comunicado 44

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Guerra e revolução nas trincheiras de Rojava: Posição dos anarquistas revolucionários Comunicado nº 44 da União Popular Anarquista (UNIPA) Brasil, março de 2015. A luta pela liberdade do Curdistão não começou hoje. O povo curdo possui uma luta pela autodeterminação que percorre séculos de combate na região da Mesopotâmia. Entre guerras e revoltas, domínio externo ou controle e repressão pelas próprias oligarquias, a história de luta deste povo, especialmente a história recente, começa a criar interesses pelos quatro cantos do mundo. Afinal, quem são esses homens e mulheres que hoje combatem e resistem ao avanço do Estado Islâmico no norte da Síria? A imprensa mundial e os governos não têm interesse em divulgar informações. Hoje os olhos do mundo se voltam para a resistência heroica e as vitórias das massas populares em Kobane contra o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS). Os conflitos recentes nesta região que abarca a Turquia, Iraque e Síria é alvo da intervenção e controle imperialista e de grupos jihadistas que disputam o redesenho geopolítico do norte da África e Oriente Médio. A resistência armada em Kobane se insere hoje em um teatro de operações político-militares complexo e que impõe para a ordem do dia o debate teórico, estratégico e programático dos revolucionários e anarquistas. A calorosa solidariedade no mundo inteiro e o tremular das bandeiras negras novamente nas trincheiras de Kobane nos mostraram a importância da solidariedade internacional para o avanço da luta e de uma linha anarquista que não fuja às tarefas da revolução. Porém, mais do que apenas uma defesa simplista (e até estética) ou uma crítica purista e irresponsável (pacifista ou sectária) hoje é fundamental um posicionamento dos anarquistas revolucionários afim de influir nos acontecimentos, para defender e avançar nas conquistas do povo curdo e das massas trabalhadoras do mundo inteiro. É buscando contribuir com uma análise anarquista e revolucionária da situação e com um objetivo militante que nós da UNIPA lançamos esse comunicado. As guerras no Iraque, Síria e Turquia: O terreno da luta Devemos situar que o atual conflito em Kobane está intimamente relacionado com a guerra no Iraque, com a guerra civil síria, bem como com a guerra de guerrilhas desenvolvida e dirigida pelo

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comunidade representa manifesto alucinógeno aloucura nunca deixou de lado a manifestação ideologica

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  • Guerra e revoluo nas

    trincheiras de Rojava: Posio dos anarquistas revolucionrios

    Comunicado n 44 da Unio Popular Anarquista (UNIPA)

    Brasil, maro de 2015.

    A luta pela liberdade do Curdisto no comeou hoje. O povo curdo possui uma luta pela

    autodeterminao que percorre sculos de combate na regio da Mesopotmia. Entre guerras e

    revoltas, domnio externo ou controle e represso pelas prprias oligarquias, a histria de luta

    deste povo, especialmente a histria recente, comea a criar interesses pelos quatro cantos do

    mundo. Afinal, quem so esses homens e mulheres que hoje combatem e resistem ao avano do

    Estado Islmico no norte da Sria? A imprensa mundial e os governos no tm interesse em

    divulgar informaes.

    Hoje os olhos do mundo se voltam para a resistncia heroica e as vitrias das massas populares

    em Kobane contra o Estado Islmico do Iraque e Levante (ISIS). Os conflitos recentes nesta regio

    que abarca a Turquia, Iraque e Sria alvo da interveno e controle imperialista e de grupos

    jihadistas que disputam o redesenho geopoltico do norte da frica e Oriente Mdio.

    A resistncia armada em Kobane se insere hoje em um teatro de operaes poltico-militares

    complexo e que impe para a ordem do dia o debate terico, estratgico e programtico dos

    revolucionrios e anarquistas. A calorosa solidariedade no mundo inteiro e o tremular das

    bandeiras negras novamente nas trincheiras de Kobane nos mostraram a importncia da

    solidariedade internacional para o avano da luta e de uma linha anarquista que no fuja s tarefas

    da revoluo.

    Porm, mais do que apenas uma defesa simplista (e at esttica) ou uma crtica purista e

    irresponsvel (pacifista ou sectria) hoje fundamental um posicionamento dos anarquistas

    revolucionrios afim de influir nos acontecimentos, para defender e avanar nas conquistas do

    povo curdo e das massas trabalhadoras do mundo inteiro. buscando contribuir com uma anlise

    anarquista e revolucionria da situao e com um objetivo militante que ns da UNIPA lanamos

    esse comunicado.

    As guerras no Iraque, Sria e Turquia: O terreno da luta

    Devemos situar que o atual conflito em Kobane est intimamente relacionado com a guerra no

    Iraque, com a guerra civil sria, bem como com a guerra de guerrilhas desenvolvida e dirigida pelo

  • PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdisto) e demais organizaes curdas atuantes na Sria e

    Iraque.

    Depois do atentando sobre as torres gmeas nos EUA em 2001, o governo de George W. Bush,

    dos EUA, e de Tony Blair, da Inglaterra, invadiram o Iraque em 2003 e destruram o Estado

    comandando pelo Partido Baath (Nacionalista rabe, de maioria Sunita um ramo do islamismo)

    de Saddam Hussein sob a justificativa, falsa, de eliminar armas de destruio em massa. Em

    busca de uma ao rpida que atendesse os interesses do imperialismo, de controle de reservas

    energticas, petrleo, e de controle poltico-militar da regio, apoiado por Israel e as monarquias

    do golfo prsico, os americanos e britnicos destruram o Estado iraquiano, um dos poucos

    Estados laicos e no-alinhados com os EUA, dividindo-o.

    A partir de ento se iniciou uma guerra civil pelo controle do novo Estado iraquiano e uma luta

    de resistncia contra as tropas imperialistas. Uma parcela de grupos tnicos-poltico locais, curdos

    e xiitas, que estavam fora do poder durante o governo de Saddam Hussein, apoiaram a invaso.

    Por sua vez, os EUA e a Inglaterra sustentaram a formao de um governo fantoche composto

    por curdos, xiitas e sunitas. Entretanto, os conflitos se acirraram na medida em que antigos grupos

    fora do poder (principalmente sunitas) passaram a se vingar. No houve aliana possvel para o

    controle compartilhado do Estado Neoliberal proposto pelos EUA e aceito pelas classes dirigentes

    desses grupos tnicos e religiosos.

