continente #175 - gordofobia
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8/20/2019 Continente #175 - Gordofobia
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www.revistacontinente.com.br
ano XV • jul/15 • R$ 10,00
#175
GORDO
FOBIA
E MAIS TOMMY LEE JONES | ANTONIO BIVAR | MONTEZ MAGNO | ARAMIS TRINDADE
POR CONTA DE PADRÕESSOCIAIS RIGOROSOS, OSCORPOS VOLUMOSOS SÃORELEGADOS À EXCLUSÃO
CONVERSA/
LITERATURA“O EDITOR BRASILEIRONÃO ESTÁ MAISPREOCUPADO COM AQUALIDADE DO TEXTO”
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A
P O I O
R E A L I Z A Ç Ã
NO CENTRODE CONVENÇÕES
EDE AA E J U L H OD E J U L H OHOMENAGEM AH ME EM ALOURO DO PAJEÚLO R D P EE MESTRE NUCA.E MESTRE NU A.
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A programação do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco segue em julho e agosto com muitasatrações nas tardes de sábado em Recife, reunindo o melhor das músicas brasileira e internacional.
04/07 • SÁBADO• 17hSHOW COM SALIMANGA
11/07 • SÁBADO • 17hSHOW COM SELESTRIAL
18/07 • SÁBADO • 17hRECITAL COM PAULO OLIVEIRA
25/07 • SÁBADO • 17hSHOW COM VINICIUS SARMENTO EJULIO CESAR MENDES
1º/08 • SÁBADO • 17hRECITAL COM JOHSI GUIMARÃES
15/08 • SÁBADO • 17hRECITAL COM QUINTETO DE METAISINSTRUMENTAL BRASILEIRO
22/08 • SÁBADO • 17hSHOW COM FIODA MEIOTA
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFEOuvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco.
Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estadode Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagaslimitadas, até 20 minutos antes das atividades.
INGRESSOSProgramação regular: R$ 5,00Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 2,50
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCOAv. Rui Barbosa, 960 GraçasRecife – Pernambuco – Brasil – 52011-040Telefone: 81 3184.3174 / 3170E-mail: [email protected]
Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174Horário de funcionamentoTer a sex 9h as 17hSab e dom 14h as 17h
08/08 • SÁBADO • 17hSHOW COM MÁRCIO FARACO
Ouvindo e Fazendo Músicano Museu do Estado de Pernambuco
PROGRAMAÇÃO
julhoe agosto2015
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura dePernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
APOIO
REALIZAÇÃO
29/08 • SÁBADO • 17hSHOW COM BRUNO ABDALA
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J U L H O
Quando já estávamos num bom caminhoda edição da nossa reportagem de capa,
sobre a aversão às pessoas gordas – agordofobia –, foi que reparamos que amaioria das imagens que tínhamos para amatéria eram de mulheres. Na verdade, amaioria das pessoas com quem a jornalistaLuciana Veras conversou são mulheres.Estava evidente aquilo que a terceiramatéria, As representações ideológicas docorpo, enfatizava: que este não é apenasum problema que atinge aqueles queestão fora dos padrões de beleza e saúde
vigentes, mas que ele penaliza sobretudo ofeminino. Por isso é que a artista paranaenseFernanda Magalhães diz que as suasfotografias e o uso que faz de seu corpo e desua constituição física no seu trabalho são“absolutamente políticos”.
“A gordofobia é uma das discussões dofeminismo”, defende ela, para mais adiantedizer à Continente: “O fato é que, na arte ena vida, há uma outra leitura do corpo dohomem e também desse corpo masculinoobeso. Questões de poder fazem com que
eles recebam olhares diferentes daquelesdestinados ao corpo de mulheres”.
Também na reportagem, o professorVinicios Ribeiro, que defendeu dissertação
sobre o trabalho de Fernanda na UFG,
observa que, na História da Arte, é
infinitamente maior a quantidade
de homens que produzem um olhar
sobre o corpo da mulher – tantas
vezes despido – que o contrário. Fato
que aponta mais uma vez para essa
construção social de beleza pela arte.
Outro assunto que destacamos neste
número é a quarta edição da nossaConversa , seção que criamos para circularbimestralmente na revista este ano comomarco dos seus 15 anos. O assunto colocadona mesa é a literatura, para o qual foramconvidados a discutir escritores de geraçõesdistintas, sob a mediação de dois críticos dosetor. O ponto que mais pareceu mobilizar osparticipantes deste encontro foi o incômodode escrever e ler textos sob pressão domercado. Nesse ponto, definitivamente, osescritores não estão sozinhos.
SUBSTANTIA JONES PARA WWW.ADIPOSITIVITY.COM/DIVULGAÇÃO
a o s l e i t o r e s
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6/92CO NTI NENTE JUL HO |
PortfólioDiego Di Niglio
Numa viagem de cooperação internacional à África, italiano descobre faceta de fotógrafo. A partir dali, ele também detonaria ointeresse pela cultura daqueles povos
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6 Cartas
7 Expediente +colaboradores
8 EntrevistaTommy Lee Jones
Conhecido como uma
figura mal-humorada, o
ator se empolga quando
fala sobre seus filmes
12 ConexãoEscravidão
Site oferece informações
sobre empresas que
mantêm condições ilegais
de trabalho no mundo
20 Balaio
Ivinho
O bordão “sua vida daria
um filme” se aplica à
história do guitarrista
recentemente falecido
41 PerfilAntonio BivarEm terceiro livro de
memórias, dramaturgo
conta momentos valiosos
da contracultura brasileira
46 CardápioInsumos
Moela de galinha, cabeça
de camarão, pele de peixe.
Esses produtos de baixo
valor podem transformar-
se em iguarias desejadas
sumário
56 SonorasO pescador e a sua alma
Opéra traz referências ao
litoral nordestino, numa
adapatação de conto
homônimo de Oscar Wilde
60 Palco Aramis Trindade
Com montagem de peça
de Ariano Suassuna,
ator leva cordel para
apresentação em escolas
62 Matéria corridaJosé Cláudio
Entre os homens
73 LeituraZeroQuarenta anos depois de
sua publicação, romance
de Ignácio Loyola
Brandão é visto à luz da
contemporaneidade
78 Entremez
Ronaldo Correia de BritoOs territórios afetivos
88 CriaturasRaul Seixas
Por Rodrigo Gafa
CAPA
FOTO Registro de performance de Fernanda Magalhães por Graziela Diez/Divulgação
ClaqueteMulheres no westernCom a recente chegada de Dívida de
honra às telas, gênero eminentemente
masculino traz ao protagonismo as
mulheres do mítico oeste americano
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SociedadeGordofobia
Estamos cercados de apelos a um corpoinatingível. Estar fora dos padrões força oindivíduo ao preconceito e à exclusão, sendoa gordura um fator de rejeição
22Jul’ 15
VisuaisMontez Magno Ao completar 81 anos, artista visual e poetade versátil criação – sobretudo vinculada àsvertentes da vanguarda – experimenta umavalorização de sua obra pela crítica
64
ConversaLiteraturaEscritores, professores universitários ecríticos literários debatem sobre questõescomo a relação do autor com o mercado, aanálise da obra e a atual produção nacional
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ComportamentoTurbante
O adorno faz a cabeça das mais estilosasàs clássicas mulheres. As afrodescendentesbrasileiras, entretanto, chamam atenção aoseu simbolismo na cultura negra
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cartas
ARQUITETURA HOJE 1Ficou muito boa a matéria especial
sobre arquitetura da edição demaio. O texto captou claramente a
essência do que foi dito – o que é
raro em reportagem. Normalmente,
pinçam alguma coisa do que se
diz que se encaixa naquilo que o
repórter acha interessante, mas,
não necessariamente, representa
a opinião do entrevistado. Me
impressiona positivamente a revista.
Abordagem, apresentação, isenção…
Vocês estão de parabéns.
FRANCISCO LEITÃO
BRASÍLIADF
ARQUITETURA HOJE 2A revista Continente merece
muitos elogios pela abordagem
que tem dado à arquitetura! Além
da qualidade dos textos, é evidente
a pesquisa e a seriedade que se
revelam pela profundidade com
que tratam cada tema. Não temos
revistas especializadas no país
que tenham um conteúdo crítico e
interessante assim. Parabéns!
PEDRO DEL GUERRA
SÃO PAULOSP
O nosso objetivo é fazer umapublicação cada vez melhor,e, para isso, contamos comvocê. Envie suas críticas,sugestões e opiniões.
A seção de cartas recebecolaborações por e-mail, faxe correio (Rua Coelho Leite,530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).
As mensagens devem serconcisas e conter nomecompleto, endereço etelefone. A Continente se reserva o direito depublicar apenas trechose não se compromete apublicar todas as cartas.
Telefone(81) 3183 2780 Fax(81) 3183 2783
Site
revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTECOM A GENTE
sempre me deparei com a assertiva
de que o bom profissional deve
ser cuidadoso com o que escreve,notadamente quando se refere
a fatos e pessoas com maior
visibilidade política ou histórica.
Admirador dessa revista e seu
assinante há bom tempo, não posso
aceitar o erro cometido, na matéria
“O que ficou da política de boa
vizinhança” (março, 2015, nº 171),
mencionando o diretor do programa
Corpo da Paz como sargento Shriver,
tratando o personagem como um
militar graduado, quando na verdade
trata-se do diplomata Sargent(nome próprio) Shriver, casado
com uma irmã de John Kennedy,
designado por este para ser o diretor
do programa. Embora, como muitos
outros norte-americanos, o sr.
Sargent Shriver possa ter servido às
forças armadas, não há menções de
sua qualificação militar, podendo-se,
no entanto, imaginar que, como seu
cunhado JFK (tenente da Marinha),
ele tenha prestado serviço militar.
ARAEL MENEZES DA COSTA
JOÃO PESSOAPB
ENCANTOToda a equipe da Continente,
incluindo o setor de contato com
o assinante, está de parabéns: a
revista é incrível e o suplemento
Pernambuco também. Estou
encantada com o conteúdo e o
cuidado editorial. Parabéns a todos
os envolvidos!
