colisÕes entre princÍpios constitucionais - domínio … · 2013-01-30 · 1.2.4 o conceito de...
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JOS SRGIO DA SILVA CRISTVAM
COLISES ENTRE PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA TEORIA DE ROBERT ALEXY
Florianpolis, maio de 2005.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC
CENTRO DE CINCIAS JURDICAS CCJ
CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO CPGD
COLISES ENTRE PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA TEORIA DE ROBERT ALEXY
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Direito,
Programa de Mestrado vinculado ao Centro de Cincias
Jurdicas da Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito para a obteno do Ttulo de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Srgio Urquhart de Cademartori
Mestrando: Jos Srgio da Silva Cristvam
Florianpolis, maio de 2005.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC
CENTRO DE CINCIAS JURDICAS CCJ
CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO CPGD
A dissertao Colises entre princpios constitucionais: uma abordagem a partir da
teoria de Robert Alexy, elaborada por JOS SRGIO DA SILVA CRISTVAM e
aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, restou julgada adequada como
requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Direito rea de Concentrao
Filosofia, Sociologia e Teoria do Direito, sendo-lhe conferido o Conceito A, com
distino.
Florianpolis, maio de 2005.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Srgio Urquhart de Cademartori
Presidente
Prof. Dr. Slvio Dobrowolski
Membro
Prof. Dr. Argemiro Cardoso Moreira Martins
Membro
Prof. Dr. Antnio Carlos Wolkmer
Suplente
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A todos aqueles que acreditam no Direito como instrumento
legtimo e eficaz na implementao de uma sociedade justa e
razovel, bem como queles que defendem um Direito
justificado a partir de boas razes e da autoridade do
argumento, mas nunca pela fora do argumento de
autoridade.
Muito mais especialmente, aos meus pais, Ado e Ercria
Cristvam, pelo testemunho de dignidade e humanidade que
legaram aos filhos e netos
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, primeiramente, a Deus, sombra zelosa e inarredvel, pelo efetivo arrimo no
decorrer da espinhosa pesquisa que culminou neste trabalho e pelos talentos que me confiou.
Toda gratido a minha famlia, em especial aos meus Pais, Ado e Ercria, pelo
exemplo de dignidade, humanidade e amizade, norte sem o qual minha caminhada certamente
seria desviada por caminhos indubitavelmente tortuosos.
Um agradecimento todo especial companheira das horas incertas e dos momentos de
alegria, Carina Martins Pizzolotto, e aos velhos e novos velhos amigos, pelos perodos de
descontrao que regaram a feitura do presente escrito, influindo certamente em seu resultado.
Agradeo, ainda, a todos os colegas do Programa de Ps-Graduao em Direito da
UFSC, especialmente a Cristina Foroni, Larissa Tenfens, Leonardo Papp, Leonardo Chaves,
Letcia Canut, Lris Baena, Luciana Nahas, Luciana Aguiar, Samuel Santos, Scrates
Fusinato, Thais de Santi e Vera Lcia da Silva, pela convivncia rica em experincias e pela
amizade sincera. Um agradecimento especial colega Samantha Dobrowolski pela
inestimvel colaborao bibliogrfica.
Enorme dvida de gratido a ser empenhada, ainda, a todos os professores do
Programa de Ps-Graduao de Direito da UFSC, em especial aos Professores Doutores
Antnio Carlos Wolkmer, Jeanine Nicolazzi Philippi, Ceclia Caballero Lois, Orides
Mezzaroba e Srgio Urquhart de Cademartori, pela excelncia das disciplinas ministradas ao
longo do Curso de Mestrado.
Agradecimento sincero e fraterno a meu orientador, Doutor Srgio Urquhart de
Cademartori, pela disposio em orientar e pelas luzes e apontamentos sempre convenientes e
esclarecedores. Agradeo, tambm, aos membros da Banca de Defesa da Dissertao, Doutor
Slvio Dobrowolski e Doutor Argemiro Cardoso Moreira Martins, pela fecunda discusso
proporcionada e grandiosa contribuio ao resultado final do trabalho.
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Toda gratido ao scio insubstituvel e dileto amigo Noel Antnio Tavares de Jesus,
extensivo aos colegas do escritrio Machado, Vieira & von Linsingen, pela a camaradagem e
cumplicidade prprias dos verdadeiros amigos.
Especial agradecimento aos estimados amigos e colegas, Daniel Reis Pereira, Marcos
Rogrio Palmeira, Ubaldo Csar Balthazar, Guilherme de Almeida Bossle e Joubert Farley
Eger, pelas incomensurveis contribuies, nos mais variados sentidos, inclusive moral e
bibliogrfico, ou simplesmente por serem quem e como so.
Um carinhoso agradecimento aos colegas da Universidade para o Desenvolvimento do
Alto Vale do Itaja UNIDAVI, na pessoa do Magnfico Reitor Viegand Eger, e aos amigos
da VOX LEGEM Cursos e Concurso, na pessoa do Diretor Douglas Freitas, instituies
onde atuo como professor; bem como a todo o corpo de funcionrios e diretores que
compem o Sindicato dos Trabalhadores em Educao do Estado de Santa Catarina
SINTE/SC, onde presto assessoria e consultoria jurdica.
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RESUMO
O constitucionalismo vem se consolidando no contexto do discurso jurdico como uma
teoria informada, sobretudo, pelas idias de estreita relao entre Direito e moral, fora
normativa da Constituio, vinculatividade dos princpios constitucionais e plena eficcia das
normas de direitos fundamentais. A partir da teoria constitucionalista so buscadas respostas
s mais variadas problemticas jurdicas, como a coliso entre princpios constitucionais.
A tese da normatividade e fora vinculante dos princpios trouxe consigo o problema
da resoluo das colises entre estas espcies normativas, questo que demanda uma anlise a
partir de um prisma mais amplo, o mbito da teoria da argumentao jurdica.
A problemtica da resoluo dos casos difceis no nova no discurso jurdico. Por
outro lado, no h uma teoria jurdico-discursiva que garanta a unidade de resposta correta
para todos os problemas prticos, inclusive os casos difceis. Este o tema central do presente
estudo: at que ponto possvel mitigar o insuprimvel dficit de racionalidade na resoluo
das colises entre princpios constitucionais? At que ponto possvel instituir um modelo
procedimental de argumentao jurdica que garanta a correo das decises judiciais?
O trabalho segue a teoria procedimental-discursiva de Robert Alexy, que defende o
discurso jurdico como um caso especial do discurso prtico geral, uma teoria da
argumentao jurdica formulada no contexto de uma teoria do Estado e do Direito, com a
pretenso de garantir racionalidade justificativa s decises jurdicas, sobretudo no nvel
judicial.
No marco desse modelo discursivo enfrentada a questo das colises entre princpios
constitucionais, sem a pretenso de uma teoria garantidora da unidade de soluo correta para
todos os problemas difceis, mas uma teoria que possibilite um amplo grau de racionalidade s
decises judiciais, a partir de um modelo racional de justificao jurdica.
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ABSTRACT
The constitutionalism, in the judicial discourse context, has been considered a directed
theory, witch take the ideas of narrow relation between Law and Moral, Constitutions
normative force, entailing between decisions and constitutional principles and fundamental
rights norms fully efficacy. Thought the constitutionalist theory, answers are searched to the
most different species of juridical issues, as the collision between constitutional principles.
The normativit and principles binding force thesis brings to the ring the problem of the
collisions resolution between these normative species. This question require a broad vision,
on the field of the juridicals argumentation theory.
The question of the hard cases resolution isnt recent in the juridical discourse. By
another hand, there isnt a juridical-discursive theory witch assures the unit of the right
answer for all pratical problems, including the hard cases. Thats the central aim of this study:
how is possible to mitigate the rationality deficit in the resolution of the collisions between
constitutionals principles? How is possible to institute a procedural model of juridical
argumentation that assures the correction of the judicial decisions?
This work follows the Robert Alexys procedural-discursive theory, witch defends the
juridical discourse as an special case of the general pratical discourse, a juridical
argumentation theory formed in the theory of State and Law context, looking for assurance
rationality justifying to the juridical decisions, especially on the judicial degree.
Based on this discursive model, the question of the collisions between constitutionals
principles is faced, without any pretension on an assurance theory of the right solution unit to
all hard problems, but a theory that makes visible an ample degree of rationality to the judicial
decisions, from a juridical justify rational model.
