como orientar o pensamento

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www.lusosofia.net Que significa orientar-se no pensamento? I. KANT Tradutor: Artur Morão

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    Que significa orientar-se nopensamento?

    I. KANT

    Tradutor:Artur Moro

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    ApresentaoA expresso orientar-se no , feitas as contas, a mais fre-

    quente no vocabulrio kantiano. Mas tem uma caracterstica muitomarcada: forte, incisiva e surge, na pena de Kant, como umaobrigao intelectual e moral. Intima a uma espcie de converso,no espordica mas incessante. sinal de salubridade do entendi-mento, pedra-de-toque gosta ele de repetir para deslindar usosinadequados da razo, que nos induzem a afirmar mais do podemosou devemos.

    Vrios so os motivos por que o mestre de Knigsberg advogaa indispensvel necessidade de se orientar no pensamento: no usoespeculativo da razo ela servir para evitar, sobretudo em plenanoite do supra-sensvel, atitudes alumbradas e fantasmticas, cujoresultado destronar a razo como nica e verdadeira exegeta donosso discurso em face dos sofismas que nos seduzem; no pensa-mento lgico, ela alivia da contradio e das inconsequncias emque sempre podemos incorrer, e contrape-se ainda ao devaneioda necessidade de supor e de presumir de modo translcido umaInteligncia criadora em face da ordem csmica.

    Mas, neste percurso, o guia ser sempre a necessidade sub-jectiva da razo que se faz sentir, mais no seu uso prtico, do queno terico, porque naquele se lida com a moralidade, a liberdade,a urgncia de conferir realidade objectiva ao conceito de bem su-premo, cerne e fito da vida moral. A sua expresso , portanto, af racional, baseada apenas nos dados da razo pura, num assenti-mento subjectivamente suficiente, nunca equivalente ao saber, masassente, todavia, em motivos objectivamente vlidos. Tal f noequivale crena histrica; nunca ser um saber; simples pressu-posto, postulado, fundado na necessidade do seu uso no propsitoprtico. ela que orienta e vai frente.

    Por outro lado, a verdadeira liberdade de pensamento brotaapenas da submisso s leis que a razo a si mesma d. Quando talno acontece, acabar por entrar em cena a coaco civil, a tutoriaespiritual que fomenta o infantilismo e a cegueira ideolgica ou o

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    uso sem lei que nasce do capricho, do delrio, do gnio vagabundoe entregue s suas cismas. Outro desfecho pode ser a increduli-dade, que rouba s leis morais toda a sua fora, e ao dever todoo seu peso, abrindo assim caminho interveno da autoridadecivil, com o seu interdito da liberdade pensar ou de comunicar opensamento. De facto, a liberdade de pensamento, ao querer agirde modo absolutamente independente das leis da razo, acaba porse destruir a si mesma. Assim se compreende que, aos olhos deKant, a f racional, com a sua exigncia intrnseca, esteja ao ser-vio da melhoria do mundo o que leva a entrever de novo, aqui enoutros lugares, o lao profundo que ele estabelece entre poltica emoralidade.

    Tal o ncleo essencial deste pequeno ensaio, publicado em1786 no jornal Berlinische Monatsschrift.

    Artur Moro

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    Que singifica orientar-se nopensamento?

    (1786)

    I. KANT

    Por mais alto que elevemos os nossos conceitos e, alm disso,por mais que abstraiamos da sensibilidade, esto-lhes sempre asso-ciadas representaes da imaginao, cuja determinao peculiar torn-los a eles que no so derivados da experincia aptos parao uso na experincia. Como quereramos ns, pois, dar tambmsentido e significao aos nossos conceitos, se no lhes estivessesubjacente uma intuio (que, afinal, deve ser sempre um exemplotirado de qualquer experincia possvel)? Se, depois, omitirmos daaco concreta do entendimento a mistura da imagem, primeiro,da percepo contingente pelos sentidos, em seguida, at mesmo apura intuio sensvel em geral, restar o puro conceito do enten-dimento, cujo mbito est agora alargado e contm uma regra dopensamento em geral. Deste modo se constituiu a prpria lgicageral; e no uso emprico do nosso entendimento e da razo, talvezresidam ainda, ocultos, muitos mtodos heursticos de pensar que,se soubssemos como extra-los cuidadosamente da experincia,poderiam enriquecer a filosofia com muitas mximas teis, mesmono pensamento abstracto.

    Desta espcie o princpio que, tanto quanto sei, expressa-mente admitiu o falecido Mendelssohn, apenas nos seus ltimosescritos (Morgenstunden [Horas matinais], pp. 165-166, e Briefean Lessings Freunde [Cartas aos Amigos de Lessing], pp. 33 e 67);

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    a saber, a mxima da necessidade de se orientar, no uso especula-tivo da razo (em que ele, alis, quanto ao conhecimento dos ob-jectos supra-sensveis, confiava muito, at evidncia da demons-trao), mediante um certo meio de direco, a que ele chamavaora o senso comum (Horas matinais), ora a s razo, ora o simplesentendimento humano (Aos Amigos de Lessing).