    Assim, a poltica da OTAN, de Israel e dos EUA para o Iraque passa pelo redesenho e a diviso

    de todo o Oriente Mdio. uma poltica claramente neocolonial. O desmantelamento do Iraque

    aumentou a resistncia ocupao com grupos vinculados rede Al Qaeda. De origem Sunita,

    composto por jihadistas de vrias partes do mundo, esse grupo criou o Estado Islmico do Iraque

    e Levante (ISIS), com leis baseadas em textos religiosos do Isl, formando um novo Califado,

    tambm patrocinado pelos EUA. Os rebeldes da Frente Al Nursa (ramificao da Al-Qaeda na

    Sria) e do ISIS so vinculados s foras paramilitares patrocinadas e treinadas pela aliana militar

    ocidental para a guerra civil na Sria. No por acaso, romperam com Al-Qaeda para se concentrar

    na luta pela formao desse estado que compreende o Nordeste da Sria e quase todas as regies

    de maioria rabe sunita do Iraque.

    Portanto, que fique claro, o Estado Islmico filhote do imperialismo norte-americano. Por isso

    est correto quando a organizao turca Ao Anarquista Revolucionria (DAF) afirma que:

    Estados covardes cuja nica expectativa o lucro, fundariam o ISIS hoje, arrepender-se-iam hoje,

    e reconheceriam o Estado Islmico amanh. Enquanto o povo sempre lutar pelo seu futuro e por

    sua liberdade, como no passado. Essa frase define muito a atuao imperialista na regio do

    Oriente Mdio nas ltimas dcadas, apoiando atores contraditrios, oligarquias do bem contra

    oligarquias do mal, golpistas contra governos democrticos, e modificando essas definies de

    acordo com os seus interesses polticos.

    A fundao do ISIS, do Califado, est vinculado a agenda dos EUA para retalhar o Iraque e a Sria

    em mais dois territrios separadas: uma repblica xiita rabe e a Repblica do Curdisto (de

    carter burgus e pr-imperialista). Esse projeto conta com apoio dos israelenses e das ditaduras

    e monarquias absolutas do Kuwait, Catar, Arbia Saudita e Emirados.

  • O atual Governo Regional do Curdisto (KRG), tambm conhecido como Curdisto Iraquiano,

    atende essa agenda geopoltica e apoiado pelos EUA e o Estado de Israel. O KRG controlado,

    atravs de eleies, por trs partidos da direita curda e mantm uma poltica de apoio s

    multinacionais que exploram esta regio com imensas reservas petrolferas. As foras polticas da

    burguesia curda que atualmente controlam o Curdisto Iraquiano colaboraram no combate ao PKK

    e guerra de guerrilhas, chegando a entrar em conflito durante o incio da dcada de 1990.

    A atual guerra civil na Sria, iniciada no primeiro semestre de 2011 sob a forma de grandes

    manifestaes de rua e que em alguns meses ganharam o carter de conflito armada, ganhou

    contornos regionais e mundiais com a interveno das principais potncias imperialistas (EUA,

    Frana, Alemanha, Inglaterra, Rssia e China) e de pases semiperifricos como a Turquia. Depois

    de uma ameaa de interveno direta na Sria pelo presidente estadunidense Barack Obama

    (Partido Democrata), reprovada a priori pelo prprio parlamento, o governo Russo articulou um

    acordo de entrega de armas qumicas srias com a ONU. Assim, Putin reforou a posio do eixo

    Moscou-Pequim contra a interveno militar defendida pelos lderes europeus, encabeados pelo

    socialista Franois Hollande e Angela Merkel, Obama e o governo Turco de Erdogan.

    A oposio sria est dividida entre grupos salafistas, jihadistas sunitas (Brigadas Liward al

    Tawhidi, Ahrar al Cham, Souqour al Cham) que formaram o Conselho Islmico, os islmicos

    moderados (Brigadas Al-Farouk), grupos curdos e o Exrcito Livre da Sria (sigla FSA, coalizao

    mais pr-ocidental) que formaram o Conselho Nacional Srio. No incio do ano de 2014 foi formado

    o Comit Nacional de Coordenao para Mudana Democrtica que negocia com as potncias

    ocidentais e com a Liga rabe.

    Ao contrrio do que muitos afirmaram, a radicalizao da luta de classes no norte da frica e no

    Oriente Mdio, atravs dos levantes populares, no apenas no levaram a revolues

    democrticas como serviram para piorar as condies de vida, aumentando a misria e o

    autoritarismo, abrindo espao para a atuao de grupos militares fundamentalistas e sucessivos

    golpes militares e conflitos tnicos. Hoje existem mais de 300 mil refugiados da guerra civil. Alm

    disso, segundo dados do Observatrio Srio de Direitos Humanos (OSDH), mais de 200 mil

    pessoas j morreram desde o incio dos conflitos em 2011. As mortes aumentaram a cada ano, e

    em 2014 chegaram a 76.012 pessoas mortas, com alto ndice de mortes de crianas e civis em

    geral. Uma das principais razes para que os levantes do norte da frica tenham fracassado o

    domnio religioso-conservador na direo das oposies (que reestabeleceram novas oligarquias

    no domnio do poder do Estado) e a inexistncia de organizaes revolucionrias de massas

    capazes de questionar o fundamento desse poder de explorao e opresso sobre o povo.

    As disputas em curso tanto no Iraque como na Sria estavam dentro de um jogo de interesses

    polticos e econmicos dos pases centrais e de potncias regionais (como Turquia e Ir). H fortes

    disputas energticas em torno do fornecimento de gs para a Europa. Por fim, h as disputas

    polticas pelo controle poltico do Norte frica, Oriente Mdio e sia Central.

    Com isso, a instabilidade na regio com a quedado governo ditatorial de Bashar Al-Assad pode

    gerar problemas para Israel, devido a ao dos grupos islmicos fundamentalistas, e mesmo para

    o Ir, que procura estabelecer novas relaes com as potncias mundiais. Mas para China,

    Rssia, EUA e Unio Europeia surge a necessidade de manuteno do domnio poltico e

  • econmico da regio. O povo trabalhador da Sria estava nas mos das potncias do ocidente, da

    autocracia do Partido Baas Srio e de setores islmicos (como o ISIS), militares e burgueses

    nacionais, com apoio de movimentos socialistas colaboracionistas que compem a oposio.

    Porm, o controle por parte de organizaes revolucionrias curdas do territrio ao norte da Sria

    denominado de Rojava, e dos combates militares em Kobane, anunciaram a entrada em cena de

    um novo sujeito social nos conflitos geopolticos da regio, as massas populares armadas.

    A guerra em Kobane contra a invaso jihadista e a defesa da revoluo social

    A formao do territrio de Rojava e seus desafios polticos e estratgicos esto inexoravelmente

    relacionados a esse contexto regional e mundial. Os ataques Kobane no comearam h trs

    meses. Aproveitando a oportunidade aberta pela guerra civil sria, uma srie de conflitos poltico-

    militares se desenvolveram na regio, desde julho de 2012, at que as milcias de autodefesa

    popular curda, YPG Unidades de Defesa Popular e YPJ Unidade de Defesa das Mulheres

    (frao feminina do YPG), libertassem o territrio reconhecido como a parcela sria do Curdisto

    e organizassem uma nova poltica, economia e cultura.

    Sobre as razes do incio do conflito territorial, o Ministro da Autodefesa do Canto de Kobane,

    smet x Hesen, em uma entrevista, afirma que:

    (...) a batalha de Kobane est acontecendo h cerca de um ano e seis meses.

    Antes eram principalmente grupos como a frente Al-Nusra e Ahrar-i farsa e outros

    que estavam no ataque contra Kobane. Kobane foi cercada por um ano e meio.

    Kobane fora privada de suas necessidades bsicas, como gua, eletricidade e

    comrcio. A batalha que hoje est chegando ao seu terceiro ms, parte desta

    histria. Eu no olho para os ataques ao Canto de Kobane como uma batalha

    com o EI. Olhamos para o EI como um agente de uma parceria internacional. Este

    agente possui parceiros em diversas partes do mundo. Ele tem parceiros no

    Afeganisto, na China, na Arbia Saudita, no Sudo, na Turquia e em muitos

    outros lugares. Vrios Estados diferentes tm a sua participao neste grupo. Por

    exemplo, eles receberam muito apoio de regies como do regime Baath e da

    Turquia. Foi a partir da que eles tiveram a coragem de atacar Kobane. (Fonte:

    www.resistenciacurda.wordpress.com)

    Portanto, segundo o ministro da autodefesa, o atual combate contra o Estado Islmico deve ser

    entendido dentro de um contexto internacional onde vrios grupos e Estados esto intervindo e

    buscando se beneficiar a partir do conflito.

    Um dado importante deste conflito so as batalhas entre a prpria oposio sria no jihadista pelo

    controle territorial do Curdisto srio. O Exrcito Livre Srio (FSA) alinhado ao imperialismo norte-

    americano, combateu Rojava durante trs meses, sendo derrotado pela YPG no final de 2013,

    levando ao armistcio e ao reconhecimento do territrio curdo pelo FSA. Portanto, alm de serem

    atacados pelos jihadistas da frente Al-Nusra e do Partido Baas (de Assad), as milcias populares

    curdas tiveram de combater a chamada oposio democrtica financiada pelos EUA.

    A Turquia de Erdogan, com sua poltica islamista pr-ocidente, tem sido pea chave na

    estruturao poltica da regio. Aliada do imperialismo norte-americano, o governo turco vem

  • desenvolvendo a anos uma caada contra o povo curdo e a luta do PKK e do Partido da Unio

    Democrtica (PYD - Partido curdo atuante em solo srio, aliado do PKK, e que dirige as milcias

    YPG-YPJ). A Turquia classifica, junto com os EUA e Unio Europeia, as organizaes pela

    libertao curda de terroristas.

    O papel que cumpre atualmente a Turquia neste conflito extremamente importante. Rojava um

    territrio que est hoje sendo atacada por um dos lados pelo ISIS e em sua retaguarda possui

    fronteira com a Turquia. Antes de iniciar este conflito entre as milcias curdas e o Estado Islmico

    a fronteira Turquia-Sria j era um importante meio de passagem dos traficantes de armas,

    equipamentos e pessoal para os jihadistas, tudo isso com o apoio do islamismo moderado de

    Erdogan. Durante o incio da guerra civil sria e com as grandes multides de refugiados que se

    deslocavam para fugir da guerra, Erdogan tentou a ttica da abertura das fronteiras para a

    pulverizao tnica e superpopulao da regio do Curdisto srio. Tticas que fracassaram.

    Com o incio dos ataques do Estado Islmico contra Kobane (um dos cantes de Rojava), a poltica

    da Turquia foi de fechar as fronteiras para o apoio, proibindo a passagem de pessoas e

    equipamentos para a resistncia em Kobane. Enquanto isso as fronteiras turcas permanecem

    abertas para os assassinos jihadistas do ISIS. Essa poltica foi parcialmente burlada quando da

    passagem de centenas de pessoas entre sindicalistas, comunistas, anarquistas e pessoas

    solidrias em setembro de 2014. Alm disso, por presses diretas do presidente norte-americano

    Barack Obama, o primeiro ministro turco Erdogan teve que assumir algumas medidas da coalizo

    ocidental contrria ao ISIS, sendo que uma delas era permitir a passagem de combatentes do

    KRG e do FSA para apoiar a resistncia em Kobane.

    Desde o incio do conflito em Kobane, a coalizo das potncias imperialistas (Coalizo

    Internacional) que se props a combater o avano do ISIS, no cumpriu esse papel quando isso

    significou apoiar diretamente o armamento do povo curdo organizado nas milcias YPG. A poltica

    da coalizo imperialista de no atuar por terra, apenas atravs de bombardeios e ataques areos,

    foi covarde e irrisria frente a tarefa de combater o avano do exrcito jihadista fortemente armado

    e equipado.

    Desde meados de outubro Obama pactuou com Erdogan, presidente da Turquia, para uma

    mudana de orientao que consistiria em uma atuao mais enrgica e pesada em apoio aos

    combatentes curdos de Kobane. No dia 20 de outubro de 2014, avies dos Estados Unidos

    lanaram 28 contineres contendo armamentos em um territrio controlado pelos curdos, apesar

    de 2 acabarem caindo em territrio controlado pelos jihadistas e um destes ter sido destrudo pelas

    milcias curdas.

    Um dia antes, dia 19 de outubro, havia sido lanado um comunicado pelo Comando Geral do YPG

    afirmando o acordo poltico-militar com o Exrcito Srio Livre (FSA), o exrcito aliado dos EUA.

    Seguindo essa orientao, a Turquia libera a fronteira para a passagem de combatentes

    peshmergas (foras militares do Governo Regional do Curdisto KRG, do Curdisto iraquiano).

    No entanto, como era de se esperar, a poltica fronteiria da Turquia em relao a esquerda

    revolucionria, especialmente o PKK, continuou inalterada.

    Portanto, entendamos o cenrio da guerra em Kobane. De um lado do front combatem as foras

    aliadas do YPG, FSA e peshmergas, do outro lado combate o ISIS. Porm, dentro das foras

    aliadas de Kobane existem interesses em conflito geopoltico latentes. Tanto FSA como

  • peshmergas so representantes regionais e militares da burguesia imperialista. A aliana destes

    setores na resistncia de Kobane cnica e oportunista, tal como o apoio dos EUA e da Turquia.

    As milcias populares curdas j se enfrentaram militarmente com todos esses agentes que hoje se

    dizem aliados contra o ISIS. E para a Turquia est claro: antes a vitria do terrorismo

    fundamentalista do que a vitria dos terroristas de Rojava. Para os EUA a situao no

    diferente. Porm, tampouco o ISIS cumpre as demandas do imperialismo para o norte da frica e

    Oriente Mdio, especialmente no que tange a hegemonia e aliana com o Estado de Israel.

    Nesse contexto o apoio da coalizo internacional e dos destacamentos militares do FSA e

    de peshmergas possui uma importncia estratgica para a burguesia imperialista. Os

    Estados pretendem disputar a direo da resistncia e reforar suas posies nos

    territrios de Kobane para, em um curto prazo, acabar com as conquistas polticas e

    econmicas das massas populares de Rojava. Afinal, no territrio srio liberado pelos

    curdos tambm existem grandes jazidas petrolferas.

    Esse debate, sobre a guerra de defesa nacional, sempre esteve presente nas lutas do proletariado.

    Os trabalhadores se defrontaram com essa situao em diversos momentos, seja na guerra

    franco-prussiana de 1870-1871 (situao em que emergiu a rebelio operria-popular que

    construiu a Comuna de Paris), passando pela Revoluo Russa de 1917 e a luta contra a invaso

    de mais de uma dezena de pases estrangeiros em meio a I guerra mundial, ou durante a guerra

    civil espanhola onde a luta contra o fascismo tomou contornos internacionais que exigiu uma

    poltica de defesa nacional.

    Frente a esses episdios cabe ressaltar aqui a experincia histrica, a poltica e a teoria dos

    anarquistas revolucionrios: Mikhail Bakunin e a Aliana, a Makhnovitchina e o grupo Dielo Trouda,

    Jaime Balius e os Amigos de Durruti. Todos estes anarquistas defenderam uma via de

    independncia poltica do proletariado como pea chave para o triunfo, no apenas da revoluo

    mas tambm da guerra anti-imperialista, ou seja, defenderam a inseparabilidade das duas esferas

    (nacional e internacional) do conflito social. Segundo Bakunin em suas Cartas sobre a situao da

    guerra franco-prussiana:

    No deve-se contar com a burguesia. (...) Os burgueses no veem, no

    compreendem nada fora do Estado, fora dos meios regulares do Estado. O

    mximo do seu ideal, de sua imaginao, de sua abnegao e do seu herosmo,

    a exagerao revolucionria da potncia e da ao do Estado, em nome da

    salvao pblica. Mas j demonstrei suficientemente que o Estado nessa hora e

    nas circunstancias atuais com os bismarckianos no exterior e os bonapartistas

    no interior -, longe de poder salvar a Frana, no pode mais do que derrota-la e

    mat-la.

    O que unicamente pode salvar a Frana, em meio aos terrveis e mortais perigos

    exteriores e interiores que a ameaam atualmente, a sublevao espontnea,

    formidvel, apaixonada, enrgica, anrquica, destrutiva e selvagem das massas

    populares em todo o territrio da Frana. Esteja convencido: fora disso no h

    salvao para vosso pas. (Bakunin, pg. 112-113)

    A elaborao terica de Bakunin sobre as consequncias da guerra de defesa nacional em um

    perodo de decadncia e guinada contrarrevolucionria do liberalismo burgus, onde o principal

  • interesse da burguesia a manuteno do Estado e continuidade da explorao do trabalho,

    clara e fundamental. A defesa do pas colonizado ou vtima de invaso imperialista exige uma ao

    autnoma do proletariado. Essa ao autnoma, massificada, organizada em resistncia popular

    armada (seja na forma de milcias ou exrcito revolucionrio), para expressar verdadeiramente

    sua potencialidade e fora social deve ser guiada no pelos ideais polticos do patriotismo e da

    grandeza do Estado que animaram a burguesia em um passado qualquer, e sim pelos ideais

    internacionalistas e pela construo prtica do socialismo e da liberdade. A guerra anti-imperialista

    ou antifascista deve se tornar guerra revolucionria socialista. Apenas assim possvel vencer

    no apenas um fascismo/imperialismo particular, mas avanar resolutamente na luta universal

    pela emancipao do proletariado.

    A partir dessa considerao terica bakuninista existem algumas concluses que podemos chegar

    para entender a guerra em Kobane. O apoio militar vindo das potncias imperialistas, por maior

    que fosse (mas no foi), no possui qualquer relao com os interesses de libertao do povo

    curdo ou do Oriente Mdio do jugo do autoritarismo e da explorao. Muito menos ser esse apoio

    que ir garantir a vitria curda. O que os EUA, ou qualquer Estado capitalista, pretende com o

    combate ao Estado Islmico manejar a guerra civil sria aos seus interesses e remodelar a

    geopoltica do norte da frica e Oriente Mdio. Claro que tambm um jogo perigoso para o

    imperialismo armar as milcias populares de Kobane caso no se consiga controlar ou neutralizar

    politicamente essa fora revolucionria. Por isso a importncia do FSA e do KRG como meio de

    disputa interna em defesa dos interesses da burguesia.

    A luta de libertao curda: federalismo ou estatismo?

    No estando apegada a terra, a burguesia, tal como o capital da qual hoje a

    encarnao real e viva, no tm ptria. Sua ptria est onde o capital lhe traga maiores

    lucros. Sua preocupao principal, para no dizer a nica, a explorao lucrativa do

    trabalho do proletariado. Desde o seu ponto de vista, quando essa explorao avana

    tranquila, tudo est perfeito, e, ao contrrio, quando ela se interrompe, tudo est

    pssimo. Portanto, no pode ter outra ideia alm de pr em movimento, por qualquer

    meio possvel, ainda que esse meio seja desonroso, signifique a decadncia e a

    submisso de seu prprio pas. E, no entanto, a burguesia possui necessidade da ptria

    poltica, do Estado, para garantir seus interesses exclusivos contra a exigncias to

    legtimas e cada vez mais ameaadoras do proletariado.

    Mikhail Bakunin, Cartas, pg. 197.

    Como dissemos no incio deste comunicado, os Curdos experimentaram um longo processo de

    lutas. Excludos das negociaes e trados pelo Tratado de Lausanne de 1923, depois de ter sido

    prometido um Estado prprio pelos aliados da I guerra mundial e com a partilha do Imprio

    Otomano. Os curdos ficaram divididos deste ento nos Estados da Turquia, Iraque, Sria e Ir,

    sendo a maior minoria tnica sem-Estado, oprimidos por diversos Estados. Vale ressaltar que

    outros povos tambm compartilham com os curdos a opresso tnica e nacional destes Estados.

    Segundo Abdullah Ocallan o Partido dos Trabalhadores do Curdisto (PKK) foi fundado em 1978

    na Turquia sob a orientao terico-poltica do marxismo-leninismo. O PKK at hoje a principal

  • organizao em defesa dos curdos na regio. A defesa durante a dcada de 70 e 80 da URSS e

    da linha comunista internacional para os pases semifeudais e semicoloniais se dava dentro do

    contexto da guerra fria e da bipolaridade mundial. O incio da luta armada, atravs da guerra de

    guerrilhas, ocorre em 1984 e tem como objetivo estratgico a defesa da libertao nacional,

    atravs da formao de um Estado curdo independente. Posteriormente, com o fim da URSS, o

    PKK se aproxima do maosmo internacional.

    A formao do PKK se deu em um perodo de identificao tnica especfica durante a dcada de

    70, orientada especialmente por um novo movimento estudantil com ideias esquerdista. Esse

    jovem movimento foi atacado desde o seu incio no apenas pelo Estado Turco mas tambm pelas

    aristocracias curdas, que se sentiram ameaadas pela nova identidade tnica curda de matriz

    popular que questionava a identidade tnica tradicional feudal defendida por essa aristocracia.

    Durante a guerra de 1991 no Iraque, houve uma modificao importante na luta de libertao

    nacional dos curdos. Os Estados Unidos apoiaram a formao de um governo curdo iraquiano

    governado por essa aristocracia curda aburguesada e pr-imperialista. Esse apoio dos EUA desde

    a dcada de 90 ir resultar no que hoje o Governo Regional do Curdisto (KRG), localizado ao

    norte do Iraque. Como j afirmamos, o KRG governado por trs partidos da direita curda, atravs

    de eleies parlamentares, e mantm em seu territrio imensas jazidas de petrleo sendo

    exploradas por multinacionais. O Curdisto Iraquiano divulgado na imprensa ocidental como um

    civilizado, moderno e democrtico. O antagonismo com a poltica do PKK evidente, chegando

    a levar a conflitos diretos entre estas foras polticas.

    Porm, a alguns anos atrs, uma mudana importante tambm ocorre no movimento de libertao

    curda. Com a priso do fundador e lder do PKK, Abdullah calan, momento em que este foi

    condenado a morte pelo Estado turco pelo crime de traio (posteriormente modificada para priso

    perptua), este passa a operar um processo de autocrtica em relao s concepes gerais com

    que vinham desenvolvendo a luta de libertao nacional curda. nesse processo em que

    desenvolve sua tese do Confederalismo Democrtico.

    O Confederalismo Democrtico se baseia no autogoverno das massas, atravs de organismos

    descentralizados de base e que se unificam de baixo para cima, formando os organismos centrais.

    A autonomia e a igualdade de direitos entre diferentes povos e coletividades tnico-culturais

    complementada com a liberdade religiosa e a igualdade de gnero. Acima de tudo tais igualdades

    de direitos e de fato (com rgos e espaos concretos para exerccio do poder popular) tem se

    mostrado muito mais avanados e reais neste rinco do Oriente Mdio do que em qualquer carta

    constitucional, to bonita quanto intil e farsante, dos pases ocidentais e liberais.

    Essa nova linha poltico-estratgica do PKK e do movimento de libertao nacional curda

    acima de tudo uma autocrtica da linha estatista e industrialista do marxismo internacional,

    em que o modelo clssico de lutas de libertao nacional confluem para a formao de um

    Estado-nao forte e independente, visando o desenvolvimento industrial e econmico em

    termos capitalistas, como etapa prvia ao socialismo. Ocorre que o destino histrico das

    democracias populares e das revolues democrtico-burguesas ao longo do sculo XX,

    apesar de importantes escolas do proletariado internacional, desenvolveram-se para a

    restaurao da explorao das massas trabalhadores por novas classes dominantes e

    burocracias. O proletariado que participou ativamente, e at mesmo dirigiu essas

  • revolues no sculo XX, experimentou xitos grandiosos (Vietn, China, Nicargua, etc.)

    e, tambm por isso, derrotas histricas.

    A defesa de um revoluo politicamente federalista, culturalmente feminista e multitnica, deve

    ser complementada necessariamente por um programa econmico de socializao dos meios de

    produo-distribuio-consumo sob o controle das massas trabalhadoras. Essa revoluo social

    no possui etapas mecanicamente determinadas pela ao do Estado/partido, de cima para baixo.