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SUMRIO
DEDICATRIA..................................................................................................................... iii
AGRADECIMENTOS........................................................................................................... iv
RESUMO................................................................................................................................. vi
ABSTRACT............................................................................................................................ vii
INTRODUO...................................................................................................................... 01
CAPTULO 1 O SISTEMA JURDICO
E OS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS............................................ 09
1.1 Consideraes Iniciais................................................................................................. 09
1.2 Para um conceito de sistema jurdico........................................................................ 12
1.2.1 Sistema jurdico e ordenamento jurdico: expresses sinnimas?.................... 13
1.2.2 Breves consideraes acerca da evoluo
do conceito de sistema jurdico.................................................................................. 16
1.2.3 O sistema jurdico no pensamento
de Hans Kelsen e Herbert L. A. Hart......................................................................... 18
1.2.3.1 O sistema jurdico na teoria do Direito de Hans Kelsen...................... 18
1.2.3.2 O sistema jurdico na teoria do Direito de Herbert L. A. Hart............. 22
1.2.4 O conceito de sistema jurdico proposto por Claus-Wilhelm Canaris.............. 28
1.3 Para um conceito de princpios constitucionais........................................................ 32
1.3.1 Dos princpios gerais de Direito aos princpios constitucionais....................... 33
1.3.1.1 Os princpios jurdicos no jusnaturalismo............................................ 34
1.3.1.2 Os princpios gerais de Direito no positivismo jurdico....................... 34
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1.3.1.3 A normatividade dos princpios
constitucionais no novo constitucionalismo..................................................... 35
1.3.2 O contedo polissmico da expresso princpio jurdico.............................. 37
1.3.3 A distino estrutural entre regras e princpios jurdicos.................................. 39
1.3.3.1 Normas, princpios e diretrizes
na filosofia jurdica de Ronald Dworkin.......................................................... 42
1.3.3.2 Os princpios jurdicos no pensamento de Robert Alexy..................... 50
1.3.3.3 Princpios e valores: o debate entre
Robert Alexy e Jrgen Habermas..................................................................... 55
1.3.4 As funes dos princpios constitucionais........................................................ 60
1.3.4.1 As funes interpretativa e integrativa dos princpios jurdicos.......... 61
1.3.4.2 A funo dos princpios na argumentao jurdica.............................. 64
1.3.4.2.1 Argumentao de princpios e regra de universalizao......... 65
1.3.4.2.2 Argumentao de princpios
e argumentao conseqencialista.......................................................... 68
1.3.4.2.3 Argumentao de princpios e interpretao sistemtica......... 69
1.3.5 Algumas propostas de classificao dos princpios constitucionais................. 70
1.3.5.1 A proposta classificatria de Jos Joaquim Gomes Canotilho............. 71
1.3.5.2 A proposta classificatria de Jorge Miranda........................................ 72
1.3.5.3 A proposta classificatria adotada por Luis Prieto Sanchs................. 73
CAPTULO 2 A TEORIA DA ARGUMENTAO JURDICA
DE ROBERT ALEXY............................................................................... 77
2.1 Consideraes iniciais............................................................................................... 77
2.2 A tpica jurdica de Theodor Viehweg................................................................... 80
2.2.1 Evoluo do pensamento tpico....................................................................... 81
2.2.2 As contribuies de Viehweg tpica jurdica................................................. 83
2.2.3 Algumas crticas ao pensamento tpico............................................................ 89
2.3 A nova retrica de Cham Perelman................................................................ 91
2.3.1 As categorias fundamentais da nova retrica.................................................... 94
2.3.2 Algumas consideraes crticas acerca da nova retrica.................................. 98
2.4 A teoria da argumentao jurdica de Robert Alexy........................................... 100
2.4.1 As principais influncias ao pensamento de Robert Alexy............................ 101
2.4.2 A teoria do discurso racional prtico.............................................................. 104
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2.4.2.1 As regras e formas do discurso prtico geral...................................... 107
2.4.3 A teoria da justificao jurdica...................................................................... 114
2.4.3.1 O modelo tripartite de
sistema jurdico (regras/princpios/procedimento)......................................... 115
2.4.3.2 O discurso jurdico como caso especial
do discurso prtico geral................................................................................. 118
2.4.3.3 As regras e formas da teoria da justificao jurdica.......................... 120
2.4.3.3.1 A justificao interna............................................................. 120
2.4.3.3.2 A justificao externa............................................................. 122
2.4.4 Algumas crticas teoria de Robert Alexy..................................................... 131
CAPTULO 3 A COLISO ENTRE PRINCPIOS
CONSTITUCIONAIS E A MXIMA DA PONDERAO............... 139
3.1 Consideraes iniciais............................................................................................. 139
3.2 As mximas da razoabilidade e da proporcionalidade........................................ 142
3.2.1 A no sinonmia entre razoabilidade e proporcionalidade.............................. 145
3.2.2 A mxima da razoabilidade............................................................................ 147
3.2.2.1 Origem e evoluo da clusula due process of law........................ 148
3.2.2.2 A razoabilidade e o sentido substantivo
do devido processo legal................................................................................ 150
3.2.3 A mxima da proporcionalidade..................................................................... 156
3.2.3.1. A proporcionalidade no Direito europeu........................................... 158
3.2.3.2 Significado da proporcionalidade...................................................... 160
3.2.3.3 As mximas
constitutivas da proporcionalidade................................................................. 162
3.2.3.3.1 Mxima da conformidade ou
da adequao dos meios (Geeignetheit)................................................ 163
3.2.3.3.2. Mxima da exigibilidade
ou da necessidade (Erforderlichkeit).................................................... 165
3.2.3.3.3. Mxima da ponderao ou
proporcionalidade em sentido estrito (Verhltnismssigkeit)............... 166
3.3 A problemtica das antinomias jurdicas............................................................. 169
3.3.1 Conflito entre regras jurdicas......................................................................... 171
3.3.2 A coliso entre princpios constitucionais e a mxima da ponderao.......... 178
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3.4 A aplicao da razoabilidade e da
proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.................................................. 183
3.5 A resposta correta para os casos difceis e a discricionariedade judicial.......... 197
3.5.1 As concepes positivistas de Hans Kelsen e Herbert L. A. Hart.................. 199
3.5.2 A tese de Ronald Dworkin acerca da nica resposta correta.......................... 202
3.5.3 A problemtica no pensamento de Aulis Aarnio............................................ 205
3.5.4 A proposta conciliadora de Robert Alexy....................................................... 208
CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................. 211
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. 219
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INTRODUO
O pensamento jurdico contemporneo tem sido influenciado, em larga medida, pela
consolidao de uma srie de teses que procuram refutar as idias centrais do positivismo
jurdico, sobretudo o modelo estruturalista de Hans Kelsen e o sistema jurdico por regras de
Herbert L. A. Hart. Esse novo modelo terico pode ser designado simplesmente como ps-
positivismo ou, mais apropriadamente, como novo constitucionalismo.
O modelo constitucionalista de teoria do Direito prope um amplo redimensionamento
da noo de sistema jurdico, a partir da estreita relao entre Direito e moral. O dogma
positivista da separao entre as questes jurdicas e morais superado pela construo de
uma concepo aberta e dinmica de ordenamento jurdico, onde os elementos do discurso
prtico so incorporados ao Direito pela via dos princpios jurdicos.
A separao das normas jurdicas em regras e princpios, estes com as qualidades de
fora normativa e vinculatividade prprias das normas, outra concepo central ao novo
constitucionalismo. Os princpios jurdicos no so mais encarados como simples fontes
normativas subsidirias, dotados simplesmente daquelas funes marginais de completar os
espaos deixados pelas regras ou contribuir na interpretao do significado e alcance das
disposies normativas. A posio dos princpios jurdicos passa a ser central e fundamental
prpria concepo de sistema jurdico.
A normatividade dos princpios deve ser discutida em uma perspectiva mais ampla, a
idia de fora normativa da Constituio. No seio do novo constitucionalismo, a Constituio
no pode continuar sendo considerada mera expresso das aspiraes sociais, marcada por
uma reduzida noo de eficcia normativa. H que se consider-la sim, como expresso
formal e material da ordem jurdica. Essa supremacia da Constituio exige, inclusive, a
rediscusso do prprio conceito de soberania, porquanto, em um modelo jurdico-poltico
marcadamente garantista, soberana a prpria Constituio. O Estado somente se legitima a
partir do cumprimento das normas constitucionais, sobretudo aquelas garantidoras de direitos
fundamentais.
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Conforme referido, no novo constitucionalismo os princpios jurdicos so alados
condio de verdadeiras espcies normativas, servindo como base de sustentao lgica e
axiolgica a todo o ordenamento jurdico, na medida em que reforam as idias de ordem e
unidade sistemtica, funcionando como vias de inter-relao entre o Direito e a moral. Os
princpios devem ser considerados como as janelas por onde a moralidade irradiada para
dentro do ordenamento jurdico, um canal aberto ao dilogo constante entre o discurso prtico
e o discurso jurdico.
Essa a funo primordial dos princpios constitucionais: aproximar o Direito das
questes prticas, tanto informando a sociedade a partir das diretrizes normativas que
sustentam o ordenamento jurdico, quanto nutrindo o sistema com os elementos prticos da
realidade social. A idia de dupla funo dos princpios constitucionais garante que o Direito
no se afaste demasiadamente da complexa e dinmica realidade social e, por outro lado,
permite que no se torne refm das intempries e sazonalidades axiolgicas da sociedade.
Indubitavelmente, o Direito no pode prescindir de seu carter bsico a idia de
normatividade.
A teoria dos princpios pretende resolver um dos problemas centrais do modelo de
sistema jurdico baseado em regras, a questo das lacunas de abertura e incompletude
sistemtica. Por outro lado, no se pode negar que, muito embora resolva os problemas
centrais do positivismo jurdico, sua aplicao enseja um inegvel dficit de indeterminao,
porquanto no informada por uma teoria procedimental capaz de indicar qual dos princpios
reconhecidos, explcita ou implicitamente, pelo ordenamento jurdico deve ser aplicado na
soluo de determinado caso prtico.
O problema da coliso entre princpios constitucionais desponta como uma das mais
importantes e inquietantes questes a demandar respostas pelo modelo constitucionalista de
discurso jurdico. Em um ordenamento extremamente complexo como o nosso, marcado por
uma Constituio prolixa e aberta, garantidora de um amplo catlogo de princpios, o
fenmeno da coliso entre princpios constitucionais faz parte da prtica comum do discurso
jurdico, o que exige a estruturao de mecanismos hbeis resoluo dessas
contraditoriedades normativas.
Essa a temtica central a ser enfrentada pelo presente trabalho: sob quais parmetros
possvel a estruturao de uma teoria da justificao judicial capaz de suprimir o dficit de
racionalidade do discurso jurdico, sobretudo no que concerne resposta judicial aos casos
difceis, como as colises entre princpios constitucionais? Como se pode justificar
2
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racionalmente uma deciso judicial que reconhece a prevalncia de determinado princpio ou
conjunto de princpios constitucionais em detrimento de outros?
