compreensão e responsabilidade: uma digressão pela criminologia de maria joão barata

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  • 7/21/2019 Compreenso e Responsabilidade: Uma Digresso pela Criminologia de Maria Joo Barata

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    !"#$%&'()$*nmero 6. pp. 9-38. do Autor 2004

    Neste artigo, farei uma reviso crtica das principais abordagens te-ricas da criminologia, com especial destaque para as teorias de pen-

    dor sociolgico. Estas abordagens so muito diversificadas e eclticase no existe um critrio consensual para as classificar e arrumar.Aqui, vou preocupar-me mais em documentar a sua diversidade his-trica e crtica do que estabelecer um princpio classificativo eorganizador, juntando abordagens definidas por critrios diferencia-dos: escolas, conceitos tericos, temas e inclinaes polticas. As-sim, sero tratadas as teorias individualistas que fundaram acriminologia, a viragem para a abordagem social do crime, a Escolade Chicago, a teoria da anomia, as teorias das subculturas delinquen-tes e criminais, a teoria da rotulagem, as criminologias radical e crti-

    ca, o realismo de esquerda, a criminologia pacifista, as abordagensfeministas e as contemporneas teorias individualistas e situacionais.Como se ver, este trajecto terico representa o sucessivo desdobra-mento de mltiplos factores explicativos de vrio tipo biolgico,psicolgico, social, cultural e econmico atestando o conceito con-sagrado de Marcel Mauss (1982) de que qualquer fenmeno social ,sempre, um fenmeno social total.

    Para cada uma destas abordagens procurarei realar os aspectosque me parecem constituir as suas principais premissas, aquisies

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    Maria Joo BarataMaria Joo BarataMaria Joo BarataMaria Joo BarataMaria Joo Barata

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    e pontos crticos. Nalguns casos, irei deter-me de forma mais deta-lhada num ou noutro autor, conceito ou pesquisa, com o objectivo de

    tornar mais clara a abordagem em causa. Dado tratar-se apenas deum artigo e sobre um campo com uma vasta produo terica eemprica, muitos autores e conceitos pertinentes ficaro de fora. Paraalm disso, tambm no darei um destaque sistemtico s implica-es das teorias nas polticas sociais e criminais o que uma ques-to muito importante neste campo, mas que, s por si, justificariaoutro artigo.

    A INVESTIGAO DO HOMEM CRIMINOSOA INVESTIGAO DO HOMEM CRIMINOSOA INVESTIGAO DO HOMEM CRIMINOSOA INVESTIGAO DO HOMEM CRIMINOSOA INVESTIGAO DO HOMEM CRIMINOSO

    As primeiras explicaes do crime centram-se no prprio indiv-duo que o comete (ver Dias e Andrade 1997: 5-19; Giddens 1997: 156-159; Lilly et al. 2002: 9-30; Melossi 200: 155-159). A mais antiga aabordagem espiritualista salienta o conflito entre o Bem e o Mal, eatribui o comportamento criminoso possesso por espritos ou for-as do Mal. Para o que nos interessa neste artigo, o principal proble-ma desta abordagem que ela no pode ser testada empiricamente,pois assenta em crenas de tipo religioso. Contudo, de salientar asua persistncia, ainda nos dias de hoje, nalguns grupos sociais, so-bretudo, justamente, seitas religiosas.

    Com a modernidade, sobrevm a abordagem naturalista, procu-rando explicaes mais especficas e baseadas em factores do mundofsico. No plano da criminologia, o naturalismo desenvolve-se na es-cola clssica e na escola positivista, e sobretudo em Itlia.

    A escola clssica, protagonizada por Cesare Beccaria (1738-1794),trata as questes fundamentais de justia criminal nos termos dopensamento liberal democrtico, colocando a nfase na vontade eliberdade do indivduo como causas do seu prprio comportamento.O indivduo criminoso , tal como o no criminoso, um ser racional e

    livre que procura atingir o prazer e evitar a dor. Quando pratica ocrime, f-lo baseando num clculo de riscos e recompensas. De entreo imenso legado jurdico da escola clssica, de salientar a ideia deque a punio deve adequar-se s caractersticas da infraco e no scaractersticas psicolgicas e sociais do indivduo que o cometeu. esta ideia que gera o princpio de tratamento igual de todos os indiv-duos perante a lei.

    Contudo, do ponto de vista da investigao, permanece a questode saber o que causa o comportamento criminoso, j que o princpiodo livre-arbtrio mais a assumpo de uma responsabilidade do que

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    uma explicao objectiva do comportamento. Esta questo represen-tar outro importante ponto de viragem na criminologia, com a esco-

    la positivista, que se orientar no sentido da investigao empricados determinismos que, alm ou aqum da vontade do indivduo,condicionam o seu comportamento. A escola clssica instituiu osfundamentos da justia criminal das modernas sociedades democr-ticas, mas ser a escola positivista que inaugurar verdadeiramente oestudo e o tratamento do indivduo criminoso.

    Dentro da escola positivista podemos ainda distinguir duas orien-taes: a que privilegia o corpo e a mente, individualista, portanto, ea que privilegia factores sociais externos ao indivduo. Na orientaoindividualista da escola positivista de destacar o trabalho de Cesare

    Lombroso (1835-1909), por muitos considerado o pai da modernacriminologia cientfica. Lombroso interessa-se pelo estudo da anato-mia e fisiologia do crebro e declara que os indivduos criminososrepresentam um tipo fsico especfico. Fortemente influenciado peloevolucionismo de Charles Darwin, to em voga poca, v esse tipofsico como uma forma de degenerescncia que se manifesta em tra-os que representam formas de evoluo primitivas queixos retra-dos, narizes tortos, braos muito longos, entre outros. No obstante,nas sucessivas reedies da sua obra Sobre o Homem Criminosovaiintegrando progressivamente explicaes ambientais e sociais cli-ma, sexo, costumes de casamento, leis, estrutura de governo, entreoutros mas sem nunca abdicar da ideia de um tipo criminoso inato,definido fisicamente.

    Ainda dentro da orientao individualista da escola positivista ita-liana, outros autores trataram o comportamento criminoso mais noplano mental do que fsico. Foi o caso de Raffaele Garofalo (1852-1934) que define o conceito de crimes naturais para designar os actosque violam certos sentimentos humanos bsicos e universais. Essessentimentos so: a piedade sentimento de repulsa perante o acto

    voluntrio de infligir sofrimento a outros e a probidade respeitopelos direitos de propriedade dos outros. O indivduo criminoso aquele que no desenvolveu adequadamente estes sentimentos altru-stas ou, ento, o nvel de energia moral necessrio para se conter erespeit-los. Garofalo considera que tal anomalia poder ser biolgi-ca ou moral e, em todo o caso, hereditria.

    A investigao das razes individuais do comportamento crimino-so prosseguir ao longo de todo o sculo XX, tanto no domnio dostipos fsicos apesar de todas as crticas e de algumas refutaesempricas de peso, como veremos como no domnio psicogentico.

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    Quanto a este ltimo, os factores em causa deixam de ser encaradoscomo constitucionais ao indivduo, para passarem a ser vistos como

    dinmicos, tanto na abordagem psicanaltica em que o crime vis-to como uma expresso simblica de tenses interiores que o indiv-duo no consegue controlar como na abordagem que procura ostraos de personalidade crimingenos.

    Contudo, durante muitas dcadas, a abordagem individualista foisubalternizada pelas abordagens sociais e culturais. Hoje em dia,assistimos ao revitalizar do individualismo na criminologia, comoveremos mais abaixo.

    O CRIME COMO FENMENO SOCIALO CRIME COMO FENMENO SOCIALO CRIME COMO FENMENO SOCIALO CRIME COMO FENMENO SOCIALO CRIME COMO FENMENO SOCIAL

    Ainda na escola positivista italiana, Enrico Ferri (1856-1929), muitoembora assuma a perspectiva positivista legada por Lombroso, vaiabrir a explicao do comportamento criminoso aos factores sociais.Ferri defende que a criminologia deve estudar cientificamente os efei-tos interactivos entre os factores fsicos (por exemplo, a raa, a geo-grafia e o clima), os factores indivduais (por exemplo, a idade, o sexoe variveis psicolgicas) e os factores sociais (por exemplo, a popula-o, a religio e a cultura). Esta perspectiva leva-o a defender o con-trolo social do crime atravs de polticas sociais em favor das classesmais desfavorecidas. A lgica determinista do positivismo est bempatente no seu conceito de criminoso involuntrio1, o qual conside-ra cada vez mais frequente, devido crescente mecanizao e acele-rao da vida moderna.