    Quem teria podido pensar que esta confisso haveria de ser tonociva, no s sua benfica opinio acerca do poder do uso espe-culativo da razo nas coisas da teologia (o que efectivamente erainevitvel), mas que tambm a s razo comum, na ambiguidadeem que ele deixou o exerccio desta faculdade em oposio es-peculao, estaria em perigo de servir de princpio ao entusiasmofantasista e ao total destronamento da razo? E, contudo, foi o queaconteceu na disputa entre Mendelssohn e Jacobi, sobretudo pelasconcluses no triviais do arguto autor dos Resultados1. Como noquero atribuir a nenhum dos dois a inteno de porem a circular umto nocivo modo de pensar, considerarei de preferncia o empreen-dimento do ltimo como um argumentum ad hominem, de que legtimo servir-se, como simples arma de defesa, para utilizar ospontos fracos que o adversrio fornece em sua prpria desvanta-gem. Mostrarei, por outro lado, que somente a razo, e no umpretenso e misterioso sentido da verdade, nenhuma intuio esfu-ziante sob o nome de f, na qual se possam enxertar a tradio oua Revelao, sem a consonncia da razo, mas, como firmemente ecom justo fervor asseverou Mendelssohn, apenas a autntica e purarazo humana que, de facto, se afigura necessria e recomend-vel para servir de orientao; no entanto, a elevada pretenso do seupoder especulativo, sobretudo o seu aspecto puramente imperativo(por demonstrao), deve decerto rejeitar-se e, na medida em que especulativa, nada mais se lhe deve deixar do que a funo de

    1 Jacobi, Briefe ber die Lehre des Spinoza. Breslau, 1785. Jacobi, WiderMendelssohns Beschuldigung, betreffend die Briefe ber die Lehre des Spinoza,Leipzig, 1786. Die Resultate der jacobischen und Mendelssohnschen Philo-sophie, Kritisch untersucht von einem Frewilligen. Ibidem

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    Que significa orientar-se no pensamento? 5

    purificar o conceito da razo comum das contradies, e de defen-der as mximas de uma s razo contra os seus prprios ataquessofsticos. O conceito alargado e mais exactamente determinadodo orientar-se pode ajudar-nos a expor com clareza a mxima das razo, nas suas adaptaes ao conhecimento dos objectos supra-sensveis.

    Orientar-se, no genuno significado da palavra, quer dizer, apartir de uma dada regio csmica (uma das quatro em que di-vidimos o horizonte) encontrar as restantes, ou seja, o ponto ini-cial. Se vejo o Sol no cu e sei que agora meio-dia, sei encontraro Sul, o Oeste, o Norte e o Oriente. Mas, para esse fim, precisodo sentimento de uma diferena quanto ao meu prprio sujeito, asaber, a diferena entre a direita e a esquerda. Dou-lhe o nome desentimento porque, exteriormente, estes dois lados no apresentamna intuio nenhuma diferena notvel. Sem essa faculdade, ao tra-ar um crculo, sem a ele referir qualquer diferena dos objectos,mas distinguindo todavia o movimento que vai da esquerda para adireita daquele que se faz em sentido oposto e determinando assim,a priori, uma diferena na posio dos objectos, eu no saberia sedevia situar o Ocidente direita ou esquerda do ponto Sul do ho-rizonte e, por conseguinte, deveria completar o crculo atravs doNorte e do Oriente, at chegar de novo ao Sul. Portanto, oriento--me geograficamente em todos os dados objectivos do cu s pormeio de um princpio subjectivo de diferenciao; e se um dia, pormilagre, todas as constelaes conservassem, umas em relao soutras, a mesma configurao e a mesma posio, mas apenas adireco delas, que antes era oriental, se tomasse agora ocidental,nenhum olho humano perceberia, na noite estrelada seguinte, a me-nor alterao, e mesmo o astrnomo, se s prestasse ateno ao quediz e no simultaneamente ao que sente, ficaria inevitavelmente de-sorientado. Em seu auxilio, porm, e de modo muito natural, surgea faculdade diferenciadora estabelecida pela natureza, mas tornadahabitual pelo exerccio frequente, mediante o sentimento da direitae da esquerda; e se fixar os olhos na Estrela Polar, no s notar

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    a modificao ocorrida, mas tambm poder orientar-se, apesar detal modificao.

    Posso, pois, alargar o conceito geogrfico do processo de seorientar e entender por ele o seguinte: orientar-se em geral num es-pao dado, por conseguinte, de um modo puramente matemtico.Oriento-me s escuras num quarto que me conhecido, quandoconsigo agarrar um nico objecto, cujo lugar tenho na memria.Mas aqui, evidentemente, nada me ajuda, a no ser o poder dedeterminao das posies segundo um princpio de diferenciaosubjectiva, pois no vejo os objectos cujo lugar devo encontrar, e sealgum, por brincadeira, tivesse posto todos os objectos na mesmaordem, uns em relao aos outros, mas colocasse esquerda o queantes estava direita, eu no poderia encontrar-me num quarto emque todas as paredes fossem inteiramente iguais. Mas orientar-me-ia, logo a seguir, pelo simples sentimento de uma diferena entreos meus dois lados, o direito e o esquerdo. o que justamenteacontece quando, noite, tenho de caminhar e de tomar a direc-o correcta em ruas que me so conhecidas, mas nas quais nodistingo agora casa alguma.