No se est assegurando, vale frisar, que toda situao de contradio entre princpios
jurdicos caracteriza um caso prtico de difcil soluo. H casos em que, muito embora seja
possvel defender a aplicao de diferentes princpios que apontam solues jurdicas
contraditrias, a carga argumentativa de um princpio consideravelmente reduzida, exigindo
uma menor complexidade do raciocnio argumentativo para justificar seu afastamento. Por
outro lado, no mais das vezes as situaes de coliso entre princpios constitucionais exigem
um processo argumentativo que nem sempre ou quase nunca aponta uma nica soluo
correta. A legitimao da deciso judicial que aplica uma dentre uma pluralidade de solues
corretas demanda uma slida teoria da justificao jurdica.
O discurso jurdico racional exige a correo das razes das decises judiciais, quando
da resoluo de colises entre princpios constitucionais. A pretenso de correo da
argumentao jurdica decorre da prpria noo de racionalidade prtica, determinando que as
questes prticas devam ser decididas a partir de uma pretenso de verdade lato sensu
(correo). Essas idias so centrais ao modelo terico argumentativo de Robert Alexy, que
defende o discurso jurdico (argumentao jurdica) como um caso especial do discurso
prtico geral (argumentao moral), com base em uma teoria procedimental da argumentao
jurdica. Procedimental no sentido de que a adequao de uma norma a correo de uma
afirmao normativa est relacionada possibilidade de encarnar o resultado de um
determinado procedimento ou mtodo discursivo.
No primeiro captulo, denominado O Sistema Jurdico e os Princpios
Constitucionais, ser empreendida uma anlise aprofundada acerca da teoria dos princpios
como espcies normativas. Antes, porm, ser necessrio o estabelecimento de parmetros
bsicos estruturao de um conceito de sistema jurdico. Ultrapassa os limites do trabalho
uma anlise mais detida e contextualizada do pensamento jurdico-sistemtico. Por outro lado,
a discusso acerca dos princpios constitucionais dever ser precedida pelo estabelecimento de
um conceito de sistema jurdico compatvel com a referida teoria principialista.
Impende, desde j, ressaltar que as expresses sistema jurdico e ordenamento jurdico
sero aplicadas como sinnimos. Como a teoria dos princpios a ser apresentada se contrape
aos modelos tericos juspositivistas de Kelsen e Hart, faz-se mister que ambos sejam
previamente debatidos, a fim de encaminhar o posterior contraponto.
3
A base da teoria kelseniana do Direito est situada na separao entre Direito e moral,
a partir da idia de coero. As normas jurdicas seriam diferentes das morais por ostentarem
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um carter coercitivo, sendo o Direito concebido como uma ordem social positiva de coao.
O sistema jurdico definido com base na noo de validade formal, ou seja, uma norma
jurdica vlida se encontra seu fundamento de validade em outra norma hierarquicamente
superior. Esta lgica conduz norma hipottica fundamental, que se encontra fora da
pirmide normativa e deve ser pressuposta, de onde o ordenamento extrai todo seu
fundamento de validade.
Em Hart, o sistema jurdico parte de um conceito de Direito centrado na idia de
regras jurdicas. Nesta concepo, as regras podem ser primrias e secundrias. As regras
primrias esto baseadas na noo de dever, imposio de um determinado comportamento ao
seu destinatrio. As regras secundrias, por sua vez, estabelecem poderes ligados
identificao, alterao e aplicao das regras primrias. O fundamento de validade do
sistema jurdico hartiano depositado na regra de reconhecimento, ferramenta identificadora
das regras vlidas de determinado ordenamento jurdico.
Os modelos tericos de Kelsen e Hart no se mostram compatveis com a tese
principialista a ser apresentada, sugerindo o estudo do conceito de sistema jurdico proposto
por Claus-Wilhelm Canaris, que estabelece a adequao valorativa e a unidade interior do
Direito como os pressupostos fundamentais do conceito de sistema jurdico. Canaris o define
como uma ordem teleolgica de princpios gerais do Direito, um sistema aberto, dinmico e
histrico, baseado nas idias de adequao valorativa e unidade interior, o que possibilita
discutir questes como as lacunas e as antinomias entre princpios jurdicos, denominadas
quebras sistemticas.
Passadas essas consideraes preparatrias, a teoria dos princpios comear a ser
discutida a partir da distino estrutural entre regras e princpios jurdicos, no pensamento de
Ronald Dworkin e de Alexy. Com base na tese da estreita relao entre Direito e moral,
Dworkin defende um modelo de ordenamento jurdico baseado em normas, princpios e
diretrizes. As normas so aplicveis maneira de um tudo ou nada, ou so aplicveis ou
no. J os princpios se constituem em razes para decidir, aquelas pautas que correspondem a
um imperativo de justia, equidade ou outra dimenso moral positiva. As diretrizes, por seu
turno, so pautas que estabelecem objetivos a serem alcanados, no mais das vezes
relacionados a questes econmicas, polticas ou sociais da comunidade.
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A doutrina de Dworkin, ainda que consideravelmente redesenhados os contornos,
serviu de base ao pensamento de Alexy, que divide as normas jurdicas em regras e princpios.
As regras so normas que contm determinaes definitivas no mbito do ftica e
juridicamente possvel, exigindo seu comprimento na exata medida de suas disposies. J os
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princpios so mandamentos de otimizao, pelos quais se ordena que algo seja cumprido na
maior medida ftica e juridicamente possvel. Os princpios no veiculam determinaes
definitivas, mas apenas disposies prima facie.
A distino estrutural entre regras e princpios pode ser criticada sob vrios aspectos,
at no sentido de sua completa impropriedade, partindo da inexistncia dessa alegada
diferenciao forte ou conceitual. Para tentar vencer os possveis problemas da anlise
estruturalista dessas espcies normativas, ser empreendida a anlise dos princpios
constitucionais sob uma perspectiva funcionalista, as funes dos princpios na metodologia
do Direito e na teoria da argumentao jurdica, como via de reforo teoria dos princpios
constitucionais.
O segundo captulo, denominado A Teoria da Argumentao Jurdica de Robert
Alexy, pretende estabelecer parmetros para a justificao racional das decises judiciais que
conferem prevalncia a determinado princpio constitucional, com o conseqente afastamento
dos demais princpios conflitantes. A correo das decises jurdicas ser discutida no marco
de uma teoria procedimental do discurso jurdico, definida como um caso especial da
argumentao prtica geral.
Previamente anlise da teoria da argumentao jurdica de Alexy, sero
empreendidas breves incurses na tpica jurdica de Theodor Viehweg e na nova retrica de
Cham Perelman, a fim de angariar subsdios tericos para um estudo mais apropriado da
teoria de Alexy. A tpica e a nova retrica representam a retomada da discusso dos
problemas prticos a partir de uma perspectiva racional, afastados do campo da
irracionalidade para onde haviam sido relegados pela racionalidade cartesiana.
O pensamento tpico-retrico funciona como uma via alternativa ao pensamento
lgico-dedutivo que dominou de modo hegemnico o discurso jurdico at a segunda metade
do sculo XX. A racionalidade cartesiana, fundada nas idias de verdade e demonstrabilidade,
contestada a partir da dialtica e da retrica aristotlicas, que informam a proposta de
estruturao de um discurso racional prtico. As questes prticas deixam o campo da
irracionalidade, sem assumir a lgica formal-dedutiva das cincias geomtricas.
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A teoria da argumentao jurdica de Alexy parte da racionalidade do discurso prtico
geral, um modelo de razo no absoluta ou plena, pelo contrrio, marcada por limitaes e
lacunas. Ainda que as regras e formas do discurso prtico geral garantam um considervel
nvel de correo ao discurso moral, esse dficit de racionalidade justifica a instituio do
discurso jurdico, pensado a partir de uma teoria do Estado e do Direito. As lacunas de
racionalidade do discurso prtico justificam sua institucionalizao pelo Direito.
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Assim, o discurso jurdico apresentado como um caso especial do discurso prtico
geral, com base em uma relao de integrao entre os argumentos jurdicos especficos e os
argumentos prticos gerais. Todo discurso jurdico erigido sobre uma pretenso de correo,
que informa o processo jurdico argumentativo. Sempre que feita uma afirmao jurdica,
parte-se da noo de verdade ou correo do que se est afirmando. A justificao de qualquer
afirmao jurdica demanda uma exigncia de correo.
A teoria da fundamentao jurdica de Alexy est aberta a uma srie de crticas, sob os
mais diversos aspectos. Discute-se at sobre a utilidade e o efetivo alcance de sua teoria no
processo de justificao das decises judiciais. Em verdade, Alexy defende que o discurso
prtico institucionalizado pelo Direito para resolver seus problemas de limitao e dficit de
racionalidade. Entretanto, o discurso jurdico tambm marcado por limitaes e lacunas de
racionalidade, sobretudo na problemtica dos casos difceis, objeto de anlise no terceiro
captulo. O modelo terico de Alexy no consegue garantir a unidade de soluo justa para
todos os problemas prticos, principalmente os casos difceis, como so exemplos as colises
entre princpios constitucionais.
O terceiro captulo, denominado A Coliso entre Princpios Constitucionais e a
Mxima da Ponderao, ser marcado pela discusso acerca da resoluo das colises entre
princpios constitucionais a partir da mxima da ponderao de Alexy. Antes da anlise das
antinomias entre princpios, empreender-se- o estudo acerca dos princpios constitucionais da
razoabilidade e da proporcionalidade, aqui definidos como verdadeiras mximas, cnones de
interpretao, parmetros de aferio da ordenao racional do sistema jurdico e da atuao
do Poder Pblico.
Cabe, desde j, ressaltar que o presente trabalho afasta a relao de sinonmia entre as
mximas da razoabilidade e da proporcionalidade, porquanto expressam construes tcnico-
jurdicas diversas, com pontos de especificidades tanto nas questes de origem, como nos
aspectos de estrutura e aplicao.
A razoabilidade ser analisada desde as origens histricas at sua consolidao
enquanto parmetro de conformidade substancial e teleolgica dos atos do Poder Pblico.