MARISA NOVAES
RIO DE JANEIRORJ
HISTÓRIAS E PATENTES
Como profissional de jornalismocom mais de 50 anos de profissão,
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colaboradores
Olívia Mindêlo
Jornalista, mestre emSociologia pela UFPE
Marcelo Abreu
Jornalista, autor de livros comoDe Londres a Kathmandu e Viva
o Grande Líder – Um repórter
brasileiro na Coreia do Norte
Rodrigo Carreiro
Jornalista, professor do c ursode Cinema da UFPE, e doutor
em Comunicação Social (UFPE)
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
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E MAIS
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TOMMY LEE JONES
“Passamos a vida toda perseguindo a originalidade”Ator e diretor norte-americano fala sobre a sua carreira no cinemae sobre o quarto filme dirigido por ele, o faroeste Dívida de honra,uma das raras obras do gênero protagonizada por mulheres
TEXTORodrigo Salem
estrela de primeira grandeza em 1993,quando a versão cinematográfica de
O fugitivo , protagonizada por HarrisonFord, rendeu-lhe a estatueta de atorcoadjuvante pela interpretação do agentefederal Samuel Gerard.
Lee Jones não apenas passou adedicar-se a filmes mais sérios, mastambém emplacou uma participaçãomilionária no vergonhoso Batmaneternamente (1995), com o vilão DuasCaras, estreou em um filme tragédiamoderna (Volcano ) e até fez a primeiracontinuação: U. S. Marshals – Os federais (1998), no qual retornou ao papel (agora
principal) do agente federal de O fugitivo –sem Harrison Ford. No entanto, o texanojá havia entrado no imaginário popularcomo o intragável homem de preto queacompanha Will Smith em MIB – Homensde preto (1997), um dos seus maioressucessos –, tanto que voltou para maisduas sequências.
Nos anos 2000, ele apostou
com mais dedicação na carreira
de diretor e surgiu com o primeiro
longa-metragem para o cinema:
Três enterros . O faroeste sombrio,
escrito por Guillermo Arriaga (Amores
Em Harvard, Tommy Lee Jonesestudava Arte, mas combatia
estereótipos, destacando-se tambémcomo jogador de futebol americano– inclusive, fazendo parte do que éconsiderado um dos jogos universitáriosmais famosos da história, quandoHarvard virou para cima da grandeinstituição rival, Yale, após estarperdendo por 16 pontos. No anoseguinte, em 1969, formou-se com umatese sobre A mecânica do catolicismo sob oponto de vista do trabalho da escritoraamericana Flannery O’Connor.
Morando em Nova York, para tentar
a vida como ator, não demorou muitopara se destacar no teatro e no cinema,no início dos anos 1970. Já em 1980,conseguiu sua primeira indicação aoGlobo de Ouro, interpretando DoolittleLynn, marido alcoólatra e violentoda cantora country Loretta Lynn (SissySpacek), na cinebiografia O destinomudou sua vida, de Michael Apted.Apesar de trabalhos competentesem longas, como JFK – A pergunta quenão quer calar (1991), pelo qual foiindicado ao Oscar de melhor ator
coadjuvante, Tommy Lee Jones virou
Se existe uma lenda entre jornalistas:quem nunca entrevistou Tommy Lee
Jones não pode reclamar da vida.O protagonista de Homens de preto eO fugitivo é conhecido na imprensacinematográfica mundial como o atormais ranzinza em atividade. Garantemos rumores que ele, certa vez, sentou emuma mesa de entrevistas e disse que sófalaria sobre a Bíblia.
Mas Lee Jones não é esse monstroque pintam. Sim, ele é mal-humorado,mas se empolga quando conversasobre técnica de cinema e seus filmes.Fruto do ambiente em que nasceu, em
San Saba, Texas, em 15 de setembrode 1946, filho de uma mulher que sedividia entre os trabalhos de professora,policial e dona de salão de beleza e deum técnico especialista em campos depetróleo, o pequeno Tommy precisavaduelar com a rigidez do interior de umdos estados mais rudes dos EstadosUnidos e sua vontade de ser artista.Notável, frequentou escola com bolsade estudos, inclusive na Universidadede Harvard, onde foi colega de Al Gore,filho de um senador do Tennessee e
futuro vice-presidente americano.
EntrevistaCON
TINEN
TE
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DIVULGAÇÃO
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CONTINENTE Ok, esse é seuquarto filme. Arrepende-se de nãoter começado antes na função? TOMMY LEE JONES Gostaria deter tido oportunidades para dirigirfilmes quando era mais jovem. São
20 anos, desde que fiz meu primeiro,e gostaria de dirigir mais. Ao mesmotempo, não me arrependo.
CONTINENTE O filme tem umatrama bem pesada, mas um certohumor. Isso veio do livro também? TOMMY LEE JONES Não acho que
havia muito humor no livro. Li duas
TOMMY LEE JONES Uma pessoa
com quem eu trabalhava me enviou
o livro e me perguntou se daria
para fazer um filme com ele. Li e
fomos direto às negociações para a
compra dos direitos. Demorei um
ano escrevendo o roteiro, o que ébastante rápido, considerando meu
ritmo normal. O que me chamou a
atenção foi a originalidade do texto.
Passamos a vida toda perseguindo a
originalidade e, se conseguíssemos
capturar isso do livro, teríamos
uma boa chance de fazer um
filme que ninguém viu antes.
brutos ), mostrou que Lee Jones não
era apenas um ator de mão cheia,
mas um cineasta sensível e técnico,
levando os prêmios de melhor roteiro
e ator no Festival de Cannes , em 2005.
Ao longo dos anos, soube “brincar”
com sua ausência de humor. Não apenasem Homens de preto , mas Onde os fracosnão têm vez (2007), dos Irmãos Coen,ou na sua incursão no universo Marvelem Capitão América: o primeiro vingador (2011). Mas foi em Cannes, novamente,que apresentou seu segundo filme (oquarto, se considerarmos o trabalhoem TV). Em 2014, Dívida de honra foi um
CONTINENTE Muitos rotularamo filme de “faroeste feminista”.TOMMY LEE JONES O filme é sobre
mulheres e as consequências da
objetificação e marginalização
delas, a dificuldade de impor
um sistema inapropriadodo modelo de agricultura
europeu nas terras selvagens
da América e as implicações
sociais desse comportamento.
CONTINENTE É seu segundo filme…TOMMY LEE JONES Quarto.
CONTINENTE Os outros foram para a televisão.TOMMY LEE JONES Bem,eu não vejo diferença (risos).
Usamos as mesmas câmeras.
vezes, para poder tirar tudo que não
servia para o roteiro, então escrevi
o primeiro tratamento e nunca mais
voltei para o material original. Não
me recordo de ser especialmente
divertido, mas, em um filme tão
extremo e diversificado como esse, ohumor torna-se bastante útil.
CONTINENTE Interessante a suaescolha de matar a protagonista.TOMMY LEE JONES Isso veio dolivro. Ela é uma parte importante domaterial original, dando um pontode vista diferente. É uma pessoaboa e generosa que vê aquelasquatro mulheres e acredita que podecarregar todas as mazelas do mundosobre os ombros, mas não pode.
Ela tem os próprios problemas.
dos concorrentes à Palma de Ouro,um faroeste feminista que poderia terrendido melhor na Croisette, mas queterminou bastante elogiado no festival(leia sobre o filme na seção Claquetedesta edição).
E talvez tenha sido por causa dissoque Tommy Lee Jones, um poucomenos ranzinza, encontrou-se coma Continente, em uma entrevistarealizada no Hotel Majestic, quaseem frente ao Palais des Festivals, emCannes. O ator, diretor, produtor eroteirista do filme até riu durante aentrevista. Isso é quase um Pulitzer paraquem escreveu sobre cinema.
CONTINENTE Quando foi que você leu eHomesman, livro de Glendon Swarthout, que
deu origem à Dívida de honra?
R E P R O D U Ç Ã O
EntrevistaCONTI
NENTE
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Era como um buraco no chão, sem
piso de madeira. Mary tem dinheiro,
então pode importar madeira para o
chão e para levantar um celeiro, mas
as outras mulheres, para poderem
sobreviver, precisavam trabalhar antes
de anoitecer, não tinham vida sociale muito menos penicilina. 65% dos
recém-nascidos morriam naquela
época. A música, mesmo sendo de um
pequeno órgão, servia como antídoto
para tudo isso.
CONTINENTE Não acha irônico que
a única pessoa a espalhar bondade
no filme morra no meio?
TOMMY LEE JONES
Se eu acho irônico?
CONTINENTE De uma maneira triste.
TOMMY LEE JONES É apenas triste.
CONTINENTE Não acha que reflete algo maissobre bem x mal? TOMMY LEE JONES Não, acho que não.Não estou fazendo uma declaração sobrea condição do mundo. Fiz um filmesobre mulheres.
CONTINENTE Já que tocou no assunto,
como você vê a situação das mulheres hoje
em dia?
TOMMY LEE JONES As mulheres
no mundo todo, e até nos Estados
Unidos, são frequentemente
marginalizadas e não levadas a
sério. Isso tem consequências até
hoje. Se você quer examinar o que
existe de errado em nossos tempos,
o melhor lugar para começar é
investigando os erros do passado.
CONTINENTE Você é um diretor muitotécnico? TOMMY LEE JONES Em qual escala?(risos)
CONTINENTE Você pensa muito em qual lenteusar em determinada cena? TOMMY LEE JONES Sim, controlo issocem por cento.
CONTINENTE Normalmente, um ator quevira diretor não se importa tanto com o lado mais
técnico da direção.TOMMY LEE JONES Não, eu gosto decontrolar tudo. E se existe um aspectodo filme que não posso controlar, eucontrolo a pessoa que tem esse controle.
CONTINENTE Como um ator se beneficia aose dirigir? TOMMY LEE JONES Se ele estáproduzindo, escrevendo, dirigindoe atuando em um filme, pegar trêsdessas atribuições fará a quarta ficarmais fácil. Tenho noção de tudo que
acontece em um set , independentementedo trabalho que eu tenha. CONTINENTE Como foi trabalhar com AustinLeonard Jones, seu filho, na supervisão musical? TOMMY LEE JONES Ele fez um
trabalho maravilhoso. Todas as
músicas que ouvimos daquele período
foram encontradas por meio de uma
pesquisa extensa. E ele também toca o
banjo no filme.
CONTINENTE Ele quer ser ator, então?
TOMMY LEE JONES Não, ele acabou de
CONTINENTE A personagem principal
precisa de música, senão o barulho do vento a
deixa louca. Ela ama a natureza, mas sabe que
ela pode deixar uma pessoa insana.
