como vestir o intervalo

45
Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Belas Artes Programa de Pós Graduação em Artes Visuais Curso de Mestrado em Artes Visuais Julia Valle Noronha Como Vestir o Intervalo Rio de Janeiro 2014

Upload: julia-valle

Post on 23-Nov-2015

75 views

Category:

Documents


14 download

DESCRIPTION

Texto para qualificacao grau de Mestre - UFRJSobre processo criativo em artes visuais e moda

TRANSCRIPT

  • Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Belas Artes Programa de Ps Graduao em Artes Visuais Curso de Mestrado em Artes Visuais Julia Valle Noronha Como Vestir o Intervalo

    Rio de Janeiro 2014

  • 2

    Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Belas Artes Programa de Ps Graduao em Artes Visuais Curso de Mestrado em Artes Visuais rea de Concentrao: Teoria e Experimentaes da Arte Linha de Pesquisa: Poticas Interdisciplinares Julia Valle Noronha Como Vestir o Intervalo

    Trabalho apresentado junto ao curso de Ps Graduao em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, linha de pesquisa Poticas Interdisciplinares, como material para banca de qualificao para dissertao de mestrado. Orientador: Carlos Augusto Nbrega Qualificao da Dissertao: 2 de Abril de 2014 Perodo previsto para apresentao da Dissertao: Setembro de 2014

  • 3

    Resumo da Dissertao apresentada EBA-UFRJ como parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de Mestre em Artes Como Vestir o Intervalo Orientador: Carlos Augusto Moreira da Nbrega Programa: Artes Visuais . Linha Pesquisa: Poticas Interdisciplinares

    Banca Titulares: Maria Cristina Volpi . Professora Doutora PPGAV EBA UFRJ Nzia Villaa . Professora Doutora POS-ECO UFRJ Suplentes: Marcelo Simon Wasem . Professor Doutor FEBF UERJ Leonardo Ventapane . Professor Doutor EBA UFRJ Resumo Esta dissertao tem como objeto de pesquisa a noo de ma (termo oriental que significa, literalmente, espao-entre) aplicado vestveis e txteis. intencionada uma apropriao de algumas concepes do termo a fim de se propor uma metodologia para o processo criativo em artes visuais. O intervalo tomado aqui como zona potente em potica e promotor de desacelerao e dilogo entre interatores e objetos. De carter terico-prtico, a pesquisa foi embasada em leituras interdisciplinares e na prtica artstica desenvolvida ao longo do perodo do mestrado. Abstract This dissertation takes the notion of ma (oriental term that means, literally, espace between) as its research object applied to wearables and textile production. It is intended an appropriation of some of its conceptions to propose a methodology for the creative process in visual arts. The interstice is understood here as a potential zone able to promote dialogue and de-acceleration among interactors and objects. As a theorethical-practial research, it was based on interdisciplinary readings and the artistical practice developed during the study period.

  • 4

    Sumrio Introduo .............................................................................................................................................. 6 1. Sobre Ma ..................................................................................................................................... 10 1.1 O Espao-Entre ................................................................................................................ 10 1.3 Ma no Espao Experincia .......................................................................................... 13 1.4 A viso ocidental de Ma (em desenvolvimento) ................................................ 15 2. Aproximaes e Apropriaes do Conceito como Mtodo .................................... 16 2.1 Fenomenologia do Intervalo ....................................................................................... 16 2.2 Ma e Interatividade ......................................................................................................... 19 2.3 Ma-Psicotecnolgico(em desenvolvimento) ........................................................ 21 2.4 Desaceleraes .................................................................................................................. 22 3. Argumentaes Sobre o Vestir (em desenvolvimento) .......................................... 26 4. Investigao Potica: Como Vestir o Intervalo ........................................................... 27 4.1 Entre-Espao ...................................................................................................................... 27 4.2 Jardim .................................................................................................................................... 31 4.3 ceu .......................................................................................................................................... 35 4.4 For What is Worth ........................................................................................................... 37 4.5 Mina ...................................................................................................................................... 40 Concluso (em desenvolvimento) ............................................................................................ 42 Referncias ......................................................................................................................................... 43 Referncias Bibliogrficas ....................................................................................................... 43 Referncias de Filmes ................................................................................................................ 45 Referncias de Websites .......................................................................................................... 45

  • 5

    Lista de Figuras Figura 1 . Instalao Entre-Espao. Foto: Julia Valle ......................................................... 28 Figura 2 . Instalao Entre-Espao . Foto: Julia Valle ........................................................ 30 Figura 3 . Instalao Jardim . Foto: Edgard Oliva ............................................................... 32 Figura 4 . Detalhe Instalao Jardim . Foto: Brbara Castro .......................................... 34 Figura 5 . Stills vdeo ceu . Imagem: Julia Valle ................................................................. 36 Figura 6 . Desenho da Srie For What is Worth . Foto: Julia Valle ............................ 37 Figura 7 . Desenho da Srie For What is Worth . Foto: Julia Valle ........................... 39 Figura 8 . Objetos e detalhes Mina . Foto: Julia Valle ...................................................... 41

  • 6

    Introduo A produo criativa hoje reflete movimentos biopolticos de uma cultura ocidental permeada por consumo, velocidade e avanos nunca suficientes ou saciveis, por um tempo constantemente acelerado. As implicaes e demandas produzidas por este cenrio so diversas e atuam em esferas econmicas, naturais, sociais e polticas no sistema global como um todo, mas mais particularmente no que tange as aes de consumo e produo. Implicaes estas que tocam, inevitavelmente tambm, o fazer artstico e criativo, que muitas vezes recebe com desconforto a estrutura funcional dessas aes. O percurso do trabalho prtico apresentado aqui est situado em uma zona intermediria. Um espao entre a produo em Moda e a produo artstica, pela tentativa de criar vestes fora de uma escala industrial, de uma sazonalidade imposta pela indstria da moda, por um processo que prioriza a investigao e o questionamento das relaes que travamos com o vestir. Esta zona intermediria parece pedir por uma pausa para se repensar e reestruturar o trabalho autoral e encontra na noo de ma1 (), e em algumas das questes que surgem em seu campo, sua motivao. Apesar da superficialidade da informao no primeiro contato, atravs do livro Japanese Fashion Designers de Bonnie English, o ma se mostrou como capaz de fornecer interessantes reflexes sobre perguntas acerca do vestir contemporneo e suas metodologias e processos a partir de um desdobramento em uma proposta metodolgica. Bonnie cita a presena de um ma na obra do criador japons Issey Miyake, e se refere a ele como um intervalo entre o corpo e a vestimenta: 1 O ser representado aqui por ma. A grafia diverge de autor para autor; MA, Ma ou ma. A opo pelo termo expresso em letras minsculas tambm de tentar torn-lo mais prximo e acessvel, e no situ-lo como algo sagrado e distante. Em citaes, a grafia escolhida pelo autor ser mantida.

  • 7

    A noo de envolver o corpo est conectada a genialidade japonesa para

    delimitar espao. A indumentria japonesa vista como uma forma de

    embalar o corpo. Miyake disse: Gosto de trabalhar no esprito do kimono.

    Entre o corpo e o tecido existe apenas um contato aproximado. este

    conceito central de espao entre o corpo e o tecido, denominado ma em

    japons, que cria uma liberdade natural, e flexibilidade geral na roupa2 (English, 2011, p. 21) Aqui, no entanto, estendemos a percepo deste espao tambm para outras zonas comunicacionais dentro do processo de criao e produo. A tese de doutoramento da pesquisadora Michiko Okano, intitulada Ma: Entre-espao da arte e comunicao no Japo jogou luz sobre muitas questes. Elucidando a amplitude de significaes e possibilidades de se compreender e apreender a noo de ma, a pesquisa se permitiu flexibilizaes, das quais surgem a questo; poderia a percepo do intervalo alterar essas velocidades e relaes entre o corpo e as aes de vestir, habitar e produzir? Por ser plural e sentido, a pesquisa apresentada aqui tratar do ma, no em busca de sua mais fiel definio, mas de uma apropriao do termo e de seu uso para expresses poticas em artes visuais. Partir de reflexes de autores orientais e ocidentais para tentar encontrar caminhos para um outro interstcio; um que se relacione com o tempo e espao que ocupamos hoje, com todos os organismos com os quais os compartilhamos. proposta aqui uma reflexo acerca do intervalo, de possibilidades de expandi-lo e transforma-lo em dilogo, comunicao. Para tal, os exerccios prticos refletem esta experincia do vestir. 2Traduo pela autora deste texto. Do original: The notion of wrapping the body is linked with the Japanese genius for enclosing space. Japanese clothing is seen as a form of packaging the body.