    Posso, por fim, ainda ampliar mais este conceito, porque noconsistiria ento apenas na capacidade de se orientar no espao,isto , matematicamente, mas no pensamento em geral, isto , demodo terico. Sem custo se pode adivinhar, por analogia, que istodeveria ser uma tarefa da razo pura, dirigir o seu uso, quando, aopartir de objectos conhecidos (da experincia), ela quiser estender-se para l de todos os limites da experincia, e no encontra ne-nhum objecto da intuio, mas apenas espao para a mesma; poisque a razo na determinao da sua prpria faculdade de julgar jno se encontra ento em condies de submeter os seus juzos auma mxima determinada2 em conformidade com princpios ob-jectivos do conhecimento, mas apenas de harmonia com um prin-

    2 Orientar-se no pensamento em geral significa, pois, em virtude da in-suficincia dos princpios objectivos da razo, determinar-se no assentimentosegundo um princpio subjectivo da mesma razo.

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    cpio subjectivo de diferenciao. Este meio subjectivo, que entoainda lhe resta, apenas o sentimento da necessidade (Bedrfnis)prpria da razo. possvel resguardar-se de todos os erros, se nonos aventurarmos a julgar, quando no se sabe o que exigido paraum juzo determinado. Pelo que a ignorncia em si mesma , semdvida, a causa dos limites, mas no dos erros, no nosso conheci-mento. Mas se no for to arbitrrio querer ou no julgar sobre algode um modo determinado, se uma necessidade real e, de facto, emsi mesma inerente razo tomar necessrio o juizo e, no entanto,a carncia do saber nos limita em relao aos elementos requeri-dos para o juzo, toma-se ento necessria uma mxima segundo aqual proferimos o nosso juzo; porque a razo quer ser pacificada.Se, pois, j previamente se decidiu que aqui no pode haver ne-nhuma intuio de objectos, nem sequer de algo a eles semelhante,pela qual possamos representar com os nossos conceitos alargadoso objecto que lhes adequado, garantindo assim a sua real pos-sibilidade, nada mais nos resta fazer do que, em primeiro lugar,examinar o conceito com o qual queremos aventurar-nos para lde toda a experincia possvel e ver se tambm ele est isento decontradies; e, em seguida, submeter a relao do objecto comos objectos da experincia aos conceitos puros do entendimento;deste modo, ainda no damos ao objecto um carcter sensvel, maspensamos algo de supra-sensvel, pelo menos, til para o uso em-prico da nossa razo. Com efeito, sem esta precauo, no pode-ramos fazer uso algum de semelhante conceito; em vez de pensar,sucumbiramos ao devaneio.

    S que, mediante o simples conceito, nada ainda se conseguiuem relao existncia deste objecto e da sua efectiva religaocom o mundo (a totalidade de todos os objectos da experincia pos-svel). Surge aqui, porm, o direito da necessidade da razo, comofundamento subjectivo, para pressupor e admitir algo que ela, comfundamentos objectivos, no pode pretender saber e, por conse-guinte, para se orientar no pensamento apenas pela sua prpria ne-

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    cessidade, no incomensurvel espao do supra-sensvel, para nstodo nimbado de uma densa noite.

    possvel pensar muitas coisas supra-sensveis (pois os objec-tos dos sentidos no cumulam o campo inteiro de toda a possibi-lidade), onde a razo no sente, porm, necessidade alguma deat elas se estender e, muito menos, de assumir a sua existncia.A razo encontra nas causas do mundo, que se manifestam aossentidos (ou so, pelo menos, da mesma espcie das que se lhesrevelam), ocupao bastante para ainda com tal fim ter precisode puros seres espirituais da natureza; a sua aceitao seria, pelocontrrio, desvantajosa ao seu uso. Como, de facto, nada sabemosdas leis segundo as quais tais seres podem actuar, mas sabemosmuito dos outros, isto , dos objectos dos sentidos que, pelo me-nos, podemos ainda esperar deles ter experincia: ento, mediantetal pressuposto, causar-se-ia antes dano ao uso da razo. No h,pois, nenhuma necessidade, antes simples bisbilhotice que a nadamais conduz seno ao devaneio, investigar tais coisas ou divertir-secom fantasmagorias desta espcie. Algo de inteiramente diverso ocupar-se do conceito de um primeiro Ser primordial como inteli-gncia suprema e, ao mesmo tempo, como sumo Bem. Pois, nos a nossa razo sente j uma necessidade de pr o conceito do ili-mitado como fundamento do conceito3 de tudo o que limitado,