TOMMY LEE JONES Principalmente
se elas têm expectativas vitorianas
para a vida, o que será uma decepçãoinevitável. As mulheres vitorianas
eram criadas para serem bonitas,
prendadas, criar filhos e viver no centro
de uma propriedade pastoral. E, no
oeste selvagem, havia poucas árvores,
portanto não havia serrarias e muitas
edificações. Elas precisavam viver em
casas feitas de sujeira, lama e tijolões.
“O filme é sobre
mulheres e asconsequências
da objetificação emarginalização delas,
e a dificuldade deimpor um sistemainapropriado do
modelo de agricultura
europeu nas terrasselvagens da
América”
lançar o quarto álbum, escreve e produzmúsica em Austin, no Texas.
CONTINENTE Depois de tantos anoscomo ator, você, como diretor, precisavoltar para o monitor e checar sua
interpretação para ver se fez tudo certo? TOMMY LEE JONES Eu filmo semprecom três câmeras e as mantenhoperto para usar como referênciarápida. Peço para ver alguma cenado dia anterior. Tenho consciênciado que fiz na iluminação e nacena, mas replays são úteis.
CONTINENTE Retratar doenças mentais nãoé a coisa mais fácil de um filme. Como você pesquisou e preparou as atrizes? TOMMY LEE JONES Pedi para cada
uma delas ler o roteiro e criar a própriainterpretação. Entreguei livros sobredoenças mentais em mulheres dafronteira no século 19, para que vissemfotos daquelas pessoas e entendessemcomo eram tratadas. Queria que elasse perguntassem: “O que se passoucom aquelas mulheres para terem esseaspecto?”. Escrevi uma pequena históriasobre cada uma das personagens paraajudar a compor a dramaticidade.
CONTINENTE Você pode explicar
como Meryl Streep se envolveu como filme e como a convenceu a fazer
uma participação tão pequena?
TOMMY LEE JONES Na verdade,eu conheço a filha de Meryl, Grace(Gummer), e mandei o roteiro paraela ver se não gostaria de interpretarArabella. Grace concordou, mas euestava escrevendo durante a divulgaçãode Um divã para dois (filme em que elee Meryl Streep interpretam um casalde meia-idade em crise) e Merylme disse que havia lido o roteiro e
adorado. Ela perguntou se poderia fazera senhora do fim do filme e respondique ia pensar no assunto (risos).Assim que saí do campo de visão dela,comecei a pular no ar, de felicidade(mais risos). Eu não tinha coragemde pedir para ela fazer aquele papel,mas fiquei grato que ela se ofereceu.
CONTINENTE Se você pudesse escolherentre direção e atuação, por qual gostaria de serreconhecido? TOMMY LEE JONES Se eu posso
escolher, quero as duas coisas (risos).
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MÍDIA
Rede de Jornalistas Livres pretende a produção crítica,autônoma e apartidária
medium.com/jornalistas-livres
A Rede Jornalistas Livres surgiuem março deste ano com ointuito de construir uma mídiaindependente, crítica, inclusivae apartidária, que enfrenteaquilo que considera a ascensãoda narrativa antidemocráticae desrespeitosa dos direitoshumanos e sociais, observada,sobretudo, na imprensacorporativa. Atuando de formavoluntária, os repórteresproduzem longas reportagenspara a web, priorizando asnarrativas das lutas populares, amobilização pela democratizaçãoda mídia e pelo direito àinformação pluralizada.
ANDANÇAS VIRTUAIS
CINEMA
Produção hollywwodiana eindependente encontra nestesite um lugar de discussão
firstshowing.net
Portal em inglês sobre cinemadestinado a conectar a produçãohollywoodiana e independenteao público geral, o Firstshowing é atualizado de forma constantecom as últimas notícias, novostrailers , críticas e artigos, alémde acompanhar o hype e o buzz em torno das produções. O sitetambém possui uma seçãodestinada a divulgar os pôstersdos lançamentos, as novidadessobre curtas-metragens (umponto muito positivo da página),entrevistas em texto e vídeo,podcasts e um calendário comtodos os lançamentos do ano.
ConexãoCONTINENTE
Veja esses e outros links
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O melhor deste mês na revista Continente , no ambiente virtual
SAÚDE
Endereço aborda bem-estarfísico sem a pressão do corposarado, mas de forma leve
greatist.com
Ao contrário da maior parte dossites destinados a abordar temasrelacionados ao bem-estar, saúdee fitness , em que se interpretaa mensagem de que a felicidadetem de estar necessariamenteatrelada à ideia de um corpo sarado,o Greatist é um site leve, que temcomo objetivo ajudar o leitor apensar nesses assuntos de umaforma saudável e independente.O site publica artigos sobresaúde e planos de exercíciosfísicos que podem ser feitossem se sair de casa; possui umaárea destinada à nutrição (comreceitas de alimentos deliciosos esaudáveis), além de um extenso
material sobre comportamento.
ESTUDOS
Rede social de trabalhosacadêmicos permitecompartilhamento de papersacademia.edu
Ferramenta de colaboraçãodestinada a acadêmicos epesquisadores de todas as áreasde conhecimento, o Academia.edu foi criado em 2008 e tornou-seuma das maiores redes sociaisvoltadas para u niversitários.De acesso simples, no site vocêpode acompanhar o que ospesquisadores estão trabalhandoem suas áreas e obter papers disponibilizados por eles. O usuáriotambém pode criar um perfilpara compartilhar seu materiale definir áreas de interessepara receber notificaçõesde novos artigos publicadosem seu feed de notícias.
CARDÁPIOFaça uma receita especial
com insumos de baixo
preço, como o s chefs
entrevistados na no ssaseção de gastronomia.
VISUAISAssista ao vídeo da
performance Jet Lag ,
produzida e realizada em
conjunto pelos artistas Márcio
Almeida e Daniel Santiago.
GORDOFOBIANum aporte para que reflitamos sobre a
aversão social à obesidade, trazemos
no online, como acréscimo ao material
da nossa capa, três trabalhos voltadosao tema. A dissertação Engordurando o
mundo: O corpo de Fernanda Magalhães
e as poéticas da transgressão, do
entrevistado Vinicius Ribeiro sobre o
pioneirismo da fotógrafa e performer
paranaense (foto). Da gordinha à obesa.
Paradoxos de uma história das mulheres ,
texto da pesquisadora Denise Bernuzzi
de Sant’Anna, e o artigo O nascimento do
discurso patologizante da obesidade .
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blogsMODAthesartorialist.com
Referência para o que ch amamos
de street style , a moda das ruas,
construída e vivida com naturalidade,
o e Sartorialist foi pioneiro entre
os blogs de moda. Munido de uma
câmera digital, seu criador, Scott
Schuman, viaja o mundo fotografando
anônimos para publicá-los
diariamente no end ereço.
HQ dykestowatchoutfor.com/blog
Blog da quadrinista norte-americanaAlison Bechdel, autora das tiras
Dykes to watch out for e das graphic
novels clássicas Fun home e Você
é minha mãe? . Aqui, além de textos
livres, Bechdel escreve sobre
seu p rocesso criativo, comenta
e fotografa suas viagens pelo
mundo e fala de projetos futuros.
CRÍTICArevistapiaui.estadao.com.br/blogs/
questoes-cinematograficas
Blog do montador, diretor de
cinema e professor Eduardo Escorel,
hospedado desde 2009 na página
oficial da revista Piauí . Nele, Es corel
escreve de forma muito clara e
sucinta sobre os filmes a que assiste,
dando amplo e spaço para as novas
produções independentes, tanto
brasileiras quanto de outros países.
Pensar que, em pleno século 21, ainda há diversos exemplos de trabalho escravo aoredor do mundo pode parecer uma ideia absurda e chocante. Mas, sim, a escravidão
moderna existe e faz muitas vítimas. E a constatação mais aterradora é a de que você,
sem ao menos perceber, pode estar patrocinando esse crime. Roupas, alimentos,
equipamentos eletrônicos, produtos de beleza e higiene pessoal... tais produtos são
oferecidos sem nenhum esclarecimento sobre a cadeia produtiva que os originou:
que tipo de empresa os produziu, quantas pessoas estão envolvidas nessa produção,
e sob que condições de trabalho elas estão submetidas. Num mundo globalizado, em
que o que consumimos pode ser produzido nos lugares mais longínquos da Terra, teresse tipo de informação ainda é bastante complicado, mesmo para as pessoas que
desejam ter consciência do impacto social do seu estilo de vida. Para oferecer esse
tipo de esclarecimento, foi criado o aplicativo/pesquisa Slavery Footprint , desenvolvido
pela ONG internacional de combate ao trabalho escravo Made in a Free World. No ar
desde 2011, o site possibilita que o usuário preencha seus dados de acordo com seus
hábitos de consumo e vá descobrindo as conexões entre seus itens cotidianos de
compra e o trabalho escravo ao redor do mundo. O objetivo é mobilizar indivíduos e
empresas contra a prática ilegal e desumana. OLIVIA DE SOUZA
Longreads (leituras longas)sites sobre
LEITURA
longreads.com
Com uma equipe basicamente de mulheres, oVela Mag não se define como uma “publicaçãofeminina” e, sim, como um lugar de combate ao
domínio masculino nos meios literários.
Fundado em 2009, o Longreads englobaensaios e grandes reportagens de diversos
veículos em língua inglesa ao redor domundo, separando-os por tópicos.
Com design sofisticado, a seção de cinemado site Pitchfork oferece um amplo e
aprofundado conteúdo, com longos ensaios,resenhas, comentários, entrevistas e outros.
FILMES
thedissolve.com
FEMININO
velamag.com
ESCRAVOS TRABALHAM PARA VOCÊSite possibilita que o usuário saiba que, mediante compilação de seus hábitos,empresas nas quais consome atuam de maneira ilegal frente às leis trabalhistas
slaveryfootprint.org
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PortfólioDiego Di NiglioA GÊNESE DO FOTÓGRAFO NA ÁFRICATEXTO Adriana Dória Matos
A gente pode dizer que nasce (e morre) muitas vezes. Porque o nascimento (comoa morte) não está restrito ao corpo, mas estende-se ao que nos acontece no plano darealização, naquilo para o que somos feitos, nas transformações. Se partirmos dessaideia, podemos ter como um marco de nascimento do italiano Diego Di Niglio em2002, quando ele chegou pela primeira vez à África. Ele ia de Milão para uma região
paupérrima, Níger, cujo IDH é o mais baixo do mundo. Ia como membro do InstitutoCooperação Econômica Internacional, para monitoramento de projetos mantidos lá pelaONG, de capacitação e desenvolvimento ambiental, entre outros.
