congada dissertação

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    FUNDAO COMUNITRIA TRICORDIANA DE EDUCAODecretos Estaduais n. 9.843/66 e n. 16.719/74 e Parecer CEE/MG n. 99/93

    UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE DE TRS CORAESDecreto Estadual n. 40.229, de 29/12/1998

    Pr-Reitoria de Ps-Graduao, Pesquisa e Extenso

    CONGADO: UMA CELEBRAO DOHIBRIDISMO AFRO-BRASILEIRO

    Trs Coraes2007

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    JULIANA DE VASCONCELOS

    CONGADO: UMA CELEBRAO DO

    HIBRIDISMO AFRO-BRASILEIRO

    Dissertao de mestrado apresentada Universidade Vale do Rio Verde UNINCORcomo parte das exigncias do Mestrado emLetras Linguagem, Cultura e Discurso, reade concentrao TextualidadesContemporneas, para obteno do ttulo demestre.

    Orientadora

    Prof. Dr. Geysa Silva

    Trs Coraes2007

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    Universidade Vale do Rio Verde de Trs CoraesCREDENCIAMENTO: Decreto Estadual n. 40.229 de 29 de dezembro de 1998.

    Secretaria de Ps-Graduao, Pesquisa e Extenso.

    ATA DA DEFESA DE DISSERTAO

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    DEDICATRIA

    A Deus.

    Ao meu filho, Flvio Luiz S. Vasconcelos.

    Aos meus pais, Luiz de Vasconcelos e Vicentina dos Reis Vasconcelos,pelas preocupaes e oraes.

    amiga Helma Lane S. Torres,

    pela solicitude, disponibilidade e ajuda em vrios momentos.

    colega de mestrado Lcia Frana, pela acolhida, amizade e companhia nas viagens.

    A Marcos Antnio Gomes, rei perptuo de seis irmandades,pela preciosa ajuda, esclarecimentos e materiais sobre o congado.

    Prof Dr Ana Mnica H. Lopes, responsvel pelo eixo da pesquisa,pela valiosa ajuda, pelos livros e indicaes bibliogrficas.

    A Evaldo Jos Ribeiro, pelo carinho, companheirismo e compreenso.

    Prof Dr Geysa Silva, pela pacincia, pelos ensinamentos e pela orientao.

    Aos professores Dr. Marcelino Rodrigues da Silva e Dr. Luciano Novaes Vidon,pelas sugestes e indicaes bibliogrficas.

    Aos colegas de mestrado, pela convivncia e companheirismo.

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    RESUMO

    VASCONCELOS, Juliana de. Congado: uma celebrao do hibridismo afro-brasileiro.2007, 74 p. (Dissertao Mestrado em Letras). Universidade Vale do Rio Verde

    UNINCOR Trs Coraes MG.

    O congado uma festa popular e religiosa na qual, por meio de uma memria coletiva,o negro mantm viva a expresso de seus costumes, crenas e valores histrico-culturais. Talcomo o antigo reino do Congo, os grupos de congado como guardas, reis, rainhas e outrospersonagens so instituies organizadas e estruturadas com hierarquias e normas que sorespeitadas e observadas pelos seus componentes. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio,uma instituio qual pertencem os grupos que realizam essa festa, tambm poltica ehierarquicamente organizada. Todo o ritual dessa celebrao encena aspectos de construo econstituio da identidade de um povo que tem, na memria, a sua histria, sua origem; nadana e no canto, o seu lazer, costumes e crenas; na linguagem, a representao simblica ehbrida da constituio de um povo, de uma cultura. Por meio de pesquisas bibliogrficas eentrevistas no estruturadas com pessoas que participam de forma efetiva nos grupos decongado pode-se perceber e analisar a relao hierrquica desses grupos bem como ossmbolos ambguos e hbridos que os mantm e fazem dessa festividade uma expresso deidentidade e de louvor a Nossa Senhora do Rosrio e So Benedito.

    Palavras-chaves: Congado, Identidade, Hibridismo.

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    ABSTRACT

    VASCONCELOS, Juliana de. Congado: a celebration of the afro-brasilian cross-bred.2007, 74 p. (Dissertation Master in Arts). Universidade Vale do Rio Verde UNINCOR

    Trs Coraes MG.

    The congado is a popular and religious festival where by colletive memory, blackpeople keeps up alive the expression of his customs, beliefs and historical-cultural values. Asthe ancient Congo kingdom, the congado groups: guards, kings, queens and anotherscharacters are organized and structured institutions with hierarchies and rules that are respectand fulfiled for the institutions components. Our Lady of Rosary brotherhood, an institution ofgroups that make this festival, is also political and hierarchily organized. All of thiscelebrations ritual shows aspects of identitys construction and constitution of people whohas in his memory, his history and origin; in his dancing and singing, his leisure, customs andbeliefs; and in his language has a symbolic and cross-bred representation of a peoplesconstitutions and culture. By bibliographical researches and non-structed interviews withpeople that socialise with strength form in the congados groups, we can perceive and analysethe hierarchical relation of these groups as the ambiguous, cross-bred symbols that keep themand make of this festival an expression of identity and praise to Our Lady of Rosary andBenedito Saint.

    Keywords: Congado, Identity, Cross-bred.

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    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................................... 10

    1 FESTAS POPULARES E CARNAVALIZAO........................................................... 161.1 Folia-de-reis, reisado, congado e reinado....................................................................... 171.2 O olhar do outro............................................................................................................... 20

    2 HISTRIA E ORIGEM DO CONGADO........................................................................ 262.1 O reino do Congo e suas relaes com Portugal........................................................... 262.2 A rainha Nzinga............................................................................................................... 332.3 A histria de Chico Rei.................................................................................................... 352.4 A Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio.................................................................. 372.4.1 A histria de Nossa Senhora do Rosrio......................................................................... 39

    2.4.2 Capela de Nossa Senhora do Rosrio............................................................................. 39

    3 ORGANIZAO SOCIAL E POLTICA DOS GRUPOS DE CONGADO OUREINADO............................................................................................................................... 423.1 Smbolos do Congado....................................................................................................... 433.1.1 Bandeira do aviso............................................................................................................ 433.1.2 Bandeiras dos padroeiros hasteamento e descida......................................................... 433.1.3 Coroa............................................................................................................................... 443.1.4 Coroa Grande.................................................................................................................. 443.1.5 Coroa de promessa.......................................................................................................... 453.1.6 Caf e almoo.................................................................................................................. 45

    3.1.7 Bandeira das guardas...................................................................................................... 453.1.8 Cortejo............................................................................................................................. 453.1.9 Procisso......................................................................................................................... 463.1.10 Missa conga................................................................................................................... 463.1.11 Promesseiros................................................................................................................. 473.1.12 Festeiros........................................................................................................................ 473.1.13 Saudao ou bno...................................................................................................... 473.2 Guardas, personagens e indumentrias......................................................................... 473.2.1 Moambique.................................................................................................................... 483.2.2 Catop............................................................................................................................. 483.2.3 Marinheiro...................................................................................................................... 48

    3.2.4 Vilo................................................................................................................................ 493.2.5 Capito............................................................................................................................ 493.2.6 Rei e Rainha Perptuos................................................................................................... 493.2.7 Rei Congo e Rainha Conga............................................................................................. 493.2.8 Rei e Rainha da Coroa Grande........................................................................................ 503.2.9 Mordomos....................................................................................................................... 503.2.10 Princesa Isabel............................................................................................................... 503.2.11 Prncipes e princesas..................................................................................................... 503.3 O ritual.............................................................................................................................. 513.3.1 Hasteamento da bandeira do aviso.................................................................................. 513.3.2 Novena............................................................................................................................ 523.3.3 Dia do mordomo............................................................................................................. 523.3.4 Recolhimento das coroas pequenas................................................................................. 533.3.5 Translado das imagens.................................................................................................... 53

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    3.3.6 Almoo............................................................................................................................ 533.3.7 Procisso e cortejo.......................................................................................................... 543.3.8 Missa conga..................................................................................................................... 553.3.9 Descimento das bandeiras............................................................................................... 55

    3.4 Memria coletiva.............................................................................................................. 56

    4 MITO E IDENTIDADE..................................................................................................... 58

    CONCLUSO........................................................................................................................ 66

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................. 68

    ANEXOS................................................................................................................................. 71

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    INTRODUO

    Esta pesquisa pretende contribuir para o estudo sobre a cultura negra, analisando a

    manifestao da celebrao do Congado, uma festa popular carregada de significados e

    identidade histrico-cultural; para mostrar os elementos constitutivos de tal identidade e a

    inter-relao hierrquica dos grupos de congado.

    Muitas festas populares fazem parte da histria e do cotidiano das pessoas. Essas

    festas so espaos de encontros entre pessoas de uma mesma comunidade ou de grupos

    variados; so tambm um espao no qual as diferenas sociais e histricas se ajuntam e se

    adaptam formando valores e tradies culturais. Por meio dessas festas populares, na inter-

    relao das diferenas pessoais, lingsticas e scio-ideolgicas, h um processo de

    construo da identidade de um grupo e de manuteno de suas crenas e de seus costumes

    quer sejam religiosos quer sejam profanos.

    Sabe-se que a religiosidade um elemento marcante na constituio da identidade e da

    cultura de um povo. As festas religiosas tambm fazem parte da convivncia em um grupo;

    o momento em que as pessoas por meio de uma festividade celebram sua f. Muitas festas

    religiosas se juntaram s festas profanas, formando eventos folclricos como a festa do

    Divino, folia-de-reis, congado ou reinado, entre outras.Algumas dessas comemoraes possuem caractersticas comuns, e muitas pessoas

    associam uma festividade outra sem discernir claramente o seu contedo e seu significado.

    Na folia-de-reis e congado h vocbulos que so parecidos e por isso muitas pessoas os

    misturam ou os usam incorretamente: folia-de-reis, reisado, congado e reinado. O que so

    essas celebraes? H semelhanas ou diferenas entre elas?

    Folia de reis ou reisado um grupo festeiro que vai de casa em casa arrecadando

    donativos para a festa de Reis que celebrada em seis de janeiro. Representa a caminhada dosreis magos a Belm onde nasceu o Menino Jesus.