    3 Uma vez que a razo, relativamente possibilidade de todas as coisas, pre-cisa de supor a realidade como dada, e considera a diversidade das coisas apenascomo limites provenientes das negaes que lhe so inerentes, v-se forada apr como fundamento uma possibilidade nica, a saber, a do ser ilimitado comooriginrio e a considerar todos os outros como derivados. Uma vez que a possi-bilidade geral de uma coisa qualquer se deve tambm encontrar essencialmentena totalidade da existncia, pois, pelo menos o princpio da determinao gerals assim torna vivel a diferena entre o possvel e o real da nossa razo, encon-tramos deste modo um motivo subjectivo da necessidade, isto , uma exignciada nossa prpria razo, de estabelecer como fundamento de toda a possibilidadea existncia de um Ser (supremo) absolutamente real. deste modo que surge aprova cartesiana da existncia de Deus. Ao sustentarem-se como se fossem ob-jectivos princpios subjectivos, a fim de pressupor algo para o uso da razo (que,no fundo, permanece sempre apenas um uso emprico) admite-se, por conse-

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    portanto de todas as outras coisas, mas semelhante necessidade in-cide tambm no pressuposto da existncia do mesmo conceito, semo qual no se pode fornecer nenhuma razo satisfatria da contin-gncia da existncia das coisas no mundo, e menos ainda da fina-lidade e da ordem que, por toda a parte, se encontra em grau toadmirvel (no pequeno, porque est prximo de ns, ainda maisdo que naquilo que grande). Sem admitir um Criador inteligente, impossvel, sem cair em puros absurdos, aduzir ao menos umfundamento inteligente dessas coisas; e, embora no possamos de-monstrar a impossibilidade de uma tal finalidade sem uma primeiracausa primordial inteligente (pois ento teramos razes objectivassuficientes desta afirmao e no precisaramos de apelar para ra-zes subjectivas), permanece assim, apesar de tudo, nesta carn-cia de discernimento, uma razo subjectiva suficiente para admitira causa originria, em virtude de a razo necessitar de pressupor

    guinte, uma necessidade em lugar do discernimento. o que acontece com estae tambm com todas as provas do digno Mendelssohn, nas suas Morgenstunden[Horas matinais]. Em nada contribuem para uma demonstrao, mas nem porisso so absolutamente inteis. No mencionando, pois, a excelente oportuni-dade que estes desenvolvimentos, extremamente sagazes, das condies subjec-tivas do uso da nossa razo proporcionam ao pleno conhecimento desta nossafaculdade, so nesse sentido exemplos duradoiros: por isso, o assentimento emvirtude de motivos subjectivos do uso da razo, quando nos faltam os objectivose somos, no entanto, compelidos a julgar, sempre ainda de grande importncia.No devemos fazer passar por livre discernimento o que unicamente uma su-posio imperativa, para no expormos sem necessidade ao adversrio, com oqual nos embrenhmos em dogmatizaes, fraquezas de que ele se poder servirem desvantagem nossa. Mendelssohn, sem dvida, no pensava que o dogmati-zar com a razo pura no campo do supra-sensvel fosse o caminho directo para odevaneio filosfico e que apenas a crtica da mesma faculdade da razo a poderiacurar de raiz de tal mal. A disciplina do mtodo escolstico (por exemplo, o deWolff que ele, por isso, tambm recomendava), em virtude de todos os conceitosse terem de determinar por definies e todos os passos se haverem de justificarmediante princpios, pode decerto impedir por algum tempo semelhante dano,mas de nenhum modo o poder de todo prevenir. Com efeito, com que direito sepretende impedir a razo de ir ainda mais longe no campo onde, segundo a suaprpria confisso, to bem sucedida foi? E onde esto, pois, os limites peranteos quais se deve deter?

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    algo que lhe inteligvel para, a partir dele, explicar o fenmenodado, j que tudo aquilo a que ela pode associar um conceito nosocorre semelhante necessidade.

    Mas a necessidade da razo pode considerar-se de duas ma-neiras: primeiro, no seu uso terico e, em segundo lugar, no seu usoprtico. Acabei justamente de mencionar a primeira necessidade;mas v-se bem que ela apenas condicional, isto , devemos admi-tir a existncia de Deus, se quisermos julgar as causas primeiras detudo o que contingente, sobretudo na ordem dos fins realmenteestabelecidos no mundo. Muito mais importante a necessidade darazo no seu uso prtico, porque incondicionada e somos fora-dos ento a pressupor a existncia de Deus, no apenas se queremosjulgar, mas porque devemos julgar. O puro uso prtico da razoconsiste na prescrio das leis morais. Mas todas elas conduzem ideia do sumo bem que possvel no mundo, a saber, a mora-lidade, na medida em que apenas possvel pela liberdade; poroutro lado, as leis morais referem-se tambm ao que no dependesimplesmente da liberdade humana, mas tambm da natureza, asaber, a mxima beatitude, na medida em que esta se reparte emproporo da primeira. A razo necessita, pois, de admitir um talbem supremo dependente e, em vista disso, uma inteligncia su-prema como sumo Bem independente: no , claro est, para daderivar o aspecto obrigatrio das leis morais ou os motivos para oseu cumprimento (no teriam ento valor moral algum, se o seumbil dimanasse de algo diferente da prpria moral, que por si apodicticamente certa); mas apenas para dar realidade objectiva aoconceito de bem supremo, isto , para que este, juntamente comtoda a vida tica, se considere apenas um puro ideal, se em ne-nhum lado existe aquilo cuja ideia acompanha indissoluvelmente amoralidade.

