais preparadas pela secretaria de polícia, ora o

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número de processos-crime julgados pelos tribunais do júri de cada comarca, a participação cativamanteve-seem tornode10%do total.Anexadaao relatóriode1871,uma listagem intitulada“CrimescometidosnaprovínciadeSãoPauloem1870”70apresentaumtotalde389réuslistados,dosquais26(6,68%) eram cativos. Com base nestas informações, é possível inferir que independentemente dasvariações locais entre a população livre e escrava, manteve-se a tendência geral na província, pelomenosaté1870,deosescravoscomporemumapequenafraçãodototalderéus.

Mas, que crimes eram esses? Após apresentar as tendências apuradas na estatística criminal, asautoridadesprovinciaispaulistaspassavamaatribuircausasaosproblemascomasegurançaindividual.Osmotivos apontadospara a práticade crimes eramosmais variados, embora seguissemosmesmostópicos constantes nos relatórios dosministros da Justiça e vice-versa. Predominavam asmotivaçõesconsideradas pelas autoridades como frívolas e ocasionais sempre acompanhadas de menções aocorriqueiro porte de armas de fogo e facas, à prática de jogos, ao abuso de bebidas alcoólicas e,principalmente,àsdisputasenvolvendoamantes.

Conta o chefe de polícia em 1871 que no dia 24 de julho do ano anterior, na cidade dePindamonhangaba, Francisco Antonio Ferreira assassinou sua esposa Francelina e feriu gravementeBentoJosédaCosta.Asuspeita inicialdeFerreira recaiusobreoutrohomem,denomeCândido,comquemFrancelinaestariamantendorelaçõesamorosas.Cientedaspromessasdevingança,Cândidoteriase antecipado ao esposo traído e lhe denunciadoFrancelina, que naquelemomento estava emumdosquartosdacasadeNicolau,patrãodeFerreira,comoverdadeiroamante.Ferreiracorreuimediatamenteparaacasadopatrão.Lá,comohaviasido informado,encontrouaesposaemadultériocomBentodaCosta.“EnquantoFerreirasaciasuacóleranosanguedeBento,que recebemuitas facadas,FrancelinafogeparaorioParaíba,quecorrepertodacasa,comintençãodeocultarnaságuassuadesonra”,porémfoialcançadapelomaridoqueaesfaqueoumortalmente“comamesmafaca,quegotejavaosanguedeseuinfelizamante.71FranciscoAntonioFerreirafoipreso,julgadoe,apósjustificar-seperanteoconselhodejurados,inocentadodetodasasculpas.Ojuizdedireitodacomarcaapeloudasentença,masoresultadonãofoiconhecido.Em1872,ochefedepolíciamencionouaprisãodeMariaAntoniadoEspíritoSantona Vila de Lençóis, termo de Itapeva, situado na região sudoeste da província. A mulher teria seassociadoaocativoVicente,quepertenciaaotenenteDomingosLuizdoSantos,parajuntosassassinaremseuesposoTheodoroJoséRodrigues,quefoiencontradomorto.Submetidosaojulgamento,ambosforamabsolvidos. No relatório de 1885,72 o presidente José Luiz de Almeida Couto narrou outro crimemotivadoporintrigasamorosasocorridonotermodaPenhadoRiodoPeixe,atualmunicípiodeItapira,namanhãde12deoutubro,nas imediaçõesda fazendadeBentoDominguesdeAlvarenga.Deacordocomo presidente, o escravoVicente foimorto comuma foiçada na cabeça que lhe dera seu parceiroFranciscoMineiro,pormotivosdeciúmes.As intrigasamorosasenvolvendo tanto réuscativosquantoréuslivresapresentavamcaracterísticasbastantesemelhantesnotocanteàssituaçõesdocotidianotidascomoinaceitáveis,entreasquaisoadultériofiguravacomoumadasmotivaçõesmaisrecorrentesparadesfechoscruentos.

Seriam, entretanto, estes tipos de crimes relevantes no cômputo geral dos delitos que envolveramescravos no período? A historiografia recente a respeito da escravidão em São Paulo e em outraslocalidades brasileiras, onde também existiam regiões urbanas e rurais dotadas de pequenosproprietáriosdeescravosnosoitocentos,permiteafirmarquesim.Afirmaçãoestaquenãoserestringeaoscrimesqueenvolviamamantes.Praticaraçõestidascomotípicasdapopulaçãolivreemruas,pastos,igrejas,festas,tavernas,prostíbulos,entreoutros,eratambémumamaneiradeocuparzonasdeinterseçãosimbólicasentreosmundosdaescravidãoeda liberdade.Aconquistade tais espaçospoderia sedarmesmodentrodeimundaseinfectasenxovias.

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Livreseescravosnasmesmasenxovias

Olhemosumavezmaisparaorelatooficial.Noiníciodadécadade1870,nointeriordascadeiasdaprovíncia, temosumanovapistadaproximidadeentreencarceradoslivreseescravos.Aorelatóriode1871,apresentadoaosdeputadosprovinciaispelopresidentedeSãoPauloAntoniodaCostaPinto,foiapensadoumcurioso recenseamentodos“presosexistentesnascadeiasdaprovínciadeSãoPauloem1870”.73A listagem totalizou292prisioneiros, dosquais114eramescravos.NumperíodoemqueosataquesviolentosàautoridadesenhorialnasregiõesdelavourasexportadorasdoSudesteprincipiavamasofrer um considerável incremento,74 o documento menciona 52 (45,6%) cativos condenados peloscrimesdaleide10dejunhode1835,ouseja,crimescontraossenhores,seusprepostosoufamiliaresdeles.Todososdemaisescravos62(54,4%)estavampresosporcrimescometidoscontraoutroscativosepessoas livresdistintasdeseusproprietários, feitoreseadministradores,ouseja,estavamnoâmbitodos crimes cometidos por escravos que as autoridades administrativas simplesmente agrupavam àcriminalidadeatribuídaàpopulaçãoemgeral,poiseramaçõesmotivadasporquestõessemelhantesàsdoscrimescometidosporpessoaslivres.

Aindapormeiodomesmodocumento, épossível apontar–emquepesemosdadosnãoenviadospelasautoridadeslocaisdointeriordaprovíncia–aslocalidadesemqueescravoselivrespartilhavamcárceres:nacadeiadacapitaldaprovíncia(todososqueforamcondenadoscombasena leide10dejunhode1835–52cativos–,eaquelespresosporoutrostiposdecrime–51cativos–,numtotalde103prisioneirosescravose122livreselibertos),nacadeiadeGuaratinguetá(trêsprisioneirosescravose13livresoulibertos),nacadeiadeIguape(umescravoequatrolivresoulibertos),nacadeiadeSantos(três escravos e quatro livres ou libertos), na cadeia de Bragança (três escravos e cinco livres oulibertos)enacadeiadeAreias(umescravoetrêslivresoulibertos).75

OséculoXIXmarcouaentradadeSãoPaulonocenárioexportadordoImpério,primeirocomaproduçãodecana-de-açúcaredepoiscomocafé.AsregiõesdovaledoParaíbaeaschamadasnovasregiõesaoesteforamsofrendograndesalteraçõesemsuaspaisagens.76Contudo,ainfraestruturadegovernodisponívelàsautoridadesadministrativasejudiciáriasparecenãoteracompanhadotamanhodesenvolvimento.Alémdascausasdacriminalidadeatribuídaaoscostumesdapopulação,outroproblemaalegadopelospresidenteseraadeficiênciadosrecursosmateriaisedepessoaldisponível.Nasvilas,osdelegadosdepolícianemsemprepodiamcontarcomossoldadospermanenteseguardasnacionaisparaapatrulhaecumprimentodemandadosjudiciais.Muitasprisõeseramfeitasporescoltasformadasporsoldadoseoutrosindivíduosque,pormeios(cavalosearmas)einteressespróprios,sedispunhamacolaborar.Quando,enfim,osperturbadoresdaordemouosindiciadosemprocessoscriminaiserampresos–nãohaviaprisões.Oumelhor,havia,emboranãofossemdignasdelisonja.

EmborafosseumpontocomumnosrelatóriosapresentadospelospresidentesnassessõesdeaberturadasAssembleiasLegislativasprovinciais,otemadasituaçãodas36cadeiase26casasdeprisãoespalhadasportodaaprovínciadeSãoPauloocupouumlongoedetalhadoanexo,dequinzepáginas,notextoapresentadoem1865,peloentãopresidente,conselheiroJoãoCrispianoSoares.

Aoprincipiar seu relato pela cadeia da capital, o presidente cita o artigo 179 daConstituição doImpério–umsímboloderompimentocomaspráticaspunitivasdoAntigoRegime–queafirmava:“21o)As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus,conformesuascircunstânciasenaturezadosseuscrimes.”77Aindaquefosseamelhordaprovíncia,naopinião do presidente, a cadeia da capital não comportava o volume de presos nela encarcerados.Recebendooscondenadosàmorteeàsgalésperpétuasqueaguardavamojulgamentodeseusrecursos,

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oriundos de todas as vilas do interior, era impossível, destacava ele, seguir o preceito de separar ospresossegundosuas“circunstânciasenaturezadosseuscrimes”.78Certamenteeranacadeiadacapitalondehaviaamaiorconvivênciaentrelivres,libertoseescravos.TamanhoeraotranstornoquepropunhaSoaresdesalojarojúrieacâmaraparaquefossepossíveledificarmaiscelas.

NacapitaldeSãoPaulo,comojámencioneianteriormente,havia,assimcomonaCortedoRiodeJaneiro,umacasadecorreção,desdeosanos1850.Nacondiçãodecentrodestinadoaocumprimentodaspenas de prisão simples e prisão com trabalho, ela representava uma tentativa mais concreta deincorporação das concepções modernas de ressocialização do encarcerado. Na casa de correçãofuncionavaoCalabouço,“umconjuntodecelasdestinadasàprisãocorrecionaldosescravos.Ficavamrecolhidosporordemdeseussenhoreseàssuascustasporprazocertoeeramgeralmenteaçoitados”.79Certamente,omaiormovimentodeescravosprisioneirosdacapitalconcentrava-seali,poisreuniatodosos fugitivos recapturados, os presos pela polícia além dos que eram conduzidos pelos proprietários.SegundoSalla, as casas de correção, emmeados do século eram, entretanto, exceções em relação aoconjuntodascadeiaseprisõesespalhadaspelopaís.80

Seguindo a sua avaliação das cadeias, o presidente Soares verifica que a de Santo Amaro nãooferecianenhumasegurança.Ademaisnãohaviaaliumaprisãoparamulheresnemmesmoumasalaparao corpo da guarda. Na comarca de Bananal, o destaque negativo ficou com a cadeia de Areias, quecontavacomduasprisõesfeitasdetaipa(barroamassadoeaplicadosobreumaarmaçãodevaras,pausoubambusdispostosverticalehorizontalmente),contendo34presossemnenhumadistinção,fossepelotipo de crime ou sexo. Em Guaratinguetá, que também era cabeça de comarca, a situação era muitosemelhante,inclusiveomesmomaterialerausadoparaaconstruçãodasparedes.Namesmacomarca,naviladeCunha,havianacadeia,onde tambémfuncionavamo júrieacâmaramunicipal,duasenxoviasdestinadasàseparaçãodehomensemulhereseumaprisãoespecialpara“réusdecondiçãoqualificadanasociedade”.81Na comarca deTaubaté, as condições eram as piores.Na vila de Pindamonhangaba,comoemoutrasregiões,acadeiaeraimprovisadaemumacasaalugada,caraeexígua.Ocenário,comalgumasvariaçõespositivas,vaiserepetindonascomarcasdovaledoParaíbapaulista,nolitoralenochamado Novo Oeste, rota de expansão dos cafezais. Nenhuma menção a escravos é feita pelopresidente.Entre todas asmazelas quedescreve, interessa apenas quehaja umambienteminimamentearejadoeaseparaçãoentreosprisioneiroshomensemulheres.Naúltimacomarca,FrancadoImperador,situada no extremo nordeste da província de São Paulo, o presidente encontra o pior cenário ecuriosamente omelhor projeto para a construção da nova cadeia. Nas condições existentes, contudo,verificaosdois casosmais extremos.EmCajuru e emFranca, os cárceres eram tãoprecáriosqueospresoserammantidosaferros,fossemeleslivresouescravos.OsofíciostrocadosentreasautoridadesadministrativasdeFrancaeaPresidênciadaprovínciadeSãoPauloduranteoséculoXIXpermitemumaaproximação mais pormenorizada da trajetória da cadeia local, bem como daqueles que mais nosinteressam–homensemulhereslivres,libertoseescravosaliencarceradoseagrilhoados.

Caminhodasbandeiraspaulistas,maspovoadoprincipalmentepormigrantesoriundosdosdesdobramentosdaeconomiacolonialdeMinasGeraisapartirdofinaldoséculoXVIIIeiníciodoXIX,omunicípiodeFrancachegouaabarcarumaregiãohojeocupadapormaisdeduasdezenasdecidades.Eraumabocadesertãoqueligavaolitoralaointeriordopaís.Criargado,porcos,produzirmantimentoseempreenderocomércionecessárioparaasobrevivênciafoiavocaçãodeseusmoradoresatéachegadadoscafezais,noúltimoquarteldosoitocentos.Assim,osescravosquechegaramcomosprimeirospovoadoresnãosemultiplicaramsignificativamente,pelonascimentooupelacompra.Manteve-se,comoemmuitasoutrasregiõesdoBrasil,umcativeirodepequenamonta,vincadopeloestreitocontatocomossenhores,alémdeumagrandemobilidadeespacialdosescravosque,porisso,mantinham,nocotidiano,

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umconjuntodiversificadoderelaçõescomapopulaçãolibertaelivre.Atendênciadapopulaçãoemgeralfoiadeserconstituídaporcercadeumquartodeescravos–entrecrianças,adultoseidosos–atéaabolição.

Apresençamaisfrequentedosescravosnacadeialocaleracomobjetivocorrecional.Hánosofícios,enviadosàsededaprovíncia,inúmerasnotasquedãocontadaapreensãodeescravoslogodevolvidosaos seus senhores. Poucos foramos registros de prisão para o cumprimento de castigos amando dossenhores.Noentanto,erajustamentenomomentodeaplicarmaisumcastigoemumdeseusescravosqueos senhores, que não viam necessidade de manter feitores ou não tinham condições materiais paracontratá-los, eram traídos pela própria soberba e acabavam feridos ou mortos. Ao tentarem castigarsozinhosseusprópriosescravosduranteotrabalhonaroçaeramatacadospelasferramentasqueonativousava, tais como facas, facões e enxadas.82 Curiosamente, é dessa maneira que começa a história daprecariedadedacadeialocal.

[…]namadrugadadodia3demarçode1835apareceuincendiadaacasadacadeiaeCâmaradestaVila,sendoagressordetalatentadoumescravodofalecidoAlferesJoaquimJoséFerreira,moradornaCanaVerde[atualcidadedeBatatais],oqualseachavaemferrosnaenxoviaporterassassinadooditoseusenhorJoaquimJoséeseevadiuassim[…]eagoraporqueérequisitadapelos juízesda justiçaadarondeserecolhampresos,deliberointerinamentealugaralgumacasaparticular,ouacabarpartedealgumaqueesteja levantadaecobertasealgumproprietárioassentir,esegurardomelhormodopossívelparaconter algumpresode correção e nãohaverá remédiopara segurar facinoroso se não conservá-lo emferrosatépodermosdarprincípioanovacadeia[…]83

Junto com a enxovia – talvez até convenientemente para aqueles que libertaram o escravo –queimaramtodososarquivos,livros,documentoseamobíliadaCâmaradeVereadoresdavilaFranca.Vinteanosmais tarde, a situaçãonãoeranadaboa.Nocontextodas rixas locais entre indivíduosqueostentavam diferentes funções administrativas, o delegado de polícia de Franca, José Luiz Cardoso,oficiouaopresidentedaprovínciadeSãoPauloreclamandoqueavilaficavaconstantementeentregueaosfacinorosos,poisochefedodestacamentodesoldadosmunicipaispermanentessaíaemdiligênciasnascidadespróximasedeixavaacadeiasozinha,semninguémparavigiarosencarcerados.84

Ascadeiasimprovisadas,comparedesfeitasdetaipademãooupauapique,erampresasfáceisparaaquelesquequeriamfugir.Alçapões,janelaseatéparedesinteirascediamàcapacidadedetrabalhoconjuntodosencarcerados.Namadrugadade1odejulhode1858,ospresosJoãodeMora,conhecidocomoPortuguês,JoaquimAntoniodoEspíritoSanto,JoãoLemeseosescravosAncelmoeAdãofugiram.Segundooautodecorpodedelitoconstantedoprocessoqueseinstaurouparaapurarasresponsabilidadespelafuga,ospresospassaramdiasperfurandoataipacomumapequenaserra,destinadaacortarastábuasqueexistiamnaparede.Duranteotrabalhodeperfuraçãodaparede,oburacoerasempretapadocomumamisturadeterracomazeite.Umdossoldados,emseudepoimento,disseterpercebidoalgumasvezesqueoscincofugitivossempreestavamseparadosdorestantedospresos,conversandoemvozbaixa.Ninguémfoiresponsabilizado,nemospresoscapturados.85

Ao legar ao futuro a tarefa de extinguir o cativeiro, os primeiros estadistas brasileiros,principalmente os favoráveis à abolição gradual da escravidão, acabaram por criar zonas de contatoentrecativoselivresaindamaisfortesdoqueasdoperíodocolonial.Forjaridentidadesemmomentosde dificuldade era uma especialidade daqueles que foram – elesmesmos ou seus pais ou até avós –retiradosdaterranatalelançadosemummundocompletamentenovo.Asnovasidentificaçõesnãoeramdeterminadas por características ancestrais. Elas eram construídas a partir das experiências vividas

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coletivamente. No que concerne ao mundo partilhado por livres e escravos, os historiadores têmreveladoinúmeraspossibilidades,nuançasefacetas.NãoserianocotidianodosinfernoscarceráriosdoBrasil imperial que cativos e livres evitariam alianças, contatos e associações para a conquista deobjetivoscomuns.

1ApesquisaqueresultounaconstruçãodopresentetextofoirealizadacomofomentodaFundaçãodeAmparoàPesquisadoEstadodeSãoPaulo.(FAPESP)

2RUSSELL-WOOD,A.J.R.EscravoselibertosnoBrasilColonial.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2005,p.295.3EmborasejaimportanteressaltarqueoobjetivodeMichelFoucaultestácentradonaconstruçãodeumahistóriadarupturanaconcepçãodaspráticaspunitivas,entendidanaperspectivadeumprocessomaisamplodetransformaçãodaprópriateoriadoconhecimentoocidentalnaépoca,“umahistóriacorrelativadaalmamodernaedeumnovopoderdejulgar”,seuVigiarepunirseguecomoumadasmaiscompletasecitadasreferênciasarespeitodotemadaspunições,emespecialdaaboliçãodossuplíciosnoscódigoscriminaiselaboradosapartirdefinsdoséculoXVIIIemdiferentespaíseseuropeus.FOUCALT,Michel.Vigiarepunir:nascimentodaprisão.28ª.ed.,Petrópolis:Vozes,2004,p.23.ParaumbalançocríticodautilizaçãodaobradeMichelFoucaultemestudosqueabordaramahistóriadocontrolesocialnaAméricaLatina,ver:DILISCIA,MariaSílvia;BOHOSLAVSKY,Ernesto(Orgs.).InstitucionesyformasdecontrolsocialenAméricaLatina1840–1890:unarevisión.BuenosAires:PrometeoLibros:UniversidadNacionaldeGeneralSarmiento:UniversidadNacionaldeLaPampa,2005.Especialmente:Introducción–Paradesataralgunosnudos(yatarotros).Textodeautoriadosorganizadores.

4ALGRANTI,LeilaMezan.Ofeitorausente:estudosobreaescravidãourbananoRiodeJaneiro.Petrópolis:Vozes,1988,p.36.5Ibidem,p.37.6MALHEIRO,Perdigão.AescravidãonoBrasil:ensaiohistórico,jurídicoesocial.3ª.ed.Petrópolis:Vozes,1976,vol.1,p.45.Estudooriginalmentepublicadoentreosanosde1866e1867.

7BLACKBURN,Robin.AconstruçãodoescravismonoNovoMundo,1492-1800.RiodeJaneiro:Record,2003.ParaumaanáliseabrangenteecomparativadoCodeNoir,doCódigoNegroCarolino–produzidoporordemdeCarlosIII,nofinaldoséculoXVIII,nosmoldesfranceses,paravigorarnaparteespanholadailhadeHespaniola–edasdiferentesteoriasdeorganizaçãoegestãodosescravosnasAméricas,ver:MARQUESE,RafaeldeBivar.Feitoresdocorpo,missionáriosdamente:senhores,letradoseocontroledosescravosnasAméricas,1660-1860.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2004.

8BENCI,Jorge.Economiacristãdossenhoresnogovernodosescravos.(1705).SãoPaulo:Grijalbo,1977.9ANTONIL,AndréJoão.CulturaeopulênciadoBrasilporsuasdrogaseminas.(1711).IntroduçãoeVocabulárioporA.P.Canabrava.SãoPaulo:CompanhiaEditoraNacional,1967.

10ParaumaabordagemdastransformaçõesnasconcepçõesdeadministraçãodasfazendasescravistasnoBrasil,ver:MARQUESE,RafaeldeBivar.Administraçãoeescravidão:ideiassobreagestãodaagriculturaescravistabrasileira.SãoPaulo:Hucitec:Fapesp,1999.

11DeacordocomMarquese:“Atradiçãolegislativaportuguesasobreaescravidãonegra,compostadesdeoiníciodaexpansãoultramarina,nãolevouaumacodificaçãotalcomoaqueocorreunasAntilhasfrancesas.AslinhasgeraisestipuladaspelasOrdenaçõesManuelinaseFilipinasnãoregulavamdeformaexplícitaaposseeodomíniosenhorialsobreosescravos,indicandoapenasosfundamentosquelegitimavamocativeironegro”.MARQUESE,RafaeldeBivar(2004),op.cit.,p.50.

12UmdosmaiscompletostrabalhosdecatalogaçãodessasleiséodeDeaRibeiroFenelon.LevantamentoesistematizaçãodalegislaçãorelativaaosescravosdoBrasil.AnaisdoVISimpósioNacionaldosProfessoresUniversitáriosdeHistória.SãoPaulo,p.199-307,1975.Paraomesmotema,vertambém:BANDECCHI,PedroBrasil.LegislaçãosobreaescravidãoafricananoBrasil.RevistadeHistória.SãoPaulo,v.XLIV,n.89,p.207-213,janeiro-março,1972;Idem.LegislaçãodaprovínciadeSãoPaulosobreescravos.RevistadeHistória.SãoPaulo,v.XXV,n.99,p.235-240,1974.

13Paraumavisãoampladaorganizaçãodoaparatojurídico-administrativonoBrasilcolonialCf.SALGADO,Graça(org.).Fiscaisemeirinhos:aadministraçãonoBrasilcolonial.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1985.

14FOUCAULT,Michel.op.cit.15DeacordocomRussell-Wood,nasociedadedoBrasilcolonialaintegraçãodoslibertoseraobstadaporumconjuntodeleisdiscriminatórias

queosequiparavamaosescravos.Osprincipaistemasdiziamrespeitoàproibiçãodousodearmasedetiposespecíficosdevestimentas.RUSSEL-WOOD,A.J.R.,opcit.EspecialmenteoCapítulo4,“NegrosemulatoslivresnasociedadedaAméricaportuguesa”.Arespeitodasproibiçõesdedeterminadasroupasanegrosemulatoslivres,libertoseaescravosnoBrasilcolonial,ver:LARA,SilviaHunold.Sedas,panosebalangandãs:otrajedesenhoraseescravasnascidadesdoRiodeJaneiroedeSalvador(XVIII).In:SILVA,MariaBeatrizNizzada.(org.).Brasil:colonizaçãoeescravidão.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2000.

16OrdenaçõesFilipinas:livroV/organizaçãoSilviaHunoldLara.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1999,p.80(Grifonosso).CitoaquiaediçãodoLivroVorganizadaporSilviaHunoldLaraemvirtudedeestajácontarcomaatualizaçãodagrafiadotextoproduzidonoperíodocolonial.

17Ibidem,p147,148e149.(Grifonosso).18Ibidem,p.151.(Grifonosso).19SALLA,Fernando.AsprisõesemSãoPaulo:1822-1940.2ª.ed.Annablume;FAPESP,2006.20SCHWARTZ,StuartB.BurocraciaesociedadenoBrasilcolonial:aSupremaCortedaBahiaeseusjuízes:1609-1751.SãoPaulo:

Perspectiva,1979.21WEHLING,ArnoeMariaJosé.DireitoeJustiçanoBrasilcolonial:oTribunaldaRelaçãodoRiodeJaneiro(1751-1808).Riode

Janeiro:Renovar,2004.

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22Ibidem,p.28.23Ibidem.24Ibidem.25LARA,SilviaHunold.Camposdaviolência:escravosesenhoresnacapitaniadoRiodeJaneiro,1750-1808.RiodeJaneiro:Paze

Terra,1988.Aautoraanalisaamplamentenãosóasordenações,mastambémosdiversosalvarásedecretosqueregulamentavamaspuniçõesdeescravosnoBrasilcolonial.Paraumavisãoampladadocumentaçãocolonialarespeitodarelaçãoentreajustiçaeaescravidãonosdomíniosportugueses,vertambém:LARA,SilviaHunold.LegislaçãosobreescravosafricanosnaAméricaportuguesa.In:NuevasAportacionesalaHistoriaJuridicadeIberoamerica.Madri:FundaciónHistóricaTavera–Digibis–FundaciónHernandodeLaramendi,2000(CD-Rom).

26Excertoextraídodo“Alvaráde10demarçode1682”.In:CódigoFilipino,ou,OrdenaçõeseLeisdoReinodePortugal:recopiladaspormandadod’el-ReiD.FilipeI.–Ed.fac-similarda14ª.ed.(1870),segundoaprimeira,de1603,eanona,deCoimbra,de1821,4v./comintroduçãoecomentáriosdeCândidoMendesdeAlmeida.Brasília:SenadoFederal,ConselhoEditorial,2004.LivroIV,Aditamentos–LegislaçãoPortuguesa,p.1045-1047.

27CódigoFilipinoouOrdenaçõeseLeisdoReinodePortugal:recopiladaspormandadod’el-ReiD.FilipeI.–Ed.fac-similarda14ª.ed.(1870),segundoaprimeira,de1603,eanona,deCoimbra,de1821,4volumes/comintroduçãoecomentáriosdeCândidoMendesdeAlmeida.Brasília:SenadoFederal,ConselhoEditorial,2004,Título41,p.1190-1191,título60,p.1207-1210etítulo86,p.1233-1235.

28WEHLING,ArnoeMariaJosé,op.cit,p.482.29SCHWARTZ,StuartB.(1979),op.cit..ParaumaanálisedarelaçãoentresenhoresdeescravoscriminososeaJustiçaemfinsdoperíodo

colonial,naregiãodeCamposdosGoitacases,nacapitaniadoRiodeJaneiro,ver:LARA,(1988),op.cit.30DiáriodaAssembleiaGeralConstituinteeLegislativadoImpériodoBrasil–1823.EdiçãoFac-Similar.IntroduçãodePedroCalmon,3

Tomos.Brasília:EditoradoSenado,2003,TomoI,p.15.31Paraumaamplaanálisedotema,Cf.DAVIS,DavidBrion.Oproblemadaescravidãonaculturaocidental.RiodeJaneiro:Civilização

Brasileira,2001.EspecialmenteoCapítulo13,“Oiluminismocomofontedopensamentoantiescravocrata:aambivalênciadoracionalismo”,p.433-465.

32SÃOVICENTE,JoséAntonioPimentaBueno,marquêsde(organizaçãoeintroduçãodeEduardoKugelmas).JoséAntonioPimentaBueno,marquêsdeSãoVicente.SãoPaulo:Ed.34,2002.PimentaBuenorefere-seaoscitadosartigosnaspáginas269,528,554e555.

33GRINBERG,Keila.Ofiadordosbrasileiros:cidadania,escravidãoedireitocivilnotempodeAntonioPereiraRebouças.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2002,p.316.Arespeitodasituaçãodeexceçãodacidadaniadoslibertos,bemcomosobreatutelaestataleprivadasobreelesexercida,ver:MATTOS,HebeMaria.Dascoresdosilêncio:ossignificadosdaliberdadenosudesteescravista–BrasilséculoXIX.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1998,especialmenteaquartaparte,“Nóstudohojeécidadão”.

34AlémdoestudodeGrinberg,sobreosembatesdepolíticosejuristasemtornodotemadocativeironoBrasilImperial,conferirPENA,EduardoSpiller.Ospajensdacasaimperial:jurisconsultos,escravidãoealeide1871.Campinas:EditoradaUnicamp,Cecult,2001.

35Iniciadoformalmentecomotrabalhodecompilaçãodasleisexistentes,pelojuristaAugustoTeixeiradeFreitas,queresultounaConsolidaçãodasLeisCivisde1857,oesforçodeproduçãodeumCódigoCivilnoImpério,naspalavrasdeKeilaGrinberg,“nãopassoudetentativasindividuais”.TeixeiradeFreitasnãochegouacompletarseu“esboçodocódigo”,abandonandoatarefa,sobajustificativade“incompatibilidadescomogoverno”,em1867.Outrosjuristastomaramparasiaempreitada.Em1872,JoséThomazNabucodeAraújoiniciouotrabalhoqueseencerrariacomsuamorteem1878,deixandomuitas“notas,masnenhumtexto”.Noiníciodadécadade1880,FelíciodosSantostambémtrabalhounaredaçãodeumcódigocivil,masseusesforçosseesgotaramem1883quandoacomissãoquecompunhafoidissolvida.Em1889,umacomissãointegradapelopróprioPedroII,AfonsoPenaeCandidodeOliveiratentoulevaravanteaproduçãodocódigocivilnoImpério,masoregimeruiuelevouconsigooderradeiroesforço.Finalmente,em1899,ClóvisBeviláquaassumiuopostode“redatordocódigodefinitivo”.GRINBERG,Keila,op.cit.

36NaspalavrasdeJoséMurilodeCarvalho,“ConcebidosobainspiraçãodoutilitarismodeBentham,onovocódigorepresentouenormeprogressoemrelaçãoaoLivroVdasOrdenaçõesdoReino,queaindavigianopaís.Aqualidadedaobrafoireconhecidanoexterior,tendoservidodemodeloparaalegislaçãodeoutrospaíses”.VASCONCELOS,BernardoPereirade(organizaçãoeintroduçãodeJoséMurilodeCarvalho).BernardoPereiradeVasconcelos.SãoPaulo:Ed.34,1999,p.19e20.OCódigoCriminalde1830émaisdetidamenteanalisadoem:MALERBA,Jurandir.Osbrancosdalei:liberalismo,escravidãoementalidadepatriarcalnoImpériodoBrasil.Maringá:EDUEM,1994.

37ArespeitodotemadapenademortenoImpériodoBrasil,ver:SILVA,FranciscoAngenorRibeiro.PenademortenoBrasilautônomo.RiodeJaneiro:GonçaloFerreiraStudioGráficoEditora,1993.

38PIERANGELLI,JoséHenrique.CódigospenaisdoBrasil:evoluçãohistórica.SãoPaulo:Jalovi,1980.39ALENCASTRO,LuizFelipede.Avidaprivadaeaordemprivadanoimpério.In:NOVAIS,FernandoAntonio;ALENCASTRO,Luis

Felipede(Orgs.).HistóriadavidaprivadanoBrasil:Império:acorteeamodernidadenacional.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1997,p.17.

40EmboraexistamhojeinúmerosestudosarespeitodocotidianodasprisõesedosprisioneirosnasAméricas–eestelivrosejaumdostestemunhosdestefenômeno–éoportunocitardoistrabalhosarespeitodocotidianocompartilhadoporlivreseescravosemprisõesdoRiodeJaneiroentrefinsdoséculoXVIIIenoiníciodoXIX.Sãoeles:SOARES,CarlosEugênioLíbano.AcapoeiraescravaeoutrastradiçõesrebeldesnoRiodeJaneiro(1808-1850),2ª.ed.rev.eampl.Campinas:EditoradaUNICAMP;CentrodePesquisaemHistóriaSocialdaCultura,2004,especialmenteoCapítulo4,“Dapresigangaaodique:oscapoeirasnoArsenaldaMarinha”,p.247a322;eARAÚJO,CarlosEduardode.Oduplocativeiro:escravidãourbanaesistemaprisionalnoRiodeJaneiro,1790-1821.2004.Dissertação(MestradoemHistória).UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro.ArespeitodasprisõesemSãoPaulo,nosséculosXIXeXX,omaisimportanteestudosociológicoé:SALLA,Fernando.op.cit.