    Mas ser em Frana e margem da criminologia que sero lanadasas bases da explicao especificamente sociolgica do crime. No seuprojecto de afirmao da Sociologia como disciplina cientfica bemdemarcada da Filosofia, da Economia e da Psicologia, mile Durkheim(1858-1917) prope uma viso dos fenmenos sociais como fenmenos

    exteriores e coercivos face aos indivduos ou, ento, como fenmenosgeneralizados numa dada sociedade e com uma existncia autnomadas suas manifestaes individuais por isso que as regularidadesestatsticas apresentam uma especificidade que no pode ser explicadaa partir do somatrio dos motivos individuais (Durkheim 1984:29-39). Nesta linha de pensamento, o crime ser visto como um produtonormal da sociedade, e que contribui para a sua coeso e evoluo.

    Para clarificar a sua clebre distino entre o normal e o patolgi-co, Durkheim vai, justamente, reflectir sobre o crime e declara que,enquanto fenmeno social, e apesar de mrbido, ele normal, ne-

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    cessrio e til (Durkheim 1984:85-93; ver, tambm, Ferreira 2000:639-643 e Ferreira et al. 1995: 431-436). Vejamos o seu raciocnio. O

    crime um fenmeno normal, porque existe em todas as sociedadesainda que sob formas diferentes, pelo que, a cada tipo socialcorrespondem crimes especficos e com taxas especficas tambm.O crime um fenmeno necessrio, no sentido em que inevitvel,pois est ligado s condies fundamentais da existncia de qualquersociedade. Como assim? Durkheim entende o crime como um actoque ofende certos sentimentos colectivos dotados de uma energia ede uma nitidez particulares (Durkheim 1984:87). Ento, para que noexistisse crime, era necessrio que a conscincia colectiva actuassecom a mesma intensidade em todos os indivduos e, assim, contrari-

    asse de modo homogneo os sentimentos individuais contrrios ordem social. Mas tal no possvel, dada a diversidade de inserodos indivduos no meio fsico e social. Quando a conscincia colecti-va consegue controlar os comportamentos num determinado ponto,logo outros comportamentos, que antes pareceriam menos graves,passam para o domnio da represso e da censura. E por isso que ocrime , tambm, til. O crime um dos resultados do carcter limi-tado da conscincia colectiva e, portanto, da individualizao dasconscincias e da possibilidade de comportamentos criativos e ino-vadores veja-se o caso de Scrates que, luz do direito ateniense,era, de facto, criminoso e, de um modo mais geral, o caso de muitacriminalidade poltica em sociedades repressivas. Por isso, consideraDurkheim, as condies sociais que geram o crime so as mesmasque geram a evoluo da moral e do direito. Finalmente, o crime for-nece a ocasio para a reafirmao da solidariedade e conscincia co-lectivas, aquando da denncia, condenao e punio ritual do infrac-tor.

    No se trata aqui, obviamente, de uma apologia do crime. Orelativismo analtico proposto por esta demonstrao no implica,

    por si s, um relativismo tico. A anlise positivista e funcionalistano redunda na justificao ou compreenso emptica do acto crimi-noso. Durkheim deixa bem explcito que so questes diferentes anormalidade/patologia de uma dada taxa de um dado tipo de crimenuma dada sociedade e a normalidade/patologia dos indivduos queo cometem e, ainda, dos juzos de valor que sobre o crime todos nsfazemos.

    Pese embora a aberrao que isso constitui para o senso comum,e no substimando os danos materiais, morais, relacionais e sociaisque o crime realmente comporta, muitos autores, de diferentes esco-

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    las de pensamento, se interessaram posteriormente pelos efeitos po-sitivos do crime (Dias e Andrade 1997:259-268) ou, talvez seja mais

    correcto dizer, pelas suas funes latentes. Para alm do seu contributopara a evoluo normal da moral, do direito e das estruturas sociaisem geral, e como reforo da coeso e solidariedade sociais referidaspor Durkheim, o crime pode tambm funcionar como vlvula-de-se-gurana evitando o acumular de tenses e frustraes que poderi-am ameaar a ordem social contribuir para a afirmao, clarifica-o, adaptao e manuteno das normas e, finalmente, servir paralegitimar a ordem social.

    O Crime e a CidadeO Crime e a CidadeO Crime e a CidadeO Crime e a CidadeO Crime e a Cidade

    A viso de Durkheim lanou as bases para uma linha de estudo etratamento do crime que o situa, no s para alm da responsabilida-de individual, como tambm para alm dos determinismos individu-ais. Contudo, a sua abordagem no teve consequncias directas nodomnio das polticas sociais e criminais. poca, dominavam aindaas explicaes individualistas do crime, sobretudo biolgicas, numquadro de pensamento poltico que sobrepe a sociedade ao indiv-duo. Garofalo, por exemplo, defendia que os criminosos, uma vezque atentam contra os sentimentos bsicos necessrios sobrevi-vncia da sociedade, deveriam ser eliminados, pela morte ou, no casodos delitos menos graves, pela priso perptua ou deportao no de admirar, portanto, a aceitao do trabalho da criminologia positivistaitaliana pelo regime fascista de Moussolini e, alis, bem mais gravesforam as suas consequncias no regime nazi. Mas a sua influncia foibastante mais ampla. Mesmo num pas j razoavelmente democrti-co poca, os EUA, os problemas e conflitos sociais de finais dosculo XIX e incios dos sculo XX eram, sob influncia do movimen-to eugenista e do darwinismo social, vistos como decorrentes da in-ferioridade gentica de determinadas populaes e estas ideias fun-

    damentavam polticas como, por exemplo, as de esterilizao e inter-veno cirrgica em indivduos delinquentes (ver, por exemplo, Lillyet al. 2002: 26-30). Ser com a escola de Chicago que esta perspecti-va, terica e poltica, comear a perder a sua influncia, pelo menosnos EUA, a partir da segunda dcada do sc. XX. Para esta aborda-gem, tambm conhecida por ecologia urbana (ver Dias e Andrade1997: 268-288; Ferreira et al. 1995: 436-441; Giddens, 1997: 159-160;Lilly et al. 2002: 31-41; Melossi 2002: 159-163; Rock 1997: 246-247), ocrime, como os demais problemas sociais, fundamentalmente umproblema urbano: trata-se de chegar, na liberdade intrnseca cida-

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    de, a uma ordem social e a um controlo social equivalentes aos quese desenvolveram naturalmente na famlia, no cl, na tribo (Robert

    Park cit. Ferreira et al. 1995: 437). A cidade vista como um sistemaecolgico, cujo desenvolvimento e organizao seguem determina-dos padres que podem ser entendidos em termos de processos so-ciais bsicos como invaso, conflito, acomodao e assimilao.

    No foi por mero acaso que esta perspectiva se desenvolveu naUniversidade de Chicago. Chicago um caso paradigmtico do pa-dro de desenvolvimento e organizao das cidades norte america-nas. Em poucos decnios, conhece um crescimento espetacular: de 4500 habitantes em 1840, passa para 1 milho em 1890 e, em 1910, jultrapassa os 2 milhes! Para alm disso, este crescimento pauta-se

    por uma grande diversidade tnica, lingustica e cultural, resultadode sucessivas vagas de imigrao de alemes, ingleses e irlandesespor volta de 1800, escandinavos, polacos, italianos e judeus por voltade 1900, agricultores desapossados e negros provenientes dos esta-dos do sul nas primeiras dcadas do sculo. Estas populaes vo-seagrupando em ghettos e slums bairros relativamente fechados eaparentemente desordenados, de habitaes pequenas e de m quali-dade onde emergem inmeras patologias sociais toxicodependncias, delinquncia, crime, prostituio, abandono, etc.

    Por seu lado, a Universidade de Chicago, fortemente marcada pelopragmatismo2 e pelo movimento Progressista3, vai-se empenhar, ti-ca e institucionalmente, na compreenso e resoluo destes proble-mas desenvolvendo muitas pesquisas nos ghettos e slums, juntode famlias de imigrantes e de grupos marginais o que foi bastanteinovador numa poca em que a maioria das universidades, america-nas e europeias, cultivavam ainda um distanciamento diletante faceaos problemas da realidade. Quanto ao seu contributo para a teoriacriminolgica, a sua importncia no foi apenas a de ter redefinido oconceito de patologia da esfera individual e biolgica para a esfera

    social, mas o de ter mesmo contribudo para refutar empiricamenteas teorias eugenistas que explicavam os problemas das cidades nor-te-americanas em funo do patrimnio gentico das populaesimigrantes, considerado inferior e degenerado.