    Miyake stated, I like to work in the spirit of the kimono. Between the body and the fabric there

    exists only an approximate contact. It is this central concept of space between the body and the

    cloth, called ma in Japanese, which creates a natural freedom, and general flexibility in the

    garment.

  • 8

    A primeira seo desta dissertao apresenta de forma articulada algumas leituras sobre este espao-intervalar proposto pela cultura oriental, mais precisamente japonesa, atravs de textos de pesquisadores especialistas no assunto. Por ser essencialmente transdisciplinar, os autores apresentados aqui contribuem para a discusso acerca do ma em reas como arquitetura, paisagismo, artes cnicas, filosofia, comunicao, tecnologia, indumentria e artes visuais. Na segunda seo apresentamos outras leituras do termo, propondo aproximaes e apropriaes. Algumas propostas, no entanto, nos parecem particularmente interessantes e enriquecedoras para a pesquisa. Sua consonncia com os estudos da fenomenologia de Merleau-Ponty e investigaes sobre a interatividade e o que o pesquisador canadense Derrick de Kerckhove prope no que tange esta noo de intervalo toca de forma intensa uma realidade presente, no tempo e no espao. Um aprofundamento sobre as questes levantadas em seu livro A Pele da Cultura sero desenvolvidas, como a problematizao da acelerao e a necessidade de se refletir sobre novas psicotecnologias e a interatividade, relacionando-as com a pratica artstica e aprofundando uma anlise biopoltica do fazer criativo hoje. Sua pesquisa nos serve de base para investigaes contemporneas e no limitadas a uma zona geogrfica. Argumentaes que motivam este trabalho sero encontradas na terceira seo, a partir de questionamentos acerca do vestir, como ao de construo de relaes e como cadeia produtiva, e suas implicaes polticas. Trataremos de como a noo de ma poderia alterar e contribuir para a produo criativa e potica. E ainda, poderia esta noo promover a desacelerao e (re)estabelecer comunicaes? A quarta seo apresenta a produo em artes visuais desenvolvida ao longo desta pesquisa de mestrado numa tentativa de produzir reverberaes poticas para as questes apontadas nas segunda e terceira sees. Ele trata de motivaes em torno do vestir, tomado como ao que produz dilogos e auxilia

  • 9

    na manuteno continuada uma individuao3 do corpo, mas que tambm pede, a partir desta comunicao latente, por uma contemplao dinmica e interativa. Os trabalhos apresentados aqui dialogam diretamente com esta noo de ma e sugerem a existncia de uma zona de intervalo 4 entre corpo e objetos vestveis, definio sugerida por Diana Domingues para tratar de relaes em arte interativa. A pesquisa prtica apresentada aqui, portanto, sugere, em primeira instncia, uma forma de se promover o vestir como ao contemplativa mas que abraa tambm a experincia. Tomar o intervalo como verdadeiro motivador do fazer artstico neste projeto, ento, pede por uma reviso do processo criativo e sugere a pergunta; Como vestir o intervalo? 3 A conceituao do termo individuao aqui apropriada das teorias de Gilbert Simondon, em A Gnese do Indivduo. Superficialmente, podemos definir a individuao como uma constante atualizao do ser, que o torna vivo e nico, construdo a partir das experincias que atravessa durante seu existir. 4 Zonas intimas, zonas elpticas ou zonas de intervalo, sugeridas por Diana Domingues, sero tratadas com mais aprofundamento no captulo 2.2

  • 10

    1. Sobre Ma 1.1 O Espao-Entre MA: uma palavra japonesa redescoberta, uma das mais simples e das

    mais ambguas. Para o bem ou para o mal, sempre haver o MA,

    nascido simultaneamente do espao e do tempo. (Isozaki, 1978, p.8)5 A frase inaugural do catalogo da exposio Ma: Espace-Temps du Japon curada pelo arquiteto japons Arata Isozaki, nos apresenta o termo em questo de forma interessante por condensar em poucas palavras descrio to ampla. O ma vai alm de um simples conceito, e carrega em sua essncia essa dinmica do interstcio. Literalmente, ma significa espao, mas sua conceituao abrange definies plurais. Defini-lo um grande desafio, em primeira instncia, pela dificuldade da traduo, e depois pela impossibilidade de transformar em palavras algo que sentido. Para os estudiosos do termo, nem uma delas, nem todas as tentativas juntas, conseguem alcanar sua verdadeira definio. Ma algo que se percebe, algo que consiste6 sem fisicamente existir, mas muito dificilmente ser possvel expressar em palavras. Ma simultaneamente intervalo, vazio e entre-espao. Ele separa, ata e

    instala uma respirao, uma flutuao e uma incompletude que engendram

    essa relao do tempo ao infinito prpria ao Japo. O intervalo instaura, 5 Traduo pela autora deste artigo. No original MA, ce mot japonais retrouv ici, un des plus simples et des plus ambigus: bien ou mal, il y aura toujours MA n la fois de lespace et du temps. Souvent Il sidentifie un intervalle trs subtil de linfini. 6 A noo de consistir apontada aqui vem de Bernard Stiegler, que tambm cita Deleuze por sugerir o termo. Deleuze (2000) fala tambm de consistncia e, me parece, no mesmo sentido. Existem coisas que no existem, mas que consistem, e so as coisas mais importantes. (STIEGLER, 2007, p. 18)

  • 11

    simultaneamente, uma distncia e uma dinmica, um vazio e uma

    pluralidade de sentidos. (Christine Buci-Glucksman, 2001) No Japo, tempo e espao so conceituados como indissociveis, tomados como um quantum nico e recebem o nome de ma. Descrev-lo, tarefa difcil, seno impossvel, devido dificuldade da traduo e amplitude de fenmenos que podem ser compreendidos como manifestaes deste intervalo, que une e separa dois objetos em um espao-contnuo dotado de vida, latncia e fluidez. Alguns estudiosos sugerem que tentativas de se apoderar ou de compreende-lo por completo tero efeito inverso, fazendo com que aquele que tenta alcanc-lo, acabe por perde-lo por completo. Pode ser traduzido tambm como um espao vazio. Porm, o terico Takehiko Kenmochi (apud. Okano, 2012, p. 14) explica: no no sentido de vacuidade, mas prenhe de energia ki. A energia ki, ou chi, , na cultura oriental uma fora vital que confere vida a todos os seres animados. uma energia percebida tambm como aquela capaz de conectar as realidades materiais e imateriais (ou sagradas). Podemos ento pensar essa vacuidade prenhe como algo diretamente ligada vivacidade, ao movimento e, ainda, aos sentidos. Isozaki, que pode ser tomado como responsvel pela apresentao do termo ma ao ocidente de forma mais abrangente pelo impacto causado com a exposio que trata do tema em Paris, sugere categorizar algumas manifestaes do ma em sete temas, organizados na tabela abaixo de acordo com suas relaes, as quais resumimos de forma bastante simplificada: Mitologia Hiromogi espao de manifestao do sagrado Yami culto escurido Esttica Suki literalmente gosto, se refere a preferncias particulares em conexo com preferncias coletivas e arte da impermanncia na cerimnia do ch Sabi valorizao da passagem do tempo