Pela mxima da razoabilidade ultrapassada a anlise da legalidade puramente formal da
atividade do Poder Pblico, alcanando a legalidade substancial ou melhor as questes
ligadas juridicidade das leis e dos atos administrativos.
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A proporcionalidade ganha relevo a partir do estudo de seus elementos constitutivos, a
adequao, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Pela mxima da
adequao, avaliado se a medida adotada est conforme aos fins previstos na lei, se
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apropriada ao alcance dos objetivos dispostos no mandamento normativo. A mxima da
necessidade exige que a medida eleita, dentre aquelas aptas consecuo dos objetivos
pretendidos, desponte como a menos onerosa aos cidados, que traga a menor carga de
restrio aos direitos fundamentais dos cidados. Sendo adequada e necessria, a medida
adotada pelo Poder Pblico ainda deve vencer a mxima da ponderao. Muito embora
adequadas e necessrias, algumas medidas podem trazer uma carga excessiva de restries e
limitaes direitos fundamentais. A mxima da ponderao ou proporcionalidade em
sentido estrito exige uma relao de justa medida entre os valores restringidos e os efetivados
pela medida limitadora. Quanto maior for a limitao ao direito dos cidados, maior dever
ser a efetivao do direito resguardado.
Partindo dessas consideraes, ser levada a efeito a anlise dos conflitos entre regras
e colises entre princpios constitucionais. O estudo das contrariedades entre regras jurdicas,
tambm denominadas antinomias prprias, dever ser empreendido com base no pensamento
de Norberto Bobbio, quando se refere aplicao dos critrios cronolgico, hierrquico e de
especialidade como instrumentos de resoluo das antinomias normativas.
As colises entre princpios constitucionais, conforme defende Alexy, no podem ser
solucionadas a partir do prisma da validade, que prprio das regras jurdicas. No caso dos
princpios, quando em relao de contrariedade, deve-se vencer o prisma da validade e
alcanar o mbito do valor, do peso ou importncia. Os princpios so definidos como
mandamentos de otimizao, que somente alcanam a total extenso de sentido quando em
relao com outros princpios. A realizao de um princpio constitucional depende de sua
relao com o conjunto de princpios que constituem o ordenamento e das relaes de tenso
que se formam a partir da anlise do problema prtico.
Neste sentido, a soluo das colises entre princpios constitucionais depende da
relao de precedncia condicionada que se forma a partir das circunstncias do caso
concreto. O caso concreto oferece parmetros para a deciso acerca da prevalncia de um
princpio sobre os outros, determinando o afastamento daqueles que ostentem menor peso ou
importncia. No se admite, portanto, a invalidao de um princpio pelo fato de ter sido
preterido na soluo de determinado problema prtico. H somente seu afastamento naquela
situao, at porque em outra, alteradas as circunstncias do caso concreto, o mesmo pode
preponderar.
A problemtica da unidade de soluo correta e da discricionariedade judicial ser
discutida a partir do pensamento jurdico de Kelsen, Hart, Dworkin, Aulis Aarnio e Alexy.
7
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Destes, somente Dworkin defende a possibilidade de uma nica soluo justa para todos os
casos prticos, vedada a discricionariedade judicial na deciso dos casos difceis.
Entretanto, a tese dworkiniana da unidade de soluo justa parece esbarrar em alguns
problemas de difcil soluo e que devem ser levados a srio. Destinada a resolver a questo
da discricionariedade judicial, sua teoria acaba fomentando-a, quando assegura a ausncia de
responsabilidade dos julgadores como criadores do Direito. Da mesma forma, tanto a textura
aberta e imprecisa dos princpios jurdicos, como a inexistncia de um procedimento capaz de
justificar a deciso pela prevalncia de determinado princpio como a nica deciso correta,
conspiram contra a tese forte de Dworkin.
Mesmo assim, muito embora seja difcil ou at impossvel alcanar a nica resposta
correta, Alexy defende esta tese como uma idia reguladora do processo jurdico
argumentativo. Como idia reguladora, o conceito de correo no pressupe a existncia de
uma nica resposta correta para cada pergunta prtica. At porque, essa unidade somente
poderia ser alcanada em condies ideais do discurso, que s podem ser atingidas de modo
aproximado.
O objeto central deste estudo ser a anlise das colises entre princpios
constitucionais a partir da teoria de Alexy. Vale frisar que o pensamento do autor ser
buscado diretamente em seus textos, com base em tradues em lngua espanhola e
portuguesa. O recurso a comentadores, como no caso de Manuel Atienza e Luis Prieto
Sanchs, entre outros tambm importantes, somente ser empregado na tentativa de completar
e enriquecer a apresentao do pensamento do autor principal. O exame fragmentado do
pensamento jurdico de outros autores, como Kelsen, Hart, Canaris, Dworkin, Viehweg,
Perelman e Aarnio, tambm ser efetivado a partir das verses espanholas e portuguesas de
suas obras.
Este trabalho no tem a pretenso de exaurir toda a complexidade da teoria da
argumentao jurdica de Alexy, nem sua teoria dos direitos fundamentais. Partindo do
mtodo dedutivo, pretende-se analisar como podem ser resolvidas as tenses entre princpios
constitucionais, no marco de sua teoria da fundamentao jurdica. Isso justifica a existncia
de uma srie de discusses omitidas ou no aprofundadas no decorrer do estudo.
Certamente, outros autores poderiam ter sido empregados, bem como alguns daqueles
estudados poderiam ser omitidos. Como se sabe, toda pesquisa reflete necessariamente e em
larga medida as preferncias do pesquisador. Aqui no diferente, o que justifica as
incluses e, principalmente, as omisses do trabalho.
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CAPTULO 1
O SISTEMA JURDICO E OS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS
1.1 Consideraes Iniciais
A noo moderna de constitucionalismo vem sendo marcada, preponderantemente,
pelo movimento de positivao em mbito constitucional dos princpios gerais de Direito,
sobretudo aps o advento do chamado Estado social de direito1. Este movimento migratrio
dos princpios jurdicos para as constituies, quer pela assuno de princpios reconhecidos
pela legislao infraconstitucional, quer pela incorporao de princpios constitutivos do
Direito Internacional, acaba se constituindo no trao distintivo dos modelos constitucionais
contemporneos, como serve de exemplo a Constituio brasileira de 1988 CRFB.
A fora jurdica vinculante das constituies atuais passa, de forma destacada, pela
idia de normatividade dos princpios constitucionais. No se pode mais entender as normas
constitucionais como simples iderios, expresses de anseios, aspiraes de uma dada
9
1 Os marcos iniciais do Estado social, conforme largamente difundido por historiadores e estudiosos da cincia poltica, so as constituies mexicana de 1917 e alem de 1919 (Constituio de Weimar). Entretanto, a evoluo do modelo estatal intervencionista, com o reconhecimento normativo dos direitos sociais, pode ser notada na Alemanha desde a segunda metade do sculo XIX, em concomitncia com a crise do modelo liberal-individualista de Estado. Assim, pode-se adotar como termo inicial do Estado social, o governo do Kaiser prussiano Otto Von Bismarck. Cabe ressaltar, por outro lado, que durante o sculo XIX o papel constitucional dos direitos sociais se resumia ao de meras clusulas polticas de compromisso, no mais das vezes promovidas por elites conservadoras ou liberais reformistas que pretendiam legitimar o Estado liberal, caracterizado pelo baixo intervencionismo para a contenso das desigualdades sociais, e desarticular os movimentos sociais que buscavam um reconhecimento mais amplo de seus interesses. Exemplo paradigmtico deste momento histrico justamente o Estado social autoritrio de Bismarck, onde os direitos sociais refletiam verdadeiras concesses outorgadas ex principis por oportunismo poltico e na inteno de neutralizar as crescentes demandas sociais, muito longe de se constiturem em verdadeiras conquistas decorrentes dos movimentos sociais organizados. Para um estudo mais aprofundado acerca da evoluo do Estado social e da efetivao dos direitos sociais, pode-se consultar: PISARELLO, Geraldo. Del Estado social legislativo al Estado social constitucional: por una proteccin compleja de los derechos sociales. Revista de Teora y Filosofa del Derecho, n. 15, Alicante: Isonomia, 2001, p. 81-107.
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sociedade. A fora normativa da Constituio condio inarredvel prpria conservao
do ordenamento jurdico2.
O movimento de constitucionalizao dos princpios jurdicos coincide com a
formulao de uma doutrina da fora normativa e vinculatividade dos princpios, em
contraposio s idias positivistas que dominaram, hegemonicamente, o discurso jurdico at
a primeira metade do sculo XX. O uso dos princpios como fonte normativa subsidiria,
conforme defendido pelo positivismo jurdico, j no encontra mais guarida na teoria
constitucional contempornea.
A questo da normatividade dos princpios jurdicos guarda profunda relao com a
superao do Estado liberal de direito3, pautado pela lgica do positivismo jurdico, e a
consolidao do novo constitucionalismo4, pensado a partir de um modelo jurdico ps-
positivista5.