    Tal refutao vai acontecer com um famoso estudo de Clifford Shawe Henry McKay sobre a distribuio territorial da criminalidade. Shawe McKay fazem um levantamento macio das estatsticas oficiais dacriminalidade juvenil de 1900 a 1940 e concluem que a prtica crimi-nosa se concentra em determinadas reas da zona de transio dacidade. A zona de transio refere-se a um anel que faz a transio

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    entre o centro da cidade, onde esto as indstrias e os servios, e aszonas residenciais onde, de forma concntrica e sucessiva, se encon-

    tram a classe trabalhadora estabilizada, a classe mdia e os subrbi-os da classe alta. A zona de transio est constantemente sujeita spresses do crescimento do centro e, por isso, extino e degrada-o fsica. Ento, onde as rendas so mais baratas, sendo a que seconcentram os mais pobres, os analfabetos, os doentes mentais, asprostitutas e os delinquentes, mas tambm os imigrantes recm che-gados cidade. Estes ltimos, assim que estabilizam a sua situaolaboral, abandonam a rea para se irem instalar nos bairros residenciaisda classe trabalhadora que, nesta poca, no apresentavam ainda osproblemas sociais referidos. As caractersticas tnicas das popula-

    es que habitavam as diversas reas da zona de transio, ao longodos 40 anos estudados por Shaw e McKay, foram sempre mudando,mas no as taxas de criminalidade!

    Aqueles autores concluem, pois, que a explicao terica das pa-tologias sociais no pode estar no patrimnio gentico de popula-es especficas, definidas em termos de raa, etnia ou nacionalida-de. Essa explicao dever estar localizada na estrutura da vida comu-nitria em contexto urbano. De entre as inmeras pesquisas desen-volvidas pela escola de Chicago sobre esta temtica, destacam-se asseguintes ideias: a ruptura dos mecanismos tradicionais de integraoe socializao (famlia, vizinhana, religio e escola), analisada sob oconceito de desorganizao social; a grande diversidade de valores,normas e modelos de conduta que perdem o seu poder de regulaoe controlo; uma personalidade humana mais fria e calculista, envolvi-da em relaes sobretudo de competio e de luta pela sobrevivn-cia; a concentrao, em certas reas, de estilos de vida marginais queinstauram tradies delinquentes, por sua vez transmitidas no interi-or de gangs; a aprendizagem de tcnicas e de motivaes delinquen-tes no mbito dos grupos primrios.

    A viragem do enfoque do indivduo para a sociedade, na explicaodo crime, comea por ser uma afirmao de princpio terico, comDurkheim, para assumir uma comprovao emprica irrefutvel, comShaw e McKay. Mas ser, tambm, uma viragem na imagem do delin-quente. Edwin Sutherland, com a sua teoria da associao diferencial porventura a teoria criminolgica mais consequente produzida pelaescola de Chicago mostra que o indivduo delinquente no o porqualquer factor de constituio fsica ou psicolgica, mas por aquiloque aprendeu em interaco com as outras pessoas, principalmentecom aquelas que lhe so mais ntimas.

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    Crime e AnomiaCrime e AnomiaCrime e AnomiaCrime e AnomiaCrime e AnomiaA ntima conexo entre a cidade e a delinquncia a ideia de que esta

    iminentemente um problema urbano continua a alimentar muitoda produo terica nos dias actuais. No obstante, a sociologia nor-te-americana, agora na sua vertente funcionalista, deu outro contributoimportante para situar o crime, e os problemas sociais em geral, des-ta feita no quadro mais amplo da estrutura social. O momento decisi-vo ser a teoria da anomia, por vezes tambm designada por teoria datenso, elaborada por Robert Merton (ver Dias e Andrade 1997: 311-342; Ferreira 2000: 644-646; Ferreira et al. 1995: 431-436; Giddens 1997:160-162; Lilly et al. 2002: 48-54; Rock 1997 :236-240). Mas para enten-dermos esta teoria temos, ainda, que retornar a Durkheim.

    No obstante considerar que, enquanto fenmeno social, o crime normal, necessrio e til, Durkheim considerava que uma taxa decriminalidade muito elevada seria um fenmeno patolgico e comotal que v o crescimento progressivo da criminalidade, do suicdio ede outros problemas sociais, na Europa, ao longo de todo o sculoXIX (Durkheim 1982). Este um fenmeno anmico, quer dizer, re-sulta da perda de coeso e integrao nas sociedades industriais. Associedades industriais no teriam conseguido, ainda, substituir asformas de solidariedade social tradicionais, especialmente as que eramsustentadas pela religio. Este problema deveria ser resolvido quan-do a diviso do trabalho gerasse um nvel de interaco elevado entretodos os papis e funes sociais e um sistema normativo para regu-lar essas interaces. Ou seja, para Durkheim, a anomia uma ano-malia, um fenmeno patolgico mas passageiro, porque est emcausa a prpria sobrevivncia da sociedade.

    Durkheim parte de uma viso da natureza humana como sendobasicamente egosta e insacivel e, assim, uma fonte de tormentosvirtualmente ilimitados e insuportveis para o indivduo. Este proble-ma resolvido pela sociedade atravs dos valores e normas presen-

    tes na conscincia colectiva, a sociedade regula o comportamento doindivduo, ao mesmo tempo em que o integra. Em pocas de anomia quando se d uma alterao brusca das estruturas sociais e as nor-mas existentes perdem o sentido o egosmo, com as suas paixesinsaciveis e as suas aspiraes ilimitadas, deixa de ser controlado eos comportamentos desviantes assumem formas e ndices patolgi-cos. Do ponto de vista de Durkheim, as situaes de anomia sotransitrias, porque de esperar que a sociedade produza os novosvalores e normas reguladores, correspondentes s estruturas sociaisque emergem da crise e necessrios para a sua sobrevivncia.

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    Merton parte desta teoria de Durkheim, mas subvertendo-a numaspecto fundamental, ao considerar que a anomia uma caractersti-

    ca intrnseca das sociedades modernas estrutural, portanto. As so-ciedades industriais e modernas no esto em contradio. Elas soem contradio. Por um lado, assentam na difuso igualitria de valo-res de sucesso material, mas, por outro, as estruturas de oportunida-des sociais no permitem que todos os indivduos realizem esse su-cesso, respeitando as normas institucionalizadas, ou seja, utilizan-do, apenas, os meios socialmente legtimos. Portanto, Merton colo-ca o problema das aspiraes ilimitadas na estrutura cultural e nona constituio psicolgica do indivduo. a inconsistncia entre aestrutura cultural valores e normas e a estrutura social oportuni-

    dades de realizar os valores respeitando as normas que coloca umagrande parte dos indivduos em situaes de tenso, desiquilbrio econflito, cuja resoluo passa, em muitos casos, por comportamen-tos desviantes, i.e., comportamentos de inconformidade aos valores/objectivos e/ou s normas. Estes modos de adaptao so os seguin-tes: a inovao, em que os indivduos empenham-se intensamenteem alcanar o sucesso, mas sem uma correspondente interiorizaodas normas e, por isso, recorrendo, com facilidade, a meios ilegti-mos; o ritualismo, em que, satisfeitas as necessidades bsicas, o in-divduo renuncia a qualquer ambio, e se dedica ao cumprimentoritualstico e escrupuloso das normas; a evaso, que pode ter origemnuma intensa interiorizao quer dos objectivos, quer das normas,mas num contexto de profundo desfasamento com a estrutura deoportunidades, pelo que o indivduo resolve o conflito gerado, rejei-tando tanto os objectivos, como o cumprimento das normas e refugi-ando-se num mundo prprio; e a rebelio, em que tambm existerejeio tanto dos valores, como das normas, mas numa ptica detransformao social.

    A teoria da anomia de Merton, muito embora no se dedicando

    especificamente criminalidade, nem tendo tido qualquer impactoimediato nas polticas sociais e criminais, tornou-se bastante influen-te em vrias reas da teoria criminolgica e, designadamente, emteorias das subculturas delinquentes e criminais.

    Delinquentes so as Culturas e no as PessoasDelinquentes so as Culturas e no as PessoasDelinquentes so as Culturas e no as PessoasDelinquentes so as Culturas e no as PessoasDelinquentes so as Culturas e no as PessoasEsta citao, muito embora de um autor ligado teoria do controlosocial (Travis Hirschi cit. Dias e Andrade 1997: 292), ilustra bem omodo como a abordagem culturalista considera a delinquncia e ocrime (ver Dias e Andrade 1997: 288-311; Ferreira 2000: 657-663;

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    Giddens 1997: 161-162; Herpin 1982: 107-134; Lilly et al. 2002: 54-57;Rock 1997: 257-259), na medida em que a perspectiva culturalista sali-

    enta a normalidade psicosocial dos processos interactivos envolvi-dos na formao das subculturas delinquentes. Os gangs vo ser oseu objecto de estudo privilegiado. De entre os vrios autores, ireidestacar, pela influncia que tiveram, o trabalho de Albert Cohen,Delinquent Boys, de 1955, e o de Richard Cloward e Lloyd Ohlin,Deliquency and Opportunity, de 1960.