Nem “era fotógrafo” na época, levava uma câmera analógica automática e um rolode filme em preto e branco. As pessoas perguntavam, ele conta, como é que ele ia viajarlevando somente um filme em preto e branco. Ele nem tinha aquilo que chamamosde “cultura fotográfica” e, com aquele equipamento doméstico, queria mais era poderlevar de volta pra casa qualquer história para contar, usar a câmera como caderno deviagem e, sobretudo, como um meio de comunicação entre ele e as pessoas que iriaencontrar, de quem sabia tão pouco.
Aconteceu o que acontece aos viajantes: foi capturado pelos lugares e, maisainda, pelos africanos. “Luz brilhante, cheiros intensos, espaços infinitos, tradiçõesmilenares, solos secos, mãos que trabalham, viagens intermináveis; mas também
luta pela sobrevivência, fome, carestia, guerras e exploração. Enfim, humanidade.
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PortfólioProfunda humanidade. Lembrançasinesquecíveis para quem já foi lá.”Assim descreve ele brevemente aexperiência, na abertura de um livroque editou há pouco, Instantâneas deÁfrica, que também nomeia exposiçãoque atualmente percorre Pernambuco.
Sim, porque neste trabalho comocooperador internacional (suaformação é em Ciências Políticas e
Relações Internacionais), ele nãosó esteve em vários países da África– Moçambique, Chade, Camarões,Benin, Burkina Faso, Senegal e Gâmbia,entre eles – mas deslocou-se paraa América Latina, vindo de BuenosAires, onde morou por dois anos,para Olinda, onde vive desde 2011.
Nos caminhos da África, quepercorreu entre 2002 e 2007, Diego DiNiglio nasceu fotógrafo. Se compararmosa qualidade técnica do que ele temfotografado no Brasil, hoje, ao material
que está reunido neste livro, é evidente
o crescimento, o amadurecimento, oapuro. Ali, era o germe. “As fotografiasque fiz nas idas e vindas à África sãoas mais simples e sinceras que járealizei. São a expressão da emoção.Um autorretrato”, diz ele, contando oautoadestramento a que se submeteu –intuitivamente – nos anos africanos.
“Lá aprendi a lidar com o impulso defotografar. Às vezes, chegava num lugar,
via uma cena incrível e queria partirpara cima dela, o que me fez perdervárias situações, porque assustava aspessoas. Aprendi a lidar com a fotografiamais devagar, a me relacionar com acultura local. Isso foi se definindo nessasviagens. Hoje, meu comportamentoem relação ao tema fotografado écompletamente outro.”
A vida que Di Niglio presenciou eregistrou – àquele primeiro analógicoem preto e branco, ele viria a acrescentarfilme colorido, cromo e um pouco
de digital – é a de comunidades do
interior e do litoral que estão fora docircuito turístico, pequenos agricultores,comerciantes, camponeses, nômades,populações negras de diferentes etnias,hábitos culturais, religiões.
Já no Brasil, em 2011, ele teve a ideiade trabalhar no arquivo da África, oque fez em parceria com a esposa,a argentina Lia Miceli, que assinaa curadoria do livro. Enquanto isso
acontecia, dava-se a aproximação de DiNiglio com aspectos da cultura afro-brasileira, sobretudo religiosa, desdeque passou a frequentar e fotografar oMaracatu Leão Coroado, sendo que hojeconsidera o seu guardião, Mestre Afonso,um amigo. A África já existia dentro deDi Niglio antes de ele se saber fotógrafo,antes das andanças pela África, e talvezo Brasil já estivesse nele também, desdequando conheceu o negro daqui pelaobra de Jorge Amado. Os nascimentosquase sempre se prenunciam sem a
gente perceber.
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7 TRANÇADAS Mulheres seenfeitam em Lomé,Togo, 2003
8 PECUARISTAS Nômades deMassaguet,Chade, 2004
9 AGRICULTORES Homens exibemsuas riquezas, emMassaguet, noChade, 2004
10 BOBES Mulher de BurkinaFaso, 2003
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ARQUIVO
ESTRANHAS FIGURASDE DANIELSSON
Os desenhos do norte-americano BrendanDanielsson (1974) podem provocar no observadoruma inicial reação de repulsa. Isto não se deverá,apenas, ao contato visual com seres humanospolimorfos e deformados. Tampouco pela lascivaviolência que eles expressam. Mas, sobretudo,pela insistente vivacidade da representação dodesconforto de suas formas, paradoxalmentetraçadas de forma clássica e apurada, num caprichoquase obsessivo com o desenho. Numa entrevistaà revistaZupi , o artista definiu as suas figuras: “Oque realmente importa é tornar a peça interessante.Gosto de misturar um pouco de ‘Uau!’ com um poucode ‘Eca!’ – esse equilíbrio entre beleza e feiura para
mim não é nada chato”. (Adriana Dória Matos)
A ARTE E A NATAÇÃO
Em entrevista a Marcos Augusto Gonçalves,publicada na Folha de S.Paulo, um doscuradores da representação brasileirana atual Bienal de Veneza , Luiz CamilloOsorio, respondeu à pergunta: “A arte
é necessariamente elitista?”. Disse quenão, mas reconheceu que existe certa“opacidade” que não a torna acessívelnum primeiro momento. Para fechar seuraciocínio, recorreu ao escritor portuguêsLobo Antunes, dizendo que ele “faz umadistinção interessante entre literaturarelevante e l iteratura de entretenimento.Diz que, como as piscinas, tem literaturaque dá pé e outra que exige o esforço donado para nela ficarmos sem afundar. A artesempre exige alguma natação, não podedar pé. Em suma, se não é para todos, é paraqualquer um que se disponha a ter com elauma troca criativa”. (Mariana Oliveira)
NATAL COM TARANTINO
A tensão cortou o ar quando o diretor QuentinTarantino avisou que não mais filmaria seunovo trabalho, depois que parte do roteirovazou na internet. Ânimos apaziguados, o
diretor resolveu tirar onda da situação, fezleitura pública desse mesmo roteiro em abrildeste ano e anunciou agora que vai, sim,lançar o filme. E não apenas isso: ele viráembrulhado como presente de Natal. ehateful eight (ainda sem título em português)será lançado nos cinemas americanos emdezembro deste ano, trazendo os atoresSamuel L. Jackson, Jennifer Jason Leigh,Bruce Dern e Demian Bichir num road movie que se passa numa carruagem poucosanos após a Guerra Civil norte-americana.Envolve um caçador de recompensas, umafugitiva, um major e um soldado. E, claro,como já antecipa o estiloso cartaz acima, um
grande rastro de sangue. (Carol Almeida)
Neste ano, é lembrado o cinquentenário de lançamento de Duna. Assinaladocomo um dos pilares da ficção científica, o livro reuniu conceitos filosóficos,religiosos, psicológicos e até ecológicos numa trama política e futurista.Aficionado pela publicação, o cineasta chileno Alejandro Jodorowskyorganizou, no início dos anos 1970, uma força-tarefa para realizar a adaptaçãocinematográfica da história de Frank Herbert. Arregimentou um punhado derenomados artistas: Orson Welles, Mick Jagger, Salvador Dalí, Dan O’Bannione David Carradine. O Pink Floyd faria a trilha sonora; Moebius, o storyboard ;H.R. Giger e Chris Foss, a concepção visual de alguns personagens, navesespaciais e cenários. Mas nenhum estúdio quis levar adiante o projeto,considerado megalomaníaco. À época, ainda não existia o conceito deblockbuster , que surgiria depois com Tubarão (1975), Star wars (1977) e Alien (1979).Estes dois últimos, no entanto, pescaram algumas ideias do filme que nuncafoi realizado, segundo aponta o documentário Duna de Jodorowsky (2014), deFrank Pavich, realizado 30 anos depois do único Duna que chegou às telas,o de David Lynch, exibido no Brasil em 1985. A aventura é considerada, atéhoje, um erro na carreira do cineasta norte-americano. DÉBORA NASCIMENTO
50 anos de Duna
FOTOS: DIVULGAÇÃO
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Numa sociedade que cada
vez mais se afirma pelaintolerância, estar acima dopeso convencionado como“normal” cai sobre o indivíduocomo uma sentença TEXTO
Luciana Veras
GORDOSUBSTANTIA JONES PARA WWW.ADIPOSITI VITY.COM/DIVULGAÇÃO
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Páginas anteriores
1 THE ADIPOSITIVITY PROJECT
Com seu trabalho,a fotógrafaSubstantia Jonesatua contra alipofobia
Nestas páginas
2 TESS HOLLIDAYModelo norte-americana parouo trânsito de NovaYork ao posar parafotos em lingerie
3-4 FILMEFOBIA Em 2008, KikoGoifman realizoufilme em queaborda “medosdesproporcionais”
“Visto GG, você P
Você P, eu GG
Redondo, quadrado e reto
Cada um tem seu formato
Apertado, colado, justo
Largo, folgado, amplo, vasto
Cheio, graúdo, forte, farto
Esguio, fino, compacto.”
(Proporcional , Tulipa Ruiz)
Na primeira estrofe de uma das11 canções do álbum Dancê , a cantoraTulipa Ruiz narra um encontrohipotético que, sem dúvida, se revelacorriqueiro nas interações cotidianasdas metrópoles do Brasil e do mundo.Alguém de porte mais esguio conheceuma pessoa mais… que palavra seriamelhor aplicada aqui? Abram-sealas à sucessão de eufemismos:“forte”, “cheinha”, “redonda” e“grande”, até chegar a um adjetivoque, cada vez mais, assume tons de
xingamento ou até mesmo maldição:
“gorda”. Nos versos de Proporcional , acompositora paulistana oferece umaconclusão cuja obviedade – “cadaum tem seu formato” – em nadadiminui sua precisão. Sim, cadaum tem seu formato; em temposde culto exacerbado ao físico,entretanto, e da perpetuação denormas de representação do corpoque negligenciam justamente as
diferenças de cada espécime único daraça humana, estar acima do peso éuma sentença.