  • 12

    Cotidiano Michiyuki modo de vivenciar caminhos Espao Hashi pode ser traduzido como extremidade, ponte ou escada e trata, portanto de conexes latentes. Tempo Utsuroi momento de transformao em um espao vazio. Sua manifestao estaria ligada, portanto, a uma capacidade de compreenso e contemplao de fatores como o valor do tempo aqui indissocivel do espao, como j citado anteriormente , da vivncia e da habilidade de integrar sentidos amplificando as experincias com o que nos cerca. No passado, a medida de um ma foi tomada por conveno como a dimenso de dois tatami. Dois, no um. Interessante conveno, aos olhos ocidentais, ela trata deste ponto relevante tambm sobre o termo e confirma a profunda importncia da interao. Para se tornar potente, necessrio que haja foras em interao no intervalo que confiram movimento a este espao vazio e o tornem dinmico. Ma a forma de sentir o movimento do movimento. (ISOZAKI, 1978) Logo, nenhuma presena ou fora individualmente poderia ativar sua manifestao. Dessa forma, esse espao tornaria indissocivel tempo, espao e, ainda, matrias em interao, pelos corpos que esto presentes. Indissociveis se tornam tambm todos os componentes de uma rede de interaes. Ou seja, cada parte constituinte desta estrutura tem funo essencial dentro dela, sendo conformador do outro. Sobre esta dinmica Buci-Glucksman escreve; MA simultaneamente intervalo, vazio e entre-espao. (...) O intervalo instaura, simultaneamente, uma distncia e uma dinmica, um vazio e uma

    pluralidade de sentidos. (apud OKANO, 2012, p. 31). Essa pluralidade de sentidos em fuso apontada por Okano a partir do sentido da viso, que poderia unificar em si todos os outros sentidos: (...) a visualidade no apenas se restringe ao estimulo visual, mas

    incorpora o som, o movimento e a textura. (...) Envolve-se, desse modo, o

    corpo na sua totalidade e transforma-se a reprodutibilidade do espao em

    mediao representativa e social. Cria-se, ento, uma ampla conceituao

  • 13

    da visualidade, que ganha comunicabilidade numa compreenso

    polissensvel do mundo. (Ibid, p. 66) Essa afirmao nos parece remeter a fenomenologia, interessante possvel ponte entre um ma oriental e um ma universal e presente, relao que ser mais desenvolvida a seguir. Como aproximar, ento, o ma tradicional do Japo, de noes mais universais e contemporneas? 1.3 Ma no Espao Experincia Como no kimono, o principal no cortar o tecido, mas respeitar a integridade

    do material e usar sua forma como casa para o corpo (ENGLISH, 2011, p. 15) A abundncia de referncias em arquitetura ao longo da pesquisa acerca do ma permite uma aproximao da indumentria quando as roupas so percebidas como espaos habitveis, verdadeiros abrigos que ocupamos diariamente, zonas penetrveis, porm em escalas aproximadas s humanas. A construo e modelagem das roupas compartilha em muitos momentos processos utilizados na arquitetura, alm de noes definidoras como espao de vivncia, abrigo e proteo. 2 metros de tecido ou 50 toneladas de material de construo. Quando se trata de matria, vestimentas e edifcios parecem bastante distantes. Apesar de ambas as escalas estarem diretamente relacionadas ao homem (sua forma, tamanho, alcance, sentidos e necessidades fsicas), o que os aproxima no est contido nas dimenses. O vestir em muito se aproxima do habitar. Ocupar o espao que uma estrutura de tecido, madeira ou concreto geram permitir relaes com o que nos cerca e produzir conscincia de ns mesmos; como, quanto e at onde efetivamente preenchemos ou nos relacionamos com este ou aquele ambiente. Arquitetura e

  • 14

    moda so colocadas como artes de similaridades h muito, as aproximaes entre os campos se do, em primeira instncia, pela prpria definio de cada uma. A noo de abrigo, de construo que envolve e protege, serve de caracterizadora tanto s roupas quanto aos edifcios. Essa similitude se estende ainda mais quando pensamos em estilo; na moda e na arquitetura, as expresses criativas nos permitem plasticizar ideias, posies e proporcionar experincias de ordem visual e ttil. Ainda, roupas e espaos planejados nos constroem, nos conformam como indivduos nicos, e recebem impresses de como recebemos e tratamos essas experincias perceptivas e comunicantes. Na ao criativa permeada pelo ma a relevncia de se tratar os vazios entre objetos como espaos ricos e energizados7 (Ibid. 2011, p. 21) ganha primeira importncia, fazendo com que as sensaes produzidas na vivncia de cada um desses espaos transcenda percepes visuais. A capacidade de unir dois espaos distintos, como exemplo, o interno e o externo, ou ainda dois estados, como o vazio e o preenchido, parece sugerir manifestaes do ma em construes habitveis ou vivenciveis. Okano nos sugere que essa capacidade de distinguir e unir, ao mesmo tempo, dois elementos aparentemente opostos inerente espacialidade ma;

    A espacialidade Ma, um espao intervalar que, ao mesmo tempo, separa e

    ata, aponta a possibilidade de coexistncia de elementos distintos e ate

    opostos, como o interno e o externo, o publico e o privado, combinaes

    entre a construo, a natureza e a arte. (OKANO, 2012, p.126) Pensar o que criamos transcendendo sua funo primeira tambm estabelecer conexes com uma produo potica e de experincias. Se moda e arquitetura tratam diretamente de corpos e sensaes, habitar e coexistir, experimentar e construir, aproxim-las como campos criativos, parece sensato. 7 English, Bonnie. Japanese Fashion Designers, p. 21. Traduo pela autora deste trabalho. No original: treats the voids between objects as rich, energised spaces

  • 15

    O que essa espacialidade ma tem a oferecer s duas praticas , em especial, promover o estreitamento de relaes entre todas as partes que compem os sistemas produtivos; o corpo que ocupa/veste, o corpo construdo/costurado, o corpo que constri/projeta e a natureza como um todo, para que a ao de preencher os espaos planejados seja uma de experincias sensoriais, poticas e, acima de tudo, conectadas para alm do material. 1.4 A viso ocidental de Ma (em desenvolvimento) Aqui buscaremos apresentar o trabalho de pesquisadores de origem ocidental que pesquisam a noo de ma no oriente e sua compreenso pelo ocidente. Recorreremos a textos de Roland Barthes (O Imprio dos Signos, 2007), Gunther Nietschke (Ma: Place, Space, Void, 2009), Henk Oosterling (Ma os Sensing Time-Space) e Steve Holl (The Paralax, 2000) na inteno de identificar possveis aproximaes e interessantes apropriaes do termo. Cada uma dessas questes sero tratadas de forma mais aprofundada na segunda seo deste trabalho.

  • 16

    2. Aproximaes e Apropriaes do Conceito como Mtodo Em diversos aspectos a noo do espao-intervalar se assemelha a correntes filosficas e pesquisas que emergiram ao longo do ultimo sculo. Pensar o ma no espao que habitamos hoje pede por uma apropriao e discusso do termo, que pode ser aproximado da fenomenologia, e de discusses que travamos na atualidade em torno de questes como a interatividade e a emergncia potica na desacelerao. Neste captulo apresentaremos pontos em comum entre o pensamento de Merleau-Ponty e noes xintostas inerentes ao ma, os questionamentos de Derrick de Kerckhove em torno da acelerao contempornea e similaridades ao tratar da interatividade com o que especialistas defendem como este dinmico espao-entre. 2.1 Fenomenologia do Intervalo

    Nosso corpo est no mundo como um corao est no organismo: mantem o visvel

    espetculo constantemente vivo, respira vida sobre ele e sustenta internamente, e

    com ele, forma um sistema. (Merleau-Ponty apud Pallasma, 2005, p. 40)

    O filsofo francs Maurice Merleau Ponty nos sugere que nosso corpo estaria direta e constantemente conectado a um tecido do mundo, nos moveramos ento em meio a outras coisas a seu redor. Essas coisas estariam (por serem feitas da mesma matria) incrustadas ou anexadas em nossa carne, em movimento quando nos movimentamos, vivas quando as alimentamos com vida. Uma grande questo acerca do corpo estaria neste ponto; nosso corpo ao mesmo tempo vidente e visvel, v e visto pelo que v. A viso, portanto, desenvolvida na prpria experincia, ela no se apropria das coisas, mas se aproxima, estabelece e estreita relaes. Sobre o ver Merleau-Ponty afirma; A viso o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser. (2011,