    Cohen prope-se explicar o carcter muito expressivo e irracionaldas subculturas juvenis delinquentes afirma que a subcultura juve-nil no utilitria, maliciosa e negativstica (Cohen cit. Herpin 1982:115-6). Sob influncia de Merton, v a delinquncia como o produto

    da existncia de fortes desigualdades sociais numa sociedade queuniversalizou a tica do sucesso individual, enaltecendo a figura doself made man e estigmatizando o looser. A subcultura delinquen-te uma resposta colectiva s experincias de frustrao que resul-tam da procura de sucesso e status dentro da sociedade convencio-nal, por parte de jovens rapazes provenientes das classes trabalhado-ras. No entanto, enquanto Merton salienta as oportunidades objecti-vas, Cohen salienta sobretudo o processo de socializao. a prviasocializao familiar que vai condicionar o sucesso/insucesso na ins-tituio que, por excelncia, abre as portas ao sucesso social nas so-ciedades modernas a escola. Enquanto os jovens das classes mdi-as so socializados sobretudo numa tica de responsabilidade indivi-dual e disciplina, os jovens das classes trabalhadoras crescem maisnuma tica da reciprocidade, permissividade e expressividade fsica(incluindo violncia). Este contraste vai-se tornar particularmente n-tido na escola. Nas sociedades democrticas, a escola abre-se a to-dos e todos so avaliados pelos mesmos critrios. Simplesmente,estes critrios racionalidade, autodisciplina, ambio, individuali-dade, expresso verbal e escrita, cultura geral, boas maneiras e corte-

    sia, etc. representam sobretudo os valores e normas das classesmdias e contradizem os valores das classes trabalhadoras, pelo queos jovens provenientes destas tendero em muito maior nmero parao insucesso escolar. S que, entretanto, interiorizaram a tica do su-cesso individual e as aspiraes materialistas, pelo que esse insucessolhes trar sentimentos de humilhao, angstia e culpa frustraode status. Colocado nesta situao, o jovem est perante um proble-ma de aquisio de respeito e status em funo de um grupo de refe-rncia. A perspectiva de um falhano social, leva-o a rejeitar psicolo-gicamente aquilo a que inicialmente aspirou e a desenvolver compor-

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    tamentos que invertem os valores e normas luz dos quais iria fa-lhar. Mas este no um processo individual e isolado. Pelo contrrio,

    um processo colectivo de interaco, dilogo e compromisso, reali-zado atravs de gestos exploratrios, de insinuaes sucessivas, en-tre um conjunto de jovens com problemas de adaptao semelhan-tes. E, assim, vo formando um grupo que atribui status em funode critrios ao seu alcance e que lhes proporciona uma constelaode valores alternativos.

    Por seu lado, Cloward e Ohlin vo estudar as condies sob asquais a frustrao de status se converte em delinquncia ecriminalidade. Para tal, avanam com o conceito de oportunidadesilegtimas, i.e., o acesso a um ambiente que propicia a aprendizagem

    dos valores, normas e tcnicas necessrios ao desempenho de pa-pis desviantes, bem como a possibilidade de desempenh-los como apoio moral de um grupo. As oportunidades ilegtimas, tal como aslegtimas, so escassas e desigualmente distribudas, e so elas quedeterminam o tipo de subcultura delinquente que surgir como alter-nativa aos valores e modelos de comportamento convencionais.

    Nem todas as subculturas delinquentes expressam conflito,irracionalidade e inverso dos valores dominantes. Nas reas urba-nas onde o crime j existe de uma forma organizada no mundo adul-to, os jovens passam da pequena delinquncia a uma vida adulta decrime profissional e no contexto de organizaes onde o crime ummeio disciplinado e racional para a obteno de lucros econmicos,proporcionando tradio, hierarquia e carreira, bem como as neces-srias pontes de apoio ao mundo convencional (polticos, juristas,clrigos). Por outro lado, muitos jovens falham duplamente em inte-grar um gang de subcultura de conflito e, por outro lado, em prosse-guir uma carreira num contexto de subcultura criminal, envolvendo-se numa subcultura de evaso, de procura da gratificao imediata,caracterizada sobretudo pelo consumo de drogas. A obra de Cloward

    e Ohlin teve um enorme impacto nas polticas sociais e criminais econstituiu uma smula das principais teorias norte-americanas dadelinquncia e do crime da associao diferencial de Sutherland, daanomia de Merton, da subcultura de Cohen, entre outras. A partirdaqui, a evoluo terica vai explorar outras dimenses.

    As Consequncias dos RtulosAs Consequncias dos RtulosAs Consequncias dos RtulosAs Consequncias dos RtulosAs Consequncias dos RtulosUma viragem muito importante no estudo do desvio d-se na dcadade 1960 com a teoria da rotulagem, tambm conhecida por teoria dareao social ou perspectiva interaccionista do desvio (ver Dias e

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    21Compreenso e Responsabilidade: Uma Digresso pela CriminologiaCompreenso e Responsabilidade: Uma Digresso pela CriminologiaCompreenso e Responsabilidade: Uma Digresso pela CriminologiaCompreenso e Responsabilidade: Uma Digresso pela CriminologiaCompreenso e Responsabilidade: Uma Digresso pela Criminologia

    Andrade 1997: 342-361; Ferreira et al. 1995: 289-321 e 444-446; Giddens1997: 163-165; Herpin 1982: 83-92; Lilly et al. 2002: 105-125; Melossi

    2000: 163-165; Rock 1997: 255-257). O que h de comum nas teoriasabordadas at aqui a procura das causas scio-culturais dos com-portamentos de transgresso das normas, tendo evidenciado umapluralidade de factores: desorganizao social, associao diferenci-al, transmisso cultural, desigualdades socio-econmicas, socializa-o, subculturas, oportunidades ilegtimas, etc. A teoria da rotulagemvai colocar-se numa perspectiva diferente, preocupando-se com o es-tudo dos critrios e processos institucionais formais e informais pelos quais certas pessoas so rotuladas como desviantes delin-quentes, criminosos, loucos, bizarros, perigosos. e as consequncias

    desses processos para o indivduo em causa, para os que o rodeiam epara a sociedade em geral.

    A teoria da rotulagem fundamenta-se no interaccionismo simbli-co, abordagem que concede um lugar privilegiado linguagem naformao da conscincia e da identidade dos indivduos. Atribuir no-mes s coisas uma forma de as qualificar, incluindo as pessoas eos seus actos. A linguagem afecta a forma como cada um se v a simesmo e sua posio no mundo, bem como a forma como sertratado pelos outros. No que concerne ao estudo do desvio, est emcausa como que certos actos so interpretados, julgados e contro-lados pelo prprio indivduo e pelas instituies de controlo social.No seu famoso estudo Outsiders, Howard Becker define o desvio doseguinte modo (cit. Ferreira et al. 1995:445).:

    Os grupos sociais criam o desvio ao fazerem as normas, cuja infrac-

    o cria o prprio desvio, e ao aplicarem essas normas a determina-

    dos indivduos e ao rotularem-nos como marginais. Deste ponto de

    vista, o desvio no uma qualidade do acto que a pessoas pratica,

    mas antes a consequncia da aplicao, por parte dos outros, das

    normas e das sanes ao desviante

    Ou seja, no , em si, o acto de transgredir a norma o que induzuma carreira desviante, mas sim a reaco social a essa transgres-so, na medida em que se vai numa srie de medidas e intervenesmais ou menos institucionais a interveno da polcia, do juz, dopsiclogo, do assistente social ou, simplesmente, a reprovao e cen-sura por parte dos pais e amigos, o isolamento e estigmatizao porparte dos conhecidos, etc. Assim sendo, h que distinguir, como pro-pe Edwin Lemert, entre desvio primrio o acto inicial de transgres-

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    so, que pode ser descoberto, ou no, e que, sendo descoberto, podeser participado, ou no e desvio secundrio o processo de desvio

    desencadeado pela rotulagem produzida pela reaco social. estareaco e rotulagem que criam verdadeiros problemas ao indivduo problemas de estigmatizao, punio, isolamento e controlo que olevam a reforar o desvio como forma de defesa, ataque ou adaptaoa esses problemas. Ou seja, o indivduo reorganiza a sua identidade ea sua vida em funo do rtulo que lhe foi atribudo.

    Uma das crticas mais frequentes a esta abordagem a de quetende a minimizar os danos resultantes do desvio primrio, parecen-do servir como desculpa para os delinquentes e criminosos. No en-tanto, note-se que esta teoria no exclui nem contesta as outras teori-

    as e pode, at, articular-se com elas4. Outro ponto crtico da teoria darotulagem que parece apresentar um raciocnio em que, na sequn-cia da reaco social e do processo de rotulagem, a identidade e acarreira desviantes aparecem como um facto inevitvel, irreversvel econdenado amplificao. Apesar de alguns excessos que justificamesta crtica, os principais autores no deixaram de reconhecer que oresultado final da reaco social relativamente indeterminado. Oprocesso de rotulagem negocivel os indivduos podem resistir e,at, rejeitar a estigmatizao do rtulo, em funo de factores como asua personalidade, os seus mecanismos de defesa psicolgicos e,tambm, sociais (poder econmico, influncia poltica e prestgiosocial) e encontrar alternativas e sadas ao processo de rotulagem.Mesmo quando a rotulagem acontece, deve ser vista como provis-ria. Investigaes mais recentes, dentro desta abordagem, tm sali-entado os processos de regresso ao papel normal, desenvolvendoconceitos como desrotulagem e recuperao de status.

    At dcada de 1970, o estudo do crime, na sociologia, enquadra-va-se em conceitos sociologicamente mais amplos. Com a Escola deChicago, falava-se sobretudo em desorganizao social e em patolo-

    gia social, com as teorias da anomia e da rotulagem aqueles termosso abandonados em favor do conceito de desvio. O objectivo destamudana foi o de superar o juzo de valor negativo que lhes estavaimplcito. Ao falarmos em desvio, temos que considerar a norma cul-tural a que o desvio se refere. No entanto, tambm este conceito aca-bou por se revelar inadequado, dado que a adeso a normas no homogeneamente consensual numa dada sociedade, o que especi-almente pertinente em sociedades cada vez mais abertas emulticulturais. Ento, torna-se mais preciso e objectivo falar em cri-me, no sentido de uma infraco norma especificamente jurdica. A

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    partir daqui, os caminhos institucionais (mas no tanto os tericos)da sociologia e da criminologia comeam a ser mais distintos. Muito

    do que se estudava sob o conceito de desvio continua, na sociologiade hoje, a ser feito sob o conceito de risco. Por outro lado, surgem,a partir de ento, abordagens que, sendo claramente de pendor soci-olgico, se assumem claramente no campo da criminologia.

    A PERSPECTIVA CRTICA NA CRIMINOLOGIAA PERSPECTIVA CRTICA NA CRIMINOLOGIAA PERSPECTIVA CRTICA NA CRIMINOLOGIAA PERSPECTIVA CRTICA NA CRIMINOLOGIAA PERSPECTIVA CRTICA NA CRIMINOLOGIA

    Apesar de no contestar as teorias anteriores, ainda assim, a mudan-a de enfoque que a teoria da rotulagem opera no deixa de revelarum olhar crtico sobre a aco das instituies de controlo social. A

    perspectiva crtica , como se sabe, uma forte caracterstica das cin-cias sociais e humanas e das sociedades ocidentais em geral, nasdcadas de 1960 e 1970. Estes, foram anos de impetuosas contesta-es sociais e polticas, da emergncia dos mais variados movimen-tos sociais, de denncia de todas as formas de opresso, do desen-volvimento de valores e de estilos de vida alternativos e, de um modogeral, de confronto e transgresso das convenes e normas moraisat ento dominantes.

    No que respeita ao estudo do crime, uma corrente que ficar co-nhecida por criminologia radical (ver Dias e Andrade 1997: 56-62 e 78-81; Ferreira 2000: 666-668; Lilly et al. 2002: 126-158; Rock 1997: 250-252; Tierney 1996: 280-284) que emerge na dcada de 70, nos EUA eem Inglaterra, rapidamente se generalizando na Europa continental desenvolve as permissas interaccionistas numa perspectiva marxis-ta, estudando a natureza e extenso do crime no contexto especficoda sociedade capitalista, ou seja, na perspectiva do conflito de clas-ses, considerado intrnseco a essa sociedade. Ao contrrio dos auto-res interaccionistas, os radicais criticam abertamente todas as teori-as anteriormente expostas, considerando que so meramente refor-

    mistas, visando perpetuar a ordem vigente, quando o que h a fazer ,defendem, transformar, revolucionariamente, a sociedade. As insti-tuies de controlo social so observadas, na sua historicidade mate-rial e ideolgica, como um dos suportes do sistema de exploraocapitalista e, portanto, como mais um mecanismo de opresso. Comose v, o propsito desta abordagem terica no tanto o de estudaras causas e as funes do crime, mas antes desenvolver uma reflexocrtica sobre a prpria criminologia enquanto facto terico-ideolgi-co, material e histrico, denunciando o modo como a investigaocriminolgica e as instituies de controlo social esto ligadas aos

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    poderes econmico e poltico e os papis que desempenham na ma-nuteno da ordem social.

    Se, na sequncia de Durkheim e at aqui, o crime foi encaradocomo um produto da sociedade e situado nos seus estratos maisbaixos, para a criminologia radical a prpria sociedade, porque capi-talista, que vista como intrinsecamente criminosa, pelo que o cri-me dever ser procurado sobretudo entre as classes dominantes. Estapremissa crtica conduz a uma reviso, tambm radical, do que seentende por crime. Estes autores rejeitam as definies jurdico-le-gal (porque a sua neutralidade uma fico), sociolgica (porque aceitaacriticamente a ordem social e os valores dominantes) e do sensocomum (porque manipulado ideologicamente) e propem uma con-

    cepo de crime por referncia aos Direitos Humanos, encaradoscomo um processo histrico de afirmao, expanso e reivindicao.Crime ser, ento, toda a violao, individual ou colectiva, dos Direi-tos Humanos. Esta concepo levar distino entre dois tipos decrimes. Por um lado, os que reflectem um sistema intrinsecamentecriminoso: o imperialismo, o racismo, o capitalismo, o sexismo eoutros sistemas de explorao que contribuem para a misria huma-na e privam as comunidades das suas potencialidades humanas (Diase Andrade 1997: 60). Nesta concepo, tanto os criminosos como asvtimas so encarados num plano transindividual, ao nvel dos gru-pos sociais e do seu posicionamento nas relaes sociais de opres-so.

    Por outro lado, os chamados crimes convencionais, caractersti-cos das classes sociais mais desfavorecidas, so encarados comosendo menos danosos e importantes do que os anteriores so umsintoma do individualismo possessivo (valor central do capitalismo)ou so actos de revolta que, no entanto, revelam falta de conscinciade classe, pois constituem um desperdcio de energias que deveriamser canalizadas para a revoluo. Mas o que dizer, ento, do facto de

    as prprias classes trabalhadoras reagirem negativamente a este tipode criminalidade? Entra aqui o clssico argumento da falsa conscin-cia: a classe trabalhadora ser alvo de toda uma manipulao ideol-gica que tem como resultado inflaccionar a importncia de pequenosproblemas, criando pnicos morais e produzindo bodes expiatrios,pondo os trabalhadores contra os trabalhadores e ocultando os deli-tos dos mais ricos e os verdadeiros problemas do capitalismo.

    Esta perspectiva radical comea, entretanto, a ser posta em causa.Os inquritos de vitimao, iniciados nas dcadas de 1970 e 1980,revelam que a classe trabalhadora muitssimo vitimizada pelo cri-

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    me, pelo que este , sobretudo, intraclassista e no interclassista.Por outro lado, certos sectores feministas salientam que a vitimao

    das mulheres e das crianas que no pode ser encarada como umassunto menor no se explica pelas relaes de dominao e deexplorao capitalista. Ento, de uma ciso no prprio interior destaabordagem, emerge uma corrente alternativa, assente em influnciastericas mais eclticas, que ficar conhecida por realismo de esquer-da (ver Lilly et al. 2002: 180-184; Tierney 1996: 284-290) e que reformulaa perspectiva radical numa via de reformismo progressista. Paralela-mente, a abordagem radical continua a ser aprofundada, desta feitasob a designao de criminologia crtica (ver Giddens 1997: 170-171;Lilly et al. 2002: 184-190; Tierney 1996: 284-290).

    O debate e a polmica entre ambas as abordagens tm sido bas-tante acesos e duram at aos nossos dias. As principais crticas que aabordagem realista faz abordagem crtica dizem respeito ligaoda teoria realidade, principalmente nas suas implicaes polticas emorais: ao negligenciarem uma explicao mais precisa do crime eao minimizarem os seus danos, a criminologia radical deixou a Direi-ta e os Conservadores monopolizarem o debate pblico sobre a lei ea ordem; para alm disso, so utpicos, pois remetem a resoluodos problemas para uma futura e hipottica sociedade socialista; fi-nalmente, tendem a romancear os crimes das classes maisdesfavorecidas, revelando uma clara ambivalncia moral, pelo menosem relao a certos tipos de crimes (por exemplo, o consumo dedrogas). Assim, a abordagem realista redirecciona o interesse pelocrime, procurando avaliar a realidade do crime e o seu impacto sobreas vtimas, explicar a criminalidade e desenvolver polticas reformis-tas destinadas, sobretudo, a reduzir a vitimao.

    Os autores desta linha crtica reconhecem que, desde o ps-IIGuerra Mundial, o progressivo aumento da taxa de crime real5, comotambm o a maior sensibilidade das vtimas aos seus efeitos. O

    medo do crime, nas classes sociais mais desfavorecidas, racional,assenta em experincias reais e deve ser levado a srio. De facto, ospobres sofrem uma dupla vitimao: a do crime e a da prpria pobre-za. Por outro lado, e independentemente das teorias, existe na socie-dade um amplo consenso quanto aos danos da criminalidade, peloque a Esquerda deve-se preocupar com isso. Para alm de procurarexplicar o crime, deve contribuir para o desenvolvimento de polticasprogressistas e realistas que reduzam a taxa de vitimao, especial-mente entre os grupos mais vulnerveis e que promovam o bem-estar e a coeso das comunidades mais desfavorecidas.

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    Por seu lado, a criminologia crtica tambm no poupa nas crti-cas ao realismo: ao apoiarem-se principalmente nos inquritos de

    vitimao, os realistas reduzem a sua viso sobre o crime aos pressu-postos do senso comum, os quais so limitados, subjectivos eesteriotipados; a consequncia mais grave que acabam por dar des-taque aos crimes das classes mais desfavorecidas, ao mesmo tempoque negligenciam outros tipos de crime, mais prprios das classesmdias e altas, em que as vtimas podem ser muito mais numerosase, muitas vezes, no terem, sequer, a conscincia de que o so ( ocaso, por exemplo, de muitos crimes alimentares); para alm disso,contribuem para perpetuar as mistificaes ideolgicas dominantes,ao pressuporem que existe uma diviso muito clara entre vtimas (pes-

    soas respeitavis) e delinquentes e ao idealizarem a classe trabalha-dora segundo os atributos morais da classe mdia; finalmente, reve-lam um excesso de f na vontade e capacidade das instituies paramudarem as suas estruturas e polticas de interveno.

    Por uma razo de valor, mais do que pela sua representatividadeou importncia no campo terico, vou ainda considerar a criminologiapacifista (ver Lilly et al. 2002:158-9; McEvoy 2003: 319-321 e 333-336).Os seus principais expoentes so os norte-americanos Richard Quinneye Harold Pepinski que, desde a dcada de 1980, tm manifestado umasistemtica oposio ao conceito e polticas de guerra ao crime, aomesmo tempo em que desenvolvem uma abordagem humanista al-ternativa, sob influncias muito eclticas o jovem Marx, Gandhi,anarquismo, feminismo, budismo, culturas americanas indgenas,entre outros. Quinney parte da premissa de que a transformao dasestruturas e instituies sociais comea com a transformao do pr-prio self, no sentido de ultrapassar as barreiras do isolamento e dedesenvolver a conscincia da interligao e mtua dependncia detodos os indivduos, sociedades e naes. Pepinski preocupa-se emcompreender e superar a violncia, entendendo que o que existe de

    comum entre a guerra, o crime e a punio, a vontade de usar aviolncia para lidar com a oposio. Muito embora aceitando a ideiade que na raz do crime est o conflito, o que os perfilha na criminologiacrtica, ambos rejeitam que a resposta passe pela confrontao e de-fendem meios pacficos de interveno, tais como a mediao, a per-suaso moral e a negociao informal. A resoluo de conflitos devebasear-se nos sentimentos de compaixo e empatia e procurar cons-truir ambientes de confiana, estreitando os laos sociais entre osindivduos. Aqui, o conceito de lao social ganha um sentido maisprofundo do que aquele que habitualmente tem na sociologia, abrin-

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    do-se ideia de aprofundamento do conhecimento do outro e de nsprprios, como o melhor mtodo para perdermos a capacidade de

    infligir sofrimento.A criminologia pacifista reflecte a posio de muitas pessoas mar-ginalizadas que percebem no poderem atingir os seus objectivosconfrontando os poderes que se lhes opem e, como fcil deadvinhar, no tem sido levada muito a srio, principalmente por sec-tores mais institucionais, existindo uma certa tendncia para ser vis-ta meramente como uma proposta no sentido de ser-se bonzinho.Num registo mais srio, tambm tem sido criticada por relativismomoral, o que me parece uma crtica claramente defensiva, mas, emtodo o caso, insustentvel, pois baseia-se na confuso, ora ignorante,

    ora oportunista, entre compreenso e desculpabilizao, desastra-damente to em voga.

    CRIME E GNEROCRIME E GNEROCRIME E GNEROCRIME E GNEROCRIME E GNERO

    As abordagens feministas (ver Giddens 1997:177-182; Giordano eRockwell 2000; Lilly et al. 2002: 163-180; Miller 2000; Tierney 1996:252-272) emergem na criminologia durante a dcada de 1970, comextensa produo terica e emprica at aos dias de hoje. Em muitosmanuais, esta perspectiva includa na criminologia crtica, mas pensoque vale a pena dar-lhe outro destaque, pois o feminismo um movi-mento social com orientaes tericas e polticas muito diversas,pelo que a sua incurso na criminologia, tal como noutras reastemticas, no homognea.

    Quatro grandes linhas de pesquisa feminista podero seridentificadas na criminologia. Alguns autores salientam as diferenasscio-culturais entre homens e mulheres e as consequncias dessasdiferenas no plano da criminalidade. Por exemplo, estudos feitos sobreos efeitos da priso revelam que estes so muito mais traumatizantes

    para as mulheres do que para os homens sobre elas so aplicadasmais medidas disciplinares, so prescritos mais tranquilizantes e tmuma maior incidncia de auto-mutilaes o que tem levado algunsautores a defenderem penas diferenciadas para homens e mulheres.Numa perspectiva diametralmente oposta, outros autores salientamque a criminalidade das mulheres muito mais parecida com a doshomens do que tradicionalmente se pensava, pelo que o objectivodever ser fazer com que o sistema de justia ultrapasse esteritiposde gnero e trate homens e mulheres da mesma forma. Na linha daperspectiva radical, questiona-se o prprio conceito de crime e os

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    propsitos da criminologia, considerando-os um produto ideolgicoe institucional j no do capitalismo, mas do patriarcado. Final-

    mente e mais recentemente, vrios autores rejeitam a possibilidadede uma criminologia especificamente feminista, argumentando queas questes de gnero tm de ser articuladas com outras variveis,principalmente as que respeitam estrutura das desigualdades soci-ais, com destaque para a classe, a etnia e a gerao. Dada esta varie-dade de perspectivas, falarei em abordagens feministas nacriminologia e no, especificamente, em criminologia feminista. Mas,variedade parte, importa destacar alguns pontos em comum entreelas. Desde logo, a crtica terica com que fazem a sua entrada nacriminologia: a de que todas as abordagens tericas anteriores negli-

    genciaram ou, at, distorceram o estudo das mulheres, seja comovtimas, seja como delinquentes. Vejamos cada um destes pontos.

    A negligncia, na prtica crtica, existiria na medida em que a qua-se totalidade da investigao feita, at ento, se dedicara sobretudo criminalidade masculina. A propsito desta crtica, coloca-se o pro-blema da generalizao. verdade que algumas teorias explicitarama sua tendncia de gnero, como o caso de Cohen e de Cloward eOhlin, mas a esmagadora maioria no. Por exemplo, a teoria da anomia.Merton pressupe que a presso para o sucesso material atinge to-dos os indivduos na sociedade e que os comportamentos delinquen-tes surgiro por parte daqueles que dispem de menos oportunida-des sociais legtimas para o alcanar. Ora, as mulheres tm menosoportunidades no mercado de trabalho do que os homens (e princi-palmente poca em que Merton formula a sua teoria) e, no entanto,a sua taxa de criminalidade muitssimo inferior masculina. Ouseja, Merton generaliza, sociedade no seu conjunto, uma teoria que vlida, apenas, para o gnero masculino. Ento, a sua teoria poderser considerada sexista.

    Quanto aos poucos trabalhos anteriores dedicados especificamente

    s mulheres, seja como delinquentes ou como vtimas, a crtica ainda mais contundente. Consideram que so distorcidos, porque,quando a criminalidade masculina era j explicada principalmente porfactores sociais e culturais, explicavam a criminalidade feminina ain-da, sobretudo, por factores biolgicos e psicolgicos ligados noode patologia mental. A criminalidade feminina era vista como algoanmalo e, at, perverso, no quadro de uma viso da mulher comoum ser passivo e vocacionado para o lar. Quanto vitimao, atri-bua-se uma certa irracionalidade e fragilidade emocional s mulhe-res, dado que declaravam mais medo serem vtimas de crime do que

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    os homens, mas, ao mesmo tempo, as estatsticas oficiais indica-vam que os homens eram muito mais vitimizados do que as mulhe-

    res. Ora, os inquritos de vitimao vieram revelar que esse medodecorria de experincias reais, j que homens e mulheres tendem aser vtimas de crimes diferentes: no caso das mulheres, quando vti-mas de crime, este tende a ser mais violentador da sua integridadefsica e psicolgica, ao passo que os homens so mais vtimas decrimes contra a propriedade. Para alm disso, por razes sociais eculturais, as mulheres tendem a participar muito menos os crimes deque so vtimas principalmente os que envolvem violncia da asua sub-representao estatstica.

    Quanto s questes mais tratadas pelas abordagens feministas na

    criminologia, para alm da delinquncia feminina e da violncia con-tra as mulheres, j referidas, tem tido ainda algum destaque a ques-to do impacto do gnero nas experincias subjectivas dos indivdu-os com o sistema de justia, seja como delinquentes, vtimas, cida-dos, em geral, ou no contexto de uma carreira profissional. Mas aquesto que me parece nuclear continua a ser a de explicar por que ataxa de criminalidade feminina, em todo o lado e em todas as pocas, sempre muito inferior masculina. Rejeitadas as explicaes base-adas em especificidades biolgicas ou psicolgicas inatas, os estu-dos desenvolvidos apontaram principalmente para dois processos: asocializao e a estrutura social. As mulheres so socializadas parase portarem bem, serem bonitas e meigas, para valorizarem as rela-es sociais, cuidando dos outros, especialmente os maisdesprotegidos. Ento, as mulheres delinquentes tendem a ser vistascomo duplamente desviantes por terem cometido um delito e porse terem desviado das expectativas culturais em relao ao seu com-portamento. Ou seja, o controlo social muito mais forte sobre asmulheres do que sobre os homens. Para alm disso, do ponto devista da estrutura social, as actividades masculinas processam-se

    muito mais no exterior da esfera domstica, pelo que se deparamcom muito mais oportunidades para infringir a lei.

    Mas, sendo assim, seria normal que, medida em que posies epapis sociais de homens e mulheres se aproximam de uma relativaigualdade, o mesmo deveria acontecer com as respectivas taxas decriminalidade o que no se verifica! Por esta razo, estudoscriminolgicos mais recentes tm explorado, tambm, o conceito demasculinidade(s) j no apenas, porque que as mulheres come-tem menos crimes?, mas, tambm, porque que o crime parece serum fenmeno especificamente masculino?

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    Para tratar esta questo necessrio entender o gnero no ape-nas como uma posio e um papel sociais, mas, tambm, como um

    mecanismo que contribui para a reproduo da estrutura social. Quan-do mulheres e homens se comportam de acordo com as expectativasnormativas sobre o que a feminilidade e a masculinidade, eles estoa reproduzir no duplo sentido de serem uma manifestao de, e decontribuirem para a perpetuao de hierarquias sociais de gnero.Nesta linha, muita da criminalidade masculina pode ser entendidacomo uma realizao de gnero, enquanto afirmao de masculinida-de, num dado contexto scio-cultural, que fornece um dado entendi-mento da masculinidade sobretudo em termos de poder, sucessoe/ou recursos e numa dada situao que fornece as oportunida-

    des para violar a lei.Nesta abordagem, muito ilustrativo um estudo realizado em In-

    glaterra por Campbell (ver Tierney 1996: 271-2) sobre um conjunto debairros desfavorecidos onde, em 1991, se haviam dado uma srie detumultos protagonizados por gangs de jovens rapazes. A propsitodesses tumultos e no amplo debate pblico sobre delinquncia juvenilque geraram, os media, os polticos e as instituies de intervenosocial e judicial salientaram problemas, tais como o tratar-se de bair-ros habitados por uma subclasse de pessoas desinseridas socialmen-te, a existncia de muitas famlias monoparentais (sobretudo messolteiras), a indisciplina na educao dos jovens, etc. Mas pareciamignorar, sistematicamente, o facto de esses tumultos terem sido co-metidos por rapazes e no por raparigas. Alis, eram os rapazes osprincipais responsveis pela delinquncia e pelo ambiente ameaadorno quotidiano desses bairros. Por outro lado, Campbell observou queos projectos comunitrios que a se tentavam implementar enfrenta-vam enormes dificuldades e eram sobretudo as mulheres que se empe-nhavam neles, ou seja, eram elas quem se esforava por manter umcerto grau de coeso e estabilidade na comunidade6. Porqu? O que

    se passava com os homens e os rapazes? Para a gerao dos seus pais,o entendimento da masculinidade desenvolvia-se sobretudo em tornodo local de trabalho, do pub e do lar, estruturas estas ligadas aos pa-pis de trabalhador, ganha-po e pai de famlia. Com os elevados nveisde desemprego que persistem desde finais da dcada de 1970, aquelaestruturao, que organizava a vida no bairro, vai-se progressivamentedesintegrando. falta de alternativas inspiradoras, criar distrbios, rou-bar carros, assaltar, vandalizar a propriedade alheia passaram a ser,para muitos dos jovens destes bairros, formas de expressar a sua mas-culinidade, entendida como exerccio do poder.

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    Este estudo, tendo embora o mrito de equacionar com clareza aquesto do gnero na explicao da delinquncia juvenil, foi, contu-

    do, alvo de inmeras crticas, entre as quais destaco a de que noexplica porque muitos outros jovens rapazes, inseridos no mesmocontexto social, no se envolvem em actividades delinquentes. Esco-lho esta crtica porque nuclear a todas as teorias psicolgicas, soci-ais e culturais apresentadas at aqui: Porque que muitos jovensresidentes em bairros socialmente desorganizados no se envolvemem actividades delinquentes?. Porque que muitos irmos de mem-bros de gangs delinquentes e criminosos no se tornam, tambmeles, membros desses gangs? Como que muitos indivduos priva-dos de oportunidades socio-econmicas e sujeitos enorme presso

    da cultura do consumo e do sucesso se conformam com a sua situa-o e prosseguem a sua vida sem infringirem as normas sociais nemdegenerarem mentalmente? Como possvel que o capitalismo te-nha vindo a resolver contradies que pareciam insanveis? Etc.

    Estas questes crticas fundamentam uma das tendncias crticasmais fortes e actuais na teoria criminolgica.

    NOVAMENTE O INDVIDUO, MAS TAMBM A SITUAONOVAMENTE O INDVIDUO, MAS TAMBM A SITUAONOVAMENTE O INDVIDUO, MAS TAMBM A SITUAONOVAMENTE O INDVIDUO, MAS TAMBM A SITUAONOVAMENTE O INDVIDUO, MAS TAMBM A SITUAO

    Todas as abordagens apresentadas at aqui tendem a ver o acto cri-minoso como uma adaptao ou reaco a causas externas ao indiv-duo que o pratica: desorganizao social de certos territrios urba-nos; associao diferencial com pessoas portadoras de normas delin-quentes; socializao em subculturas delinquentes; presso culturalpara o sucesso material num contexto de falta de oportunidades soci-ais legtimas; adaptao a processos de rotulagem; relaes de explo-rao e dominao capitalista e realizao de gnero. Mais recente-mente, a partir da dcada de 1980, observa-se uma viragem no senti-do de remeter para segundo plano este tipo de factores e focando,

    novamente, o indivduo e a situao. As abordagens individualista esituacional (ver Giddens 1997: 166-167; Ferreira et al. 1995: 46-48;Gonalves 2000: 124-134; Lilly et al. 2002: 234-242; Pease 1997; Rock1997: 243-245), muito embora analiticamente distintas, esto estrei-tamente relacionadas.

    A abordagem situacional apoia-se sobretudo nas teorias das acti-vidades de rotina e dos estilos de vida, que tm em comum a ideia deque o crime resulta do modo como organizamos a nossa vida quoti-diana. Estas perspectivas partem do princpio de que o crime aconte-ce quando convergem, no espao e no tempo, os seguintes elemen-

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    tos: um delinquente motivado, uma vtima adequada e a ausncia deuma proteco eficaz. As actividades de rotina, nas sociedades mo-

    dernas, dispersam as pessoas das suas famlias e dos seus lares, tor-nando-as mais desprotegidas. Mas o grau de vulnerabilidade depen-de tambm do estilo de vida. As actividades profissionais e de lazer,os padres de relacionamento familiar e de habitao expem e asso-ciam o indivduo a determinados tipos de pessoas, fazendo variar assuas probabilidades de vitimao.

    A abordagem individualista estuda o crime sobretudo do ponto devista do indivduo que o pratica, apoiando-se num conjunto de teori-as provenientes sobretudo da economia e da gesto: anlise estrat-gica, teoria das oportunidades, teorias da escolha racional, teoria da

    racionalidade limitada e anlise econmica. Um retorno s teoriasindividualistas dos sculos. XVIII e XIX com que inicimos esta di-gresso? Na verdade, so habitualmente interpretadas nesse sentidoe vistas como marcadamente conservadoras. No obstante, parece-me existirem diferenas pertinentes. De certa forma, trata-se de abor-dar a teoria da escola clssica segundo a epistemologia da escolapositivista. Tal como as subsequentes teorias scio-culturais, tam-bm as teorias positivistas individualistas que fundaram a criminologiase organizavam em torno da questo de saber por que certas pessoasse envolvem no crime. J a abordagem individualista contempor-nea, mais na esteira da escola clssica, centrada na questo de per-ceber a deciso individual de se cometer um dado crime numa dadasituao. Vrias investigaes demonstram que muitos crimes, emespecial os crimes menores, resultam de decises individuais toma-das em funo das situaes, o que remete para segundo plano facto-res de constituio biolgica ou psicolgica ou de contexto social,econmico e cultural. Trata-se, ento, de entender o acto criminosodo ponto de vista do indivduo que o pratica, visto como um actorracional, muito embora limitado por vrios factores de incerteza, que

    escolhe uma de entre vrias alternativas, baseado numa lgica decustos de oportunidade, i.e., ponderando vantagens e riscos.

    Por outro lado e no obstante as acusaes de conservadorismo,este tipo de teorias tambm pode revelar-se especialmente adequadopara estudar e pensar a resoluo de grande parte da criminalidadeprpria das classes mdias e altas crimes de colarinho branco ecrimes institucionais. As Naes Unidas, em 2000, no seu 10o Con-gresso sobre Preveno do Crime e Tratamento dos Delinquentes, aoanalisarem o impacto da globalizao na criminalidade, retiram duasconcluses fundamentais: as novas formas criminais so sobretudo

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    as que envolvem alta tecnologia e, para alm disso, as organizaescriminosas tm vindo, progressivamente, a adoptar estruturas de tipo

    empresarial para desenvolverem as suas actividades, empregandopessoas altamente qualificadas e desenvolvendo mecanismos alta-mente especializados.

    Este tipo de criminalidade coaduna-se pouco com as explicaessociais e culturais expostas at aqui a prpria criminologia crticadenuncia mais do que explica este tipo de criminalidade sendo maiscompreensvel luz da racionalidade econmica proposta pelas no-vas teorias individualistas sem que, no entanto, aquelas devam sercompletamente postas de lado. Alis, outra tendncia contempor-nea na criminologia , justamente, produzir teorias integradas. E pa-

    rece-me ser esse o seu sentido de evoluo mais promissor.

    ConclusoConclusoConclusoConclusoConclusoA reviso feita sugere um certo esgotamento, no plano terico, dadescoberta e conceptualizao de novas dimenses sociais e cultu-rais para explicar e compreender o crime, sem que, ao mesmo tempo,se tenha consagrado alguma das vrias abordagens como superior-mente explicativa em relao s demais. No entanto, tal no significao esgotamento da prpria criminologia, antes pelo contrrio. Comefeito, actualmente, a investigao tem capitalizado e aprofundadotodas as abordagens referenciadas e a teoria tende a produzirintegrao entre elas. Ou seja, no domnio acadmico, o crime est,verdadeiramente, a ser visto como um fenmeno social total (Mauss1982), i.e., como um fenmeno complexo e pluridimensional e serdesejvel que esta viso contamine as polticas sociais e criminais demodo consequente.

    Como referi, logo no incio deste texto, habitual e muito pertinentetratar as teorias criminolgicas em articulao com as suas implica-es nas polticas de interveno social, de tratamento dos indivduos

    e na justia criminal. Contudo, penso que seria tambm bastante fe-cundo analisar as suas articulaes com o senso comum. muito cor-rente a confuso entre o explicar e compreender da epistemologiacientfica e, por outro lado, o justificar e desculpabilizar ticos dosenso comum, sendo esta confuso especialmente sensvel a propsi-to do tratamento poltico do crime. De facto, e no obstante uma certahomologia que se possa ver entre ambas as dimenses, estas dimen-ses so diferentes. Mas, nas ambiguidades e incompreenses queexistem entre uma e a outra, fica todo um espao aberto s mais varia-das manipulaes e oportunismos.

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    Esse espao o problema da culpa ou, pelo menos, da responsabi-lidade. Da que me parea desejvel que os sectores mais progressis-

    tas da criminologia no reajam s novas tentativas de enquadramentoterico do livre-arbtrio com a atitude de princpio esteriotipada derejeio, como parecem estar a fazer, sob risco de, uma vez mais, ossectores mais conservadores monopolizarem o tema e a intervenonas questes de lei e ordem. Por outro lado, seria desejvel queestes ltimos no interpretassem toda a tentativa de compreender eexplicar o crime para alm do livre-arbtrio como uma tentativa, mo-ralmente ambgua, de desculpabilizao do indivduo e dos gruposque o praticam, sob risco de se revelarem absolutamente inaptosnaquilo que se propem resolver. Os tempos que vivemos exigem

    que se resolva e ultrapasse este conflito.

    NOTASNOTASNOTASNOTASNOTAS

    1 Conceito introduzido na 5a edio da sua Sociologia Criminal, em1929-30, e que acrescenta aos cinco tipos j definidos das ediesanteriores: o criminoso nato ou instintivo, o demente, o passional,o ocasional e o habitual (Lilly 2002: 19-29).

    2 Corrente filosfica fundada nos EUA, em meados do sculo XIX,que, algum caracterizou como inocente da metafsica, escapan-do distino desatrosa entre aparncia e realidade (Murphy 1990:8), entendendo toda a produo de conhecimento como orientadapara a resoluo de problemas e fundada na experincia perceptivaque o sujeito tem do mundo. Ao contrrio do racionalismo, quedomina a cincia moderna, o pragmatismo no postula uma sepa-rao epistemolgica entre conhecimento objectivo, percepo sub-jectiva e envolvimento tico.

    3 Movimento poltico que, poca, crticava os custos humanos queo crescimento industrial acarreta e advogava amplas reformas soci-

    ais em benefcio dos mais desfavorecidos; teve particular influnciana sequncia da crise de 1929.

    4 Por exemplo, como notam Dias e Andrade (1997: 352-355), a reacosocial ao desvio primrio provoca distncia social face ao desviante,o que levar reduo das suas oportunidades legtimas e o em-purrar para se ligar a subculturas delinquentes, uma vez que, porum lado, a procura de oportunidades ilegtimas no possvel semo apoio de um grupo e, por outro, a prpria experincia nas institui-es de controlo social leva a uma dessocializao em relao ao

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    mundo convencional e socializao em novas subculturas, porefeito da associao diferencial.

    5 O problema da medio do crime um dos mais difceis e contro-versos na criminologia. Entre os realistas, que afirmam que o crimeexiste e pode ser medido, e os radicais, para quem o crime, em si,no existe, sendo apenas uma construo social, encontramos aposio, que me parece mais acertada, que afirma que so as taxasde crime que so socialmente construdas. As estatsticas oficiaisapenas contabilizam os crimes participados s polcias e em pro-cesso nos tribunais, o que, por variadas razes, representa apenasuma pequena parte da criminalidade ocorrida. Por este facto, pode-se afirmar que as estatsticas oficiais, muitas vezes, reflectem mais

    a maior ou menor capacidade de actuao das polcias e a maior oumenor eficcia do sistema de justia do que a prpria realidade docrime. Em todas as sociedades, estas taxas ficam sempre muitoaqum da realidade que representam. Alis, foi tambm com o ob-jectivo de colmatar estas deficincias que se comearam a realizarinquritos de vitimao. No entanto, para efeitos de informaoestatstica, estes tambm apresentam muitas limitaes, especial-mente quanto ao tipo de crimes que contemplam.

    6 O conceito de comunidade to usado nas teorias mais directa-mente ligadas implementao de polticas sociais e criminais ,na verdade, problemtico. Comunidades territoriais, comunidadesde interesses e comunidades de pertena so fenmenos distintosque podem combinar-se ou no (ver, por exemplo, Walklate 1996:305-307).

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    SumrioSumrioSumrioSumrioSumrio

    Neste artigo, feita uma reviso crtica dasprincipais abordagens tericas nacriminologia, com especial destaque para asabordagens de pendor sociolgico. Assim,so analisados o trajecto que vai da investi-gao do homem criminoso observado,primeiro, como agindo segundo o seu livre-arbtrio e, depois, como determinado por

    factores de ordem biolgica e psicolgica at investigao da sociedadecrimingena. Neste ltimo campo de inves-tigao, o sculo XX representa o sucessivodesdobramento de mltiplas dimenses so-ciais, econmicas, culturais e polticasexplicativas do comportamento criminoso. Oretorno que, actualmente, se observa, abor-dagem individualista objecto de uma refle-xo crtica particular.

    Understanding and Responsibility:Understanding and Responsibility:Understanding and Responsibility:Understanding and Responsibility:Understanding and Responsibility:A Digression Through CriminologyA Digression Through CriminologyA Digression Through CriminologyA Digression Through CriminologyA Digression Through Criminology

    SummarySummarySummarySummarySummary

    In this article, a critical review of the maintheoretical approaches in criminology is done,emphasizing especially the approaches ofsociological orientation. In that sense, thecourse that goes from the investigation ofthe criminal man is analysed seen, first,as acting according to his free-will and, after-wards, as determined by factors of biological

    and psychological order until the investi-gation of the criminogenous society. Inthis last field of investigation, the XXth cen-tury represents the successive deployment ofmultiple social, economical, cultural andpolitical dimensions that explain the crimi-nal behaviour. The return which is actuallyobserved to the individualist approach isobject of particular critical reflection.