Uma sociedade lipofóbica, afinal,é esta da atualidade, a excluir osmais pesados ou submetê-los aconstrangimentos diários, dos quaisnem os mais afortunados fogem.A modelo norte-americana TessHoliday, 29, é uma delas. Descritaem reportagem publicada no eGuardian, no início de junho, como “aprimeira modelo tamanho 22” (na
escala de conversão, com relação a
vestidos e saias, o tamanho 22 nosEstados Unidos corresponderia ao50 brasileiro), ela parou o trânsito doBrooklyn, uma das mais populosasvizinhanças de Nova York, aotrajar lingerie para a sessão de fotosdo jornal britânico. “Nunca viramuma garota gorda em sua roupa debaixo, né? Pois então continuemdirigindo, idiotas”, gritava para os
motoristas que freavam seus carrosa fim de testemunhar a cena.
A visão de uma jovem mulherde biquíni em uma piscina ou napraia, de uma adolescente de jeans apertado e blusa colada no metrôou de um homem a se exercitar naesteira não deveria, em tese, sercapaz de provocar cataclismos,como convulsionar o tráfego ougerar reações de ódio e intolerâncianas plataformas de convivênciacibernética. Mas assim é a rotina
de quem vive atrelado aos rótulos
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Setenta quilos é olimite imposto aos
indivíduos, da lotaçãodo elevador aos
manequins de lojas dedepartamentosabdômen sarado. “O corpo de um paitalvez seja menos questionado do queo corpo de uma mãe, porque sobrea mulher incide uma pressão maior.Também aí vemos uma questão degênero: a mulher é educada paraagradar, estar apresentável, servirao homem, ser mãe impecável,saber se maquiar e não deixar opeso se consolidar no seu corpo.
Mas o corpo, independentemente degênero, é falível. É preciso aceitar astransições da vida, algo que pareceimpossível nos tempos de umasociedade publicitária e gordofóbica”,complementa Müller.
MEDO, REPULSAEm FilmeFobia (2008), o cineastamineiro Kiko Goifman subverte asconvenções cinematográficas, aoaniquilar as fronteiras entre ficção edocumentário para falar de “medos
desproporcionais” – os atores,
derivados da obesidade. “A sociedadeé feita para quem tem até 70 quilos,como vemos na cota de um elevador.Passou disso, já é preciso se adaptarde alguma forma para exercerseu papel dentro dos padrões do
dia a dia”, observa a antropólogacatarinense Elaine Müller, professorado Departamento de Antropologia eMuseologia da Universidade Federalde Pernambuco/UFPE.
Que padrões seriam esses? Ela citaa recente divulgação em veículos daimprensa norte-americana, comoGQ , New York Magazine e WashingtonPost , do ideal do dad bod (corruptelade dad body, ou “corpo de pai”, emtradução livre). A partir de um artigoescrito por uma universitária de 19
anos chamada Mackenzie Pearson,e publicado em 30 de abril de 2015,irrompeu a teoria de que as mulherespreferem os homens que exibema “barriga de chope”, no lugar do
CRIS BIEHEMBACH/DIVULGAÇÃO
CIA DE FOTO/DIVULGAÇÃO
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5 SIMONE MAZZER A intérprete temclara a trajetóriade preconceitosque sofre desdea infância
liderados pelo pesquisador, escritore intelectual Jean-Claude Bernardet,confrontavam-se com suas fobiasde botão, escuro, palhaços e sangue,para comprovar a teoria de que “aúnica imagem verdadeira é a do serhumano diante de sua fobia”. “Nofilme, trabalhei com a ideia do medoirracional, pois um fóbico que temecobras, por exemplo, tem medo dafoto, que não vai lhe atacar. A repulsaao gordo é mais preconceito do quemedo. Porém, o que me assusta é
a noção de que há uma fobia a umser humano, o que é muito maispesado do que ter fobia de rato oude botões, ainda mais dentro deum ideal de perfeição, que é velho.Não há sentido em pensar o corpocomo escultura”, pondera Goifman,um antropólogo de formação.
Ele também delibera sobre “abarriga do amor e da cerveja quea sociedade machista permiteao homem”. “Há uma questãode preconceito, de tentativa de
enquadrar em padrões e de reforçarestereótipos. Não somente pelamulher que, diante do machismo,tem que ser de um determinadojeito, mas porque é preciso que aspessoas sejam diferentes, gordas,magras, altas, baixas. Na perspectivade se querer e se exigir um serhumano ideal, o limite é sério. Todosnós sabemos a que isso nos levouno século passado: à eugenia donazismo”, contextualiza o diretor.
Indagado a respeito do
antissemitismo em uma entrevistade 1992, o escritor soviético JosephBrodsky (1940-1996), Nobel deLiteratura em 1987, ele mesmo umcidadão do mundo que se descreviacomo poeta russo, ensaísta inglêse cidadão americano, resumiu aojornalista e romancista italianoAlain Elkann: “É, acima de tudo, umpreconceito. As pessoas possuemmuitos preconceitos e são alimentadaspela insatisfação que sentem com suaspróprias realidades. Os problemas
concretos vêm à superfície quando
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alguém transforma o preconceitoem um sistema”. Ele aludia, claro,a um tipo de preconceito maisenraizado. No entanto, à luz do queocorre hoje, sua linha argumentativapoderia englobar as experiências
de quem padece sob a patrulhalipofóbica e sofre as consequênciasde um sistema em cujo seioqualquer obeso é um degenerado.
“Acredito que as pessoas tendema minimizar a natureza problemáticado sizeism”, situa a fotógrafa norte-americana Substantia Jones, criadorado e Adipositivity Project (http://adipositivity.com), em que registra aintimidade – com nudez, delicadezae sensualidade – de mulheresgordas. Sizeism é um termo em
inglês que equivale a racism e sexism;assim, poderia ser traduzido como“tamanhismo”. Junto ao racismoe ao machismo, forma a tríadeque sustenta condutas misóginas.Adipositivity, neologismo que alia aspalavras adipose e positivity (adiposo epositividade, respectivamente), surgepara combater tamanha hostilidade.
Jones crê que o “tamanhismo” ésubestimado, porém opta por não se“engajar em competições políticasde hierarquização das opressões”.
“Prefiro me certificar de que aspessoas com quem falo entendamque está tudo embaixo do guarda-chuva da intolerância. Nossa culturademanda que as pessoas gordas sejamaceitas apenas se elas estiveremsempre se desculpando ou tentando,arduamente, alterar seus corpos.Quando, em vez disso, nós nosposicionamos a favor de nós próprios,lutamos pelos outros, nos vestimosde modos que muitos considerariamnão aconselháveis e ousamos amar
e respeitar nossos corpos, as pessoasnormalmente se sentem com razãopara nos ridicularizar e nos xingar”,pontua em entrevista à Continente.
O que ela prega é a educação.“Até mesmo algo tão simples comodefinir o que é intolerância, paraessas pessoas, pode levá-las nadireção de um pensamento maisclaro e evoluído e, também, nocaminho de mais amor pelo corpodo outro”, ratifica Substantia Jones.A chave está tanto na luta por um
olhar mais generoso de fora como
TORNAR LEVEA intérprete paranaense SimoneMazzer narra um pouco à Continente sobre como tem lidado com essasquestões. “Sou uma pessoa grande,de 1,73 m, pesada e grandona. Assustomesmo. Quem não me conhece, seme vir entrar num ônibus, vai pensar‘ai, meu Deus, e se vier sentar ao meulado?’ Desde criança, passei por várias
fases. Quando eu era menor, foi tabupara mim. Era uma coisa de famílianão comentar a respeito, tratar comoum problema. A vida foi me ensinandoa deixar tudo mais leve, no sentidoliteral da palavra. É claro que sinto,sim, o conflito social da gordura, dapessoa gorda ser vista como relaxadae preguiçosa, ou tudo isso e aindadoente, como se não houvesse nadapositivo aliado aos obesos. Tive queaprender a lidar com isso e, hoje, naminha profissão, consigo driblar”, diz
a atriz e cantora.
Na nossa cultura,o gordo parece
sempre necessitar sedesculpar pelo que
é, e mesmo buscaralterar seu corpo
A metáfora do drible futebolísticoabrange, não por acaso, a gingapara transcender de problemastriviais a momentos de ódio. É difícilpara ela encontrar roupas em lojasconvencionais. “Sofro bastante.
Não acho fácil e parto para meulado criativo, tentando me associara pessoas na área da moda quepossam criar meus looks . Assim,com amigos e parceiros estilistase costureiras, vou inventando umfigurino que se encaixe em mim. Emloja de departamento, é impossível.A seção extra-grande não cabe, oque antes era plus size , agora é quasePP”, comenta. A liberdade de ir àpraia, algo que ela sempre prezou,em especial ao longo dessas duas
décadas morando no Rio de Janeiro,é combustível para que reafirme umapostura de segurança e amor-próprio.“Nunca me incomodei com as pessoasme olhando. Se elas se incomodamcomigo, gosto de pensar que estamosno lugar mais democrático do mundo,aonde todo mundo pode ir”, coloca.
Foi na praia, contudo, que SimoneMazzer e o marido se viram reféns deuma manifestação de perversidade.“Ao passarmos o réveillon no litoral,ouvi xingamentos horrorosos e
extremamente grosseiros de umaturma de adolescentes. Eram frasesmuito violentas, vindas de pessoasjovens com uma mentalidade tacanhae preconceituosa. Estamos em 2015,como pode isso ainda acontecer?Vivemos um problema triste sobreum tema que não é tratado como sedeveria. Homofobia, violência contraas mulheres, racismo, tudo entra empauta, o que é bom, mas a verdadeé que o mundo não está fácil paraninguém”, lamenta Mazzer.
EXIBIÇÃO COIBIDAConfrontado com os excessos de umcorpo gordo, o cidadão preconceituosovê desestabilizada sua noção denormalidade – construída a partir damídia, da televisão, do cinema – eassim resolve agir de modo a coibiressa exposição. “Na sociedade emque vivemos, o corpo deve refletir oautocontrole e o equilíbrio do sujeito.O corpo obeso vem como se fosseuma ameaça à proporcionalidade
que a cultura exige. Tudo que foge
no mergulho em si mesmo – o queimplica atenção irrestrita ao que sefala corriqueiramente. “Precisamosficar cientes das agressões no nossolinguajar. A palavra ‘gordo’ é umadescrição moralmente neutra, e
não implicitamente pejorativa.Encorajo as pessoas a usá-la quandopossível. ‘Sobrepeso’, contudo, éuma palavra de julgamento a sugerirque existe uma norma tácita quenão deve ser excedida. E ‘obeso’patologiza um estágio naturalmentepassível de ocorrer na escala deuma variação benigna de tamanhohumano. Muitas pessoas bem-intencionadas cometem esseserros, mas isso gera consequências.É fundamental reconhecer a
importância da visibilidade paraaqueles que precisam criar opróprio caminho de se visibilizar”,afirma a fotógrafa (leia entrevistacom ela nas páginas 30 e 31).
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Seu enfoque sociológico, decorridodo mestrado e doutorado obtidosem Ciências Sociais na UFPE, comestudos sobre cirurgias cosméticasmalogradas, investiga as origensdessa repulsão. “Há uma divergênciaentre os próprios historiadoressobre a patologização da obesidade,
um atributo físico que sempre teve
corpo obeso, das formas mais sutisaté as mais ostensivas. Isso tem a vercom essa aversão ao excesso do corpo.Acontece que, como seres humanos,somos faltantes, incompletos,nunca perfeitos”, elabora RobertaMélo, professora de Educação Físicada Universidade do Vale do São
Francisco/Univasf, em Petrolina.
aos padrões ameaça a ideia deautocontrole. Essa pouca recepçãoao corpo obeso, desde as formas deacessibilidade básica às capas derevista e à mídia, tem a ver com ummodelo de saúde. As pessoas gordasrompem com esse ideário vendido nacontemporaneidade. Assim, vemos
a institucionalização da opressão ao
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diversas interpretações culturaise históricas. No Renascimento, asmusas eram corpulentas; ser gordaera atributo de feminilidade. Erauma qualidade também atribuídaaos líderes religiosos e espirituais, aexemplo de Buda. Já em meados oséculo 17, a obesidade começa a ser
vista como algo negativo, como a
nessa cultura absurda de repugnânciaao corpo gordo. É como se o mundonão fosse feito para você, para pessoasmaiores, como se o corpo gordo fossedoente e a culpa fosse sua porqueseu corpo não atinge essa perfeição”,
legitima a artista.Em 1995, com a pesquisa A
representação da mulher gorda nua na
fotografia, ela recebeu o 7º Prêmio MarcFerrez de Fotografia do Ministérioda Cultura/Funarte, o que resultouna aquisição de 20 trabalhos seuspela Maison Européenne de laPhotographie, na França. Desde então,abraçou a temática que se desdobraagora em outras séries. FernandaMagalhães compreende que seutrabalho é “para a vida inteira”. “É
uma política que se expandiu parapensar o corpo da mulher junto aquestões de diversidade queer , degênero, do corpo abjeto. Quandocomecei, ninguém falava muito sobre
desarmonia do corpo. O corpo obeso,
visto com escárnio na atualidade,ameaça a beleza de uma construçãoética, moral e religiosa. A ideia defelicidade é o último estado emocionalque se associa ao corpo obeso”,exemplifica Mélo.
NUDEZ PERFORMÁTICANa contramão das expectativas, e acumprir o papel revolucionário daarte, desponta uma ideia de felicidadenítida e corajosa na série A naturezada vida, fotografias de performances
empreendidas ao longo dos últimos 15anos pela artista paranaense FernandaMagalhães. “A ação é simples: ir aum lugar público e posar para fotose vídeos nua, sem pedir autorização.Chego com um fotógrafo, defino tudona hora e a ideia é nunca ser presa,então passo no máximo cinco minutossem roupa. Além da ocupação doespaço, há a surpresa natural, porquenão é uma mulher gostosona fazendoaquela foto. Se fosse, seria umapropaganda. Como se trata de uma
mulher gorda, as fotos e vídeos geramum estranhamento, que aumentaporque faço a provocação de pensá-lasquase como se fossem um editorial demoda”, conta. Da primeira imagem,registrada no Central Park, em NovaYork, aos instantâneos feitos emLondrina, sua cidade natal, Fernandase despiu nos Jardins de Luxemburgo,em Paris, no Mar Negro, na Rússia, emMontevidéu, no Uruguai, e ainda emVitória, Fortaleza e Campinas.
Para ela, as fotografias, o uso do
corpo e sua própria constituição físicasão “absolutamente políticos”. “MichelFoucault é uma referência importantepara mim, porque fala de como aperfeição utópica com relação ao queseria essa imagem de um corpo perfeitotrata-se de uma forma de controle.Tentando atender a essa demanda,as pessoas vão ser manipuláveis.Ao mesmo tempo, A natureza da vida,com suas imagens simples e nadarebuscadas, é política, porque nelatenho a liberdade de mostrar meu
corpo como ele é. Há questões políticas
Tudo que foge aospadrões ameaça a
ideia de autocontrole.O corpo obeso é um
índice de desvio e, porisso, causa aversão
6 PERFORMANCE A artista Fernanda Magalhãesrealiza ações em que é fotografadanua em ambientes públicos
isso, quanto mais se colocar comocorpo e se expor ao público”, recorda.
Em As consciousness is harnessed to the flesh, segundo volume dos seus diários,ainda inédito no Brasil, a escritora,ensaísta e fundamental pensadorada cultura contemporânea SusanSontag (1933-2004) esboça, numaanotação de 1975: “Não é o que vocêfaz, é o que você é ”. Em O filho de mil
homens , datado de 2011, o escritor lusoValter Hugo Mãe resume: “Ser o quese pode é a felicidade”. Como brevesaforismos, tais frases iluminam odebate sobre lipofobia. O que fazemmilhões de pessoas julgadas como“gordinhas”, “cheinhas”, “redondas”,“grandes”, “baleias” e “obesas”e escanteadas pela imposição deuma armadura comportamental?Tentam ser felizes e respeitadas, como que são e podem ser, nunca como que delas esperam estanques e
anacrônicos códigos de aparência.
ELIZA PRATA VIEIRA/DIVULGAÇÃO
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Entrevista
SUBSTANTIA JONES“SUBVERTER A
FOTOGRAFIA ÉEFICAZ PARA CRIAR
VISIBILIDADE PARA
AS PESSOAS GORDAS”
Substantia Jones é uma fotógrafanorte-americana que fez da internetseu campo de batalha contra agordofobia. Criadora do e AdipositivityProject e dos sites SmileSizeist.com e UppityFatty.com, por meio dos
quais difunde a luta por aceitação,ela considera “imensuráveis” osbenefícios da rede mundial deinformações, porém acredita que“arte, nudez e humor são as melhoresplataformas para se combater aintolerância”, como sintetizou ementrevista por email à Continente.
CONTINENTE Como e por que vocêinventou e Adipositivity Project?O que a levou a pensar na arte como uma
ferramenta para combater a gordofobia?
SUBSTANTIA JONES A ideia veio daobservação de que as pessoas tendema prestar mais atenção e de maneiramais favorável àquilo que elas achamesteticamente agradável. Eu tambémhavia percebido que as nossasdefinições pessoais do que nos agradaesteticamente podem ser mudadascom a repetição de uma exposiçãopositiva. Depois me ocorreu que eupoderia aplicar essa teoria às políticasdo corpo. Desde então, aprendi quesubverter a fotografia, a mesma
ferramenta mais comumente utilizadapara incitar a gordofobia, é eficaz nãosomente para contra-atacar, mastambém para criar visibilidade paraas pessoas gordas. Para as populaçõesmarginalizadas, visibilidade é vital.Sou uma mulher gorda. A missão, emprincípio, era pessoal. Mas, quantomais eu me aprofundei, maior acarência que encontrei. Hoje, quandorememoro meus pensamentos eobjetivos ao lançar o projeto oito anosatrás, eu os vejo como ingenuamente
grandiosos e como uma subestimação
do seu impacto possível. Arte, nudeze humor são, na minha opinião,
as melhores plataformas para secombater a intolerância. Eu consideroe Adipositivity Project parte gordura,parte feminismo e parte “foda-se”.
CONTINENTE As fotografias do eAdipositivity Project mostram mulheresque parecem destemidas, ousadas,
íntegras. Você poderia nos contar um
pouco de como chega até elas? Quais são
as primeiras reações ou pensamentos
mais comuns que demonstram?
SUBSTANTIA JONES A maioria das
adiposers me procura, pedindo paraposar para o projeto. Em seguida,eu logo me certifico de que elascompreendem que a internet éeterna. Depois, elas são instadas a leruma lista de notas preparatórias paraa sessão de fotos, e aí decidem quaissão seus limites com relação à nudeze a marcadores de identificação.Quando nós nos encontramos,algumas estão excitadíssimas,outras estão bem preocupadas. Amaioria está em algum lugar entre
esses dois estados. Gosto de pensar
que faço um minucioso trabalhode explicar todo o processo – isso
inclui lhes dizer o que esperar tantodurante como depois da sessãode fotos, que geralmente acarretaalgum tipo de ridicularizaçãopública. Eu quero que elas chegueminformadas e preparadas paratodos os resultados. Algumas sãomais lentas para se abrir, mas,normalmente, quando chega o final,já estamos compartilhando risadas.Quando suas primeiras imagens sãopostadas no site, frequentementeelas estão nervosas e ansiosas.
Muitas me dizem, depois, queaquilo mudou o direcionamentode sua aceitação sobre o própriocorpo. Isso me deixa feliz.
CONTINENTE E como se relaciona comas histórias que cada uma delas lhe conta
nessa interação? De alguma forma, você as
traz para aquela fotografia?
SUBSTANTIA JONES Às vezes,a pedido, eu incorporo nas fotosalgumas representações tangíveisdos julgamentos que a adiposer teve
que superar até chegar nesse lugar
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SOCIEDADE SUBSTANTIA JONES PARA WWW.ADIPOSITIVITY.COM/DIVULGAÇÃO
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“Arte, nudez e
humor são, na minhaopinião, as melhoresplataformas para
se combater aintolerância”
de paz (ou ao menos próximo disso).Uma frigideira de aço que pôs fim a
anos de abuso doméstico. A bolsa querepresentava um objeto inatingívelpara uma mãe que morreu devido acomplicações de cirurgia para perdade peso. Um colar que outrora forausado como prêmio por um pai queenvergonhava sua filha mandando-aperder peso, mas que se recusou a daro colar, e aparentemente seu amortambém, até que fosse tarde demaispara ambos. As histórias das adiposersme dão gás, assim como os milharesde relatos que já ouvi de gente que
me escreve, mas que não tem comoir a Nova York para uma sessão defotos. Sou muito grata a todas elas.
CONTINENTE Existiram ou existemartistas que você considera ícones ou
referências para esse trabalho? Algum
fotógrafo a lhe inspirar?
SUBSTANTIA JONES A fotógrafanorte-americana Sally Mann é umadas duas únicas pessoas para quemjá escrevi uma carta de fã (nostempos pré-Twitter ). Sua arte cheia
de alma e o uso da luz natural me
influenciaram demais. Também devomuito a artistas que foram meuscuradores nos museus, galerias eexposições de arte, que lançarammeu trabalho ao público lá atrás,
nos anos 1980 e 1990, entre os quaisFaith Ringgold, a quem tive o prazerde agradecer pessoalmente. Não seise algum deles já fotografou a nudezde pessoas gordas, mas décadasatrás achei um livro de fotografiasde Laurie Toby Edison. Além dasimagens ocasionais e repletas detexturas de Charles Gatewood, IrvingPenn e um punhado de outros, Womenen Large , de Edison, era o único dogênero que eu havia visto, e assimcontinuou até quando eu levei o
e Adipositivity Project para a internet
em junho de 2007. Patricia Schwarzestava fotografando nus gordosantes de eu começar, mas só vi seutrabalho alguns anos atrás. Seis mesesapós meu website estrear, LeonardNimoy lançou e Full Body Project ,
uma compilação de suas fotografiasde mulheres gordas, também nuasou em quase nudez. Foi de grandeajuda para silenciar meus detratores,pelo menos por enquanto. Todosesses artistas me influenciarame formaram não somente a mim,mas a grupos de fotógrafos compensamentos similares, que, desdeentão, criaram reluzentes faróis deaceitação do corpo na internet e emoutros lugares. A eles, muita gratidão.
CONTINENTE Vivemos em um mundoque praticamente esfrega na nossa face:
“não seja gordo, seja esguio, seja esbelto,
vá correr, alimente-se com comida diet,
faça exercícios”. A gordofobia estárealmente ao nosso redor? Como você
analisa essa inserção na sociedade atual?
SUBSTANTIA JONES A gordofobia está,de fato, ao nosso redor. Muito dela égrande e aberto (ameaças violentas,ridicularização pública, discriminaçãoinstitucional legalizada), mas hámuito escondido em formas mais sutis
de sizeism (“tamanhismo”, em umatradução livre): pequenas agressões,preconceito interno e nomenclaturasdepreciativas. Acredito que muitodo sizeism vem de uma combinaçãobizarra de medo e ignorância,impulsionada pela desinformaçãodisseminada pela indústria da perdade peso, que vale muitos bilhõesde dólares. Muito dinheiro é gastopara tentar nos convencer de queas pessoas gordas são custosas parafamílias inocentes e não merecedoras
de direitos iguais. Muitas pessoasfalham ao tentar exercitar umpensamento crítico ao consumirqualquer tipo de informação, e, assim,simplesmente acreditam em qualquercoisa que vejam impressas num jornalou revista. Aqueles de nós que lutamcontra a propaganda e o preconceitonão possuem o megaorçamento que aindústria diet tem. Aliás, muitos de nósnão têm nenhum tipo de orçamento.Às vezes, parece David versus Golias,mas, pelo menos, estamos fazendo
a diferença. LUCIANA VERAS
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ARTEAs representações
ideológicas do corpoAs concepções de beleza não apenas mudam como tempo e as convenções sociais, mas tambémencontram variáveis em relação aos gêneros
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REPRODUÇÃO
“Representar a Beleza de um corposignifica, para o pintor, responder aexigências de natureza tanto teórica – oque é a Beleza? Em que condições éconhecível? –, quanto prática – que
cânones, gostos e costumes sociaispermitem considerar ‘belo’ um corpo?Como muda a imagem da Beleza notempo, e como em relação ao homem eà mulher?”, indaga o filósofo, escritor eteórico italiano Umberto Eco em Históriada beleza, publicação organizada porele e lançada no Brasil em 2004 pelaeditora Record. A representação daformosura corporal, analisada por Econesse rico e ilustrado volume, assumeoutros contornos diante dos paradigmasadvindos da arte contemporânea e
no contexto de uma sociedade com
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foi a funcionária pública Sue Tilley,à época com 140 quilos, apelidadapelo próprio artista de “Sue Gorda”.
Sue ganhou 20 libras por dia paraservir de modelo a quatro pinturas.Lucian, ainda enquanto vivia, já era
saudado como um dos mais exímiosartesãos da forma humana. Atentoàs “exigências de natureza teórica eprática” a que se refere Umberto Eco,propôs o resgate da beleza supremade um corpo acima do peso, fora dosarquétipos, abaixo de critérios sociaisde estetização que a arte, sinal e espelhodos tempos, também incorpora. “A artese relaciona com os padrões e as normassociais vigentes. Costumo recorrer aum texto de Paul B. Preciado que afirmaque o corpo é um texto socialmente
escrito, um arquivo orgânico, reescrito ereelaborado a cada momento, inclusivena sua relação com o tempo histórico”,argumenta o professor da Escola deBelas Artes da Universidade Federal doRio de Janeiro Vinicius Ribeiro.
Uma linha do tempo do retratodo corpo gordo, portanto, faria umpercurso no qual arte e história estariamindissociáveis. “Na Idade Média, quandohavia escassez de alimentos e muitasdoenças, um corpo volumoso denotavasaúde e prosperidade financeira.
As mulheres mais corpulentas doRenascentismo exprimiam o desejo deum ideal de beleza da época”, destacaRibeiro. Ele atenta, porém, para umaspecto essencial: estes mesmos corposfemininos, cujos moldes se alargavamou diminuíam com o passar do tempo,simbolizavam a perspectiva do que oshomens almejavam ver da e na fêmea.
“Ao longo dos séculos, a quantidadede homens que produzem um olharsobre o corpo feminino é infinitivamentemaior do que o contrário. A nudez, os
detalhes, o excesso de peso – tudo issoveio com a criação de imaginários docorpo feminino e, como tal, relaciona-se com as sociedades, com os valores,com o que era permitido ou não”,ressalta o professor Vinicios Ribeiro, quepesquisou a obra da artista FernandaMagalhães no mestrado em CulturaVisual na Universidade Federal de Goiás.“Na arte brasileira e internacional dosanos 1950 e 1960, o corpo veio comoforma de protesto e matéria de criação,mas demorou para surgirem essas
experiências que questionavam os
padrões estéticos e os volumes corporais.Fernanda foi uma pioneira”, delimita.
Fazendo jus, portanto, ao seucaráter precursor, a fotógrafa e performerparanaense insiste na importância dofeminismo na contenda contemporânea
que mistura lipofobia e machismo. “Agordofobia é uma das discussões dofeminismo, já que tem a ver com asquestões de aparência e da objetificaçãodo corpo. Não rechaço quando alguémme diz que faço uma ‘arte feminista’.Michel Foucault, Gilles Deleuze,Judith Butler e Margareth Rago sãoreferências importantes dos estudosfeministas que trago para meu trabalho.O fato é que, na arte e na vida, há umaoutra leitura do corpo do homem etambém desse corpo masculino obeso.
Questões de poder fazem com que elesrecebam olhares diferentes daquelesdestinados ao corpo de mulheres”,comenta Fernanda Magalhães, quetambém é professora de Artes Visuaisda Universidade Estadual de Londrina.
“O homem mantém a mão livrepara empunhar a espada, a mulherprecisa usar a sua a fim de evitar queo vestido de cetim escorregue dos
ombros. O homem olha para o mundode frente, como se ele tivesse sido feitopara servi-lo e criado a seu gosto. Amulher o observa de soslaio, com umolhar prenhe de sutileza, até mesmo
de suspeição”, conceitua o narrador deOrlando , escrito em 1928 pela inglesaVirginia Woolf (1882-1941), cujoprotagonista é um nobre britânicoque se metamorfoseia em mulher eexperimenta, na pele, a desigualdadede gênero. Séculos antes, o filósofoEdmund Burke (1729-1797), citadopor Umberto Eco em História da beleza,defendia: “… a perfeição considerada emsi mesma está tão longe de ser causa daBeleza, pois justamente onde a Belezase encontra em grau mais alto, isto é, no
sexo feminino, carrega quase sempre
tendências a desprezar quem não cabenos seus desejos de perfeição.
Tome-se como exemplo dois dosmais famosos quadros de Lucian Freud(1922-2011), pintor alemão naturalizado
britânico que se tornou um dosprincipais expoentes do Figurativismono século 20. Benefits supervisor resting,datada de 1994, foi vendida em maiodeste ano em um leilão de arte do pós-guerra na Christie’s, em Manhattan.O preço: 35,8 milhões de libras, oequivalente a R$ 173,8 milhões. Benefitssupervisor sleeping, da mesma série (na fotoacima), foi adquirida pelo magnata russoRoman Abramovich por 17,25 milhõesde libras em 2008, o que hoje daria R$83,75 milhões. Nas duas pinturas, quem
posou para o neto de Sigmund Freud
Os corpos femininos,
cujas representaçõesdiminuíam ou sealargavam, refletiam,sobretudo, o olhar dooutro, do masculino
1 LUCIAN FREUD Pintor, conhecido pelosinquietantes retratos,realizou série tendocomo modelo umamulher de 140 quilos
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inquire a professora Elaine Müller,do Departamento de Antropologia eMuseologia da UFPE.
“Nenhuma”, responde o jornalistae crítico de cinema e TV iago
Stivaletti, paulistano que se define como“noveleiro assumido” e escreve umacoluna semanal na web sobre folhetins.“A primeira gorda de destaque foi DonaRedonda, de Saramandaia, que era aquelarepresentação cômica e pejorativa,inclusive chegando a explodir”, lembraStivaletti, referindo-se à personagemvivida por Wilza Carla (1935-2011),na trama de Dias Gomes (1922-1999),exibida pela Rede Globo em 1976, epor Vera Holtz, no remake de 2013. “Alipofobia se sente na televisão, porque a
cultura publicitária mostra os corpos
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Black interpreta diversos personagens do“gordinho legal-divertido-espirituoso”que nunca é galã. “A culpa é sempre dogordo. Ele tem que ser engraçadinho,bem-humorado, sempre colocado empapéis estereotipados, nunca comoprotagonista. Qual novela recente,por exemplo, teve uma pessoa gorda
como personagem principal?”,
consigo uma ideia de fragilidade e deimperfeição”. De ambos os exemplosliterários, sobressai a certeza de quea representação do feminino, comseus corpos flutuantes, deriva de uma
percepção externa.