No Estado liberal ou Estado de direito legislativo, como se refere Gustavo
Zagrebelski, o legislador figura como o senhor do direito, sendo visvel uma total confuso 2 Para estudos complementares, pode-se consultar: HESSE, Konrad. A fora normativa da Constituio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. 3 utilizada a expresso Estado liberal de direito pelo simples fato de ter sido consagrada pela cincia poltica, mesmo no sendo a mais coerente. Em ltima anlise, o atual modelo de Estado tambm pode ser definido como liberal, j que garante inmeros direitos individuais e, cada vez mais, diminui sua interveno na economia, conduzindo-se forma de Estado mnimo. Em verdade, dever-se-ia falar em Estado legal, pois que, com a derrocada do Estado absolutista e a ascenso do Estado de direito, houve, de fato, uma verdadeira substituio do imprio da vontade do monarca pelo imprio da vontade da lei, uma espcie de totem da racionalidade moderna. A lei passou a ser a vontade soberana, sob a qual se colocaram o Estado e os cidados. Para um estudo aprofundado acerca do Estado liberal e a passagem para o Estado social, pode-se consultar, entre outros: BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6. ed. rev. e ampl. So Paulo: Malheiros, 1996; LUCAS VERD, Pablo. Estado liberal de derecho y Estado social de derecho. Madrid: Universidad de Salamanca, 1955; PEREZ LUN, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y Constituicin. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1994. 4 A expresso novo constitucionalismo aqui empregada para caracterizar um modelo terico surgido a partir da segunda metade do sculo XX, baseado na superao das idias que marcam o positivismo jurdico, principalmente no que concerne relao de tenso entre Direito e moral. No decorrer desse trabalho o novo constitucionalismo ser preferido equivalente expresso ps-positivismo. Em sentido semelhante, o pensamento de Atienza. ATIENZA, Manuel. Entrevista a Robert Alexy. Cuadernos de Filosofa del Derecho, n. 24, Alicante: Doxa, 2001, p. 672-73. 5 No se pode desvincular as mudanas tericas que respaldaram a passagem do positivismo jurdico para o ps-positivismo ou constitucionalismo, das profundas mudanas sociais e econmicas do final do sculo XIX e do sculo XX. O positivismo jurdico, aqui entendido como aquela teoria jurdica que encara o direito positivo como o nico objeto da cincia jurdica e que no admite conexo entre o Direito, a moral e a poltica, servia a um modelo de sociedade, o modelo liberal-individualista. Em uma sociedade marcada pela homogeneidade poltica e igualdade formal jurdica, o sistema normativo que melhor garante a propriedade e a liberdade de mercado o sistema de regras. Com a mudana no cenrio social, a consolidao dos movimentos de classe, o fortalecimento de novos atores sociais, o pluralismo poltico e jurdico, a heterogeneidade poltica da sociedade, evidencia-se a necessidade de repensar as bases tericas do Direito. Neste sentido, fala-se em ps-positivismo, aqui entendido como a teoria contempornea que procura enfrentar os problemas da indeterminao do Direito e sustenta a situao de estreita relao entre Direito, moral e poltica. Para um estudo mais aprofundado acerca do ps-positivismo, pode-se consultar, entre outros: CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Cuadernos de Filosofa del Derecho, n. 21-I, Alicante: Doxa, 1998, passim. No Brasil, o termo ps-positivismo usado com
10
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entre lei e Direito. O Direito o que est na lei e a justia o que a lei determina. Assim, o
conceito de justia importa ordem moral e no ordem jurdica6. A jurisdio pautada pela
previsibilidade e segurana de um sistema fechado de regras jurdicas, que garante a
propriedade privada e a liberdade de mercado para uma sociedade politicamente homognea,
tpica do liberalismo clssico7.
O novo constitucionalismo, por outro lado, caracteriza-se pela prevalncia da
Constituio. O dogma da sujeio lei substitudo pela mxima da sujeio Constituio,
enquanto sistema normativo aberto constitudo por regras e princpios voltados consecuo
da justia material. A figura do legislador como senhor do direito, marca indelvel do
Estado liberal, superada pelo agigantamento da importncia dos juzes, no como novos
senhores do direito, situao incompatvel com a prpria idia contempornea de
constitucionalismo, mas enquanto importantes atores do processo de efetivao e
concretizao dos direitos fundamentais8.
Nessa marcha histrico-evolutiva do pensamento jurdico-poltico, os princpios
constitucionais atualmente se constituem em normas que fundamentam e sustentam o sistema,
as pautas supremas e basilares do ordenamento jurdico de uma dada sociedade. No so
meros programas ou linhas sugestivas ao do Poder Pblico ou dos cidados, mas sim as
vinculam e direcionam, porquanto dotados de eficcia jurdica vinculante.
Antes de aprofundar o estudo dos princpios constitucionais, mostra-se sumamente
relevante assentar as bases do pensamento sistemtico e um conceito de sistema jurdico
coerente com a teoria dos princpios constitucionais que ser apresentada. A
imprescindibilidade do estabelecimento de um conceito de sistema jurdica reforada em
virtude do marco terico aqui estabelecido, a teoria de Alexy. Contudo, no h a pretenso de
esgotar o tema, no s pela extrema complexidade, mas tambm por constituir-se em um dos
problemas centrais da filosofia jurdica moderna9.
forte semelhana de sentido, entre outros, por Paulo Bonavides. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. So Paulo: Malheiros, 2000, p. 228-66. 6 ZAGREBELSKI, Gustavo. El derecho ductil: ley, derecho y justicia. Traduccin de Marina Gascn, Madrid: Trota, 1995, p. 21-23. 7 Para uma anlise acerca das bases tericas do liberalismo clssico, pode-se consultar: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Traduo de Jlio Fischer. So Paulo: Martins Fontes, 1998. 8 ZAGREBELSKI, 1995, p. 150-53. Para um estudo aprofundado sobre a problemtica da eficcia dos direitos fundamentais, pode-se consultar: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
11
9 Neste sentido, o entendimento de Eugenio Bulygin: quase um lugar comum do pensamento jurdico, que as normas jurdicas que integram o direito de um pas constituem um conjunto unitrio que se pode atribuir o carter de sistema. Cabe filosofia jurdica elucidar o conceito ou os conceitos de sistema usados pelos juristas. No causa surpresa, pois, que quase todos os filsofos do direito, desde Bentham e Austin at Kelsen e Hart, tenham dedicado grande parte de seus esforos a este tema, que se constitui em um dos problemas centrais da
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1.2 Para um conceito de sistema jurdico
O significado da idia de sistema para a cincia do Direito um dos temas mais
discutidos e controvertidos da metodologia jurdica10. No se pretende, portanto, apresentar de
forma aprofundada as bases do conceito de sistema jurdico, mas sim estabelecer uma
concepo coerente e que oferea pautas para a discusso da problemtica da coliso entre
princpios constitucionais. Uma concepo de sistema jurdico que possibilite a resoluo de
tais antinomias jurdicas sem abalar ou preterir as qualidades de coerncia e unidade do
ordenamento como um todo.
Um sistema pode ser caracterizado como a unidade, sob uma idia, de conhecimentos
variados ou como um conjunto de conhecimentos ordenado segundo princpios11. O conceito
geral de sistema o apresenta como um conjunto de elementos, materiais ou ideais, entre os
quais se possa estabelecer alguma relao. Um aglomerado de partes coordenadas entre si e
que funcionam como uma estrutura organizada, segundo determinados parmetros.
O termo sistema indica uma totalidade ordenada, um conjunto de entes ligados por
uma determinada ordem. Para que se possa falar de uma ordem, necessrio que os entes
que a constituem no estejam somente em relacionamento com o todo, mas tambm num
relacionamento de coerncia entre si12.
As qualidades da ordem e da unidade, que caracterizam o conceito geral de sistema,
so centrais concepo especfica. Neste sentido, o sistema jurdico pode ser definido como
um conjunto de conceitos e institutos jurdicos que se apresentam de forma unitria e
ordenada, com base em pautas informadoras fundamentais13.
filosofia jurdica moderna. No original: Es casi un lugar comn del pensamiento jurdico, que las normas jurdicas que integran el derecho de un pas constituyen un conjunto unitario al que cabe atribuir carcter de sistema. Corresponde a la filosofa jurdica elucidar el concepto o los conceptos de sistema que usam los juristas. No debe extranr, pues, que casi todos los filsofos del derecho, desde Bentham y Austin hasta Kelsen y Hart, hayan dedicado gran parte de sus esfuerzos a este tema, que constituye uno de los problemas centrales de la filosofa jurdica moderna. BULYGIN, Eugenio. Algunas consideraciones sobre los sistemas jurdicos. Cuadernos de Filosofa del Derecho, n. 09, Alicante: Doxa, 1991, p. 257. 10 Neste sentido, a posio de Canaris. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do Direito. Traduo de Antnio Menezes Cordeiro, 2. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1996, p. 05. 11 KANT, Immanuel. Crtica da razo pura. Traduo de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. So Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 141 e ss. 12 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. Traduo de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 8. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1996, p. 71.
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13 Segundo o entendimento de Trcio Sampaio Ferraz Jr., o conceito de sistema, no Direito, est ligado ao de totalidade jurdica. No conceito de sistema est, porm, implcita a noo de limite. Falando-se em sistema
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Por ordenao, pretende-se exprimir um estado de coisas intrnseco racionalmente
apreensvel, fundado na realidade. A unidade evita a disperso em uma multiplicidade de
particularidades desconexas, permitindo a reconduo baseada em alguns princpios
fundamentais. A ordem interior e a unidade do Direito so bem mais do que pressupostos da
natureza cientfica da jurisprudncia e do que postulados da metodologia; elas pertencem,
antes, s mais fundamentais exigncias tico-jurdicas e radicam, por fim, na prpria idia de
Direito14.
No pensamento de Canaris, a adequao valorativa e a unidade interior da ordem
jurdica so os verdadeiros fundamentos do sistema jurdico, no apenas enquanto postulados
lgico-jurdicos, mas tambm como resultantes diretas do reconhecido postulado da justia,
de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, na exata medida de sua
diferena. Assim, a idia do sistema jurdico justifica-se a partir de um dos mais elevados
valores do Direito, nomeadamente do princpio da justia e das suas concretizaes no
princpio da igualdade e na tendncia para a generalizao15.
Apenas para adiantar algumas consideraes, pode-se dizer que a funo do conceito
de sistema jurdico a de efetivar e consolidar a adequao valorativa e a unidade interior do
Direito. Fundados nos postulados da justia e da igualdade, estas caractersticas conduzem a
um sistema jurdico marcado pela inter-relao axiolgica e teleolgica de princpios
constitucionais e valores fundamentais, de modo dinmico e aberto, em constante dilogo
com a realidade e impondo aos legisladores, tribunais e funcionrios do Poder Pblico, como
funo precpua, a satisfao e a defesa dos princpios e objetivos fundamentais da
Constituio.