    As palavras congado e reinado referem-se festa de Nossa Senhora do Rosrio,

    So Benedito e outros santos de devoo dos negros, na qual os devotos participam de

    procisses, teros, celebrao da missa conga, danas de grupos ou ternos e de um caf e/ou

    almoo oferecidos como agradecimento aos componentes dos ternos e aos demais

    participantes da celebrao. Nesta festividade h a representao da coroao de um rei congo

    e uma rainha, ambos negros simbolizando um antigo reino africano: o reino do Congo, deonde muitos escravos vieram para o Brasil. A palavra reinado no Dicionrio Houaiss da

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    Lngua Portuguesasignifica o perodo em que um rei fica no poder, a durao ou poca do

    governo de algum (HOUAISS,2004, p. 633).

    do congado que trataremos em nossa dissertao, para demonstrar como essa festa

    popular mantm as tradies ancestrais dos negros, sendo um dos elementos que contribuem

    para a formao da identidade afro-brasileira. Abordaremos, sobretudo, o congado que se

    realiza na cidade mineira de Divinpolis.

    No primeiro captulo, pretendemos conceituar e diferenciar as festas populares

    religiosas mencionadas acima, enfatizando o congado, principal foco de estudo. Neste so

    abordados os elementos de carnavalizao, que o processo pelo qual uma manifestao

    social ou cultural adquire carter carnavalesco, ou pelo qual se lhe empresta esse carter. Este

    termo carnavalizao foi criado por Bakhtin e corresponde forma de representao em quediferentes elementos presentes na sociedade so subvertidos ou postos de lado em favor de

    estmulos, formas e contedos, proporcionando o questionamento ao status quo. Os elementos

    de carnavalizao servem para minar posturas autoritrias e hierrquicas e, em contrapartida,

    reafirmar um posicionamento e/ou uma identidade. Podem-se evidenciar, em toda festividade

    congadeira, elementos de carnavalizao como regras sociais quebradas em um rito de

    inverso em que os valores e hierarquias so temporariamente invertidos ou apagados para

    ressaltar os valores sociais permanentes: a familiaridade de um mundo com outras normas.

    (...) o carnaval era o triunfo de uma espcie de libertao temporria da verdadedominante e do regime vigente, de abolio provisria de todas as relaeshierrquicas, privilgios, regras e tabus. Era a autntica festa do tempo, a do futuro,das alternncias e renovaes. (BAKHTIN, 1993, p.8).

    A principal ao carnavalesca a coroao e o futuro destronamento do rei do

    Carnaval. A est o ncleo da cosmoviso carnavalesca: as ambivalncias, as transformaes

    e mudanas, a morte e a renovao. E isso percebido no rito do congado. A coroao do reicongo ou do rei perptuo e a presena do rei que tem seu reinado anual um ritual

    ambivalente porque na coroao est contida a idia do futuro destronamento. As

    relativizaes do nfase mudana-renovao de qualquer poder e posio hierrquica. No

    discurso a complexidade, as contradies, os conflitos scio-ideolgicos e histricos; o

    prprio ritual, os smbolos do poder do coroado e a indumentria tornam-se dessacralizados.

    O valor simblico desses elementos biplanar, eles incorporam a idia de

    descoroao/destronamento e nova coroao.

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    O rito de destronamento como se encerrasse a coroao, da qual inseparvel(repito: trata-se de um rito biunvoco).Atravs dela transparece uma nova coroao.O carnaval triunfa sobre a mudana, sobre o processo propriamente dito de mudanae no precisamente sobre aquilo que muda.O carnaval (...) nada absolutiza, apenasproclama a alegre relatividade de tudo. (BAKHTIN, 1981, p. 125).

    A carnavalizao uma possibilidade de leitura da celebrao do congado e outras

    festividades, que feita pela maioria das pessoas, as quais assistem essa festividade.Os

    componentes dos grupos que realizam e participam dessa manifestao atribuem a ela

    significado histrico e religioso, entre outros.

    No segundo captulo abordamos a histria e a origem do congado para mostr-lo como

    uma expresso da cultura vivida e celebrada por uma comunidade que, por meio dessa festa,

    busca construir sua identidade histrico-cultural. A representao simblica do reino doCongo evidencia a histria desse reino, bem como de seus principais reis, suas leis, costumes

    e hierarquias. E, principalmente, observam-se a relao dos soberanos e vassalos entre si e a

    relao poltica e hierrquica com o rei de Portugal.

    Duas monarquias estruturadas e organizadas entram em contato em virtude da

    cristianizao e colonizao lusa; diferentes costumes algumas vezes similares foram

    incorporados ao reino, s leis, costumes e tradies do povo banto. A maior parte dos negros

    da Costa Oeste da frica era dividida em dois grandes grupos: sudaneses e bantos.Estecorrespondia s naes de Angola, Benguela, Cabinda e Congo; do qual alguns elementos

    culturais foram trazidos para o Brasil, como a capoeira e o congado. A idolatria do povo

    banto foi combatida veemente por alguns reis congoleses, que receberam o batismo e

    ajudaram na disseminao da f catlica naquelas terras. O verdadeiro interesse portugus em

    conquistar ou dominar o reino adversrio, em se apropriar de suas riquezas e terras, gerou

    muitos conflitos e batalhas. Muitos reis congoleses tentaram abolir as regras e condies

    impostas pelo reino de Portugal, tentando resgatar seus costumes, religio e cultura. Mas o

    reino j estava com uma cultura e costumes hbridos; Portugal dominava o comrcio de

    escravos, e, apesar de terem sido feitos acordos, muitos no foram mantidos.

    O estabelecimento das relaes polticas e econmicas vinha sempre acompanhadoda catequese catlica, e tambm nesta foram grandes as dificuldades encontradas.(...) Diante da recusa em aceitar os novos ensinamentos e da resistncia militar, quefoi eficiente at o final do sculo XVII, travaram-se muitssimas guerras entre oscentro-africanos e os portugueses, que buscavam no s o mercado de escravos e asminas de metais, como a converso das almas. (SOUZA, 2006, p. 103).

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    Reis foram destronados e trazidos como escravos para o Brasil. Temos ento, a

    histria de Chico Rei, que simbolicamente representado no congado atravs do personagem

    Rei Congo. O nobre congols tentava resgatar a religio e os costumes de seu pas; foi trazido

    com a famlia, como escravo, para as terras brasileiras. Conseguiu sua alforria e as de alguns

    compatrcios. Ficou conhecido como Chico Rei.

    H tambm a histria da rainha Nzinga, que combateu a influncia portuguesa nas

    terras africanas. Apesar de sua fora e garra em batalhas e lutas pela preservao dos

    costumes e cultura de sua nao, foi cativada pelo poder e prestgio que o Catolicismo

    oferecia aos reis batizados.

    Esta determinao, esta busca de libertao e liberdade que obsedava Nzinga, interessante e importante. Aps cada reencontro, vitria ou derrota, ela retornava frente diplomtica, argumentando, persuadindo, lisonjeando e ameaando amigos,inimigos tanto os tmidos e quanto os incertos. (GLASGLOW, 1982, p. 117).

    A histria e origem do congado tambm remetem histria das irmandades de Nossa

    Senhora do Rosrio, pois os grupos que celebram esta festa so membros de uma irmandade

    que tem como padroeira Nossa Senhora do Rosrio e outros santos de aceitao dos negros,

    como So Benedito e Santa Ifignia.

    H algumas verses para o aparecimento de Nossa Senhora do Rosrio e suaincorporao aos costumes e danas dos negros. Conta a lenda que a guarda de Moambique

    carregava a imagem da santa com cantos e danas ao som de seus instrumentos, da gruta ou

    do mar (local onde aparecera) para um altar. Somente o Moambique conseguiu agradar

    santa que ficou no altar sem voltar ao lugar onde aparecera.

    Podemos perceber na histria e origem dessa expresso cultural a presena de uma

    estruturao poltica e hierarquizada do reino do Congo que se faz representar no congado,

    atravs de reis, rainhas e outros componentes, bem como a hierarquizao entre ospersonagens da festa que so ligados a uma irmandade.

    No terceiro captulo trataremos da organizao poltica e hierrquica da irmandade

    bem como a dos grupos de congado que celebram os rituais que compem a festa, com seus

    smbolos, ternos e ritos.

    Divinpolis, cidade localizada na regio centro-oeste mineira, possui dezessete

    irmandades e trinta e trs guardas ou ternos, que cantam e danam ao som de instrumentos

    como tambores, atabaques, caxambus, entre outros. As principais guardas so: Moambique,Congo, Catop, Marinheiro e Vilo. Cada uma tem o capito que coordena os cnticos, o

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    ritmo e o desfile do grupo. Alm desses grupos h o estado da coroa, ou seja, os coroados: Rei

    Congo e Rainha Conga, Rei e Rainha Perptuos, reis e rainhas de Nossa Senhora e dos

    padroeiros, princesa Isabel, demais prncipes e princesas.

    A irmandade possui um estatuto que rege as suas determinaes e funes, bem como

    a sua hierarquia. Tambm se observa uma hierarquia entre os nobres que compem o estado

    da coroa e entre as guardas, no ritual de tal festa. Evidenciam-se, neste trabalho, as

    irmandades de Nossa Senhora do Rosrio e de So Benedito dos bairros Esprito Santo e So

    Jos e da praa do Mercado da cidade divinopolitana. Os relatos dos rituais das festas desses

    bairros so apresentados e analisados como uma manifestao de uma memria coletiva que

    une os negros e seus descendentes na manuteno de uma histria, uma hierarquia e de uma

    construo de uma identidade cultural.

    Torna-se possvel tomar esses diferentes pontos de referncia como indicadoresempricos da memria coletiva de um determinado grupo, uma memria estruturadacom suas hierarquias e classificaes, uma memria tambm que, ao definir o que comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e refora ossentimentos de pertencimento e as fronteiras scio-culturais. (POLLAK, 1989, p. 3)

    Alguns personagens do congado so a representao mtica de eventos, pessoas e

    outros pontos de referncia na manuteno da histria, da identidade, da hierarquia e da

    expresso da cultura de um grupo.

    Por fim, no quarto captulo, discutiremos a representao mtica de alguns

    personagens que so considerados mitos fundadores e a construo e a manuteno da

    identidade cultural de um povo.

    O mito, para Eliade, uma forma de explicar a origem das coisas e do mundo; ele

    conta uma histria sagrada e, portanto, verdadeira, tornando-se um modelo exemplar de todos

    os ritos e atividades humanas significativas.

    Eles so conhecidos, sobretudo, pelo que fizeram no tempo prestigioso dosprimrdios. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam asacralidade (ou simplesmente a sobrenaturalidade) de suas obras. Em suma, osmitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramticas, irrupes do sagrado (oudo sobrenatural) no mundo. essa irrupo do sagrado que realmente fundamenta omundo e o converte no que hoje. (ELIADE, 1994, p. 11).