  • 17

    pg. 44). Para a cultura oriental a viso tambm abraaria todos os sentidos. Para se sentir parte constituinte do mundo, preciso expandir a viso, audio, tato, olfato e paladar, unificando-os ao espao, fazendo, assim, com que no somente se tornem mais potentes, mas tambm mais sensveis as manifestaes ao redor. Essa noo de unificao tambm sugerida pela fenomenologia de Merleau-Ponty. O mundo no percebido como cenrio, o homem indissociavelmente tambm natureza, constituintes de uma carne do mundo. A percepo e relao que a fenomenologia sugere estar estabelecida entre tudo que ocupa e habita o mundo de muitas formas consonante com as noes xintostas8, fundadora da noo da espacialidade-temporal ma. Tal compreenso, apresentada pelo arquiteto e pesquisador Gunther Nitschke, embora apontada aqui em relao arquitetura, demonstra a fuso entre objetos e ambientes proposta pela concepo dessa espacialidade: A conscincia do Ma (fazer lugar) que combina as dualidades objeto/espao, tempo/espao, mundo objetivo-externo, mundo

    subjetivo-interno era a base da sua arquitetura tradicional (Nitschke apud Okano, 2012, p.30). Para Merleau-Ponty somos conscincia do mundo encarnada no corpo, ou seja, as experincias que travamos com o mundo marcam e continuam presentes no corpo, no possui tempo (como passado ou presente), uma marca sempre atual. Vivemos em reciprocidade com o mundo como corpos videntes e visveis, que toca e tocado, frequenta e frequentado. Alm de esclarecer e organizar pensamentos sobre a produo atual nos mais variados campos criativos, a fenomenologia e a conscincia da espacialidade ma nos prope alm; perceber as relaes e o outro como componentes e conformadores de ns mesmos e tudo aquilo que nos cerca. A pesquisadora Leila Moreno, em sua dissertao de mestrado, aponta tambm aproximaes entre as duas correntes de pensamento; 8 Prtica relacionada a espiritualidade tradicional do Japo, no se configure como uma religio apesar de ser vista como tal pelo ocidente. Est intimamente ligada a natureza, por toma-la como sagrada.

  • 18

    O Ma, que muitos pensadores japoneses acreditam fugir da logica ocidental,

    no existindo nenhum conceito similar encontra nos estudos sobre a

    fenomenologia uma aproximao do pensamento oriental. Os filsofos mais

    conceituados do sculo XX, Kitaro Nishida e Tetsuro Watsuji, observaram nos

    estudos da Fenomenologia do Esprito de Hegel formada por Edmund Husserl

    uma identificao com a noo de tempo e lugar do milenar fenomenismo

    japons (MORENO, 2012, p. 97) Nos parece, portanto, que a forma como pensamos e nos relacionamos com o mundo talvez caminhe em direo um verdadeiro primitivo do futuro, como sugere Rene Berger em seu artigo Tornar-se os primitivos do futuro?. A superao de um cienciacentrismo e a valorizao crescente de saberes intuitivos, organicistas e msticos, confirmada pela relevncia que a fenomenologia alcanou, aproxima produes filosficas e correntes de pensamento no Ocidente e Oriente. O futuro, portanto, parece perceber que nos conectamos a tudo atravs de fibras ticas e sinais de satlites, e tambm atravs de uma rede que habita todo o espao, tornando o vazio, assim, dinmico e polivalente. O caminho que a arte e a filosofia trilham nos trazem hoje para uma outra percepo do mundo, como um todo. Ao invs de posicion-lo diante de ns, o que a noo de ma e a fenomenologia nos sugerem que tomemos o mundo como algo que nos cerca, que feito da mesma matria que tambm nos compe. Somos ao mesmo tempo, tambm, natureza. Na contemporaneidade nos desvencilhamos da noo que distinguia to claramente fundo e figura, real e sagrado, fsico ou transcendental e nos aproximamos de ideias milenares j sugeridas pelo xintosmo. A compreenso dessa rede proposta pela fenomenologia e por filosofias orientais nos direciona para um melhor entendimento do mundo hoje, habitado tambm pela tecnologia e complexas redes fsicas e virtuais que colocam todo o mundo em constante contato. Augustin Berque, pesquisador especializado nas noes orientais de espao-tempo aponta, a partir da noo de fdo:

  • 19

    Fdo9 a relao estabelecida entre a sociedade, o espao e a natureza,

    um entre-lugar formado por um completo eco-tecno-simblico, que

    transforma o corpo humano animal em medial, onde o homem, juntamente

    com a sociedade, cultura e espao, constri uma identidade prpria do

    lugar (Berque apud Okano, 2012, p.67). Talvez essa desacelerao, promovida por um tomar conscincia do mundo que sugerem a fenomenologia e a noo de ma nos auxilie no entendimento da coexistncia (e eventuais fuses) entre seres e tecnologias, nos direcione para uma verdadeira apreenso do momento que atravessamos. Talvez estudos que privilegiam a vivncia e no conceituaes sejam capazes de abraar de forma mais efetiva a dinmica fluida e mvel da contemporaneidade. O que significaria, ento, esta noo de ma hoje no espao-tempo que ocupamos? 2.2 Ma e Interatividade Deixe-me comear com uma afirmao simples: interatividade a atividade do

    entre, o que est entre.10 (OOSTERLING, 2005, p. 1). assim que o pesquisador holands Henk Oosterling inicia um de seus artigos sobre a noo de ma; Ma or Sensing Time-Space. A constatao de Oosterling apesar de to simples nos traz algo muito essencial do pensar a interatividade. Inter-atividade a atividade que se d entre, cuja ao ou reao ocorre reciprocamente, entre duas ou mais coisas, e envolve um pedido ou uma resposta (inputs e outputs). Tomamos a interatividade aqui, portanto, como uma atividade entre dois organismos ou duas estruturas onde h 9 Do japons, significa literalmente vento + terra e seu conceito foi inicialmente apresentado por Watsuji Tetsuro em 1935 em estudo sobre relaes entre seres humanos e condies climato-geogrficas. 10 Traduo pela autora deste texto para o portugus. Do original: Let me start with a very simple statement: interactivity is the activity of the inter, of the in between. (OOSTERLING, 2005)

  • 20

    dilogo ou troca de informaes e no se d exclusivamente quando tratadas relaes entre organismos e meios digitais ou eletrnicos. O interesse tratar de objetos programados e no-programados que possam promover a noo de interao e dilogo, que possa alterar o curso de uma relao, sendo este resultado tomado como forma de output no digital. A noo de zona ntima ou ainda (e que nos parece mais interessante) zona de intervalo sugerida por Diana Domingues serve de incio para releituras e outras compreenses deste espao entre dois que carrega, alm da matria fsica que o compe, fluxos contnuos de comunicao. (...) com as diferentes modalidades de arte interativa, o artista precisa

    gerar zonas intimas entre o corpo e as tecnologias, num intervalo que

    soma condies sinestticas para o corpo, em estados de conectividade

    com sistemas complexos. Eu chamo essas zonas de zonas elpticas

    (Domingues, 1999) ou zonas de intervalo entre o real e o virtual, onde

    vivenciamos alguma coisa que somente pode acontecer quando estamos

    conectados s tecnologias. (DOMINGUES, 2002, p. 31) Usamos o termo zona intervalar para tratar dessa zona de intervalo, porm, deslocando-a de uma definio to conectada s tecnologias e sistemas eletrnicos ou digitais para um campo ampliado. A noo do espao entre possveis interlocutores que adotamos sugere mais um espao de potenciais comunicaes. Para a cultura oriental, essa zona intervalar carrega muito do que constri seus interlocutores. A pr-condio que Diana Domingues coloca para que uma zona elptica possa se manifestar se aproxima em muito do que estudiosos do espao-intervalar oriental tambm apresentam quando pensamos em relaes alm tecnologia. Sobre o espao vazio, De Kerckhove sugere: ... para os japoneses, espao um fluxo continuo, vivo com interaes e

    regrado por um senso preciso de tempo e ritmo. O nome disto ma. Ma a

    palavra japonesa para espao, ou espao-tempo, mas no corresponde a

    nossa idia de espao. A principal diferena que quando dizemos espao

    implicamos espao delimitado ou reas vazias. Para os japoneses, ma

  • 21

    denota uma rede complexa de relaes entre pessoas e objetos. (1997, p. 225) A artista miditica Naoko Tosa, em seu artigo Expresso de Emoo, Inconscincia e Tecnologia, discorre tambm sobre aproximaes entre a interatividade e a comunicao; Acredito que a arte interativa um tipo de componente que proporciona