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    No , portanto, o conhecimento, mas a necessidade sentida4

    da razo aquilo por que Mendelssohn (sem o saber) se orientava nopensamento especulativo. E, visto que este meio de orientao no um princpio objectivo da razo, um princpio de discernimento,mas um princpio puramente subjectivo (isto , uma mxima) donico uso que lhe permitido pelos seus limites, uma consequn-cia da necessidade, e que para ela constitui o fundamento total dadeterminao do nosso juzo sobre a existncia do Ser supremo, doqual se faz apenas um uso contingente, orientar-se nas tentativasespeculativas sobre o mesmo objecto: por isso Mendelssohn errouaqui, em virtude de conceder a tal especulao um to grande poderde por si conseguir tudo s atravs da demonstrao. A necessidadedo primeiro meio s poderia ter lugar, se se admitiu plenamente ainsuficincia do ltimo; reconhecimento a que finalmente o terialevado a sua agudeza intelectual se, com uma mais longa duraode vida, lhe tivesse tambm sido dada a agilidade do esprito, maisprpria dos anos de juventude, para facilmente modificar o velho ehabitual tipo de pensamento, em conformidade com a transforma-o do estado das cincias. Mas, entretanto, cabe-lhe o mrito depersistir em buscar a pedra-de-toque final para a admissibilidadede um juzo aqui, como em toda a parte, unicamente na razo,quer esta seja guiada na escolha das suas proposies pelo discer-nimento [intelectual] ou pela simples necessidade e pelas mximasda sua prpria vantagem. Chamou ele razo, no seu ltimo uso,a comum razo humana; pois esta tem sempre primeiramente di-ante dos olhos o seu prprio interesse, enquanto preciso j tersado dos trilhos naturais para o esquecer e divisar ociosamenteentre conceitos numa considerao retrospectiva e objectiva, a fimde simplesmente estender o seu saber, seja ele necessrio ou no.

    4 A razo no sente; discerne a sua deficincia e, mediante a tendncia para oconhecimento, realiza o sentimento da necessidade. Passa-se aqui o mesmo quecom o sentimento moral, o qual no produz lei moral alguma, pois esta brotainteiramente da razo; mas o sentimento moral causado ou produzido pela leimoral, portanto pela razo, na medida em que a vontade compelida e, no entanto,livre requer motivos determinados.

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    Mas visto que a expresso pretenso da s razo , na questopresente, continua ainda a ser equvoca e se pode tomar, ou como oprprio Mendelssohn a entendeu mal, enquanto juzo derivado deum discernimento racional, ou como a parece compreender o au-tor dos Resultados, enquanto juzo de inspirao racional: sernecessrio, ento, dar a esta fonte do acto de julgar uma outra de-signao e nenhuma lhe mais adequada do que a de f racional.Qualquer f, mesmo a de natureza histrica, deve ser racional (poisa derradeira pedra-de-toque da verdade sempre a razo); s queuma f racional a que no se funda em nenhuns outros dados ex-cepto os que esto contidos na razo pura. Toda a f , pois, umassentimento subjectivamente suficiente, mas no plano objectivocom conscincia da sua insuficincia; portanto, contrape-se aosaber. Por outro lado, se considerarmos algo como verdadeiro pormotivos objectivos, embora com a conscincia da sua insuficin-cia, por conseguinte, meramente opinado, ento esta opinio pode,mediante um complemento progressivo com motivos da mesma es-pcie, tomar-se finalmente um saber. Em contrapartida, se os moti-vos do assentimento no forem, segundo a sua natureza, objectiva-mente vlidos, ento a f nunca se tornar um saber, seja qual foro uso da razo. A crena histrica, por exemplo, acerca da mortede um grande homem que algumas cartas relatam pode tornar-seum saber se as prprias autoridades do lugar nos informam acercado seu tmulo, testamento, etc. Portanto, algo pode considerar-se,isto , crer-se como historicamente verdadeiro apenas com base emtestemunhos, por exemplo, que h no mundo uma cidade chamadaRoma; e, no entanto, quem nunca l esteve pode dizer: sei, e noapenas, creio que existe uma Roma; tudo isto se ajusta muito bem.Pelo contrrio, a pura f racional nunca se pode transformar numsaber atravs de todos os dados naturais da razo e da experincia,porque o fundamento de ter por verdadeiro aqui simplesmentesubjectivo, a saber, uma exigncia necessria da razo (e sempreexistir, enquanto houver homens) pressupor, mas no demonstrara existncia de um Ser supremo. Esta necessidade da razo rela-