    O mito fundador na festividade do congado remete histria do Congo e a D. Afonso

    I, importncia da converso ao Cristianismo para alguns chefes africanos e catequese, que

    andava de mos dadas com a escravizao (SOUZA, 2006, p. 308). D. Afonso I foi um rei

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    congols, o qual, durante o seu reinado, manteve relaes diplomticas, polticas e

    hierrquicas com o rei de Portugal e, depois de receber o batismo catlico, ajudou na

    disseminao do Catolicismo no reino africano. simbolicamente representado pelo rei

    congo. Outro mito fundador o personagem Chico Rei, que tambm, de forma ambgua e

    complexa, simbolizado pelo mesmo Rei Congo. Outro personagem ambivalente, com dupla

    significao, a rainha Nzinga, que, ao lado do Rei Congo, forma um casal que personifica

    uma identidade hbrida.

    A representao da identidade do sujeito, no conceito de hibridismo elaborado por

    Bhabha, carregada de duplicidade e ambigidade. Para o autor, no contexto das condies

    scio-histricas que ocorre a produo e a interpretao; ou seja, no lcus da enunciao ou

    terceiro espao que interagem contradies e conflitos lingsticos, histricos e culturais,surgindo o hibridismo. A identidade construda nos conflitos, na interao entre o interno e

    o externo, no desejo, na alteridade pelo lugar do outro, na linguagem hbrida que expressa a

    ambigidade, a duplicidade dos seus usurios.

    A festa de reinado ou congado apresentada como um momento de construo de uma

    identidade e uma cultura hbridas que atravs da memria coletiva celebra a histria e o

    passado; um espao de tradio, no qual so apresentadas a organizao e a hierarquia de

    um reino, seus costumes e valores culturais que, atravs de uma ressignificao, trazemmarcas de diversos povos, que como o brasileiro, um povo hbrido, que luta pela

    valorizao das diferentes formas de constituio de sua identidade e de sua cultura.

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    1. FESTAS POPULARES E CARNAVALIZAO

    Nas festas oficiais, com efeito, as distines hierrquicas destacavam-se

    intencionalmente, cada personagem apresentava-se com as insgnias dos seus ttulos, graus e

    funes e ocupava o lugar reservado para o seu nvel.Essa festa tinha por finalidade a

    consagrao da desigualdade, ao contrrio do carnaval, em que todos eram iguais e onde

    reinava uma forma especial de contato livre familiar entre indivduos normalmente separados

    na vida cotidiana pelas barreiras intransponveis da sua condio, sua fortuna, seu emprego,

    idade e situao familiar. (BAKHTIN, 1996, p.9)

    Entende-se por festa popular uma manifestao coletiva que traduz a cultura popular, a

    linguagem do povo, tudo o que vem dele e de sua alma. H inmeras definies da cultura

    popular que se podem reduzir a dois grandes modelos de descrio e interpretao, segundo

    Chartier (1995). Em um dos modelos, a cultura popular vista como um coerente e autnomo

    sistema simblico que funciona alheio e irredutvel cultura letrada. Desta forma, a culturapopular define-se como um mundo parte da cultura letrada. No outro modelo, percebida,

    no contexto das relaes sociais de dominao, como uma dependncia e carncia da cultura

    letrada dominante. Assim, a cultura popular inteiramente definida pela sua distncia da

    legitimidade cultural da qual ela privada (CHARTIER, 1995, p. 180).Para o autor, esses

    dois modelos so portadores de estratgias de pesquisas completamente opostas, pois a

    celebrao de uma cultura popular em sua majestade, ou seja, livre, viva e profusa, se inverte

    em uma descrio em negativo; e o reconhecimento da igualdade de todos os universossimblicos traz lembrana as implacveis hierarquias sociais e culturais.

    As festas religiosas so aquelas organizadas pelas Igrejas, nas quais o povo demonstra

    sua f, comemorando o Deus, o santo ou outra entidade. um evento feito para o povo,

    seguindo um calendrio e tempo litrgicos, como a Semana Santa. Algumas festas religiosas

    possuem manifestaes que so denominadas populares, folclricas e tradicionais, formando,

    assim, as chamadas festas religiosas populares, nas quais se misturam atos litrgicos, como

    missas, teros, procisses e outros, e atos profanos,como hasteamentos, reinados, coroaes,

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    dentre outras. Como exemplos podem ser citadas a festa de Nossa Senhora do Rosrio, folia-

    de-reis, festa do Divino, entre outras.

    Inmeras festas populares compem o calendrio de tradies e manifestaes

    culturais nas quais se podem observar elementos ou aspectos de heranas que se associaram e

    se fundiram formando a identidade e a expresso cultural de um grupo ou regio. Na histria

    da formao e colonizao mineira e brasileira h influncias e contribuies culturais de

    vrias sociedades como frica e Portugal.

    Festas populares como folia-de-reis e o congado so smbolos e exemplos de

    expresses e identidades culturais hbridas, marcadas, segundo Bhabha (1998), por histrias

    do deslocamento de espaos e origens. Este deslocamento trouxe a aproximao, a

    justaposio e a ressignificao de diferenas culturais.

    A hibridizaono algo que apenas existe por a, no algo a ser encontrado numobjeto ou em alguma identidade mtica hbrida trata-se de um modo deconhecimento, um processo para entender ou perceber o movimento de trnsito oude transio ambguo e tenso que necessariamente acompanha qualquer tipo detransformao social sem a promessa de clausura celebratria, sem a transcednciadas condies complexas e conflitantes que acompanham o ato de traduo cultural.(SOUSA, 2004,113).

    De acordo com Bhabha, o hibridismo percebido no locus da enunciao, ou seja, nocontexto social, histrico e ideolgico dos usurios da linguagem. A esse locusde enunciao

    Bhabha chama de terceiro espao, no qual vrios elementos lingsticos, culturais e sociais,

    diferenciados, conflitantes e ambguos se interagem em uma conexo entre significante e

    significado, constituindo o hibridismo.

    Lynn Mario T. de Souza (2004), ao falar da importncia do hibridismo na teoria de

    Bhabha, cita e concorda com Wisdown ao dizer que no hibridismo no se podem traar dois

    momentos originrios dos quais surge um terceiro espao. Ao contrrio, esse terceiro

    espao que possibilita o aparecimento ou surgimento de novas e outras posies; que desloca

    as histrias que o constituem e estabelece novas estruturas de autoridade, de iniciativas

    polticas, as quais so mal compreendidas pela sabedoria normativa.

    1.1 Folia-de-reis, reisado, congado e reinado.

    Percebe-se no uso dos vocbulos folia-de-reis, reisado, congado e reinado

    apropriaes um pouco divergentes e, s vezes, similares. H alguma semelhana ou diferena

    relativa a essas nomenclaturas? Para muitos, os quatros itens so a mesma coisa. necessrio,

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    portanto, definir e conceituar cada vocbulo, cada festividade acima mencionada, para que o

    uso de tais palavras possa orientar e esclarecer possveis semelhanas e/ou diferenas entre si.

    De acordo com Cmara Cascudo, no Dicionrio do Folclore Brasileiro (1962), folia-

    de-reis um grupo festeiro que passa de casa em casa nas vsperas do Dia de Reis, cantando e

    danando, recolhendo dinheiro e donativos para a festa dos Reis Magos. Esta celebrada

    anualmente em 6 de janeiro e recorda a caminhada dos trs Reis Magos: Belchior, Gaspar e

    Baltazar, que, guiados pela estrela, levaram presentes ao Menino Jesus: ouro, incenso e mirra.

    Essa festa tem sua origem tanto em Portugal como na Espanha e Frana. Os colonizadores

    portugueses mantiveram a tradio da folia-de-reis no Brasil e, em algumas regies de Minas

    Gerais, h a celebrao dessa festividade, como no Sul, Tringulo Mineiro e Zona

    Metalrgica.No mesmoDicionrio do Folclore Brasileiro, reisado denominao erudita para os

    grupos que cantam e danam na vspera e dia de Reis (seis de janeiro). Em Portugal diz-se

    reisada e reiseiros (p. 669), podendo tambm determinar o cortejo de pedintes que cantam

    versos. No Brasil, o termo pode referir-se aos ranchos, ternos, grupos que festejam o Natal e

    Reis. Pode ser apenas a cantoria do grupo ou possuir enredo ou srie de pequenos atos

    encadeados ou no; ou ainda, auto natalino do Norte e Nordeste, realizado em 6 de janeiro.

    Congado so autos populares brasileiros, de motivao africana, pois, nesse folguedo,os figurantes representam a coroao de um rei congo (Chico Rei e a rainha Nzinga). Os

    grupos de congado ou congada so membros de uma irmandade que tem como padroeira

    Nossa Senhora do Rosrio e outros santos de crena e aceitao dos negros, como So

    Benedito e Santa Ifignia. A irmandade, em procisso pelas ruas, executa bailados, jogos de

    agilidade, dana de bastes entre cantos ao som de caixas e tambores. Escoltam o rgio casal

    e todo estado de coroa (reis, rainhas, prncipes, entre outros) para ser coroado (CASCUDO,

    1962, p. 243). Esta festividade mantm viva a memria, a histria e a identidade do povonegro. Geralmente celebrada de agosto a outubro, dependendo de seu padroeiro. Pode,

    tambm, ser comemorada em maio, na data da abolio da escravatura.

    Segundo Crtes (2000), as festas de congado realizadas de agosto a outubro so

    promovidas pelas irmandades e possuem duas partes, a saber: uma litrgica, de contedo

    catlico, que inclui atos e ofcios religiosos catlicos, como missa, teros, procisses, entre

    outros; outra, folclrica, constituda pelo hasteamento do mastro, espetculo pirotcnico,

    nmeros musicais e a presena de reinados e suas guardas. As guardas so grupos, unidades

    religiosas com denominao particular e estandarte prprio. Seus aspectos rtmicos,

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    indumentrias, cantos e movimentos so distinguidos entre os demais grupos: Moambique,

    Congo, Marujo, Catops, Vilo e outros.

    De acordo com oMinidicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, reinado o perodo

    em que um rei fica no poder, a durao ou poca do governo de algum (p. 633). Portanto,

    esse vocbulo est associado ao perodo de comando, de reinado do Rei Congo na irmandade.

    A cada ano um novo rei assume o reinado dentro da festividade do congado.

    Algumas similaridades e diferenas podem ser observadas nessas manifestaes de

    cultura popular. Na folia-de-reis, os grupos que realizam a visitao s casas so chamados de

    ternos-de-reis; o mesmo nome usado no congado: terno ou guarda. um festejo de origem

    portuguesa, no entanto o ritmo ganha contornos de origens africanas com fortes batidas e uma

    dana na qual os membros rodam em crculo contnuo. Os ternos-de-reis, ao contrrio doreinado ou congado, representando a visita dos Reis Magos gruta de Belm e a fuga da

    Sagrada Famlia para o Egito, fazem apresentaes noite. O terno-de-reis possui o alferes,

    responsvel pela conduo da bandeira. No congado, o capito conduz os cnticos, o ritmo e a

    dana. H a presena de bandeiras nas duas festividades mencionadas.