    uma certa identificao com as comunicaes. Pode ser considerada uma

    espcie de interface entre emoo e identificao. Ela nos familiar e da

    forma a agentes ou personagens que podem estabelecer comunicaes

    sensveis. Alm disso, age sobre nossos estados mentais e expresses

    emocionais, em nosso carter e inteligncia, o que significa que uma

    pessoa pode tambm autocriar sua personalidade. (2003, pg. 1) O que nos interessa aqui exatamente a possibilidade de se pensar essas zonas interativas como zonas comunicacionais que promovam relaes sensveis. Da mesma forma que o ma, necessitam de foras em dilogo para se manifestarem e se tornarem potentes. Poderamos ento pensar estas zonas intervalares, tanto na presena quanto ausncia da tecnologia e eletrnica, como uma manifestao contempornea do ma? Quais poderiam ser os resultados de se aplicar este pensamento no processo criativo hoje? 2.3 Ma-Psicotecnolgico O termo Ma-Psicotecnolgico sugerido por Derrick de Kerckhove e traz uma noo atualizada do ma. Inicialmente, necessrio apontar como o terico pensa esta noo hoje. Em introduo ao assunto, ele sugere o termo ma psicotecnolgico para tratar de uma situao contempornea para o pensamento, apresentado abaixo:

  • 22

    Inventei o termo psicotecnologias, baseado no modelo de biotecnologia,

    para definir qualquer tecnologia que emula, estende ou amplifica o poder

    das nossas mentes. Por exemplo, enquanto a televiso geralmente vista

    apenas como um difusor unilateral de materiais audiovisuais, podia ser

    til para os psicologos verem-na como uma extenso dos nossos olhos e

    ouvidos ate aos locais de produo das imagens. (DE KERCKHOVE ,1997,

    p. 34) O trabalho do autor traz interessantes possveis caminhos para a sociedade contempornea como se organiza hoje e aponta questes que parecem ser de relevncia estrutural em como lidamos com o que nos cerca. Nos captulos iniciais de seu livro A Pele da Cultura, a acelerao apontada como fator alterador das estruturas conectivas. J a noo de ma parece resgatar algo de primordial no estabelecimento dessas relaes. O intervalo carrega consigo tambm a noo de contemplao. Seria ento o ma uma alternativa desacelerante e reestabelecedora de conexes? 2.4 Desaceleraes e por desacelerao que a matria se atualiza, como tambm o pensamento cientfico, capaz de penetr-la por proposies. (DELEUZE e GUATARRI, p. 154) Toda a velocidade associada, na produo contempornea e em especial na ltima dcada parece nos estar direcionando cada vez mais para um campo estritamente comercial, em todas as esferas. Bernard Stiegler, filsofo francs, nos aponta esse caminho ao capitalismo que permeia todos os meios e processos como uma forma de eliminar consistncias, de forma que a essncia das coisas, sem prprio tempo e sua consistncia pode ser perdida;

  • 23

    O capitalismo cultural , ento, aquilo que tende a eliminar a

    consistncia, a incalculabilidade, a no imanncia na imanncia mesma, e

    que constitui seu motivo, isto , sua dinmica, sua processualidade e sua

    temporalidade, sua abertura e o que Deleuze chama de plano de

    consistncia. (STIEGLER, 2007, p. 22) O que proposto aqui, com a associao do termo ma produo criativa em vestimentas, a evocao de aspectos presentes em sua origem como fatores para uma desacelerao do tempo no qual operamos, e assim, promover a possibilidade de um estado de contemplao11. De Kerckhove problematiza essa desenfreada busca pelo novo no design: Momentos de acelerao, crescimento sbito ou intensificao podem

    afetar uma ou todas as caractersticas de um design. Podem estilhaar ou

    transformar toda a estrutura. Alm de alterar o seu ritmo bsico de

    operao, um efeito da acelerao cortar as ligaes entre as varias

    partes de uma organizao, desmantelando-a assim no tempo e no

    espao (1997, p.105) Pelos problemas elucidados pelo autor e aproximando a discusso do campo da indumentria, entendemos que esta rede complexa de interaes entre indivduos e objetos vestveis seria interrompida, impossibilitando, logo, a manifestao ou a apreenso do ma bem como sua latncia. Ainda em De Kerckhove (Ibid. pg. 227), apesar de em outro contexto, proposta interessante complementao esta problemtica: () o conceito japons de ma tem muito a oferecer ao Japo moderno e

    ao mundo como um todo. Ma a quintessencia de um certo aspecto da

    civilizao humana global. Ao compreender e, especialmente ao perceber o

    11 Importante apontar que a contemplao a qual referimos no trata de um retorno ao modo contemplativo e de certa maneira distanciado da obra, na fruio da arte, que precedeu as formas participativas e de interao contemporneas entre observador e obra. A contemplao, aqui, como resultado da desacelarao no tempo das relaes, contribuiria, na verdade, para um estreitamento dos demais agentes desse sistema potico e para o adensamento de suas zonas interativas.

  • 24

    ma, designers e planejadores poderiam comear a recuperar as dimenses

    e propores humanas agora perdidas () Segundo uma perspectiva do ma, e compreendendo a necessidade dessas ligaes, propomos que roupa e corpo sejam tomados como um conjunto contnuo em conexo com tudo que se relacionam. Algo que, a partir das relaes (sejam elas tteis, estticas ou afetivas) completa e funciona como contribuinte na formao da individuao12 do corpo. Ou seja, da mesma forma que o corpo imprime no que veste (e no que percebe como vestido ou vestvel) desejos, sentimentos e sensaes, as peas txteis seriam capazes de nutrir em seu usurio, seu meio e demais atores dessa rede complexa, inputs responsveis pela construo do ser como indivduo singular. O termo input utilizado aqui pela crena na relevncia do espao que os wearables (peas tecnolgicas de vesturio) vem tomando e a necessidade de se pensar o lugar que viro a ocupar num futuro prximo, no contexto da discusso apontada por esta comunicao. O homem convive (e vale ressaltar que o verbo conviver implica, acima de tudo, a vida) hoje, tambm, com estes seres digitais, com os quais estabelece dilogos cada vez mais ntimos. Vem sendo percebido o crescimento, em via paralela, de uma necessidade mais intensa de recuperao do uma noo clara sobre aquilo que nos faz vivos. O que leva a crer portanto, que, para alm do ma na indumentria, para alm desse espao dinmico que estabelecido com as mquinas, se torna relevante a busca por um intervalo para pensar um vestir mais aproximado ao humano, em sua essncia. Ren Berger, em artigo presente no livro Arte e vida no sculo XXI de Diana Domingues, Tornar-se os Primitivos do Futuro? tambm sugere essa urgncia em voltarmos para nossa essncia e recuperarmos aspectos j dissolvidos no tempo, possibilitado talvez pela prtica criativa; Os primitivos do futuro so, pois, aqueles que, dotados dessa intuio e

    dos meios dos quais dispomos hoje, a desdobram, alm das reas limitada 12 a conceituao do termo individuao aqui apropriada das teorias de Gilbert Simondon, em A Gnese do Indivduo

  • 25

    que conhecemos na histria, a todo o planeta, que se tornou Terra-Ptria

    (...). Tornar-se (os primitivos do futuro), por que nos pedido no

    prolongar um estado de fato, mas construir uma nova relao com os

    outros e com ns mesmos, que inclui o mundo como o mundo nos inclui e

    para o que somente a criatividade pode nos conduzir (BERGER, in Domingues, 2003, p. 43/44) Tanto as observaes de Berger quanto de De Kerckhove apontam interessantes pontos que situam a noo de ma de um cenrio contemporneo, habitado por organismos tecnolgicos, pela virtualidade expandida e por corpos que se unem a estas novas tecnologias amplificando seus sentidos. Apontam tambm uma crescente necessidade de se retornar ao que nos essencial, a partir de uma permisso de pausa, de se compreender a velocidade de cada processo. Poderia o pensamento do intervalo, e sua apropriao atravs de uma metodologia, auxiliar na promoo de processos criativos e poticos?