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    tivamente ao seu uso terico, que a satisfaz, nada mais seria doque uma pura hiptese racional, isto , uma opinio, que seriasuficiente para se ter por verdadeira em virtude de motivos sub-jectivos; pois, para explicar determinadas aces, nunca se podeesperar outro princpio a no ser esse e a razo exige um funda-mento explicativo. Em contraposio, a f racional que se baseiana necessidade do seu uso no propsito prtico poderia chamar-seum postulado da razo: no como se fosse um discernimento quesatisfaria todas as exigncias lgicas em relao certeza, mas por-que semelhante assentimento (pois, no homem, tudo se julga bemapenas no aspecto moral) no inferior5 em grau a nenhum saber,embora seja totalmente distinto do saber quanto natureza.

    Uma pura f racional , ento, o poste indicador ou a bssolapela qual o pensador especulativo se orienta nas suas incurses ra-cionais no campo dos objectos supra-sensveis, e que pode mostrarao homem de razo comum e, no entanto, (moralmente) s, o seucaminho de todo adequado plena finalidade da sua determinao,tanto do ponto de vista terico como prtico; e esta f racional tambm o que se pode pr na base de qualquer outra f, e at detoda a Revelao.

    O conceito de Deus e at a convico da sua existncia s po-dem encontrar-se na razo, s dela promanam e no nos advmnempor inspirao, nem ainda por uma notcia dada at pela autoridademxima. Se me ocorrer uma intuio imediata de semelhante jaezque a natureza, tanto quanto a conheo, me no pode proporcio-nar, dever ento um conceito de Deus servir-me de fio condutorpara ver se o fenmeno se harmoniza tambm com tudo o que seexige para as caractersticas de uma divindade. Embora eu no

    5 firmeza da f inerente a conscincia da sua invariabilidade. Posso,pois, estar plenamente seguro de que ningum me poder refutar a proposio:Deus existe; onde iria ele buscar tal discernimento? Por conseguinte, as coisasno se passam com a f racional como com a crena histrica, a respeito da qual sempre possvel descobrir provas em contrrio e na qual se deve estar semprepreparado para mudar de opinio, se que importa alargar o nosso conhecimentodas coisas.

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    discirna como possvel que um fenmeno qualquer represente,mesmo s quanto qualidade, o que apenas se pode sempre pensarmas nunca se deixa intuir, contudo, pelo menos bastante claroque, s para julgar se Deus o que me aparece, que actua interiorou exteriormente no meu sentimento, o deverei considerar luz domeu conceito racional de Deus e, em seguida, examinar no s selhe adequado, mas simplesmente se no o contradiz. Justamenteassim: inclusive, se em tudo aquilo em que Ele imediatamente seme revela nada se encontrar que contradiga esse conceito, aindaassim tal fenmeno, intuio, revelao imediata, ou seja qual foro modo como essa representao se denomine, nunca demonstrariaa existncia de um Ser, cujo conceito (se no for determinado deum modo inequvoco e, por conseguinte, no se submeter mes-cla de toda a iluso possvel) exige a infinitude segundo a gran-deza, para o distinguir de toda a criatura; conceito, porm, a quenenhuma experincia ou intuio pode ser adequada e, portanto,tambm nunca poder demonstrar inequivocamente a existncia deum tal ser. Portanto, atravs de uma intuio qualquer, ningumse pode primeiramente convencer da existncia do Ser supremo; af racional deve vir frente e, em seguida, certos fenmenos oumanifestaess poderiam dar azo investigao para sabermos seo que nos fala, ou se nos exibe, se ajusta bem a ser consideradocomo uma divindade e se, aps exame, confirma aquela f.

    Se, pois, se negar razo o direito que lhe compete de falarem primeiro lugar nas coisas que concernem aos objectos supra-sensveis, como a existncia de Deus e o mundo futuro, fica assimaberta uma ampla porta a todo o devaneio, superstio, e inclusiveao atesmo. E, no entanto, na polmica entre Jacobi e Mendels-sohn, tudo parece apontar para a subverso no sei bem se apenasdo discernimento racional e do saber (por meio de uma supostafora na especulao), ou se tambm at da f racional e, em troca,para a instituio de uma outra f que qualquer um pode estabele-cer a seu bel-prazer. Quase se deveria tirar esta ltima conclusoao assistir-se proposta do conceito espinosista de Deus como o

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    nico que se harmoniza com todos os princpios da razo e , noentanto, um conceito repreensvel. Com efeito, se inteiramentecompatvel com a f racional admitir que a prpria razo especu-lativa nem sequer capaz de discernir a possibilidade de um sertal como devemos pensar Deus, ento ele no se pode harmonizar6

    com nenhuma f e, sobretudo, com nenhum assentimento a umaexistncia, de modo que a razo compreenda a impossibilidade deum objecto e, no entanto, possa reconhecer, a partir de outras fon-tes, a realidade do mesmo objecto.