    Muito menos deve cumprir primeiramente uma etapa nacional-estatal e industrial para aps isso

    se tornar internacionalista e socialista. Ai reside toda a importncia histrica da experincia

    de Rojava e o potencial revolucionrio desta luta, ou seja, a possibilidade de apontar um

    norte no para a formao de um Estado-nao curdo, mas para superar o modelo estatista

    de autodeterminao dos povos e assim se vincular luta revolucionria internacional.

    O cessar fogo com o Estado da Turquia, h cerca de dois anos, e a defesa do fortalecimento de

    territrios autnomos e liberados fruto desta nova linha poltica do PKK. Ao que tudo indica,

    pelos acontecimentos de Rojava, isso no significa a adoo de uma linha pacifista ou

    democrtico-burguesa. Tanto que esse cessar fogo foi recentemente quebrado pelo governo da

    Turquia em um ataque a bases do PKK no dia 14 de outubro de 2014. Porm, deve-se analisar o

    desenvolvimento dos acontecimentos, as polticas de alianas, etc. afinal de contas, tampouco a

    revoluo em Rojava est isenta de contradies e disputas.

    importante observar que esta no foi a primeira ruptura de linha ou reviso do marxismo em

    direo ao federalismo no contexto de lutas anti-coloniais. No final do sculo XX, os grupos

    guevaristas do Mxico fizeram tambm uma reviso de linha, se adequando s condies de vida

    e luta dos povos sem-estado do sul do Mxico, e desse processo nasceu o moderno zapatismo,

    com o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN). Similarmente aos curdos, os povos

    indgenas do Sul do Mxico, colonizados e oprimidos por diversos Estados, geraram uma nova

    prtica de luta e liberao territorial. Outro exemplo modelar foi o da Comuna de Paris, em que os

    republicanos estatistas abdicaram de sua poltica em favor de uma poltica federalista,

    possibilitando assim o surgimento de um novo modelo Anti-Estatista de revoluo.

    O debate e a luta de tendncias no seio da esquerda e do anarquismo

    internacional

    Desde o incio da guerra em Kobane contra o ISIS diversas organizaes no mundo inteiro

    (comunistas, socialdemocratas e anarquistas) tem se posicionado sob diferentes pontos de vista.

    A omisso tambm foi um tipo de posicionamento, em geral covarde. Um posicionamento militante,

    que se desenvolve em solidariedade internacionalista, possui uma grande importncia, e isso

    porque as revoltas e revolues possuem causas e efeitos que extrapolam as localidades

    geogrficas onde elas acontecem. Devemos entender que a luta pela revoluo social em Rojava

    faz parte da longa marcha de aprendizagens e avanos da classe trabalhadora, sendo dever de

    uma organizao revolucionria atuar decididamente em sua defesa e pela sua vitria.

    A omisso e/ou negligncia da esquerda internacional frente a guerra revolucionria em Rojava

    diz respeito especialmente ao posicionamento pr-aliana com as burguesias de stalinistas,

    trotskistas e socialdemocratas. Eles fazem tal como a imprensa burguesa internacional e os

    governos, fingem desconhecer o processo e tratam de isolar e menosprezar a luta do povo curdo.

  • Isso ocorre em parte pelo simples fato de no estarem na direo ou em qualquer posto de

    combate da luta popular na regio. Incapazes de tomar parte na luta e disputar sua direo (por

    conta de suas tradies e mtodos reformistas que no se aplicam a esta realidade) acusam o

    PKK de ser stalinista e caem no mais puro idealismo, tornam seu julgamento poltico-moral como

    mais importante do que a anlise do processo real e suas contradies. Porm, essa omisso e

    secundarizao apenas uma face cnica dessa esquerda burocrtica e reformista.

    O debate internacional em torno da guerra em Kobane apresentou pelo menos duas vertentes

    errneas de interpretao. A primeira delas o posicionamento de alguns partidos e organizaes

    que h algum tempo vem saudando a chamada oposio sria do Conselho Nacional de

    Transio (CNT) e do Exrcito Srio Livre (FSA) e no por acaso passaram a se pronunciar mais

    decisivamente em defesa da luta em Kobane aps a unidade das milcias YPG com o FSA.

    Segundo o PSTU (seo brasileira da LIT-QI): (...) a unidade poltico-militar entre os combatentes

    curdos e os rebeldes srios rabes no s progressista como, em nossa opinio uma condio

    para a vitria, tanto no terreno da luta para derrubar a ditadura de Al Assad como para avanar

    rumo a um Estado independente de toda a nao curda.". Essa posio no apenas defendida

    pelo PSTU, mas tambm por correntes do PSOL e outros partidos reformistas brasileiros e

    europeus. Apresentando-se sob o rtulo de progressista revela-se na prtica das disputas

    geopolticas um apndice da poltica burguesa pr-imperialista.

    Alm disso, a posio trotskista revela dois elementos que esto em jogo na resistncia de

    Kobane: 1) a formao de um Estado-nao (e o discurso pan-curdo), ou seja, a unio de todo o

    povo curdo sob o poder centralizado do Estado; 2) a submisso poltica norte-americana para o

    Oriente Mdio. Isso significaria a submisso do processo revolucionrio em Rojava pela aliana

    com a burguesia curda pr-imperialista, no Curdisto Iraquiano. Essa a velha poltica marxista e

    reformista, e nesse caso entra em perfeita consonncia com os interesses imperialistas para a

    regio.

    O anarquista russo Bakunin, quando combateu na Frana contra a invaso prussiana em 1870-

    1871, j havia se posicionado em relao a poltica de setores de esquerda que apoiaram a

    direo poltica da burguesia republicana, tudo isso em nome da unidade e da fora nacional.

    Bakunin fala sobre a esquerda radical republicana:

    E a esquerda contestou? No fez absolutamente nada. Aclamou estupidamente

    esse ministrio agourento que, no momento mais terrvel que Frana podia ter

    passado, se apresentou a ela, no como um ministrio poltico, seno como um

    ministrio de defesa nacional. (...) A esquerda radical acreditou ou pareceu

    acreditar que se podia organizar a defesa do pas sem fazer poltica, que se podia

    criar uma potncia material sem a inspirar por nenhuma ideia, sem a apoiar por

    nenhuma fora moral. (...).