  • 26

    3. Argumentaes Sobre o Vestir (em desenvolvimento) Nesta seo sero apresentadas argumentaes sobre uma necessidade de se lanar em propostas baseadas em investigaes poticas, partindo de uma anlise de produo no cenrio criativo e acadmico em intersees das artes visuais e do design de moda e, mais especificamente, do desenvolvimento particular da autora deste texto frente a esta configurao. Objetos vestveis so entendidos aqui como matria vibrante, termo sugerido por Jane Bennett em Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. A viso da autora nos permite pens-los como objetos com os quais podemos interagir, capazes de travar dilogos e, o que mais nos interessa aqui, alterar o nosso curso, nos atualizar por um contato contagiado por essa conscincia do intervalo. Esta concepo de matria vibrante ser problematizada e discutida tambm em considerao a outras concepes como a de affordance de James J. Gibson e suas problematizaes por Donald Norman.

  • 27

    4. Investigao Potica: Como Vestir o Intervalo Ma uma unidade de composio do espao habitvel (espao-tempo) e intervalo vazio (porm dinmico) entre duas estruturas. E se de alguma ou muitas formas habitamos o que vestimos, inevitvel relevar este espao ntimo e particular de trocas incessantes como manifestao de um ma capaz de nos preencher, por proximidade, afinidades, sutilezas e contemplao. Vejo o ma na indumentria como um entre-espao latente e dinmico, onde diversos nveis de comunicao e interao entre usurio e vestimenta podem ser estabelecidos. Movida pelo desejo de compreender e poder perceber essa latncia, uma srie de exerccios foi desenvolvida. O projeto transpe a conceituao deste intervalo para a contemporaneidade e o associa a prticas poticas possibilitando novas interfaces e zonas de interao. Em culturas orientais que carregam em sua gentica esta compreenso ou em culturas ocidentais, hoje, seria este um outro ma? 4.1 Entre-Espao Perceive not the objects but the distance between them not the sounds but the p a u s e s they leave unfilled13 (ISOZAKI, 1989) 13 Texto presente no video de Iimura, original mantido para preservao de sentido. Traduo para o portugues (pela presente autora): Perceber no os objetos | Mas a ditncia | entre eles | no os sons | mas as p a u s a s | que deixam sem preencher.

  • 28

    Figura 1 . Instalao Entre-Espao. Foto: Julia Valle Apresentado no Hessel Museum em Annandale-on-Hudson e desenvolvido especificamente para o espao da galeria do museu, o trabalho entre-espaos foi o primeiro exerccio produzido sobre o tema da pesquisa. Duas cortinas em tecidos de opacidade e peso diferentes foram projetadas e construdas para promover a noo de experienciao do tempo-espao. Posicionadas ao longo de duas galerias, os objetos txteis alteram o percurso tomado pelos visitantes, deslocando-os para espaos especficos e amplificando uma noo/percepo de ser/estar no espao.

  • 29

    A primeira cortina, em algodo encerado pesado, de gramatura 215g/m, intenciona uma prolongao da parede logo na entrada do museu, e uma reduo da rea de passagem. A segunda, em algodo leve (98g/m) exige um desvio no percurso, e tenciona uma relao de ateno ao receber plantas como suportes para sua sustentao. A tcnica utilizada para modelagem das cortinas foi a moulage. Atravs desta tcnica a construo do objeto se d diretamente no corpo a ser vestido, ou seja, o processo acontece in loco e no distancia, em uma mesa de modelagem se fazendo valer de instrumentos de medio e possibilitando a reproduo das mesmas no futuro a partir de um molde matriz. A opo por esta forma de modelar sugere uma outra relao com o espao; ele tomado como nico, que demanda um volume tambm nico e que abrigar da melhor forma o contedo intencionado. A reproduo se torna invivel. Cada vez que o tecido erguido para ser modelado ele ser cortado de uma maneira diferente. Similar talvez, mas impossivelmente idntico. Inserido em proposta curatorial que valorizava o desenvolvimento da exposio ao longo do tempo, as alteraes promovidas no tecido pela ao gravitacional foram intencionais, apesar de no precisamente previstas. A insero de objetos normalmente relacionados decorao de uma residncia (cortinas, vasos de planta, cadeiras) no espao da galeria/museu fez parte do projeto curatorial da exposio, integrante da mostra de aquisio de grau de Mestre em Curadoria do Centre for Curatorial Studies no Bard College. Ao invs de trabalhos de arte, Unless Otherwise Noted cura trs

    estratgias curatoriais conversaes, a incluso de plantas no espao

    expositivo, e seleo algortmica. Cada uma dessas estratgias altera a

    percepo que normalmente carregamos ao observar e classificar

    trabalhos de arte, bem como testa as habilidades de um trabalho se

    relacionar com outro. O foco geral do projeto esta na interveno

    curatorial permanente, que enfatiza o carter no fixo do espao

    expositivo, com significado sempre contingente. Aqui, conversaes,

  • 30

    plantas, e um algortimo envolvem uma manuteno curatorial

    constante como materiais curatoriais. (NORONHA, 2013) As peas ali instaladas, portanto, atuavam tanto como obras a serem experienciadas quanto como cenrio ou interveno no espao expositivo.

    Figura 2 . Instalao Entre-Espao . Foto: Julia Valle O resultado trouxe interessantes percepes acerca da similaridade das formas do tecido com as cermicas que eram retratadas em vdeo de Ivana Kralickova e Mrcia Dauliute e tambm no trabalho de Falke Pisano.

  • 31

    4.2 Jardim instalao | malha de algodo termosensivel, arduino, cabos 2,5mm, caixas em madeira, galho, pedras, fio metlico | 2013 | Brasil b r e a t h e swallow this garden let it swallow you become one with it14 (IIMURA, 1989) A sugesto de Iimura em seu vdeo sobre a noo de tempo e espao no jardim do templo shintoista de Ryoan-Ji serve tambm a Jardim; promover a integrao plena entre interator/usurio e objeto central desta instalao. Se tornar um com aquilo que observa. Segundo exerccio produzido como reflexo-prtica sobre a pesquisa em torno do termo ma, Jardim prope construir com o usurio uma espacialidade comunicativa (uma zona de intervalo(Domingues, 2002)) a partir de interao e foi apresentado na exposio Espectros Contemporneos sob a curadoria de Guto Nbrega e Malu Fragoso, no SESC Nova Friburgo. Neste projeto, processos que envolvem eletrnica e tecnologia so aplicados indumentria. Consiste em uma pea central (vestido) confeccionado em algodo termosensvel15, circuito acionado via programao em arduino, ventiladores, bordado em metal e algodo, cabos diversos para transmisso de energia, galho e pedras. 14 Texto de Arata Isozaki presente no video de Iimura, original mantido para preservao de sentido. Traduo para o portugues (pela presente autora): r e s p i r e | engula este jardim | deixe ele te engolir | se torne um com ele. 15 Tecido 100% algodo com pigmentao termosensvel, em cor cinza. Quando em contato com superfcies aquecidas (a partir de 38C) tem sua cor alterada para branco. Foi percebido, no entanto, que o tecido apresenta pequena resistncia ao calor se comparado a demais tecidos em algodo, tornando suas fibras quebradias e modificando a colorao quando em contato por tempo estendido a temperaturas superiores a 60C.