    6 difcil compreender como que os eruditos mencionados conseguiramencontrar na Crtica da Razo Pura um encorajamento ao espinosismo. A cr-tica corta totalmente as asas do dogmatismo no tocante ao conhecimento dosobjectos supra-sensveis, e o espinosismo a este respeito to dogmticoo quecompete mesmo com o matemtico, em relao ao rigor da demonstrao. A cr-tica demonstra que o quadro dos conceitos puros do entendimento deveria con-ter todos os elementos do pensamento puro; o espinosismo fala de pensamentosque, no entanto, se pensam a si mesmos e, por isso, de um acidente, que todaviaexiste para si como sujeito: um conceito que no se encontra no entendimentohumano e que tambm nele se no pode intoduzir. A crtica mostra que, paraafirmar a possibilidade de um ser, mesmo pensado, no basta ainda que no seuconceito nada exista de contraditrio (embora, em caso de necessidade, seja de-certo permitido admitir tal possibilidade); mas o espinosismo pretende discernira impossibilidade de um ser cuja ideia consta to-s de puros conceitos do enten-dimento, dos quais se eliminaram apenas todas as condies da sensibilidade enos quais, portanto, nunca se pode encontrar contradio alguma. Mas no con-segue, todavia, apoiar por meio de nada essa pretenso, que vai alm de todos oslimites. Por isso mesmo que o espinosismo leva directamente ao devaneio. Emcontrapartida, no h nenhum meio seguro de arrancar pela raiz todo o entusi-asmo delirante a no ser a determinao dos limites da capacidade da pura razo. Um outro erudito depara ainda na Crtica da Razo Pura com o cepticismo,embora a crtica vise estabelecer algo de certo e determinado relativamente aombito do nosso conhecimento a priori. Do mesmo modo encontra ele uma dia-lctica nas investigaes crticas que, no entanto, visam dissolver e extirpar parasempre a inevitvel dialctica em que a razo pura, conduzida em toda a parte deum modo dogmtico, se enreda e implica. Os neoplatnicos, que se chamavameclcticos porque sabiam encontrar por toda a parte nos antigos autores as suasprprias fantasias quando de antemo as tinham em si introduzido, procediamjustamente assim; nada h, pois, de novo debaixo do Sol.

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    Homens de capacidades espirituais e de vistas largas! Admiroo vosso talento e aprecio muito o vosso sentimento humano. Masreflectistes bem sobre o que fazeis e at onde se chegar com osvossos ataques razo? Quereis, sem dvida, que a liberdade depensar se mantenha inclume, pois, sem ela depressa acabariam osvossos livres mpetos de gnio. Vejamos o que naturalmente se irpassar com essa liberdade de pensamento se um procedimento, talcomo o que iniciais, se tomar prevalecente.

    liberdade de pensar contrape-se, em primeiro lugar, a co-aco civil. H decerto quem diga: a liberdade de falar ou deescrever pode ser-nos tirada por um poder superior, mas no a li-berdade de pensar. Mas quanto e com que correco pensaramosns se, por assim dizer, no pensssemos em comunho com osoutros, aos quais comunicamos os nossos pensamentos e eles noscomunicam os seus! Pode, pois, muito bem dizer-se que o poderexterior, que arrebata aos homens a liberdade de comunicar publi-camente os seus pensamentos, lhes rouba tambm a liberdade depensar: o nico tesouro que, no obstante todos os encargos civis,ainda nos resta e pelo qual apenas se pode criar um meio contratodos os males desta situao.

    Em segundo lugar, a liberdade de pensar toma-se tambm nosentido de que se ope presso sobre a conscincia moral; quando,sem qualquer poder em matria de religio, h cidados que seconstituem tutores dos outros e, em vez de argumentos, sabem ba-nir todo o exame da razo mediante uma impresso inicial sobre osnimos, atravs de frmulas de f prescritas e acompanhadas peloangustiante temor do perigo de uma inquirio pessoal.

    Em terceiro lugar, a liberdade de pensamento significa aindaque a razo no se submete a nenhumas outras leis a no ser que-las que ela a si mesmo d; e o seu contrrio a mxima de umuso sem lei da razo (para assim, como imagina o gnio, ver maislonge do que sob a restrio imposta pelas leis). A consequnciaque da se tira naturalmente esta: se a razo no quer submeter-se lei, que ela a si prpria d, tem de se curvar sob o jugo das

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    leis que um outro lhe d; pois, sem lei alguma, nada, nem sequer amaior absurdidade, se pode exercer durante muito tempo. Por con-seguinte, a consequncia inevitvel da declarada inexistncia delei no pensamento (a libertao das restries impostas pela razo) esta: a liberdade de pensar acaba por se perder e, porque a culpano de alguma infelicidade mas de uma verdadeira arrogncia, aliberdade, no sentido genuno da palavra, confiscada.