1.2.1 Sistema jurdico e ordenamento jurdico: expresses sinnimas?
At o presente momento, as expresses sistema jurdico e ordenamento jurdico
foram empregadas como sinnimos. Entretanto, esta relao de sinonmia no ponto
jurdico surge assim a necessidade de se precisar o que pertence ao seu mbito, bem como se determinar as relaes entre sistema jurdico e aquilo que ele se refira, embora no fazendo parte de seu mbito, e aquilo a que ele no se refira de modo algum. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Conceito de sistema no Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 129. 14 CANARIS, Pensamento sistemtico, p. 12-18.
13
15 O autor sustenta, ainda, que o valor da segurana jurdica tambm aponta no sentido do Direito ordenado em sistema, seja como determinabilidade e previsibilidade do Direito, seja como estabilidade e continuidade da legislao e da jurisprudncia ou simplesmente como praticabilidade da aplicao do Direito. Idem, p. 14-22.
-
pacfico, principalmente na literatura jurdica especializada16. Impende, portanto, uma anlise
dos argumentos que justificam a distino entre as duas expresses, para que se possa
observ-la ou afast-la.
Bulygin parte de um conceito de sistema jurdico enquanto conjunto de enunciados
jurdicos que so a base axiomtica do sistema e contm todas as suas conseqncias. A
normatividade de tal sistema depende da existncia, dentre os enunciados de base, de pelo
menos alguns enunciados normativos ou normas. Normas por ele definidas como enunciados
que correlacionam certas circunstncias fticas, os casos, com determinadas conseqncias
jurdicas, as solues17.
Entendendo o sistema jurdico como conjunto de normas, que se constituem na sua
base axiomtica, Bulygin afirma que as normas permanecem fixas neste modelo de sistema
esttico, sendo que qualquer alterao da sua base axiomtica acarretaria outro sistema,
diferente do anterior. Essas mudanas na base normativa do sistema, o fenmeno da alterao,
so bastante comuns e corriqueiras nos modelos jurdicos modernos, uma vez que as normas
existentes so eliminadas, modificadas, outras so incorporadas, exigindo um conceito
dinmico de sistema jurdico18.
No sentido proposto por Bulygin, partindo de um conceito esttico de sistema, a cada
ato de criao ou revogao de normas surgiria um novo sistema jurdico, diferente do
anterior. Neste caso, o sistema dinmico no pode ser apresentado como conjunto de normas,
16 Neste sentido, a informao trazida por Vito Velluzzi, quando discute o sistema jurdico como fator de interpretao. VELLUZZI, Vito. Interpretacin sistemtica: ?un concepto realmente til? consideraciones acerca del sistema jurdico como factor de interpretacin. Traduccin de Amalia Amaya. Cuadernos de Filosofa del Derecho, n. 21-I, Alicante: Doxa, 1998, p. 76. 17 Impende asseverar que, segundo Bulygin, na base do sistema jurdico somente estariam as normas gerais, no se incluindo as normas individuais, como, por exemplo, as sentenas judiciais. A base do sistema restaria limitada s normas gerais, sendo que as normas individuais somente formariam o sistema a ttulo de conseqncias lgicas, em virtude do critrio de deductibilidade. BULYGIN, Algunas consideraciones, p. 257.
14
18 Nas palavras do autor: Dado que o sistema est definido como um conjunto de normas, estas permanecem fixas no modelo: qualquer alterao da base axiomtica do sistema nos levaria a outro sistema, distinto do anterior. Neste sentido, o conceito de sistema elaborado em Normatives Systems esttico. (Imagino que esta noo de um sistema esttico reconstitui com bastante fidelidade o que Kelsen endente por tais sistemas). Mas quando os juristas falam de sistema jurdico querem dar conta, no mais das vezes, do fenmeno da alterao: as normas jurdicas podem ser alteradas com o transcurso do tempo; algumas normas existentes so eliminadas, outras modificadas e tambm podem agregar-se normas totalmente novas. A possibilidade de tais alteraes temporais determina o carter dinmico do Direito. Para dar conta deste carter faz-se mister elaborar um conceito dinmico do sistema. No original: Dado que el sistema est definido como un conjunto de normas, stas permanecen fijas en el modelo: cualquier cambio de la base axiomtica del sistema nos llevara a otro sistema, distinto del anterior. En este sentido, el concepto de sistema elaborado en Normatives Systems es esttico. (Creo que esta nocin de un sistema esttico reconstruye con bastante fidelidad lo que Kelsen entiende por tales sistemas). Pero cuando los juristas hablan de sistema jurdico quieren dar cuenta, a menudo, del fenmeno del cambio: las normas jurdicas suelen cambiar con el transcurso del tiempo; algunas normas existentes son eliminadas, otras modificadas y tambin suelen agragarse normas totalmente nuevas. La posibilidad de tales cambios temporales determina el carcter dinmico del derecho. Para dar cuenta de este carcter es menester elaborar un concepto dinmico del sistema. Idem, p. 258-59.
-
mas sim como conjunto de conjuntos de normas, ou seja, uma seqncia de sistemas
normativos. Na terminologia proposta, a seqncia de sistemas jurdicos chamada de
ordenamento jurdico.
A distino entre sistema jurdico e ordenamento jurdico apresenta dois
problemas, que podem ser definidos como problemas de identidade e de estrutura. O primeiro
se refere questo de saber quando uma seqncia de sistemas pertence ao mesmo
ordenamento jurdico e os casos de quebra da seqncia e surgimento de um novo
ordenamento. O segundo se refere ao contedo de um sistema jurdico global correspondente
a determinado intervalo de tempo, para o qual devem ser explicitados os critrios de
pertinncia das normas do sistema19.
A proposta de definio de ordenamento jurdico exige como ponto de partida uma
primeira Constituio, o conjunto de normas constitucionais e todas as suas conseqncias
lgicas que formam o primeiro de uma srie temporal de sistemas estticos. Esta srie de
futuros sistemas est condicionada existncia de uma norma constitucional de competncia,
que faculte a uma autoridade o poder de promulgar novas normas e, eventualmente, revogar
as existentes. Assim, a perenidade do ordenamento jurdico depende da continuidade dos
sistemas que o integram. Depende, em ltima instncia, da continuidade da Constituio,
porquanto o surgimento de uma nova Constituio dar origem a um novo ordenamento
jurdico20.
Certamente, essa definio de sistema jurdico, base estrutural da diferenciao
proposta entre sistema jurdico e ordenamento jurdico, se afasta sobremaneira da concepo
de sistema jurdico adotada neste trabalho: primeiro, pela centralidade que seu conceito de
norma ostenta na definio de sistema jurdico; segundo, pelo contedo dado s expresses
sistema esttico e sistema dinmico; terceiro, pela limitao da base normativa do modelo de
19 Segundo Bulygin, pode-se dizer que uma norma pertence ao sistema, neste sentido fala-se em critrio de pertinncia, quando conseqncia lgica das normas pertencentes ao sistema, por um critrio de deductibilidade; ou, ainda, se promulgada por uma autoridade competente do sistema, segundo um critrio de legalidade. Cabe salientar que os critrios de deductibilidade e legalidade so insuficientes para estabelecer a relao de pertinncia de todas as normas do sistema, porquanto pressupem que o sistema j possua normas, cuja pertinncia no dependa de nenhum dos dois critrios. Idem, p. 260-62.
15
20 Nas palavras do autor: A noo de ordenamento jurdico aqui esboada reflete um uso desta expresso. Para este conceito a identidade do ordenamento repousa na continuidade dos sistemas que a ele pertencem e isto quer dizer, em ltima instncia, a continuidade da Constituio, o que no implica sua imutabilidade, sim a legalidade da alterao. Toda alterao ilegal da Constituio, isto , toda revoluo jurdica conduz ruptura do ordenamento jurdico e a nova Constituio dar origem a um novo ordenamento. No original: La nocin de orden jurdico esbozada aqu refleja un uso de esta expresin. Para este concepto la identidad del orden reposa en la continuidad de los sistemas que a l pertenecen y esto quiere decir, en ltima instancia, la continuidad de la constituicin, lo que no implica su inmutabilidad, sino la legalidad del cambio. Todo cambio ilegal de la constituicin, es decir, toda revolucin jurdica conduce a la ruptura del orden jurdico y la nueva constituicin dar origen a un nuevo orden. Idem, p. 263-65.
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sistema s normas gerias, relegando as decises judiciais condio de conseqncias lgicas
das normas; finalmente, em decorrncia direta da objeo anterior, pela debilidade que a
interpretao sistemtica desempenharia em um modelo de sistema jurdico assim estruturado.
Alinhadas essas consideraes, as expresses sistema jurdico e ordenamento jurdico,
embora possam sugerir diferentes institutos, continuaram sendo usadas como expresses
equivalentes.
1.2.2 Breves consideraes acerca da evoluo do conceito de sistema jurdico
Ainda que no seja objeto do presente estudo, faz-se mister tecer algumas referncias
panormicas acerca das principais teorias que buscaram construir um conceito de sistema para
a cincia do Direito. Neste sentido, nem de longe se pretende inventariar de modo exaustivo
os diversos autores e teorias que marcaram o pensamento jurdico sistemtico, mas to-
somente aludir s principais correntes que influram historicamente na metodologia do
Direito21.
A primeira teoria mencionada por Karl Larenz acerca do pensamento sistemtico no
Direito a de Friedrich Carl von Savigny, principal representante da chamada Escola
Histrica. Com Savigny, que estabelece a idia de sistema externo no Direito, parte-se do
legalismo positivista e da idia de lei como a fonte originria do Direito, para a noo de que
a fonte originria do Direito a comum convico jurdica do povo e que as regras somente
poderiam ser compreendidas pela intuio do instituto jurdico, no que se pode chamar de um
mtodo histrico e sistemtico de interpretao das normas jurdicas22.