    No reisado h personagens de reis, representando os Magos, e os folies caracterizam-

    se de personagens da histria, como por exemplo palhaos barbados que simbolizam os

    soldados do governador romano Herodes. No congado, os reis representam a coroao do ReiCongo e a libertao dos escravos; ou o reinado de Nossa Senhora do Rosrio no qual h reis,

    rainhas, entre outros. Nas duas festividades os ternos usam instrumentos como tambores,

    atabaques, pandeiros e cavaquinhos.

    A folia-de-reis acontece em funo de pagamento de promessa, o que tambm se

    observa no reinado de Nossa Senhora. A folia-de-reis ou reisado chegou ao Brasil entre os

    sculos XVIII e XIX, e passou a ter um carter mais religioso do que de diverso, como em

    Portugal. uma manifestao na qual os preciosos versos so preservados de gerao emgerao por tradio oral, como acontece no congado ou reinado. Os versos entoados so

    relativos ao nascimento do Menino Jesus, visita dos Reis Magos e fuga da Sagrada Famlia

    para o Egito. J no congado, os cnticos so relacionados a Nossa Senhora e histria da

    libertao dos escravos.

    H, tambm, uma similaridade presente em um dos rituais do congado e da folia-de-

    reis; nesta, o terno, cantando e danando, no ritual da chegada, pede permisso ao dono da

    casa para entrar e, ao sair, canta agradecendo-lhe a acolhida e oferendas como lanche,

    dinheiro e outras. No congado, no ritual do almoo, o capito de cada guarda, entre outros

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    gestos do ritual, canta pedindo licena para entrar e, ao sair, agradece a acolhida e o alimento

    oferecidos.

    Observa-se um fato curioso na folia-de-reis: os folies, representando a visita e

    adorao dos Reis Magos ao Menino Jesus, no levam presentes, mas, sim, recebem

    donativos.

    1.2 O olhar do outro

    Festas populares como o congado ou reinado de Nossa Senhora do Rosrio atraem

    admiradores, estudiosos e folcloristas. A imagem de smbolos, ornamentos, personagens,

    indumentrias e rituais so focos do olhar de quem observa tal manifestao cultural. Deacordo com Bakhtin (1996), essas manifestaes da praa pblica podem ser vistas como

    festivas e carnavalescas, nas quais fica visvel a inverso simblica de hierarquias, como na

    coroao de um rei negro no congado. E, terminada a festa comparando-se ao Carnaval ,

    so reforadas as verdadeiras posies e hierarquias sociais.

    No olhar do outro, de quem no participa ou no conhece o significado de tal

    expresso cultural, um extravagante carnaval com cores, som de tambores, danas,

    encenaes de negros vestidos de reis e rainhas ricamente ornados e ostentando uma coroa eum cetro.

    Marina de Mello e Souza (2006), ao discutir e analisar a coroao dos Reis Congos no

    Brasil ao longo do sculo XIX, expe relatos de viajantes e estrangeiros, seus olhares e vises

    sobre a celebrao do congado com o enfoque maior na coroao de reis negros. Olhavam-na

    a partir do ponto de vista do europeu, ocupando o negro um nvel inferior no conjunto das

    sociedades. A maioria dos relatos expostos e discutidos tinha como cerne o negro coroado

    rei, em festas e atividades religiosas, identificadas com as supersties, semelhantes aoCarnaval:

    costume dos negros do Brasil nomearem todos os anos um rei e sua corte. Esse reino tem prestgio algum poltico nem civil sobre os seus companheiros de cor; gozaapenas da dignidade vaga, tal como o rei da fava, no dia de Reis, na Europa. (2006,p. 278).

    [...] fazem todos os anos este extravagante carnaval, adquirindo o eleito grandeinfluncia sobre os companheiros. A cena era muito curiosa, misturando

    singularmente as reminiscncias da costa africana com os costumes brasileiros ecerimnias religiosas. A princpio, o rei do Congo, em companhia de sua metade,vem ocupar uma das cadeiras postas de antemo para o uso da corte. (2006, p. 284).

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    Toda a simbologia congadeira indumentria e o ritual dessa festividade est

    profundamente relacionada com o folclore carnavalesco e repleta dessa cosmoviso, pois o

    Carnaval uma festa na qual as regras sociais podem ser quebradas; um rito de inverso em

    que valores e hierarquias so temporariamente invertidos ou apagados para ressaltar os

    valores sociais permanentes. Um mundo s avessas que nos muito familiar. Mikhail Bakhtin

    usa o termo carnavalizao para mostrar a subverso das regras sociais, morais e

    ideolgicas em favor de formas de expresso pessoal e coletiva nas quais a realidade d lugar

    fantasia, pobres transformam-se em reis e rainhas, roupas simples do lugar a trajes

    luxuosos.

    Existem algumas verses para a origem do Carnaval, como carrus navalis (carros

    navais com enormes tonis de vinhos), nas festas romanas em adorao ao deus do vinho; asBacanais e Saturnais. Outra, de origem latina carnavale (suspenso da carne) , com

    sentido religioso, compreendendo o perodo anterior Quaresma, quando h abstinncia de

    sexo e diverses como festas.

    No Brasil, o incio do Carnaval deu-se com o entrudo, uma brincadeira de rua, alegre

    mas violenta, pois as pessoas atiravam gua umas nas outras. Alm da gua jogavam tudo o

    que tivessem s mos: bisnagas, limes de cera, cal, p etc. O entrudo foi combatido e esse

    jogo selvagem foi substitudo por outros elementos de brincar, como confetes e serpentinas.Atravs dos tempos, essa festa popular foi se inovando, modernizando-se com bailes de

    mscaras, grupos de folies, escolas de samba e trios eltricos. Nos dias atuais, o Carnaval

    liberdade, um momento no qual se deixa de viver a vida em sua ordem, com trabalho,

    obrigaes, pecados e deveres. O que vale a experincia do mundo com excessos de prazer,

    alegria e riso ao alcance de todos, pois ele o para todos, colocando a todos como iguais,

    independente de posies sociais na vida ordinria. O carnaval, na praa pblica, permite que

    se possa ser tudo o que se queria ser na vida comum. uma inverso da rotina diria, apossibilidade utpica de trocar de posio social, de inverter o mundo em direo alegria,

    abundncia, liberdade e, sobretudo, igualdade de todos perante a sociedade (MATTA,

    1979, p. 78). O carnaval tornou-se a celebrao da alegria, da liberdade, mesmo em um curto

    perodo, porque a vida, em sua ordem natural e social, recomea na Quarta-Feira de Cinzas,

    com a Quaresma.

    No se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se

    nele, e vive-se conforme suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se numavida carnavalesca. Esta uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentidouma vida s avessas, um mundo invertido. (BAKHTIN, 1981, p. 122).

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    Sendo o carnaval uma possibilidade utpica de inverter o mundo em direo

    liberdade, alegria e abundncia, nota-se em um dos rituais do congado, o ritual de um

    banquete, de uma refeio coletiva. No se trata do comer e beber de todos os dias de pessoas

    isoladas, mas, de um banquete que acontece em festa popular, com tendncia abundncia, ao

    regozijo, ao riso, s conversaes, alegria. Nos estudos de Bakhtin (1993), ele diz que nos

    sistemas das imagens da Antigidade, o comer e o beber era inseparvel do trabalho. Era o

    coroamento do trabalho e da luta (p. 246), ambos coletivos. Esse coroamento de um trabalho

    coletivo um acontecimento social, a celebrao de uma vitria. Portanto, a refeio jamais

    poderia ser triste, visto que a tristeza e a comida so incompatveis. Na absoro dos

    alimentos, as fronteiras entre o corpo e o mundo so ultrapassadas num sentido favorvel aocorpo, que triunfa sobre o mundo, sobre o inimigo, que celebra a vitria, que cresce s suas

    expensas (p. 247). o triunfo, a vitria da vida sobre a morte, a celebrao da renovao, de

    um novo nascimento.

    Essa alegria, essa conversa mesa so destronadas. Nelas so dispensadas as posies

    sociais e hierarquias entre pessoas, coisas e valores; misturam livremente o sagrado e o

    profano, o inferior e o superior, o material e o espiritual, no havendo incompatibilidade entre

    elas. O triunfo do banquete celebra a antecipao de um futuro melhor, liberto dos olhos dopassado e do presente. Um futuro utpico, em que o negro realmente livre, no havendo

    barreiras e divises sociais, raciais e hierrquicas.

    [...] a ligao particular das conversas trocadas durante um banquete com o futuro ea celebrao-ridicularizao [...] A palavra pertence de alguma forma ao tempo, qued a morte e a vida no mesmo ato, por isso a palavra tem duplo sentido e ambivalente.(BAKHTIN, 1993, p. 250).

    O ritual do banquete, no congado, tem, portanto, uma ambivalncia perceptvel noselementos e smbolos que o realizam. A idia de abundncia, de alegria, de triunfo, que

    momentaneamente celebrada, refora e deixa em evidncia uma histria de misria, de

    sofrimentos e lutas de um povo que sonha ter a renovao desse passado e um futuro melhor

    aos seus descendentes.

    Essas imagens so profundamente ativas e triunfantes, pois elas completam oprocesso de trabalho e de luta que o homem, vivendo em sociedade, efetua com o

    mundo. Elas so universais, porque tm por fundamento a abundncia crescenteinextinguvel do princpio material. Elas so universais e misturam-seorganicamente s noes de vida, morte, renascimento e renovao. Misturam-seorganicamente tambm idia de verdade, livre e lcida, que no conhece nem o

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    medo nem a piedade, e portanto tambm palavra sbia. Enfim, penetra-as a idiado tempo alegre, que se encaminha para um futuro melhor, que mudar e renovartudo sua passagem.(BAKHTIN, 1993, p. 264).