    O curso das coisas mais ou menos este: a princpio, o g-nio compraz-se no seu mpeto audacioso, porque deitou fora o fiocom que a razo habitualmente o dirigia. Logo a seguir, fascinatambm outros mediante decises imperiosas e grandes expectati-vas e parece ter-se sentado doravante num trono, que a vagarosa epesada razo to mal adornava, embora o gnio continue a usar alinguagem dela. A mxima da invalidade, ento aceite, de uma ra-zo supremamente legisladora aquilo que ns, homens comuns,chamamos o entusiasmo delirante; mas os favoritos da benevo-lente natureza do-lhe o nome de iluminao. Como, entretanto,depressa surgir entre estes uma confuso de linguagem, pois sa razo pode imperar validamente a todos, e agora cada qual se-gue a sua inspirao, por fim, factos provenientes de inspiraesinteriores sero confirmados por testemunhos exteriores, e de tra-dies que de incio eram escolhidas e, com o tempo, se tornaramdocumentos impositivos, surgiu, numa palavra, a total submissoda razo aos factos, isto , superstio, porque esta, ao menos,no se pode reduzir a uma forma legal e entrar assim num estadode repouso.

    No entanto, porque a razo humana aspira sempre liberdade,o seu primeiro uso de uma liberdade, de que durante muito tempose desacostumou, quando rompe as cadeias, degenerar em abusoe confiana temerria na independncia do seu poder em relaoa toda a limitao, numa convico do domnio absoluto da razoespeculativa, que nada admite a no ser o que se pode justificarpor razes objectivas e pela convico dogmtica, negando comaudcia tudo o mais. A mxima da independncia da razo em re-

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    lao sua prpria necessidade (renncia f racional) chama-seento incredulidade: no uma incredulidade histrica, pois nose pode pensar como deliberada, logo, tambm no como respon-svel (porque cada qual deve crer num facto que to suficien-temente comprovado como uma demonstrao matemtica, querqueira quer no); mas uma incredulidade racional, um incon-veniente estado do esprito humano que priva as leis morais, pri-meiro, de toda a fora de mbil sobre o corao e, com o tempo,at de toda a autoridade, suscitando assim o modo de pensar quese chama livre pensamento, isto , o princpio de no reconhecermais nenhum dever. Entra aqui em aco a autoridade, para queos prprios assuntos civis no entrem na maior desordem; e, vistoque o meio mais rpido e mais enrgico para ela o melhor, aautoridade suprime a liberdade de pensar e, tal como s outras ac-tividades, tambm sujeita esta aos regulamentos do pas e assim aliberdade de pensamento, ao querer agir de modo absolutamenteindependente das leis da razo, acaba por se destruir a si mesma.

    Amigos do gnero humano e do que para ele mais sagrado!Aceitai o que, aps um exame cuidadoso e honesto, vos parecermais digno de f quer sejam factos, quer princpios de razo; so-mente no impugneis razo o que dela faz o supremo bem naterra, isto , o privilgio de ser a derradeira pedra-de-toque da ver-dade7 . Caso contrrio, indignos de tal liberdade, tambm decerto a

    7 Pensar por si mesmo significa procurar em si prprio (isto , na sua pr-pria razo) a suprema pedra de toque da verdade; e a mxima de pensar semprepor si mesmo a Ilustrao (Aufklrung). No lhe incumbem tantas coisascomo imaginam os que situam a ilustrao nos conhecimentos; pois ela an-tes um princpio negativo no uso da sua faculdade de conhecer e, muitas vezes,quem dispe de uma riqueza excessiva de conhecimentos muito menos esclare-cido no uso dos mesmos. Servir-se da sua prpria razo quer apenas dizer que,em tudo o que se deve aceitar, se faz a si mesmo esta pergunta: ser possveltransformar em princpio universal do uso da razo aquele pelo qual se admitealgo, ou tambm a regra adoptada do que se admite? Qualquer um pode rea-lizar consigo mesmo semelhante exame e bem depressa ver, neste escrutnio,desavarecer a superstio e o devaneio, mesmo se est muito longe de possuir osconhecimentos para a ambos refutar com razes objectivas. Serve-se, de facto,

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    perdereis, e esta infelicidade arrasta ainda a outra parte inocente dacabea que, de outro modo, estaria disposta a servir-se legalmenteda sua liberdade e a contribuir assim, de forma conveniente, para amelhoria do mundo.

    [Nota do Tradutor]

    A traduo aqui proposta corrige e aperfeioa uma anterior,editada h cerca de vinte anos. O ensaio original em lngua alempode encontrar-se no electro-stio seguinte, que apresenta o textotal como foi publicado no Berlinische Monatschrift:

    Universittsbibliothek Bilefeld

    A edio de referncia , no entanto, a da Academia:

    Band VIII: Abhandlungen nach 1781,1912, 2. Aufl. 1923, Nachdruck 1969Paul Menzer, Heinrich Maier, Max Frischeisen-Khler

    apenas da mxima da autoconservao da razo. , pois, fcil instituir a ilus-trao em sujeitos individuais por meio da educao; importa apenas comearcedo e habituar os jovens espritos a esta reflexo. Mas esclarecer uma poca muito enfadonho, pois depara-se com muitos obstculos exteriores que, emparte, probem e, em parte, dificultam aquele tipo de educao.

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