A corrente que sucedeu a chamada Escola Histrica foi a Escola Dogmtica, ou
jurisprudncia dos conceitos, que buscou estabelecer, pela via sistemtica, os fundamentos
de uma cincia do Direito, partindo de uma idia de sistema jurdico que se pode chamar
lgico-formal. Esse modelo era marcado pela pretenso de concatenao de todas as
proposies jurdicas, formando um sistema de regras logicamente claro, livre de contradies
e lacunas. Assim, sustentava-se que todos os problemas prticos poderiam ser logicamente
subsumidos a uma das normas do sistema jurdico. Certamente, conforme alerta Canaris, uma
concepo de sistema lgico-formal como da Escola Dogmtica est fadada ao insucesso,
uma vez que a unidade interna de sentido do Direito, que opera para o erguer em sistema, 21 Para um estudo acerca da evoluo do conceito de sistema jurdico, pode-se consultar: BONAVIDES, Curso de Direito, p. 75-119; CANARIS, Pensamento sistemtico, p. 25-102; e, LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do Direito. Traduo de Jos Lamego. 2. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989, p. 09-217.
16
-
no corresponde a uma derivao da idia de justia de tipo lgico, mas antes de tipo
valorativo ou axiolgico23.
A crtica de Canaris ao sistema lgico-formal da jurisprudncia dos conceitos no
quer, por certo, afastar completamente a adequao lgico-formal da idia de sistema jurdico,
at porque tal caracterstica constitui-se em instrumento imprescindvel discusso das
antinomias normativas, mas que de per si no implica especificamente na unidade do sistema
jurdico. Os valores esto fora do mbito da lgica formal e, por conseqncia, a adequao
de vrios valores entre si e a sua conexo interna no se deixam exprimir logicamente, mas
antes, apenas, axiolgica e teleologicamente. Embora a cincia do Direito, enquanto aspire
cientificidade ou adequao racional dos seus argumentos, esteja adstrita s leis da lgica, os
pensamentos jurdicos verdadeiramente decisivos ocorrem fora do mbito da lgica formal24.
O formalismo da jurisprudncia dos conceitos foi combatido por Rudolf von
Jhering, sobretudo na segunda fase de sua produo jurdica. Partindo de uma noo
teleolgica de sistema interno, uma concepo orgnica de Direito que introduz na ordem
normativa o interesse e o fim, legando ao Direito uma dimenso de materialidade, Jhering
assentou as bases da Escola do Direito Livre e da jurisprudncia dos interesses25.
Sob os fundamentos da chamada jurisprudncia dos interesses, a importncia da
cincia dogmtica do Direito traduz-se em facilitar a misso do Juiz, de sorte que a
investigao tanto da lei como das relaes da vida prepare a deciso objetivamente
adequada. A atividade jurisdicional teria como objetivo final a satisfao das necessidades e
interesses da vida, consubstanciando-se o interesse tanto no objeto como no critrio de
valorao, e, ainda, como fator causal da cincia do Direito26.
Muito embora admita a valiosa contribuio da jurisprudncia dos interesses para o
domnio da problemtica do sistema, sobretudo com a idia de sistema interno e com a
referncia ao seu carter teleolgico, Canaris sustenta que o conceito de sistema resultante do
instrumental terico desenvolvido pouco adequado para exprimir a unidade interior e a
adequao valorativa da ordem jurdica. Um sistema de decises de conflitos como pensado
por Philipp Heck no diz praticamente nada acerca da unidade de sentido do Direito.
22 LARENZ, Metodologia da cincia, p. 09-18. 23 CANARIS, Pensamento sistemtico, p. 28-30. 24 Idem, p. 31-32. 25 BONAVIDES, Curso de Direito, p. 94-95.
1726 LARENZ, Metodologia da cincia, p. 57-68.
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Ademais, pelo modelo proposto, determinados princpios quando reduzidos a meras decises
de conflitos, ficariam privados de seu contedo tico-jurdico27.
Inmeras outras posies poderiam ser buscadas tanto para respaldar como para
criticar as correntes do pensamento jurdico cientfico elencadas. Da mesma forma, a
abordagem poderia ter privilegiado outros comentadores e marcado as correntes expostas com
base em autores diversos, dada a riqueza literria desta temtica. Apenas para aprofundar um
pouco mais a anlise do conceito de sistema na cincia do Direito sero apresentadas duas das
principais propostas contemporneas, com destacada relevncia para o presente trabalho.
1.2.3 O sistema jurdico no pensamento de Hans Kelsen e Herbert L. A. Hart
Passadas algumas consideraes referentes evoluo do conceito de sistema jurdico,
parece oportuno um estudo mais detalhado sobre o pensamento jurdico de dois dos principais
representantes do positivismo jurdico contemporneo, com indelvel influncia no estudo da
metodologia jurdica no sculo XX.
Neste empenho, sero alinhadas algumas reflexes panormicas sobre os modelos de
teoria do Direito de Kelsen e Hart, na inteno de angariar elementos tericos necessrios
estruturao de um conceito de sistema jurdico que possibilite a resoluo de colises entre
princpios constitucionais.
1.2.3.1 O sistema jurdico na teoria do Direito de Hans Kelsen
A teoria do Direito desenvolvida por Kelsen est entre as mais relevantes e difundidas
contribuies ao pensamento jurdico do sculo XX. Seja para endossar sua metodologia
jurdica seja para critic-la, o pensamento kelseniano ainda ocupa, inegavelmente, lugar de
extremo destaque no estudo da teoria do Direito.
Cumpre, primeiramente, situar Kelsen como o autor que buscou mais explicitamente a
construo de um conceito autnomo de Direito, no sentido de apresentar um modelo de
cincia jurdica da qual fosse excludo tudo aquilo alheio ao seu objeto. A metodologia
kelseniana consiste, pois, em descrever as normas jurdicas desvencilhadas do que o autor
1827 CANARIS, Pensamento sistemtico, p. 62-65.
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define como a irracionalidade do mundo dos valores, purificadas de toda ideologia poltica e
de todos os elementos de cincia natural28.
Iniciando a construo de seu conceito de norma, Kelsen trabalha com as idias de
sentido objetivo e subjetivo de um ato de vontade, asseverando que o que torna juridicamente
objetivo o sentido subjetivo de um determinado ato de vontade a existncia de uma norma
jurdica que descreva tal ato e lhe confira efeitos jurdicos. Assim, a norma consiste no sentido
objetivo de dever ser de um ato intencional dirigido conduta de outrem. Norma o
sentido de um ato atravs do qual uma conduta prescrita, permitida ou, especialmente,
facultada, no sentido de adjudicada competncia de algum29.
A distino entre o plano do ser, onde est situado o mundo dos fatos, e do dever ser
(sllen), formado pelas normas jurdicas, central ao pensamento jurdico kelseniano30. A
norma um dever ser ao passo que o ato de vontade de que ela constitui o sentido um ser31.
Entretanto, no se pode pensar que todo ato de vontade tenha como sentido uma norma.
Somente no caso de coincidncia entre os sentidos subjetivos e objetivos estar-se- diante de
uma norma.
Outra questo de suma relevncia no pensamento kelseniano a relao entre Direito e
moral, levada a efeito na Teoria Pura do Direito. Segundo o autor, ambas as ordens moral e
jurdica so positivas, bem como se constituem em ordens sociais, enquanto ordens
normativas que regulam a conduta humana na medida em que se coloca em relao com
outras pessoas. Ambas, alm de serem ordens sociais positivas, constituem-se em ordens
estatuidoras de sanes, no sentido de prmios ou castigos previstos como conseqncia de
uma determinada conduta humana. Entretanto, o Direito concebido como norma social
coercitiva, diferente, portanto, da norma moral, que definida como ordem positiva destituda
de carter coercitivo32.
O carter coercitivo , portanto, o trao distintivo entre o Direito e a moral na teoria
kelseniana. Neste sentido, concebe-se o Direito como uma ordem de coao, isto , como
uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando conduta
28 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Traduo de Joo Baptista Machado. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1994, p. XI. 29 Idem, p. 06. 30 Segundo Luiz Fernando Barzotto, a distino entre ser e dever ser nem sempre teve a mesma fundamentao em Kelsen. Enquanto na primeira edio da Teoria Pura do Direito, datada de 1934, o dever ser era definido como uma categoria transcendental kantiana, na segunda edio, publicada em 1960, Kelsen afirma o sllen como um conceito simples, no sentido atribudo por Moore, isto , um conceito que no pode ser analisado nem definido, como os conceitos de bom ou amarelo. BARZOTTO, Luiz Fernando. O positivismo jurdico contemporneo: uma introduo a Kelsen, Ross e Hart. So Leopoldo: Editora da UNISINOS, 2001, p. 35. 31 KELSEN, Teoria pura, p. 06.
1932 Idem, p. 25-78.
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oposta um ato de coero socialmente organizado. A moral, de forma diversa, constitui-se
em ordem social que no estatui sanes desse tipo, visto que suas sanes apenas consistem
na aprovao da conduta conforme s normas e na desaprovao da conduta contrria s
normas, nela no entrando sequer em linha de conta, portanto, o uso da fora fsica33.
Pode-se dizer que o mtodo marcantemente estruturalista da metodologia jurdica
kelseniana acaba impondo a defendida separao entre Direito e moral, segundo a qual o
Direito no seria necessariamente moral, ocasionando um relativismo extremado e fazendo
com que o autor rejeitasse a tese de que o Direito poderia representar um mnimo tico34.
O Direito, enquanto ordem social positiva coercitiva, no se resume a uma norma.
Trata-se sim de um conjunto de normas ordenadas por uma relao de pertinncia a um
sistema de normas jurdicas. Pertinncia, no sentido de validade de uma norma jurdica por ter
sido produzida segundo o procedimento previsto em outra norma, que por sua vez encontra
seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim sucessivamente at a norma
hipottica fundamental. Esta no encontra fundamento de validade em nenhuma outra norma
jurdica, sendo pressuposta pelo ordenamento jurdico35.