    No dia da celebrao do congado, h uma solene procisso, na praa pblica, com asimagens de Nossa Senhora do Rosrio e So Benedito, com as guardas e todo estado da coroa

    (reis, rainhas e outros membros). So tambores, caxambus, pandeiros, atabaques, danarinos e

    cantores. Entoam ladainhas, cantos de choro, rememorando a libertao dos escravos; e cantos

    de louvor que envolvem a alma. So luzes, cores, tons e sons. o folclore impregnado de

    uma cosmoviso carnavalesca. eliminada toda distncia entre os homens, ou seja, todo o

    sistema extracarnavalesco: as leis, proibies, hierarquias, etiquetas, ou seja, a ordem

    instituda. Vigora uma categoria carnavalesca especfica: o livre contato familiar.De acordocom Bakhtin (1981), este um momento muito importante da cosmoviso

    carnavalesca(p.123).

    o carnaval que cria, na praa pblica, uma forma livre de comunicao das aes,

    gestos, vocabulrio e uma nova linguagem liberta das normas correntes da etiqueta e da

    decncia, uma linguagem carnavalesca tpica (BAKHTIN, 1993, p. 9). Uma segunda vida

    que permite estabelecer relaes novas, um contato livre e familiar com seus semelhantes,

    uma libertao temporria de todas as opresses e imposies da vida comum, ordinria e

    extracarnavalesca.

    Mas no carnaval as leis so mnimas. como se tivesse sido criado um espaoespecial, fora da casa e acima da rua, onde todos pudessem estar sem essaspreocupaes de relacionamento ou filiao com seus grupos de nascimento,casamento e ocupao. Estando, de fato, acima e fora da rua e da casa, o carnavalcria uma festa do mundo social quotidiano, sem uma sujeio s regras duras dopertencer e do ser algum; por causa disso, todos podem mudar de grupo e todospodem se entrecortar e criar novas relaes de insuspeitada solidariedade. Nocarnaval, assim, se o leitor me permitir um paradoxo, a lei no ter lei.

    (MATTA,1979, p. 94).

    De modo excntrico o homem se liberta-se do poder de qualquer posio hierrquica

    que o determinava, marginalizava e escravizava na vida extracarnavalesca. O carnaval no

    uma forma artstica de espetculo, mas uma forma da prpria vida representada sem palco,

    atores e espectadores. Vive-se a vida carnavalesca que a forma ideal de renovao efetiva da

    vida ordinria.

    Podem-se perceber todas essas categorias de carnavalizao na festividade do

    congado. Esse contato familiar e a excentricidade aproximam o congadeiro do sagrado, da

    liberdade, da conquista de seus ideais e valores que agora so celebrados e recordados

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    historicamente. a histria do negro mesclada com o mstico. No desfile do congado, h a

    princesa Isabel cortejada e escoltada por negros que se vestem como escravos. O elevado e o

    baixo; o nobre, o grande e o pequeno, o submisso; o poder e o possudo; a liberdade e a

    escravido. Representa-se a libertao dos escravos. Recordam-se e mantm-se viva a

    memria, a histria e a identidade. E, num solene ritual (j na igreja), a princesa faz a leitura

    da Lei urea. Acontece a transformao de um fato histrico em ritual religioso, o sagrado e

    o profano misturam-se. So observados a abolio de todas as distncias, de toda hierarquia, o

    nascimento e a morte, a simbologia do contraste, imagens pares que se opem no discurso

    congadeiro, como no carnavalesco.

    A profanao outra categoria da carnavalizao. O carnaval aproxima, rene,

    combina o sagrado com o profano, o sbio com o tolo, o elevado com o baixo (BAKHTIN,1981, p. 123). De acordo com frei Leonardo Lucas Pereira, OFM (Ordem dos Franciscanos

    Menores), que desde a dcada de 1970 reza missas congas na cidade de Divinpolis e na

    regio, uma grande preocupao da Igreja no deixar que a festa se transforme apenas em

    um ato folclrico; essa manifestao deve estar voltada para um vnculo religioso; dar um

    valor sagrado ao que era apenas profano, mundano. A sociedade, que discriminava a

    celebrao afro, hoje participa dela, valoriza-a, reconhece-a como manifestao cultural,

    como celebrao de f.Segundo Bakhtin, a ao carnavalesca principal a coroao e o posterior

    destronamento do rei do Carnaval. A reside o prprio ncleo da cosmoviso carnavalesca: a

    nfase nas transformaes, nas mudanas, na morte e na renovao. O autor diz que:

    A coroao-destronamento um ritual ambivalente, biunvoco que expressa ainevitabilidade e simultaneamente, a criatividade da mudana-renovao, a alegrerelatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e posiohierrquica. Na coroao j est contida a idia do futuro destronamento; ela

    ambivalente desde o comeo. (1981, p. 124).

    O ponto excepcional da celebrao do congado a coroao do Rei Congo e do Rei

    Perptuo pelo capito da guarda de Moambique. Somente negros so coroados Reis Congos.

    No cortejo, na praa pblica, h os Reis Perptuos e os Reis da Coroa Grande, que no so

    perptuos, so renovados anualmente. Tm-se o efmero e o perptuo, o escravo que se torna

    rei, o insignificante que se torna nobre. rei, senhor de sua prpria vida, livre; liberto de

    sua posio social enquanto durar a festa ou perdurar seu mandato, tal como no carnaval.

    As inverses (escravorei) apontam vrias instncias de poder e diversos segmentos

    sociais como uma possibilidade de se perceber as dicotomias, as relativizaes e os

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    deslocamentos propostos pelo mundo s avessas tpico do carnaval. As ambigidades so

    importantes para entender o processo de carnavalizao. Nelas percebe-se a dicotomia dos

    discursos e, nestes, a complexidade, as contradies, os conflitos scio-ideolgicos e

    histricos.O prprio ritual, os smbolos do poder do coroado, as roupas que ele veste tornam-

    se ambivalentes.

    No canto do Credo, durante a missa conga, tambores do sinais, avisam a morte de

    Jesus. No se trata de uma missa com enfeite de congado, mas, sim, de uma celebrao da

    memria da paixo de Cristo unida memria da escravido do povo negro. Celebram um

    duplo passado, ambivalente. A paixo de Cristo, o rei destronado, caluniado e morto. Mas a

    morte a ressurreio, a coroao de Cristo como verdadeiro Rei. So atos simblicos de

    mudana e renovao, de nascimento e transformaes. A memria da escravido do negropossui elementos simblicos e ambivalentes, equivalentes e inter-relacionados paixo de

    Cristo Rei e Escravo, Escravo e Rei; duas figuras que se opem na relativizao de qualquer

    reinado ou posio hierrquica.

    No congado h elementos que se interpem, h signos que compem um fascinante

    folclore carnavalesco no olhar de quem o presencia ou a ele assiste. Com um estudo e

    pesquisa sobre sua origem e significados, porm, percebe-se que o congado resgata e mantm

    posies sociais e relaes hierrquicas por meio de uma memria coletiva de heranasculturais hbridas na constituio de uma identidade que so celebradas e rememoradas na

    festividade do congado, conforme se ver nos captulos subseqentes.

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    2. HISTRIA E ORIGEM DO CONGADO

    Na festividade do Congado, como se viu anteriormente, h a representao simblica

    da coroao de um rei congo e uma rainha, os quais remontam s figuras de Chico Rei e

    rainha Nzinga. Conhecer a histria do reino do Congo e dos principais reis que marcaram seus

    reinados e so miticamente evocados em tal celebrao conhecer a histria e a origem do

    congado. , tambm, atribuir significado a elementos e smbolos que compem essa

    expresso festiva de identidade, hierarquia e histria de um grupo que por meio da memria e

    da tradio manifesta sua crena, sua cultura.

    2.1 O reino do Congo e suas relaes com Portugal

    O antigo reino do Congo localizava-se onde hoje a zona setentrional de Angola;

    abrangia grande extenso da frica Centro-Ocidental e compreendia vrias provncias

    formadas, entre outros, por grupos bantos. Banto entendido como um macrogrupo cultural, o

    qual habitava extensas reas dessas regies, com leis, costumes e usos que o definiam.

    Introduziram a a agricultura e a metalurgia. Faziam a prtica de magias, rituais, feitios

    individuais e coletivos; reconheciam uma divindade superior da qual se haviam originado ascoisas boas que habitavam os cus e as coisas ms que moravam nas guas. Veneravam

    espritos da natureza e a alguns objetos atribuam poderes mgicos. O mundo era dividido em

    natural e sobrenatural; havia o mundo dos vivos (negros) e o dos mortos (brancos), separados

    entre si pela gua. No mar, onde estavam os mortos, era o mundo do alm, que habitado

    pelos ancestrais e diversos espritos. E, por meio de rituais, prestavam-lhes homenagens e

    obedincia e lhes ofertavam presentes.

    Na cosmologia congolesa contempornea, o mundo est dividido em duas partescomplementares: este mundo, dos eventos perceptveis e o outro mundo, das causasinvisveis, provocadoras dos acontecimentos percebidos. O mundo visvel habitadopor gente negra, que nele aparece e dele desaparece atravs do nascimento e damorte e que experimenta tribulaes provocadas em grande parte pela ao de forasruins, contra as quais as pessoas buscam a proteo dos poderes voltados para obem. O mundo do alm habitado por ancestrais e espritos diversos, que afetam avida das pessoas deste mundo, diretamente ou por intermdio de algum lderreligioso.(SOUZA, 2006, p. 63).

    O reino do Congo era localizado em torno da cidade de Mbanza Congo, sua capital,que mais tarde receberia o nome de So Salvador, aps a converso dos reis congoleses ao

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    Cristianismo, em 1491. Limitado pelos rios Congo, Kuango, Zaire e o oceano. Organizado em

    provncias como Mbata, Soyo, entre outras. As provncias eram governadas por pessoas

    nomeadas pelo rei e cada provncia era composta de aldeias nas quais os chefes atuavam

    como juzes e administradores, eram teoricamente nomeados pelo governo provincial ou

    diretamente pelo rei (COSTA E SILVA, 2006, p. 525). Havia tambm estados independentes

    que pagavam tributos ao soberano. Vrios estados e tribos ao leste e ao sul dessas fronteiras

    reconheciam, vez por outra, a soberania do Congo por intermdio do pagamento ocasional de

    tributos e do envio de presentes para o mani (BOXER, 2002, p. 111). Todos os mani eram

    chefes ou reis titulares, um segmento privilegiado. O manicongogovernava um conjunto de

    provncias ou aldeias, sendo o ttulo mais importante do Congo; de acordo com o Dicionrio

    Glossogrfico e Toponmico da Documentao sobre Angola, Sculo XVXVII, manicongoo mesmo que ntotela, que significa rei do Congo. (PARREIRA, 1990, p. 87).