41SALLA,Fernando.op.cit.,p.66.

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42Fundadoem1843,oIABconstituiu-secomoumdosprincipaiscentrosdediscussãododireitoedapráticajurídicadostribunaisnaCortedoRiodeJaneiro,bemcomoemtodooBrasil.SeuprimeiropresidentefoioconselheiroFranciscoGêAcaiabadeMontezuma,jurisconsultoemembrodaConstituintedissolvidaem1823.PerdigãoMalheiroassumiuapresidênciadaOrdementre1861e1866,quandofoieleitoparaadireçãodainstituiçãooconselheiroJoséThomazNabucodeAraújo.PerdigãoMalheirotambématuounaAssembleiaGeral,pelaprovínciadeMinasGerais,entre1869e1872comomembrodoPartidoConservador.Paraumaanáliseampladesteinstituto,deseusmembros,bemcomodosdebatesquealisetravaramarespeitodaelaboraçãodaLeidoElementoServilde1871,cf.PENA,EduardoSpiller,op.cit.

43MALHEIRO,AgostinhoMarquesPerdigão,op.cit.,p.49.Perdigãosalientaque,emborapudesseserapenadocomoqualquerpessoalibertaoulivre,ocativonãopodiarecorreràJustiçaouserporelajulgadosenãosobamediaçãodeumapessoalivrecapaz,quandoosenhornãoofizessecomoseucuradornatural.Alémdisso,“oescravonãopodiadardenúnciacontraosenhor”;nãodepunhacomotestemunhajurada,apenasinformante,ouseja,avalidadeounãodasdeclaraçõesporeleprestadasemjuízoeraavaliadapelaautoridadequepresidiaarespectivafasedoprocesso.Nofinaldosoitocentos,comoaumentodaspressões,tantodosescravosquantodepolíticosejuristas,alegislaçãosofreumodificações,tornandopossívelaocativoinformarcomotestemunhaemprocessomovidocontraoseusenhor,nasocasiõesemqueacausaversassearespeitodefatosdavidadoméstica,ouqueporoutramaneiranãosepudesseconheceraverdade.Porfatosdavidadoméstica,entendiaJoséMariaVidaloscasosemqueojuizdeórfãosdalocalidaderealizasse“averiguaçõesdemaus-tratos,atosimoraiseprivaçãodealimentos”.VIDAL,JoséMaria.Repertóriodalegislaçãoservil.RiodeJaneiro:H.Laemmert,1883,p.50.

44“Art.44–Apenadegaléssujeitaráosréusaandaremcomcalcetanopéecorrentedeferro,juntosouseparados,eaempregar-senostrabalhospúblicosdaprovínciaondetiversidocometidoodelitoàdisposiçãodogoverno.”CódigoCriminaldoImpériodoBrasil,comentadoeanotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa,2ª.ed.(aumentada).RiodeJaneiro:LivrariaPopulardeA.A.daCruzCoutinho,1885,p.115.

45MALHEIRO,AgostinhoMarquesPerdigão,op.cit.46CódigoCriminaldoImpériodoBrasil,comentadoeanotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa.2ª.ed.(aumentada).

RiodeJaneiro:LivrariaPopulardeA.A.daCruzCoutinho,1885,Artigo60,p.137-141.47ALVESJÚNIOR,Thomaz.AnotaçõesteóricasepráticasaoCódigoCriminaldoImpério.RiodeJaneiro:FranciscoLuizPinto&C.

editores,1864.TomoII,p.312.48CódigoCriminaldoImpériodoBrasil,comentadoeanotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa,2ª.ed.(aumentada).

RiodeJaneiro:LivrariaPopulardeA.A.daCruzCoutinho,1885,p.212.ApesardehaverleiespecíficaparaoscativosrevoltososnoImpério,duranteacomposiçãodoprocessocriminalqueculminoucomojulgamentoepuniçãodosmembros“dalutaarmadaquesedesenrolounaprovínciadePernambuco,entrenovembrode1848eabrilde1849”(Praieira),pessoaslivresdediferentesestratossociaiseescravosréusforamreunidosnocrimedeRebelião(artigo110doCódigoCriminaldoImpério).Paraumaanáliseespecíficadesteepisódio,ver:MARSON,IzabelAndrade.O“cidadão-criminoso”:oengendramentodaigualdadeentrehomenslivreseescravosnoBrasilduranteosegundoreinado.EstudosAfro-Asiáticos.Nº.16,1989.

49REIS,JoãoJosé.RebeliãoescravanoBrasil:ahistóriadoLevantedosMalêsem1835.Ediçãorevistaeampliada.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2003,p.452.

50Agravavamohomicídioasseguintescircunstâncias:matarascendentes,descendentes,mestresesuperioresououtraqualquerpessoaqueocupasseolugardepaidoofensor;cometerohomicídiousandovenenos,incêndioouinundação;terocorridoumacordoprévioentreduasoumaispessoasparaaexecuçãodamorte;abusaroassassinodaconfiançaneledepositada;teroassassinopraticadoamorteporpagamentoouexpectativadereceberumarecompensa;prepararemboscadas;ouainda,praticararrombamentoouinvasãonacasadavítimaparamatá-la.CódigoCriminaldoImpériodoBrasil,comentadoeanotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa,2ª.ed.(aumentada).RiodeJaneiro:LivrariaPopulardeA.A.daCruzCoutinho,1885.Homicídio,artigo192,p.335-350.Asagravantesprevistasnoartigo192encontram-senoartigo16,parágrafos2,7,10,11,12,13,14,17,p.62a77.Paraocrimederoubocommorte(latrocínio),verartigo271,p.460-461.

51Ahierarquia,funçãoeosprocedimentosnecessáriosparacadatipoderecursoestavamprescritosnoCódigodoProcessoCriminal.Paraumavisãoampladestalegislação,bemcomodainfinidadedeinterpretaçõesecomplementaçõesposteriores,ver:CódigodoProcessoCriminaldePrimeiraInstânciadoImpériodoBrasilcomaLeide3dedezembrode1841nº.261,comentadoeanotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa.RiodeJaneiro:JacinthoRibeirodosSantosLivreiro–Editor,1899.

52VastadocumentaçãofoicompulsadaeapresentadaporJoãoLuizdeAraújoRibeiroparaaanálisedosmaisdecinquentaanosdaaplicaçãodestaleinasmaisvariadaslocalidadesedistintasfasespolíticasdoImpériodoBrasil.Deacordocomoautor,acriaçãodaleide1835foiimpulsionadaoutevecomopretextoumlevantedeescravosocorridonalocalidadedeCarrancasemMinasGeraisnoanode1833,cujascausasforamatribuídasaumasupostauniãoentrecativosrevoltososepartidáriosdarestauraçãodePedroI,osquaisatentaramcontraavidadeseussenhores.Apósquasedoisanosdedebates,aleiexcepcionalde1835foiaprovadaemsegundavotaçãonoParlamento.Nascidadoimpassedecomojulgarescravosassassinosdeseussenhorespormeiodeumcódigoelaboradocombaseemprincípiosiluministas,liberaisehumanistas,parahomenslivres,aleide1835,chamadaemergencial,nasciaparaserpermanente.RIBEIRO,JoãoLuiz.Nomeiodasgalinhasasbaratasnãotêmrazão:aLeide10dejunhode1835:osescravoseapenademortenoImpériodoBrasil:1822-1889.RiodeJaneiro:Renovar,2005.

53ColeçãodasleisdoImpériodoBrasil(1835-1aParte).RiodeJaneiro:TipografiaNacional,1864.54MALHEIRO,AgostinhoMarquesPerdigão,op.cit.,p.47.55CódigodoProcessoCriminaldePrimeiraInstânciadoImpériodoBrasilcomaLeide3dedezembrode1841nº.261,comentadoe

anotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa.RiodeJaneiro:JacinthoRibeirodosSantosLivreiro–Editor,1899.Vertambém:GOULART,JoséAlípio.Dapalmatóriaaopatíbulo.RiodeJaneiro:Conquista/INL,1971;LIMA,LanaLagedaGama.Rebeldianegraeabolicionismo.RiodeJaneiro:Achimaé,1981eRIBEIRO,JoãoLuiz,op.cit.

56Aesserespeito,Cf.AZEVEDO,Elciene.Odireitodosescravos:lutasjurídicaseabolicionismonaprovínciadeSãoPaulonasegundametadedoséculoXIX,2003.Tese(DoutoradoemHistória).InstitutodeFilosofiaeCiênciasHumanas,UniversidadeEstadualde

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Campinas,Campinas.57CódigodoProcessoCriminaldePrimeiraInstânciadoImpériodoBrasilcomaLeide3dedezembrode1841nº.261,comentadoe

anotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa.RiodeJaneiro:JacinthoRibeirodosSantosLivreiro–Editor,1899.Asdecisõescitadasconstamnasnotasdoautoraocrimedemorteprevistopeloartigo192,p.341-349.

58CódigoCriminaldoImpériodoBrasil,comentadoeanotadopeloconselheiroVicenteAlvesdePaulaPessoa,2ª.ed.(aumentada).RiodeJaneiro:LivrariaPopulardeA.A.daCruzCoutinho,1885,nota594,p.349.

59NABUCO,Joaquim.Minhaformação.BeloHorizonte:EditoraItatiaia,2004,p.47.60Ibidem,p.47.61NABUCO,Joaquim.Aescravidão.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1999,p.40.62Ibidem,p.35.63Arespeitodotema,ver:AZEVEDO,CéliaMariaMarinhode.Ondanegra,medobranco:onegronoimagináriodaselites–século

XIX.RiodeJaneiro:PazeTerra,1987eMACHADO,MariaHelenaPereiraToledo.Oplanoeopânico:osmovimentossociaisnadécadadaabolição.RiodeJaneiro:UFRJ,EDUSP,1994.

64Discutimaisamplamenteaquestãoem:FERREIRA,RicardoAlexandre.Crimesemcomum:escravidãoeliberdadenoextremonordestedaprovínciadeSãoPaulo(Franca1830-1888),2006.Tese(DoutoradoemHistória).FaculdadedeHistória,DireitoeServiçoSocial,UniversidadeEstadualPaulista,Franca.

65RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteVicentePiresdaMotta)doanode1850,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/984/000003.html.

66RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteJoséTheodoroXavier)doanode1874,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”.

67ParaumacompreensãomaisampladosprojetosdeelaboraçãodeestatísticascriminaisnoBrasilImperialemcomparaçãocomsuascongêneresfrancesas,veja:PIMENTELFILHO,JoséErnesto.Aproduçãodocrime:violência,distinçãosocialeeconomianaformaçãodaprovínciacearense,2002.Tese(DoutoradoemHistória).FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo.

68RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteJoséThomasNabucodeAraújo)doanode1852,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”.

69RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteJoséThomasNabucodeAraújo)doanode1852,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”.

70RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteAntoniodaCostaPintoSilva)doanode1871,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000152.htmlatéhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000159.html.

71RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteAntoniodaCostaPinto)doanode1871,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000120.htmlehttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000121.html.

72RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteJoséLuizdeAlmeidaCouto)doanode1885,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”.

73RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteAntoniodaCostaPintoSilva)doanode1871,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000142.htmlatéhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000147.html.

74Realizeiumaexposiçãodetalhadadodebatehistoriográficoarespeitodosíndicesdecrimescometidosporescravosnoperíodoem:FERREIRA,RicardoAlexandre.Senhoresdepoucosescravos:cativeiroecriminalidadenumambienterural,1830-1888.SãoPaulo:EditoradaUNESP,2005,il.

75RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteAntoniodaCostaPintoSilva)doanode1871,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000142.htmlatéhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000147.html.

76ParaoestudodaeconomiapaulistanoséculoXIX,ver:BEIGUELMAN,Paula.Aformaçãodopovonocomplexocafeeiro:aspectospolíticos,3ª.ed.SãoPaulo:EditoradaUniversidadedeSãoPaulo,2005,originalmentepublicadaem1973eLUNA,FranciscoVidal;KLEIN,Herbert:EvoluçãodasociedadeeeconomiaescravistadeSãoPaulo,de1750a1850.SãoPaulo:EditoradaUniversidadedeSãoPaulo,2005.

77“ConstituiçãoPolíticadoImpério”.In:SÃOVICENTE,JoséAntônioPimentaBueno,marquêsde/organizaçãoeintroduçãodeEduardoKugelmas.JoséAntônioPimentaBueno,marquêsdeSãoVicente.SãoPaulo:Ed.34,2002,p.598.

78RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteJoãoCrispianoSoares)doanode1865,disponívelnaInternetnapáginaeletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,principalmenteorelatóriodochefedepolíciaarespeitodoestadodascadeiasdaprovínciaem:http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1005/000068.html.

79SALLA,Fernando,op.cit.,p.68.

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80Ibidem.81RelatóriodospresidentesdaprovínciadeSãoPaulo(presidenteJoãoCrispianoSoares)doanode1865,disponívelnaInternetnapágina

eletrônicadoProjetodeImagensdePublicaçõesOficiaisBrasileirasdo“CenterforResearchLibrarieseLatinAmericanMicroformProject”,principalmenteorelatóriodochefedepolíciaarespeitodoestadodascadeiasdaprovínciaem:http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1005/000072.html.

82FERREIRA,RicardoAlexandre,op.cit.(2005).83OfíciosDiversosFranca,lata1.018,pasta2,documenton.35,de14/4/1835,DepartamentodeArquivodoEstadodeSãoPaulo,doravante

DAESP.(Osgrifossãonossos)84OfíciosDiversosFranca,lata1.021,pasta2,documenton.23,de24/2/1855,DAESP.85Cartóriodo1oOfícioCriminaldeFranca,ProcessosdoJuízodePaz,n.1,cx.27,1858,ArquivoHistóricoMunicipaldeFranca,doravante

AHMUF.

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A

6–ENTREDOISCATIVEIROS:ESCRAVIDÃOURBANAESISTEMA

PRISIONALNORIODEJANEIRO,1790–1821CarlosEduardoM.deAraújo

Havendoemtodaapartemuitacastadevadiosquecometeminsultoseextravagânciasinauditas,nãoédeadmirarquenoRiodeJaneiro,ondeomaiornúmerodosseushabitantessecompõedemulatosenegros,sepratiquemtodososdiasgrandesdesordensquenecessitamserpunidascomdemonstraçõesseveras,quesirvamdeexemploedeestímuloparasecoibirem,aindaquedenenhummodosedeveesperarqueosejamnasuatotalidade.1

oanalisaradocumentaçãoproduzidapelasautoridadescoloniaisestabelecidasnoRiodeJaneironofinaldoséculoXVIII,constatamosqueadominaçãoportuguesanoBrasiljámostravasinaisde deterioração. Legalmente os monopólios ainda estavam estabelecidos, contudo, colonos e

estrangeiros–principalmenteingleses–lucravamcomocomércioilegalnacidade.ACoroaportuguesaenviou um representante com a missão de reverter esse esfacelamento da dominação portuguesa noAtlânticoSul.

Emmarçode1790,foinomeadoemLisboaonovovice-reidoBrasil,JoséLuísdeCastro,ocondedeResende,comamissãodemanteradominaçãoportuguesaesanearaeconomiacolonialquepassavapor uma grave crise de arrecadação. Os impostos recolhidos estavam em declínio. A construção deprédiospúblicos,oaterramentodepântanoseocalçamentodasruas,enfim,todasasobraspúblicas,tãoimportantesparaamanutençãodaorganizaçãourbana,estavamparadasporfaltadeinvestimentos.

Aochegaràcidadeemjunhode1790,ocondedeResendeteveaoportunidadedeconferirdepertoasituaçãodasfinançaseacomposiçãoétnicadacapitaldovice-reino.CentrodaAméricaPortuguesa,oporto doRio de Janeiro já era, em 1790, a grande porta de entrada de africanos noBrasil. SegundoManoloFlorentino, a população da capitania era de aproximadamente 170mil habitantes,metade dosquais escravos.2 O espaço urbano contava com uma infinidade de africanos recém-desembarcados,convivendo com escravos crioulos e ladinos que circulavam pelas ruas coloniais. As punições aosdesviosdecondutajáeramvelhasconhecidasdospretosemestiçosescravos:tronco,ferroseprisão.

A documentação produzida nas prisões do Rio de Janeiro em fins do período colonial deixatransparecerque as cadeiasnão semostravameficientespara conter asdesordens, nempôrmedoaospretos emulatos que perambulavam pelas ruas.Mas que prisões eram essas que deveriam coibir oscrimesemanteraordemdacidade?

DesdemeadosdoséculoXVIII,oImpérioportuguêssepreocupavaemconstruirumlocalondetodososcriminosos,principalmenteosescravos,ficassemdetidosparaasegurançadasociedade.DatadestaépocaaintençãodeseconstruirumacasadecorreçãonoRiodeJaneiro.Estadeveriaser

[…]bemprojetadaparasereprimirovício,promoverotrabalho,etirardaociosidadeumaespéciedelucroedeganho emutilidadedaquelesmesmosqueodesprezam.Por issosendo impossível fazer-seestaregulaçãosemhaverumedifíciopróprioqueadmitir-seasseguranças,quelhesãoprecisas(…).3

SegundoLuísdeVasconcelos,antecessordocondedeResendenocargo,umaCartaRégiade8dejulhode1769mandaraestabelecerumacasadecorreçãoesendoesta“utilíssima”,nãosabiadizerporque o projeto não fora executado. É provável que a questão financeira tenha sido o principalimpedimentoparaaconstruçãodanovaprisãoquedeveriacontarcomespaçosuficienteparaabrigarumnúmero cada vez maior de criminosos. Além disso, deveria ser capaz de promover o trabalho dos

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detentos tirando-os do ócio. Era um projeto interessante, entretanto, demandava altas somas, o que aCoroaportuguesanãopossuíanaquelemomento.

Já estava nos planos do Império português usar amão de obra escrava na construção da casa decorreçãoembenefíciodapopulaçãolivre.Noentanto,comoaexecuçãodestaobrasomenteocorrerianosegundoquarteldoséculoXIX,asautoridadescoloniaisdeveriamsecontentarcomopoucoquetinham.Antes de mergulharmos no Rio de Janeiro do século XVIII, precisamos delimitar o que estamosconsiderandoaquiespaçourbano.Nesteperíodo,acidadecontavacomquatrofreguesiasurbanas:Sé(oprimeiro núcleo de povoamento), Candelária, São José e Santa Rita. Era neste quadrilátero que sedesenvolviaacapitaldovice-reinadodoBrasil.

Noperíodode1790a1808,asprisõesdisponíveisnacidadelocalizavam-senasdiversasunidadesmilitaresespalhadaspelabaíadeGuanabara,destacando-seailhadasCobras,afortalezadeSantiagoea fortaleza de Santa Bárbara, para onde eram remetidos os prisioneiros militares. Quanto às prisõescivis,tínhamosaCadeiaPúblicaeaCadeiadoTribunaldaRelação,ambaslocalizadasnoedifíciodoSenadodaCâmara,eoCalabouço,prisãodestinadaexclusivamenteàpuniçãodeescravosfugitivosouqueeramentreguespelossenhoresparaseremcastigados.Estaúltimaprisão,localizadanafortalezadeSantiago,foicriadaem1767ealipermaneceuaté1813.

Com o aumento gradativo da cidade e de sua população – principalmente escrava – não haviaacomodações suficientes para os cativos desordeiros e criminosos detidos pelas autoridades. Asuperpopulaçãocarcerária já eraumdosgrandesproblemasenfrentadospelosgovernantes em finsdoséculoXVIII.ÉnessecontextoquechegaocondedeResende,representantedaCoroaportuguesacomumaimportantemissão:organizaracidadeeasfinanças.

Pormeio da documentaçãoproduzida neste período, é possível acompanhar o recrudescimento doembateentreopoderpúblicoeopoderprivadonocontrole socialdosescravosnacidadedoRiodeJaneiro, mas não apenas isso. Nesse momento, o domínio português deveria ser restabelecido,contrariando os interesses da elite local. Em função disso, o vice-rei, conde de Resende, foi umadministrador colonial com baixa popularidade, considerado pessoa de difícil trato por seuscontemporâneos.Entretanto,providencioumelhoriasnascondiçõessanitáriasdacidadeenailuminaçãode vários logradouros, restringiu as despesas públicas e procurou aumentar o volume das receitas doerário régio.4Maso sucesso alcançadopor estevice-rei não foi pleno.Muitos interesses estavamemjogo.Comonãopodiadeixardeser,emsetratandodeumasociedadeescravista,asmelhoriasurbanasforamrealizadasporbraçoscativos.ComacrisefinanceiraenfrentadapeloImpérioportuguês,poucossenhoresconseguiramserremuneradospelosserviçosprestadosporseusescravosaopoderpúblico.Ascadeiaseramasprincipaisfornecedorasdocontingenteutilizadonasobrasdacidade.

Semfinanciamentoestatal,foinecessáriolançarmãodapropriedadeprivada–oescravo.Oaparatorepressivovisavagarantir,alémdaordem,oprovimentodasnecessidadesestruturaiseurbanísticasdacapitaldovice-reino.Ocativotornou-sepeçafundamentaldesteprojeto.5Odesdobramentodosistemaescravistafezsurgiraescravidãourbanacomdinâmicasdistintasdaescravidãorural,etendonafigurado prisioneiro omesmo escravo, porém comoutro senhor – o poder público.Nascia, assim, o duplocativeiro.Umescravoedoissenhores–oprivadoeopúblico.6

Neste texto, pretendemos fazer um recuo até a última década do século XVIII e ver como asautoridades coloniais e metropolitanas trataram do controle da criminalidade e da administração dasprisõesnoRiodeJaneiro.

AescravidãourbanaeasprisõesnoséculoXVIII

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Adocumentação referente ao séculoXVIII noRio de Janeiro traz inúmeras situações em que ficapatente a grande dificuldade encontrada pelas autoridades coloniais em atender às necessidades devigilânciaecontroledacidade.Ograndeobstáculoaserenfrentadoeraoreduzidonúmerodehomenslivresdisponíveisparacomporosregimentosmilitares.Estadeficiênciatornavaacriminalidadeescravaalgomuitoperigosoparaaintegridadedopodermetropolitano.Em1799,ocondedeResenderealizouumcensoemqueforamregistradososseguintesnúmeros.

Tabela1PopulaçãodacidadedoRiodeJaneiro,1799BRANCOS PARDOSLIBERTOS NEGROSLIBERTOS TOTALDELIVRES ESCRAVOS POPULAÇÃOTOTAL

19.578 4.227 4.585 8.812 14.986 43.376Fonte:KARASCH,Mary.AvidadosescravosnoRiodeJaneiro,1808-1850.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2000,p.109,Tabela3.2.

MesmoqueessecensonãotenhaumaltograudeconfiabilidadedevidoaosmétodosempregadosnaaferiçãodapopulaçãodacidadedoRiodeJaneironoséculoXVIII,eledeixaclaroqueoofíciodovice-reiLuísdeVasconcelosfoiprecisoaoinformaraocondedeResendequeo“maiornúmerodosseushabitantes”secompunhade“mulatosenegros”,equeissotraziagrandesdificuldadesparaocontroleurbano.Estaincapacidadedopoderpúblicodespertavaomedonorestantedapopulaçãolivre.

Ointensoir-e-virdosescravosdeganhopelasruasduranteodiaembuscadetrabalho,oscontatostravados entre estes emarinheiros estrangeiros potencializavam o perigo de subversão da ordem.Ossenhoresurbanosnãoconseguiamcontrolarseuscativosnasruasdacidade.Acirculaçãodeescravosànoiteprovocavadesordensentreeleseasrondasdapolícia.ParamelhorexecutaroprojetodoEstadometropolitano de intensificar a fiscalização das riquezas produzidas no Atlântico Sul, o poder decontrolar os escravos urbanos foi paulatinamente tomado dos senhores pelas autoridades coloniais.Ovice-reiobservatextualmentequeé

[…] dificultosa ou impossível a perfeita harmonia do numeroso povo desta cidade […] conhecer esepararasúteisdasprejudiciaisquepeladesordemquecometemveminfeccionarmuitosquetalveznãoseguissemtãopéssimoscostumes.7

Procurandodarumarespostaàquestãodasegurança,ovice-reisugeriuaodesembargadordocrimeadivisão da cidade em quarteirões com encarregados responsáveis pelo levantamento do número devadios e a indicação de seus locais de moradia para melhor controlá-los. Não podemos deixar deconsiderarqueosescravosquerealizavamosmaisdiversostrabalhosnãoerampropriamente“vadios”mas, na visão das autoridades, eram considerados desordeiros em potencial, e, assim, deveriam sercontrolados.

Contudo, não eramapenasos vadios e escravosos autores das desordensnas ruas da cidade.Emdiversos momentos, os responsáveis pela segurança da população promoviam as agitações que tantoincomodavamocondedeResende.Oconflitodeautoridadeentreasrondaspoliciaisemilitarestambémlevava desordem para as ruas durante a noite. Na tentativa de dar uma solução ao problema, foideterminadoqueasrondaspoliciaispossuíampoderparaprendersoldadosquandoestes“merecessem”.8

Os dias de festejos na cidade também eram motivo de inquietação para as autoridades. Ascomemorações realizadas pelas inúmeras irmandades católicas em honra a seus padroeiros atraíamgrande parte da população às ruas. Nessas ocasiões, não raro aconteciam conflitos entre militares,escravos, libertos e os demais “desordeiros” em potencial. As rondas policiais tinham de se manteralertaparaconterqualquerdistúrbio.

Afaltadepoliciaisparaavigilânciadasruaspoderiatornarqualquerajuntamentodeescravosnum

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potencialataqueàordemconstituída,nãoapenasnosdiassantosoudomingos.Oentrudotalvezfosseopior dos dias. As pessoas costumavam se fantasiar, escondendo o rosto e o corpo, sendo difícilidentificarosexoe,principalmente,acordocriminoso.Ochapéudesabadotambémeraumaformadesemanter no anonimato.Qualquer indivíduo que fosse pego pelas rondas nesta circunstância deveria serimediatamente detido e enviado para a cadeia. Não só nas ruas as desordens aconteciam. As casasconsideradas“suspeitas”tambémcontavamcomumavigilânciaespecialnosfestejosdemomo.Ovice-rei ordenou que as rondas “subissem as escadas” dos sobrados para averiguar qualquer movimentosuspeito. Havia também a preocupação de que as próprias rondas acabassem por participar dasdesordensnesseperíodo.Paraevitartalsituação,eranecessárioqueosoficiaisescolhessembemosseuscomandados.9

Todo o plano de vigilância e controle social realizado pelas autoridades coloniais deveria contarcom uma instituição fundamental para o seu êxito: as prisões. Se a situação das ruas se apresentavatumultuadaemfinsdoséculoXVIII,asenxoviasdacidadenãoestavamemmelhorescondições.AssimcomoasfinançasimperiaisnãoacompanharamocrescimentodoRiodeJaneiro,suasprisõesaindasemantinhamnosmodestospadrõesestabelecidosnoiníciodacolonizaçãoportuguesanoBrasil.

EmfinsdoséculoXVIII,oRiodeJaneirocontavacomtrêsprisõescivisdereduzidacapacidade:CadeiaPública,CadeiadoTribunaldaRelaçãoeCalabouço.Emlinhasgerais,osistemaprisionaldacapital do vice-reinado doBrasil era caracterizado pela ausência de acomodações suficientes para oabrigo de tantos detidos, altas taxas de enfermidade e mortalidade devido às precárias condiçõessanitárias e elevados índices de fuga, dadas as ineficientes estruturas de segurança. As pesquisasindicaramquesomenteoCalabouçoeraumaprisãodestinadaexclusivamenteaosescravos.Orestantedas enxovias recebiam livres e cativos que conviviam nomesmo espaço, obrigando as autoridades amisturar nas mesmas celas apertadas e abafadas marinheiros estrangeiros e escravos, autores depequenosdelitosecriminososdemaiorpericulosidade.10

Oscontatosentre criminososedesordeiros realizadosnas ruasdacidadeerampotencializadosnointeriordasprisões.Controlarestesespaçoseraumatarefaquenãoestavaaoalcancedasautoridadescoloniais.Emagostode1791,houveumafuganaCadeiadaRelação.Segundoovice-rei,oscondenadosàforcafizeramumburaconaparedeesaíram.Estefatosóocorreuporque“atropaque[fazia]aguardada cadeia não lhe [fizera] uma oposição tão rigorosa”. Ele assumia a responsabilidade: “é minhaobrigação aplicar todos osmeios possíveis, e sem perda de tempo, para que a cadeia fique em umasegurança tal que as diabólicas ideias dos mesmos presos não sejam bastantes para novamente aarruinarem”.11

Essa passividade dos guardas não era apenas incompetência. Para o conde de Resende, a “totalignorância”dosvigilantesquantoàs“suasobrigações”,aliadaaos“vícios”adquiridospelaconvivênciacom os presos os tornavam “tão indignos” quanto os criminosos.12 Manter a vigilância dos presosacabava por corromper os guardas que, além de facilitarem as fugas, muitas vezes participavam denegociaçõesilícitasentreosprisioneiroseoshabitantesdacidade.

Emoutubrode1791,ovice-reiemitiuumaordemaodesembargadorouvidorgeraldocrimeparaquesemantivesse alerta em relaçãoàspessoasque se aproximavamdasgradesda cadeiapara conversarcomosdetentos, jáquealgumas introduziamnascelas furtos,“comoregularmentese temprovadonosexames feitos nas prisões”. Aqueles que fossem pegos pelos soldados deveriam ser presos eencaminhadosàguardaprincipal.13

Estáclaroqueessaspessoasquemantinhamcontatoscomosprisioneirossevaliamdaconivênciadosguardas.Entretanto,asprisõespodiamconteralgomuitomaisgravedoqueoprodutodefurtosouarmas. Em agosto de 1791, o conde de Resende suspeitou dos requerimentos de perdão feitos pelospresos:

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Remeto[…]orequerimentojuntoquemefezJoãoJosédaSilvaAtaydepresonascadeiasdestaRelaçãoecomooAlvarádeperdãoemaispapéisinclusosnomesmorequerimentonãomeparecemverdadeirosepodemserfabricadosnamesmacadeia,V.Mce.mandaráprocederaosexamesemaisdiligênciasqueemtaisprazossepraticamdando-secontadaresultadelas.14

Como podemos constatar, as prisões do Rio de Janeiro no século XVIII guardavam diversossegredos. Muitos deles não poderão ser desvendados devido às grandes lacunas encontradas nadocumentação. Uma vez preso, dificilmente conseguia-se escapar. As mudanças no controle dacriminalidade – escrava e livre – empreendidas pelo vice-rei conde de Resende na década de 1790provocaramumaumentonapopulaçãocarceráriadacidade.Oproblemaforatransferidodasruasparaasprisões.

Vários fatores poderiam levar escravos e livres aos cárceres. A lentidão da Justiça poderiatransformar esta estada nasmasmorras coloniais em algo quase perpétuo.As precárias condições dascelas levavamgrandepartedospresosàmorte.Alémdamorte física–umasentença irrevogável–,aprisãodosescravostambémrepresentavaa“morteeconômica”paraossenhores.Perdendodiariamenteos jornais auferidos por seus escravos, os senhores ainda tinham de conviver com o uso de suapropriedadepelopoderpúblico,semnenhumacompensaçãoporisso.

Em abril de 1797, o conde deResende estava reformando diversas fortalezas na cidade.O climabelicosopeloqualpassavaaEuropaindicavaqueinvasõesestrangeiraspoderiamocorrer.Emcartaaotenente-coronel Luiz Pimenta de Carvalho, o vice-rei determinou que, após a utilização dos escravospresosnasobrasporeleprojetadas,estes“[fossem]soltoseentreguesaseussenhoreseasemelhançadisto [ficariam] desobrigados todos os homens do país que por violência ou por necessidade fossemchamadosparatrabalharemnasmesmasobras[…]”.15Ousodamãodeobraescravanasobrasurbanasvai,ao longodotempo,provocarumembatemaisdiretoentreopoderpúblicoeopodersenhorialnacidadedoRiodeJaneiro.

OutroimportanteaspectodocotidianodascadeiasdoRiodeJaneironoséculoXVIIIéaalimentaçãodos presos. O fornecimento de comida era realizado pela Santa Casa deMisericórdia. A instituiçãocontava coma ajudados irmãosna coleta de alimentos e roupas.SegundoLuizEdmundo, opresonoregimecolonialeramantidopelafamília,porseussenhoresouporamigos.Quemnãocontavacomessaajuda deveria “esmolar para nãomorrer de fome”.16ACadeiaPública, localizada no andar térreo doSenadodaCâmara,tinhasuasgradesvoltadaspararua.Aterrívelsituaçãodosprisioneiroseraexpostaaos transeuntes.Sujos,maltrapilhose famintos–estaeraa imagemdospresosquenãocontavamcommaisninguémanãoserosirmãosdaMisericórdia.

Entretanto,encontramosindíciosdequehaviaoutrosmeiosparaodetentoconseguiralimentosemterde,necessariamente,contarcomacaridadealheia.Aspretas-minasquitandeiras,queandavampelasruasoferecendoseusprodutos,tinhamcomoumdospontosdevendaacalçadadaCadeiaPública.Em1776,asquitandeirasentraramcomumarepresentaçãonoSenadodaCâmaraparaquenãofossemdespejadasde seu local de trabalho.Apósuma aliança com senadores favoráveis à permanência do comércio dequitutes no local, as tais pretas-minas conseguirammanter o direito de ali trabalharem.Este episódioindica que os prisioneiros poderiam ter acesso a uma alimentação extra, dependendo somente danegociaçãoqueestabelecessemcomasquitandeirase,éclaro,docontatoquealgunsdelespoderiamterestabelecidocomestasmulheresantesdeiremparaasmasmorrasdaCadeiaPública.17

Alémdedetentose sentinelas, asprisõescoloniais contavamaindacomumoutropersonagemquepodemoschamar–apósoquadromontadoatéaqui–deadministradordocaos:ocarcereiro.Eraumaprofissão arriscada e onerosa para os postulantes ao cargo. Pelas fontes pesquisadas, não podemosdefinir um perfil exato dos carcereiros que prestavam serviços nasmasmorras coloniais. Talvez esta

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dificuldadeseapresentejustamenteporquenãohaviaumperfildefinido.Saltaaosolhosograndegraudeimprovisoparaaescolhadessesfuncionários,tãofundamentaisparaocontroledacriminalidade,quantoosdestacamentosmilitaresquecirculavampelasruasdoRiodeJaneiro.

Levantamos registrosdealgunscarcereirospormeiodas inúmeras reclamações feitasporestesaoSenadodaCâmara,órgãoresponsávelpelagestãodasprisõescivisdacidade.Aprincipalreclamaçãoeraafaltadepagamentoeopretensocaráterprovisóriodoexercíciodafunçãoquesetornavadefinitivo,poisasautoridadesnãodestacavamoutroscarcereirosparaassumiraadministraçãodascadeias.Temosumahistóriaexemplar:trata-sedocasodeIgnácioJosédeBarros,escrivãodomeirinhodaRelaçãodoRiodeJaneiro.

Desde1790,pelomenos,IgnácioserviucomocarcereirointerinodiversasvezesduranteaausênciadeAntôniodaSilveira,carcereirooficialdaCadeiadaRelação.Em1792,Ignácio,cansadodetrabalhare não receber, entra com processo contra o Senado daCâmara. Segundo consta na documentação, oscarcereirosrecebiam600réispordia.AlentidãodaJustiçaeraparatodos,inclusiveparaosquenelatrabalhavam,comopoderemosveraseguir.18

OSenadodaCâmaranãotinharecursosparasaldarsuasdívidas,principalmentecomaspessoasqueexerciamocargodecarcereiro.Éinteressanteacompanhardepertoesteprocesso,pois,pormeiodele,podemosmergulharnasuarotinadetrabalho.Precariedadeéapalavraquemelhordefineasituaçãodascadeias da capital do vice-reinado do Brasil. As declarações do reclamante nos oferecem pequenoslampejosdaspéssimascondiçõesdetrabalhodessesprofissionais.

TodaarotinadascadeiasadministradaspeloSenadodaCâmaraeraregistradadiariamenteemlivrospelos carcereiros. Infelizmente estes livros se perderam, mas temos a reprodução de alguns dessesmomentosnoprocessomovidopeloescrivãodomeirinhoapartirde1790:

[…]fugadopresoCustódiodaSilvaReisemdezoitodemarçode1788.

FugadeFranciscoPintoeoutrosnodianovedemarçode1790.

Entrou a servir o carcereiro Ignácio José de Barros, por ausência que fez o Carcereiro Antônio daSilveiranaocasiãodafugidaquefizeramquatropresosdaprisãodospardosnanoitedehoje,oitodeagostode1791.19

Asfugaseramconstantes.Muitasvezescontavamcomacolaboraçãodosguardasresponsáveispelospresos.Alémdisso,ofinaldoúltimotrechocitadoporIgnácioemseuprocessonosintrigou:a“prisãodospardos”.Estedestaquedadopelocarcereirointerinoemsuasanotaçõesfez-nossuspeitarquehaviauma certa organização étnica no interior daCadeia daRelação. Entretanto, não encontramos nenhumaoutrareferênciadessetipoparaoséculoXVIII.

Pela divisão estabelecida entre as carceragens da cidade, a Cadeia de Relação seria o espaçodestinadoaossentenciadosdaJustiça,fossemeleslivres,escravosoulibertos.Pelosnúmerosapontadosnatabelapopulacional,podemosperceberquehaviaumnúmerorepresentativodepardosepretoslivresnacidadedoRiodeJaneiro,oquetalvezjustificasseadivisãonascadeiasdelivresbrancos,pardosepretos.Éumahipóteseque se tornoudifícil de comprovar empiricamente.No entanto, o indíciodadopelocarcereiroemseuprocessonoslevaacrerque,emalgummomentoaolongodoperíodocolonial,asautoridadescarceráriassepreocuparamemdividirascelasetnicamente.

Aindaperscrutandooprocesso impetradopor IgnácioJosédeBarroscontraoSenadodaCâmara,vemosasdificuldades financeiras sofridaspelos carcereiros.Asprisões contavamcomalgumascelasespeciaisparaquempudessepagarporalgumconforto–seéquepodemosassimchamá-lo–nointerior

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dascadeiascoloniais.Esteslocaissechamavamsaladoscarcereiros.Eracomarendadessassalasqueosadministradoresdocaosmantinhamfuncionando,aindaqueprecariamente,asprisõesdacidade.AoterseuprocessojulgadoprocedentepelodesembargadordaRelação,Ignáciopensouqueveriaacordodinheiro.Ledoengano.

AjustificativadadapelaprocuradoriadoSenadodaCâmaraparanãopagaradívidabaseou-senabaixa arrecadação da instituição naquelemomento. Ignácio José contra-argumentou, pois sabia que asobraspúblicaseramadministradasporBelisárioAntônio,equeesterecebiaseussaláriosemdia.Assimsendo,oadministradordasobrasestariaem“iguaiscircunstânciasqueosuplicante”,umavezqueeste“oadministraesemempregoemumcargodaadministração”.

Pelo que podemos perceber, Ignácio José também esteve envolvido na administração das obraspúblicas. Isto vem confirmar o uso indiscriminado feito pelo poder público dos encarcerados, fossemeles livres ou escravos. Como a desculpa do orçamento apertado não foi aceita, os procuradores doSenado se viram obrigados a levantar outros argumentos, entre eles, o de que o apelante fazia“diligências de citações e penhoras”, recebendo “salários” por estes serviços.Alémdisso, nãopodia“considerar-se prejudicado” enquanto “lucrava” com os “emolumentos” que costumavam receber oscarcereirosporabrigarememcelasespeciaisosdetentosquepodiampagarporisso.20

Os responsáveis pelo financiamento da segurança da cidade não se preocupavam em pagar oscarcereirosporquesabiamqueestesconseguiamauferiralgumlucrocomaadministraçãodascadeias.Aformasempre interinapelaqualeraexercidaafunçãodecarcereiro levavaossenadoresdaCâmaraasuscitar a possibilidade de estes profissionais terem outra fonte de renda. Era exatamente o caso doapelante.IgnácioeraescrivãodomeirinhodaRelação,muitoprovavelmentecargoexercidonopróprioedifíciodaRelaçãoedoSenadodaCâmara.Todosospassosdelepoderiamseracompanhadospelosprocuradoresempenhadosemlivrarainstituiçãodessapesadadespesa.

AalegaçãodequeIgnácioJoséteriaoutrasfontesderendanãofoisuficienteparaaJustiçadarganhodecausaaoSenadodaCâmara.Asentençadefinitivaemfavordocarcereirofoidecretadaem1794,doisanos depois do início do processo. Foi sugerido peloTribunal daRelação que a instituição leiloassealgunsimóveisparaquitaradívidacomoapelante.

AindaencontramosIgnácioJosédeBarrosàsvoltascomofícioscobrandooSenadodaCâmaraporvoltade1800, ou seja, durantemaisdeumadécadao escrivãodomeirinhodaRelação tevede lutarmuitoparaverrecompensadooseutrabalho.ParecenosquehaviaumacertaobrigatoriedadeemIgnácioJoséassumirinterinamenteascarceragensdaCadeiadaRelação,istoporque,apósasentença,eleaindasubstituiu diversas vezes os carcereirosAntônio da Silveira eAntônio Francisco daConceição. EsteúltimotambémtevedeseindisporcomoSenadodaCâmaradiversasvezesparareceberseussalários.Emoutubrode1799,AntônioFranciscocobravasaláriosatrasadosdesde1797.

Durante os dez anos em que ficou à frente do vice-reinado do Brasil, o conde de Resende nãoconseguiu diminuir o comércio clandestino entre colonos e estrangeiros. Apesar de promover obraspúblicas importantes e reorganizar o controle da criminalidade, a autoridade colonial não conseguiuresolver o problema das prisões. Elas passaram a última década do século XVIII abarrotadas. Éimportante ressaltarqueascadeiasnãoeramumapreocupaçãometropolitana.SegundoasOrdenaçõesFilipinas,asprisõeseramdepósitosprovisóriosondeoscriminososdeveriamaguardarasentença,oquegeralmentesetraduziaemsuplícios,mortenaforcaoudegredoparalugareslongínquosdoImpérioluso.

AsOrdenações Filipinas se constituíram na principal referência legal a partir de 1603, quandoentrouemvigor,estendendo-seaté1830,quando,jáindependente,oBrasilganhouseuprimeiroCódigoCriminal.SegundoJoãoLuizRibeiro,as“duraspenasdasOrdenações[…],aomenosdesdeoreinadodeMariaI[estavam],sendoaplicadascomextremaparcimônia,sobinspiraçãodecríticailuminista”.21Isso significava que, dependendoda qualidade do sentenciado, este,mesmo tendo cometido umcrime

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paraoqualsepreviaapenademorte,namaiorpartedasvezesconseguiaescapar,ficandoanosafiopreso. Assim, as cadeias – que haviam sido concebidas para terem caráter provisório – ficaramabarrotadasportodooImpério.22

OCódigoFilipinodividia-se emcinco livros, cadaum tratandode assuntos específicos.Paranósinteressa o Livro V,Direito criminal e seu respectivo processo e penalidades. Vale destacar que aquestãodocontroleescravo–principalmentenosnúcleosurbanos– jáeraobservadanoséculoXVII,devido a uma alteração ocorrida no texto legal. Nas Ordenações Manuelinas (1521-1603), as leisreferentesaosescravosencontram-senoLivroIV,queversavasobreoDireitocivilsubstantivo,direitodaspessoasecoisassobopontodevistacivilecomercial.Estamudançademonstraclaramentequeaquestãoescravajánãoestavamaissubmetidaaodomíniocomercialesimaocontrolepunitivo.

No Império colonial português, o corpus legislativo era basicamente composto pelas ordenações,pelas leis extravagantes e pelas decisões reais tomadas juntamente com ministros e conselheiros. Aprincípio,a legislaçãosobreosafricanoseseusdescendentesmostra-se,sobretudo,cuidadosaemnãointerferirnopodersenhorialenodireitodepropriedadedosenhorsobreoseuescravo.SegundoSilviaLara, a intenção era cortar o excesso, sem entretanto afetar o poder dos senhores nem darmargem à“soltura dos escravos”.23 Com o decorrer do tempo, o controle político sobre a colônia fez com quealgumasmedidascomstatusdeleiinterferissemnarelaçãoentresenhoreescravo.

OclimadeinstabilidadesocialdoRiodeJaneiroemfinsdoséculoXVIII,comapresençadeagentesqueaqualquermomentopoderiamatacaraordemconstituída, transformavaaviolênciarepressivadasautoridades em algo natural.24 O cumprimento público das penas impostas a qualquer criminoso –principalmenteoescravo–faziapartedocenáriourbanocolonial.Comoexemplo,temosopelourinho,velhoconhecidodoscativos.Comexceçãodosviajantesestrangeiros,ninguémseimpressionavaaovernegros sendoaçoitados–muitasvezesamandode seus senhores–naspraças,uma fileiradecativosacorrentadoscarregandoáguaparaasrepartiçõespúblicasouaindatrabalhandonasobraspúblicas.

OutraformadeviolênciainstitucionalizadapelaJustiçaeraopatíbulo.Aexecuçãodapenademorteeraencaradacomoumgrandeespetáculo.Puniçãodidáticaparamostraratodos–livreseescravos–queopoderdaCoroaportuguesasefaziapresente.25

Asnoçõesdehumanidadeejustiça,crimeeviolênciasãohistóricas,variamnotempo,dependemdeações e representações construídas por agentes históricos em movimento, que as fazem e refazemcotidianamente em sua vida material, em suas relações e nas experiências e consciência destasrelações.26 Tomando isso como referência, entende-se que a violência das penas não tinha o mesmoimpactonaquelasociedadecomoteriaatualmente.

Com o estabelecimento do Tribunal da Relação no Rio de Janeiro em 1752, a boa sociedade docentro sul da colônia pôde contar com toda a estrutura penal e judiciária para o controle dacriminalidade. Em contrapartida, a intromissão de representantes reais na relação senhor – escravoprovocou alterações noCódigo Filipino, sendo este acrescido de outras determinações que contavamcomasinterpretaçõesecomosjogospolíticosdaadministraçãoedaJustiçametropolitana.

Emumofíciode1797,aindasoboreinadodeD.MariaI,estapediuaovice-reiqueprovidenciasseuma rápida solução para os inúmeros processos que se encontravam, havia anos, esperando por umasentença.ArainhaautorizouqueoutrosministrosqueestivessemservindonacidadeounacapitaniadoRiodeJaneiro,aindaquenãofossemdesembargadores,votassemomaisbrevepossívelassentençasdoscondenadosparaquesepudessecomutarsuapenas.27

Muitasvezeseranecessário–paraobomprovimentodaordem–executararepressãoeutilizarosescravos prisioneiros nas obras públicas sem que estes fossem a julgamento.Os desembargadores daRelaçãosabiamquequalquerprocessoqueentrassenoTribunalpoderialevaranosatéseranalisado,oqueacarretariaprisõescheiasdecativos,libertosehomenslivrespobres,semserventiaalgumaparao

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Estado.Entretanto,estasituaçãonãodurariamuitotempo.Por não conseguir deter principalmente o contrabando que degradava a dominação portuguesa no

Brasil,ocondedeResendeédestituídodocargodevice-rei.Emseulugar,éconvocadopeloprínciperegenteD.João,emmarçode1800,oentãogovernadordaBahia,D.FernandoJosédePortugal.

Atarefadegovernaramaisricaeimportantecolônialusanãopoderiairparaasmãosdequalquerpessoa.D. Fernando José já havia servido à Coroa no Tribunal da Relação de Lisboa e na Casa deSuplicação.Entre1788e1801,foigovernadordaBahia,tendoobtidoêxitoemsuaadministração.Ficounocargodevice-reiaté1806.28

ÉcuriosonotarquenadocumentaçãopesquisadanãoencontramosmuitasfontessobreasprisõesnoperíodoemqueD.FernandoJoséesteveà frentedovice-reinado.29Deummodogeral,oquemaissedestacounoseugovernofoiaascensãodePauloFernandesVianaaopostodedesembargadorouvidorgeral do crime em novembro de 1801. Paulo Viana se encarregaria do controle da criminalidade nacidadedoRiodeJaneiroduranteosvinteanosseguintes.30

No período de 1801 a 1806, há alguns registros de prisioneiros enviados de diversas partes dacapitania do Rio de Janeiro para a cidade. Geralmente, vinham por terem praticado crimes maisofensivos, taiscomoataquea senhorese feitores,homicídio,participaçãoemquilombos,entreoutros.Mesmo em situação caótica, as cadeias da capital ainda eram mais seguras do que as existentes nointerior.31

Recebendoprisioneirosdediversaspartes,odesembargadordocrime teriadeencontrarumacelapara o detento, preparar o processo e levá-lo a julgamento. Trâmites legais que demandavam tempo.Enquanto isso,outroscriminososdacidadeedeforadeladavamentradatodososdiasnascadeias.Énessarotinadeprisõesecontroledaordemdacidadequesechegaaoanode1806,quandoassumeovice-reinadoD.MarcosdeNoronhaeBrito,ocondedosArcos.

Como ocorrera com D. Fernando José de Portugal, o conde dos Arcos primeiro administrou acapitaniadaBahia,tendoêxitonassuasiniciativasliberaisemfavordocomérciolocal.32EratudooqueoImpérioportuguêsprecisavaquesefizessepeloRiodeJaneiro.Noentanto,aconjunturapolíticanoinício do século XIX diferia bastante daquela da última década do século XVIII. Havia uma forteapreensãonos reinos absolutistas devido aos sucessos da campanhadeNapoleãoBonaparte noVelhoContinenteedasindependênciasocorridasnavizinhaAméricaespanhola.

AcrisedodomínioportuguêsnoBrasiljáeraumfato.Oscontrabandos,ocrescentepoderdaseliteslocais envolvidas com o comércio e o número cada vezmaior de escravos na cidade não ofereciammuitasopçõesparaonovovice-rei.PercebemosnadocumentaçãoumaintensatrocadeofíciosentreoConselho Ultramarino e o conde dos Arcos solicitando que este preparasse a cidade para possíveisataquesestrangeiros.

Avisado da transferência da família real de Lisboa para o Brasil, o conde dos Arcos organizouminimamenteoRiodeJaneirocomosparcosrecursosquepossuía.Chegamosaoanode1808:oEstadometropolitanoseestabeleceefetivamentenacidade.Inicia-seumanovaetapanaexploraçãodamãodeobra cativa pelo poder público, e as prisões cumpririam importante papel na consolidação do duplocativeiro.

AsprisõesnaCortejoanina,1808–1821

AchegadadaCorteportuguesaaoRiodeJaneirodesalojoudiversoshabitantes.Suascasasserviramdeaposentosparaagrandecomitivalusitana.OpaláciodocondedeBobadela–atualPaçoImperial–foi usado para acomodar D. João e sua família, mas não foi suficiente. Foi necessário utilizar as

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construçõespróximascomooconventodoCarmoeaCasadaCâmara.Durantealgumtempo,osfradesdividiramsuasacomodaçõescominfanteseinfantas.OssenadoresdaCâmarativeramdeprocuraroutrolocalparasuasreuniões.Noentanto,nãofoiapenasoSenadoqueficousemlugar.OspresosdaCadeiaPública,queselocalizavanoandartérreodesteedifício,tambémtiveramdeserremovidos.33

As fortalezas já estavam com asmasmorras cheias de presosmilitares. A ilha das Cobras, nesteperíodo, era um centro de detenção de reduzida capacidade, para os presos condenados a trabalhosforçados.OCalabouçodosescravos, localizadonoFortedeSantiago,estavacoma lotaçãoesgotada.Aindaassim,continuavaarecebermuitoscativosparacorreção.AsoluçãoencontradafoiautilizaçãodeumespaçopertencenteàIgreja.Tratava-sedoAljube,prisãoeclesiástica,localizadanosopédomorrodaConceição.Coma iminente chegada da família real, o conde dosArcos proveu a transferência detodos os presos daCadeia Pública para oAljube. Iniciava-se, assim, uma nova etapa para o sistemaprisionaldoRiodeJaneiro.

Entretanto, as punições continuaram asmesmas dos séculos anteriores: açoites, degredo, trabalhosforçados com correntes, baraço e pregão, pena de morte ou simplesmente detenção. Estes eram ossuplíciossofridosporescravos,libertosehomenslivrespobresnaCortejoanina.Nessemomento,jásediscutiamnaEuropaaeliminaçãodaspenasdirigidasaocorpodoscondenadoseasalternativasaessemodelo. No Brasil, porém, houve uma intensificação das penas corporais, especialmente sobre osescravos.34

Qualquer que fosse a punição dada aos criminosos e desordeiros naCorte, a sua passagem pelascadeias seria certa. Os condenados ao degredo aguardavam a viagem nas prisões. Os escravos querecebiamcastigosamandodossenhorespassavamumatemporadanoCalabouço,assimcomoosfugidoscapturadosnosquilombosecativoscondenadosatrabalhosforçados.Todosossentenciados,inclusiveoscondenadosàmorteeosprisioneirosdetidospelosmaisvariadoscrimes,ficariam,apartirde1808,naprisãodoAljube.

Por serumacadeiaqueabrigavadetentosoriundosda IntendênciaGeraldePolíciadaCorte edaCasadeSuplicação,oAljubesetransformounomaiorenopiorcentrodedetençãodoRiodeJaneironasduasprimeirasdécadasdoséculoXIX.

Aljube:“sentinadetodososvícios”.

Asdescrições feitasporcontemporâneosdaprisãodoAljubesãoaspiorespossíveis.Eraescura,úmidaepequenaparaonúmerodedetentosqueabrigava.SegundoMoreiradeAzevedo,oAljube“nãoeraumacadeia,eraumantro;nãoeraumcárcere,eraumsepulcro”.Contavacomnovecelasdistribuídasem três andares, sendo um deles ao nível da rua. Havia ainda as celas femininas e as enfermariasdivididas por sexo. Os leitos das enfermarias eram fatais aos doentes. Poucos recuperavam a saúde,“quasetodosenvenenadospeloarinsalubreepestíferodaenfermariapassavamdoleitodadoençaparaoleitodamorte”.Durantemaisdequarentaanos,oAljubeserviudedepósitodecriminosos,escravoselivres, libertos emilitares, homens emulheres. “Havia confusão de crimes, de idades, de sexos e decondições.”35

Nadécada de 1830, a prisão contava comummédico para tratar de todos os detentos.Consta norelatórioqueasinstalaçõestinhamcapacidadeparaapenasvintepessoas,masosvereadorescontarammais de 390! Talvez as autoridades, impressionadas com o que viram, tenham superdimensionado onúmerodepresos.Contudo,haviamuitoqueoAljubeultrapassarasuacapacidadedeabrigarpessoas.Como a situação chegou a esse ponto?Como foi conduzido o sistema prisional na cidade doRio deJaneiroapartirde1808?

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Muitoantesdadécadade1830,oAljube jáseencontravaemumestadodeplorável.OSenadodaCâmara,sobrecarregadocomainstalaçãodaCorte,tevesuasrendasdivididascomaIntendênciaGeralde Polícia. No início do século XIX, o Império português estava às voltas com as despesas datransmigraçãodafamíliarealparaoBrasiledaguerracomaFrançadeNapoleãoBonaparte.Ocapitalera escasso. Em julho de 1812, o carcereiro doAljube, José da FonsecaRamos, enviou um ofício aAntonioFelipeSoaresdeAndrade,corregedordocrime,informandodavistoriarealizadanaprisãoporalguns pedreiros e carpinteiros amando do Senado da Câmara. Depois do relatório produzido pelosprofissionais,ocarcereirodescreveuoquesepassavanointeriordoAljube

Ascalamidadesquesofremosinfelizespresoseoutrosmuitosmaioresquelhesameaçam,meobrigamadarparteaV.S.aqueascadeiasestãonomaisdeplorávelestado,muitasdesuasparedesforadoprumo,seusmadeiramentostodospodres,seustetosemtotalruínademodoquetantochovedentrocomofora,o que aumenta cada diamais sua destruição por cuja causa a custódia é cada diamais dificultosa etemendoficarnaresponsabilidadedealgumcasorepentino,quequalquerdiapodeacontecer,tenhodadoparterepetidasvezesejásefezumavistoriaqueconfirmouistotudo,osMestresqueemalgumaspartesameaçavamumpróximoprincípioaqueseagregaograndenúmerodepresosquedetodasaspartesconcorrem,queétanto,queàsvezesdormemporbaixodastarimbasemumchãoqueminaáguatodooano,oquelhestemocasionadodoençasàsvezesmortais.Alémdissoascadeiasnãotêmsegredos,[…].36

Deixamos o carcereiro – funcionário que convivia de perto coma realidade das prisões – relatartodas asmazelas enfrentadas por ele e principalmente pelos presos. A transformação do Tribunal daRelaçãodoRiodeJaneiroemCasadeSuplicaçãodoreinofezcomqueoAljubepassasseaabrigarumgrandenúmerodedetentosoriundosdeoutraspartesdoImpérioportuguês.Semnenhumplanejamentoemuitomenoscapitalparainvestireminfraestrutura,aprisãoquejáerapequenaparaatenderaonúmerodepresosdaCorteeseusarredoresfoiobrigadaareceberosindiciadosecondenadospelaJustiçadetodooImpério.Alémdisso,aindarecebiaospresosamandodointendentedepolíciaealgunsmilitaresqueacabavamindopararnacadeia.

Como se não bastasse a superlotação, o espaço reduzido para abrigar tantos detentos estavaameaçado de “ruína”. A geografia do Aljube não ajudava. Encravado numa pedra e submetido àsaltíssimastemperaturasdoverão,nãotemosdúvidadequeaquiloera,defato,overdadeiroinfernonaTerra.ApartirdasqueixasdocarcereirodoAljube,váriosofíciosforamenviadospelocorregedordocrimeAntonioFelipeSoaresdeAndradeaoprínciperegente,relatandooestadoemqueseencontravaoprincipal centrodedetençãodaCorte.Diariamente a cadeia era alimentada coma chegadadepresosoriundosdediversascapitaniasdoBrasil,dascomarcasdeLisboaePorto, alémdos sentenciadosaodegredo.

OsrelatospresentesnasfontesmontamumcenárioaterradordaprisãodoAljubenaprimeiradécadadoséculoXIX.Noentanto,apenas reclamarnãobastava,eAntonioFelipeSoares tambémapresentoualgumassoluções.Aprincipalseriaumaamplacomutaçãodepenas,poisajudariaa“reprimirovícioeocrimeabenefíciodosmiseráveiscriminosos”,aliviando,assim,asuperlotação.

O corregedor do crime sabia que os presos encaminhados ao Aljube pela Intendência Geral dePolícia daCorte não poderiam ser liberados, pois isto dependeria da aprovação de Paulo FernandesViana.Paraevitarumconfrontocomointendente,AntonioFelipesugeriuqueapenasosjásentenciadospelaJustiçativessemaspenascomutadasparasentençasdetrabalhosforçadosoudedegredo,excluindoos criminosos “mais atrozes”.37 Os que já haviam recebido a sentença de “morte civil” ou degredodeveriamserretiradosdoAljubeeencarceradosnasfortalezasondetrabalhariamatéseguiremosseus

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destinos.Ocorregedorachavaque,aotornarosdegredadosmais“robustos”,estesserviriammelhornospresídiosparaondeforamrealmentecondenados.PresosnoAljubeessesdegredadosseriam“inúteisasipróprioseaoEstado”.

A ideia do trabalho como uma das possíveis saídas para a regeneração dos presos parece estarpresentenoargumentodocorregedordocrimedaCorte,masháoutrasleiturasparaessesofícios.Umadelas seria a necessidade do uso damão de obra de escravos e degredados pelo Estado. Se apenasficassem presos no Aljube, esperando o cumprimento de suas sentenças, ou definhando devido àcalamitosacondiçãoaqueestavamsubmetidos,estesagentesnãocontribuiriamcomoesforçofeitopelasautoridadesnaconstruçãodanovacapitaldoImpério.38

Viverprivadodeliberdade,emqualquerépoca,émuitodifícil.NascondiçõesdoAljubenoséculoXIX,então,eramortal.Odesgastedocorpodosdetentosera irreparável.Oquedizerdaalmadessescondenados?Alimentarocorponaprisãoeraumaluta.Acomidaeraescassa.Comoalimentaraalmanessascondições?

Éda natureza do ser humano se agarrar à fé e à religiosidade todavez que enfrenta uma situaçãoadversa em sua vida. Com os prisioneiros do Aljube não foi diferente. Estes homens e mulheresbuscavamnoapoio religiosoa forçaparaenfrentaras terríveisprovaçõesdocárcereequemsabeatéescapar com vida daquele sufocante lugar. Antes de 1808, quando a prisão da Relação estavaestabelecida no edifício do Senado daCâmara, os prisioneiros contavam com a assistência oferecidapelaSantaCasadeMisericórdiaepelosreligiososdoconventodeSantoAntônio.ApósachegadadaCorte,tudomudou.39

OspresosforamtransferidosparaoAljube,entãoprisãoeclesiástica,eque,comotal,contavacomumacapelaemsuasdependênciasparaoatendimentoespiritualdosreligiosostransgressores.Aquestãoé que ao longo do ano de 1808 o volume de prisioneiros remetidos ao Aljube aumentouconsideravelmente.Onde prender tantas pessoas? Em janeiro de 1809, já não haviamais capela nemmissas eram realizadas. Poderíamos supor que os criminosos não sentiriam falta da religião, mas asdificuldadeserammuitas,eoúnicoconfortopossívelnaquelelugareraoespiritual.

Apósmuitasreclamaçõesdosprisioneiros,ocarcereiroJosédaFonsecaRamosredigiuumpetiçãoaocorregedordocrime:

[…]quepornãohavernas[cadeias]lugaremquedecentementeseestabeleçaoOratóriotãonecessárioparaacelebraçãodoSantoSacrifíciodaMissanosdiasdepreceitoeadministraçãodosSacramentosdaPenitência e Eucaristia de que estão a tanto tempo privados osmiseráveis presos que não cessão deexigirumaprovidência.40

Ouvirtodososdiasoslamentosdospresostocouocoraçãodocarcereiroqueseempenhouemlevarospreceitosreligiososàquelesmoribundos.Aantigacapelatinhasidotransformadaemcela.Outrolugarprecisavaserdisponibilizadoparaoatendimentoespiritual.JosédaFonsecasabiaquesóseriapossívelo atendimento das súplicas se houvesse um local dentro do Aljube que pudesse ser utilizado comocapela. Por isso sugeriu em sua petição que a casa onde residiam os reverendos vigários gerais dobispadono tempo emqueoAljube era apenas umaprisão eclesiástica fosse transformada emcapela.Estacasaaindaerautilizadapelosreligiososparaaudiências.Nadaimpediriaquesetransformasseemoratórioprovisório.Asoluçãodocasoeraurgente,poisaQuaresmaseaproximavae,comopartedospreceitos, os detentos deveriam ser ouvidos emconfissão.O carcereiro temiaqueos presos ficassemsemreceberesteatendimentoreligioso,comoaconteceranoanoanterior.

“Movido por um fervor católico e religioso”, o carcereiro fazia aquela súplica. Mas não estavasozinho.Anexado ao documento redigido por José daFonsecaRamos estava um requerimento escrito

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pelosprópriospresos,acompanhadoporumabaixo-assinado!Assimdiziaodocumento:

Nós, abaixo assinados presos nas Cadeias desta Corte, declaramos debaixo de juramento dos SantosEvangelhos,quedepoisquefomospassadosparaestasmesmasCadeias,nãotivemosmaisafortunadeassistirmosaoSantoSacrifíciodaMissa […]eEucaristiapornãose terestabelecidooratórioparaacelebração dos mesmos Santos Ofícios por falta de lugar o que tudo resulta em um consideráveldetrimentodasnossasconsciências,poiscomoCatólicosRomanosquesomos,desejamoscumprircomasobrigaçõesdeNossaSantaReligião,oquetemosrequeridopormaisdeumavezaonossocarcereiro,queatéagoraoutraalgumaprovidênciatemdadosobreestaimportantematéria,masqueesperamosdequebrevementeseremossocorridoscomodesejamos.Tudoistoépuraverdade.

CadeiadaCortedoRiodeJaneiro,24dejaneirode180941

O empenho dos presos em serem assistidos espiritualmente demonstra a importância das práticasreligiosas num ambiente adverso como o Aljube. O documento possui 45 assinaturas, algumas delasclaramentefeitasporpessoasquenãotinhamohábitodeescrever.Esteé tambémoprimeiroexemploescritodeorganizaçãocoletivapartindodointeriordoscárceresnoRiodeJaneironoiníciodoséculoXIX.

Osautoresdo requerimentoeramhomens livres,algunspoderiam ter sidocondenadosaodegredo.Noentanto,comosetratavadealgoquebeneficiariaatodos,podemosconcluirquehouveparticipaçãodos escravos presos no Aljube, provavelmente crioulos e africanos ladinos, já evangelizados pelocatolicismo.

Emvistade tal requerimento, não restououtra alternativa ao corregedordo crimeconcluir que “orequerimentodocarcereiro[era]muitojusto![…]Oobjeto[era]dignodeRealContemplação”.D.Joãoordenou que a situação fosse resolvida. Para isso, os religiosos do convento de SantoAntônio – queantescelebravammissasnaantigaCadeiaPública–foramconvocadosparaarealizaçãodospreceitosreligiososnoAljube.Oconfortoespiritual,porém,nãoduroumuitotempo.

Em janeiro de 1815, outro ofício chega à Casa de Suplicação, requerendo novamente o envio dereligiososaoAljubeparadarassistênciaaospresos.Aolongodeseisanos,acadeiareceberainúmerospresos.Oespaçoreduzidofezcomqueaantigacasadosvigáriosfossetransformadaemenfermariaparaatenderaosdoentes.Semterumarespostaparadar,ocorregedordocrimeencaminhouumofícioaofreiAntonio do Bom DespachoMacedo, indagando o motivo da paralisação dos preceitos religiosos nacadeia.

Num longo e detalhado documento, o frei respondeu que as missas nas cadeias da Corte eramrealizadas gratuitamente pelos padres e monges e que isso trazia “a mais decisiva satisfação” ao semostraremúteis.Contudo,aolongodosanos,onúmerodereligiososdisponíveisnacidadesereduzira.OutrascomunidadestambémestavamsolicitandoosserviçosdaIgreja.Erapreciso“acudirmuitasvezeseatodahoraprestarosúltimosdeveresdaReligiãoaosmoribundos”.

O frei queria dizer que a falta de religiosos no Aljube justificava-se pelo excessivo número depessoasqueestavamprecisandodesocorroespiritualnacidade,semcontaroaumentodaquantidadedefiéisquerecorriamàsigrejasaosdomingosefestasdeguarda.Oritmodocrescimentopopulacionaldacidadenãofoiacompanhadoporhomensque,emvirtudedavocação,decidissemseguirocaminhodafé.

A questão da gratuidade dos serviços religiosos prestados no Aljube também contribuiu para aausência demissas.Para garantir o sustento dos padres inválidos e idosos, era necessário que alguns

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ritos fossem pagos. Nas cadeias da Corte, nenhum preso tinha condições de pagar pelo serviço. OEstado,emnenhummomento,fossepormeiodaIntendênciadePolícia,oumesmodoSenadodaCâmara,seprontificouacustear talatendimento.FreiAntoniodoBomDespachoalegouaindaque,pornão tersidoinformado,atéaqueladata,dequeospresosreclamavampelossacramentosreligiosos,ficara“naideia”dequeacapeladoAljubeteriasidoatendidade“outromodo”.Podemosconcluirqueoreligiosoficou um tanto agastado com a situação. Percebeu que tinha faltado com sua função de dar confortoespiritualatodosquebuscavamaIgreja,fosseumcidadãodebemoucriminoso.Aoterminarseuofício,ofreitentaseredimircomocorregedordocrime

[…]EntretantoseoEx.moCorregedoravaliardenenhumpesoasminhasrazõesexpendidas,seavistadafaltadereligiosos,queeufaçover,pelasdiferentesenecessáriasaplicaçõesaquesãodeterminadosospoucosqueexistememestadodeservir,mandarquesecontinueacapelariadacadeia,eutereiinfinitoprazerdeabrir exemplo,dandodestemodoum testemunhodo respeitoedaaltaconsideraçãoemquetenhoasordensdoEx.mo.CorregedoracujapresençarogoaV.M.cequeleveestaminhainformação.42

Depois desta resposta, o corregedor do crime José OliveiraMosquera ordenou que o carcereiroencontrasse uma acomodação para que as missas e os demais sacramentos fossem restabelecidos nointeriordacadeia.JosédaFonsecaRamosinformouasautoridadesdequeseriamnecessáriasalgumasobras para que se estabelecesse um novo oratório no Aljube. Esta intervenção deveria garantir asegurançadacadeiaparaevitarfugas.Portõesdemadeiradeveriamserinstalados,assimcomogradesdeferronasjanelaseportascom“boastrancas”.HaviaumaermidacomainvocaçãodeSantananaentradado pátio principal. Para que os detentos ouvissem missas aos domingos, seria necessária, além dastrancas,aconstruçãodeummurodepedraecalnoladodopátioquedavaparaaladeiradaConceição.Taiscuidadospretendiam“embaraçar”aspossíveisfugas.

Um ofício explicando tudo ao monarca foi redigido pelo corregedor. Ele ainda esclarecia que,emboranãosenegasseminteiramentearealizartaisserviçosnacadeia,osreligiosospassavamporumasériedeproblemas,inclusivefinanceiros,quedificultariamarealizaçãodasmissasnosdomingosediassantos.NãotemoscomoprecisarquandoforamrealizadasasobrasnoAljubeparaatenderaopedidodospresos.Sabemosqueem1817jáhaviasidorestabelecidoooratório,poisopardoPolicenoaguardavanelearespostadorequerimentoparaacomutaçãodasuapenademorte.

OAljube foi, sem dúvida alguma, o centro de detenção da Corte nas duas primeiras décadas doséculoXIX.Ali foramreunidosospresosenviadospela IntendênciaGeraldePolíciadaCorte,osdaCasadeSuplicaçãodoreinoedoTribunaldaRelaçãoqueaguardavamojulgamentodeseusprocessos,e os degredados de Lisboa e outras possessões atlânticas. Neste espaço, foram construídas novasrelaçõesdesociabilidadeentreescravos,livreselibertos.

AIntendênciaGeraldePolíciadaCorteeseusdetentos

Senhor!

Sendofrequentesosdelitosperpetradosporindivíduosdestacidadeforroselivresuns;cativosoutros;conhecidos pela denominação de capoeiras; tem a vigilante Polícia buscado capturá-los, as Justiçasprocessá-los e a Casa de Suplicação sentenciá-los com exemplar zelo e interesses do Chanceler que

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servedeRegedor,especialmentenasvisitasdacadeiaemqueéjuiz.Quantoaosforroséumadaspenasaflitivasadeaçoitesepelasruaspúblicas;quantoaoscativosnagradedacadeiaenoCalabouço.Mascomooprincipalfimsejaoexemploaterradoraoscativospareciaconseguir-semelhorsendodadososaçoitesnoscativosempraçasmaispúblicaselugaresondeestesmausindivíduoscapoeirascostumamfazersuasparadasedepoissuasdesordensedelitos.[…]postoqueajulguenecessária[…].43

Embora seja um processo mais facilmente identificável na década de 1820, o afastamento doscriminososedesuaspenasdosolhosdasociedadeteveinícioaindanoperíodojoanino.Anecessidadedeutilizarosdetentosnasobraspúblicasfoidiminuindo,àmedidaqueacidadeadquiriaminimamenteasfeiçõesdeumaCorte.Comcerteza,nãotãoopulentaquantoascapitaiseuropeias,porémmaissuportáveldoqueacidadecolonialqueosilustresvisitantesencontraramem1808.

Osaçoitamentospúblicos,emmeadosdadécadade1810,passaramaocorreremlugarescommenorfluxodepessoas,comonasgradesdoCalabouço.Estaprisão,destinadaaosescravos,foitransferidaem1813 do forte de Santiago para o morro do Castelo. A mudança foi provocada pela necessidade deespaçoparaatenderocrescentenúmerodecativosquea instituiçãopassouareceberparaacorreção.Eminstalaçõesmaisamplas,ummaiornúmerodeescravospoderiasercastigadoamandodossenhores.ComoamaiorpartedapopulaçãonãoestavamaisconcentradanomorrodoCasteloeseusarredores,osuplíciodosescravosrebeldesdeixoudecontarcomapresençaconstantedoshabitantesdacidade.Esteafastamento do grande público trouxe transtornos ao controle da criminalidade do Rio de Janeiro,segundoocorregedordocrimeAntonioFelipeSoares.

[…]paraevitarasrepetidasfugasdepresoscriminososqueiamnoslibambosbuscarágua,mandouquenãomaissaíssemeprovidenciouinterinamenteessafaltadeáguamandandocomprá-lapelasdespesasdaRelação.NoCalabouço faltamos indivíduosnecessáriosparao serviçodiário,e seocofredasditasdespesasnãotemcomopagardívidascomopoderácontinuarnestadespesadeágua?44

PareceterhavidoumcertodescontroledacriminalidadenaCorteentre1814e1817.UtilizaremososdadoscoligidosporLeilaMezanAlgrantia respeitodosdetidospela IntendênciaGeraldePolíciadaCortenoperíodode1810a1821,paratraçarmosoperfilaproximadodosescravospresosnoAljube.45

Tabela2PrisõesdeescravosrealizadaspelaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte,1810–1821

ANO VIOLÊNCIA* PROPRIEDADE** ORDEMPÚBLICA*** FUGAS TOTAL

1810 4 3 21 6 341811 23 64 52 53 1921812 36 87 91 129 3431813 29 95 76 120 3201814 41 80 129 97 3471815 53 59 212 91 4151816 11 13 69 37 1301817 17 20 55 18 1101818 76 92 136 82 3861819 105 91 176 55 4271820 96 67 123 65 3511821 22 18 39 13 92

TOTAL 513 689 1179 766 3147

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Fonte:adaptadodeALGRANTI,LeilaM.Ofeitorausente:estudossobreescravidãourbananoRiodeJaneiro,1808–1822.Petrópolis:Vozes,1988,p.167,tabela4.1.

*Oscrimesconsideradospelaautoracomodeviolênciasão:brigas,facadasepedradas.**Crimescontraapropriedadeerampequenosfurtostaiscomoderoupas,alimentoseobjetosdepoucovalor.***Oscrimescontraaordempúblicaeramavadiagem, insultosapoliciais, jogosdeazar,desrespeitoao toquede recolhere infraçõesàsposturasdaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte.

OsnúmerosapresentadosnatabelaacimaforamextraídosdarelaçãodeescravospresospelaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte.46Aautoraencontrousomenteumcasodehomicídionestesregistros.Estefatosedeveaostrâmiteslegais.Mesmoapolíciarealizandoaprisãodosuspeito,eleeradetidoporrequerimentodaCorregedoriadoCrime.47

Algranti identificouqueosmotivosdasprisõesvariavamdeacordocomasposturasemitidaspelaIntendênciadePolícia.Apreocupaçãocomoscapoeiras,porexemplo,setornoumaiorapartirde1814,quandoosíndicesdeprisãoporessemotivoaumentaram,chegandoarepresentarumtotalde20%dosdetidosem1815.Apartirdeentão,acapoeiraentroudeveznoroldoscrimesmaispraticadosnacidade.Ao longodadécadade1810,onúmerodeaçoitesdados,nospelourinhosda cidade, empuniçãoaoscapoeiras subiu de cinquenta para trezentos. Ocorria, assim, um retorno do suplício público, práticaabandonada nos primeiros anos do séculoXIX.As autoridades buscavam comesta atitude diminuir aincidênciadoscrimesenvolvendocapoeiras,pormeiodapedagogiadacoação.48

Já as desordens, fugas e roubos foram as maiores preocupações entre os anos de 1810-1815.Podemosconcluir tambémqueanecessidadedemãodeobranas intervençõesurbanasfezcomqueasprisõespormotivosmaissimplesfossemjustificadas.Entre1808-1810,aIntendênciaGeraldePolíciada Corte inicioumuitas obras. Não sabemos se os registros desse período se perderam no tempo oununca foram feitos, umavez quePauloFernandesViana estava ainda organizandoo funcionamento dainstituição.

Épraticamentecertoqueamaioriaesmagadorados766presosporfugaforamdetidosnoCalabouço,sendoencaminhadosdiretamenteparaasobraspúblicas.Nestenúmeronãoestãoincluídososescravosque foram encaminhados por seus senhores para serem castigados e que também foram utilizados emlargaescalapelaIntendência.

Dos3.147casosdeprisõescommotivoidentificado,70%ocorreramnosperíodosde1812-1815e1819-1820 (45% e 25% respectivamente). Os detidos por crimes contra a ordem pública somaram37,5%. Neste grupo estavam incluídos os presos por vadiagem, insultos a policiais, jogos de azar,desrespeitoaotoquederecolhereinfraçõesàsposturasdaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte.Estesforamosmotivosalegadospelasrondasparaaprisãodoscativos.Excluindoasfugas(24,3%),poisnãoeramconsideradascrimes,eosataquesàpropriedade(21,9%)consideradoscrimesleves,asprisõesporviolência somaramapenas16,3%,menosdametadedos ataques àordempública.Por essesnúmeros,podemosconcluirqueaIntendênciasóseocupavadoscriminososatéasuacaptura,ficandoasuaguardacomaCasadeSuplicação.EsteprocedimentofacilitavaotrabalhodointendentePauloFernandesViana,que assim poderia utilizar-se da mão de obra destes detentos sem se ocupar em seguir os trâmitesjudiciais.

Aindasobreospadrõesdecriminalidade,Algranticitaquenadécadade1820oestadocaóticodaJustiçadesmoralizavaapolícia.Nesteperíodo,aimprensasetornaaprincipalporta-vozdaindignaçãocontraocrescentenúmerodecriminososnaCorte.49

Tabela3CondiçãolegaldosdetentosdaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte,1810–1821ANO ESCRAVOS LIBERTOS LIVRES TOTAL

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1810 53 21 – 741811 237 37 – 2741812 433 132 – 5651813 412 91 – 5031814 399 113 1 5131815 496 86 – 5821816 166 30 – 1961817 155 18 – 1731818 468 139 6 6131819 485 138 5 6281820 406 118 4 5281821 102 21 4 127

TOTAL 3182 944 20 4776Fonte:ALGRANTI,LeilaM.Ofeitorausente:estudossobreescravidãourbananoRiodeJaneiro,1808–1822.Petrópolis:Vozes,1988,p.189,tabela4.6,destaquesnossos.

Nestatabela,podemosvermaisclaramenteoalvodarepressãodapolícia:osescravos.ReproduzindoaperiodizaçãodaTabela2,osanosde1812–1815e1819–1821foramosmomentosemqueoscativosestiveramamaiorpartedotempoempoderdaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte.ComparandocomasentradasdenaviosnegreirosnoportodoRiodeJaneiroentre1796e1821,temosaexplicaçãoparaessesnúmeros.Nosperíodosde1812-1815e1818-1821,foramregistradososmaioresíndicesdeentradasdecativospelotráficonoportodoRiodeJaneiro.50

SegundoosdadosdeAlgranti,cercade2.866escravosforampresosentre1810-1821,representandoumpercentualde71,9%dosdetidos.Estenúmeromostraumgrandeíndicedeafricanidadenascadeiasda Corte, em especial noAljube, para onde foi remetida amaior parte dos presos pela polícia. Sãonecessárias novas frentes de pesquisa para determinarmos se a presença constante de africanos dediversas etnias nas cadeias do Rio de Janeiro provocou alguma mudança na prática de detençãoestabelecidanoperíodocolonialequeseestendeuatéadécadade1830.

Conclusão

VimostodososdesafiosenfrentadospelosdetentosnosistemaprisionalnacidadedoRiodeJaneirodesdefinsdoséculoXVIIIatéasduasprimeirasdécadasdoséculoXIX.Enquantotentavamsobrevivernoscárceres,omundoforadasgradesnãoparou.ApósoestabelecimentodafamíliarealnoBrasileacriaçãodetodaumaestruturaadministrativaestatalnacidade,erahoradeusufruiraCortequehaviasidoconstruída. A história, no entanto, não se detém. Em 1820, inicia-se a Revolução do Porto. OsportuguesesexigemavoltadeD.João.

Erahoradeencarar a realidade.Emboraavontadede ficar fossegrande,omonarcaprecisava ir.Não podia perder um trono europeu. Seguiu entristecido, segundo relatos da época, entretanto teve asensibilidadedeumestadistaparaperceberque asmudançasqueprovocounoRiode Janeiro seriamirrevogáveis.OBrasilnãoseriamaisomesmo.Logocomeçouonossoprocessode Independência.OretornodeD.JoãoVIaPortugalanunciouasmudançasqueacidadesofreria,principalmentenaquestãodocontroledacriminalidade.

Emfevereirode1821,PauloFernandesVianadeixouaIntendênciaGeraldePolíciadaCorte.Comofimdoperíodojoanino,encerrava-setambémumciclonosistemaprisionaldoRiodeJaneiro.OtraçoabsolutistadaatuaçãodePauloFernandesVianadeixariadeexistir.Noentanto,ocenárioconstruídono

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períodojoaninoeaatuaçãodointendentedepolíciamarcariamosistemaprisionalpormuitosanos.Nos conturbados anos que se seguiram,muitas coisasmudariamna política.D. Pedro passaria de

príncipe regente a primeiro imperador do Brasil. Os embates entre agora brasileiros e portugueseslevariammuitosdesseshomensparaacadeia.Masissoéumaoutrahistória.

1ArquivoNacional–RiodeJaneiro,doravanteANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice72,relatóriodovice-reiLuizdeVasconcelos(1779-1790),fls.26,grifonosso.

2FLORENTINO,Manolo.Emcostasnegras:umahistóriadotráficodeescravosentreaÁfricaeoRiodeJaneiro,séculosXVIIIeXIX.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1997,p.28.

3ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice72,relatóriodovice-reiLuizdeVasconcelos(1779–1790),fls.26,grifonosso.4VAINFAS,Ronaldo(Org.).DicionáriodoBrasilColonial,1500-1808.RiodeJaneiro:Objetiva,2000,p.135.5EmfinsdoséculoXVII,houveumintensocrescimentourbano,poisoRiodeJaneirosetransformounoprincipalportodoAtlânticoSul.Muitaspessoassaídasdeváriaspartesdacolôniaseestabeleceramnopequenonúcleourbanodisponível.Natentativadeaumentaraáreaocupada,diversaslagoasepântanosforamaterradosaolongodoséculoXVIII.AúltimagrandeobradesseperíodofoioaterramentodalagoadoBoqueirão,realizadopelovice-reiLuísdeVasconceloseSousa,ondeposteriormenteseriaestabelecidooPasseioPúblico.Estaobrafoirealizada,emgrandeparte,pelosescravosprisioneiros.CAVALCANTI,NireuOliveira.AcidadedeSãoSebastiãodoRiodeJaneiro:asmuralhas,suagente,osconstrutores.1710-1810.Tesededoutorado.UFRJ/IFCS,1997.

6Oconceitodeduplocativeiroéamplamentedesenvolvidoem:ARAÚJO,CarlosEduardoMoreirade.Oduplocativeiro:escravidãourbanaeosistemaprisionalnoRiodeJaneiro,1790-1821.DissertaçãodemestradoemHistóriaSocial.RiodeJaneiro:PPGHIS/UFRJ,2004.

7ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice69,registrodacorrespondênciadovice-reinado,v.5,fls.219e219v.Ofícioenviadoem2denovembrode1795.

8ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice70,registrodacorrespondênciadovice-reicomdiversasautoridades,v.14,fls.74v.9ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice70,registrodacorrespondênciadovice-reicomdiversasautoridades,v.14,fls.40e40v.Ofícioenviadoaoajudantede-ordensem7demarçode1791.Sobreesseeoutrosfestejosnacidade,ver:CRULS,Gastão.AparênciadoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1949;ABREU,MarthaC.O.Impériododivino:festasreligiosaseculturapopularnoRiodeJaneiro.1830-1900,RiodeJaneiro:NovaFronteira,1999.

10EramcomumnascidadescoloniaisascadeiasselocalizaremnoandartérreodoSenadodaCâmara.NoRiodeJaneiro,existiamduascadeiasnessascircunstâncias.Naverdade,aCadeiaPúblicaeaCadeiadoTribunaldaRelação,ousimplesmente,CadeiadaRelação,ocupavamapenasumacelacada.QuandoocriminosoerajulgadoecondenadopelaJustiça,cumpriasuasentençana“cadeia”daRelação.Quandohaviasidopresopelasautoridadespoliciaisporpequenosdelitos,eraremetidoparaaCadeiaPública.Osdocumentoscomprovamquenemsempreessadivisãoerarespeitada,poisadistribuiçãodospresosentreessasduascelasseguiamuitomaisadisponibilidadedeespaçodoquequalquerdeterminaçãojudicial.

11ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice70,registrodacorrespondênciadovice-reicomdiversasautoridades,v.14,fls.85.OfíciodirigidoaoSenadodaCâmara.

12Idem,fls.90.13Idem,fls.97.14ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice70,registrodacorrespondênciadovice-reicomdiversasautoridades,v.15,fls.12.Ofício

dirigidoaodesembargadorouvidorgeraldocrime.15ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice70,registrodacorrespondênciadovice-reicomdiversasautoridades,v.18,fls.134.16EDMUNDO,Luiz.ORiodeJaneironotempodosvice-reis,1763-1808.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1932,p.520.17GOMES,FláviodosSantos;SOARES,CarlosEugênioL.“Dizemasquitandeiras…”Ocupaçõesurbanaseidentidadesétnicasemuma

cidadeescravista:RiodeJaneiro,séculoXIX.In:Acervo:RevistadoArquivoNacional.RiodeJaneiro.v.15,n.2,jul./dez.de2002,p.335-378.

18ArquivoGeraldaCidadedoRiodeJaneiro,doravanteAGCRJ,códice40–3–79,fls.1–31v.19AGCRJ,códice40–3–79,fls.6ve7,grifonosso.20AGCRJ,códice40–3–79,fl.9.OfíciodosprocuradoresdoSenadodaCâmaraaodesembargadorFelicianoRochaGameiro,em13de

maiode1792.21RIBEIRO,JoãoLuizdeAraújo.Aleide10dejunhode1835:osescravoseapenademortenoImpériodoBrasil.1822-1889.

DissertaçãodemestradoemHistória,UFRJ,2000,p.11.22SANTOS,MariaJoséMoutinho.Asombraealuz:asprisõesdoLiberalismo.Porto:EdiçõesAfrontamento,1999.23LARA,SilviaH.“LegislaçãosobreescravosafricanosnaAméricaPortuguesa.”In:GALLEGO,JoséA.NuevasAportacionesala

HistoriaJurídicaIberoAmericana.Espanha,FundacionHistóriaTavera,2000,p.38.CD-ROM.24“[…]aexperiêncianotratocomosescravosimpunhaanecessidadedaviolência:elaosconservavaobedientes,obrigava-osaotrabalho,

mantinha-ossubmissos”.LARA,SilviaH.Camposdaviolência:escravosesenhoresnacapitaniadoRiodeJaneiro,1750–1808.RiodeJaneiro:PazeTerra,1988,p.21.

25Paramaioresdetalhessobreousodapenademortecomodemonstraçãodepoder,ver:FOUCAULT,Michel.Vigiarepunir:históriadaviolêncianasprisões.25.ed.Petrópolis:Vozes,2002,especialmentecap.2.

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26LARA,op.cit.,p.22.27ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice67,correspondênciadaCortecomovice-reinado,v.22,fl.12.28VAINFAS,op.cit.,p.229–230.29ANRJ.SecretariadeEstadodoBrasil,1790–1808.30SobreogovernodeD.FernandoJosédePortugal,“[…][embora]nãosereabilitasseporiniciativasnomelhoramentodacidade,oseu

espíritojusticeiro,asuacondutaeacessibilidadeemcontrastecomoantecessor,granjearam-lheaestimadopovo”.COARACY,Vivaldo.MemóriasdacidadedoRiodeJaneiro.SãoPaulo:Edusp,1988,p.397.

31ANRJ,SecretariadeEstadodoBrasil,códice70,registrodacorrespondênciadovice-reicomdiversasautoridades,v.23,fl.36.OfícioenviadoporD.FernandoJoséaPauloFernandesViana,em16dedezembrode1802.

32COARACY,op.cit.,p.397.33AZEVEDO,Moreira.PequenopanoramaoudescriçãodosprincipaisedifíciosdacidadedoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:

TipografiaPaulaBrito,1862,v.4,p.136.34SobreesteperíodohistóriconaEuropa,temosaobradeMichelFoucault.Acreditamosqueesteestudonãopodeseradaptadolivremente

paralugaresondeaescravidãovigorouatéofinaldoséculoXIX.AformadepuniçãodirecionadaaocorpofoiumapráticapresentenoBrasilatéoiníciodoperíodorepublicano.Paraacompanharessadiscussão,temosotrabalhodeMarileneAntunesSant’anna,queesclarecemuitobemtodaasideiascontidasemVigiarepunir,apresentandotambémsuascríticas:SANT’ANNA,MarileneAntunes.Deumlado,punir;deoutro,reformar:projetoseimpassesemtornodaimplantaçãodaCasadeCorreçãoedoHospíciodePedroIInoRiodeJaneiro.Dissertaçãodemestrado.ProgramadePós-GraduaçãoemHistóriaSocialdaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.2002,especialmentecap.1.

35Relatóriodacomissãoencarregadadevisitarosestabelecimentosdecaridade,asprisõespúblicas,militareseeclesiásticas,apresentadoàCâmaraMunicipaldaCorteem1830,apudMORAES,Evaristode.PrisõeseinstituiçõespenitenciáriasnoBrazil.RiodeJaneiro:LivrariaEditoraConselheiroCandidodeOliveira,1923,p.8.

36ANRJ.CasadeSuplicação.Caixa774,pacote3,ofíciode23/07/1812.Grifodafonte.37OspresospelaIntendênciadePolícia,principalmenteosescravoselibertos,eramutilizadosnasobraspúblicascomandadasporPaulo

FernandesViana.AmãodeobradessesdetentosfoiimprescindívelparaasalteraçõesurbanísticasquetransformaramoRiodeJaneironacapitaldoimpérioportuguês.

38ANRJ.CasadeSuplicação,caixa774,pacote3,ofícioenfiadoaoprínciperegente,em30dejulhode1812.39OconventodeSantoAntônioselocalizanoatuallargodaCarioca,portantopróximodaantigaprisãodaRelação,atualpalácioTiradentesna

ruaPrimeirodeMarço.40ANRJ.CasadeSuplicação,caixa774,pacote3,ofícioenviadopelocarcereirodoAljubeaocorregedordocrimeFranciscoLopesdeSousa,

em27dejaneirode1809.41ANRJ.CasadeSuplicação,caixa774,pacote3,ofícioenviadopelocarcereirodoAljubeaocorregedordocrimeFranciscoLopesdeSousa,

em27dejaneirode1809.Grifosnossos.42ANRJ.CasadeSuplicação,caixa774,pacote2,ofícioenviadoàCasadeSuplicaçãoem14dejaneirode1815.43ANRJ.CasadeSuplicação,caixa774,pacote3,ofícioenviadopelocorregedordocrimedaCorte,AntonioFelipeSoares,àsecretariade

EstadoeNegóciosdoBrasil,em27defevereirode1817.44ANRJ.CasadeSuplicação,caixa774,pacote2,ofícioenviadopelocorregedordocrime,AntonioFelipeSoares,em3defevereirode1814.

Libamboseramosescravosdetidosporseremfugitivoscontumazes,condenadosacarregaráguaatéasrepartiçõespúblicasdiariamente.Emgrupos(oumagotes)detrêsouquatro,seguiamacorrentadosunsaosoutrospelasfontesdacidade,transportandoágua.Aofinaldodia,eramrecolhidosaoCalabouço.

45AstabelasqueseseguemforamadaptadasdeALGRANTI,LeilaM.Ofeitorausente:estudossobreescravidãourbananoRiodeJaneiro,1808-1822.Petrópolis:Vozes,1988.Cap.4.Emalgumastabelas,aautorautilizaacategoria“outros”paraoscrimespoucoesclarecidosounãoclassificadospraticadospelosescravos.Poracreditarqueessaindeterminaçãodoscrimespodeprovocardistorçõesnasanálises,nãoconsideramosestacategoria.

46ANRJ.PolíciadaCorte.Códice403:Relaçãodasprisõesfeitaspelapolícia(1810–1821),vols.1e2.Emrelaçãoaoanode1810,osdadoscomeçamemjunho,equantoa1816,terminamnomesmomês.Em1817,osregistrosiniciam-seemjunho.Jáem1821,asinformaçõescessamemmaio.Todososoutrosanospossueminformaçõescompletas.

47NaslistasproduzidasporAntonioFelipeAndrade,corregedordocrimedaCasadeSuplicação,encontramosalgunsdetidosacusadosdemorte,grandepartedestesescravosassassinosdesenhoresefeitores.

48Paramaioresdetalhessobrecapoeiraeasuarepressãover:SOARES,CarlosEugênioL.Acapoeiraescrava:eoutrastradiçõesrebeldesnoRiodeJaneiro,1808-1850.Campinas:EditoradaUnicamp/CECULT,2001.

49ALGRANTI,op.cit.,p.188.50FLORENTINO,Manolo.Emcostasnegras:umahistóriadotráficodeescravosentreaÁfricaeoRiodeJaneiro,séculosXVIIIe

XIX.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1997.Apêndice3,p.218.

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A

7–OCALABOUÇOEOALJUBEDORIODEJANEIRONOSÉCULOXIX

ThomasHolloway

Introdução

setapasdodemoradoprocessodeseparaçãoentreoBrasileasuametrópole, tendoinícioem1808,comatransferênciadaCorteportuguesaparaacapitaldacolônia,seguidadadesignaçãodoBrasilcomoreino,em1815,acriaçãodeinstituiçõesprópriasapós1822eaabdicaçãode

Pedro I, em 1831, representaram passos claros rumo à formação de um Estado independente e, nostermosdaquelaépoca,moderno.

Nesse contexto, estabeleceram-se instituições e processos mais abrangentes e padronizados decontroledocomportamentodapopulaçãourbana,pelomenosnacapitaldoImpério.IstosefezpormeiodacriaçãodaIntendênciadePolícia,em1808,edaGuardaRealdePolícia,em1809,posteriormentesubstituída, durante os distúrbios generalizados de 1831, pelo Corpo Municipal de Permanentes,predecessoremlinhadiretadaPolíciaMilitardostemposrecentes.1

No campo jurídico, oCódigoCriminal, promulgado em1830, e oCódigo doProcesso, em1832,revelaram-seimportantesfundamentosparaaformaçãodoEstadomoderno.

Contudo,emtodaaprimeirametadedoséculoXIX,odestinodosindivíduosquecaíramnasmalhasdo sistema policial e judiciário pouco mudou. O tratamento oferecido às pessoas livres era oespancamento na rua ou no posto policial, seguido por um processo sumário, na maioria das vezes,presididoporumaautoridadedomesmosistemapolicialqueefetuavaadetenção.Jáosescravos,cercadametadedapopulaçãourbana,recebiamcentenasdechibatadas,tantoporordemdeseudono,àguisadecorreção,comodeautoridadespoliciais,tambémjudiciárias.2

Asreformaspolíticasejurídicasprecederamàreformapenitenciáriaemmuitasdécadas.NoperíododeD.JoãoVI,dePedroI,daRegênciaenaprimeiradécadadoSegundoReinado,serprisioneironoRiodeJaneiro,nacondiçãodeescravooulivre,significavaestarconfinadonasmaismiseráveiseesquálidascondições.Oscárceresdacidadenãopassavamdemasmorrasedepósitosnosquaisaspessoaseramtrancadas,permanecendooprazofixadopelasautoridadese,àsvezes,sendoaliabandonadas.

Nofinaldadécadade1830,aconstruçãodaCasadeCorreção,inauguradaformalmentesóem1850,deuinícioaoprocessodemodernizaçãodascondiçõesdeencarceramento.OCalabouçoeoAljubeeramapenasasmaisimportantesdasváriasprisõesexistentesnoRiodeJaneiro,naprimeirametadedoséculoXIX, quase todas sediadas em antigas instalações militares. As diversas fortificações construídas noséculoXVIIIparadefenderacapitaleariquezadamineraçãotornaram-sesupérfluas,dopontodevistamilitar,nasprimeirasdécadasdoséculoXIX.Devidoàsolidezdeseusmurosespessoseaospostosdesentinelas,asfortalezaspuderamserfacilmenteadaptadasàguardadeprisioneiros,perdendoafunçãodemanterosinimigosadistância.