Conforme sustenta Bobbio, quando discute acerca da unidade do ordenamento
jurdico, a norma fundamental, enquanto, por um lado, atribui aos rgos constitucionais
poder de fixar normas vlidas, impe a todos aqueles aos quais se referem as normas
constitucionais o dever de obedec-las. Neste sentido, a norma fundamental a um s tempo
atributiva e imperativa, segundo o ponto de vista do poder ao qual d origem ou da obrigao
que dele nasce36.
A norma fundamental se constitui no substrato unidade lgica do sistema jurdico em
Kelsen e, de resto, prpria essncia do seu pensamento jurdico, uma vez que o autor
33 Idem, p. 71. 34 Neste sentido, a posio de Juarez Freitas, quando analisa a teoria do Direito de Kelsen. FREITAS, Juarez. A interpretao sistemtica do Direito. 2. ed. rev. e ampl. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 35. 35 Analisando a questo do conceito de validade na teoria jurdica kelseniana, Barzotto defende a existncia ao menos de quatro sentidos do termo validade, sendo que na maioria dos casos, eles so utilizados como sinnimos. Um primeiro sentido do termo validade estaria relacionado existncia de uma norma jurdica, validade enquanto existncia especfica de uma norma. Um segundo sentido para o termo validade vem relacionado questo da pertinncia de determinada norma a um ordenamento jurdico, pertinncia enquanto qualidade de pertencer a um dado sistema jurdico. Outro significado do termo validade se refere questo do fundamento de validade das normas jurdicas, que sempre deve ser outras normas, no sendo admitida na teoria kelseniana a transio entre o mundo das normas e o mundo dos fatos. Assim, o fundamento de validade de uma norma sempre outra norma, at se alcanar a norma hipottica fundamental. Um ltimo sentido do termo validade est ligado idia de obrigatoriedade, vinculao do comportamento aos moldes previstos pela norma. Pode-se dizer que o terceiro sentido de validade descrito central no conceito kelseniano de Direito, porquanto uma norma somente existir, pertencer ao ordenamento jurdico e ter carter de obrigatoriedade se, e somente se, for produzida de acordo com uma outra norma, numa cadeia de validade que remonta norma hipottica fundamental. BARZOTTO, O positivismo jurdico, p. 37-40.
2036 BOBBIO, Teoria do ordenamento, p. 59.
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deposita na norma fundamental o pressuposto de validade de todo o ordenamento jurdico. A
noo de Direito enquanto ordem dinmica, bastante cara teoria jurdica kelseniana,
segundo a qual as relaes de validade entre as normas jurdicas ocorrem mediante o
estabelecimento de uma autoridade produtora de normas, depende diretamente da norma
fundamental.
Diferentemente dos sistemas morais, onde se pode aferir a conformidade entre as
normas por derivao lgica de contedo, no sistema jurdico essa conformidade entre as
normas se d pela vinculao a um procedimento especfico de produo, no que se pode
chamar de positivismo formal-estruturalista. Assim, as normas valem porque foram criadas de
certa maneira por determinada autoridade.
Quando Kelsen assenta todo o fundamento de validade do ordenamento jurdico em
uma norma hipottica fundamental, uma norma que se autofundamenta, inegavelmente se
mantm coerente com o cerne de sua teoria. Uma norma jurdica somente pode decorrer
validamente de outra norma jurdica, nunca de questes prticas ou valores morais. Esta
construo decorrncia do mtodo formal-estruturalista de separao entre ser e dever ser e
entre Direito e moral. Entretanto, acaba depositando todo o fundamento de validade da ordem
positiva coercitiva reguladora da conduta humana em uma fico, ou melhor, em um sentido
objetivo de dever ser de um ato de vontade imaginrio37.
Essa talvez seja uma das principais crticas que a teoria do Direito de Kelsen tem
recebido desde sua apario. Objeo que no fica vencida, seno reforada, quando Kelsen
acaba relacionando a norma fundamental com o plano ftico, incluindo a eficcia como
condio suficiente validade da norma fundamental.
Pode-se dizer que os fatos, afastados pelo autor na construo de um conceito de
sistema jurdico formal-estruturalista, inservveis para figurar como fundamento de validade
do ordenamento jurdico, voltam como intrusos a sua teoria, agora no patamar de condies
de validade da norma fundamental, o que ameaa visceralmente a coerncia estrutural de todo
o modelo terico estabelecido.
Afora as crticas aqui brevemente alinhadas e outras que o pensamento jurdico
kelseniano possa sofrer, nenhuma parece suplantar a relevncia impar da sua contribuio
para a cincia do Direito, certamente um dos modelos tericos mais influentes e difundidos na
metodologia jurdica contempornea.
2137 BARZOTTO, O positivismo jurdico, p. 42.
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1.2.3.2 O sistema jurdico na teoria do Direito de Herbert L. A. Hart
Outra teoria que trouxe uma contribuio indelvel ao pensamento jurdico
contemporneo foi formulada por Hart, sobretudo em sua obra clssica O Conceito de
Direito. O autor procura demonstrar a centralidade do conceito de regra para a anlise do
conceito de Direito, porquanto o sistema jurdico estaria baseado principalmente em regras
jurdicas, estas enquanto espcies de um gnero mais amplo, as regras sociais.
Cabe, de incio, esclarecer que a teoria do Direito de Hart se pretende geral, descritiva
e normativa: geral, no sentido de que no est ligada a nenhum sistema ou cultura jurdica
concreta, procurando explicar o Direito como instituio social e poltica complexa;
descritiva, na medida em que se prope moralmente neutra e sem propsitos de justificao,
sem justificar as formas e estruturas jurdicas por meio de razes morais; normativa, como j
afirmado, por conta da centralidade do conceito de regra38.
Para defender seu conceito de Direito baseado em um sistema de regras jurdicas, Hart
procura afastar da noo de regra as idias de habito de obedincia e ordem coercitiva,
conforme estabelecido no pensamento de John Austin. Para Hart, nem todas as regras
jurdicas podem ser reduzidas a ordens baseadas em ameaas ou comandos, como prprio
das leis penais. Existem regras que no impem deveres e sanes para o caso de violao,
mas sim conferem poderes a particulares ou funcionrios do Estado para regularem relaes
de carter privado e pblico.
Assentada a centralidade das regras jurdicas no conceito de Direito, Hart se ocupa da
diferenciao das regras em primrias e secundrias, categorias basilares ao seu pensamento
jurdico. As chamadas regras primrias esto fundadas na idia de dever, ou seja, impem um
determinado comportamento a uma dada categoria de pessoas ou totalidade dos cidados,
exigem dos seres humanos que faam ou se abstenham de fazer certas aes, quer queiram ou
no. As regras secundrias, por seu turno, estabelecem poderes pblicos ou privados e se
referem identificao, alterao e aplicao das regras primrias39.
38 HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. Traduo de Armindo Ribeiro Mendes. 2. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1996, p. 300-01.
22
39 Nas palavras do autor: Por fora das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo bsico ou primrio, aos serem humanos exigido que faam ou se abstenham de fazer certas aces, quer queiram ou no. As regras do outro tipo so em certo sentido parasitas ou secundrias em relao s primeiras: porque asseguram que os serem humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primrio, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidncia ou fiscalizar a sua aplicao. As regras do primeiro tipo impem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, pblicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a aces que envolvem movimento ou mudanas fsicos; as regras do segundo tipo tornam possveis actos que conduzem no s a movimento ou mudana fsicos, mas criao ou alterao de deveres ou obrigaes. Idem, p. 91.
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Na inteno de demonstrar a necessidade das regras secundrias para os sistemas
jurdicos evoludos, Hart imagina uma comunidade primitiva destituda de poder legislativo,
juzes ou qualquer outra espcie de funcionrios, uma estrutura social integrada
exclusivamente por regras primrias de obrigao, listando os defeitos e inconvenientes de um
sistema jurdico assim estruturado.
A primeira deficincia desse sistema a incerteza acerca da existncia de uma
determinada regra, porquanto no restariam fixados os critrios de identificao das regras
que compem o sistema jurdico acatado pelo grupo. Este defeito pode ser sanado pela criao
de uma regra secundria de reconhecimento, que disponha as caractersticas necessrias
para que uma regra faa parte do sistema jurdico40.
Afora o problema da identificao das regras vlidas, o modelo de regras primrias se
apresenta extremamente esttico. O nico modo de alterao desses sistemas a evoluo
lenta e gradual da comunidade, uma vez que as regras primrias no determinam nem a
autoridade competente nem o procedimento para a criao de novas regras. Assim,
necessrio conferir a uma autoridade legislativa a faculdade de introduzir novos padres de
comportamento na vida da comunidade, por meio do que se pode chamar de regra secundria
de alterao41.
Outro inconveniente do modelo de regras primrias a ineficcia da presso social
difusa pela qual so mantidas as regras. A inexistncia de uma instncia com o poder de
determinar, de forma definitiva e com autoridade, quando ocorreu a violao de uma regra e
impor a sano correspondente, acaba acarretando o aumento da violncia decorrente da
autotutela. Este problema pode ser resolvido com a criao de uma regra secundria de
julgamento, confiando a um rgo a funo de julgar os casos de violao das regras de
obrigao e aplicar a sano prevista aos culpados42.
Justificada a necessidade de organizao do sistema jurdico com base em regras
primrias de obrigao e regras secundrias que estabeleam as formas de identificao,
alterao e aplicao das regras primrias, Hart deposita na regra de reconhecimento o
fundamento de validade do ordenamento jurdico. O fundamento de um sistema jurdico
consiste na situao social em que os membros de um grupo e as autoridades possuem um
critrio comum de identificao das regras primrias de obrigao43.