    De acordo com Alberto da Costa e Silva (2006), o reino do Congo era rico. Possua

    uma vasta agricultura, produo de sal, ferro e cobre, artesanato e o comrcio que mantinha

    ao longo do rio entre o litoral, a savana e a floresta. Parte de toda riqueza transformava-se em

    tributo, o qual era cobrado pelos chefes das aldeias. Esses ficavam com uma parcela do tributo

    e passavam a outra para o chefe de distrito, que agia da mesma forma ao repass-lo para o

    governador. E de forma idntica fazia o governador em relao ao rei. Pagavam-se impostosdiretamente ao rei, uma vez ao ano, num ambiente de grande festa, quando o soberano

    presenteava os governadores e os confirmava em seus cargos, ou os demitia, se os tributos que

    traziam eram insuficientes (COSTA E SILVA, 2006, p. 525). Com o que recebia, o rei

    honrava a corte, mantendo sua guarda, composta de estrangeiros e escravos, pois o reino do

    Congo no possua exrcito permanente. Seu exrcito, em caso de guerra, era formado de

    homens e armas que o rei requisitava aos governadores das provncias e aos chefes de distrito.

    De acordo com Selma Alves Pantoja s em 1575 criaram-se formaes militaresespecializadas e permanentes (1987 p. 21).

    Esse direito de arrecadar tributos e impostos, que cabia ao rei, era fundamentado na

    conquista do poder, muitas vezes por meio de conflitos e batalhas, e confirmado ou efetivado

    pelos antepassados das linhagens nobres governantes. Um lder espiritual, o Nganga,

    introduzia o novo soberano, com rituais prprios. A diferena nas contribuies tributrias

    marcava a hierarquia dos grupos sociais das provncias, distritos e aldeias que se vinculavam a

    um grande reino, criando um lao de obrigaes entre nobreza e sditos; visto que tudo

    provinha do rei: a fertilidade, a sade, a abundncia.

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    O rei era a personificao dos dois mundos: o natural e o sobrenatural; era o elo entre

    os ancestrais e o povo que comandava. Era responsvel pela chuva, presidia s cerimnias

    agrcolas, legislava, entre outras funes. Era um ser poltico e sagrado. Era o smbolo da

    identidade coletiva de um povo que via nele os traos e gestos do heri-fundador ao qual

    estava ligado pela sucesso. Na pessoa do rei, vivos e mortos estariam reunidos numa

    comunidade que englobaria o natural e o sobrenatural (SOUZA, 2006, p. 27). O rei era

    reverenciado no somente como um elo entre os sditos e os deuses, mas, como um deus,

    visto que possua poderes divinos. Recebia as reverncias e a fidelidade dos subalternos como

    um rei e, ao mesmo tempo, deus.

    No havia um cl herdeiro para a sucesso do manicongo. Todos os homens

    descendentes do manicongo podiam reivindicar a sucesso, embora o que se mostrasse maisforte e tivesse uma descendncia com qualquer um que reinara desde a fundao do reino,

    Aluquene, fosse o escolhido. Esse conflito, muitas vezes, era resolvido na batalha pela

    sucesso. Por vezes, o rei era eleito por um colegiado de nove membros dos quais o mais

    importante detinha o direito de veto. Em algumas provncias como Mbata, a sucesso era

    hereditria. Segundo Pantoja (1987), o direito de sucesso foi restringido, em 1504, aos

    descendentes do rei Afonso I. Isso criou faces opostas na estrutura poltica do reino. E, a

    partir de 1512, os portugueses faziam parte dos conselheiros do manicongo e, durante osculo XVII, conseguiram, de fato, um lugar no colegiado eleitoral com direito a veto,

    influindo de forma decisiva na escolha do manicongo (PANTOJA, 1987, p. 21).

    Ao contrrio do Brasil, quando os portugueses se interessaram pela arte e domnio do

    Congo, encontraram um reino relativamente forte, rico e estruturado, com a mais poderosa,

    slida e respeitada linhagem de reis e chefes e um sistema escravista e um mercado de

    escravos bem desenvolvidos (SOUZA, 2006, p. 116). O registro do encontro dos portugueses

    com os congoleses foi feito pelo prncipe negro D. Domingos Jos Franque (1940) e data de1482 o primeiro contato do portugus Diogo Co s margens do rio Zaire:

    Aportava Diogo Co em 1482, margem esquerda da entrada de um grande rio eraa baa do Sonho, hoje tambm denominada de Santo Antnio do Zaire. Este nomedo rio uma corrupo portuguesa, pois que nos dialectos da regio se pronunciaNZari-NZali- NZadi. Fora de Portugal sse grande curso de gua quasiexclusivamente conhecido por Congo. (1940, p. 54).

    J os estudos e pesquisas de Charles R. Boxer (2002) e de Marina de Mello e Souza

    (2006) registram a chegada de Diogo Co em 1483 foz do rio Zaire. Portanto, deve-se

    entender que o fato ocorreu entre os anos de 1482 e 1483, pois nas pesquisas em questo no

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    h meno ao dia e ao ms, somente ao ano. O que se comprova nos estudos e registros de

    Antnio Lus A. Ferronha, contribuindo para o grupo de trabalho do Ministrio da Educao

    de Coimbra para as comemoraes dos Descobrimentos Portugueses e comemorao do

    quinto centenrio do incio da missionarizao no Congo:

    Aqui chegaram os navios do esclarecido Rei Dom Joo o Segundo de Portugal.Diogo Co/ Pro Annes/ Pero da Costa/ (Inscrio nas quedas de lelada, Rio Zaire),efectuada em 1482/84 por Diogo Co na sua 1. viagem costa africana. oprimeiro registro do contacto entre portugueses e congoleses. (FERRONHA, 1992,p. 7).

    Segundo Souza (2006), os portugueses foram recebidos pelos congoleses como

    enviados, emissrios do mundo sobrenatural, o mundo dos mortos do qual provm toda asabedoria; visto que eles vieram do mar. O rei de Portugal passou a ser um deus vivo

    superior ao seu prprio rei porque vivia em outro mundo, alm da gua, onde habitam os

    mortos (p. 54). Assim, sendo o rei de Portugal a personificao do deus Nzambi Mpungu, os

    congoleses passaram a fazer analogias das influncias e costumes portugueses com sua

    prpria cultura.

    A manuteno da relao entre os dois reinos intensificou o comrcio da regio e

    tambm o comrcio internacional, como o de tecidos de palma, metais e escravos. O prestgio

    dos comerciantes, muitos no congoleses, aumentou notoriamente. O comrcio era em grande

    parte exercido por grupos que habitavam a regio de Luango, estado costeiro ao norte de

    Kakongo, de onde eram importados para Luanda, os panos de rfia, escravos, a takula,

    marfim, plos de elefante, ostras perfumadas e cobre (PARREIRA, 1990, p. 157), sendo

    depois controlado pelos portugueses de So Tom e de Angola (SOUZA, 2006, p. 48).

    Takula uma espcie de sndalo vermelho usado em rituais.

    Os reis lusitanos no tentaram, no primeiro momento, obter o controle poltico do

    reino do Congo e tampouco domin-lo ou conquist-lo pela fora das armas. Contentaram-se

    em reconhecer seus reis do Congo como irmos de armas, trat-los como aliados, e no como

    vassalos (BOXER, 2002, p. 112). As primeiras embaixadas e misses para converter os

    congoleses, vistos como bantos selvagens e brbaros, incluiram envio de padres, frades,

    trabalhadores e mulheres para ensinarem s congolesas a economia domstica nos moldes de

    Portugal, tentando colocar o Cristianismo na cultura banta e nela integrar elementos e

    smbolos da cultura europia.

    Um dos mais famosos reis que o Congo j teve foi o rei D. Afonso, que sucedera seu

    pai, D. Joo I, depois de vencer seu irmo, o qual no recebera o batismo, em uma batalha

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    pela sucesso do reino. Seu pai, o rei Nzinga Kuwu, que recebera o nome portugus de D.

    Joo I depois do batismo, indicara o filho Mbemba-a Nzinga, D. Afonso, aos eleitores. Seu

    irmo Mpanzu-a Kitima, porm, que tinha o apoio do chefe religioso das tradies e religio

    do Congo, depois da morte de D. Joo I, tomou posse da capital do reino. Ele fazia parte de

    uma faco nobre que via na nova religio uma ameaa soberania e s tradies religiosas

    do reino. Assim, na luta pelo reino, foi travada a batalha na qual D. Afonso, com a ajuda

    militar lusa, venceu o opositor e conquistou o trono, sendo aclamado rei do Congo.

    O rei do Congo Mbemba-a Nzinga, D. Afonso, governou no sculo XVI (1507

    1542). O rei do Congo e o de Portugal comunicavam-se por inmeras cartas e embaixadas,

    tratando-se como irmos, estreitando a relao entre os pases e fortalecendo o poder e a

    influncia real e seus privilgios. Pelas cartas percebe-se que D. Afonso tinha umapreocupao com a converso e a cristianizao de seu Estado. Tais cartas e documentos

    dessas relaes diplomticas e polticas entre os dois reis esto nos estudos de Ferronha. Uma

    delas foi escrita por D. Afonso em 1512, ao papa, por conselho do rei de Portugal, informando

    de sua converso e seu combate contra as idolatrias:

    Santssimo em Cristo Pai, Beatssimo Senhor, senhor nosso Jlio Segundo, peladivina providncia Sumo Pontfice. Vosso devotssimo filho D. Afonso pela graa

    de Deus rei de Manicongo, e senhor dos Ambundos, Guin, manda beijar vossosbeatssimos ps com muita devoo. [...] como el-Rei D. Joo de Portugal [...] ocatlico D. Manoel seu sucessor, com muita despesa, trabalhos e indstriamandaram a estas terras pessoas religiosas [...] apartando-nos dos erros gentlicos,que at ento usramos, lanando de ns todas as abuses diablicas de Satans, eseus enganos; de todo nosso corao e vontade recebemos milagrosamente a F deNosso Senhor Jesus Cristo. (1949, p. 25).

    Nesta carta, D. Afonso coloca o Ndongo (os ambundos) em seu reinado e possesses.

    Ambundos, segundo Parreira (1990), correspondia ao povo habitante de Luanda, que

    pertencia etnia Mbundu. Esse grupo era considerado um grupo religioso que cultuava dolose orixs; o que o rei do Congo procurava combater, propagando o Cristianismo, levado

    quelas terras pelos portugueses. Em outra carta, de 5 de outubro de 1514, ele reconhece a

    ajuda militar portuguesa na batalha pelo reino:

    [...] e toda gente, parentes e irmos eram contra ns e ns no tnhamos outra ajudaseno Nosso Senhor e o padre Rodrigues Eanes e Antnio Fernandes que muitoesforo nos davam, estando ambos em orao a Nosso Senhor, que nos dessevencimento contra nossos inimigos, pelo qual prouve a ele pela sua misericrdia quenos deu tal vitria. (1949, p. 26).