NA TVNas searas da televisão e do cinema,tal constatação não é difícil. No filmeO amor é cego (EUA, 2001), dos irmãosFarrelly, o personagem de Jack Blackse apaixona pela moça interpretadapor Gwyneth Paltrow sem atinarque, na verdade, ela tem 150 quilos,embora apareça com o manequim 38.A mensagem do tipo “a beleza interioré a verdadeira” triunfa, mas também
sucumbe, quando se pensa que o próprio
Na teledramaturgia,personagens de
corpo farto jamais
são protagonistas.Também são, namaioria, cômicas
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SAÚDEO QUE DIZ A OMS
O músico e produtor fonográfico
pernambucano Bernardo Vieiramora num edifício cujo elevador é“pequeno e velho”, nas suas palavras.“Quando tem muita gente para subir,eu mesmo tiro onda e digo: não vou,pois se acontecer alguma coisa, oproblema vai ser do gordo, foi o gordoque fez a superlotação. Sempre fui ogordinho desde a adolescência, entãoestou acostumado. Nunca fui e nemestou preocupado com que as outraspessoas vão achar de mim”, conta,com bom humor.
Segundo a Organização Mundialde Saúde/OMS, uma pessoa é obesaquando seu índice de massa corporal(IMC) ultrapassa o coeficiente de 30kg por metro quadrado. “Esse índiceé calculado pela divisão do pesopelo quadrado da altura. Obesidadeleve é quando o IMC é até 35 kg/m². A moderada, até 40 kg/m². E aobesidade mórbida acontece quandoesse índice está acima de 40 kg/m².No entanto, essa definição recebemuitas críticas, pois, quando a
pessoa sobe na balança, não pesa sóa gordura: há musculatura, sangue,ossos e conteúdo intestinal. Mas éfato que, quanto maior a obesidade,maior a chance da pessoa terproblemas metabólicos, o principaldeles sendo a hipertensão arterial, ede desenvolver diabetes”, explanaa endocrinologista recifense TelmaFerreira, membro da SociedadePernambucana de Endocrinologia,da Sociedade Brasileira de Diabetes eprofessora aposentada da UFPE.
As consequências físicas doexcesso de peso abrangem deproblemas nas articulações aprocessos inflamatórios. Nãojustificam, contudo, o preconceito e aagressividade. “O obeso sofre muitona sociedade ao ser frequentementetachado de sem caráter, relaxadoe preguiçoso por não conseguiremagrecer. Não é assim, há questõesgenéticas também. E a sociedadeocidental tem o culto ao corpo demagreza extrema, o que leva o oposto
a ser rejeitado”, corrobora a médica.Na escala da OMS, a “magrezaextrema” se caracteriza pelo IMCabaixo de 19 kg/m².
Para atingir o padrão estético de
modelos, as pessoas se inclinama consumir alimentos tidos comosaudáveis pela indústria. “Recebomuitos pacientes com sobrepesoque acham que estão comendo certopor ingerir alimentação diet , light e àbase de produtos industrializados,e que depois percebem que nãoperdem peso. Se a pessoa quercomer uma barra de cereal decastanha, por que não comer umaporção de castanhas? Quantomais natural, melhor. Alimentos
processados inflam o organismo e ometabolismo não funciona direito.O que vale não são as calorias, masos nutrientes”, alerta a nutricionistaLuciana Miranda, formada emNutrição e em Educação Física pelaUninassau, com especializaçãoem Nutrição Esportiva.
A saída para evitar doenças ea contínua rejeição aos gordos éinvestir em educação. “A obesidadeé uma questão de saúde pública,um problema mundial, com índices
altos de obesidade e diabetes emcrianças, em especial em países emdesenvolvimento, como o Brasil eo México. Isso se credita ao acessoeconômico das classes ascendentes,que agora podem comprar maiscomida e têm preferência pelaindustrializada. Cabe ao Estado agir”,reflete Telma Ferreira.
Na visão do músico e produtorBernardo Vieira, “a epidemia deobesidade” é a prova do sedentarismomundial: “Não se faz mais nada a pé,
todo mundo só faz dirigir”. Ele desejaperder um pouco de peso não paraingressar em estatísticas, adentrarum outro patamar de beleza ou virarativista. “Atualmente, meu peso nãoatrapalha nada na minha vida. Minhaintenção de emagrecer não temnada a ver com estética. Como bem,faço academia, sou acompanhadopor um personal há três anos. O quequero é ter saúde e estar bem paraacompanhar o crescimento do meufilho”, alinhava. LV
2 RENOIR Durante 40 anos(a partir dos anos1870), pintorrealizou sériecom mulheressaídas do banho
4 ORLANDO Personagem deVirginia Woolfexperimenta oduplo gênero
maravilhosos dos seriados norte-americanos, a moda fitness , e adotamos,nas novelas e na vida, o padrão Miami/Califórnia”, explora o crítico.
Ele menciona duas tentativasrecentes de ir além: “Sílvio de Abreuteve iniciativa na novela As filhas damãe , de 2001, em que Claudia Jimenez,a ‘gordinha oficial’ da Globo, tinha
um romance com o personagem deReynaldo Gianecchini. Isso poderiaser visto como um conto de fadas, masa novela não foi bem de audiência ea discussão não avançou. Em AvenidaBrasil , João Emanuel Carneiro apresentouÁgata, a filha gorda de Carminha,personagem de Adriana Esteves, queera copiado da série americana Desperatehousewives , mas trazia um debatesaudável: as pessoas que querem a vidaperfeita têm que lidar com uma filha forado padrão de beleza”.
Para iago Stivaletti, a novela,como de resto o Brasil, “atende a umanseio machista” – e por isso nela malse enxergam os corpos masculinosdesproporcionais à configuraçãoestética reinante. “É simbólico verque o grande ‘gordo’ do cinema e daTV hoje é Leandro Hassum, o rei dacomédia, que é onde aparece a figurado gordo inteligente e bem-humorado.Os programas de televisão são umarepresentação da sociedade, ao levaro espectador a rir do gordo”, reflete,
tecendo uma crítica ao que considera“burrice de não escapar aos clichês”.“Nos Estados Unidos, grávidas etransgêneros posam para belos ensaiosde capa da revista. Aqui, o padrão damaior emissora de televisão cai parasatisfazer a publicidade. Só há atores‘sarados’. Duvido que Roque Santeiro fosse feita hoje com aquele elencodos anos 1980, com atores versáteis ecarismáticos, como Paulo Gracindo eAry Fontoura, que não eram conhecidospela beleza”, compara o jornalista e
crítico. LUCIANA VERAS
3 INGRES Em Banho
turco, de 1863,a estéticaneoclassicistados corposfemininos
5 JACK BLACK
Ator é o estereótipodo “gordinholegal-divertido-espirituoso”
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COMPORTAMENTO
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GUILHERME MALAQUIAS PARA DRESSCORAÇÃO/DIVULGAÇÃO
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TURBANTE
O adorno quenos faz a cabeçaAcessório utilizado por alguns povos como tradição socioculturalfoi assimilado pela moda na primeira metade do século 20 e agoravolta a frequentar as ruas, enfeitando gentes de todas as cores
TEXTO Marina Suassuna
Em 2011, a figurinista do seriadoamericano Sex and the city, PatriciaField, alertava: “Os turbantes são fortescandidatos ao posto de acessório-desejo nos próximos meses”. Issoporque, no longa Sexy and the city 2 , apersonagem Carrie, interpretada pela
atriz Sarah Jessica Parker, adotava-o em seu figurino. No mesmo ano, oslenços amarrados na cabeça ganharamvisibilidade em diversos desfiles demoda no Brasil. Num deles, durantea Fashion Rio , a consultora de modaGlória Kalil declarou: “Turbante é umamaneira fashion de disfarçar o bad hairday”. Não demorou para que diversosblogs e portais de moda anunciassema volta dele, que ganhou as ruas e acabeça de várias celebridades.
No entanto, há quem questione a
visibilidade que o mercado da modavem dando ao adorno nos últimoscinco anos. “Turbantes fazem parte danossa história há mais de 500 anos,e agora isso vem sendo tratado comouma grande novidade, o que nós,participantes ativos desse processo,sabemos que não é”, pondera a estilistabaiana Loo Nascimento, idealizadorado Dresscoração, projeto de referênciasde comportamento e estilo inspirado narelação entre Brasil e África.
As primeiras citações ao uso de
turbantes como item de moda pelas
Porém, mais do que um pedaçode pano amarrado nos cabelos, comfinalidade estética, o turbante podesimbolizar a sobrevivência de umaidentidade e conservar detalhesfundamentais de uma cultura. Nosanos 1960, foi incorporado pelo
movimento do orgulho negro, nosEUA, como sinônimo de afirmaçãodaquela raça. Cantoras como NinaSimone e Billie Holiday forammulheres negras que se apropriaramafirmativamente do turbante.
Além dos negros, outros gruposétnicos têm no turbante um elementode afirmação. Na Índia, ele foi bastantedifundido pelos sikhs , que usavam oadorno para cobrir seus longos cabelos,que não são cortados em respeito àcriação de Deus. Os sikhs escolhem a
cor de seus turbantes de acordo com oestado de espírito e a elevação espiritualque apresentam. Antes mesmo da Eracristã, já havia registros de diferentesetnias, a exemplo dos persas, anatólios,lídios, árabes e judeus, utilizandoturbantes de várias maneiras.Preocupadas em esconder o cabelo, asmuçulmanas amarravam-no com aspontas soltas para trás.
SIGNOS, INSÍGNIAS“Assim como ombreiras, perucas e
afins, os turbantes eram usados como
mulheres remontam ao século 18, naFrança. Nos anos 1920, o estilista francêsPaul Poiret reintroduziu o traje na alta-costura como sinônimo deglamour . Aolongo do século 20, ícones da moda e
das artes como Simone de Beauvoir,Sophia Loren, Twiggy e Paloma Picassoaderiram ao charme do acess