Emváriasépocas,osfortesdasilhasdasCobras,deSantaBárbara,LajeeVillegaignon,alémdosdeSão João e de Santa Cruz, em lados opostos na entrada da baía, foram usados como prisão. Nosmomentosde agitaçãocivil, o excedentedeprisioneiros eramantido embarcos ancoradosnabaíadeGuanabaraouentão,nocasodeosdetidospor tempomais curto, em instalaçõesprovisórias, comooxadrezdapolíciaeascasasdeguardaespalhadaspelacidade.

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OCalabouço

OCalabouço–prisão estabelecidapara escravosdetidosporpuniçãodisciplinar e/ou fugitivos–localizava-se,desdeotempodacolônia,numainstalaçãomilitaraopédomorrodoCasteloemfrenteàbaíadeGuanabara,ladeadopeloarsenaldoExércitoepelohospitaldaSantaCasadeMisericórdia.Erao cárcere da cidadedestinado exclusivamentepara escravos,masnãooúnico emqueos escravos seencontravam.Talvezcercadeduzentosescravosabarrotassemváriosquartosfechados.3

AmaioriadoscativoseraenviadaaoCalabouço,porseussenhores,parareceberaçoitescorretivos.EsteserviçodepuniçãodisciplinarrepresentavaumacolaboraçãodosdonosdeescravoscomoEstadoemformação.Nadécadade1820,asautoridadesqueosaplicavam,apedidodosdonos,cobravamumataxa mínima de 160 réis por centena de golpes, mais 40 réis, por dia, para subsistência, sem fazerperguntassobreaofensacometidacontraodonoouseusinteresses.

PunishingnegroesatCathabouco,[i.e.Calabouço],deAugustusEarleFonte:NationalLibraryofAustralia.

Uma relíquia da era escravista, que deve chocar o leitor moderno, é o livro-razão em que seescriturouareceitaprovenientedopagamentodesseserviçoparaoanode1826.Naqueleano,umtotalde 1.786 escravos, entre os quais 262mulheres, foram chicoteados no Calabouço, a pedido de seussenhores,oquedáumamédiadequasecincopordia.Somente58sofrerammenosdecemaçoites,778receberamduzentose365suportaramtrezentos.4Nesseritmo,osfuncionáriosdaprisãopassavamvárias

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horaspordianafainadeaçoitarescravos.Nãosedevevernissoapenasumaprestaçãodeserviçodisciplinar,peloqualoEstadocobravauma

taxa, servindo aos interesses dos proprietários de escravos. Em um contexto mais amplo, sendo aescravidão tão difusa noRio do início do séculoXIX e tão central para as relações econômicas e aestruturadeclassesdasociedadebrasileira,o“ofíciodeaçoite”significavaamanutençãodosistema.Assim, ele punha em relevo, de maneira rude, o Estado enquanto instrumento da classe dominante,atendendoa suanecessidadedecontrolar,pormeiodacoerçãoeviolência física,osque forneciamapotênciamuscularnecessáriaàmanutençãodetodaaeconomia.

OshomensquemanejavamoschicotesnoCalabouçoeramprisioneiros,geralmentecondenadosporsentençasdecrimecomum.Emabrilde1833,porexemplo,haviaumtotalde198escravosnoCalabouçoquandoochefedepolícia,EusébiodeQueiroz,inspecionouolocal:192deles“fugidos,porcorreiçãoea requerimento de seus senhores”.Os outros seis eram sentenciados por processo criminal, inclusive“Antônio,escravodePaulaRibeirodeBrito,sentenciadoportodaavida,servedeaçoitador”,emais“JoaquimBenguela,escravodeAmaroVelho,sentenciadopor10anos,servedeaçoitador”.5

OCalabouço também comportava escravos fugitivos capturados, que erammantidos lá até seremreclamados por seus donos, escravos em depósito, que podiam fazer parte de espólios, aguardandodisposições finais sobre heranças, e escravos vendidos que esperavam a transferência para os novosproprietários.Algumas das pessoas detidas noCalabouço pormotivos específicos à sua condição decativo podiam mesmo haver cometido crimes comuns. Os escravos capturados depois de fugir docontroledeseudono,alémdaquelespresospelasefêmerasinfraçõesqueacarretavampuniçãoimediata,eram,muitasvezes,levadosdiretamenteaoCalabouço.Porexemplo,esteéocasodeJanuário,escravodaviscondessadeMerandela,aquemopedestredepolíciaJoaquimLourençoprendeuàs23:30,decertanoitedemaiode1845.Alémdeviolarotoquederecolher,Januárioportavaumanavalhasimples.Emobediência às ordens permanentes do chefe de polícia, ele foi preso pelo que a polícia definiu como“capoeira”.Removido aoCalabouço, recebeu, deprimeira, cinquenta açoites, comodébitodeoutroscinquenta para completar a sentença. Além disso, foi obrigado a cumprir uma pena de trinta dias naprisãodosescravos.Ochefedepolíciaera, rotineiramente, informadopost factum sobre essas açõesexecutadasporsuaautoridadejudicial.6

As condições sanitárias do velho Calabouço eram aterrorizantes. Nos compartimentos semventilação,ocaloreafedentinapioravamasituação.Osencarceradosaindasofriamcomaescassezdecomida, um contrassenso, em virtude das taxas cobradas aos proprietários. Um dos problemasrecorrentesnoCalabouçoeraque,quandoosvaloresdevidospelosustentodoescravooupelacorreçãoque lhe fora aplicadaultrapassavamaquilo queo dono achavaqueo escravovalia, ele simplesmenteabandonavasuapropriedadehumana.Nessacondição,osescravostinhamdeservendidosemleilão,afimdeoGovernorecuperarasdespesasadministrativasdainstituição,abrirespaçonocárcereefazerosescravosretornaremàsmãosdealguémquepudessetirarproveitodesuaforçadetrabalho.Emmaiode1831,quandoonovoministrodaJustiçadaRegênciaProvisória,ManoelJosédeSousaFrança,tomouconhecimento da péssima situação do Calabouço, ordenou a venda de numerosos escravos, “amaiorpartedequeháanosnãoapareceramosdonos”.7

Poucaspessoasentendiamanecessidadede refinar as técnicasde repressãomelhordoqueDiogoAntônioFeijó.Alémdeterumpapel importantenaformaçãodaPolíciaMilitaredaGuardaNacionaldurante seumandato deministro da Justiça (1831–1832), publicou uma série de ordens definindo asrelações entre o Estado emergente e os proprietários de escravos, que dividiam a tarefa de impor adisciplina. Em outubro de 1831, Feijó ordenou que o chicoteamento de escravos no Calabouço nãodeveriaexcederototaldeduzentosaçoitesporcrimee,conformeespecificadonoCódigoCriminalde1830, omáximo de cinquenta por dia. Também determinou que a punição corretiva no Calabouço, a

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pedido do proprietário, não excedesse o total de cinquenta açoites, pois mais do que isso seriaconsiderado excessivo, sendo, portanto, proibido por “lei”. Feijó fez uma declaração vigorosajustificandoesseslimitesparaosaçoitesdisciplinaresedeterminouqueaautoridadedoproprietáriodeescravos, restrita à correição de faltas menores, não deveria se estender à punição por crimes queestivessemsobajurisdiçãodosistemajudicial:“Osescravossãohomens,easleisoscompreendem.”8

Alémdoreconhecimentoexplícitodahumanidadedoescravo,aaparentecompaixãodeFeijó,nessapassagem, deve ser entendida no contexto de um sistema ideológico e de uma cultura legal queconsideravamo escravo como serhumanoe, aomesmo tempo, regulamentavamas técnicasbrutais derepressãoemanutençãodaprópriaescravidão.SerhumanonoBrasildoséculoXIXnãoseopunhaasercomprado, vendido, amarrado, agrilhoado, açoitado ou atirado nas masmorras fétidas, com ferrosgrampeandopescoçoepernas.ParaFeijóeos liberaisautoritáriosdemesmaopinião,anormada lei,que também significava a autoridade do Estado, deveria estender-se ao comportamento público dosescravos,encontrando-secomaautoridadedeseusproprietáriosnaportadeseudomínioprivado.

O Estado em desenvolvimento invadia, com essas e outras medidas correlatas, cada vez mais, arelaçãoentre senhoreescravo, impondoa regrada leie tentando limitaroabuso físico,no intuitodepreservarumsistemaquefosseconsideradomaishumano.EmboraoregulamentodapuniçãocoubesseaoEstado, tendo o Calabouço um papel importante nisso, ao dono do escravo era permitido, e dele seesperava, que exercesse o controle disciplinar. Numa situação em que a grande maioria dostrabalhadoresnasociedadeurbanaerapropriedadeprivada,aspretensõesideológicasdoEstado-naçãoao exercício universal da autoridade eram inevitavelmente circunscritas. Mais do que uma transiçãogeneralizada de mecanismos pessoais e individualizados de controle para sistemas impessoais epadronizados,noBrasilasduashierarquiasdepoder–tradicionaleprivado,deumlado,emodernoepúblico,dooutro–permaneceramcomplementares,fortalecendo-semutuamente.

Esta é a variação brasileira da interpretação deMichel Foucault sobre a transição para omundomodernoedasideiasdeMaxWeberacercadaemergênciadasburocraciasimpessoaiscomoumaparteessencial do processo demodernização.9 Ela também se baseia na caracterização, feita por GilbertoFreyre eRobertoDaMatta, dosmundos contrastantes da casaversus ruana cultura brasileira.10 Essesdoisdomínios–umdelespessoal epatriarcal,ooutro impessoal eburocrático– sãogovernadosporhierarquiasautoritáriasquesecombinamparaformaraspossibilidadeselimitaçõesdavidadaspessoas.

NaruaNovadoConde(hoje,FreiCaneca),bairrodoCatumbi,iniciou-se,em1833,aconstruçãodeumcomplexopresidiárioqueaindaexistenolocal.Em1837,oCalabouçodosescravosmudou-separaolocaldaCasadeCorreção,porduasrazõesquesecomplementavam:amelhoriadasterríveiscondiçõesdas antigas enxovias aopédomorrodoCastelo e o aumentodadisponibilidadedemãodeobradosescravosreclusosparaaconstruçãodaprópriaprisãoedeoutrasobraspúblicas.Alémdetrabalharnaedificação da Casa de Correção, os internos no Calabouço passaram a ser utilizados, sobretudo, naconstruçãodeestradasenocarregamentodepedrasparaaterrarosbrejosondehojeseergueobairrodaCidadeNova,drenadosparaocanaldoMangue,doqueresultouatransformaçãode“pântanosemruaselegantes”.11 Na década de 1850, alguns prisioneiros ainda trabalhavam em obras públicas, mas oslibambos–gruposdecarregadoresdeáguaacorrentadospelopescoço,habitualmenteencontradosnasruasdoRionoiníciodoséculo–tinhamsidoeliminadosnofinaldadécadade1830,comafinalidadede“tirardavistadopúblicohomensacorrentados”.Ochicoteamentopúblicodosescravostambémcessou,e tantoapuniçãoporcrimesquantooaçoitedisciplinarpassaramaseraplicadosno interiordonovocomplexo carcerário. Com essas medidas, o Brasil substituiu a degradação e o tormento físico dedelinquentes emexibiçãopúblicapor sessõesprivadasdepunição, emdoses comedidas,por trásdosmurosdaprisão.12

OCalabouçodaCasadeCorreçãoconsistiaemduasgrandescelasque, juntas,podiamcomportar

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trezentoshomens,maisumacelamenor,nopisosuperior,comespaçoparatrintaaquarentamulheres.Olivrodematrículadosescravosqueentraramna instituiçãoporordem judicial, entre junhode1857emaiode1858,forneceumretrato,dopontodevistadosistemajudicial,dofuncionamentodoCalabouçoduranteesseperíodode“administraçãoiluminada”.Nesses12meses,asautoridadesenviaramaolocal359pessoas, 41 das quais emdepósito (nãopormotivode punição), transferidas de outras partes doBrasilparaoRio,mantidastemporariamenteatéqueseusnovosdonosasrecuperassem–umserviçoqueo Estado oferecia a compradores e vendedores. A Tabela 1 apresenta os dados registrados sobre osdelitosdos288casosrestantes.

Tabela1EscravosnoCalabouçodoRiodeJaneiro

porordemjudicial,1857-1858MotivodasPrisões Origem Sexo

Total % Brasil África Homens MulheresCapoeira 81 31,0 27 54 81 0Sercastigado 69 25,4 18 51 62 7Fugido 28 10,7 9 19 25 3Foradehoras 25 9,5 7 18 24 1Desordem 14 5,4 4 10 13 1Furto 12 4,5 5 7 12 0Usodearmasproibidas 7 2,7 1 6 7 0Insultos 7 2,7 4 3 5 2Averiguações 6 2,3 3 3 6 0Embriaguez 4 1,5 2 2 3 1Entraremcasaalheia 3 1,1 1 2 3 0Desobediências 2 0,8 1 1 2 0Espancamento 1 0,4 0 1 1 0Insubordinação 1 0,4 0 1 1 0Jogosilícitos 1 0,4 1 0 1 0Nadaconsta 27 10,3 10 17 25 2Total 288 100 93 195 271 17Fonte:ANRJ,IV72(Calabouço,MatrículadePresos,1857–1858).

Anaturezadaameaçaperturbadoraqueosescravosrepresentavamrevela-senosdadossobreosmotivosdasprisões,quetambémnosdãoumaindicaçãodarelaçãoentreoEstadodedireito,tãoprezadopelosideólogosliberais,eapropriedadehumana.Primeiro,constata-sequeogrupomaiorfoipresoporcapoeira,umaofensaquesequerfoimencionadanoCódigoCriminaldoImpérioounasposturasmunicipaisdoRiodeJaneiro.13Emoutraspalavras,quaseaterçapartedospresosqueasautoridadespoliciaisejudiciáriasmandaramaoCalabouço,segundoamatrículaoficial,oforamporummotivoquenãoeracontravençãodenenhumalei.Dos81presosporcapoeira,de1857a1858,14delesreceberamcinquentaaçoites,eoutros35forampunidoscomcemaçoites.Em69doscasosdesegundaimportância,depoisdecapoeira,nãohouveinformaçãosobreaofensa:simplesmenteforamcastigados.Emseguida,encontramos28ocorrênciasdepresosporfuga,umnúmerobastantereduzidoemrelaçãoaosmilharesdeescravosnacidade,porumaofensamuitasvezesconsideradaumainfraçãotípicadeescravo.14Em27destescasos,olivrodematrículanãotemnenhumaindicaçãodomotivodaprisão.EntreosoutrosmotivosqueaparecemnaTabela1,predominamasviolaçõesdaordempública,ouseja,ofensassemvítima,inaceitáveispeloperigoquerepresentavamparaaestabilidadedosistemade

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controle.Asestatísticasdolivrodematrículade1857–1858tambémfornecemindíciosdaorigemétnicadas

pessoasmandadasaoCalabouçopelasautoridades,conformeapresentadonaTabela2:

Tabela2EscravosnoCalabouçodoRiodeJaneiroporordemjudicial,1857-1858.Origemétnica(nostermosda

época,nação)Nação Número % Número %Crioulo 79 27,4Pardo 14 4,9Subtotaldebrasileiros 93 32,3Cabinda 31 10,8Angola 27 9,4Benguela 16 5,6Rebolo 7 2,4Monjolo 6 2,1Moange 6 2,1Cassange 5 1,7SubtotaldeAngola 99 34,4Moçambique 30 10,4Quilimane 30 10,4Mussuna 1 0,3SubtotaldeMoçambique 35 12,2Congo 19 6,6Mina(Ghana) 38 13,2Inhame(SãoTomé) 4 1,4Subtotaldosoutrosportosafricanos 61 21,2Subtotaldosafricanos 195 57,7Total 288 100Fonte:ANRJ,IV72(Calabouço,MatrículadePresos,1857–1858).

Nesseperíodo,maisdeduasdécadasdepoisde1831,quandoaimportaçãodeescravosnoBrasilfoideclaradailegal,ealgunsanosdepoisdofimdefinitivodotráficotransatlântico,porvoltade1851,doisterçosdosescravosmandadosaoCalabouço,pelasautoridadespoliciaisoujudiciais,eramdeorigemafricana.Entreeles,osoriundosdosváriosportosdeAngolasomavam99,oquesignificavapoucomaisdametadedosafricanoseumnúmeromaiordoqueodebrasileirosnatos.JuntadasascifrasparaosportosdeAngola,MoçambiqueeSãoThomé,vemosque138dosdetentos,quantidadebemsuperioraonúmerodebrasileirosequaseametadedototal,eramdeorigemétnicadascolôniasafricanasdePortugal.ComonãohámotivosparasuporqueosboçaisdeAngolaeMoçambiquefossemmaisrecalcitrantesoudispostosàcriminalidadequeosoutrosafricanos,estesnúmerosrefletem,maisquetudo,apredominânciadascolôniasportuguesasedoscomerciantesportugueses,emcolaboraçãocomseusparesbrasileiros,naúltimafasedotráficotransatlânticodecargahumanacomdestinoaoRiodeJaneiro.15

Olivrodematrículademaiode1857ajunhode1858,porém,comosdetalhesquefornecesobreaatuação do sistema policial e judiciário montado pelo Estado, é um registro apenas parcial dofuncionamentodaprisãodeescravos.Aolongodesteperíodo,afunçãomais importantedoCalabouçocontinuouaseradoserviçodisciplinar,oferecidoaossenhores.Osdadossumáriosparaoperíodode

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1856até1873,oúltimoanocompletodefuncionamentodoCalabouço,aparecemnaTabela3:

Tabela3EscravosentradosnoCalabouçodoRiodeJaneiro,1856a1873

ANO HOMENS MULHERES TOTAL1856 1.478 277 1.7551857 1.324 175 1.4991858 999 166 1.1651859 1.002 156 1.1581860 995 155 1.1501861 776 124 9001862 752 174 9251863 715 264 9791864 752 125 8771865 685 177 8621866 738 176 9141867 725 165 8901868 522 177 6991869 463 169 6321870 484 156 6401871 583 230 9131872 545 225 8701873 546 202 748

Fonte:MinistériodaJustiça,Relatório,Anexos,RelatóriosdodiretordaCasadeCorreçãoedochefedepolíciadaCorte,váriosanos.

Em 1826, como vimos, os senhores mandaram 1.786 cativos para o Calabouço. Em 1856, 1.755escravos foram presos, número quase igual ao de três décadas antes. Nos anos seguintes, porém,observam-se certas características nas tendências quantitativas que merecem comentários. Primeiro,houveumdeclínionotávelnonúmerodehomenspresos,baixandopelametadenoquinquêniode1857a1861. A curva, então, continua a declinar a um ritmomenos precipitado, com exceção de uma baixasignificativa nos anos 1868, 1869 e 1870. Uma interpretação possível, na falta de informações maisconcretas,seriaque,duranteosanosfinaisdaGuerradoParaguai,algunsdossenhores,queantesteriammandadoos escravos recalcitrantes aoCalabouçopara punição correcional, optavampor livrar-se detaisproblemasdisciplinares,fazendodelesumadoaçãopatrióticaparapreencherasfileirasdoExércitoemdefesadapátria.Outroaspectointeressanteéque,namédiadetodooperíodo,onúmerodeescravasquase não mudou. De um modo geral, estes dados mostram a continuada importância do sistemadisciplinarquetinhadesermantidoparaconfirmaraameaçaderespostabrutal,emcasodeviolaçãodoslimitesdocomportamentoaceitável.

Apesar do declínio do número de escravosmandados aoCalabouço, não devemosmenosprezar oterrívelsofrimentodaquelesqueaindasentiamolanhodachibatanaprópriapele.Tambémnãosepodeatribuiromenornúmerodechicoteamentoàrelutânciageneralizadaemimporestetipodepunição.Deummodogeral,apuniçãofísicacomoaçoitediminuiu,masoscasosextremosdesmentemanoçãodequeas regras haviammudado. Em agosto de 1844, por exemplo, João, escravo crioulo, foi mandado aoCalabouço para ser punido com setecentos açoites, sentença imposta por um tribunal de júri por terinfligidoferimentosgravesaoutrapessoa.Depoisdereceberototaldequinhentosaçoites,emblocosdecinquenta por vez – como decorrência da reforma “humanitária” do início da década de 1830 –,intercalados por períodos de recuperação, João morreu em 3 de abril de 1845, como resultado das

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“feridasecontusõesnaregiãoglútea,complicadaspordisenteria”.Claudina,tambémcrioula,entrounoCalabouçoem22demaiode1855, condenadapelo júri a trezentos açoites.Em1o de julhode1857,aindanaprisãodosescravos,deuàluzumamenina,tambémchamadaClaudina,queteveaVirgemMariacomomadrinha.Amãemorreuoitodiasapósoparto,eafilha,oitomesesmaistarde,em21demarçode1858.16

Comopartedoprocessodeindependênciapolítica,afimdeconseguiroreconhecimentodiplomáticodaGrã-Bretanha,oBrasilconcordouemeliminarotráficodeescravosdaÁfrica,pormeiodeumaleiquedeviaentraremvigorem7denovembrode1831.Emboraocomércionegreirocontinuasseemlargaescala,umnúmerorelativamentepequenodostrazidosacabouapreendido,emvagasdemonstraçõesdecumprimentodalei.17Aquestãoqueentãosurgiaeraoquefazercomestesafricanosnãoaculturados.Amaiorpartenãofalavaportuguêsaochegar,havendo,aliás,poucosmeiosdesedeterminaroseulocaldeorigem na África. As autoridades brasileiras decidiram que, embora não pudessem ser vendidos ecompradoscomoescravos, tampoucopoderiamser soltosnoBrasil paraque sevirassemsozinhos.Asoluçãofoideclararosafricanos“livres”,emboratuteladospeloEstado.Algunsdeleseramcontratadosporparticularesaumataxanominal,masamaioriatrabalhavanasrepartiçõesdogovernoouemprojetosde obras públicas. Na verdade, pouca diferença havia entre o tratamento recebido pelos africanosemancipadoseosdemaisescravos.18AprópriaCasadeCorreçãofoiconstruídade1836a1850,comamãode obra destes africanos “livres”, ao lado de prisioneiros sentenciados ao trabalho forçado e deescravos enviados ao Calabouço que foram transferidos para o local da construção em 1837, com oobjetivoexpressodetrabalharnoprojeto.19

Emjaneirode1845,umincidentenoDepósitodeAfricanosLivresdoCalabouçocomeçoucomumainfraçãodemenor importânciae se transformouemumgrandeconfronto.Estecaso revelaasatitudes,tantodas instituiçõesde repressãocomodosoprimidos, frenteàsnormasdecomportamento,quehojeconsideramos simbólicas, tendo em vista amanutenção das hierarquias de dominação, inclusive entrepessoas tidas como livres, sob a tutela doEstado. JoaquimLucasRibeiro, o feitor responsável pelosafricanos“livres”alimantidos,chamouàordemumdeles,denomeJacinto,porlheterfaladosemtirarochapéu. Jacinto então respondeu a Ribeiro, “dizendo-lhe que não tiraria ele o chapéu ao imperador,quantomais a um feitor”.No dia seguinte, o feitorRibeiro relatou o incidente ao diretor daCasa deCorreção, da qual o Calabouço fazia parte. O diretor, por sua vez, ordenou ao chefe da guarda quereunissetodososafricanos“livres”nolocale,“empresençadelesadmoestasseaoafricanoJacinto,eocastigassecomalgumaspalmatoadas”.Ofeitortambémestavapresente.Aosertrazido,Jacinto“nãoquisdeformaalgumasujeitar-seaocastigoquelheeradeterminadoe,dirigindo-seaofeitorRibeirocomumafaca em punho pretendeu assassiná-lo”. Para sua sorte, o feitor caiu de lado, quando Jacinto investiucontraele,eafacaatingiuaparede.TrêssoldadosdaPolíciaMilitaremserviçovieramemsocorrodochefe da guarda e de outro prisioneiro, subjugando Jacinto “depois de grande luta e resistência doafricano”. Jacinto recuperou sua arma, e a luta foi tão furiosa que os guardas quebraram a faca natentativadearrancá-ladesuamão.

Declarando que os africanos “livres” do Calabouço “devem ser conservados debaixo de toda adisciplina e respeito”, o diretor da prisão acusou Jacinto de tentativa de assassinato e recomendou“exemplarcastigo,quesirvadeespelhoaosoutrosafricanos,afimdecoibirqueserepitamatentadosdestanatureza”.Comooutrosprisioneirosqueesperavamjulgamento,elefoienviadoàcadeiadoAljube,onde as autoridades expressaram preocupação quanto à possibilidade de ele ser corrompido pelosprisioneiroscomuns.Porumacruelironiaburocrática,ocuradordosafricanos“livres”emitiuumacartadealforria,paraqueJacintopudesseserjulgadoesentenciadocomohomemlivreenãocomotuteladodoEstado.20 Sua ofensa original – a recusa de tirar o chapéu ao falar com um feitor – foi ummero atosimbólico de resistência ao fato de se encontrar preso por ter sido capturado na África e, apóssobreviver à travessia do Atlântico, ser trazido ao Brasil em aberta violação às leis do país. Ainda

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assim,ogovernoqueomantinhanessacondiçãonãoquisresponsabilizar-seporelenotribunal.No período em que a escravidão urbana começava a declinar, alguns incidentes mostravam a

importânciaeconômicadotrabalhoforçadoe,aomesmotempo,anecessidadedemanterumsistemadecontrole.Emabrilde1862,porexemplo,osadministradoresdoCalabouçoenfrentaramumasobrecargatemporárianotrabalhoderepressãoprovidopeloEstado,devidoauma“desagradávelocorrência”entreVicentePereiradaSilvaPortoeseusescravos.Vicentemandouumgrupode259delesparaoCalabouçoepagouparaquefossemchicoteados47dos“maisaltaneiros”,quelideravamoquesepodiacaracterizarcomoinsubordinaçãoemmassa.OfatoeratãoincomumqueochefedepolíciatevedepediraoministrodaJustiçaorientaçõessobrecomoproceder,observandoque,emboranãohouvesse leiquelimitasseonúmerodeescravosqueumúnicoproprietáriopodiamanternacidade,a“prudênciaeutilidadepública”recomendavam um limite máximo porque tantos escravos juntos podiam “complicar a ordem etranquilidadepública”.OministrodaJustiçaconcordou.21

Emum relatório de 1865, o diretor daCasa deCorreção, preocupado com sua própria função nosistemadecontroledosescravosemapoioaosdonosparticulares,reveloualgunspontosessenciaisdaposição do Estado como alicerce do sistema de trabalho forçado. Ao observar que os senhores seacostumaramautilizarosserviçosdoCalabouçocomoqueriam,ooficialreconheciaaraivalatentenosescravos,aomesmotempoquesecongratulavacomabondadedossenhoresbrasileiros,salvoalguns.Também tornava explícita a relação do Estado com os interesses particulares, com comentários quemerecemserconsideradosnaíntegra:

Semnem levementecontestaranecessidadepalpitanteda repressão imediatae sumáriadeumaclassequase sempre em hostilidade com seus dominadores, lastimo muitas vezes o excesso desse arbítrio,modificadomuitasvezespeloexamemédicodoEstabelecimento,àvistadoestadofísicodospacientes,notando-sefelizmenteparaocaráternacional,comsingularesexceções,queoexcessoderigornãopartiadosfilhosdopaís.

Nãobuscandonemdeleveperscrutaratéondechegamoslimitesdodireitodepropriedade,paraapontaralegalidadedadetençãodoescravoportempoilimitadonoCalabouço,maspareceque,seseudelitoédetalnaturezaquereclamatãoduraprovação,esseescravodeviaestarsobapressãodajustiça,eque,se a polícia intervinha nos castigos domésticos, quando excessivos, semquebra desse direito poderiaquererconhecerosmotivosdeumapenalongaquepodeequivaleràdemorte.22

Com o continuado declínio econômico, demográfico e social da escravidão na cidade do Rio deJaneiro,aprogressivadesativaçãodoCalabouço,nadécadaqueantecedeuoseufechamentoem1874,refletia a mudança geral rumo a instituições modernas, ainda que preservando as relações sociaistradicionaissobnovasaparências.AprisãodosescravoscontinuouaservircomolocaldedetençãoedisciplinapatrocinadopeloEstado,massuaimportânciadiminuiujuntamentecomaprópriaescravidãono terceiro quarto do século. Embora alguns escravos continuassem a sermandados para lá por seusdonosparafinsdepuniçãocorrecional,oaçoitecomosentençadetribunaldecaiudramaticamente.Em1869, por exemplo, 632 escravos passaram pelo Calabouço, mas somente três receberam puniçãocorporalporordemjudicial.Noanoseguinte,640escravosderamentradanoestabelecimento,apenassetedosquaisforamcondenadosjudicialmenteaoaçoite.23

Emabrilde1873,ofuncionáriodoMinistériodaJustiçaincumbidodeexaminarofuncionamentodoCalabouçoconcluiuqueeleeraumanacronismo:“umadaspoucasinstituiçõesdostemposcoloniaisquetêm resistido às reformas da civilização do século atual”. Ele relembrou a antiga prática de punir osescravosnaspraçaspúblicas,“prendendo-seospretosaposteschamadosmourõesondeosalgozeslhes

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lanhavam as glúteas assistidos por grande número de espectadores impassíveis diante dos gemidos econtorçõesdasvítimas”.Destacouaindaque“taisespetáculoscessaramhátalvez40anos”(ouseja,porvolta de 1833). “Hoje”, completou o oficial, “o Calabouço castiga, mas dentro de seu âmbito e empresençadepoucosespectadores–osinteressadosnoscastigos.Éomelhoramento,enãopequeno,quetemhavido.”24

Depoisde1873,nemmesmoosproprietáriostinhampermissãodeassistiràpuniçãodosescravos,oquelevantouasuspeitadequeopessoaldoCalabouçoestavarelaxandonoseudever.Houveentãoumaenxurrada de reclamações, da parte dos donos, acusando os funcionários do Calabouço de tratar osescravoscombrandura,denãorasparsuascabeçasnaentrada,conformeapráticausual,edevaler-sedeseusserviçosparafinalidadesparticularesenquantoestavamdetentos.Algunsescravosnãoerampunidoscomaseveridadequeosproprietáriospediamporqueomédicoresidente,queexaminavacadaescravoantes da punição, às vezes intervinha com a intenção de reduzir ou eliminar os açoites, fato queacarretavaa trocadocastigocorporalpor algum tempomaisdeprisão.Emoutroscasos,osprópriosdonos ordenavam que a punição fosse apenas a necessária para quebrar o que eles consideravamteimosia.Foioqueaconteceuemmaiode1873comaescravapardaClara,cujodono,CiprianoLopesdeOliveiraLírio,pediuaofeitorqueministravaaspunições“queevitassecontundi-lamuitoesustasseocastigologoquesemostrassehumilde”.AparentementeClarasemostrousuficientementehumildedepoisde36palmatoadas,poupando-seassimdos12bolosquerestavamdos48ordenadosporCiprianoLírioaoentregá-laaoCalabouço.25

Nasprimeirassemanasde1874,umaaltacomissãofezumarevisãodetalhadadofuncionamentodaCasadeCorreção,tomandonotaespecialdaanomaliadapersistênciadoCalabouçodentrodocomplexopenitenciário.AcomissãolembravaatransferênciadoCalabouço,em1837,doantigolocalnapontaqueseprojetavaparaabaíadeGuanabaraaopédomorrodoCastelo,paramelhoraproveitarotrabalhodosescravosdetidosnaconstruçãodanovapenitenciária.Agora,37anosdepois,osmembrosdacomissãorecomendarama transferênciadoCalabouçopara aCasadeDetenção, “seogovernonão julgarmaisacertadosuprimi-lodesdejá.Emtodoocaso,nãopodecontinuarsobaadministraçãododiretordaCasadeCorreção”.26

Aomesmo tempo, três anos depois da Lei do Ventre Livre e 14 anos antes da abolição total daescravatura,odiretordaCasadeCorreçãoreconheciaqueaescravidãotinhaseusdiascontadosequedeixavadeserracionaldopontodevistaeconômico,aodecidir.

Acabar como serviço de escravos nesta casa, porque a despesa de guardas para vigiá-los era quaseequivalenteàquetenhocompessoallivre,ecomvantagensqueseriaociosodemonstrar;alémdoqueaextinçãodaescravaturaestápróxima,easdificuldadesdevemnecessariamenteaumentarnaproporçãodotempoquecorre.27

Noúltimoanodesuaoperação,dejunhode1873amaiode1874,foramenviadosaoCalabouço554escravos,dosquais399tinhamnascidonoBrasile155naÁfrica,395eramhomense159mulheres.Em28demaiode1874,diadeseufechamento,encontravam-selá77escravos,sendosessentahomense17mulheres.Do último inventário de seu patrimônio, entre os resquícios de toda uma época de trabalhoforçado e coerção física, constavam “16 chicotes no valor total de 14$850” e duzentas argolas depescoço“novalortotalde500$000”.Catorzeanosantesdaderrocadafinaldaescravidão,quandohaviaaindacercade35milescravosnoRiodeJaneiro,acivilizaçãofechouasportasdoCalabouço,sendosuasfunçõesabsorvidaspelaCasadeDetenção.28

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OAljube

De1747atéachegadadaCorteportuguesaem1808,oprincipalcárcereparacriminososcomuns,achamada Cadeia da Relação, postava-se no palácio de Justiça (no local hoje ocupado pelo palácioTiradentes), próximo à residência do vice-rei, que depois se tornou o PaçoReal. Para transformar oprédiodopaláciode Justiça emalojamento temporárioparaosmembrosda comitiva real, o governoprecisoudeoutrolocalparatrancafiaroscriminosos.Asautoridadescivisrequisitaram,então,ousodeum cárcere eclesiástico, construído pela Igreja, em 1732, no pé do morro da Conceição, abaixo dopalácioEpiscopal, próximoà junçãodas ruas daPrainha (hojeAcre) e daVala (hojeUruguaiana).OAljube,29em1808,superavaemmuitoasnecessidadesdaIgreja,demodoqueobispoconcordoucomarequisição,desdequesereservasseumacelaparaadetençãodisciplinardepadres,casodelahouvessenecessidade.UmavezcedidoaoEstado,entre1808e1856,oAljubetornou-seodestinodamaioriadospresos, escravos ou livres, que aguardavam julgamento ou eram condenados por pequenos delitos oucrimescomuns,jogando-seogarotoacusadodesurrupiarumafrutanomercadonamesmaenxoviaondeseencontravaobandidomaisviolentoeempedernido.

Umadasprincipaiscríticasqueosreformadoresliberaisfaziamaoantigosistemalegalejudicialeraquantoàsuaarbitrariedade.ComoescreveuDiogoAntônioFeijó,ministrodaJustiçaem1831:

Aadministraçãodajustiçacriminalépéssima.Afaltadeprontapuniçãodocrimedescoroçoaocidadãopacífico, e respeitador da lei. A indiferença dos magistrados, a ignorância de grande parte deles,organizandoprocessosinformes,dãolugaràimpunidadedosréus.

SegundoofuturoregentedoImpério,destasituaçãoresultava:

Verem-se por isso todos os dias com espanto, e indignação soltarem-se réus carregados de enormescrimes,quandooutrosporpequenas faltas jazemsepultadosanos inteirosnasprisões.Nãoépossível,quepossacontinuaresteestadodecoisas!30

Naprática, istosignificavaqueaacusaçãodecrime,basedacondenação,easentençaficavamnaestritadependênciadoshumoresdomagistradoquepresidiaojulgamento.Quandoojuizeraointendentede polícia ou um dos juízes do crime que o assistiam, o desfecho do caso acontecia sob a mesmaautoridadequeefetuaraaprisão.Nãohaviafigurapúblicaouoficialmenteneutranoprocessojudiciale,paracrimesmenores,muitasvezesnãohavia sequer registrodocaso.O ladrãoquecometiapequenosfurtosouovalentãoquebatera emalguémemumabrigaoudesacatarao funcionáriodapolícia eramlevados perante a autoridade que presidia o julgamento. O agente que fizera a prisão ou o meirinhoinformava a acusação e descrevia os fatos, e o juiz pronunciava a sentença.O réu era imediatamentelevadoàcadeia,sendoatiradoporumaportinholaemumpoçomalcheiroso.

UmainspeçãonoAljube,realizadaemabrilde1833,porEusébiodeQueirozMatosoCâmara,chefede polícia do Rio de Janeiro, fornece uma visão detalhada e chocante das condições no cárcere,construídojustoumséculoantesetomadodaIgrejaem1808:

AcadeiadoAljubesituadanabaixadeumamontanhaeporconsequênciamalarejadacontémdentrodediversasprisõespoucoespaçosaspertode400pessoasamontoadas,amaiorpartedelassendodebaixacondição,conservamsobreocorpopoucaroupa,eessasumamentesuja.Asparedesquasesemcalseachamemumestadoverdadeiramentenojento,opavimentopelamuitalamadequeécobertomaisparece

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habitaçãodeanimais imundosdoquedehomens.Oscanosparaesgotodaságuaspormalconstruídosconservam-nas longo tempo empoçadas, o que produz exalações insuportáveis. Todas estas coisasreunidas fazemquese respirenacadeiaumar tão impuroecorrompidoquesepodeconsiderarcomoverdadeirofocodemoléstiascontagiosas.

Aprisãodasmulheresprincipalmente,emquealémdetodasestascausasconcorreadesersumamentepequena,fazhorror.

Umaonçadecarne,umvigésimodefarinha,epoucosgrãosdefeijãosãooúnicoalimentoquede24em24 horas aquelesmiseráveis recebem da SantaCasa deMisericórdia, o almoço que antigamente lhesdavafoiabolido,ehojenacadeiaossemblantespálidosedesfiguradosdospresosbemindicamafomeque os devora, quando nas queixas e reclamações dos carcereiros assaz o não comprovassem. Naenfermariadasmulheresapareceramjáduasfebresdaquadra,postoquefossembenignas,contudonãoserá difícil que se tornem perniciosas, visto o grande número de princípios corruptivos que ali seencontram,eoquemeinformouoprofessorencarregadodaquelaenfermaria.

Resumindo, o chefedepolíciadeclarou: “OAljube évergonhosomonumentodebarbaridade, quenão corresponde ao grau de civilização emque a nossa pátria se acha amuitos outros respeitos.”Asestatísticasincluídasnomesmorelatóriode1833mostramosusosaquesedestinavaacadeiadoAljubenoperíodo,comomostraaTabela4:

Tabela4PresosnoAljubedoRiodeJaneiro,abrilde1833

SENTENCIADOSÀprisãosimples 34Aoutraspenas 22Àmorte 3Totaldesentenciados 59EmprocessoSimplesmentepronunciados 109Comolibelooferecido 92Totalemprocesso 201Presosemcustódia,inclusivealgunsmarinheirospresosàrequisiçãodoscônsulesestrangeiros 34Haviamcumpridosuassentençasedeviamsersoltosmediantealgumasformalidades 3Nãosepodemaveriguaroestadodosseusprocessoseapenaaqueestãocondenados 43Totaldospresosencontrados 340Fonte:ArquivoNacionaldoRiodeJaneiro,J6166.(OfíciosdochefedepolíciadaCorte,23deabrilde1833.)

Dototalde340pessoas,somente20%tinhamsentençaformal.Maisqueametadeesperavaoprocessolegalquedecidiriaseudestino.Jáparaquase13%nãoexistiamsequerregistros;ninguémpodiadizerporqueestavaali,qualasuasentençaouquantodelajátinhacumprido.31

Osfuncionáriosdapolíciacalculavamque,dando-separacadaprisioneiroumaáreadepisode7x12palmos(cercade1,5x2,5m),oAljubepodiacomportar192pessoas.Aventilaçãoedrenagemeramprecárias;osfundosdoedifícioforamescavadosdarochamaciçadomorroqueficavaatrás,eaáguasubterrâneagotejavaconstantementenascelasqueabrigavamosprisioneiros.Em1838,umacomissãodeinspeçãoenviadaaoAljubepelaCâmaraMunicipaldoRiodeJaneirodescreveusuarepulsaaoentrarnaquele poço de todos os vícios, “naquela caverna infernal”. A aparência dos prisioneiros fez osvisitantes tremerem de horror.Mal cobertos com trapos imundos, eles os cercaram, queixando-se de

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quemostinhamandadoparatal“suplício”semdeclará-losculpadosdecrimealgum.Aentradaparaascelas subterrâneas se dava por portinholas no teto, e na maior das salas os inspetores contaram 85homens, escravos e livres, dormindo no piso de pedra úmida. Os carcereiros que acompanharam osvisitantesdisseramque,nasduascelasemqueascondiçõeserampiores,muitosprisioneirosmorriamsufocados,sobretudonoverão.Contaram-seaotodo390prisioneiros.Recalculando-seoespaço,cadapessoaconfinadanoAljube,em1838,dispunhadeumaáreade0,60x1,20m,oquenãopermitiasequerquesedeitassenopisoenlameado.32

Coma extinção da guardaReal dePolícia, em1831, a guarda dos presos passou a ser feita pelorecém-criadoCorpoMunicipal de Permanentes, antecessor da PolíciaMilitar de hoje. LuísAlves deLimaeSilva,futuroduquedeCaxias,comandantedospermanentesduranteoperíodoformativode1832a1839,ganhoufamadeimporumadisciplinaexemplarànovaforçapolicial,estabelecendo,aomesmotempo,oslimitesaseremseguidospelosresponsáveispormantersobcontroleasociedadeurbana,comotambémpelaguardadospresosnoAljube.

Em um incidente de 1833, alguns dos permanentes em serviço de guarda na cadeia claramente seexcederam no exercício da força. Para os responsáveis pelo novo sistema policial, o acontecimentoconstituiuumexemplodosriscosdesepermitirousodearmasdefogo,porhomensquepoucotinhamaperder. O episódio tambémmostrou como era precária a condição dos presos na cadeia, não só emfunção da situação insalubre das enxovias em que estavam amontoados.Altas horas da noite de 8 deOutubro de 1833, oministro da Justiça,Aureliano de SousaCoutinho, recebeu um bilhete escrito empapel amarrotado, coberto de garatujas que revelavam alguém não habituado à redação decorrespondênciaformal.VinhadoAljubeeoconteúdoeraalarmante:“Nossasvidasestãoameaçadas”,diziaobilhete,“etodosestamosemperigodeserassassinadosestanoite,porqueospermanentesestãofazendofogonasprisões,quedizemporordemquetem.”Suplicandoaoministro“quenosassegureasnossasvidas,equedêprovidênciasessanoiteparaquenãosejamostodosvítimasouassassinados”,amensagemconcluíaapressadamente:“Nadamaispossodizer,porquetambémesperoumtiro,porémsóconfionahumanidadedeVossaExcelência.”Namanhãseguinte,ochefedepolíciaEusébiodeQueirozrecebeu um relatóriomais completo do carcereiro doAljube, confirmando o conteúdo do bilhete queAurelianoreceberaedandomaisdetalhesdaterrívelnoite.

Pelo relatodocarcereirode“umatentadoomais inusitado,perpetradopelaguardadestacadeia”,porvoltadas20:30,enquantoelecolocavaos lampiõesnaentradadoedifício,umdosguardas trocoupalavrasríspidascomumprisioneironasalalivre,queeraaceladestinadaaospresoscujadetençãoeramaisbreve.Derepente,surgiuoutroguardaquedisparouumtiroatravésdajanelaparadentrodacela.Oprimeiroguardaseguiu-lheoexemplo.Pensandoquehaviaumatentativaderebeliãodosprisioneiros,osdemaissoldadosdepolíciaemserviçonaquelanoitevieramcorrendo.Ocarcereiropediuaosargentodaguarda“queproibisseaossoldadosdoseucomandoumprocedertãoinjusto,comotemerário,quenadamaiseradoqueumataqueàsvidasdemuitoshomens”.Osargentonadarespondeu,saindocomosoutrosguardasquandosecertificoudequenãohaviamotimentreosprisioneiros.O tiroteio recomeçoucommais quatro disparos para dentro da sala livre.Ninguémmorreu,mas o prisioneiro JoséBento Jorgeficougravementeferido.Umdosguardasrecalcitrantespermaneceucomomosquete,prontoparaatiraremqualquerprisioneiroqueaparecessenajanela.Quandoocarcereiroseaventurouaperguntaroqueestava fazendo, o soldado replicou: “Estou caçando.” O barulho de uma garrafa quebrada no pátioconfirmou as suspeitas do carcereiro de que os guardas estiveram bebendo. Armados, os guardasandavamemvoltadaprisão,parandotodootrânsitonaruadaPrainha.Dooutrolado,osmoradoresedonosdetavernasobservavamacenadehorror.Emmeioatudoisso,osprisioneirosdasduascelasquereceberamosdisparossemantiveramabaixadoseomaiscalmosquepuderamnaquelascircunstâncias.Umdeles, que sabia escrever, conseguiu passar o bilhete desesperado pedindo a ajuda da autoridadesuperior.Asituaçãofinalmenteestabilizou-seemumacalmariatensa,atéqueosguardasforamrendidos

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poroutrapatrulhadapolíciamilitar.EmseuofícioaLuísAlvesdeLimaeSilva,comandantedoCorpoMunicipal de Permanentes, oministro da Justiça deplorou o incidente, solicitando que o comandanteprocedesse contra os envolvidos conforme o regulamento exigia, “fazendo-lhes sentir o quanto um talprocedimento, a ser como se diz, é destruidor da ordem, da confiança, que no corpo existe, e dadisciplinadele”.33

OAljubecontinuouaserumimportantecentroparadetençõesdecurtaduraçãodecondenadosporinfraçõesmenores.Em1853,quando1.740pessoaspassarampeladelegaciacentraldepolícia,5.427cumprirampenascurtasnoAljube.Aolongodetodooanode1854,enquanto2.642pessoaspassarampeloxadrezdapolícia, 5.660 ficaramalgum temponas enxoviasúmidasdoAljube.Apesar de algunsesforços paramelhorar as instalações sanitárias da antiga prisão eclesiástica, no início de 1856, umacomissãodeinspeçãoapresentouoúltimodeumasériederelatóriossobreassuascondiçõesinsalubres,juntamente com uma estimativa de custos para os reparos necessários. O chefe de polícia passou odocumentoadiantecomumavibrantecondenação,deixandoclaraasuaopiniãodequeoproblemanãoestavatantonacompletaesqualidezdolocal,masnocontrasteentreseuconceitoeaposiçãopolíticaecultural do Rio de Janeiro: “Na capital do Império, sede dos Poderes Gerais e centro da nossacivilização […] [o Aljube] está em flagrante contradição com os sentimentos humanitários quedistinguemapopulaçãobrasileira.”Chamandoaantigamasmorraeclesiásticade“protestovivocontranosso progresso moral”, recomendou que ela fosse fechada e suas funções transferidas para outroslocais.34 Como consequência, em abril de 1856, as funções do Aljube foram assumidas pelarecémestabelecidaCasadeDetenção,partedocomplexopenitenciárioemqueselocalizavamtambémaCasadeCorreçãoeoCalabouço,naruaNovadoConde.

Conclusão

É preciso distinguir claramente os termos escravidão e liberdade, mas, à medida que o sistemaescravocrataperdiasuaforçanoRiodeJaneiro,asinstituiçõesquelheofereciaminfraestrutura,sendooCalabouçoumadasmaisimportantes,fundiram-secomsuascongêneressurgidasnodecorrerdoséculoXIX.Noscamposeconômico,legalejudicialnãohouverupturasbruscascomopassado.Noiníciodoséculo, o sistema carcerário funcionou como extensão do Estado no controle exercido pela classeproprietáriasobreaspessoasdesuapropriedade.Comadiminuiçãogradativadonúmerodeescravosnapopulação, apósmeados do século XIX, as atitudes e práticas repressivas foram, aos poucos, sendotransferidas para as classes inferiores não-escravas e aí permaneceram.Durante omesmo período, apersistência dasmasmorras coloniais, tanto o antigo Calabouço como a cadeia do Aljube, chocavamclaramente as pretensões da classe política que se via portadora da modernização tanto no campoinstitucionalquantonoideológico.ComaconstruçãodaCasadeCorreção,em1850,oestabelecimentode uma Casa de Detenção no mesmo local, em 1856, e o fechamento do Aljube, o Estado pôdecongratular-seporestabelecerinstituiçõesmodernasdeencarceramento,pelomenosnoideal.

1Paraumavisãogeraldestesprocessos,ver:HOLLOWAY,ThomasH.PolícianoRiodeJaneiro:repressãoeresistêncianumacidadedoséculoXIX.RiodeJaneiro:FundaçãoGetúlioVargas,1997.

2KARASCH,Mary.AvidadosescravosnoRiodeJaneiro(1808–1850).SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2000.3Apalavra“calabouço”relaciona-secom“poçodenavio”,conotandoumamasmorraescuraeúmida.Emalgunsdocumentosdaépoca,oCalabouçoeratambémchamadode“prisãodoCastelo”.APontadoCalabouçocontinuavaaaparecernosmapasdacidadeatéquefoicobertapeloaterroresultantedademoliçãodomorrodoCastelonadécadade1920.Apesardenãomaisexistir,oantigousodolocaltambémdeuorigemaonomedorefeitóriodeestudantesuniversitários,próximoaoprédiodoMinistériodaEducação,lugardemanifestaçõespolíticasnosanos1960.

4ArquivoNacionaldoRiodeJaneiro(emdianteANRJ),códice385,receitadebilhetesdecorreçãodeescravos.IntendenteGeraldePolícia,

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1826.Ver:KARASCH,op.cit,Tabela5.1,p.125,paraatabulaçãodessesdadosporsexoenúmerodeaçoites.5ANRJ,IJ6166.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,23deabrilde1833.EusébiodeQueiroz,comoministrodaJustiçaem1850,ganhoudestaquenahistóriaporpromoveraleiqueconseguiuacabarcomaimportaçãodeescravosafricanos.

6ANRJ,IIIJ7.OfíciosdoCalabouço,19demaiode1845.7MinistrodaJustiça,Relatório,1830,p.6.8MinistrodaJustiça,Relatório,1831,p.11.9FOUCAULT,Michel.Disciplineandpunish:Thebirthoftheprison.NewYork:Vintage1979,p.55;WEBER,Max.Thetheoryofsocialandeconomicorganization.NewYork:OxfordPress,1947,p.337-40.

10FREYRE,Gilberto.Sobradosemocambos:decadênciadopatriarcadoruralnoBrasil.SãoPaulo:EditoraNacional,1936.Cap.2;DAMATTA,Roberto.Acasaearua.SãoPaulo:Rocco,1985.

11ANRJ,IJ6202.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,11dedezembrode1844.12Sobreatransiçãogeral,ver:FOUCAULT,op.cit.Sobreoslibambosnocomeçodoséculo,ver:KARASCH,op.cit.,p.118-9.Sobresua

eliminação,ANRJ,IIIJ742.OfíciosdoCalabouço,26desetembrode1844.13Ajustificativalegalparaadetençãoepuniçãodoscapoeiras,quandomencionada,erageralmentealeide6dejunhode1831,aprovadaapós

váriosdistúrbiospolíticosepopularesnoperíodoqueseguiuaabdicaçãodoimperadorPedroI.Estaleinãomencionavacapoeira,masproibiaoportedearmasdedefesaeosajuntamentosilícitos.SócomoCódigoPenaldaRepública,em1890,seriaacapoeiradeclaradacontravençãodelei.ParaumavisãogeraldofenômenodacapoeiranoRiodeJaneirodoséculoXIX,ver:HOLLOWAY,ThomasH.RepressãopolicialaoscapoeiraseresistênciadosescravosnoRiodeJaneironoséculoXIX.Estudosafro-asiáticos(RiodeJaneiro),16marçode1989,p.129-140;SOARES,CarlosEugênioLíbano:Anegregadainstituição:oscapoeirasnaCorteimperial.RiodeJaneiro:Access,1999.

14NorecenseamentodoRiodeJaneirode1849,oprimeirofeitoemmoldesmodernos,foramcontados78.855escravosnasfreguesiasurbanas.Paraumaversãocompletadosdadosdocensode1849,ver:HOLLOWAY,ThomasH.HaddockLoboeorecenseamentodoRiode1849.BoletimeletrônicodoNúcleodeEstudosemHistóriaDemográfica,XI:50(junhode2008),<http://www.brnuede.com/bhds/bhd50/bhd50.htm>.Em1872,orecenseamentonacionalcontou37.567escravosnamesmazonaurbana:BRASIL,Diretoriageraldeestatística.RecenseamentodapopulaçãodoImpériodoBrasilaqueseprocedeunodia1odeagostode1872(RiodeJaneiro:TipografiaNacional,1873–1876).

15ANRJ,III742.OfíciosdoCalabouço,3deabrilde1845;IV72(Calabouço–MatrículadePresos),22demarçode1858.NãoconstaodelitooriginaldeClaudina.

16Édenotarque,naprovínciadaBahia,nestemesmoperíodo,aregiãodeorigemdosescravosimportadoseraacostaafricanamaisaonorte,deBeninaDahomey.Ver:REIS,JoãoJosé:Therevolutionoftheganhadores:urbanlabour,ethnicity,andtheAfricanstrikeof1857inBahia,Brazil.JournalofLatinAmericanStudies29:2(maiode1997),p.358.

17Aleiquetornouilegalotráficodeescravosdeuorigemàexpressãobrasileira“parainglêsver”.Osabolicionistasbrasileirosafirmaram,posteriormente,quemaisdeummilhãodeescravosforamimportadosilegalmentedepoisde1831,númeroque,pelasestimativasconservadorasdogovernobritânico,foide484.726;destes,somente11milsetornaramafricanos“livres”,(MinistrodaJustiça,Relatório,1868,p.13).Vertambém:BETHELL,Leslie.TheabolitionoftheBrazilianslavetrade.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1970,p.388-393.

18Sobreosafricanos“livres”,tambémchamados“emancipados”,ver:CONRAD,Robert.Neitherslavenorfree:theemancipadosofBrazil.HispanicAmericanHistoricalReview53:1,fevereirode1973,p.50-70;eThedestructionofBrazilianslavery,1850–1888.Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1972,p.41-44.OdepósitodeafricanoslivresdentrodaCasadeCorreçãofoiextintosóem1865.(MinistrodaJustiça,Relatório,1865,anexoC,p.5.)

19Em1836,havia130africanos“livres”trabalhandonaconstruçãodaprisão;porvoltade1840,173prisioneirosdoCalabouçotocavamaobra,juntamentecom162africanos“livres”,querecebiamumagratificaçãodiáriade10a20réispordia.(MinistrodaJustiça,Relatório,1836,p.28;1840,p.25.)

20ANRJ,IIIJ7.OfíciosdoCalabouço,13,20dejaneirode1845.21ANRJ,IJ6516.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,14deabrilde1862.22MinistrodaJustiça,Relatório,1865,anexoC,p.5.23MinistrodaJustiça,Relatório,1870,anexo,p.91;1871,anexo,p.78.24ANRJ,IJ6518.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,27deabrilde1873.25ANRJ,IIIJ794.OfíciosdoCalabouço,9deabril,12demaiode1873.26MinistrodaJustiça,Relatório,1873,Anexo,RelatóriodaComissãoInspetoradaCasadeCorreçãodaCorte,15defevereirode1874,p.

212.27MinistrodaJustiça,Relatório,1874,Anexo,p.233.28ANRJ,IIIJ791.OfíciosdoCalabouço,28demaio,3dejunhode1874.Ocensode1872contou37.567escravosnas11freguesiasurbanas

dacidade,16%dapopulaçãototalde228.734.Nosrelatóriosanuaisdochefedepolícia,responsávelpelaCasadeDetenção,posterioresa1874,oCalabouçonãoaparececomoumarepartiçãoseparada.

29Aljubeéapalavraárabeparaprisãoeclesiástica.Pelosforosdeseuestado,osclérigosnaépocacolonialsópodiamserjulgadosportribunaisdaIgreja,tantonoscasosdeviolaçãodasnormaseclesiásticasquantoporoutroscrimes,esópodiamficardetidosemcárcereseclesiásticos.

30MinistrodaJustiça,Relatório,1831,p.7-8.31ANRJ,IJ6166.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,23deabrilde1833.32Asdimensõesdascelassãodeumrelatóriode1835,mencionadasemoutrode1838.ANRJ,IJ6186.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,

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26deabrilde1838.33ArquivoGeraldaPolíciaMilitardoEstadodoRiodeJaneiro,correspondênciarecebidadasdiversasautoridades,8e9deoutubrode1833.34ANRJ,IJ6222.OfíciosdochefedepolíciadaCorte,23defevereirode1856.MinistrodaJustiça,Relatório,1857,p.15.

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“N

8–TRABALHOECONFLITOSNACASADECORREÇÃODORIODEJANEIRO

MarileneAntunesSant’Anna

ãopode!Nãopode!”FoiesseogritoderevoltadospresosdaCasadeCorreçãodoRiodeJaneiroquando viram Januário João Gonçalves, também conhecido como “Giló”, ser agredido por um

guardanas costas e na cabeça coma coronhada carabina e cair no chãobanhado em sangue.Logo aseguir,opreso foi levadoparaa “solitária”queexistianoúltimoandardaprisãoe ali, juntocomosdemaiscondenadosquegritaramcontraosguardas,passouapãoeáguaatéamanhãdodiaseguinte.1Acompanhandoosprincipaisjornaisnoperíodode20a23deoutubrode1905,podemosafirmarquetalbrigaentreoindivíduopresoeoguardafoioestopimdeumagranderevoltanaCasadeCorreçãoqueaofinal deixou três guardas feridos e um prisioneiro morto. O desenrolar do conflito continuou no diaseguinte,20deoutubro,quando,apesardasdurasprovidênciasdojejumedoisolamentotomadaspeladireçãodaprisão,ostumultosirromperamviolentos.Apósaaberturadascelasàsseishorasdamanhã,os demais presos, previamente combinados, espalharam-se pelo pátio interno e tentaram arrancar dosguardas as chaves das celas com o objetivo de soltarem os envolvidos no conflito do dia anterior.Armados de facas, compassos, limas, ferros e vários instrumentos que retiraram principalmente dasoficinasdetrabalho,quebraramtudoqueencontraramnasdependênciasdaprisãoepartiramparaabrigacomosguardas.Oconflitosófoicontornadocomachegadadeumdestacamento,compostodequarentahomens,que,divididoemduasalas,forçouospresosaserenderem,nãosemumaúltimabriga,naqualfoi assassinado o preso de número 772, que os jornais identificaram como José Macedo, 34 anos,pernambucano,quealicumpriapenaporcrimedemorte.2

Como dissemos, essa foi uma grande revolta que marcou a trajetória da penitenciária da capitalrepublicana no início do séculoXX.Mas não foi absolutamente a única!Nessemesmo ano de 1905,outrasrevoltascoletivas,alémdeevasãodepresos,denúnciasdemaus-tratos,corrupçãopormeiodosguardas, foram problemas enfrentados pela administração da prisão que atravessaram os muros dapenitenciáriaechegaramaos jornaise leitoresdacidadedoRiodeJaneiro.Osgritosde“nãopode!”tornaram-seexpressãoda imagemdedesorganizaçãoeabandonoqueos jornaisdacidadeconstruíramacercadaCasadeCorreçãonoiníciodoséculoXX.

Por conta de todos esses problemas, oMinistério da Justiça eNegócios Interiores instituiu, nessemesmo ano de 1905, uma comissão destinada a investigar toda a administração da prisão. O grupoelaborou um relatório de vinte páginas onde não poupou críticas às condições físicas e higiênicas doestabelecimentoeàdesordemdarotinaprisionalqueemnadacontribuíaparaodesenvolvimentomoraldosindivíduoscondenados.Estes,segundoacomissãooficial,nãofrequentavamaescola,nãocontavamcomosserviçosperiódicosdeumcapelão,mantinhamrelaçõesconflituosascomochefedosguardasecom a direção, além de descumprirem todas as regras de conduta no interior do estabelecimento:fumavam, jogavam e, principalmente, liam os jornais, que os informavam sobre o que se passava natumultuadacidadedoRiodeJaneiroe–piordetudo–sobreasnotíciasdaprópriaCasadeCorreção.Dessejeito,asconclusõesdogrupoforamaspiorespossíveis:

OqueaComissãoencontrou, edenunciaaV.Ex., foiumdepósitodepresos,onde tudoéprimitivoedesordenado,praticadosemplano,semconhecimentodoquesejaumsistemapenitenciárioquetemdeser executado em todas as suas partes, sem discrepância, harmonicamente, para poder atingir os seus

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elevadosehumanitáriosfins[…]EparaquefiquebemfirmadonamemóriadeV.Ex.oqueaComissãopensa, em resumo, ela dirá: A Casa de Correção não tem administração, não tem sistema, não temmoralidadeoumelhor:NãoháCasadeCorreção.3

Na citação acima, surgem alguns indícios das dificuldades existentes no dia a dia da Casa deCorreção.Além disso, fica claro o ideal que se buscava para a instituição: um sistema penitenciárioorganizadoharmonicamentequevisasse“elevadosehumanitáriosfins”paraossentenciadose tambémpara todaasociedadebrasileira.Eoqueentendiamoshomensdacomissãoporsistemapenitenciáriobemexecutado?Noentendimentodejuristas,advogadosemédicosdaquelaépocanoBrasil,asprisõesdeveriamconstituirumaverdadeiraciência–a“penologia”ou“ciênciapenitenciária”–queseocupassede importantes questões como a identificação dos criminosos, a defesa da sociedade, além daregeneraçãodosindivíduosdelinquentes.Dessejeito,emmeioaosdebatesjurídicos,dominados,emsuamaior parte por conceitos da Escola Positiva, cujos ícones foram Cesare Lombroso (1836-1909),Raffaele Garofalo (1851-1934) e Enrico Ferri (1856-1929), a prisão deveria converter-se emlaboratóriosdeobservaçãodosindivíduoscriminosos,afimdeserpossívelestudarsuapersonalidadecriminosa,osmotivosdoscrimes,osantecedentesfamiliaresepsíquicos,entreoutrosaspectos.Comovimosatéaqui,nadamaisdistantedarealidadedasprisõesdaviradadoséculoXIXparaoXX.

Ao iniciarmos o presente texto com a narrativa de uma revolta coletiva da Casa de Correção,interessa-nos primeiramente chamar a atenção para esse período importante da história do sistemapenitenciário brasileiro que foi o final do século XIX. De um lado, as prisões deveriam serreestruturadas de acordo com os princípios modernos da Escola Positiva. Do outro lado, havia aexperiência do funcionamento da Casa de Correção desde 1850, que demonstrava um acúmulo deproblemas naquela que foi criada para ser a prisãomodelo do Império brasileiro.A partir de agora,nossoobjetivoserádemonstrarcomoessainstituiçãoprisionalseorganizouaolongodoséculoXIXparaenfrentar esse paradoxo. Proposta por políticos, juristas e médicos para servir como um avanço emrelaçãoàspráticaspunitivaspredominantesnasprimeirasdécadasdoséculoXIXese transformaremreferência para a regeneração dos indivíduos criminosos por meio do trabalho, da religião e daeducação, a Casa de Correção do Rio de Janeiro – e também as demais criadas nas provínciasbrasileiras–enfrentouumdifícilprocessodeadequaçãoaosdebatesjurídi-co-penaisqueproliferaramportodooséculoXIXnaEuropaeEstadosUnidose,poroutrolado,àprópriarealidadebrasileira,quesofriaprofundastransformaçõescomocrescimentodascidadeseasmudançasnasrelaçõesdetrabalho,principalmenteapartirdadécadade1870.

Para acompanharmos as propostas que o Estado brasileiro formulou a respeito dessa instituiçãopenitenciáriaedemonstrarmososproblemasenfrentadosemsuarotina,dividimosotextoemtrêspartes.Aprimeiraapresentaasprincipaisideiasdiscutidasporpolíticos,magistradosemédicosporocasiãodaformulação da Casa de Correção, ao longo das décadas de 1830 até 1850. A seguir, tratamos dosprincipais aspectos do funcionamento desta instituição, focalizando a questão do trabalho penal, pelaimportânciaquetalpressupostoocupounosprojetosedebatespenitenciáriosenoprópriodiaadiadaprisão.Porfim,confrontamosarealidadequeaCasadeCorreçãoatravessavanachegadadaRepública,nofinaldoséculoXIX.

Nesta introdução, cabe ainda uma última palavra sobre as fontes. Como comprovam estudoshistóricosmaisrecentes,nossoconhecimentosobreavidanasprisõesdoRiodeJaneiroe,comcerteza,de todo o Brasil ainda é muito limitado. Como adverte Michelle Perrot, há uma enorme produçãodistribuída nos arquivos judiciais sobre a “instituição penitenciária,mas infinitamentemais taciturnassobreosprisioneiros”.4Ouseja,regulamentos,ofícios,relatóriosdosdiretoresedosmédicos,projetosarquitetônicos,contabilidade,estatísticasproduzidasemtornoda“eficácia”daprisão–principalmente

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noséculoXIX–aparecemnasfontesemmuitomaiornúmerodoquerelatos,biografias,prontuáriosquetratamdocotidianoedasexperiênciasdeaprisionamentodeindivíduosexcluídos.Portanto,todoonossoesforçodepesquisacaminhajustamenteparatranspormaisessemuroquecercaasprisões.Nestetexto,quetratadeumaapresentaçãomaisgeraldaCasadeCorreçãodoRiodeJaneiro,asfontessãodiversas.Predominamofícios, avisos e relatóriosproduzidospelosdiretoresdapenitenciária.Todavia, jornais,relatosdevisitasindividuaisoudecomissõesformaisdeinvestigaçãosãoaquidocumentosfundamentaisporquetrazemnovasconcepçõessobreospresoseaprisãoquemodificamocaráterdeeficáciaqueopoder público e as autoridades judiciais geralmente apresentam quanto tratam do tema. Para além dafrase clássica presente nos relatórios dos diretores: – “Tenho o prazer de anunciar-vos que a ordemcontinuainalteradanaCasadeCorreção”–,podemosafirmarquehávidaemdemasiaportrásdosmurosdasprisões!

OImpériodoBrasileaprisão

Pensaraprisão foiumaquestão importanteno séculoXIXbrasileiro.Desdeasprimeirasdécadasdeste século, quando ocorrerammudanças na legislação e na estrutura judiciária do país, a forma depunir os indivíduos criminosos foi discutida demodo cada vezmais intenso, alcançando repercussãoentregrupos importantesdeatuaçãopolítica, jurídicaesocialnoBrasil.Dopontodevista jurídico,aConstituiçãode1824eoCódigoCriminalde1830introduziramaquestãodoaprisionamentomodernonopaís.AConstituiçãodeterminouquedaliemdianteas“cadeiasserãoseguras,limpasebemarejadas,havendodiversascasasparaseparaçãodosréus,conformesuascircunstânciasenaturezadeseuscrimes”(parágrafoXXIdoartigo179).Eliminouosaçoites,amarcadeferroquenteetodasaspenascruéis.OCódigode1830fixouapenadeprisãosimpleseprisãocomtrabalhocomomajoritáriapara todosostipos de crimes cometidos, embora ainda não se apresentasse nesse momento nenhuma proposta deorganizaçãoneminstituiçãoqueservisseparacontemplarasdecisõesdanovalei.

Desse jeito, com o novo ordenamento jurídico, as prisões tiveram suas funções redefinidas.Tornaram-seapartirdaínãomaisumlugardepassagemàesperadasentençafinal,decretadageralmenteem forma de multa, degredo, morte ou trabalhos públicos, mas adquiriram um papel importante naorganizaçãodasociedadebrasileiranaprimeirametadedoséculoXIX.

Emprimeiro lugar, como lembra o trabalho clássico deNorbert Elias, asmudanças ocorridas emtornodaspenalidades legaisfaziamtambémpartedeumprocessoqueformavapadrõesdecivilizaçãodentrodas sociedadesmodernas, emcontraposiçãoaumoutroestágioque se traduziapelabarbárieepoderabsolutodosreis.5Nessesentido,oqueseesperavadasprisõesbrasileiraséquefuncionassemdeacordo com os princípios de uma sociedade que se reconhecia como capaz de construir o ideal decivilização, transformando-se em lugares fechados, com instalações adequadas e boas condições dehigieneealimentação.Essasforamalgumasdaspreocupaçõesqueencontramosnosdiscursosproduzidossobre prisões na primeirametade do século XIX. Tais discursos apresentaram-se principalmente nosrelatórios de inspeção realizados por comissões formalmente constituídas pelas Câmaras Municipaiscomo objetivo de visitar as prisões e demais estabelecimentos de caridade das cidades.6 NoRio deJaneiro,chegaramaténósrelatosdosanosde1830e1837.Acitaçãoaseguirfoiretiradadorelatórioproduzidopelacomissãode1837que traduziua importânciadesses lugaresparaumadiscussãosobrebarbárieecivilizaçãonoBrasil.

OestadoatualdamaiorpartedasprisõeseestabelecimentosdecaridadenaCorte,guardamum justomeio entre a barbaridade dos séculos que passaram e a civilização que corre. Sumiram-se esses

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calabouçoshorrendos,ondepelamaiorpartedasvezesgemiamainocênciaeosaber,apardocrime,edaignorância,masnãoexistemaindaessesasilosqueamodernafilosofiapreparaparafustigaroócio,ecorrigir o vício. O pobre, o desvalido não perecem ao desamparo curtidos de fome, de nudez e demiséria, mas entretanto não existem ainda essas casas d’onde foge o ócio e onde o verdadeironecessitadoseabriga,certodopãoepano,queelejánãopodehaverporsi!7

Outroaspectoqueressaltaaimportânciadosdebatessobreprisõesparaaorganizaçãodasociedadebrasileira é a questão do caráter punitivo que a construção de uma instituição prisional com trabalhodeveriaasseguraremmeadosdoséculoXIX.Comosabemos,adécadade1830–quandofoiiniciadanacidade doRio de Janeiro uma campanha pública emprol da criação de umaCasa deCorreção – foimarcadaporinúmerasdesordenstantonaCortequantonasprovínciasbrasileiras.AsaídadePedroI,noatodaAbdicaçãoem1831,trouxeparaaselitespolíticasumapreocupaçãorealcomapreservaçãodaordempolíticae socialnopaís.Nacapital imperial,uma sériedemotinsque reuniramhomens livrespobres,escravos,estrangeiros,tropasmilitares,entreoutrosgrupospopulares,obrigouasautoridadesaestabelecerváriasposturasrepressivas,como,porexemplo,aproibiçãodofuncionamentodocomércioapós as dez horas da noite ou o ajuntamento de cinco ou mais pessoas nas ruas da cidade.8 Nessaconjuntura,tiveraminícioosdebatessobreanecessidadedeumaCasadeCorreção.

OprimeiropassosurgiuemmeioareuniõesdaSociedadeDefensoradaLiberdadeeIndependênciaNacional, uma agremiação política bastante ativa no início do período regencial, de vertente teóricaliberal moderada e, portanto, preocupada com a sobrevivência do Império e com a ordem públicadesestruturadanaquelemomentonacapital.9DoisgruposespecíficosforamcriadosdentrodaDefensoraparaacompanharasobrasdaCasadeCorreção.Oprimeiroficouencarregadodeescolherolocalidealna cidade e apresentar a planta para a instalaçãodanova instituição.O segundo foi responsável pelaarrecadação de doações nas paróquias das cidades, utilizadas para o início da construção. AlgumasfamíliascariocasajudaramcomcontribuiçõesetiveramseusnomesregistradosnoperiódicooficialdaSociedadeDefensora–OHomemeaAmérica–masaobraeravultosaelogooMinistériodaJustiçaempenhou-senacompradosterrenosenaarrecadaçãodomontantededinheironecessárioàconstrução.PrimeiramentefoiescolhidoumprédioqueserviudepaçodoSenadoemfrenteaocampodeSantana,localizadoemumadasfreguesiascentraisdacidade.Atentaaoscustosdaobra,acomissãodaSociedadeDefensorautilizouváriosmeiosparabaratearosvaloresfinais.10Alémdeoterrenoepartedomaterialusadoseremdoprópriogoverno,elasugeriuempregarosescravosdaFazendaImperialdeSantaCruzparaaconstruçãodoprimeiroraioenosdemaisedifíciosutilizaramãodeobradosprópriospresosqueseriamencaminhadosmaistardeparalá.Assinalouaindaqueaobraseriacaraaoscofresdogoverno,equeapoiavaaparticipaçãodos“cidadãosprobos”nessacampanhade“tãograndehonraparaoBrasil”.

Porquantodevendoeleserfeitoacustadecidadãos,quevoluntariamenteconcorrerem,eranecessárioquefossecolocadoumlugarondetodospudessemobservarcomfacilidadeoestadoeprogressosdeumaobra[referindo-seaocampodeSantana],quecadaumpoderáconsiderarcomosua,eencher-se,àvistadela,deumnobreorgulholembrando-setantoorico,comoopobredebonscostumes,quecontribuemconformeassuaspossesparaumestabelecimento talvezomais indispensávelenecessárionospaísesverdadeiramente livres e dignos de sel-o, que este tempor fim reprimir amendicidade, acostumar osvadios ao trabalho, e corrigil-os de seusvícios tãoprejudiciais a elesmesmos comoa sociedade emgeral.11

No entanto, o edifício em ruínas do paço do Senado não foi aprovado pelo governo imperial.Somentemais tarde, em fevereiro de 1833, foi escolhido o lugar definitivo, situado na rua Nova do

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Conde,naschácarasdoCatumbi,regiãodemanguesepântanos,queficavaumpoucomaisafastadadasruas centrais da cidade.12 O terreno incluía, além da disponibilidade de água e boa ventilação, umagrande pedreira, que forneceu toda a pedra para a obra. Para se ter uma ideia dos altos custos doempreendimento,pode-setomarcomoexemplooorçamentodoanofinanceirode1odejulhode1834a30dejunhode1835,noqualforamvotadasverbasparaaconstruçãodacasadeprisãocomtrabalhoereparos de cadeias, no valor de 62:500$000. Porém, somente o terreno, pago por letras e loterias noprazode36meses,custou80:000$000.13

Asobrasprincipaisdapenitenciáriaduraramde1833a1850,eestafoiprevista inicialmenteparaserumaconstruçãocomoitoraiosdivididosentrecelasindividuaiseoficinasdetrabalho.Aofim,foramconstruídos dois edifícios, o primeiro destinado à Casa de Correção, com duzentas celas individuaisdivididasemquatroandarese,posteriormente,em1856,osegundo,reservadoàCasadeDetenção,parapresosqueaguardavamjulgamentoedecondenaçõescurtas.14

Antes de se passar à análise do funcionamento daCasa deCorreção, vale chamar a atenção paraoutroaspectoimportantepresentenosescritosdepolíticos,médicosejuristasdoséculoXIX.Oprojetopenitenciáriodeveriatertambémumafinalidademoral,nosentidodereformarosindivíduoscriminosospormeiodotrabalhoedadisciplina.Nessesentido,asmudançasnaformadepunirseinseriamemumconjunto de ideias liberais europeias, pertencentes ao campoda escola clássica do direito penal, quetinhaemCesareBeccaria–autordeDosdelitosedaspenas,publicadopelaprimeiravezem1764–umprecursor.Ocrimeera entendido comoumproblemada Justiça eobjetode reflexãodos juristas, nãomaispertencendoàsdecisõesdo rei.Paracombatê-lo,os reformadoreseuropeuspassaramadefenderpenalidades proporcionais aos delitos e regeneradoras quanto às possibilidades de arrependimento ecorreçãomoraldosindivíduoscriminosos,semesquecer,comolembraPeterGay,otemorqueasprisõesdeveriaminculcarnosgruposdadesordemedocrime.15

Portanto, em meados do século XIX, as prisões brasileiras transformaram-se em símbolo dessaexpectativaemtornodasmudançaspunitivas.Nãoédeestranhar,nessesentido,aprofusãodeprojetosepropostasdereformasdasprisões,comotambémobservaFernandoSalla:

A construção da civilização passava necessariamente pela modernidade penal, pela construção deprisões que recuperassem o indivíduo, que o reconduzissem, pela disciplina, pelo trabalho, peloarrependimento,comoserútil,paraasociedade.Aintensidadecomqueforamformuladososdebateseasdivergênciassobreomaioroumenorpapelregeneradordaprisão,sobreassuascondiçõesmaisdurasoupenosasdeatingiroscondenados,nadamaisrepresentoudoqueaclaraaceitação, juntoadiversosgrupos,darelevânciadaquestãoprisionalnoprópriocontextodaorganizaçãodasociedade(brasileira),aolongodetodooséculoXIXepartedoXX.16

ACasadeCorreçãodaCorte:oiníciodeseufuncionamento

A Casa de Correção começou oficialmente a funcionar a partir do ano de 1850, por ocasião dapromulgação de seu primeiro regulamento.17 Ali ficou estabelecido que os prisioneiros condenados acumprirapenadeprisãocomtrabalhoseriamdivididosemduasseções:acorrecionaleacriminal.Naprimeira,incluíam-seosmenores,vadiosemendigoscondenadosporumperíodoquevariavadeoitoatrintadiasdeacordocomosartigos295(“nãotomarqualquerpessoaumaocupaçãohonestaeútil”)e296(andarmendigando)doCódigoCriminalde1830;18jánadivisãocriminalficavamoshomenslivrescondenadospelaJustiçaàpenadeprisãocomtrabalho.Esteseramdivididosemtrêsclasses.Aprimeira,

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com condições mais difíceis de permanência, recebia aqueles que haviam acabado de entrar napenitenciária, além dos que comutavam pena de multa pela de prisão com trabalho, e os presos dasegundaeterceiraclassesquenãotivessemmantidobomcomportamento.Nestaclasse,deacordocomoregulamento,oprisioneirodeviafazersuasrefeiçõesnascelas,passearsomenteumavezpordiadurante15minutosapósojantar,terumrepousodeumahoraàtardeduranteoinvernoeduasnoverão.PodiamrecebervisitasdospaisoufilhosdedoisemdoismeseseeramobrigadosarealizarostrabalhosmaispesadosnarotinadaCorreção.Nasegundaclasse,àqualospresoserampromovidosdepoisdeumanoconsecutivosemfalhanocomportamento,erapermitidopassearduasvezesaodia,fazerasrefeiçõesnorefeitório em conjunto, enviar e receber correspondência, além de o repouso ser de mais meia horadiária.Porfim,osdetentosdaterceiraclassequecumprissemdoisanosdereclusãocomabonodebomcomportamento teriam osmesmos benefícios com o dobro do tempo permitido para passear, além deteremmais meia hora de repouso do que os presos de segunda classe e de poderem receber visitasmensaiseprivativas.19

Adivisãoporclasses,pautadaprincipalmentenocomportamentodosindivíduospresos,erabastantereivindicadanosprojetosdosmédicosediretoresquetomavamcontadapenitenciária.ComolembramostrabalhosclássicosdeFoucaulteMichellePerrot,erafundamentalàsváriasinstituiçõesdereclusãodo século XIX, separar os presos por sexo, idades e tipo de delito cometido, visando “a destruirqualquer comunidade, a impedir qualquer forma de sociabilidade, a fim de submeter o recluso àsinfluências exclusivas do alto e impedir ‘o contágio do vício’”.20 Assim, o dia a dia da prisão eraminuciosamente planejado pela separação dos presos e, de maneira geral, pelos regulamentos quetraziamregrasdeconduta,horáriose tarefasrígidasquenãodeixavamdúvidaquantoàmonotoniaquedeveriamserosdiaspassadosnoscorredoresecelasdaCorreção.Noentanto,nadamais ilusórionocotidianodessasinstituiçõesdoqueocumprimentodetaisregras!

Na Casa de Correção do Rio de Janeiro, já em 1858, Antonio Pereira Pinto, deputado e juiz dedireito da cidade de São Paulo, autor do artigo intitulado “Memória sobre a penitenciária doRio deJaneiro”,afirmouqueacomunicaçãoentreospresoseafaltadesilêncioeramasprincipais falhasnainstituição,pois“silêncioéimpossívelseobterentreoscondenados”.21Maistarde,acomissãoinspetorade 1874, que produziu um dos documentos mais importantes para a história das prisões no Brasil,tambémnotouasmúltiplasformasdecorrespondênciaentreospresos:

O isolamento, o silêncio e o mutismo são a máxima disciplina, a que se procura atingir; mas não épossível consegui-lo pormaior que seja a inspeção, a qual é continuamente iludida na passagem dascelasparaospátiosouparaasoficinasevice-versa;naprópriaoficina,ondefáciléquebrarosilêncioeestabelecerconversação,umavezqueospresoso façamemvozbaixa,nãopodendoserdevidamentevigiadosemturmasdedezavintecondenados;aindamaisfáciléestenderem-seporsinaisegestos,eistosempreacontecequandoosguardasdistraemsuaatençãocomqualquerdospresos,ficandoosoutroslivresparasustentarementresiumacorrespondência,tantomaisapreciadaquantomaiorforaproibiçãoeimpotenteavigilância.22

Como tem sido demonstrado por trabalhos clássicos produzidos primeiramente no âmbito dasciências sociais, omundo da prisão implica um processo de constante interação social dos própriospresosedestescomosguardaseadireção.Ouseja,apesardeaceladaprisãosuporumuniversodesolidão muito grande, não podemos considerar que a vida cotidiana dos internos esteja delimitadasomenteporsuaposiçãodesujeitoúnicoeisolado.EscritorescomoErvingGoffman,autordoclássicoManicômios,conventoseprisões (1961),eantesdele,osociólogoGreshamSykes,quepublicouTheSociety of Captives (1958), a partir de uma pesquisa de campo na penitenciária de Nova Jersey na

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década de 1950, demonstraram há muito tempo a existência de trocas culturais no interior dessasinstituições.SegundoGoffman,aprópriaidentidadedoindivíduoéreconstruídaapartirdosprocessosculturais quevivencianogrupoprisional e principalmentedasnormas coletivas emquepassa a estarinserido,transformando,assim,aprisãoemuma‘instituiçãototal’queimpõeumabarreirafísicaesocialcomomundoexternoe imprimenos indivíduosumprocessodedeterioraçãodesuaidentidade.Nessesentido,embenefíciodaprópriasobrevivênciaedaorganizaçãodiáriada instituição,osprisioneiros,pormeiodalinguagem,sexualidade,trabalho,estabelecemrelaçõesdecompanheirismo,negociaçãoouconflitonointeriordaprisão,colocandoemsegundolugarasregraspresentesnosregulamentos.23

OutrofatorquenoslevaapensarnasváriasformasdesociabilidadepresentesnoespaçodaCasadeCorreção era a própria composiçãodosgruposquepassavampor ali e consequentemente as diversasdependências que a instituição agregou ao projeto original. Primeiramente, havia o Calabouço, ondeficavam os escravos enviados por seus senhores para serem castigados ou os fugitivos que eramcapturados.Havia tambémo Instituto deMenoresArtesãos, para onde, durante o início da década de1860, eram encaminhadas as crianças de rua oumenores de famílias pobres.24 Já os africanos livrescompunhamogrupodosquedormiamnapenitenciáriaeeramlevadosduranteodiaparaotrabalhoemcasadeparticularesouemobraspúblicasnasruasdacidade.Encontravam-seaindanasdependênciasdonovocomplexoprisionaloscondenadosàprisãosimplesegalés,acorrentados individualmenteouemgrupo, para trabalhos públicos. Assim, todos estes, em diferentes tempos, conviveram com os presossentenciados,possibilitando-nospensaraprisãocomoumgrandeespaçodetrocaderelaçõesculturaisecomerciaisnaCortedoRiodeJaneiro.

Otrabalhonaprisão

UmdosaspectosmaiscontroversosnointeriordaCasadeCorreçãoeraaquestãodotrabalho.Este,inclusive,comojádissemos, foiumdospressupostosprincipaisdoprojetoreformadordasprisõesdoséculoXIX.Mesmoantesdesseperíodo,otrabalhocomotécnicadecorreçãonãoerapropriamenteumaideianova.Desdeoiníciodaépocamoderna,diversasnaçõeseuropeiascriaramasCasasdeCorreçãopara garantir mão de obra, vinda principalmente de grupos urbanos pobres e rebeldes, nos trabalhospúblicosounasfábricas.ConformeapresentamMelossiePavarini:

Tratava-sedeinstituiçõesqueatendiamaumapopulaçãobastanteheterogênea:filhosdepobres“comaintenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho” desempregados embusca detrabalho e aquelas categorias que povoaram as primeiras bridewells, ou seja, petty offenders,vagabundos,ladrõezinhos,prostitutasepobresrebeldesquenãoqueriamtrabalhar.25

Segundoessesautores,acriaçãodasCasasdeCorreçãonaEuropa,apartirdoséculoXVI,estavarelacionadaaosurgimentodasociedadecapitalista,queenfrentavagrandesmassasdetrabalhadoresquemigravam para as cidades e não eram absorvidos pelas manufaturas ou ainda indivíduos que serecusavamatrabalhar.Paratodasessascategorias,apuniçãoeraotrabalho.

NoBrasil, a valorizaçãoda concepçãodo trabalho entre homens livres e o combate à ociosidadetambémpreocupavamjuristasedemaisgruposdasnossaselitespolíticas.Comovimosanteriormente,noparecerdaSociedadeDefensora,aCasadeCorreção tambémhaviasidopropostanadécadade1830para “reprimir a mendicidade, acostumar os vadios ao trabalho, e corrigil-os de seus vícios tãoprejudiciaisaelesmesmoscomoàsociedadeemgeral”.Percebe-seaíaideiadequeafaltadetrabalhoerasinônimodevadiagem,comoqueconcordavamaselitesbrasileiras.Assim,diantedesseproblema

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somenteaaçãopolicialeaprisãoparacoibiraformaçãodeumamassadevadios,quesoltospoderiamatentarcontraavidaeapropriedadedoscidadãoshonestos,formadoresdaboasociedade.

UmaprimeiradiretrizquenosajudaapensaressasituaçãodentrodarealidadedaCasadeCorreçãodizrespeitoàprópriaescolhadoregimepenitenciário.AinstituiçãoeraguiadapeloregimedeAuburn(trabalhoemcomumnasoficinasduranteodiaecelasindividuaisànoite)emcontraposiçãoaoregimede Filadélfia (isolamento total do preso em sua cela). Ou seja, enquanto neste, a proposta era umaregeneraçãoindividualcentradanaideiareligiosadapenitência,derefletirsobreoserrosdopassadoese arrepender por isso, emAuburn, a reformamoral se daria fundamentalmente pormeio do trabalhorígidoedisciplinado,quesubmetiaocorpodoindivíduoaoexercíciodiárioecontínuo.Otrabalhoaquieraconsideradoaantítesedoócio,davadiagem,docrime.Porisso,deveriaserensinadoepraticadonointeriordeumaprisão.Todocriminosodeveriaaprenderumofício,qualificadoounão,aserexercidodiariamente fora da cela, sob silêncio, em horário definido, que lhe trouxesse garantias do retorno àsociedadecomocidadão laboriosoeútil.26Aocontrário,nosistemapensilvânico,o trabalhoeradadocomorecompensaaoscondenadosqueemsuascelastivessemdadomostrasdeteremsearrependidodosatos criminosos praticados. Apesar de este sistema ser largamente preferido por médicos, juristas eadministradoresdeprisãobrasileiros,elenãochegouaser implantadonasprimeiraspenitenciáriasdopaís. Por exemplo, o primeiro diretor daCasa deCorreção, o pernambucanoAntonino JoséMirandaFalcão,apósavisitaoficial,em1854,àspenitenciáriasdosEstadosUnidos,modelosdeexcelênciadosistema penitenciário, criticou em seu relatório a ideia do trabalho como fonte de renda pública,pressuposto domodelo deAuburn, e reforçou que as prisões deCherry-Hill ou da Filadélfia, ambasexemplos do isolamento total, tambémproduziam trabalho.Alémdisso, nestas últimas prisões, não seaplicavam tantos castigos, e o silêncio aparecia naturalmente. Tais argumentos, no entanto, nãoconvenceram o Ministério da Justiça que aplicou o sistema de Auburn nas Casas de Correção quepassaramaserconstruídasnasegundametadedoséculoXIX(SãoPaulo,Bahia,PortoAlegreetc.).

Dessejeito,anecessidadedotrabalhopautavaaexistênciadaCasadeCorreção.Desdeoinício,ogoverno imperial defendeu que o estabelecimento tivesse suas próprias receitas financeiras para semantersozinho.Porexemplo,EusébiodeQueiroz,ministrodaJustiçaem1850,utilizouamãodeobradesentenciados,escravos,africanoslivresegalésenviadosaoestabelecimento,noaterramentodosterrenosenaaberturaderuasaoredordainstituição,garantindo,inclusive,queaCâmaraMunicipaldoRiodeJaneiroemoradoresdacidadepagassemmensalmentepor tais serviçosprestados.Oministromandouaindaqueospresosexplorassemumagrandepedreiranapartede trásdaprisão,utilizandoaspedraspara o calçamento das ruas.27 Por fim, estimulou o funcionamento das quatro primeiras oficinas detrabalho–carpintaria,alfaiataria,encadernaçãoesapataria–dentrodaCasadeCorreção,defendendoaaprendizagemdeumofícioespecializadoparaoshomensalidetidos.

AolongodoséculoXIX,aquantidadedeoficinasvarioubastante,bemcomoonúmerodedetentosqueporalipassavam.Segundooregulamento,otrabalhoerainiciadoapósdezdiasdepermanêncianapenitenciária. Nas oficinas, existiam regras rigorosas sobre como manter o silêncio, sob o risco depunição na câmara escura, trabalho solitário ou jejum forçado. Em suas primeiras décadas defuncionamento, entre os anos 1850 e 1860, é certo concluir que elas se tornaram lugares de muitamovimentaçãoedemuitotrabalho.Em1855,porexemplo,125dos139presostrabalhavamnasoficinas.Emdezembrode1864,noiníciodosconflitosdaGuerradoParaguai,odiretorDanielJoseThompsonofereceuprestimosamenteosserviçosdaCasadeCorreçãoaosMinistériosdaGuerraedaMarinha:

EmvistadascircunstanciasextraordinariasdoPaizedorigorosodeveremqueestamosdecooperarportodas asmaneiras para a celeridade do serviço de guerra, tomo a liberdade de lembrar a V. Exc., aconveniênciade sedispordos serviçosdasoficinasdeste estabelecimento,para coadjuvarnoque for

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aproveitavel às repartições daGuerra eMarinha, seV. Exc. assim o julgar conveniente, dignando-sefazer ciente aos Exmos. ministros daquelas repartições, que principalmente as oficinas de alfaiates,correeirosesapateiros,podemserd’algumautilidadenaprestezadofornecimentoemmuitosobjetosdefardamentoeequipamento,tantomaisque,quandomesmoV.Exc.julgue,queaquelasrepartiçõesdevamretribuiressetrabalho,elenãopodeterconcorrênciacomoutrasquaisquerpessoasqueseproponhamataisfornecimentos,vistoamodicidadedospreçosporqueesteestabelecimentopodefazerasobrasqueselherecomendarem,podendoV.Exc.asseverarqueempregaremostodoocuidado,boasmanufaturaseamelhorboavontadeemsermosd’algumautilidadeacausapublica.28

Osargumentosutilizadospelodiretorapontavamparaobaixocustoeparaaqualidadedosprodutosqueopoderpúblicopoderiausufruir,casoincentivasseaconfecçãoderoupas,bolsasesapatosparaastropas brasileiras nas oficinas da prisão. Tais resultados, no entanto, podem ser contestados, seanalisarmos os próprios relatórios dos diretores da instituição.Manter as oficinas em funcionamentocustavacaroaoMinistérioda Justiça.Tantoassimque, jánoanode1855,odiretorMirandaFalcão,desacreditadodavontadequeospresostinhamdetrabalharecientedosgastosparamanterasoficinasfuncionando, acaba concluindo em seu relatório: “qualquer que seja o rendimento das oficinas destaCasa,éimpossívelqueelechegueparacobrirassuasdespesas”.

Além disso, a qualidade dos produtos era, por vezes, duvidosa. Muitos dos clientes voltavam eapresentavamreclamações.Emmaiode1870,porexemplo,odiretordoHospitalMilitaremAndaraíencaminhouentre4mile5milpeçasdecamisas,calças,lençóis,fronhas,camisolas,toalhasdealgodãoelinho,cobertores,paralavagemnaCasadeCorreção,masjáemoutubrodomesmoanoreclamavaqueseencontravamnomeioda roupa“peçasmuitomal lavadas”, toalhas“queparecem ter sidopassadassomente pela água”.29 Almeida Valle, diretor da penitenciária nessa ocasião, tentou justificar o mauserviçoprestadoalegandoadiminuiçãodopessoal encarregadoda lavanderia,masocontratoacaboucancelado.

Emdezembrode1883,emoutrocasomaisextremo,ogerentedaCompanhiaIndustrialdeÓleosemSãoCristóvãoreclamouaodiretorBelarminoPessoaqueencomendara150latasde5litroscada,masqueaslatasnãocomportavamacapacidadeprevista,trazendoimensosprejuízosparaafábrica.

Aslatasdasegundaencomendadeveriamtercapacidadefolgadaparacontercincolitros–infelizmenteesta condiçãonão esta cumprida!Não se podemeter nas latasmais de 4,800grammas e por evitar afraude a companhia terá o trabalho de marcar cada lata com a quantidade que contem!! Alem desseinconvenienteamaiorpartedaslatasvazãon’umououtroponto,dandoumtrabalhoimensoaolateirodacompanhiaeacusandonãopequenoprejuízoacompanhia.30

O diretor atribui a culpa ao mestre da oficina de funileiros, Jose Francisco de Moura, praçareformadodoExército,quevieraemprestadodoArsenaldeGuerrapornãohaverdisponíveismestresnaoficina.Apropósito,valeressaltarqueafaltademestresparaoensinoecontroledastarefaserabastantecomumnointeriordaprisão.AdenúnciadaCompanhiaIndustrialchegouaoMinistériodaJustiça,quereclamouaodiretor,questionandoabaixa rendadasoficinas.Belarmino respondeuquenãoconseguiapromoverolucroemvirtudedafaltadeencomendasexternasedemáquinasmodernas,comotambémporcausa da saída de diversos condenados.O encarregado doministério afirmou que os argumentos nãoconvenciamerelembrouaodiretorosobjetivosquesedeveriamalcançarcomautilizaçãodotrabalhonosistemapenitenciário:“otrabalhodeveterosdoisfinsindicados,daraoliberadoummeiodevidahonestoeindenizaroEstadodasdespesasemparteounotodo”.31Portanto,umdosobjetivosdogovernoimperial com o trabalho nas oficinas da prisão era gerar rendas que, no mínimo, custeassem o

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estabelecimento.SenoiníciodofuncionamentoaCasadeCorreçãoconseguiaviabilizarcontratosparaasoficinasde

trabalho, além de enviar os sentenciados às obras públicas da cidade, com o tempo, essemovimentoparecediminuir.Nadocumentaçãoatéadécadade1870,aparecememgrandenúmerorequisiçõesdosserviços da penitenciária por outras instituições. Dos hospitais da cidade surgiammuitos pedidos delavagensderoupas.DoCorpodeBombeirosedoArsenaldeGuerrachegavamofíciosparamanufaturarparesdesapatos.DaInspetoriaGeraldeInstruçãosurgiampedidosparaaoficinadecarpintaria:móveis,carteiras,armáriosparaasescolasprimáriasesecundáriasdacidade.AofinaldoImpério,asprópriasinstituições doMinistério da Justiça, como a Casa de Detenção e a Secretaria de Polícia da Corte,tornaram-se as maiores beneficiadas dos convênios feitos com os diretores. Apenas a oficina deencadernaçãomantevepedidosdetrabalho,sendoinclusiveumadasúnicasqueatendialojasefábricasde capital privado, como a famosa Livraria Garnier, localizada na rua do Ouvidor que, em 1870,solicitou encadernação de “190 exemplares do Código Filipino e 250 do Auxiliar Jurídico”.32 Dalitambém seguidamente saiu a encadernação dos documentos do Ministério da Justiça, inclusive asColeçõesdeLeisdoImpério.

Por outro lado, as oficinas de trabalho foram um constante foco de problemas e prejuízos para aadministraçãodaCasa.Muitasdasbrigasacontecidasnointeriordaprisãocomeçavamali.Em1881,porexemplo,opresoPedroGarciaFilho,“brasileiro,preto,cumprindopenadegalé”,apoderando-sedeumpedaçodeferroamoladofezcomeleumgolpenopescoçodoguardadaoficinadecanteiros,lugarondesequebravamemoldavamaspedrasdaprisão.Oguardaficouseriamenteferido,eodiretorseviunodever de relatar o acontecido ao ministro, acrescentando em sua correspondência que era grande odesânimo entre os guardas ali existentes “que arriscam sua própria vida nas oficinas, onde os presostrabalham soltos e com instrumentos que podem ser convertidos em armas”.33 Dois anos depois, emnovembrode1883,opresoFranciscoChinelli,“32anos,funileiro,cumprindopenaporroubo”,ameaçouseucompanheirocomumafaca,causando“pequenainsubordinaçãonolocaldetrabalho”contraoguardaquetomavacontadolugar.Peloato,osentenciadorecebeu“castigoderestriçãoalimentaredereclusãona célula escura” por cinco dias. Nesse caso, o fato trouxe ainda novos problemas ao diretor dainstituição.Omédico João Pires Farinha denunciou aoministro que aquele preso acabara de sair daenfermariaenãotinhacondiçõesfísicasparacumprirtalpunição,entrandoemconflitocomodiretor,oque não era raro acontecer entre as autoridades da prisão.34 Parece realmente que muitos foram ostumultos iniciados nas oficinas de trabalho. Tanto assim que o novo regulamento, instituído em 1882,traziamedidasmaisseverasparaadisciplinadospresosnesseslugares.Enquantooregulamentode1850admitiaturmasde20presos,ode1882estipulouummáximodeoitoemcadaoficina.

Para os diretores da prisão, a necessidade do trabalho atingia outros objetivos.Oferecer trabalhosignificavamanteropresoocupado,evitando-se,assim,oócioedesviando-odapráticadeatividadesilícitas dentro da prisão, como, por exemplo, o jogo. Além disso, o envolvimento do preso com otrabalhoeraumadasquestõesqueodiretorobservavaquandoeraobrigadoaescolhercondenadosparaaslistasdeclemênciaimperial.Em1860,porexemplo,ostrêspresosqueforamperdoadosobtiveramagraçapelovalordotrabalho.

LuizJosedaVictoria,casado,47anosdeidade[…]temsempremostradopesarprofundodoseucrime,completa resignação,procurandonaassiduidadedo trabalhoadistraçãodos seus sofrimentos […];JosedeSouzaPinto,solteiro,26anos[…]é laborioso,aprendeuoofíciodecarpinteiropeloqual jápodeganharavida […];CandidoMariaLazarodeSouza, solteirode50anosde idade, condenadoagalésperpétuas,porcrimedehomicídio,penaquecumprehá25anos,temmostradobomcomportamentoeélaborioso(grifosnossos).

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Portanto,mesmosemtercondiçõesdediversificarasoficinasdetrabalho,osdiretoresprocurarammantê-lasfuncionando,alémdeestaremsempreincentivandoaaprendizagemeapersistêncianosofíciosescolhidos. Alfaiate, carpinteiro, encadernador, sapateiro, serralheiro, canteiro (cortar e trabalhar napedreira)foramasatividadesmaisrecorrentesnaCasadeCorreçãodoséculoXIX.

Perfildospresos

ACasadeCorreçãofoidurantequasetodooséculoXIXoúnicoestabelecimentodestinadoapunirospresossentenciadosàprisãocomtrabalhonacidadedoRiodeJaneiro.Grossomodo,pode-sedizerque a maior parte dos homens condenados encontrava-se nessa penitenciária, o que significa queestatísticaseanálisessobreacomposiçãodessapopulaçãocarceráriapodemserdegrandeimportânciaparaoentendimentodostiposdecrimesoudaspráticasjudiciaisocorridasnacidade.Comoobservamosno início deste artigo, são poucas as informações que as fontes oferecem sobre os presos. No casoespecífico domovimento da Casa de Correção, algumas aparecem commaior frequência, como, porexemplo, a idade, nacionalidade, estado civil e grau de instrução do preso, além do crime cometido.Outros dados, como a cor, o nome e o próprio comportamento no interior da prisão são raros nadocumentação encontrada. Seguem alguns exemplos do perfil dessa população carcerária, mas caberessaltarquesãodadospreliminaresemnossapesquisa,necessitandoaindadoconjuntodasestatísticasparaanálisesmaisamplas.ComeçamoscomaquantidadedepresosnasdivisõescorrecionalecriminaldaCasadeCorreção.

Ano População Ano População1855 139 1881 1871857 136 1883 1661859 141 1887 1871864 134 1888 2311866 150 1889 2151871 162 1890 1451874 153 1900 1711878 201 1908 173

Fonte:RelatóriosdosdiretoresdaCasadeCorreção.

Comosepodeperceber,àexceçãodealgunspoucosanosquerecebemumnúmeromaiordepresos,amédia total não apresenta grandes variações. Vale novamente ressaltar que esse não era o númeroabsoluto de presos que passavam pela Casa deCorreção, existindo ainda os indivíduos recolhidos àprisão simples, galésou calabouço.Aoqueparece, aCasadeCorreçãonãoenfrentavaproblemasdesuperlotação,vistoqueseumodelodeencarceramentopreviacelasindividuais,aocontráriodaCasadeDetençãosituadaaoseulado,que,jánoanode1870,segundoorelatóriodochefedepolícia,recolheu2.901prisioneirosecomportavaquantidadeabsurdadepresosporcela.

Natabelaaseguir,podemosconferiranaturezadoscrimespelosquaisforamcondenadosospresosda instituição. De acordo com o Código Criminal do Império do Brasil de 1830, os crimes eramdivididosempúblicoseparticulares(contraapessoa,apropriedadeecrimespoliciais).OrganizandoasestatísticasdaCasadeCorreção,deacordocomotipodecrimecometido,emalgunsanosquetrazemrelatóriosminuciososdosdiretores,teremos:

CRIMESCOMETIDOS1855 1857 1864 1874 1889

Homicídio 39 44 44 55 66Roubo 40 48 26 37 46Furto 8 7 11 20 44

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Ofensasfísicas 1 2 1 6Furtodeescravos 2Estelionato 18 13 16 15 6Deserção 4 2Poligamia 1 2 1 1Ferimento 7 5 13 10 9Parricídio 1 1Armasproibidas 1Resistência 2 1Usodeinstrumentospararoubar 4Quebradecontrato 1Bancarrota 3 2 4Tentativadehomicídio 1 2 3 3 8Falsidade 7 1 3Tentativadefurtoeroubo 6Tentativaderoubo 15Tráficodeafricanos 1Dano 1Fugadepresos 2Fraude 1 1 3Moedafalsa 2 1 1Morte 3 3Multa 1Raptos 7Desconhecidos 3 5 3Total 139 136 134 153 215Fonte:RelatóriosdosdiretoresdaCasadeCorreção.

Seobservarmosatabeladoscrimescometidos,notamosqueohomicídiofoi,apartirdadécadade1860,ocrimedemaiorcondenação.DeacordocomoCódigoCriminaldoImpério,dependendodascircunstânciasemqueocorreuocrime,ocondenadopoderiasofrerumapuniçãodemorte,galésperpétuasouprisãocomtrabalho(artigo192),queprevianomínimoseisanosdereclusãonapenitenciária.Oroubo,entendidocomocrimecontraapessoaeapropriedade,foiosegundomaiorcrimeemnúmerodecondenações,seguidodofurto,quepreviapenadeprisãocomtrabalhodedoismesesaquatroanos(artigo257).Osdemaiscrimescontraapropriedade,comoabancarrotaeoestelionato,recebiampenasquevariavamdeseismesesaoitoanos.ApartirdasegundametadedoséculoXIX,osnúmerosderoubosefurtosaumentamseguidamente.ConformeoprópriodiretordaCasadeCorreção,AlmeidaValle,detectou,aquantidadedessescriminososeracadavezmaiscomumnacidadedoRiodeJaneiro.Afimdeestudarmelhorospresos,estediretorcriou“tiposcriminosos”,comoovagabundo,ogatuno,ohomicida,queprocurouanalisardeacordocomocomportamentoqueapresentavamnaprisão.

Ovagabundo,orixoso,ogatuno,ofanático,oladrão,odepravado,oenvenenadoreohomicidasão,écerto,todostypospenitenciários,mascadaumdediversogênero;[…]Oladrãocomoseuolharfurtivo,penetrante, inquisidor, parecendo sempre preocupado de conhecer os lugares, as cousas e os homens,paramelhorrealizarseusplanos,tudocobiça,seuviciocaracterístico[…]tipossemdúvidadiversos,equereclamamdiversosmeiosparasuaregeneração,quandoelaépossível.35

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A tabela seguintemostra o levantamento dos presos feito a partir da nacionalidade. Chamamos aatenção para a grande quantidade de estrangeiros reclusos na instituição. Emmuitos anos, inclusive,tornaram-se a maioria da população carcerária. Os portugueses, seguidos dos africanos, italianos eespanhóis, foram sempre a maior presença de imigrantes nos registros da prisão, o que confirma opredomíniodaimigraçãoportuguesanacidadedoRiodeJaneiro.

Anos Brasileiros Estrangeiros1855 66 611857 73 631862 56 541869 69 991870 63 861875 161 2411880 155 1161889 265 1861900 94 771908 112 611911 148 501915 142 52

Fonte:RelatóriosdosdiretoresdaCasadeCorreção.

ARepúblicaeaprisão

Com a chegada da República e a escolha de novos diretores para ocupar as funções no sistemapenitenciário, logo uma série de reclamações aparece na documentação de caráter mais oficial.Primeiramente,depreciamaconduçãoqueoImpériobrasileirodeuàsCasasdeCorreçãoedeDetenção,queteriaproduzidoasituaçãodecaosqueseapresentavanoretratodessesestabelecimentos.“Outroratida como protótipo das prisões do ex-império”, na avaliação do dr. Alfredo Alves de Carvalho,nomeadodiretorem1890,aCasadeCorreçãoencontrava-secercadadeproblemas.Primeiramentenãoexistiammestres nemmáquinas nas oficinas.Depois havia omau exemplo dos galés que pernoitavamforadascélulasemesmoassimnãoprocuravamfugir,devido“àesperançadopróximoperdão”eà“vidasemesforço”quelevavam.

O“problema”dosgalés,apontadopelodiretor,foiumadasquestõesenfrentadascomachegadadoregimerepublicano.Odecreto774,desetembrode1890,aboliuaspenasdemorte,galéseaçoite,eoCódigoPenaldaRepúblicatrouxemudançasnasformasdepunição(prisãocelular,reclusão,prisãocomtrabalho,prisãodisciplinar)enoregimepenitenciárioaseradotado.Implantouaopçãodaprogressãodocumprimentodapena,começandopeloisolamentocelular,trabalhoobrigatórioe,comoúltimoestágio,olivramentocondicionalparapresosqueapresentassembomcomportamento.36Tudoisso,noentanto,semfazernenhumamudançasignificativanaorganizaçãointernadosestabelecimentoscarcerários.

Convém ainda notar, no início do período republicano, a presença de presos políticos noestabelecimento.AdireçãodesignaaoitavagaleriadaCasadeCorreção,noandarsuperior,paraservirde prisão do Estado. Inimigos do novo regime ficavam na penitenciária por algum tempo até seremlibertadosouenviadosparaoutroscárcerescomoodailhaGrande,nopróprioestadodoRiodeJaneiro,ou a fortaleza de Santa Cruz, na baía de Guanabara. Capoeiras, vadios, desordeiros, grevistas,anarquistastambémpassarampelaCasadeCorreção,masgeralmenteeramlogoenviadostambémparaailhaGrande ou para a regiãoNorte doBrasil, como foi o caso dos presos envolvidos no conflito daRevolta da Vacina, em novembro de 1904, remetidos para o Acre, sem processo e em caráter deurgência.37Assim,amisturadepresospolíticoscompresoscomuns,apresençadosgalés,asmudanças

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estabelecidaspelonovoCódigoPenal,asnovasformasdetrabalhoprisional,oaumentoeavalorizaçãodeprofissionaisquetrabalhavamnasdependênciasdasprisõesforamalgunsdosproblemasqueaCasadeCorreçãoherdouequeasautoridadesrepublicanasprecisariamenfrentar.

Além disso, os jornais passaram a se interessar mais por assuntos que tratavam do crime e doscriminosos na capital republicana. De maneira geral, valorizavam as “crônicas sociais”, ou seja, asnotícias imediatas, sensacionalistas, que faziam parte das atividades do cotidiano da população. Aspáginas dos principais jornais relatavam cada vez commais detalhes as cenas dos crimes, utilizandogravuras,fotos,alémdeumtextoqueapresentavaminuciosamenteacenadocrime,osdepoimentosdafamíliaedastestemunhas.Nessesrelatos,asprisõesacabamporentrardeformareservada.Pelasvisitasdosrepórteres,pelascartasdedenúnciaenviadasaosjornais,asprisõeseseusprisioneirosaospoucosvãochamandoaatençãodosleitoresdacidade.ÉocasodeFranciscoGonçalvesMuniz,espanhol,que,segundo o diretor da Casa de Correção, havia morrido de hemorragia cerebral em consequência detraumatismosemsipróprioocasionadosdurantesuaestadanaceladomanicômio,masque,nasnotíciasdo Jornal do Brasil em 5 e 10 de setembro de 1897, aparece como vítima de espancamento nasdependênciasdaprisão.38Háaindarelatosdefugadapenitenciária,comooexemplodeJoséDuarte,quecumpriasentençade24anos.Elecolocouumaescadajuntoaomuroe,servindo-sedeumacorda,tentoudescerpelooutrolado.Porém,segundoojornal,“acordaquebrou-seeoinfelizcaiu,indopararemumavalapertodomuro,fraturandoapernadireita”.39Todavia,oquemaischamavaaatençãodaimprensaeraa existência de motins ou rebeliões dentro das prisões. Nesses momentos, os jornais não poupavamcríticasàconduçãodosfatosnointeriordessesestabelecimentos.Primeiramentequestionavamodiretor,geralmente acusado de agir commorosidade e despreparo na resolução das revoltas. Por ocasião darevoltade1905,porexemplo,descritano iníciodeste texto,oJornaldoBrasil foi implacávelcomoentãodiretordr.PiresFarinha.

Decididamente está malfadada a Casa de Correção, onde constantes são as revoltas, as evasões, osconflitos, as lutas,os ferimentos.Seapassadaadministraçãomuitodeixavaadesejar,peladesordem,pelaanarquiaemqueviviaesteestabelecimentopenal,apresente,hápoucoiniciada,nãoparecemelhor.Pelomenosissodemonstramosfatosultimamenteláocorridosequerevelamapenasfaltadeordemededisciplinanecessáriasemumestabelecimentodetalnaturezaequepodia,noentantoserummodelonogênero,comoselementosdequedispõeecomopequenonúmerodecondenadosaelerecolhidos.40

Alémdodiretor,osjornaistambémcriticavamosguardaspenitenciários.Despreparados,vítimasdafalta de assistência do Estado ou ainda corruptos no trato com os presos, os guardas em nadacolaboravamparamelhorar a imagemdaCasadeCorreção.No finaldacitaçãodoJornal doBrasil,surgem ainda algumas críticas ao Estado republicano. Apesar de todo o progresso da ciênciapenitenciária,do intercâmbiocomexperiências internacionaisquecomprovavamapreocupaçãocomosistemapenitenciárionamaioriadospaíses europeus e americanos, nãohavia investimentosdopoderpúblico no interior das prisões brasileiras.Afora algumas obras de caráter emergencial, asCasas deCorreçãoeDetençãopassaramportodooperíododaPrimeiraRepúblicasemgrandesmudançasemsuaorganização.

Conclusão

AolongodoséculoXIX,odebatebrasileirosobreosregimespenitenciárioseasprópriasprisõesfoi intenso. Inicia-se a partir do conhecimento dos pressupostos da escola clássica, adquirido com a

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leituradetrabalhosjurídicoseviagensaosestabelecimentosecongressospenitenciárioseuropeus.Entreosdefensoresdodireito“clássico”,surgiuaideiadapráticadocrimecomosendofrutodeumdesviomoraldoindivíduo.Assim,apenalidadeteriaafunçãodesepará-lodasociedadeerequalificá-loparavoltar à ordem social estabelecida.Nesse sentido, uma instituição fechada com disciplina, trabalho eeducação, já que o desvio do indivíduo era interpretado, muitas vezes, como falta de instrução eignorância, ajudaria em sua regeneração e promoveria, consequentemente, o bem-estar da sociedade.Para que os objetivos propostos para as prisões fossem atingidos, deveria ocorrer a construção deestabelecimentosprisionaisadequados,vistoqueosqueexistiamna realidadebrasileiraanterioresaoséculo XIX não poderiam concretizar tais propósitos. Além disso, a própria situação do Brasilindependentenadécadade1820trouxeaconsolidaçãodeumarcabouçojurídicoliberal,mas,aomesmotempo,preocupadocomaformadepunirhomenspobreslivreseescravos,afastadosdefinitivamentedacondiçãodecidadãosbrasileiros.

Ao longo da década de 1830, grupos de políticos, magistrados e médicos da Corte imperial,confrontados com as situações de desordem promovidas por populares insatisfeitos com a práticapolíticaesocialdoImpério,propõemaconstruçãodeumaCasadeCorreção.Asobrasiniciam-seem1832 e arrastam-se pelas duas décadas seguintes, quando o estabelecimento adquiriu oficialmente umregulamentoeprofissionaisresponsáveispeloseufuncionamento.

AsCasasdeCorreção,espalhadasporimportantescidadesbrasileirasapartirdasegundametadedoséculo XIX, constituíam exceção à grande maioria das prisões que existiam espalhadas pelo país.Primeiramente, foram especialmente construídas com a finalidade principal de possibilitar a pena deprisão com trabalho, dando assim cumprimento ao Código Criminal de 1830. Com as classificaçõesinternas, isolamento nas celas, regulamento detalhado, aprendizagem de um trabalho, presença de umcapelão,tentaraminspirartemoreinibirapráticadoscrimes.NoRiodeJaneiro,emvirtudedagrandepresençadeescravos,africanoslivresemenores,aCasadeCorreçãoserviutambémcomoumpontodecirculaçãoedistribuiçãodessesgrupospelasruasepraçasdacidade.

Noentanto,aprópriadocumentaçãoproduzidapelaprisãoconfirmaquearealidadeestavalongedepermitirqueselevassemàpráticaosprincípiosteóricosdefendidos.Aconstantedemandadosdiretoresporverbaspúblicas,pormelhorescondiçõesdetrabalhoparaseusfuncionárioseadefesadoscastigosfísicosnointeriordainstituiçãopressupõemomauestadodofuncionamentodaprisão,comovimosaolongodestetexto.

Maisdoqueconfirmararupturaentreosprojetoseapráticaprisional,oshistoriadoresdasprisõesprecisamcontinuardemonstrandoavariedadedesignificadosqueosespaçosdasprisõesproduzemnassociedades. A percepção do sistema penitenciário que emerge, por exemplo, da imprensa ou doshabitantes das cidades não é a mesma que guia as formulações propostas nos escritos oficiais dasinstituições. A cobertura dos jornais parece ressaltar, emmuitas ocasiões, a imagem da prisão como“caldeirãodoinferno”edospresoscomohomens“perversos”ementirosos.

Concluindo, apesar do difícil acesso a tais instituições, há uma curiosidade inata das pessoas emrelaçãoaoqueaconteceueaconteceatrásdasgradesemurosdasprisões.Nós,historiadores,movidosque somos pela ação humana, devemos continuar dando visibilidade às condições internas dessasinstituiçõeseprincipalmenteàsexperiênciasdeaprisionamentodehomensemulheres.

1AnarrativaaseguirfoielaboradaapartirdosperiódicosJornaldoBrasileAGazetadeNotícias,alémdorelatóriododiretordaCasadeCorreçãodoRiodeJaneirodoanode1905.

2SegundooJornaldoBrasil,opresoera“pardoclaro,deestaturaregular,testalarga,rostooval,narizgrosso,cabeloscurtos”.NaturaldeOlinda,Pernambuco,estavanaCorreçãodesde1898,quandofoicondenadoa15anosdeprisãocelular.JornaldoBrasil,21deoutubrode1905,p.2.

3RelatórioapresentadopelaComissãoencarregadadesyndicarosfactosatribuídosàadministraçãodaCasadeCorreçãoao

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MinistériodaJustiçaeNegóciosInteriores,2defevereirode1905,p.20.4PERROT,Michelle.OsexcluídosdaHistória.Rio:PazeTerra,1988,p.238.5ELIAS,Norbert.Oprocessocivilizador.Rio:JorgeZahar,1994,volume1.6“Artigo56:Emcadareunião,nomearãoumacomissãodecidadãosprobos,decincopelomenos,aquemencarregarãoavisitadasprisõescivis,militareseeclesiásticas,doscárceresdosconventosdosregularesedetodososestabelecimentospúblicosdecaridade,parainformaremdoseuestadoedosmelhoramentosqueprecisam.”Leide1odeoutubrode1828quereorganizouasCâmarasMunicipaisemandoucriartaiscomissões,inaugurandoumapráticadevisitaeavaliaçãodasprisõesbastantecomumaolongodoséculoXIX.

7RelatóriodacomissãonomeadapelaCâmaraMunicipalem1837–ArquivoGeraldaCidadedoRiodeJaneiro,códice48-3-41(1830-1842).ParaconhecerasituaçãodoscárceresnosprimeirostemposdoséculoXIXconsultar:SALLA,Fernando.AsprisõesemSãoPaulo.SãoPaulo:Annablume,1999;SOARES,CarlosEugênioLíbano.AcapoeiraescravaeoutrastradiçõesrebeldesnoRiodeJaneiro(1808-1850).Campinas/SãoPaulo:EditoradaUnicamp/CentrodePesquisaemHistóriaSocialdaCultura,2001;ARAÚJO,CarlosEduardoMoreirade.Oduplocativeiro:escravidãourbanaesistemaprisionalnoRiodeJaneiro,1790–1821.DissertaçãodeMestrado:UFRJ/IFCS,2004.

8Umagrandeproduçãohistoriográficadedicou-seaesclarecerapreocupaçãodopoderpúblicoedaselitesbrasileirasquantoàpresençadehomenslivrespobreseescravoseaconstituiçãodemecanismosderepressãoprincipalmentenadécadade1830.Ver:HOLLOWAY,T.PolícianoRiodeJaneiro:repressãoeresistêncianumacidadedoséculoXIX.Rio:FundaçãoGetúlioVargas,1997;MATTOS,IlmarR.de.Otemposaquarema.Rio:Access,1994.

9ASociedadeDefensoradaLiberdadeeIndependênciaNacional(1831-1835)foifundadaem10demaiode1831efoiumdosprincipaisespaçosdedebatesedeatuaçãodepolíticosdeorientaçãomoderadadaCorteapósoepisódiodaabdicaçãode7deabril.SegundoahistoriadoraLuciaGuimarães,aDefensoraapoiouumprojetopolíticodedefesadoregimemonárquico,daescravidão,daordemeunidadedoBrasil.Ver:GUIMARÃES,LuciaMariaPaschoal.Emnomedaordemedamoderação:atrajetóriadaSociedadeDefensoradaLiberdadeedaIndependênciaNacionaldoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:DissertaçãodeMestrado:UFRJ,1990.

10ParecerdaComissãoencarregadapeloConselhodaSociedadeDefensoradaLiberdadeeIndependênciaNacional,doRiodeJaneiro,deapresentaroPlanodeumaCasadeCorreçãoeTrabalhon’estaCorte,8dedezembrode1831.ArquivoGeraldaCidadedoRiodeJaneiro,códicePrisões(1830a1842).

11Idem.12Valedizerqueatéhojetaisterrenossãoocupadosporprisões.Trata-sedoComplexoPenalFreiCanecaque,mesmotendopartedeseus

prédiosdemolidosnoanode2007,continuaatuandocomopresídiomasculinonaregião,bempróximoaoCentrodacidadedoRiodeJaneiro.

13Verretrospectodascontaspagasem:MINISTÉRIODAJUSTIÇAENEGÓCIOSINTERIORES.Notíciahistóricadosserviços,instituiçõeseestabelecimentospertencentesaestarepartiçãoelaboradaporordemdorespectivoministrodr.AmaroCavalcanti.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1898.Tambémpodemserconsul-tadososrelatóriosdosministrosdaJustiça.Em1848,acomissãoinspetoradasobrasdaCasadeCorreçãoapresentaumvalorde343:140$000,utilizadonasobrasatéaquelemomento.ArquivoNacional(doravanteAN)IJ7–10(1834–1848).

14SobreaCasadeCorreçãonoséculoXIX,ver:SANT’ANNA,MarileneA.“Deumlado,punir;deoutro,reformar”:projetoseimpassesemtornodaimplantaçãodaCasadeCorreçãoedohospíciodePedroIInoRiodeJaneiro.DissertaçãodeMestrado.PPGHIS/UFRJ.RiodeJaneiro:2002;HOLLOWAY,op.cit.;PESSOA,GláuciaTomazdeAquino.TrabalhoeresistêncianapenitenciáriadaCorte(1855–1876).DissertaçãodeMestrado.UniversidadeFederalFluminense,2000.

15GAY,Peter.AexperiênciaburguesadarainhaVitóriaaFreud.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1995.Volume3:Ocultivodoódio,emespecialCapítulo2.

16SALLA,Fernando,op.cit.,p.24.17AolongodoséculoXIX,aCasadeCorreçãotevedoisregulamentos:oDecreto678,de6dejulhode1850,com168artigos,eoDecreto

8.386,de14dejaneirode1882,com341artigos.VerColeçãodasleisdoImpériodoBrasildosrespectivosanoscitados.Emambos,prevalecemoencarceramentocelularduranteanoiteeotrabalhoemcomumduranteodia,soboregimerigorosodosilêncio.

18OsmenoreseramrecolhidosàCasadeCorreção,deacordocomoartigo13doCódigoCriminalde1830:“Seseprovarqueosmenoresdequatorzeanos,quetiveremcometidocrimes,obraramcomdiscernimento,deverãoserrecolhidosáscasasdecorreção,pelotempoqueaoJuizparecer,contantoqueorecolhimentonãoexcedaáidadededezesseteanos.”

19“Napráticaessasdiferençasderepousonãotêmsidoobservadas,concedendo-seomesmotempoatodosospresosesemalteraçãoquantoàsestaçõesdoano.”RelatóriodaComissãoInspectoradaCasadeCorreçãodaCorte,1874.

20PERROT,op.cit,p.266.Vertambém:FOUCAULT,M.Vigiarepunir:nascimentodaprisão.Petrópolis:Vozes,1995.21PINTO,AntonioPereira.MemóriasobreapenitenciáriadoRiodeJaneiro.In:RevistadoInstitutoHistóricoeGeográficoBrasileiro.

TomoXXI.1858,p.446.22RelatóriodaComissãoInspetoradaCasadeCorreçãodaCorte,1874.23GOFFMAN,Erving.Manicômios,prisõeseconventos.SãoPaulo:Perspectiva,2003;SYKES,Gresham.TheSocietyofCaptives:a

studyofamaximumsecurityprison.USA:PrincetonUniversityPress,2007(1.ed.,1958).StuartHalldestacaaimportânciadostrabalhosdeGoffmanedeumgrupodesociólogosconhecidoscomointeracionistassimbólicos,comgrandevisibilidadenasociologiadasdécadasde1950e1960,quetrouxeramanoçãodeidentidadedoindivíduoconstruídaapartirdaparticipaçãoemrelaçõessociaiseemestruturassociais.Ver:HALL,S.Aidentidadeculturalnapós-modernidade,2005,p.31.

24OInstitutodeMenoresArtesãosfoicriadoem1861enaCasadeCorreçãopermaneceuaté1865,apesardemuitasreclamaçõesdosdiretoresemédicosedaocorrênciadeinúmerosconflitoscomosdemaisgruposdainstituição.Ver:SOUSA,JorgePratade.Amãodeobrademenoresescravos,libertoselivresnasinstituiçõesdoImpério.In:Escravidão:ofícioseliberdade.Rio:ArquivoPúblicodoEstadodoRiodeJaneiro,1998,p.33-64.

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25MELOSSI,Dario;PAVARINI,Massimo.Cárcereefábrica–asorigensdosistemapenitenciário(séculosXVI–XIX).Rio:Revan,ICC,2006,p.37.

26SALLA,1999,op.cit.,p.111.27RelatóriodoMinistrodaJustiçade1850,p.22.VertambémAN,IIIJ7–139(1841–1849).28AN,IJ7–15(1864–1865).29AN,IIIJ7–19(1870).30AN,IIIJ7–16(1883).31OfíciodaSecretariadeJustiçaaodiretorBelarminoBrasiliensePessoadeMelo.AN,IIIJ7–16.32AN,IIIJ7–19(1870).33AvisoaoMinistériodaJustiça,ANIJ7–101(1882-1884).Quemchamaaatençãoparaoperigodasoficinascomolugardeencontroeinício

deinúmerosconflitoséPERROT,M.,op.cit.34ANIJ7–101(1882–1884).Valeapenatranscreverarespostadodiretoraoministroporocasiãodadenúnciadomédico:“tratandode

manteradisciplinaeordemdaCasaeaindamaisdecorrigirumafaltatãograve,praticadaporumpresoquenãosereputavamaisdoente,tinhasaídodaenfermariaenãoestavamaisemusoderemédios,omeuprocedimentonãodeviaseroutro.Setaisprecedentesforemtoleradosnãosepoderámaisgarantirasegurançadoestabelecimento,mesmoporquequasetodosospresossãomaisoumenosdoentes”.Essaimagemdospresoscomodoentes,preguiçosos,mentirososquesebeneficiamdoolhar“caridoso”dosmédicoseraargumentobastantecomumentreosdiretoresdaprisãonajustificativadaaplicaçãodecastigosfísicosounaimplantaçãodediretrizesmaisdurasdedisciplina.

35Relatóriode1869dodiretorAlmeidaValleaoMinistériodaJustiça,p.2.36Ver:SOARES,OscardeMacedo(1863–1911).CódigoPenaldaRepúblicadosEstadosUnidosdoBrasil.Brasília:SenadoFederal:

SupremoTribunaldeJustiça,2004,p.147.37SANTOS,MyrianSepúlvedados.Aprisãodosébrios,capoeirasevagabundosnoiníciodaerarepublicana.RiodeJaneiro:Topoi,Revista

deHistória,v.5,n.8,p.138-169,2004.BARRADAS,VirgíniaSena.Modernosedesordenados:adefiniçãodopúblicodaColôniaCorrecionaldeDoisRios(1890–1925).Dissertaçãodemestrado.PPGHIS/IFCS,2006.CARVALHO,J.Murilode.Osbestializados.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1987.

38AN,IJ7–134(1897–1898);JornaldoBrasil,5e10desetembrode1897.39JornaldoBrasil,10deagostode1905.40JornaldoBrasil,20dejaneirode1905,primeirapágina.

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SOBREOSAUTORES

Carlos Aguirre é professor do Departamento de História da Universidade de Oregon e diretor doProgramadeEstudosdaAméricaLatinadamesmauniversidade.ÉautordeTheCriminalsofLimaandtheirWorlds:ThePrisonExperience(1850-1935).Durham:DukeUniversityPress,2005.Alémdisso,coeditouTheBirthofthePenitentiaryinLatinAmerica,1830-1940.Austin:UniversityofTexasPress,1996.

Carlos EduardoM. de Araújo possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio deJaneiro(2002),mestradoemHistóriaSocialpelaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiroedoutoradopela Universidade Estadual de Campinas. Atua, principalmente, nos temas de história da escravidão,sistemaprisionalerelaçõesraciais.

GizleneNederéprofessoradaUniversidadeFederalFluminenseedoProgramadePós-GraduaçãoemHistória(UFF)edoProgramadePós-GraduaçãoemSociologiaeDireito(UFF),desde2002.Éautora,entre outros livros, de Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão (2000),EditoraRevan,RiodeJaneiro.

Marcos Paulo Pedrosa Costa é doutorando no Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de Pernambuco emestre emHistória pela Universidade Federal da Paraíba. Éautordo livroOcaosressurgirádaordem:FernandodeNoronhaeareformaprisionalno império.IBCCRIM:SãoPaulo,2009.

Marilene Antunes Sant´Anna possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio deJaneiro (1999),mestradoemHistóriaSocialpelaUniversidadeFederaldoRiode Janeiro (2002)eédoutorandadomesmoProgramadePós-Graduação.

PalomaSiqueiraFonsecapossuigraduação(1999)emestrado(2003)emHistóriapelaUniversidadedeBrasília.É autora do texto “Presiganga e as puniçõesdaMarinha (1808-31)”, publicadona coletâneaNovahistóriamilitarbrasileira,editadapelaFundaçãoGetúlioVargas(2004).

RicardoAlexandreFerreirapossuigraduação(2000),mestrado(2003)edoutorado(2006)emHistóriae Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. É professor doDepartamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná. É autor do livroSenhoresdepoucosescravos:cativeiroecriminalidadenumambienterural,1830-1888.

ThomasHolloway éprofessor titularnoDepartamentodeHistóriadaUniversidadedeCalifórnia, emDavis.ÉautordePolícianoRiodeJaneiro:repressãoeresistêncianumacidadedoséculoXIX.RiodeJaneiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. Foi professor visitante na Universidade Federal de SantaCatarina,epesquisadorvisitantenoCentrodeEstudosAfro-AsiáticosnoRiodeJaneiro.

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