    Por patriotismo e por temor a paralisar os esforos sobre-humanos para a

    salvao da Frana destes dignssimos homens, a esquerda radical se absteve

    de toda recriminao e de toda crtica. Gambeta acreditou ser seu dever dirigir

    comprimentos calorosos e expressar sua plena confiana no general Palikao.

    Afinal, no tinham que manter a qualquer preo a unio e impedir funestas

    divises que apenas beneficiariam os prussianos? Tais foram a desculpa e o

  • argumento principal da esquerda, que se serviu deles para mascarar todas suas

    imbecilidades, todas as suas debilidades, todas as suas covardias. (Bakunin,

    Cartas, pg. 200)

    A segunda forma errnea de linha poltica para Kobane foi apresentada por grupos

    anarcossindicalistas no texto "Rojava: uma perspectiva anarcossindicalista". Aps esse texto

    algumas respostas e rplicas foram feitas, dentre elas destacamos o texto escrito pela organizao

    Ao Anarquista Revolucionria (DAF), da Turquia, chamado Uma resposta para Rojava: uma

    perspectiva anarcossindicalista.

    O texto anarcossindicalista se baseia em informaes parciais e uma concepo sectria em

    relao luta de libertao curda. As acusaes de que o PKK seja patriarcal, centralista,

    nacionalista, dentre outras, so mais baseadas na histria desse partido e em falsificaes do que

    na atualidade e na potencialidade da luta travada em Rojava. Confundem ento uma organizao

    com o conjunto diversificado dos grupos sociais em luta, da classe. Afora esse fato, o sectarismo

    da posio dos anarcossindicalistas, condenando a participao anarquista na luta pela

    autodeterminao dos povos expressa um desvio estratgico, programtico e terico. O mais

    contraditrio que muitos desses grupos apoiaram o Zapatismo quando este estava na moda

    nos anos 1990, sendo que as mesmas crticas direcionadas resistncia curda poderiam ser

    direcionadas ao Zapatismo.

    Para os revolucionrios, no interessa a priori se o partido a frente de um processo de luta

    socialdemocrata, maosta ou nacionalista, ou mesmo que no haja direo orgnica da luta. Para

    os anarquistas revolucionrios, que defendem o materialismo e a dialtica como mtodo de

    anlise, o que importa o carter concreto da luta que o povo est travando, se justa ou injusta

    para os interesses da revoluo social. Nunca a organizao anarquista deve abdicar seus

    princpios ideolgicos, tericos e estratgicos. Isso, ao contrrio da absteno purista, implica a

    participao e disputa interna dentro do movimento de massas, compreendendo as

    particularidades de cada tendncia e partido, sua histria e sua atualidade.

    Os anarquistas participam das lutas das massas trabalhadoras para fortalecer e orientar os

    aspectos positivos, e combater os desvios e deturpaes burocrticas e burguesas, seja

    combatendo partidos, organizaes militares ou setores das prprias massas populares.

    Da mesma forma que uma luta pode ser justa mesmo dirigida por um setor atrasado, tambm

    correto afirmar que essa direo (caso persista) ter implicaes diretas para a vitria ou derrota

    da luta, e que, portanto, tarefa dos revolucionrios a disputa e reorganizao para que as massas

    superem esta direo. Como j dissemos em outros documentos, o papel da organizao

    anarquista de iniciador-dirigente, ou seja, tornar-se vanguarda das massas em luta, isso significa

    atuar como amigo do povo, e acima de tudo no se afastar das massas, nem fugir das

    contradies.

    O conceito de minoria ativa surgiu historicamente, para expressar esse posicionamento. Como as

    foras polticas orientadas pelo princpio de autoridade tendem a ser, a princpio, as direes e

    hegemnicas nas organizaes, os anarquistas devem atuar como minoria ativa dentro do

    movimento, apontando os erros e contradies desses setores. Isso vlido para diversas

    situaes. Ou seja, atuar junto classe, suas lutas, como organizao autnoma minoritria.

  • O purismo e o sectarismo so uma grande armadilha. Leva uma organizao ou indivduo a no

    compreender o terreno no qual se luta, pois este indiferente para ele e as suas frmulas

    fechadas e nicas. Existe acima de tudo um sectarismo e purismo reformista, tpico das esquerdas

    parlamentares ocidentais (mas que atinge tambm os setores revisionistas do anarquismo), que

    desconhecendo e menosprezando as condies de luta na periferia do capitalismo preferem o

    caminho mais cmodo da condenao moral. Mas devemos observa que os mesmos

    anarcosindicalistas no fazem nenhuma autocrtica da capitulao do anarcossindicalismo

    Frente Popular nacionalista, poltica que ainda continua em vigor na Europa, com a acomodao

    de diversas organizaes ao capitalismo. O mesmo acontece com relao ideologia ps-

    moderna, onde grande parte do anacrosindicalismo capitulou ao eurocentrismo e racismo do

    feminismo burgus-imperial.

    Aos anarquistas revolucionrios no cabe a mera contemplao, deve-se compreender as

    condies da luta de classes em cada realidade (compreendendo tambm o que h de universal

    em cada realidade particular) para precisamente tomar parte na luta pela vitria do proletariado,

    independente das dificuldades a serem enfrentadas.

    Tanto a via reformista como a via sectria e purista se completam para derrotar a libertao curda

    antes mesmo que ela acontea. Uma refora o setor burgus e pr-imperialista e a outra refora

    a apatia, a indiferena e o sectarismo dos setores revolucionrios, os nicos que podem fazer

    avanar a luta em Rojava.

    Para as atuais condies da luta no Curdisto ou em qualquer parte do mundo os anarquistas no

    devem abdicar de sua organizao, seja em prol da direo do PKK ou de qualquer perspectiva

    nacionalista ou estatal-burguesa. Ainda que se lute conjuntamente com maostas, nacionalistas e

    outros setores que estejam apoiando a revoluo de Rojava contra a invaso reacionria,

    fundamental construir e fortalecer a organizao anarquista revolucionria como meio de

    aprofundar o processo anti-estatista e socialista e combater os setores burocrticos e

    colaboracionistas.

    A libertao da mulher est na ponta do fuzil e ao lado do povo

    A resistncia em Kobane est sendo dirigida por mulheres que ao

    mesmo tempo que combatem o ISIS, destroem valores machistas e

    favorecem uma atitude libertria para com as mulheres para que

    possamos ocupar um lugar numa nova sociedade.

    Comandante Meryem Kobane

    Um dos fatores que deu grande repercusso resistncia curda em Kobane foi a participao

    ativa e o papel dirigente e destemido das mulheres em todas as frentes de luta. Apesar de haverem

    sido divulgadas nas mdias de massa ocidentais quase unicamente um fator superficial e esttico

    (por vezes atendendo ao imaginrio machista com a imagem de mulheres armadas), e apesar das

    acusaes de patriarcalismo por parte de setores sectrios do anarquismo, apesar disso, um

    amplo movimento feminino tem se formado e avanado no Curdisto.

    O fato que as mulheres em armas possuem um novo patamar de dilogo na construo da nova

    sociedade. Assim foi na Comuna de Paris de 1871, assim foi na guerra civil espanhol de 1936,

    assim foi em outras experincias proletrias em que as mulheres tiveram participao decisiva. A

  • potencialidade de luta das mulheres sempre foi alvo de preconceito, at mesmo nas fileiras

    socialistas e revolucionrias. Porm, a experincia histrica uma escola para o povo e a

    exigncia pelos direitos das mulheres nunca esteve longe das necessidades da revoluo.

    Portanto, apesar da importncia central da ao feminina em Rojava, no podemos nos esquecer

    que as mulheres sempre estiveram presentes nas mais diversas lutas, armadas ou no, pelo

    mundo afora.

    O YPJ, ala feminina da milcias YPG, que rene hoje mais de 8.000 milicianas, expressa uma

    questo central em torno da libertao da mulher: a luta pela libertao da mulher no est

    desvinculada da luta pela emancipao da classe trabalhadora como um todo. Essa questo se

    expressa de forma muito clara no caso de Kobane, mas no deixa de estar presente como dilema

    universal da luta das mulheres. Caso os homens e mulheres de Kobane venam a guerra e a

    revoluo contra a opresso do capitalismo e do jihadismo, as conquistas feministas se garantem

    e aprofundam; caso contrrio a escravido sexual, o feminicdio e demais formas de represso

    brutal contra as mulheres coroaro um retrocesso sem precedentes. Portanto, a revoluo social

    e a libertao das mulheres possuem uma relao de potencializao: sem a vitria de todo o

    povo, e com isso a transformao das bases sociais, a libertao das mulheres impossvel, sem

    uma base societria e organizativa feminista impossvel avanar nas tarefas da revoluo.

    Nas palavras de Agiri Ylmaz, uma combatente do YPG:

    Na mentalidade do Estado Islmico as mulheres so deficientes. Elas no podem

    lutar. No entanto, quando se ouvem os gritos e chamadas das mulheres do YPJ,

    eles deixam suas posies e suas armas e fogem. Eles esto com medo de lutar

    contra mulheres. Eles dizem a si mesmos deixe-me morrer lutando contra um

    homem, mas no contra uma mulher. Isso oriundo de sua concepo de que as

    mulheres no podem fazer nada. Mas a nossa concepo de que as mulheres

    organizadas gerenciam a si mesmas e se organizam. (Fonte:

    www.resistenciacurda.wordpress.com)

    A luta das mulheres curdas, porm, no significa apenas um perigo ao fundamentalismo religioso.

    A luta destas mulheres um grande perigo para a concepo liberal-burguesa sobre o papel da

    mulher e da libertao feminina. O central para compreender esse conflito a questo do poder.

    A poltica do empoderamento na sociedade capitalista pela chegada seletiva de mulheres a

    cargos de poder e represso (empresrias, governantes, policiais, seguranas, etc.) uma poltica

    contrarrevolucionria. Esse empoderamento da mulher falso, to falso quanto as possibilidades

    de igualdade pela ascenso social de pessoas pobres, pois est circunscrito a uma estrutura

    societria desigual. O discurso do empoderamento burgus possui como fim a integrao

    sistmica das burocracias e personalidades femininas e a paralisao do potencial revolucionrio

    das amplas massas femininas.

    O empoderamento para o feminismo proletrio significa o fortalecimento dos rgos de poder

    popular (sindicatos, conselhos/soviets, movimento estudantil, assembleias populares, etc.) e ao

    mesmo tempo o fortalecimento da participao e direo das mulheres nessas organizaes. O

    poder popular, democrtico, federalista e socialista, o nico que pode garantir plenamente os

    direitos polticos, econmicos e culturais para as mulheres trabalhadoras. Mas esse poder um

    novo poder, que s pode florescer e triunfar (tal como demonstra Kobane) sobre os escombros do

  • velho poder burgus ou fundamentalista e dos sonhos mesquinhos do empoderamento do

    feminismo-liberal.

    Por uma Tendncia Classista e Internacionalista!

    Existem contradies nos processos revolucionrios, no Curdo e no processo revolucionrio em

    geral? Sim. As contradies foram apontadas nesse texto. Mas a soluo no est nem no apoio

    aos projetos estatistas burgueses de independncia, nem na fria ausncia de solidariedade

    internacional de um reformismo libertrio sectrio. Est na organizao dos anarquistas

    revolucionrios para atuarem nos processos revolucionrios e colocar seu projeto em prtica.

    por isso que chamamos a construo de uma Tendncia Classista e Internacionalista (TCI), que

    possa conjugar as tarefas de organizao popular e resistncia local com a solidariedade militante

    internacionalista. A tarefa no atual momento atuar no sentido de reorganizar uma alternativa

    sindicalista revolucionria, apontando novos horizontes de ao e organizao para a classe

    trabalhadora diante da atual crise internacional e radicalizao da luta de classes.

    Liberdade ao Povo Curdo!

    Morte ao Imperialismo e ao Estado Islmico!

    Vitria as milcias de autodefesa popular!

    Pelo Socialismo e Autogoverno das massas!

    Avante o Anarquismo Revolucionrio!

    .Unio Popular Anarquista UNIPA.