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    H registros de pedidos de pedreiros, carpinteiros, padres, frades, missionrios,

    paramentos para igreja como tambm denncias sobre o comrcio de escravos, dentre outros

    pedidos e agradecimentos de presentes enviados de um rei ao outro. Marina de Mello e Souza

    afirma que o rei lusitano mandava freqentemente presentes para os lderes dos estados

    africanos com o intuito de ganhar seus favores e garantir que seus comerciantes pudessem

    viajar livremente pela frica, sob a proteo desses chefes (2006 p. 49). Em uma das cartas,

    de 18 de janeiro de 1526, D. Afonso declara ter recebido do Rei de Portugal alguns presentes:

    Ns D. Afonso por graa de Deus Rei do Congo etc. Fazemos saber, a vs ManuelVaz, cavaleiro da casa Del-Rei nosso irmo e seu feitor na ilha de So Tom, querecebemos de Rodrigo Alves, os trs vestidos que nos enviastes por ele, que o ditoRei nos manda de Portugal a saber: um capuz de lila preta pespontado de seda. Euma capa de contray frisado debruada de veludo preto. E outra capa de contrayfrisada e aberta e pesponta com seda. (FERRONHA, 1992, p. 52).

    D. Afonso mantinha com Portugal, alm da ajuda militar, o comrcio que se expandira

    notoriamente e o trfico de escravos, o qual escapou do controle do rei congols, pois as rotas

    e normas estabelecidas no foram respeitadas. At nobres foram capturados em lutas e

    batalhas e vendidos como escravos. Em uma de suas cartas de 1516, ele fala desse comrcio

    de escravos:

    [...] o que eu no podia crer porque naquele prprio tempo que lhe veio se fora umnavio da costa de Pampelunga que esteve a muitos dias resgatando, do que eu estoumuito escandalizado no somente por mim, mas pela minha gente, que me lana emrosto que se eu sou cristo e vassalo Del-Rei nosso irmo como vm os mesmoshomens brancos minha porta e fazer trato e resgate. (FERRONHA, 1992, p. 48).

    Com a escassez de missionrios em um perodo de disputas de terras e de poder, a

    difuso da f e a alfabetizao ficaram sendo privilgios de nobres que aumentavam o seu

    poderio. Se ingressar na Ordem de Cristo era uma das mais importantes fontes de prestgio estatus, O rei, Mbanza Congo, estaria no topo da hierarquia poltica, personificando a

    combinao de poder sagrado e autoridade secular (2006 p. 84).

    Ao longo da histria do Congo, lutas e batalhas foram travadas pela conquista de

    terras e domnio de reinos e povos. Holandeses, espanhis e outros povos, tambm, como os

    portugueses, estavam interessados nas terras africanas. E, alm disso, as regras de sucesso ao

    trono criavam faces opostas e instabilidade poltica e militar. Ndongo e Matamba,

    provncias da regio do Congo, compostas de ambundos e jagas, que pagavam tributos ao rei

    do Congo, assumiram uma atitude de independncia, criando rivalidades e conflitos entre o

    Ngola, representante dessas regies, e o Mani Congo. Em uma dessas batalhas pelo poder

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    dessas provncias, a rainha Nzinga assumiu Ndongo e Matamba, depois da morte de seu

    irmo, o Ngola. Seu reinado foi marcado por resistncia, confronto e lutas contra a dominao

    portuguesa.

    As relaes econmicas, polticas e catequticas encontraram grandes dificuldades; as

    embaixadas portuguesas e estrangeiras no foram bem-sucedidas. Guerras entre os centro-

    africanos e os portugueses foram travadas, pois uma colnia portuguesa de So Paulo de

    Luanda, no territrio africano, tinha o controle do mercado de escravos e das minas de metais

    e essa colnia lusa pregava que a converso s seria possvel por meio da conquista armada e

    da dominao. A esta colnia portuguesa o rei de Portugal deu a concesso do litoral do

    Congo e seus comerciantes impediram todas as tentativas de acordo entre os dois reinos.

    Os objetivos maiores de controlar os mercados abastecedores de escravos e dealcanar as minas que supostamente se localizavam a leste de Luanda, continenteadentro, fizeram com que os portugueses se envolvessem em numerosos conflitos,ganhando as batalhas sempre graas a suas alianas locais e utilizao deguerreiros africanos. (SOUZA, 2006, p. 103).

    As relaes entre o reino do Congo e os portugueses foram abaladas e entraram em

    declnio quando o pretexto da evangelizao e cristianizao deixou em evidncia o domnio e

    a expanso do comrcio de escravos pelos lusitanos. No incio do sculo XVII, o trfico deescravos era fundamental para o imprio portugus, e a maioria destes vinham do mercado de

    Luanda, Angola. Entretanto, esse domnio foi enfraquecido pela invaso de outros pases,

    como a Holanda.

    O rei do Congo que governou de 1641 a 1663, Garcia Afonso II, sendo coroado na

    poca de tal invaso, estabeleceu relaes amistosas com os holandeses. O rei e a elite

    congoleses no abandonaram o Catolicismo nem expulsaram os missionrios que atuavam na

    regio, a despeito da presso dos holandeses (SOUZA, 2006, p. 110), que hostilizavam o

    Cristianismo pregado pelos portugueses e, muitas vezes, levavam o povo a renunciar ao

    Catolicismo e voltar a idolatrar seus deuses e dolos.

    O reino do Congo ficou conhecido, alm das fronteiras africanas e de suas relaes

    com Portugal, como um reino estruturado, influente e forte, apesar das batalhas e guerras que

    enfrentou. Seu rei, D. Afonso, representante mximo da soberania do reino, foi imortalizado e

    um smbolo de organizao, hierarquia, poder e Cristianismo encontrado na realizao da

    festa de congado.

    V-se, ento, que muitos escravos exportados para o Brasil carregaram em suas

    memrias elementos e smbolos de diferentes povos e culturas; o Cristianismo foi em parte

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    assimilado sua prpria f, bem como os elementos, ritos e costumes europeus integrados ou

    associados cultura banto ou africana.

    2.2 A rainha Nzinga

    A rainha Nzinga nasceu em 1582, no Ndongo Oriental, e seu reinado nas regies de

    Ndongo e Matamba compreende o perodo de 1624 a 1663. Ela, depois de batalhas e disputas

    travadas com o Ngola, seu irmo, passou a ser a lder dos povos ambundos e jagas. Ndongo,

    uma ampla regio da Angola hodierna, na frica Centro-Ocidental, era a extensa rea que se

    estendia entre os Rios Dande e Cuanza. Este era o mundo dos bantos que estavam localizados

    ao sul do reino do Congo e a leste do territrio de Luba (GLASGOW, 1982, p. 15).Como j foi visto anteriormente, ambundos ou mbundos era um grupo religioso que

    cultuava dolos e orixs. Os jagas correspondiam ao grupo multi-tnico de guerreiros que, de

    acordo com Souza (2006, p. 104), praticavam exerccios de luta e em suas tradies inclua-se

    o canabalismo ritual, ligado a atos de guerra. A rainha aprendera os princpios da religio de

    seu povo, idolatrando a deusa Temba-Ndumba, que dera origem ao Ndongo, conforme a

    tradio.

    Nzinga Mbandi exerceu seu reinado com lutas de guerrilha mostrando no somenteseu poder e prestgio como tambm a resistncia ao domnio de Portugal e sobrevivncia de

    seu reino. O estado do Ndongo sofreu ataques simultneos: de um lado, com atividades

    militares e comerciais, os portugueses e, por outro, os mbangala, que eram populaes

    nmades, as quais viviam do saqueamento de outros povos.

    A regio de Ndongo, por meio de conflito e luta com o reino do Congo, que estava

    enfraquecido por disputas entre faces internas pela soberania real, conseguiu sua

    independncia, em 1556, deixando de pagar tributos ao manicongo. Note-se que o Ndongo jera independente do reino do Congo quando a rainha Nzinga o assumiu, em 1624.

    Ao Ngola, representante do estado do Ndongo, era atribudo poder poltico e

    espiritual, sendo, portanto, um chefe com o ttulo mais importante. Havia tambm um

    conjunto de senhores poderosos, com funes diferenciadas: ngolambole, por exemplo, era o

    comandante de guerra em todo o Ndongo. As grandes decises, porm, eram tomadas pelo

    Ngola, a quem toda a populao estava submetida.

    Os comerciantes, insatisfeitos com o monoplio do Congo sobre o trfico de escravos,

    chegaram regio do Ndongo e, porque o soberano era conhecido como Ngola, os

    portugueses passaram a chamar toda aquela regio ao sul do rio Congo de Angola.

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    O contato da rainha Nzinga com os portugueses, que buscavam, por meio do discurso

    da converso, expandir seus domnios, e, principalmente, encontrar as minas de ouro, prata e

    outros metais, foi marcado pela luta e resistncia.

    Nzinga tambm teria causado impacto entre os portugueses, ao agir e falar, emportugus, como chefe poltica lcida e articulada. Exigia que o ngola e seu reinofossem tratados pelos portugueses como iguais, no se justificando a exigncia detributos e guerras de escravizao entre parceiros comerciais soberanos. Suaautoridade e habilidade fizeram com que fosse assinado um tratado, nuncacumprido, que aceitava essas exigncias. (SOUZA, 2006, p. 107).

    Embora a fama dessa soberana tenha sido conquistada pela resistncia, defendendo seu

    povo das investidas portuguesas, inmeras vezes manteve contatos diplomticos com os

    mesmos e incorporou elementos, hbitos e costumes lusos em seu cotidiano. Trajava-se com

    ricas roupas e adereos adquiridos dos portugueses. Mas essa europeizao se dava apenas

    no traje, pois continuava a governar segundo as tradies ambundos-jagas e era vista por seu

    povo como uma rainha poderosa, representante de foras divinas (SOUZA, 2006, p. 108).

    Muitas lutas, batalhas, guerras, embaixadas e contatos diplomticos foram feitos entre

    os portugueses e a rainha. Na maioria das vezes, porm, esses acordos de paz no foram

    observados; abalando ou levando, de tempos em tempos, ao enfraquecimento dos exrcitos de

    Nzinga.

    Nzinga nunca se defrontara antes com um inimigo to poderoso como o Rei dePortugal, com seus exrcitos, e suas armas: estes haviam infligido grandes perdas ssuas foras no Ndongo, enfraquecendo seus exrcitos a um tal ponto, que ela nomais podia continuar na ofensiva, apesar de seu esprito de luta no estar nem umpouco abatido. (GLASLOW, 1982, p. 118).

    Nzinga fracassou em seu intuito maior de expulsar os portugueses das terras de seu

    reinado, pois as alianas travadas entre esses e os chefes africanos deixavam os exrcitosnativos merc dos lusitanos, numerosos e fortalecidos Ela chegou a aceitar a converso e o

    batismo na verdadeira f pela segunda vez, recebendo o nome portugus de Ana de Sousa.