  • 32

    Figura 3 . Instalao Jardim . Foto: Edgard Oliva A visualidade do trabalho (o galho, o algodo, as pedras) responsvel por sua nomeao, e contribui na construo da imagem do objeto como em condies de comunicar com o interator, como algo vivo. Essa vivacidade acionada, a meu ver, especialmente pela presena de elementos naturais no trabalho (galho e pedras) e pela pea de roupa, que estabelece uma conexo direta com a forma humana. Sobre as pedras, em tonalidade cinza, flutua uma pea em algodo em cor similar. A forma rgida mineral funciona quase como um espelho planificado

  • 33

    (ou repousado) do volume fluido da pea em algodo. Teriam as pedras gerado uma forma mais flexvel para se manifestar? A inteno inicial era de que a pea ganhasse movimento em ambiente de silncio, resultado do acionamento dos 4 ventiladores da instalao, revelando-a como objeto vivo. A potncia dos ventiladores, por serem acionados por uma voltagem baixa, no foi capaz de produzir vento suficiente para movimentar o tecido. Apesar de auxiliarem na ambientao da instalao, as caixas contriburam tambm para uma visualidade menos orgnica. Este problema operacional e visual, na percepo da autora, no afetou o resultado final do trabalho, no entanto, na tentativa de se obter um resultado com menor complexidade, os ventiladores foram eliminados em sua segunda montagem. A presena humana percebida pela instalao a partir do som (estalar de dedos, conversas, sopros) que gera, acionando a emisso de energia para um bordado metlico construdo no interior da pea. O calor produzido pela energia que atravessa o fio metlico em contato com a fibra altera sua cor de cinza para branco, revelando um espelho do bordado interno no exterior da pea e tambm outros bordados16 na superfcie do tecido, executados com linha de algodo, na mesma cor do tecido (por semelhana de cor, brilho e textura, os bordados s se tornam visveis com a alterao da cor do tecido base). Nessa experincia, o olhar do interator se torna polissensvel, uma vez que a viso se constri de sua sensibilidade somada audio e sensaes tteis provocadas pelo vento. A interao, portanto, tomada aqui como o principal motor, o verdadeiro ativador deste espao-intervalar do qual necessitam as interaes para se revelarem (na forma de um espelho externo do bordado) no sistema do projeto. Sobre a relao da sensao do espao com as sombras e a presena do metal nos artefatos japoneses, o escritor e poeta japons Junichiro Tanizaki faz 16 Os bordados representam reas geogrficas de espaos entre os quais freqentemente me desloco. Executados em ponto cruz, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, em bordado metlico visvel a partir da interao, Funilndia.

  • 34

    interessante colocao: (...) trabalhos em maki-e17 foram feitos para ser contemplados no escuro, e a mesma lgica est por trs do prdigo emprego de fios de ouro em tecidos antigos. No caso do bordado em fio metlico em jardim, a escurido vai alm do ambiente em torno da pea. Construdo em seu interior (tendo apenas o reflexo de seu calor expresso no exterior), o bordado ganha tambm sombra para sua existncia e expresso.

    Figura 4 . Detalhe Instalao Jardim . Foto: Brbara Castro O tecido termosensvel tomado aqui como possibilidade de estreitamento da relao entre usurio e objeto vestvel. Se o calor do prprio corpo de quem usa (ou no caso da instalao, de quem interage) capaz de alterar a superfcie do tecido em questo, de certa forma o usurio passa a fazer parte do objeto e vice versa. Para se tornar vivo, portanto, a interao com o corpo necessria. Diana Domingues esclarece as situaes interativas em sistemas de arte e tecnologia; 17 maki-e se refere as pinturas em ouro, prata ou bronze utilizadas sob as lacas de objetos orientais.

  • 35

    (...) no mais o objeto que centraliza sua potica, mas um campo de

    relao que se faz em estados de imprevisibilidades, de regeneraes do

    que ocorre entre o corpo e as tecnologias. Ou seja, deve ser programado o

    que vai acontecer na zona de intervalo (Domingues, 1997) e que no

    poderia existir sem a presena e ao do corpo e das tecnologias com as

    quais se esta interagindo. O sistema sozinho no tem vida e precisa do

    corpo para provoc-lo. O corpo, por sua vez, somente experimenta

    respostas do ambiente se agir com o sistema As experimentaes com tecidos termo-sensveis e interativos, iniciados aqui com este exerccio, parecem configurar amplo campo de pesquisa, que mais tarde se desdobram em ainda outras investigaes. 4.3 ceu vdeo | 149 | COR | 2013 | Brasil

    A primeira pergunta que acomete quem pesquisa o Ma como lidar com algo que resiste a ser algo, existindo apenas como possibilidade. Quando o Ma finalmente

    ganha existncia (e pode ser percebido) j passa a existir de outro modo, nunca

    como coisa, mas como ao. Uma ao do espao, uma ao do tempo que provoca

    novas conexes signicas. O Ma caracteriza-se assim como uma especie de

    resitencia inata para ser nome e coisa, e como uma aptidao infinita para a ao. (Cristine Greiner, prefcio OKANO, 2012 p. 7) O vdeo ceu d continuidade as pesquisas com tecidos termo-sensveis e, com leveza, prope a criao de cus pela artista em interao com uma tela emoldurada. Na resistncia de ser, nuvens surgem e desaparecem dentro do espao delimitado pela moldura. A tela se torna ento espao de possibilidades. Possibilidades estas que s podero vir a se transformar em algo (imagem) pela interao de outras foras vivas em conjunto com ela. O mesmo tecido utilizado na confeco do vestido em jardim utilizado aqui como tela, fixado em uma moldura antiga em madeira pintada de branco. Ao ser

  • 36

    assoprada por detrs, o tecido cinza se torna branco em formas que remetem nuvens. O vdeo, com durao de 149, uma srie de desenhos feitos na tela a com sopros e baforadas. Alguns segundos aps o aparecimento da nuvem, o tecido retoma a temperatura ambiente e, por conseguinte, sua cor original e abre espao para o surgimento de uma nova mancha clara. A percepo de que as nuvens esto sendo geradas por sopros se d pelo o udio, que gravado durante a execuo do trabalho. A leitura do titulo ceu permite duas pronncias; cu e seu. A inteno com essa dualidade de significados sugerir a possibilidade de se criar um cu a partir da matria que compe seu corpo; o sopro que se transforma em nuvem, seu cu. Percebo este trabalho como algo que, da mesma forma que as plurais noes de um intervalo potico, do ma, se encontra entre estados, entre virtual e real, entre visvel e invisvel.

    Figura 5 . Stills vdeo ceu . Imagem: Julia Valle Os stills apresentados aqui mostram momentos do vdeo. Na primeira imagem, a tela completamente cinza, ainda sem receber interao, e nas imagens seguintes, algumas das

  • 37

    paisagens produzidas, cada uma por um sopro somado a um movimento e intensidade diferentes. Em proposta de instalao, o observador convidado tambm a soprar sua prpria nuvem atravs de telas dispostas no espao, plurificando essas zonas comunicativas e tornando visveis as nuvens feitas de cada um. 4.4 For What is Worth desenhos | 100x120cm | roupa, acrlico, fios de ao | 2013 | Brasil

    Figura 6 . Desenho da Srie For What is Worth . Foto: Julia Valle

  • 38

    Motivada por desastres em fbricas de tecido em Bangladesh18 durante o ano de 2013, a srie For What is Worth19 traz peas de roupa compradas em marcas fast-fashion20 recortadas, formando desenhos (os vestgios da roupa como traos/linhas) prensados entre duas placas de acrlico de 100x120cm. A estrutura final suspendida por cabos de ao fixados no teto. O mundo ocidental hoje, ocupado por marcas como H&M, Zara, Primark, GAP, C&A, dentre tantas outras, altera no somente nossa percepo de moda mas tambm nosso comportamento de consumo e a forma com que nos relacionamos com aquilo que vestimos. Em anlise superficial, o grau de conexo entre qualquer usurio de uma pea fast-fashion e o profissional de costura que executou o fechamento da pea to estreito quanto aquele entre um usurio de pea de segunda-mo e seu antigo dono. O que o projeto intenciona levantar esta questo, de quanto e como nos conectamos a esta cadeia produtiva, e como nos comunicamos a todos os componentes integrantes dela. Na primeiridade da imagem, o que vemos no uma pea de roupa. Ela no representa com fidelidade aquilo que tomamos como veste; algo que abriga, protege, algo da essncia do vestir; envolver o corpo em tecido. A imagem da roupa vem apenas em um segundo instante de contato, e a semelhana faz com que o observador tente preencher os espaos vazios com tecido que falta. A possibilidade de preenchimento, no entanto, eliminada pela prensagem do desenho feito pelos restos da pea entre duas lminas de acrlico. O efeito gerado pela suspenso do sanduche de laminas transparentes traz ainda outro desenho; 18 Bangladesh teve o que podemos colocar como o maior desastre na indstria textil da historia em abril de 2013. Mais de 1126 trabalhadores da fabrica Rhana morreram e cerca de 1500 ficaram feridos. O acidente, antecedido e seguido por diversos incndios em outras confeces pelo pas, foi o propulsor de muitos movimentos sociais que reividicaram uma legislao internacional nos acordos entre contratantes e contratados. 19 Traduo para o que vale a pena ou o que importa 20 Denominao atribuda roupas desenhadas e manufaturadas de forma rpida para permitir que a grande populao consumidora possa acompanhar as tendncias de moda apresentadas nas passarelas por um preo acessvel. Marcas como H&M, Zara, TopShop, Primark, C&A, Renner, Riachuelo, Marisa, dentre outras, comercializam peas fast-fashion.

  • 39

    aquele projetado na parede, resultado da sombra produzida pela luz que incide na pea. A sombra projeo do trabalho dos profissionais, nas fbricas em Bangladesh, China, Turquia, Brasil.

    Figura 7 . Desenho da Srie For What is Worth . Foto: Julia Valle O que nos conecta com essas imagens, ento, mais que a forma que compartilham o desenho e o nosso guarda-roupa. Alm do vazio literal, a sensao de vazio promovida pela extrao do tecido que no recebeu costuro talvez aquilo que nos toca mais profundamente. O que resta quando essas peas, desenhadas para durar no mais que alguns meses, so descartadas por questes de obsolescncia funcional, estilstica ou perceptiva? O projeto portanto pretende transferir o foco meramente plstico e superficial em torno da produo e consumo de moda para questes sociais e polticas que ele levanta. Qual a nossa responsabilidade nesta cadeia? At onde nosso comportamento auxilia na manuteno de sistemas produtivos exploratrios?

  • 40

    Como produzir vestimentas sem promover o rompimento de sua estrutura fundamental? A noo de intervalo aqui, promovido pelo vazio nas peas e no espao entre a estrutura suspensa e sua projeo na parede, intenciona promover uma zona intervalar de dilogo e troca de experincias. A obra, constantemente atualizada pelas experincias projetadas nela do observador, empresta tambm as informaes que carrega para aquele que a observa. O que a srie provoca, ento, no o ma simplesmente na sua experincia visual, mas especialmente nos seus processos motivadores e no output que intenciona produzir para o pblico; um momento de pausa e de ampliao das conexes que estabelece com o mundo no qual divide experincias. 4.5 Mina joias | 43x27x6cm | caixa em mdf, pedras, folha de ouro 18k, nylon, vidro | 2013 | Brasil

  • 41

    Figura 8 . Objetos e detalhes Mina . Foto: Julia Valle Mina uma coleo de objetos/joias. Aqui, caixas de madeira so preenchidas por pedras (brita, pedra rolada, p de pedra). Uma pedra retirada de cada caixa, perfurada e banhada a ouro e atravessada por um fio de nylon a fim de ser transformada em colar. O objeto final transita entre sentidos, apesar de ser uma s matria mineral, pedra de baixssimo valor de mercado e ainda tambm metal dos mais valiosos. A brita que ganha banho de ouro parece no ser uma coisa nem outra, se perde nas significaes e joga com a percepo de quem observa. Ela parece encontrar-se nessa zona intermediria onde pluralidades de significaes e dualidades so bem vindas. Nesse intervalo a fora e brutalidade dos metais se fragilizam e ganham leveza como uma pea suspensa em colar e cria espao para pausas e ponderaes.

  • 42

    Concluso Apesar de fundamentada em momento histrico to distante no tempo e no espao, a noo de ma carrega muito das reflexes de tericos e pesquisadores contemporneos. Resgat-la para uma aproximao com as artes visuais, e em especial, Moda, nos parece essencial para reorganizar uma estrutura de processos e produes. Esta pesquisa v a insero do intervalo no processo criativo como algo que pode no somente transformar todo o processo criativo e de produo em algo mais conectado s nossas essncias mas tambm capaz promover um fluxo criativo mais intenso e amplificado. A integrao dos sentidos, o reconhecer o valor do tempo e a conscincia da necessidade da pausa, trabalham como potencializadores do organismo criativo e apontam para formas de se relacionar com o mundo e, no caso especfico de nosso objeto de pesquisa, com o que vestimos sobre ns.

  • 43

    Referncias Referncias Bibliogrficas BARNARD, Malcom. Fashion Theory: A reader. New York: Routledge, 2007 BARTHES, Roland. O Sistema da Moda. So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1979 ________________. The Language of Fashion. Oxford: Berg, 2006. _______________. O Imprio dos Signos . So Paulo: Martins Fontes, 2007. DE KERCKHOVE, Derreck. The Skin of Culture. Investigating the New Electronic Reality Londres: Kogan Page, 1997 DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Felix. O que a Filosofia? So Paulo: Editora 34, 1992. DOMINGUES, Diana . Criao e Interatividade na Ciberarte . So Paulo: Experimento 2002. _________________ (org.) Arte e vida no sculo XXI: tecnologia, cincia e criatividade So Paulo: Editora UNESP 2003 _________________ (org.) A Arte no sculo XXI: a humanizao das tecnologias - So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1997 DUMITRESCU, Delia. Relational Textiles: Surface Expressions in Space and Design. Gothenburg: University of Bors Press, 2013. ENGLISH, Bonnie. Japanese Fashion Designers: The work of Issey Miyake, Yohji Yamamoto and Rei Kawakubo. Oxford: Berg, 2011

  • 44

    ENTWISTLE, J. The Fashioned Body, Fashion, Dress and Modern Social Theory. Cambridge, Mass.: Polity Press, 2000. HOLL, Steven. The Parallax, New York, Princeton ARchitectural Press, 2000. ISOZAKI, Arata. Espace Temps Du Japon. Paris: Musee des Arts Decoratif, 1978. _____________ . Japan-ness in Architecture. Cambridge: MIT Press, 2011. KUNST, Bojana. Body and Space, Ljubljana: MASKA 13, 1995 MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Esprito. So Paulo: Cosac & Naify, 2011 NIETSCHKE, Gunther. MA. Place, space, void. Kyoto: Kyoto Journal #8, 2009 OKANO, Michiko. MA: Entre-Espao na Comunicao e na Arte. So Paulo: Ana Blume, 2013 OOSTERLING, Henk. Ma or sensing time-space. Towards a culture of the inter. Berlin: Transmediale.05 BASICS, 2005 PALLASMAA, Juhani. The Eyes of the Skin: Architecture and the Senses. New York: John Wiley, 2005 PLAZA, Julio. Arte e Interatividade: Autor-Obra-Recepo. Revista de Ps-Graduao, CPG, Instituto de Artes, Unicamp: 2000 SIMONDON, Gilbert. in Cadernos de Subjetividade: O reencantamento do Concreto. A Gnese do Indivduo. So Paulo: Editora HUCITEC, 2003 STIEGLER, Bernard. Reflexes (no) contemporneas. Chapec: Editora Argos, 2007. TANIZAKI, Junichiro. Em Louvor da Sombra. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. GIBSON, James J. The Ecological Approach to Visual Perception. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1979. NORMAN, Donald A. The Design of Everyday Things. New York: Doubleday, 1988.

  • 45

    Referncias de Filmes MA: SPACE/TIME IN THE GARDEN OF RYOAN-JI. Direo/Roteiro: Takahiko Iimura. Texto: Arata Isozaki. Musica: Takehisa Kosugi. Kyoto1989, 16mm, Color, 16min. Sound). MA (INTERVALS). Direo/Roteiro/Edio: Takahiko Iimura. Kyoto, 1977. 16mm, B&W & Color, 10min.(Auto Play), 22min.(Single Play) ZEN GRTEN: Erleuchtung in Stein. Direo/Roteiro: Viktor Stauder. Edio: Armin Riegel . Berlim, 2012. 43min. Referncias de Websites Lux . Artists Moving Image (http://lux.org.uk/shop/products/dvds/takahiko-iimura-ma-japanese-concept)- consultado em 26 de Janeiro as 17.57 Marina Noronha . (http://marinanoronha.com/curating/unless-otherwise-noted/) consultado em 28 de Janeiro as 10.55