    O seu primeiro batismo foi antes de se tornar rainha. Em uma negociao para a libertao de

    uma irm, prisioneira dos portugueses, aceitou um acordo de paz, convertendo-se ao

    Cristianismo e permitindo que em seu reino fosse introduzido o batismo e as evangelizaes

    dos missionrios portugueses.

    Marina de Mello e Souza (2006) argumenta que a rainha se interessou pela religio

    crist ao perceber que o Cristianismo tinha uma forte relao com o poder: ela certamente

    acreditou que os rituais praticados pelos brancos estrangeiros estavam relacionados sua

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    riqueza e poder, semelhana do ocorrido no Congo, pois ambos os povos pertenciam a um

    mesmo universo cultural banto (2006, p. 107).

    Morreu em 17 de dezembro de 1663, mas ficou na histria como a personificao da

    resistncia dominao portuguesa, sendo associada libertao e ao nacionalismo angolano.

    Tambm faz parte da histria do congado o personagem Chico Rei que, sendo rei de

    uma nao africana, veio como escravo para o Brasil. Conseguiu sua liberdade e, mais tarde, a

    do filho e de outros escravos compatrcios, formando a Irmandade de Nossa Senhora do

    Rosrio.

    2.3 A histria de Chico Rei

    De acordo com Vasconcelos(1996) e a Secretaria Municipal de Esportes,Lazer,Cultura

    e Turismo de Oliveira (1997),o reino do Congo foi fundado pelo rei Aluquene, de quem

    provinha a tradio pag; este reino tinha seu rei Negang, um preposto dos missionrios

    portugueses. Este, entrou em conflito com o rei Nizugiatambo, de Bul, que fora aclamado rei

    pelo povo insatisfeito com o prestgio dos lusitanos, sendo morto em uma batalha. Quem

    comandava a guarda pessoal do rei Nizugiatambo era o jovem nobre Galanga, da famlia do

    reino do Congo, foragido em Bul, por perseguies ligadas ao trono de Negang. O reiNizugiatambo foi assassinado numa conspirao pelos palacianos, insatisfeitos e descontentes

    com seu reinado.

    O rei que o sucedeu foi Galanga, por seus direitos legtimos; e, aps vencer a batalha

    de Maramara, foi coroado no alto cargo de rei do Congo com 27 anos, casado com Djal (que

    tambm fora coroada). Tinha dois filhos. Seu reinado no foi fcil, pois os reis antigos haviam

    abolido os costumes do antigo Imprio do Congo, por influncias estrangeiras. Havia

    comercializao de escravos pelos portugueses, que, com suas tributaes, aboliram asoberania e a religio do pas. Galanga foi um rei simples e enrgico, procurando restaurar os

    costumes e crenas das naes bantas e a manuteno das leis antigas, conseguindo moderar

    as influncias estrangeiras. Reinava procurando o bem-estar do povo, com justia, bondade e

    muita dignidade. Foi poderoso e respeitado por todos.

    Um fato, porm, abalou o pas: as terras do Reino do Congo foram invadidas. Para

    expulsar os invasores, foram mobilizadas as tropas regulares, mais a guarda pessoal do rei

    congols. O filho do rei Galanga, Muzinga, com 15 anos foi nomeado, aproximadamente em

    1740, Capito-de-Guerra Preta do Congo.

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    O rei Galanga abriu o templo de Nzmbi-Mpungo (dolo e deus da imortalidade) e foi

    rezar pedindo fora e paz. Ainda no templo foi surpreendido por dezenas de mercadores de

    escravos que invadiram o palcio real. Roubaram-lhe o colar rgio de rubis, sua coroa e

    insgnias reais. E o rei Galanga do reino do Congo (o grande vencedor de Maramara), a

    famlia real, seus secretrios e outros foram amarrados como feras, com argolas de ferro e

    forados a caminhar, arrastados para fora da cidade, at a orla do mar, onde seriam vendidos,

    com outras pessoas, no mercado escravo.

    Antes da viagem foram batizados. O rei de Portugal no queria pagos. s mulheres

    chamaram Maria e aos homens, Francisco. Foram marcados com ferro em brasa. Viajaram no

    barco negreiro 371 infelizes, rumo Amrica do Sul, mais precisamente ao Brasil. Durante a

    viagem sofreram maus tratos; obrigados a comer e forados a danar de tempos em tempospara chegarem com um aspecto melhor, contudo muitos no resistiram. Houve uma forte

    tempestade (aps doze dias de viagem) e, para no afundar o barco, cargas foram jogadas ao

    mar e, junto, mais de 225 negras e crianas vivas, dentre as quais a rainha Djal e sua filha

    Itulu, a princesa. Chegando ao Brasil, na Bahia, ningum quis as peas. Aportaram a 9 de

    abril de 1740 no Rio de Janeiro. Eram 115 negros; pareciam mmias vivas. Cantavam e

    batiam palmas; fingiam uma alegria que no tinham.

    Trinta negros, dentre os quais se encontravam o rei Galanga (agora Francisco) e seufilho Muzinga, foram comprados por um minerador de Vila Rica do Ouro Preto e do arraial

    das Minas de Catas Altas do Mato Dentro. Era o ciclo do ouro nas Gerais, adquirindo mais e

    mais escravos. Galanga foi escravo do major Augusto de Andrade Gis. Na viagem para

    Minas Gerais, caminharam sem ferros e peias. Galanga seguia frente e, ao subir a serra da

    Mantiqueira, recordou o territrio africano. Chegaram com tanga de saco. Ficaram na regio

    de Vila Rica, Vila do Carmo e alguns, nas minas de Catas Altas.

    Na senzala, Francisco (Galanga) encontrou outros congoleses. Conquistou a simpatiade todos, pois era discreto, tratava-os com distino, amizade e cordialidade. Sua fama de Rei

    do Congo logo foi conhecida e ele passou a ser chamado de Chico Rei.

    Chico Rei tinha porte de nobreza, era desejado pelas mulheres e passava o tempo

    pensativo na senzala; s saa para as minas, onde trabalhava com afinco. Repartia suas coisas

    com todos. Tudo isso chamava a ateno de todos, brancos e escravos. Depois de dois anos de

    trabalho na mina, foi feitor na fazenda onde era escravo e, durante este perodo, nenhum

    escravo fora castigado, pois impunha respeito e resignao. Sua figura majestosa

    impressionou o padre Figueiredo, que se tornou seu amigo. O padre Figueiredo, com as

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    economias juntadas por Chico ao longo dos anos, nos seus trabalhos de domingo, conseguiu

    do major (o que levou muito tempo, conversa e reflexo) a alforria ou carta de ingenuidade.

    Alforriado, deixou o filho Muzinga, prometendo busc-lo mais tarde. Foi morar numa

    pobre casa da mina da Encardideira (onde trabalhara antes), agora extinta; e, de aluguel,

    bateava com ardor at aos domingos. Encontrando uma pepita alforriou o filho e, juntos,

    passaram a batear. Bateavam na mina e inscreveram-se na Irmandade de Nossa Senhora do

    Rosrio dos Pretos de Antnio Dias.

    Seu antigo senhor, o major Augusto, encontrando-se doente, ofereceu-lhe a extinta

    mina Encardideira, para pagamento, conforme as condies de Chico. Chico Rei e seu filho

    no seimportaram com os insultos e dizeres de quem achava que era tolice comprar uma mina

    que no carpia. Trabalharam com determinao e encontraram ouro novamente. Assim,alforriou 35 negros em dois anos de trabalho.

    Fez uma grande festa com os seus alforriados e patrcios, em 6 de janeiro de 1747, na

    capela do Rosrio, na qual apareceram fardados e trajados como na terra natal. Essa festa

    ficou conhecida como Congado do Rosrio e, nela, reis e rainhas do Rosrio eram eleitos.

    Hoje, na festividade do congado, os Reis Congos representam, simblica e miticamente, a

    figura de Chico Rei.

    Por meio da lenda de Chico Rei percebe-se que a origem do congado est ligada Igreja de Nossa Senhora do Rosrio. Nas festas havia grandes solenidades tpicas, que

    receberam o nome de reinado de Nossa Senhora, nas quais Chico Rei de coroa e cetro e sua

    corte (rainha, prncipes e dignitrios de sua realeza) apresentavam-se cobertos de mantos e

    trajes de gala, bordados ricamente a ouro. Este grupo real era precedido de batedores com

    caxambus, pandeiros, tambores e outros instrumentos, enquanto msicos e danarinos

    entoavam ladainhas e cantos a Nossa Senhora. Era a Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio.

    2.4 A Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio

    H Irmandades de Nossa Senhora do Rosrio em diversas partes do mundo, como por

    exemplo, em Portugal, Alemanha, frica, Brasil, e, desde o sculo XVII, no Congo, Angola e

    Moambique. Antes de 1552, j existia no Brasil uma irmandade para os escravos da Guin.

    Segundo Van Der Poel (1981), os portugueses introduziram a irmandade na frica e os

    escravos negros congos continuaram sua devoo no Brasil (1981 p. 187). De acordo com o

    autor, as mais antigas irmandades de homens pretos so a do Rio de Janeiro (1639), a de

    Belm, com data de 1682 e Salvador, Recife e Olinda, todas com datas da dcada de 1680.

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    Em Minas Gerais, o congado e outras celebraes afro-brasileiras tiveram suas origens na

    Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio da Freguesia de Senhora do Pilar de Ouro Preto, que

    teve seus estatutos aprovados e confirmados pelo bispo do Rio de Janeiro, em 1715. Segundo

    Hugo Pontes, estes estatutos desapareceram por rivalidades entre negros e brancos e outros

    foram elaborados em 1733. Este autor diz o seguinte:

    Haver nesta irmandade um rei e uma rainha, ambos pretos de qualquer nao quesejam, os quais sero eleitos todos os anos em mesa e mais votos, e sero obrigadosa assistir com seu estado as festividades de Nossa Senhora; e mais santos,acompanhado no ltimo dia a procisso atrs do Plio. (PONTES, 2003, p. 8).

    As irmandades surgiram das confrarias, criadas, em Minas Gerais, pela igreja no Ciclo

    do Ouro, nos sculos XVII e XVIII, pois a Coroa portuguesa havia proibido a entrada das

    ordens religiosas. Tais irmandades foram inspiradas nas corporaes de ofcios da Idade

    Mdia. Tornaram-se, porm, um meio de estratificao, porque os mais abastados

    participavam da Irmandade de So Francisco de Assis; os homens pardos, da Irmandade de

    Santo Antnio de Catejer; e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio