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Page 1: Continhos de Alfarrobeira
Page 2: Continhos de Alfarrobeira

Título Continhos de Alfarrobeira

Autoria Alexandra Pereira, 2006

Edição Online

1.ª Edição - Abril de 2007

Capa e grafismo Rui Justiniano

Todos os direitos reservados

SINAPSES Editora

Urbanização Quinta das Lágrimas, lote 1, 1º Esq. Frente, 3000 Coimbra

www.sinapses.net

[email protected]

Page 3: Continhos de Alfarrobeira

Continhos de Alfarrobeira

Alexandra Pereira

Page 4: Continhos de Alfarrobeira

Alfarrobeiras em Flor ...................................................................................................5

Feitiço de Dona Divina ................................................................................................9

Músico Naufragado ...................................................................................................14

O Índio de Vilcabamba ..............................................................................................19

O Maior Espectáculo do Mundo ................................................................................23

Yakutuba - A Mulher-Serpente das Duas Vozes .......................................................27

A Groselha Que Pariu Um Rato Ou O Violãotista Mimado .......................................32

A Respiração .............................................................................................................37

Ana ...........................................................................................................................42

Cristais Como Nós (Aula de Geologia Social) ...........................................................47

Boca da Trompete .....................................................................................................52

O Buda de Lisboa .....................................................................................................58

A Décima-Terceira História ........................................................................................66

Ibêje-Ìbeji ..................................................................................................................71

A Maldição de Hemingway ........................................................................................79

Linguagem Óptica .....................................................................................................91

A Hora do Lagarto .....................................................................................................99

AAlegoria da Gaiola ................................................................................................103

Na Metade do Meio .................................................................................................105

Naturalmente Feliz ..................................................................................................107

Posição Yoguística ..................................................................................................111

O Espelho Antropomórfico ......................................................................................117

O Passarão Invisível ...............................................................................................120

Um Tuaregue e Dois Cavalos .................................................................................122

Para Sempre Porque Sim .......................................................................................127

Page 5: Continhos de Alfarrobeira

Alfarrobeiras em Flor

“Alfarrobeiras em flor/são ternuras dos meus olhos/para paz do meu amor” – assim

cantavam as velhas pela estrada andando sem pressas com pele ao sol intenso ofen-

dida. E dançavam volta e meia, alegres e atabalhoadas, pelo caminho cheio de pó.

São figuras sem tempo e sem idade, “encriptadas” – ou com o tempo todo, inverten-

do a questão; maiúsculas no que é digno mas frágeis na calcificação óssea e magoa-

das de gengivas na dentição postiça desajustada faz meses. Dançam de sombrinhas

abertas, negras da cor ou caruncho, espertas as velhas nos olhares transversais com

que vagueiam e planam sobre o horizonte, milhafres expandidos. Aproximam-se do

sino da igreja no terreiro, ameaçam-no com danças tribais, de lenços em torno à

cabeça simulam quem tivesse papeira e espalhasse, indigente, o bicho do inchaço

por todo o lugar. Incharam, por exemplo, no contágio, os maxilares dos cavalos res-

folegantes, atados às árvores numa impaciência extrema, com músculos equinos for-

çando os arreios. Dançam as velhas, despreocupadas dos animais. Ao fundo, atrás

delas, adiante, ao seu redor, as alfarrobeiras em flor da cor do papiro ou outonais,

escarlate desmaiando para o purpúreo carmim, esvanecido em aguadilha do tom da

violeta. À frente delas também, nos seus olhares dispersos, o rigor dum céu primave-

ril com abrunhos agrestes nascendo em cada chispa de estrela: as estrelas são como

cupulins alumiando a escadaria do céu; o canto das velhas é uma cuqueada nave-

gante alcançando na retina ilha virgem a estibordo.

Pensava Almira como o amor é um vento estranho que bloqueia as rotas da mari-

nhagem e afaga, corroendo-o, o rosto das montanhas: há montanhas ao fundo, azuis

como uma lua de Inverno, e riachos bárbaros descendo por elas de qualquer manei-

ra. O pai Solimundo Estragão, com uma carrada de feno amontoada na carroça, tira-

ra o chapéu à passagem das velhas e rira de fininho, pelas costas, dos seus passos

de dança peculiares. Chegou à beira de Almira, alheada, afagando-lhe os cabelos

com um pedaço de hortelã:

- Viste-me aqueles espantalhos? Dá-me vontade de rir de cada vez que caminham

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Page 6: Continhos de Alfarrobeira

para a igreja... são umas autênticas hereges! O senhor cura é que não deve achar lá

muita piada, mas se lhe trouxerem o vinho bom dos planaltos, ele baptiza até um

cão... – e tendo dito isto pôs-se a mascar uma palha nos beiços com o vagar de quem

espera pela morte desejando, ao mesmo tempo, que ela muito tarde.

Como Almira não desse resposta, de olhos à sombra e figura distante, o pai

Estragão sacudiu-lhe uma perna com a delicadeza usual no rinoceronte:

- Eh, rapariga! Vê se acordas, que a noite já vai longe! Que se passa contigo, hã?!

- Fez-me um filho, o Edubelo Carpinha... – cuspiu a rapariga sem pensar, denotan-

do na vez de vergonha uma preocupação distante, como se toda a paisagem a absor-

vesse – Pensamos chamar-lhe Felizmundo Roberto, o “-mundo” é em homenagem ao

senhor... Quanto ao resto ainda não sabemos como vamos fazer, se vou viver com

ele ou vem ele para aqui e alargamos a casa, por isso não me mace com todas essas

ninharias. – proferiu lacónica a rapariga, com um sentido prático que surpreendeu o

pai Estragão, na ausência de qualquer sentimento mais à flor da pele.

Solimundo deu um passo atrás, estranhando Almira:

- Muito bem... – resmungou o velho – Vejo que já sabes ser uma mulher e estás

muito decidida. É uma novidade que eu realmente não esperava... Mas então, o que

é que te preocupa?

A rapariga reflectiu, virou costas, começou a andar de um a outro lado no estrado

da varanda com as mãos penduradas nas cruzes.

- Nada me preocupa que possa vir dali. – respondeu finalmente – O Edubelo é o

homem que eu amo, o nosso filho será feliz. Foi muito pensado, ao contrário do que

possa julgar, simplesmente não lhe comunicámos a nossa decisão.

- Ah, bom... – retorquiu o velho amuado – Vejo assim em quanta consideração me

têm: de tal maneira, que nem posso saber que tencionam fazer-me um neto... Um

velho trapo, não é verdade? Um pedaço de madeira abandonado no quintal às intem-

péries que ainda venha, o amaldiçoado, a aguentar para vossa desdita.

- Cale essas queixas na garganta! – gritou a rapariga – E de que outro modo per-

mitiria o senhor que eu e Edubelo Carpinha viéssemos a viver juntos, diga-me? Pois

se tem na cabeça a dureza dum calhau e no coração os ouvidos dum mouco, e até

agora não podia nem ver-me de mão dada com ele, ou fosse como fosse, sem amea-

çar zagaiar o pescoço do pobre rapaz?! Considera que foi justa essa intenção, justos

os boatos infundados que espalhou na cidade, em quantas tabernas pôde, a respei-

to de ele ser traiçoeiro e mulherengo? – Almira Estragão estava indignada e os olhos

humedeceram-se-lhe de raiva.

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Page 7: Continhos de Alfarrobeira

Solimundo levou a vista ao chão, pôs as mãos nos bolsos, tirou um queijo amare-

lo e começou a cortar bocados com o canivete, que ia comendo assim mesmo sem

conduto, sentado num banco velho do alpendre.

- Mas sabendo-o pai do meu neto, o caso é diferente. E futuro genro, claro... Se vai

conviver comigo quero-o asseado e limpo, não emporcalhado como era costume vê-

lo, estragando essas estradas com os seus tractores monstruosos.

- Muito bem. – retorquiu Almira – Vestir-se-á como o senhor quiser, andará na

estrada suponho que a cavalo nos seus bois, pedirá licença para se sentar onde e

como você admitir, aliás limpará o cu às folhas que o senhor entender! Se anda

menos limpo, é sinal de que trabalha, ao contrário desses desgraçados preguiçosos

e beberrões com quem o senhor convive nas tabernas, espalhando boatos infunda-

dos a respeito dos bons homens. Esses, aviltantes, que se julgam machos por bebe-

rem selhas e mais selhas de vinho, toda a santa tarde e noite derramando-se sobre

as mesas dos cafés, e que depois chegam a casa e ainda espancam uma desgraça-

da qualquer como eles, que se prestara à humilhação de lhes cozinhar o jantar. Diga-

me com sinceridade, é isso que pretende para a sua filha, um pantomineiro condena-

do como o Argentino Rodes?

Ficou um tempo considerável em silêncio, Solimundo Estragão, remoendo as pala-

vras ásperas que ouvira da boca da filha e prendendo-as entre os dentes erodidos de

velho como se recheassem os bocados de queijo duro. Assobiou e parou de assobiar,

piscou muito os olhos:

- Sabes bem que o Argentino não teve uma vida fácil, a mãe morreu-lhe muito

novo, os irmãos idem; apesar disso, considero-o um bom rapaz. Os problemas com

a justiça só lhe vêm da necessidade do estômago, nada mais...

Bastava o nome daquele rapaz para provocar em Almira um arrepio de repulsa; ela

rebentou em indignação:

- Pelo amor de Deus!! Como é possível que continue a tentar impingir-mo?! O

senhor não se toca, pai Estragão... Estou à espera dum filho do Edubelo! E essa bes-

tiúncula não passa fome há anos, desde que foi abençoado pela herança da tia – o

que não o tem impedido de praticar quantos crimes lhe vêm à cabeça! Diga-me cá:

afinal, que favor deve você a esse marginal?

- Nunca pagaria um favor com uma filha, Almira. – respondeu Solimundo em tom

grave, um tom que no entanto não convenceu a rapariga – Mas bom, claro está que

agora o outro é meu genro e trazes-me um neto aí dentro... o caso mudou de figura.

Contudo ainda não me disseste o que te fazia pensar tanto quando aqui cheguei. – e

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Page 8: Continhos de Alfarrobeira

ficou à espera dum esclarecimento por parte dela.

- Nada, meu pai... – suspirou a rapariga virando-se para os montes, o adro da igre-

ja pouco adiante, onde os cavalos relinchavam a bom tom – Estava a ver a ternura

das árvores. – respondeu de forma enigmática. E ao fundo, atrás dela, adiante, ao

seu redor, as alfarrobeiras em flor da cor do papiro ou outonais, escarlate desmaian-

do para o purpúreo carmim, esvanecido em aguadilha do tom da mais pura violeta.

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Feitiço de Dona Divina

A Gabriel García Márquez,

pelas horas de companhia na leitura

Foi quando passeava pelos Jardins de São Pedro que encontrei Jacques Combo

dentro duma bola de cristal. Dançava, dançava. Construía devagar o silêncio do

tempo. Vinha muito pálido no interior da esfera, que assumia diferentes tonalidades

em função do ângulo de incidência dos raios solares, conforme as bolhas de sabão

que as crianças soltam das mãos entre risadas parvinhas no contexto de certas brin-

cadeiras conhecidas. Bom, Jacques trazia um gorro na cabeça, inspirava o ar fresco

através dum tubo às riscas grenat que saía pelo topo da bola de cristal, sobretudo sor-

ria. Dançava um pouco, rodopiava satisfeito dentro da bola logo depois, como um fan-

toche gorducho que balançasse para um e outro lado, parava para inspirar pelo orifí-

cio da palha, sorria de novo. Ficou alguns instantes a observar-me muito atento com

esse rosto exangue de zombie. Olhos perscrutadores num garoto curioso – penso

agora. Estava feliz e solto, nesse Outubro de 1955, Jacques Combo. Foi conhecido

entre os familiares de negócios como o prestidigitador do ofício, homem-maravilha

nas ferragens Combolero, fazendo estremecer demais concorrentes.

Tinha o hábito grotesco de não usar sapatos atados e assim dentro da bola de

perna bamba, pezinho frouxo, bem se notava o desleixo. Fiozinhos-spaguetti a escor-

rerem-lhe da barriga dos pés de modo inevitável, onde é que já se viu num senhor tão

respeitado? Dentro da esfera vinha atirando ao ar papeluchos prateados sem mais

não, numa excitação desbragada de chuva de estrelas cadentes que não fazia o míni-

mo esforço por reprimir, e acenou-me reverente com um copo de vodka em jeito de

brinde – era a sua festa privada e excêntrica, talvez até um pouco decadente.

Perguntei-me onde teria ele ido buscar semelhante engenhoca, que mais parecia

saída dum manuscrito de Júlio Verne e mandada construir por medida para o corpo

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Page 10: Continhos de Alfarrobeira

do fazendeiro do que resultante dos planos do próprio Combo, ou de qualquer inven-

tor frustrado com o qual confraternizasse. Saltou-lhe um soluço da garganta enrou-

quecida, um cumprimento envergonhado quando me viu (como alguém que parasse

em pleno sambódromo para cumprimentar um vago conhecido, desenhando uma

pequena pausa na folia), mesura um tudo-nada indistinta. Comia uma banana madu-

ra, cor de areia, que segurava a custo na mão esquerda: já não me espantou esse

costume enraizado de fruta favorita, sendo do conhecimento geral os hábitos alimen-

tares enviesados que afamaram Jacques de homem-macaco: comia dezenas de

bananas por dia, sob a forma de batidos ou bolos, fritas, assadas, em gelado, cruas,

cestos inteiros de frutas cheirosas e alouradas que as suas copeiras preparavam com

uma paciência infinita, sacrificando-se ao enjoo que essas tarefas repetitivas muitas

vezes lhes causavam; chegara até o dia em que correra na cidade o boato de que

Jacques Combo era um autêntico fenómeno, um homem que ficara grávido, tal era o

seu desejo de bananas. Era um autêntico tragalhadanças, assim desordenado: ves-

tia calças de riscas brancas e tão grossas como tranças de cabelos de velha em

fundo negro, mais um paletó de mágico com abas da cor do vinho escorrendo-lhe per-

nas abaixo. Agora imagine-se a figurinha um pouco balofa, lívida como roupa coran-

do ao sol, a passear por essas calçadas nestes preparos, ainda por cima dentro duma

bola de cristal com periscópio, eufórica duma felicidade incompreensível senão ao

abrigo etílico do vodka surtindo um belo efeito.

Além das ferragens Combolero, a família de Combo detém direitos e usufrutos

sobre a maioria dos bananais – a bananeira, essa árvore sagrada duma religião exu-

berante cujo guia espiritual seria Jacques – que povoam os arredores da cidade (por-

que os campos de bananeiras estendem-se aqui com a velocidade dos cogumelos

em estufas preparadas nas condições ideais de cultivo, a perder de vista como os

arrozais doutras paragens), bem como sobre os homens e mulheres que nesses cam-

pos trabalham e habitam, e que são na ordem dos milhares. Jacques casou a mando

do pai com uma galdéria um pouco velhaca, sua vizinha e amiga de infância, com

vista à junção de terras: uma mulher que era um tronco humano em termos de sen-

sibilidade e beleza, porém milionária duns milhões de se lhe tirar o chapéu: dona

Agualva, a filha mais velha – e ao que parece “enxertada” numa antiga criada, à

maneira daquilo que faziam os monarcas quando as esposas respectivas não eram

boas parideiras – dum bancário espanhol imigrado nestas bandas após fraude graú-

da na terra-mãe, e que tinha a particularidade de usar sempre um chapéu de feltro da

cor do mirtilo com o qual, ao que consta, foi enterrado. Pois bem, Jacques era latino

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Page 11: Continhos de Alfarrobeira

e Agualva mulata mas o coração dele levava sangue, o dela só admitia escopro para

talhar a pedra – mesmo assim era uma luta vã com a matéria-prima.

Entre os camponeses que moravam em barraquitas de tábuas minúsculas no meio

dos extensos bananais inundando os campos havia uma ou outra palhota das cha-

madas feiticeiras. Estas eram mulheres de dons extraordinários, carregando no ven-

tre uma sabedoria ancestral que exigia estranhos rituais para ser transmitida às

aprendizas mais novas, nomeadamente uma lavagem da boca com alho um tanto ou

quanto custosa, cambalhotas diversas pelo chão duro, a feitura dum prato específico

onde se conjugava farinha, aguardente, fruta-pão e papa de milho, danças desequili-

bradas em torno de uma das barracas – no caso, a da feiticeira-mãe encarregue pela

aprendiza respectiva – e quarentena em relação a qualquer tipo de carne (embora o

peixe pudesse comer-se sem constrangimento algum durante esse período). Nas

monções era um dilúvio, a enxurrada levava chapas de zinco a boiar campos fora –

aliás, a fronteira entre os campos e o mar tornava-se absolutamente indistinta

enquanto durasse essa época do ano – e seres humanos poisados nelas como mos-

quitos ou a gritar por socorro agarrados às copas das mangueiras ou bananeiras, fin-

cando unhas nas folhas odoríferas da ramagem, formigas ao vento e à mercê da tor-

rente.

Dona Agualva – que morava numa mansão separada duas léguas da fazenda do

marido, fazendo extrema com ela mas raramente a frequentando, por se considerar

de classe superior aos campesinos que pelo fim da tarde a enchiam com notícias de

manadas tresmalhadas e colheitas destruídas – vestiu um dia o seu melhor fato (um

tailleur preto de marca imponente, colar de pérolas verdadeiras vindas das ostras do

Pacífico expressamente para o guarda-jóias caprichoso da madame), pintou os lábios

com as borraduras mais sofisticadas que se avistavam nas avenidas de Paris e, para

espanto geral da criadagem, em vez de se dirigir ao aeroporto rumo a uma das capi-

tais mundiais dos desfiles Lagarfeld daquela época foi bater à porta da feiticeira mais

conceituada nas redondezas (sendo que o perímetro do prestígio incluía a fazenda do

marido, Jacques Combo). Entre os empregados dum e doutro – que nunca chegariam

realmente a misturar-se nas tarefas, e que no entanto confraternizavam entre si com

o à-vontade observável entre familiares muito próximos – corriam nessa altura boa-

tos mais que testemunhados pelos empregados dum e doutro igualmente, embora

acima de tudo circulassem ditos trocistas, anedotas a respeito do casamento dos

patrões, ou melhor, de como dona Agualva tinha já dezenas de cabeças de boi nacio-

nais e internacionais por inventariar a pastar entre os seus bananais na região de

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Page 12: Continhos de Alfarrobeira

Terra Santa, além de que o maior par de chifres tinha então acabado de chegar.

Combo divertia-se amiúde, era sabido, com uma ou outra empregada de cabaré,

garota serviçal, trabalhadora dos campos, assumindo perante todos os comparsas

que o casamento com Agualva não passava de uma farsa – o que aliás pouco pare-

cia importar à patroa ociosa, sempre de viagem ao estrangeiro acompanhando as ten-

dências da moda, as últimas novidades em tratamentos de beleza (embora tivesse

péssimo gosto e não se percebesse ao certo para quem queria estar tão cuidada...).

Mas agora o caso tinha outros contornos: chegara à cidade uma belíssima indígena

que tomara o coração de Combo e o prendera, dir-se-ia que com grilhetas. Pele cor

de argila, ondulações de ofídio, Caxemira vinha trabalhar no maior cabaré de

TerraSanta. Era um assombro. O coração de Combo – que nenhuma outra mulher

conseguira, até àquele momento, roubar às preocupações com as terras, às planta-

ções, às estações e às colheitas – foi tomado de assalto. Houve monção fora da mon-

ção, uma enxurrada apaixonada, impensável: era como se o coração de Combo tives-

se despertado de mil anos de torpor enfeitiçado nas mais profundas brumas dum des-

filadeiro à beira-mar. Ele convidou com surpreendente rapidez Caxemira para a

fazenda, dizia-se que vivia já com ela partilhando leito, chegou a ceder-lhe quotas nos

bananais. Apesar disso, a rapariga mostrava apreciar a sua liberdade acima de todas

as paixões e decidiu manter o trabalho no cabaré, onde dançava duas ou três noites

por semana sob o olhar diligente e orgulhoso de Combo, que a trazia protegida com

três guarda-costas encorpados.

Cheirou a esturro a dona Agualva, estes factos feriram-lhe a dignidade lá onde ela

a tinha. Pôs-se a magicar vinganças, a destilar venenos com suas comadres confi-

dentes. Surgiu-lhe então a ideia peregrina de ir ao encontro de dona Divina del Mar,

a feiticeira maior do reino Combolero: extremamente respeitada entre os nativos,

dona Divina pertencia ao restrito grupo dos sem-idade, indivíduos muito antigos nos

anos e com o dom da profecia que seguiam uma dieta especial à base de frutos e

consultavam pessoas aflitas ou simplesmente curiosas para orientá-las nas suas

decisões de vida, além de tratarem todo o género de maleitas de modo eficaz, com

emplastros de ervas anãs, unguentos, cactos e lama mineral. Dona Divina del Mar,

que eu cheguei a conhecer muito bem, devia o seu nome ao facto de ter a casa vira-

da ao oceano e exibir dons de encantar nas mezinhas por si preparadas, com peda-

ços de feto pendurados no seu varandim atlântico; robusta de braços, com olhos

cerúleos e sombras ametista a nadarem-lhe no rosto, devo conceder que dona Divina

impunha certo respeito. A anciã chamou um dia Combo, ignorante de tudo, à sua bar-

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Page 13: Continhos de Alfarrobeira

raquita de praia: era Outubro, estava abafado e chovia. Ao que me contaram, Jacques

Combo vinha contente: cantarolava, dançava celebrando o extraordinário espectácu-

lo de Caxemira, a noite de amor passada; vestido um pouco à pressa, quase parecia

flutuar no ar entre o aroma das frutas tropicais, que sufocava nesse dia. Dona Divina

del Mar, fingindo-se curiosa, perguntou a Combo qual era o seu maior sonho – este

respondeu-lhe assim, com dois gritos eufóricos, julgando que a feiticeira intercederia

em seu favor junto das eminências celestes:

- Dona Divina, voar!! Voar!!

Então a minha avó fez-lhe sem dúvida a vontade. Eu regressava da escola e era

muito pequena, porém penso agora que a cor esmaecida de Jacques Combo quan-

do me cruzei com ele nos Jardins de São Pedro não deveria ser mais que um resquí-

cio do susto inicial: pelo caminho que levava tomou a voar a direcção do cabaré, onde

assistiria por certo à actuação de Caxemira com o cair da noite, sempre atento ao

espectáculo no interior da sua perfeitíssima bola de cristal, a engenhoca do milénio.

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O Músico Naufragado

A Enrique Vila-Matas,

pela ironia inolvidável

“Eu penso em dó ré mi fá sol lá si, penso em sustenidos, em mínimas e semimíni-

mas, colcheias à tona da água e mais um soluço de desespero.”

Foi quando botei um braço fora da água que me apercebi como a embarcação já

tinha mergulhado por completo nas ondas salgadas. Espuma e mais espuma a des-

fazer-se contra o casco, gente nas bordas gritando aflita: tudo isto engolido pela imen-

sidão dos mares. Silenciado em líquido. O meu piano também, aliás a banda toda

com instrumentos doirados, reluzentes, que iam caindo directos para o fundo espec-

tral do oceano. Presos nas algas, transformados em bancos de coral.

(penso em sustenidos, uma colcheia flutuante)

Na travessia da Dinamarca para Inglaterra incendiou-se-nos o barco a meio do

caminho, foi um fumo asqueroso a sufocar-nos de súbito, uma agonia entre as gen-

tes; o barco subia e descia na vertical, de modo que o estômago era uma pastilha

elástica na nossa língua. Houve berros – isso sei.

(penso em fá e uma semimínima passa-me diante dos olhos, a boiar)

Como sou polaco não falo estas línguas: ficaram-me gravadas na memória apenas

expressões de horror; uma algaraviada (algaraviada existe, na minha língua?) confu-

sa e amalgamada, indistinta, de dialectos locais, expressões europeias das mais

melódicas às sumamente originais. Olhos arregalados, horríveis, em senhoras formo-

sas havia cinco minutos, deturpações nas caras, bocas escancaradas de pavor entre

os embarcadiços, sobrancelhas em pânico nos doutores distintos, crianças esfuma-

das no ar porque se transformaram por completo num grito

(eu vi crianças esfumarem-se no ar)

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Page 15: Continhos de Alfarrobeira

que os ventos levem com sucesso

em ondas médias e longas

o fio de som do vosso espírito para buscar ajuda junto à costa, crianças

(vi corpos correndo a buscar os salva-vidas sob a tempestade, carnes geladas do

frio cortante, um relâmpago abatendo-se sobre o barco)

um pé roxo, outro pé paralisado, recusando andar, o nariz quase a cair-me na boca

(carnes geladas do frio cortante; a frase: agora o que fazer?)

o nariz a cair-me na boca, imagine-se

(era a pergunta geral).

Quem nos acode? E agora? Tantas noites, tantos dias, tantas esperanças vãs...

Então é só isto? Por que não são as nossas preces atendidas? Existe alguém que

não nos ouve?

(era a ânsia, a dúvida alastrando)

Estará Deus, esse casmurro milenar, zangado connosco – não nos fala? Não nos

vê, nas suas cataratas idosas, não enxerga a nossa aflição? Que se passa com a fé,

que vai por água abaixo ao mesmo tempo que o mar nos sobe corpos acima?

Foi então que me veio à memória a minha Polónia natal, com os corvos e a urze

(no meio dos corvos e da urze, um coro escolar na infância, dó ré mi sol fá lá sol,

os meus colegas cantando com luvas de lã nos dedos fá sol lá sol, a nossa expiração

cristais de neve dó ré mi lá)

e as murtas e os prados, estradas enlameadas pela neve, idosos atarracados, o

meu avô – um idoso atarracado afogando o corpanzil numa lambreta –, neve, a neve

sobre as cercas como cera derretendo nas velas dos postais natalícios, os cães

ladrando na amplidão até de noite, os galhos duros que se nos prendiam no cabelo

arrepelando-o e faziam parte de copas enormes cobrindo o céu, que por sua vez esta-

vam ligadas ao tronco ancestral e à raiz profunda que as suportavam, um tronco gros-

so e implacável, autêntico pilar duma árvore-monumento: uma pereira, uma macieira,

um pessegueiro, um carvalho antigo com casca de escaravelho, um bosque de chou-

pos deixado pelos alemães na província quando tomaram conta das terras que são

nossas, e que para ali ficou a envelhecer com os anos ao nosso lado, o lado certo dos

homens a quem a terra pertence (o lado errado é daqueles que vêm e as ocupam,

lavram a terra demasiado fundo sem saber o que semear, não conhecem as estações

nem as luas nem as nuances dos dias rigorosos, a neve e o gelo e os seus caprichos,

e acabam por matar árvores com as charruas aterradoras, espantar corvos, pardais

ou falcões que descem da montanha por causa do gasóleo, envenenar pessoas com

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Page 16: Continhos de Alfarrobeira

pesticidas desumanos, e nada colhem ao fim dum ano a não ser cereais moribundos

num campo sem fim, palha que não presta, frutos inexistentes, a castanha bichosa;

os que não conhecem a diferença entre enxertar num dia ou no seguinte aquela plan-

ta especial). Estamos, portanto, do lado certo dos homens a quem a terra pertence.

O mar não pertence a ninguém: será um sítio parecido com o Purgatório, sítio nem

certo nem errado onde estar. Simplesmente espera-se.

(não nos resta senão esperar que uma gotícula de mi doce na boca e colcheias

entrelaçadas a formar uma ilha onde poisemos os pés em terra firme e nos abrigue-

mos, areia no lugar deste líquido gelado a prender-se entre os dedos dos pés)

Desejei que a neve sólida em vez da chuva e o mar gelo onde eram ondas de cinco

metros, como na minha Polónia natal: talvez assim os instrumentos à tona e nós

patins em vez de bóias – mas que bóias, santo Deus? – que se rebentaram e perde-

ram na maré ou não existiram de todo, nós patinadores velozes e graciosos onde

nadar não sabíamos, com um público maravilhado aplaudindo ao fundo, no lugar do

rugir ameaçador dos trovões. No convés do navio patinagem artística ou esquiadores

precisos e talentosos em vez de náufragos moribundos que acenavam por socorro,

os pobres, a quem não os podia socorrer, porque os coitados dos acenos não sabiam

nadar e os coitados que sabiam nadar estavam nas águas exaustos, petrificados, e

tinham desaprendido de como se cortam as águas com os membros dormentes e os

dedos engadanhados e o cérebro gelado e os gestos tolhidos num exício inclassificá-

vel. Soltavam, alguns deles, lágrimas que lhes gelavam a face ao chegarem-lhes aos

ouvidos os gritos aterrorizados daqueles que não sabiam nadar. Eu era um dos que

sabia e tinha esquecido ou desaprendido ou soçobrado, um das lágrimas geladas,

portanto. Os das lágrimas geladas agarravam-se ao que podiam para permanecer à

tona de água

(uma gaivota, como é? difícil de imitar... posso construir uma melodia para a gaivo-

ta com lá, si bemol; como eram os pássaros da minha Polónia natal? ainda me con-

seguirei lembrar depois disto?)

o meu piano afundou-se no escuro e era uma pessoa também, à sua maneira. Não

sei se alguém compreenderá como me custa não ter podido fazer um luto pesado por

ele, nem despedir-me decentemente do meu querido companheiro. Não me importa

que o considerem absurdo. Não me interessa, não quero saber.

Agarrámo-nos aos pedaços de madeira, a bidões – nós, os das lágrimas congela-

das –, aos remos dos botes, às bóias vazias, aos malões abertos, às esperanças frus-

tradas, ao oco dentro de nós num mar aberto, agarrámo-nos aos movimentos que não

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conseguíamos e ao ar pelo qual ansiávamos, perdemo-nos de nós e não voltámos a

reaparecer. Não diante uns dos outros, não nunca da mesma maneira. O tempo fez

questão de esquecer-nos uns dos outros.

Na mistura polifónica de vozes, no concerto do terror, compreendi a natureza das

inquietudes universais; não alcancei a semântica, captei as emoções por trás dos

prantos aflitos: a dor da injustiça, a crueldade do mundo, o confronto cara a cara com

o fim, a morte ao nosso lado, tocando-nos o ombro como uma irmã confidente.

Beijando-nos o rosto. A esperança na salvação que não chega, os pedidos de cle-

mência derradeiros, as vozes dos deuses ou dos mitos ou dos monstros dos mares

sem fim engolindo finalmente estas outras, humanas. Um rosto belo de mulher jovem

que o sal e o vento consomem até aos tendões, para depois o abandonarem, impla-

cáveis, arroxeado sob as nuvens densas; garotos descobrindo-se desprotegidos da

chuva e do afogamento mesmo fincando com as unhas a franja da saia da mãe, num

choro exasperado. A efemeridade, o sofrimento, a ironia, o abandono. Tudo isto eu

percebi através da música encerrada nas línguas, nos sons dos vocábulos, da carne

do sangue e dos seres em transformação.

(relembro os sons e não entendo o que dizem, absolutamente nada)

Mas sei o que sentem. Compreendi-o também, em definitivo, pelas expressões dos

rostos: têm qualquer coisa de irredutível que não me deixa escapar-lhes. Sonho com

elas, acordo palpando-as na minha face rígida. São máscaras que a gente põe e tira

e põe e tira e não são nunca nós: as imagens do horror como um polvo gigantesco

que nos tortura pela cintura, nos aperta e consome. Outros sentimentos humanos

seguem um itinerário semelhante: a maldade é também assim, de igual modo a inve-

ja engole e subjuga. O que há a mudar? HUMANIDADE PRECISA-SE: isto é o que

há a mudar: disse-o tantas vezes ao meu professor de latim na terra-mãe, anos antes

de todo este grande desastre ter ocorrido. E agora a sensação de futilidade dessas

conversas.

(penso em bemol, si bemol... isto existirá? já não sei)

O meu piano, uma tão grande parte de mim, afunda-se pesadamente na escuridão

turva das águas, o meu piano preto

(qual a marca? não me lembro, já não sei)

como um cadáver aterrando no fundo do mar.

Ainda me lembro. Estou vestido de gala para a sessão da noite que se aproxima

(aproximava)

faltava só jantar depressa e depois a gala, tocar uns acordes que sei de cor mas

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Page 18: Continhos de Alfarrobeira

não deixam de surpreender-me, então deu-se isto: tive de desapertar o laço, peço

desculpa... A informalidade da ocasião – do naufrágio – assim o exigiu.

(sonhei durante muito tempo com a minha terra natal, as aves migratórias fugindo

do inverno, os seus sons de despedida ré mi dó; passado o muito tempo o Verão tor-

nou a aparecer)

Acordei numa praia da Inglaterra

(levado pela maré, suponho, mas prefiro acreditar que um cardume de sereias

polacas me transportou pacientemente a bom porto)

acordei numa praia da Inglaterra – dizia eu – enregelado, de mão frias e pés como

toros de madeira na sensibilidade, segundo me pareceu. Nem sinais do Verão.

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Page 19: Continhos de Alfarrobeira

O Índio de Vilacamba

Ao Eugénio de Andrade, que faleceu neste dia

(para quem a meia-noite era sol frutado)

Cerro Victoria é o meu tecto do mundo, onde se limpa o ouro de impurezas nefas-

tas: as que vêm por chão e antes vieram de barco cavalgando sobre ondas, marés –

loucura do homem cor de nuvem. Sou irmão do vento e das tempestades, unjo a cara

cor de bronze com tintas de terra, de sangue. Sou esquivo e fino como o feno nas cor-

dilheiras, assentei uma a uma com as próprias mãos as lajes dos caminhos na crina

das encostas. Sou eu que vendo os olhos ao cavalo, antes da subida, para o carre-

gar de mantimentos sem que se assuste. Tenho penas de águia trepadeira na cabe-

ça, fios de couro no fato, colares, instrumentos. Eu sou o som da minha flauta que

voa, a dança milenar em torno da fogueira, sou as sementes verdes que masco num

sorriso, sentado de pernas cruzadas no chão empedrado a negro, desde sempre. Sou

suor escorrendo dos olhos. A água é minha irmã, o sol uma conquista, uma dádiva

plena. Corto as canas para a flauta e nisto a planta geme, tem alma no oco: o que me

surpreende. Disse uma vez ao homem cor de prata: os canaviais têm alma no oco –

por isso não corto canas, ficam almas à solta a vaguear na aldeia; o moço traduziu

do quéchua para outra música (a do homem cor de barro branco) e ele não me acre-

ditou. Eu tenho uma filha pequenina que se ri como os pássaros gorjeiam e uma

mulher jovem em cuja pele os insectos julgam sentir o odor a flores silvestres, enga-

nando-se nela à procura de alimento. Há chuva nos olhos da minha mulher nos dias

mais bonitos: são dum cinza cortina de aguaceiro, mistério de névoa contra o verde

gritante das encostas.

O homem cor de latão tinha vindo de Cuzco com outros homens, escarpas acima,

que ostentavam relâmpagos na cara ou um só olho de falcão enorme, espiando tudo,

como um grande buraco no rosto – disseram-me que lhes chamavam foto-grafos na

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Page 20: Continhos de Alfarrobeira

música deles. Ao chegar a Huancacalle, o homem ofereceu-me um presente em troca

dos meus serviços de vaqueiro até ao topo da grande montanha; o presente ficou

com a minha esposa olhos-de-chuva, riso agreste, corpo meu, e estava dentro dum

cilindro. Enquanto aparelhava os animais, recomendei expressamente que não dei-

xassem a minha macaquinha-curiosa de riso trinado, a pequenita, tocar no presente

do homem branco: “quando eu chegar se verá”. Tinha ele dito que era uma raridade

aquele presente, comida muito valiosa. Eu queria guardá-lo com todo o cuidado, tal-

vez mostrá-lo de forma pública na maior festa da aldeia – haviam de achar-me um

homem importante: os outros homens tirariam o chapéu à minha passagem e as rapa-

rigas fugiriam entre risinhos.

O homem cor de lua era o mais importante de entre aqueles que haviam partido de

Cuzco; tinha uma barriga muito grande: quando lho faziam notar dizia com um sorri-

so que havia sido consequência duma “barrigada de pêssegos” – isso mesmo nos

dizia o rapaz que falava a língua do homem e usava uma bolsa de couro igual àque-

la que a minha mulher traz sempre ao ombro. Caminhámos quatro dias na direcção

da grande montanha e outros quatro despendemos para o regresso. Atravessámos

um nevoeiro cerrado nas subidas verticais longe do mar, perto dos deuses. Custou

muito a respirar ao homem de latão, amparou-se aos nossos ombros no trilho derra-

deiro, assim como num terço do caminho; explicou-nos depois que estava habituado

a sentar-se sobre motores, mesmo para voar. Voar? Sim, o homem barrigudo diz que

voa: suspeito contudo que não terá a graça do falcão, a destreza de outros bichos

aéreos nossos conhecidos. Nem penas tem para ostentar, a beleza não o viu: tinha

posto uma venda colorida como aquela que eu coloquei no cavalo para aparelhá-lo

quando o homem da barriga passou, a dona beleza.

Uma noite depois do jantar untaram-me de gordura as mãos, não sei porquê: fiz

questão de tirá-la imediatamente. A comida que os homens de latão traziam de Cuzco

pouco prestava, as melhores refeições éramos nós que as fazíamos com provisões

arranjadas ao relento e guisados próprios ou improvisados. À medida que alcançáva-

mos o cume andávamos cada vez mais devagar, na certeza de encontrar lá no cimo

como que um pássaro raro: encontrámos bruma e um frio de rachar, como de costu-

me. Mas os homens estrangeiros ficaram contentes; o meu companheiro mais che-

gado tocou flauta com o objectivo de entreter-nos e afugentar o frio da nossa pele.

Não houve vivas quando alcançámos o cume, somente um desejo sôfrego por gran-

des tragos, goles monumentais de bebidas que nos aquecessem o ventre – isto à

mistura com a sensação de termos, nalgum ponto por mais recôndito, domado a nos-

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Page 21: Continhos de Alfarrobeira

sos pés a natureza. E os líquidos fermentados a queimarem-nos as tripas por dentro

(imaginámos que a “barriga de pêssegos” do homem cor de caliça sobreviveria

melhor, não sei porquê, àquele jejum derrubado com o álcool). Os relâmpagos

aumentaram no rosto dos homens olho-de-falcão, vitoriosos.

Perdemos dois bois e um cavalo das cordilheiras na subida até Cerro Victoria; por

outro lado, ao descermos, a tendência dos estrangeiros para as quedas encurtou dis-

tâncias. O rapaz que falava por eles e por nós para uns e outros (pássaro cantor)

aproveitou o vagar aliviado com que descíamos da glória – como quem desce um

degrau – para ir pousando com discrição aqui e ali, agachado a colher ervas úteis

para o interior da bolsa de couro igual à da minha mulher. Alheio aos demais, deixou

que comunicássemos por gestos intenções e sentimentos; mais tarde dançou nos

caminhos a poeira que nos cobria a cara, as pinturas: ficámos todos da mesma cor

por fora. Na sequência disso, foi sujeito a repreensões por parte de vários companhei-

ros, o nosso transformador de músicas (“agora vou dizer isso na música deles”, cos-

tumava ele explicar nas traduções...).

Ao chegarmos à aldeia reconheci de imediato um riso trinado: era a minha peque-

nita a brincar no pátio junto às casas; divertia-se à brava com uns bichitos pequenos,

uns paus e uma casca de fruta. A minha mulher seguira todas as recomendações no

sentido de proteger o mais possível o presente do homem-lua, salvaguardá-lo de

quem quer que fosse que tentasse botar-lhe as mãos: estava protegido por uma espé-

cie de esteira no canto mais abrigado da casa. Os homens cor de nuvem despediram-

se de nós com uma palmadinha condescendente nas costas, em seguida continua-

ram a chover como gotículas encosta abaixo, na direcção de Cuzco. Como a ocasião

era solene, preparámos entre nós uma grande festa para essa noite: juncámos o chão

e acendemos enormes fogueiras. A minha pequenita entreteve-me até ao jantar,

curiosa como um animal recém-nascido; pela hora da refeição sentei-me ao lado da

minha mulher junto à fogueira – porém o calor deste ser encantatório era-me ainda

mais aprazível que o dos vegetais em combustão. Guardei para o final do jantar uma

grande revelação que fez aumentar de imediato o meu estatuto junto dos outros habi-

tantes da aldeia, olhando-me todos eles com modos sérios e respeitosos: a fruta-

prenda preciosa que o homem cor de luar me deixara em sinal de reconhecimento

pelos serviços prestados. Informei-os de que guardara o cilindro com todo o cuidado

até este dia: só eu comeria o manjar porque a mim me houvera sido dado o presen-

te, no entanto eles teriam (tal como a minha família) a honra de assistir à deglutição,

e para a aldeia toda isso seria certamente uma benção. Foi quando eu me envenenei

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Page 22: Continhos de Alfarrobeira

num dia de tempestade: a fruta, com tanto desvelo, passara o prazo de validade para

ser comida (e como eu desconhecia o sabor, não lho estranhei...); chamaram o curan-

deiro mais experiente da aldeia, contudo não puderam evitar que o meu estômago

rebentasse em vómitos esverdeados e as tripas me definhassem aos poucos em

gemidos condoídos. Morri nessa mesma noite, encharcado em suor, com a barriga a

estoirar, a minha doce mulher ajoelhada a meu lado. Não guardo, todavia, remorsos

ou ressentimento: daqui de cima, donde vos falo, vou planando voos de falcão; esta

agudez no olhar permite-me guardar, obstinado, as brincadeiras da pequenita e asse-

gurar-me de que nunca na vida ela comerá pêssegos. Por isso estou bem.

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O Maior Espectáculo do Mundo

A Arild Andersen,

pela dedicação

Um feixe de luz no céu para os lados da Avenida Afonso Costa e aqui, debaixo das

copas, buracos monumentais; os homens continuam a trabalhar mesmo à uma e

meia da manhã, mesmo de noite as camionetas-betoneiras fazendo uma digestão

apressada de betões nas suas grandes barrigas ovais. Apetece-me homenageá-los.

Como ratos eles escavam nas fossas dum astro vindouro, o grande prodígio das

entranhas da terra. Uma enorme cratera ao centro, vertical, a prumo, muito perfeita.

Que pensarão estes homens-ratos, minúsculos junto às maquinetas que fazem

mover? O operário é meu irmão na pachorra e no empenho. Como explicá-lo a certa

gente? Meu Deus, que focinhudo catolicismo a rebentar pelas costuras!

O maior espectáculo do mundo brilha quando a lua se adensa e Sagitário (a estre-

la vermelha dos tahitianos) cintila nas suas duas faces. É então que o contrabaixista

desce a rodopiar pelo varão do feixe de luz no céu e apresenta um espectáculo fabu-

loso. Ele dança, marmoreia contra o azul muito vivo. Nada entre as notas. É como se

desenvolvesse uma relação de intimidade com o instrumento: fá-lo com um sorriso

esmaltado de felicidade rasgado no rosto. Ao agarrar o contrabaixo, prende o pesco-

ço alto duma mulher, esfrega-lhe o nariz no ombro, segreda ao seu ouvido, dedilha

em massagem a coluna vertebral; então lembra-me por graça uma foto de Man-Ray

onde os rins desnudados da senhora são os contornos em S da caixa de ressonân-

cia do aparelho de sons. É uma dança solene, majestática a deles, e ao mesmo

tempo duma intimidade profundíssima. O contrabaixista veio vestido a rigor para a

ocasião – não esqueceu a falta de pente dum músico que se preze, ou então é a

intensidade da entrega física que lhe põe a trunfa a adejar deixando-o transtornado:

se eu fosse mulher dum contrabaixista tinha ciúmes do instrumento com toda a cer-

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teza – e diverte-me imaginar a senhora contrabaixa aperaltada de pop-chic, à seme-

lhança dos modelitos surpreendentes, de gosto duvidoso, que vemos o povinho des-

filar com grande pompa (entrecurtada somente pelos entorses na calçada), por exem-

plo, Portas de Santo Antão abaixo em noite de Grande Gala dos Globos de Ouro.

Aí, as senhoras (“essas meretrizes que se fingem do jet-set”, como diria a minha

tia Albertina...) deslizam com muito cuidado, sacões vários, os saltos agulha de dois

metros na calçada à portuguesa; todos se sentem estrelas de Hollywood por dois

minutos (o que não significa que gostem, como parece evidente): é possível ver pas-

sar desde um cortinado andante dos tempos de Dona Maria Pia até às combinações

daltónicas de azul com verde (assusta sempre imaginar que uma pessoa que passou

tanto tempo a cuidar da vestimenta não tenha sequer reparado na mais elementar

conjugação de cores) ou às senhoras que se assumem alfacinhas de corpo e alma,

quer no tom quer na textura dos tecidos, fluorescentes dos pés à cabeça. Outra maté-

ria interessante são os decotes: matéria siliconada, quer-se muito, mesmo MUITO de

fora. Há três estratégias que podem ser adoptadas a esse respeito: descer o decote

até ao umbigo, aumentar as mamas ou, com bastante maior frequência a avaliar pela

amostra, ambas. Outros truques valiosos são conversa de mulheres que não deve ser

revelada em local público, muito menos diante dos homens-ratos que se babam,

encostados à parede e intimidados, nas costas delas: fica um rasto viscoso na calça-

da à portuguesa depois da passagem das celebridades. Os homens têm variantes

profícuas como os disfarces (?) à gigolô-prostituto e as camisas aos quadradinhos,

muito desabotoadas, com gola em bico à moda dos anos setenta. Óculos que tais

também fazem boa figura, gravatas berrantes dão concerteza tema de conversa.

Tanto homens como mulheres devem exibir um bom bronze de maquineta-solário nos

corpos entre o meio-nús e o três-quartos-nús (cinco sextos, na melhor das hipóte-

ses...).

O contrabaixista ensaiou boleros e blues, seduziu tímpanos, arrebatou corações.

Declarou-se ao instrumento com toda a emoção, mostrou-se honesto, humilde no

dom, fascinado ou arrebatado como uma criança ante a maravilhosa descoberta da

vasta paleta de sonoridades e combinações. O mundo todo era dele: o palco a vida

contém. Holofotes iluminando o talento, o contrabaixo, o infinito e ainda mais longe,

para lá do horizonte, no sítio onde a promessa reside. A promessa futura é o presen-

te do esforço, o exercício passado o natural no presente; como os homens se alimen-

tam diariamente, assim a aptidão deve ser nutrida todos os dias. E ditoso aquele que

pela noite dentro se exercitar, como bem-aventurado o outro que de manhã o fizer,

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pois na verdade ambos terão cumprido, na sua inquietude insatisfeita, o essencial

para alcançarem aquele estado de espírito tranquilo à beira do qual desponta o sen-

timento de realização.

Nas Portas de Santo Antão, no meio de todo aquele aparato, haverá porventura um

rapaz com mau-gosto para gravatas e bom-gosto para óculos de sol, olhos da cor dos

líquenes de oliveira oxidados – em tons caramelo –, e um sorriso prateado, muitíssi-

mo límpido. Será um pequeno índio, e o seu rosto uma surpresa diferente no meio da

multidão. O que diz é sensato, a sua alegria solene (um dever de estado, uma agra-

dável obrigação), a curiosidade uma pulga inquietante na peúga do índio. É um

pequeno artista será ele a seu modo, um construtor do futuro no respeito e na cora-

gem, no desprezo divertido pelos bronzes-maquineta, no assobio distraído das suas

reflexões privadas. Tropeçará num vestido a imitar o forro dum sofá decadente e dar-

se-á ao trabalho de pedir desculpa pelo sentido estético divergente, o tropeção inad-

vertido, a mancha invisível da graxa no sapato a macular o guarda-roupa da senho-

ra. Será um cavalheiro antiquíssimo, um bondoso incorrigível, o índio. O pequeno

índio pertence a outro mundo que não este, e explora este como quem faz uma expe-

dição à selva: deslumbrado mas à cautela. Nas Portas de Santo Antão um índio, artis-

ta doutro modo de ser, numa variante mais longânime.

Scherzo, Allegro, Vivace, Molto Vivace: eis os andamentos nas partituras, que são

linhas rectas acneicas, cheias de pontos negros, na cabeça do contabaixista; o

homem detém-se entre cada música para trincar um pequeno pedaço do chocolate

pousado sobre a cadeira e beber um líquido corado num matiz morango, ofegante e

crédulo, como um tenista que recuperasse energias no final de cada jogo do set.

Também o contabaixista troca de campo (Andante) sempre que a pauta borbulhenta

na mente assim lho exige, ele é o desportista do palco pretendendo enquanto triunfo

último o tiebreak das ovações. Não há árbitro no espectáculo senão a disciplina que

o músico se impõe, não há juiz mais rigoroso senão um público rendido exigindo

mais; o contrabaixista afina o tom e o timbre para deixar passar o altruísmo dum pre-

sente intocável, não palpável, mensurável ou estimável em termos quantitativos, ina-

lienável porque corre ele mesmo no ar e no vento e na aragem, no bafo, nos átomos

dum sopro que se respira. O feixe de luz índigo estilhaça o céu por dentro, volteia

ampliforme no espaço.

Mas que faz um índio, nessa mesma noite, na plateia da Grande Gala? Espalha

filantropia, que também lá é necessária. Trouxe um potezinho de barro atado com gui-

tas de palha, de maneira que abre a tampa de cortiça, agachado a um canto com

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Page 26: Continhos de Alfarrobeira

manha dissimulada e rente às cortinas, para sacar lá de dentro, na ponta dos dedos,

pozinhos de complacência e berlindes piedosos, espalhando-os pelo fundo do cená-

rio. Daimoso nos modos, traz também folhas de loureiro pisadas com perfeição, que

se diz hão-de vir a dar sorte àqueles mal-aventurados a quem ela sempre olvida na

hora de distribuir honrarias e gratidão; espalha ainda sobre a cabeça dos convivas

umas gotas que trazem no miolo ganas de afecto e modos corteses, depois boceja

de cansaço, estatela-se no seu assento estofado, cor de carne, e assiste, sorridente,

ao desfile das senhoras vestidas de granadina.

Ainda nessa mesma noite, o maior espectáculo do mundo decorreu sem proble-

mas: enquanto o índio facilitava bondades no mundo – em parte dele, ao menos –, o

nosso contrabaixista dançava, dançava contra o azul muito vivo acompanhado a flis-

corne no seu sorriso esmaltado: o trompetista descera por um segundo feixe de luz

celeste para fazer o dueto. Debaixo do chão, com escadas em branco metálico subin-

do, à sua frente, pelo grande buraco, os operários olhavam as nuvens para os lados

da Avenida Afonso Costa: nem ameaços de chuva, nem ovnis ou étês: apenas dois

homens esforçados relacionando-se honestamente com os respectivos instrumentos,

suando o trabalho no corpo e um amplo prazer nos sentidos: ambos surpreenderiam

divinamente os homens-ratos, pasmados de morte com aquela obra que diante dos

olhos lhes nascia.

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Yakutuba

(A Mulher-Serpente Das Duas Vozes)

Ao Janita Salomé,

pelo dom da aventura

Era uma rosa-chá no cimo dum monte, uma casa amarela ao lado da rosa que não

era uma casa, antes um castelo. Pequeno castelo desmaiado nos Alpes, telhado em

agulha picando o balão das nuvens. Era uma mulher-sereia brasileira que caiu de

páraquedas dum avião; encantava todo o mundo nas suas formas sambadançantes,

olhares salsoexóticos, ternuras tangotendentes ou boleroderretidas. Jeito que não

enganava de goibada no ponto. Tinha na sala, como dizer

living?

um sofá insuflável de esferas prateadas muito amigo dos costados, moldável às

deformações da nossa coluna. Acontece, porém, que a esta mulher – de nome

Yakutuba, “a que não espera” – foi-lhe a sorte madrasta, o destino enganoso.

Yakutuba vivia num castelo mesmo em cima da fronteira entre a Áustria e a Itália,

onde se dedicava com firme devoção, argúcia gestora, à organização duma casa

onde florescia a prostituição de luxo. Acolhia com alguma regularidade no seu châ-

teau forasteiros recomendados por austríacos ilustres – depois de massajados pelas

meninas sob o champanhe, a chuva de pétalas de boas-vindas, os senhores impor-

tantes eram conduzidos aos aposentos de Frau Yakutuba para apresentações rápi-

das, um pouco informais: se de entre cem havia um que não se mostrava de modo

claro deslumbrado com as formas insinuadas pelo corpo da brasileira na banheira

redonda e espumosa a partir da qual ela os recebia, esse sujeito era decerto um tími-

do incorrigível. Semelhava um peixe, assim imersa nos mais cheirosos sais de

banho... um peixe magro, ondulante e macio, sensível mas austero (quiçá um agu-

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lha?), de tal modo a mulher tropical era implacável no seu jeito de interrogar os

homens: interrogações, em Yakutuba, eram como um relâmpago de trovão no final de

cada frase; o discurso desta peixinha vinha assinalado por uma ruga diminuta ao alto

do nariz, entre os dois olhos negros e grandes, anunciando tempestade exigente.

Finda a fase das apresentações rigorosas, satisfeita a curiosidade anfíbia de

Yakutuba, podiam os homens retirar-se, a apaziguar no colo das meninas febres inau-

ditas, numa recôndita orgia de alcovas – e exuberante de esplêndida: com ostras,

sedas, pérolas de verdade em requebros de luz doce entre cortinas.

Frau Yakutuba inquiria a respeito de todos os assuntos: queria saber das marés

aos que, antes de pisarem firme terra, tinham chegado à Áustria por mar... encanta-

vam-na de aventuras os franceses dos balões, pela forma como descreviam dois cas-

telos no Loire cem vezes maiores que o dela (façanha que a mulher achou imprová-

vel, embora não tivesse ousado contestar abertamente aqueles que assim desdenha-

va entredentes na direcção dos seus colaboradores mais próximos). Enfim, ouvia dis-

traída as vaidades dos ingleses, aborrecida os pretenciosismos alemães – tudo isto

sem se erguer da banheira de espuma onde estava instalada soprando bolinhas,

massajando os membros submersos, ladeada por duas vetustas árvores-miniatura à

tradição bem japonesa, que lhe ornamentavam os flancos como brincos nas asas

duma mariposa para ali esquecida. Eram vegetais dobrados pela cintura, as árvores

em guarda de Frau Yakutuba, alumiadas de través por meia dúzia de velas esquivas

na chama tortuosa de tão frágil; ao fundo erguiam-se duas grandes portadas de

cobalto com acesso restrito para um algures misterioso; almofadas, jarrões e tapetes

persas dispersavam-se pelo chão negro num caos de sementeira em Abril. O ar era

doce como um veneno na presença da senhora do castelo – que, de resto, nunca fora

vista com homem nenhum –, o vinho ácido, carmim e inebriante. Havia roseiras de

pétalas brancas encostadas às colunas salmão e a voz de lira de Yakutuba era o antí-

doto ideal contra o silêncio daquele ambiente que envolvia todo o corpo numa dor-

mência irresistível, profunda.

Um sino pousado à ilharga trazia sempre a senhora do castelo, com o objectivo de

chamar esta ou aquela menina ou exigir a retirada de qualquer convidado impertinen-

te. Constava até que a Frau era difícil de impressionar, tendo por mais de uma vez

mandado que expulsassem algum hóspede menos adequado do seu château, antes

ainda que o dito pudesse afogar-se em delícias numa das suites riquíssimas reserva-

das para o efeito. Era uma casa amarela nos Alpes, com telhado em agulha, ao lado

duma rosa-chá. Vinha inquietando os mordomos que na data dessas expulsões desa-

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parecesse pela certa um dos cachorros das meninas, assim como lhes despertava

horror a aparição duma serpente esguia de pele em espelho e molhada, às malhas

ouro e carvão como um leopardo, olhos raiados em verde e um guizo trinindo na

ponta do rabo, pela cozinha nesses dias... Interrogava-se o pessoal acerca da estra-

nha relação entre aquele réptil de voz sibilante, diâmetro equivalente ao do antebra-

ço dum homem, no comprimento maior que três passadas do mesmo, e as mudan-

ças de humor da Frau na presença dos convidados menos delicados ou pouco mere-

cedores de cortesia: alterava-se-lhe a voz de tal maneira, à senhora, que era ouvi-la

transformada num assobio ensurdecedor; quando a pele começava a esverdear man-

dava que saíssem todos, trancando as portadas por dentro numa ira urgente e incom-

preensível. Depois adoecia durante dois dias, exigindo somente a comida através da

janelinha de frade em retiro espiritual. Era uma mulher-paradoxo de beleza equato-

rial, Yakutuba, a senhora do castelo das delícias escondido numa encosta menos vin-

cada dos Alpes austríacos; presidentes conhecia-os ela pelos nomes, aos deputados

sabia-lhes as manhas, dos monarcas lhe deram conta das taras pecaminosas suas

meninas mais fiéis. Eram contudo os aventureiros, uns ilustres outros nem tanto,

quem comovia sem igual o coração gelado de Yakutuba, mariposa imersa na espuma

entre dois arbustos japoneses. A ela lhe davam dó os políticos e bocejos os negocian-

tes, os artistas fascinavam-na, ao passo que dos viajantes não queria apartar-se a

patroa sem que discorressem longamente e com todos os pormenores sobre quanto

haviam visto mundo fora. Depois, o facto de serem homens vividos embalava-a nas

histórias – era o cabo dos trabalhos até que eles pudessem escapar-se pianinho para

o convívio das meninas.

A serpente luzidia que assomava na cozinha medieval em dia de expulsão nin-

guém ousava enfrentar, nem mesmo a velha cozinheira coxa e rastejante, de cabelo

armado em couve-repolho, oxigenado, olhos líquidos a pingarem pelas lajes a seus

pés (pretos, alarmados de bulldog, olhos de cachorro salsicha gigante – não é assim

que se dirá correctamente?), um aperto à altura do peito assinalável (o peito enorme),

coxas gigantescas, joelhos – não se sabe como – suportando aquilo tudo num heroís-

mo digno de medalha da Legião Francesa, do mesmo tipo daquela com se honram

os aviadores quando demonstram um grau de insanidade em plena Guerra conside-

rado suficiente para legitimar a condecoração. Era uma rosa-chá no cimo dum monte

e ao lado dela um castelo amarelo com telhado em agulha picando o balão das

nuvens.

Desapareceu certa tarde o cão da menina Cassandra, após um flibusteiro ter inva-

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dido o castelo dizendo vir a convite dum deputado eminente, patranha que a Frau

descobriu e liquidou com dois jarrões na cabeça do homem, afinal um jornalista incon-

veniente. Os guinchos mortais ecoaram pelos recantos mais escondidos do castelo,

pondo toda a gente em guarda e a postos para expulsar o intruso. Cassandra, como

as outras garotas, correu a ajudar os mordomos a arrastar o corpo para o exterior da

mansão, deixando o seu fox-terrier querido (prenda dum cliente antigo, alemão da

Bavária que por ela se tinha embeiçado) ao deus-dará pelos aposentos acetinados

das meninas. O bicho era toda a alegria das moças nos dias feriados do trabalho, cor

de caramelo nas ventas e esperto como um gibão, correndo atrás e adiante a apa-

nhar paus monte fora ou a cheirar galinholas que depois se caçavam para o jantar.

Pantonémio era o nome do canídeo, assim baptizado em homenagem ao avô de

Cassandra engraxando sapatos lá em São José do Maranhão, um octogenário distin-

to em fato-macaco ao domingo, sentado frente à igreja natal a mascar pevides de

melancia enquanto se preparava para polir todo o santo sapato de quanto diabo per-

nudo ali entrasse.

Passeava junto aos espelhos, no quarto da prima de Cassandra, Pantonémio

quando foi avistado uma última vez: depois de escorraçado o repórter intruso, nem

sinal do terrier. Chorou baba e ranho Cassandrinha quando soube da aparição da ser-

pente maldita, barriguda como prenhe, na cozinha logo em seguida: a cozinheira com

olhos de cachorro salsicha gigante mandou chamar um dos mordomos, ordenando-

lhe que trouxesse consigo uma gadanha e um serrote, para matar a serpente e des-

fazer de vez o equívoco. As moças de alterne todas se ajuntaram em roda, aterrori-

zadas, a um canto da cozinha para presenciar a matança. O mordomo mais robusto

do castelo toureou a cobra durante uns largos quarenta e cinco minutos arrancando

ais surpresos, provocando gritos assustados e suspiros admiradores na assistência –

mas ao cabo dos três quartos de hora apanhou o réptil em falso e, com uma gada-

nhada por trás, ceifou-lhe o pescoço. As meninas impressionadas aplaudiram-lhe o

feito, embora o resto do corpo da bicha continuasse a remexer e o seu sangue frio

espilrasse como uma cabidela repulsiva pelos azulejos e mosaicos da divisão. O

rapaz atirou a cabeça em assobios ensurdecedores à rua, com uma pazada decidi-

da; conquistada a cobra, faltava desvendar o monte que lhe ia no ventre e era do

tamanho dum homem em pé: puxou o mordomo do serrote, fez um traço a eito em

giz vermelho do pescoço à cauda (donde retirou um guizo assustador que o réptil tra-

zia enfiado como uma aliança nos cus), assim ao jeito de quem prepara uma cesaria-

na, e vá de cortar aquela pele tigrada e medonha sem a menor hesitação. A bravura

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Page 31: Continhos de Alfarrobeira

do rapaz mais uma vez impressionou as moças, boquiabertas à objectiva crueldade

a que assistiam. Como previsto, no interior da barriga da serpente lá bamboleava o

pobre Pantoménio, inteiro porém de barbicha e restante pêlo azulados pelos sucos da

cobra, mas infelizmente já sem qualquer vida canina dentro. Além dum ossinho com

o qual o cão se entretinha na hora do assassinato, naquela posta da serpente estava

ainda um espelho da prima de Cassandra, engolido e posto ao alto, do tamanho duma

pessoa, que justificava o ventre desmesurado (dir-se-ia alpino com propriedade), bem

como uma possível congestão.

Todos esses casos seriam de espantar, não fosse uma ocorrência essencial e últi-

ma ter vindo desinquietar o castelo e alterar para sempre a vida de quem lá morava,

no cimo dum monte pouco amarrotado, ao lado duma rosa-chá. Já as moças tinham

desinfectado a esfregona todo o chão da cozinha e o mordomo enterrado bem longe

as entranhas da cobra (que começaram a soltar um odor a putrefacção digno dum

cadáver) juntamente com o abominável sino, a cozinheira com olhos de cachorro sal-

sicha gigante dirigiu-se ao salão nobre de Frau Yakutuba acompanhada por

Cassandra e sua prima para levar-lhe o chá dessa tarde, contar-lhe com exactidão o

sucedido e acertar pormenores quanto ao digno enterro de Pantoménio. Cá fora, no

corredor, escutava-se a voz de Yakutuba, melodiosa como poucas, cantando na

banheira. Contudo, quando as mulheres deram a volta à chave argêntea no trinco e

abriram a porta no cuidado que as intimidades da patroa exigia, foi a imagem do puro

horror aquilo que viram: Yakutuba tinha a face chupada e cadavérica, a pele verde

com escamas derretendo em fumo e espumando na água do banho, e não conseguia

soltar uma só palavra, abafada a sua voz em guinchos de terror iguais aos da serpen-

te morta havia pouco.

- Não a interrompam agora. – ordenou a cozinheira manca com sabedoria – O seu

espírito está a retirar-se.

Toda ela derreteu na banheira em líquido esmeralda, deixando os bonsais à sua

ilharga floridos de ametista como pequenas buganvílias primaveris. A cozinheira orde-

nou enfim aos rapazes que levassem a banheira e deitassem a sua água não no lago

mas no riacho, lavando-a depois com petróleo, e às raparigas que retirassem dali as

duas árvores japonesas, enfeitando com elas para todo o sempre a campa de

Pantoménio. Como recompensa pelos danos causados, Cassandrinha foi eleita a

nova senhora do castelo picando nuvens com a agulha do telhado no cimo dum

monte alpino pouco amarrotado, ao lado duma rosa-chá em cuja corola agora poisam

deslumbrantes mariposas.

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Page 32: Continhos de Alfarrobeira

A Groselha que Pariu um Rato

Ou

O Violãotista Mimado

Ao Ondjaki,

pelo sonho bom

O cabo-verdiano Mané veio do Sal para Lisboa sem poiso fixo. Tinha dotes de

estrela, o cabo-verdiano Mané. Houve quem o julgasse indiano em vacations. Uma

firmeza no porte, certo ar distinto; aquela beleza que só sai quando as raças se cru-

zam e cumprimentam uma à outra muito bem cumprimentadas: se abraçam, se enro-

lam, se amam, florescem. Depois há apenas que borrifar a inflorescência dia sim, dia

não e colocar as culturas entrelaçadas em ambiente quente, para facilitar o tropismo

adicionando ornamento. César Gustavo recebeu Mané de braços abertos: com uma

cachupa numa das mãos, um violão na outra. Escolheu-se gente predilecta para fes-

tejar a chegada de Mané, mulatas bonitas, homens tocantes e tocadoiros com

sonhos-acordes morrendo fininho na ponta dos dedos.

Mané vinha da Praia, da sombra de seis irmãs no luar das ondas, seis palmeiras

de fibra ao vento. Havia o vento-rajada nos dias de Cabo-Verde, mas um bafo morno

subindo da terra podia sentir quem se sentava nas soleiras tocando até de madruga-

da. Na razão em que as ervas secam, os ouvidos crescem em Cabo-Verde. Tudo o

mais é Sal ubridade (nas ofertas vindas do fundo do coração), ou Sal ombridade (nos

abraços para aconchegá-lo). O mar turquesa entra pelos olhos adentro, faz fantasias

crescerem nos corpos esbeltos, escorregadios.

Dona Rigoberta, larga nas cinturas de apetites grandes, não tem quem a financie:

marido morreu faz seis anos quando Mané – seu filhinho único menino – decidiu vir

para Portugal. Querido Mané das tendências de sua mãe: agora longe, quem o diria...

tocador de guitarra como nenhum outro moço improvisante, não só na Praia como

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Page 33: Continhos de Alfarrobeira

nas nove ilhas por inteiro (Mindelo incluído). Mané foi crescendo depressa sob o sol

abrasante, os mergulhos mais fundos nas águas atlânticas. Tinha um grupo de meni-

nos e meninas na altura em que começou a namorar, lá pelos catorze; fez escola de

xoxo, veio a grande paixão pela Cristina. Não bebe pilecas, não planta descalço:

homem cauteloso. O grupo passa tardes pelas ruas e noites quentes ao serão em

mesas de bancos corridos, comendo, bebendo, cantando toda a gente e cada qual

por sua vez sem desculpas de aclarar gargantas ou rouquidões imprevistas.

Foi um menino bom e mimado, Mané, construindo seus próprios brinquedos – car-

ros em latão, rodas em madeira, fios de pesca –, absorto de compenetrado nas cóco-

ras duma esquina qualquer. Foi menino-peixe fora de água ordenando casas e multi-

dões, exércitos inteiros no chão de poeira. Ditador exigente, aventureiro, pirata; foi

cowboy e pelintra, médio esquerdo ou direito, avançado, zagueiro atento a resguar-

dar uma baliza erguida a pilares de lata mas invicta na derrota goleada. Correu nos

morros juntando calhaus para as cabanas de fingir, aglomerou conchas beijando-se

num colar de presente, anzolou percas no sassarico dos botes das ilhas. Chapinhou

nas vagas seus caprichos e ilusões até a um amanhecer adolescente.

Manezinho veio ao mundo a quatro de Fevereiro de mil novecentos e setenta e

sete numa manhã de neblina – dom sebastiãoinsularidade –, o número sete na pro-

dução de dona Rigoberta e Francisco de Assis, que até à data só era esmerada nas

rosas-palmeira femininas em linha de montagem, a perfazerem seis nuns doze anos

totais. Nessa alvorada andava Francisco caçando saias1 no mar chico2, veio Teodor

di Nha Juliet esperá-lo na praia da boa-nova, nascido o garoto de bela saúde e a mãe

mantendo aquela que trazia. “Rosa Xavier presidiu ao parto puxando/ a crianço para

a madrugada rubra e macia/ logo assim se soube que o nascido seria sem engano/

um lindo Mané no lugar de Maria” – anunciou Teodor a Francisco exausto, trazendo

também umas quantas palombetas3 ainda lagarteando na quilha do bote molhado.

Deste modo se baptizou Mané o único rapaz na descendência de Chico Assis e dona

Rigoberta, destinado a mergulhador de lagostas ou pescador cá dos cimos na ajuda

do pai, preciosa para nove bocas. O menino cresceu – apadrinhado por Rosa e

Teodor di Nha Juliet –, conhecendo de cor as diferenças entre bedja, dorado, tainha,

merr, palombeta, papagaio, benteidja, sarbonete, garoupa, moreia ou salmão, goraje,

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1 Espécie de peixe cabo-verdiano.

2 Diz-se do mar plano ou liso, sem ondas.

3 Tipo de peixe pescado em Cabo-Verde e utilizado, por exemplo, na sopa.

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saia, melon e serra4, além de assustado dos ouvidos pelos monstros das profunde-

zas, que lhe ensinaram mais que tudo o respeito pelo mar. Foi esse respeito que, lá

pelos treze anos, o levou, para grande desgosto do pai, a desistir do mergulho em

favor de buscar sua arte na música da guitarra.

Mas já desde bem pequenino Mané mostrava uma outra inclinação atroz, a saber:

o vício da groselha. Ele tomava-a ao desjejum, ao almoço, ao jantar e na madruga-

da, chegando inclusivé a levantar-se durante a noite para tomar um copo geladinho.

- Tu ganhas a língua vermelha! – ameaçava dona Rigoberta, seu único ameaço ao

menino tão predilecto.

O menino, porém, nem ver a ouvia, bebia seu pozinho e escapava-se no trilho até

à praça das brincadeiras fundamentais. Aziago o dia em que outro garoto com pedra-

da certeira partiu um dente de leite a Mané e o menino, contente, apareceu em casa

a mostrar à sua mana segunda a contar do fim (ou melhor, das primeiras parições da

mamã) groselha nascida na sua boca, todo convencido que em botando açúcar

podia-se beber e que seu corpo era feito de groselha na porção em que a água o

constitui.

- Se eu faço arranhão sai groselha! – teimava o menino fascinado para sua mana

desesperando.

Outro traço distintivo de Mané é a boina aos quadrados amarelos, que cresceu

com ele na cabeça em idade e se moldou ajustando-se-lhe:

- A boina fala comigo! – garantia o menino mimado para não tirá-la na hora de dor-

mir e poder flutuar com ela na banheira. Nem mesmo rente ao mar Mané se aparta-

va da boina e quanto mais o sal a descoloria mais o rapaz se afeiçoava a ela. Mamã

e esta ou outra mana fizeram outra e outra boina, sempre iguais no tecido guardado

durante anos num armário para salvar de virtude a sorte de Mané, ou fazer o moço já

jovem um brilharete ao violão em seus tons de chapéu douralíneos.

Mané enxotava enérgico o porco pelos oito ou nove anos e não suportava seus

grunhidos animais de maneira nenhuma:

- Só gosto di bicho d’água! – gritava após espantar o animal, enojando-o de peço-

nhento. Negava-se nessa altura a comê-lo pelo Ano Novo, preferindo o djeu5 menos

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4 Diversas variedades de peixe cabo-verdiano, segundo os nomes crioulos.

5 Peixe em português designado por ilhéu, da família da cavala, apreciado por pescadores desporti-

vos e muito usado nas ementas dos hotéis em Cabo-Verde, ainda que de menor preferência entre os

locais.

Page 35: Continhos de Alfarrobeira

gabado de seus pais acompanhado de... groselha com sumo de limão. O horror dos

porcos passou na juventude, quando o amor das garotas foi desvelado: Juquim par-

tilhava esses fervores de Mané pelas moças cochichando tardes inteiras na orla da

praia ou acompanhando-o até junto delas numa camaradagem comovente.

Não conheceu outros portos, Mané, antes dos dezasseis na costa de Marrocos,

abrigado de medo na tempestade. Por essa idade já sua ideia rondava toda em torno

da música, pranto llorando solo e infinito até aos equadores da morna e às amplidões

de anca na coladera, na sambuna ou na cantadeira de finaçon6. Treza di Nha Juliet,

filha de Teodor, tornou-se sua melhor paixão, querida em casa de Rigoberta como a

sétima fêmea-filha dum harém desconhecido e exigente – Mané talvez o maestro

desse conjunto ao seu redor; órbitas do seu sol essas mulheres, algumas já casadas,

sentiria quem sabe o rapaz. Cresceu nos bares, trocando a groselha por grogue, as

devinas7 e coladeras por funaná8; manteve porém a boina e acrescentou-lhe uma

camisa branca ora aos peixes, ora aos barcos, ora às borboletas, suas preferidas de

asas. Conheceu dólares pela mão dos primos e Estados Unidos numa viagem curta;

regressou depressa a Cabo-Verde a tocar nas saias de suas irmãs: os bancos que

mais o fascinaram foram os do coral do Tchuklasta vistos lá de cima nos olhos do

avião, grande que lhe parecera à partida e pequeno se mostrando no regresso para

tanta gente apinhamontoada.

Mané sachou milho e transportou correios durante o dia para ajudar à mamã

depois que Chico de Assis viu explodir-lhe na cara um motor de barco, enquanto toca-

va na madrugada pelos hotéis; trocou Treza di Nha Juliet por uma namorada estran-

geira e de novo voltou ao colo quente de Treza, mãos abertas para ele, a rapariga

toda humilhada. Por causa das desavenças com Treza e da morte do pai, a boina de

Mané começou a andar cambaleante do grogue, os acordes saindo do violão desa-

vindos com as notas afinadas e protestos nos hotéis por causa que os clientes insa-

tisfeitos na melodia. Treza se abandonou de Mané e foi a gota de água: cabrito mais

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6 Sambuna (parte dançante) e finaçon (composição poética geralmente entoada por mulheres, consis-

tindo em conselhos ou versando sobre atitudes a ter em sociedade) são as duas partes nas quais se

divide o batuque, ritmo típico da ilha de Santiago e de origens marcadamente africanas, tal como o

funaná.

7 Músicas religiosas.

8 Ritmo nascido do casamento duma gaita ou acordeão com um ferrinho, mas que actualmente pode

incorporar até elementos electrónicos.

Page 36: Continhos de Alfarrobeira

mole de embriaguez nunca na nossa terra antes nem depois, que metia dó de se res-

pirar o bafo aguardento.

Foi então que César Augusto, anjo-da-guarda de Mané desde as infâncias-patifa-

rias nas quais o menino se enrolava, mandou chamá-lo de Portugal, onde se dera

bem cursando e trabalhando – sabia César sobretudo como esse jardim de fêmeas

sufocava Mané, comendo-lhe os pés passeantes nas flores carnívoras do pecado. A

recepção foi em grande, entre amigos e parentes afastados; na festa apresentaram

Mané a Mariluna, que em suas curvaturas e simpatias logo fez o rapaz enterrar

memórias amargas de Treza. Ficou fascinado descobrindo a luz da noite abrindo

estradas no rosto de Mariluna e o seu braço trémulo tocando o dela, encantador e

macio, debruçado na varanda da sala festejante sobre a madrugada em flor. Mané,

de sapatilha amarela condizendo na boina, negou o grogue da noite, o que aos res-

tantes convivas muito surpreendeu; assim, debruçado na varanda com o cabelo de

Mariluna encaracolando a seu lado o vento das estrelas, teve um apetite repentino:

- Sabe o que eu queria agora, Mariluna? Uma groselha bem geladinha... Podia

morrer feliz aqui a seu lado.

A rapariga soltou uma gargalhada animada:

- Você também tem o vício da groselha?! – só então Mané reparou numa pulseira

com ratinhos de prata, seguindo todos em fila, grandes orelhas e olhos encarnado-

rubi como as bagas da groselha, que acarinhava a noite com brilhos no pulso de

Mariluna – Essa pulseira fala comigo... – justificou ela envergonhada – É uma excep-

ção: só gosto di bichos d’água! – e a rapariga deixou escapar de novo uma risada

muito límpida – Mas, por favor, bô não me fanique aqui, que eu num tenho grande

ouvido prá iscutá música di defunte...

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Page 37: Continhos de Alfarrobeira

A Respiração

Ao Doutor Miguel Lobo Antunes,

por tudo aquilo que tem dado às gentes de Lisboa

Ao Miguel em Coimbra,

pela companhia tão afável e generosa num momento difícil

Depois da faculdade eu tive de aprender de novo a pensar porque já não me lem-

brava como é que era. Ou melhor: tive de aprender outra vez a ser genuíno, espon-

tâneo e congruente com aquilo que sinto. Há sebentas que limpam o sebo à gente,

nesse aspecto. Outra virtude que reconquistei foi a capacidade para contar histórias,

parece-me – a meu ver essas duas habilidades estão ligadas de forma íntima. Ora

aqui vai, assim sendo:

O canto abrupto dos pássaros irrompeu nessa manhã com uma força suprema.

Chilreava o avião por cima deles nas altas nuvens, as amoras silvestres pendiam

plantadas de banda em ambas as bermas da estrada. Enrouqueceu o farol um vento

mais passageiro, iluminaram a escotilha do barco quantas águas tem o delta do rio;

T. Dopman vinha andando descontraído pelo caminho de poeira áurea abaixo, sus-

pensórios e tudo. Trazia galochas, uma varinha de salgueiro ao ombro donde pendia

um balde nas suas costas. Vazio? Pendulava no ar.

Na curva do caminho um veleiro de certo modo inesperado inchou subitamente a

vela de lixívia ao centro do delta escamoso, estilhaço de mil espelhos dispersos. A

manhã clara resplandecia, fazia brilhar a grama verde encerada após as chuvadas.

Adiante, um campo de beterraba viçoso anunciou boas colheitas após uma escassez

forçada de dois anos, pela instabilidade do clima e o frio rigoroso que assolara os

campos, com suas camadas de geada transversais caindo do céu, a queimar cada

pequena porção de solo cultivado.

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Page 38: Continhos de Alfarrobeira

É verdade que T. Dopman não se movimentava com a mesma facilidade desde o

acidente, a perna do joelho fracturado sempre a mancar como um veterano de guer-

ra que arrastasse um triste troféu de batalha na ressaca dos heroísmos passados. O

membro de plástico não lhe permitia fazer o caminho senão no dobro do tempo de

antigamente, mascando amoras com as suas bochechas vazias, que às vezes se

prendiam nas falhas dos dentes. Juntamente com o coxear penoso, o pêndulo à rec-

taguarda anunciava-o indubitavelmente: era ver os pescadores acenando ao longe,

homens que sabiam que embora ele os visse não corresponderia ao cumprimento de

bons-dias. Não por má-criação, casmurrice ou zanga. Era o seu jeito de ser: todos o

conheciam nas redondezas e em ocasião alguma lhe assistiram a uma maneira de

estar diversa daquela, no centro dum triângulo entre o sisudo, o invisível e o bizarro.

Puxava com a mão esquerda um suspensório enquanto mascava os frutos maduros

das barreiras, serpenteando na estrada com a lentidão da preguiça e o entusiasmo

dum moribundo. Os dedos iam-se-lhe enchendo de nódoas cor de vinho à medida

que se aproximava do barracão das minas, um aglomerado de tábuas esconsas pre-

gadas umas às outras e encimadas pelo telhado em chapa de zinco, pertença de

Dopman, onde ele costumava passar grande parte dos seus dias.

Um batel cruzou o rio carregando um amontoado de maçarocas de milho com tons

casca de pêssego a incharem ao sol, rebentando os grãos na travessia para dentro

do casco: aguardava-o deste lado um grupo de mulheres e crianças, descalças na

praia de areão, com grandes alguidares em madeira à cabeça, dentro dos quais

transportariam o cereal para um terreiro largo e barrento depois da algazarra que se

seguiu à chegada da embarcação, que festejaram com gritos, diálogos agitados e cor-

rerias pela beira da água.

T. Dopman abriu a porta do barracão com um simples impulso, sentou-se num

balde empinado – o seu posto de vigia – e pôs-se a tergiversar os comentários que

aquelas canalhices de catraio habitualmente lhe suscitavam com uma melodia asso-

biada a bom ritmo e feliz, vinda de tempo muito antigo. Iniciou com uma navalha a

escultura do dia, escavando e polindo os troncos convenientes, amontoados no balde

que trouxera às costas. A varinha de salgueiro não era um hábito seu, mais habitual

seria trazer uma enxada ao ombro: encostara-a de pé à parede do barracão, do lado

de dentro, agasalhada a um canto do frio da manhã. Enquanto assobiava, saíam-lhe

formas redondas e alongadas das unhas sujas pela madeira, dos dedos gretados e

espessos com que acariciava caules ou recortava ramos como quem passa as mãos

pelos cabelos duma filha. Com ternura.

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Page 39: Continhos de Alfarrobeira

O barracão velho das minas foi erguido pela primeira vez na época em que os ter-

ceiros donos da exploração de volframite ali chegaram, faz pouco mais dum quarto

de século, e quiseram dois palmos de terreno protegido onde descansar e cozinhar

depois dos trabalhos. Claro que ao fim do dia recolhiam às pensões da cidade, mas

aquele era um abrigo oportuno para as bátegas de água, as contas de lucros e gas-

tos mensais, a refeição pouco mais que frugal do meio-dia, e até a satisfação momen-

tânea dalgum desejo mais encarniçado pela mulher esquecida dum empregado-tou-

peira à deriva nas funduras da mina. Nunca se queixaram quantas de lá saíram,

nunca disseram nada aos companheiros todos aqueles que as viram abalar do abri-

go modesto dos patrões.

Dopman é filho dum refugiado da IIª Guerra que acabou nas minas a labutar,

embora, ao que se conta, tenha deixado em Berlim uma casa de comércio de tecidos

com grande sucesso e clientela fixa, e um escritório de consultoria frequentado pelas

personalidades mais ilustres da cidade. Constituiu sempre um mistério para as gen-

tes da mina, incluindo os seus colegas de escavações, com quem passava dia após

dia debaixo do chão partilhando intimidades, comida, respirações e miséria, em que

tipo de afrontas ao regime de Hitler se vira envolvido ou colaborara o pai de Dopman,

contudo sabia-se que o papel activo na luta política lhe custara aquele trabalho mais

pesado longe da sua terra, apesar de, após a vitória dos aliados, se ter tornado claro

que a permanência era já uma estranha opção ou uma fuga forçada, tendo em conta

os aliciantes da anterior vida no estrangeiro e a promessa de uma reconstrução soli-

dária, prenhe em igualdade de direitos e oportunidades de negócio de toda a espé-

cie, alimentada pela nova ordem mundial. A família estrangeira adaptou-se sem gran-

des dificuldades às árduas terras da mina, tão hostis para com os forasteiros na secu-

ra do solo quanto na rudeza das gentes, mercê da sua cordialidade desarmante e dos

bons-modos que granjearam respeito entre os mais; a má-sorte que os afligiu veio-

lhes antes do próprio corpo, pois antes que T. completasse os vinte anos vira já mor-

rer a mãe e uma irmãzinha tísicas, além de dois irmãos varões que se finaram com

moléstias contraídas ou herdadas pelo trabalho nos túneis, debaixo de terra, a respi-

rar pó e pedaços de calhau com os ossos húmidos amolecendo até ao tutano, rendi-

dos ao caruncho.

S. Manfried chegou à porta do barracão a chamar por Dopman com estridência.

Ele olhou a visita calmamente e de novo se concentrou no pedaço de madeira que

tinha entre mãos e ia ganhando contornos que surpreendiam, formas doces, arredon-

dadas, comoventes, como que brotando generosas dos mistérios insondáveis da

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Page 40: Continhos de Alfarrobeira

memória ou da fonte que rega o coração. A mulher vinha correndo encosta acima sem

preocupações de carreiros ou cardos no caminho, chegou à porta do barracão e

encostou-se na ombreira observando T. numa perspicácia feliz. Era uma trigueirinha

miúda de olhos grandes e baços, voz de soprano, com um pequeno dedo a mais na

mão esquerda, saindo do mindinho, que sempre ocultava atrás das costas por vergo-

nha ou reverência na presença de pessoas estranhas à família e que não pertences-

sem, por outro lado, ao círculo das suas amigas favoritas, um grupo de quatro ou

cinco moçoilas novas e radiantes que cultivavam o costume de juntar-se pelo final da

tarde numa reentrância da margem do rio discutindo rapazes e comparando formas

com o mesmo fervor com que outros se iniciam no jogo político, na poesia ou nas

artes da guerra.

- Que foi, Sara? Que fogo trazes no rabo para justificar esses gritos? – quis saber

Dopman sem desviar a atenção do pequeno tronco para a rapariga, pretendendo

esconder com o tom intratável aquela ternura mal-disfarçada e casmurra que todos

quantos convivessem com ele tão bem sabiam destrinçar como marca típica do seu

carácter.

A menina Manfried não respondeu de imediato, ficou a mergulhar a vista no objec-

to que tomava forma diante dela à medida que as mãos de Dopman descascavam

camadas de pau como se fosse uma cebola que um cozinheiro preparasse para o

refogado; T. esculpia diante dela com a facilidade de quem molda o barro e a astúcia

dum lenhador experimentado. Sara não deu nem mais um passo atrás ou adiante,

sentia-se imergir num mundo só dela onde a figura na mão de Dopman estabelecia

uma relação com a fantasia e o poema, a realidade e a imaginação; nunca vira criar

coisa mais bela, tão-pouco a deslumbravam assim as formas discutidas entre moças

ao poente, considerações banais a respeito dos atributos físicos dos machos novos

nas redondezas. Um espirro fê-la expor a mão defeituosa levando-a ao rosto e de

novo acordou T. Dopman do torpor embevecido em que aquela actividade o mergu-

lhava.

- Então, rapariga, vais ficar aí especada? Tanta aflição por causa de quê?

S. Manfried voltou a esconder a mão de seis dedos junto aos rins e no seu rosto

uma luz levemente embaraçada principiou a brilhar de mansinho.

- Agora... encostei-me aqui porque já não me lembro. – confessou ela hesitante,

falando baixo como as pessoas que vão visitar as igrejas.

- Ora raios! – explodiu Dopman – Já não se pode ter sossego nesta terra, há sem-

pre esta garotada a atazanar!!

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Page 41: Continhos de Alfarrobeira

Sara estremeceu um pouco com os gritos do velho, casou a mão direita com a

esquerda atrás das costas, deu um passo adiante e atreveu-se a declarar, mirando a

figura que nascia com a maior das curiosidades:

- Não se zangue comigo, senhor Dopman. – depois tomou fôlego a preparar o des-

fecho – Desculpe que lhe pergunte, mas o senhor voltou a esculpir?

Depois que terminei a faculdade aprendi a ouvir de novo o suspiro vivo das coisas,

a saltar poemas sem catalogá-los, a avivar na íris o tom animal dum quadro robusto.

A respiração das cores transcende etiquetas, os sentimentos em nós despertos

sobem como um vapor – da cabeça para o coração – que nenhuma rede de caçar

borboletas poderá alcançar; há formas que emergem nos nossos dedos para as quais

não conseguimos um esconderijo eficaz. Reaprendi a pensar começando pela respi-

ração (assim mesmo, pela respiração...) e as histórias vieram logo em seguida a pedi-

rem para ser contadas, como moléculas de ar que forçassem devagarinho o diafrag-

ma.

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Ana

Ao João Botelho,

por ter lido Séneca e não só

O seu saber sonhador era mais que puro orvalho. Corria em fragrância de neve,

leitosa, escorrente e húmida. Era uma rapariga magra, de cabelo liso e castanho

roçando-lhe abaixo da omoplata. Cruzava às vezes um membro em p, biqueira no

chão, sobre a outra perna estendida – encostada a alguma parede, mãos imensas

sobrepostas nas cruzes, dedos esguios de rapina. Ria com uma ironia vivaz e prag-

mática, como quem rasga papéis. A pele refractava-lhe oiros e canelas no entretanto,

simulando o seu perfume uma laranja ácida aberta ao meio ‘inda agora por faca bem

aguçada.

Na cidade onde vivia o céu era violeta a maior parte dos dias: por vezes acasta-

nhava, outras azulava para o índigo. Escasseavam copas e ramagens nas árvores

todas-tronco da sua terra, isto porque as folhas mais facilmente se convertiam em

espinhos impiedosos que em verduras de cetim ondulosas no vento. Como folhas

reluzentes, não abundavam outrossim meio-idosos na cidade: pelas ruas corria a

criançada descalça, pelejavam mendigos e cães famintos, gente de passagem para

melhor vida ou fugindo apenas desta, da secura do pó na erva rala ou dos inchaços

nos pés estraçalhados dos cardos. Paredes de oca amarela, enxofrosa, contra o céu

purpúreo; varandins cor de poejo onde os velhos repousam da vida: pela manhã res-

sacam da insónia, a seguir ao almoço embalam o calor, à tardinha vigiam o horizon-

te com olhos como pontinhos de chiste negro enquanto o céu ametista se converte

em azuis profundos e carvão. Crianças e velhos e mulheres pouco ambiciosas guar-

dou a cidade no ventre, expulsando demais habitantes com uma fúria eruptiva e

agreste. Há jazigos de cobre nas entranhas da terra, calcário à superfície que indús-

tria alguma aproveita, cansadas as mãos, cansados os homens, vazias as cabeças e

42

Page 43: Continhos de Alfarrobeira

quentes do álcool.

Azáleas abandonadas nos quintaizinhos frente às casas, soçobrando no terreno

árido sem uma gota de água que amenize a agonia ou adie a murchidão. Gatos ano-

récticos com os ossos a furar a pele na passada, restos estilhaçados de vasos de flo-

res outrora ostentativos. Uma mulher a fumar cachimbo encostada a um pilar que

serve de suporte ao arame da roupa: tem olhos pequeninos e fixos de toupeira, bri-

lho vivaço, muitas pulseiras garridas no pulso esquerdo, uns botins em pele de car-

neiro bastante usados. Recebe-me com reverência e uma interjeição trocista que dis-

farça embaraço, suspiros enfadados, uma confusão nos gestos algo nebulosa. Entra

em casa e arrepende-se, volta atrás, regressa sem ter cumprido, aparentemente, acto

algum imprescindível no momento, desfia uma colecção de movimentos contraditó-

rios junto à lareira, leva as mãos aos brincos de prata (parece que com o objectivo de

se certificar que continuam no lugar onde os pusera pela manhã, embora decerto

aquecidos pelo fogo na sala), senta-se num pouf de palha entrançada a desfiar as

contas dum terço que retirou com brusquidão duma caixa de marfim poisada sobre a

pedra do fogão. Ofega de entusiasmo na oração, o olhar converte-se numa espécie

de beatitude obsessiva e assustada, ela verte um tinto para dentro dum copo em

madeira pintada de branco e bebe de um trago – como que para não sentir o sabor

do líquido na garganta. Desenha uma careta logo que termina; tem os membros ten-

sos e enrijecidos, é magra como um gafanhoto, no dorso dir-se-ia que asas de voar

países à semelhança dos anjos ou das pragas daquele insecto, acentuando-lhe de

peso a corcunda. Oferece confiança a quem se abeire dela e lha ganhe com quanto

suor tiver no corpo, vende e dá protecção em troca das riquezas mais insuspeitas. É

aquele género de mulher que abdica dos homens com facilidade – e tem o dom de

adivinhar aí o passaporte para ser livre –, inclusivé dos prazeres que eles proporcio-

nam por considerar que são fraca paga para as arrelias por eles também causadas,

além de se conhecer tão bem (do direito como do avesso) que alcança prazer sozi-

nha de magnitude incomparável àquele que a inabilidade dos varões banalmente per-

mite. Tem as saias leves e uma fundura nas expressões que faz espécie.

- Então você veio por causa dela? – pergunta-me de costas, súbito em pé para

mais uma tarefa indecifrável, com um tom de voz ameaçador e cáustico.

- Sim. – aquiesci ruborizado, esfregando as mãos uma na outra apesar de sobre-

aquecidas.

A mulher impacientou-se, entrou com fúria na cozinha e bateu com a porta.

Surpreendi-me a mim próprio não me achando nada surpreso; nem me mexi.

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Page 44: Continhos de Alfarrobeira

Também não desviei o olhar. Esperei que ela voltasse com o envelope nas mãos.

- É isto o que procura? – inquiriu abanando o sobrescrito amarelo na tenaz de duas

unhas.

- Não propriamente... – confessei desiludido – Eu quero-a é a ela.

A mulher exalou fumo pelas grandes narinas, deu uma palmada na coxa com a

mesma mão com que segurava o envelope e sentou-se a olhar para mim, de repen-

te muito séria:

- Está certo daquilo que diz? – quis saber a fêmea em tom diplomático, abanando

as múltiplas pulseiras de tonalidades sortidas.

- Nunca estive tanto. – respondi-lhe desviando o olhar para o chão. Confesso que

me senti envergonhado nesse instante, como se aquela mulher mais velha tivesse

conseguido pôr a nu as minhas fraquezas mais insondáveis e delicadas – com maior

cuidado escondidas – num passe de mágica fenomenal. Ela escondia a ponta dos pés

debaixo do tapete e tinha o tique de ir roendo as unhas à medida que escrutinava

cada centímetro de pele, o mínimo movimento do interlocutor, num estado de alerta

invejável. Sucedia também inclinar a cabeça para trás e inspirar por momentos, como

se se alheasse da presença duma segunda pessoa na sala. O seu rosto era grave e

doce em simultâneo, duma sobriedade calma que se adquire com os anos e a expe-

riência de vida; por largos minutos permaneceu em silêncio assim agachada no chão

com o copo aninhado entre as mãos e as mãos aninhadas no colo generoso, tenso.

Nas íris uma densidade tal que era impossível decifrar-lhe o mínimo pensamento, ter

um eco das impressões que os outros lhe causassem por detrás daquele espesso

nevoeiro que se estendia da pupila para fora e tornava opaco o brilho nos seus olhos.

- Quem foi que lhe disse que eu viria à procura dela? – quis saber, exigindo uma

explicação para disfarçar o nervosismo.

- Ninguém me disse, não seria necessário dizer. – foi a resposta que obtive – Mas,

explique-me, por que razão insiste tanto? Está mesmo certo do que diz? – perguntou

a mulher cada vez mais intrigada, ou assim querendo parecer.

Desta vez fechei eu os olhos escassos segundos por meu turno, como que toman-

do coragem para a ousadia da explicação, ganhando alento criativo para ser suave

na prosa.

- A verdade é que eu amo-a, minha senhora. – depois olhei a mulher nos olhos com

determinação. – Essa carta que me mostra enviei-lha eu: é dela e por isso não a

quero, contudo muitas outras guardo com grande estima por minha vez, que essa

donzela me enviou e que a senhora desconhece: desfiam segredos e intimidades, ter-

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Page 45: Continhos de Alfarrobeira

nuras das mais divinas, por dinheiro algum do mundo eu consideraria trocá-las. Desta

sorte lhe peço que guarde essa carta com desvelo e não a dê a ninguém, nem mesmo

a mim que a escrevi, pois é da Ana e uma afeição recíproca pode ela manter pelos

meus escritos, a qual a senhora desconheça. – esta afirmação tinha um travo desa-

fiador propositado no tom nobre em que a proferi, o jovem tímido e vacilante que apa-

recera à porta da mulher agigantara-se num sujeito determinado, corajoso, mordaz,

um tipo que sabia realmente o que queria e lutava por isso, ou ao menos fingia-o com

convicção.

- Eu quero-a a ela, minha senhora. – a voz tornou-se-me mais grave quando repe-

ti isto, forte e contida mas aguçada como uma embalagem de agulhas, exigente.

- E estás certo de quereres isso? – insinuou outra vez a mulher amarga de expres-

são.

- Como ninguém mais no mundo. Minha senhora. – insisti.

Ela revolveu-se um pouco no pufe, esfregou as ancas impaciente, desviou o olhar

do meu para a lareira acesa. Era em faixas laranja e douradas a cor do lume e não

se percebia a razão de ser das chamas numa terra tão quente.

- Pois bem – anunciou ela –, a Ana, a tua bem amada e querida Ana, já não está.

– sacudiu as pulseiras violentamente – Ou pelo menos não da forma como deseja-

rias.

- Que diz?? – a velha começava a irritar-me com veemência – Ela viajou?? Não,

não pode ser: apesar de só mais tarde eu ter lido as cartas que me enviara, expliquei-

lhe todas as minhas razões nesse sobrescrito que aí tem e que vejo aberto, logo,

decerto ela as soube... Expliquei-lhe além disso os meus sentimentos por ela, no que

a Ana me correspondeu. E anunciei que viria, ela jamais partiria sem mim!! Diga-me,

minha senhora, pelo amor de Deus, aconteceu alguma desgraça com a minha Ana??

Diga-me!

A velha sorriu, puxou uma espécie de gorro em flanela para a testa:

- Descansa, rapaz, ela não morreu. Está simplesmente... mudada.

- Mudada?! De que raios me fala, senhora? Quer explicar-me?

- Explico, sim. – suspirou a velha – A tua Ana, aquela formosa rapariga cujos con-

tornos bem saberás de cor mesmo sem nunca lhe teres tocado – e não me interessa

se tocaste ou não, para o caso...

Quis completar-lhe o retrato:

- Sim, a Ana, cujo saber sonhador era mais que puro orvalho: corria em fragrância

de neve, leitosa, escorrente e húmida. Era uma rapariga magra, de cabelo liso e cas-

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Page 46: Continhos de Alfarrobeira

tanho roçando-lhe abaixo da omoplata. Cruzava às vezes um membro em p, biquei-

ra no chão, sobre a outra perna estendida...

- Basta! Não preciso que me descrevas a minha filha. – interrompeu a mulher com

brusquidão e como que incomodada, principiando a chorar mas humilhada por mos-

trar essa fraqueza na minha frente, o que lhe despertava uma ira difícil de conter –

Também eu sei de cor a aparência da Ana, embora esse saber derive da convivência,

do hábito, e não dum certo costume de espiá-la com cobiça...

- Mas eu travei amizade com a sua filha...

- Talvez. Porém desde cedo te conheci – conheceu toda a gente – inclinações por

ela. – disse a contragosto.

Um gato verde-azeitona saltou, assustando-me, para o tapete frente à lareira e

começou a desenhar um três em torno das pernas da dona. Foi o gato mais estranho

que vi em toda a minha vida: nos olhos ora felino ora humano, o miado substituído

por um choro de hiena e bigodes encaracolados, transparentes de navalheira, largos

como as unhas dos mortos. A mulher limitou-se a comentar, desculpando-o:

- O Pitágoras foi um bom homem... hoje, enfim, anda nervoso. – suspirou e mudou

de assunto – A tua Ana, meu caro, está além naquele cabeço. – disse a velha apon-

tando a gelosia aberta com o queixo.

- Naquele cabeço?? Mas não vi lá figura alguma de mulher à vinda...! – e por ins-

tantes o coração encheu-se-me duma esperança furtiva.

A dona do gato bebeu o copo de vinho até ao fim e esmurrou a mesa com uma gar-

galhada. Começou a fechar e abrir as pernas muito depressa tocando com os joelhos

um no outro, num estranho movimento. Desapertei a gola, limpei o suor do pescoço:

- Está calor aqui... Mas onde raio está a Ana?

- Deixou de ser minha para ser tua e agora não é de ninguém. – sorriu complacen-

te – É a vela do moinho que além vês. Foi da sua vontade e assim se cumpriu... Com

a ajuda deste terço, rezo todos os dias para que mude de ideias... – depois voltou a

arrumar o fio na caixinha.

Dirigi-me à janela e olhei o monte: uma vela enfonada, naquela terra seca e iner-

te, sem vento, fazia o moinho cantar trovas de amor de cada vez que girava ao sabor

dum sopro desconhecido – dir-se-ia que, embalada na própria música, fabricava a

mesma vela toda a aragem necessária ao seu deslocamento.

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Page 47: Continhos de Alfarrobeira

Cristais Como Nós

(Aula de Geologia Social)

Ao Rui Horta,

pelo extraordinário trabalho

Ao Eduardo Agualusa,

pela fascinação menina e astúcia escandalosa

Neste prédio típico, numa rua típica do Bronx, habita uma família peculiar: a mãe

é transparente, o pai transparente e o filho cor de vidro. Da primeira vez que me cru-

zei com eles na escada contagiei-os de verde, agora tenho o cuidado de pôr sempre

sal nos bolsos para não desbotar a minha cor se por acaso encontrar o clã no cami-

nho. Da última vez deu-lhes uma trabalheira e algum prejuízo terem de passar o resto

do dia de molho num tira-nódoas verdadeiramente eficaz... Curioso é o facto de as

suas expressões nunca se alterarem grandemente – ou então sou eu que não dou

pela alteração, o que também é provável dada a ausência de tonalidade ou sombra...

–, isto tendo em conta que em nenhuma outra ocasião poderia a expressão “tem uma

alma translúcida” ser aplicada com maior propriedade. Ao espelho do elevador não

vejo ninguém quando subo com eles, contudo os sapatos e os atacadores estão lá,

assim como os acessórios de mulher (a malinha de mão e os brincos da mãe) e a

mochila escolar do miúdo, pouco distante do seu skate. Na realidade, estou a ser

pouco preciso: para além desses objectos pessoais, uma outra coisa está, como é

óbvio, muito presente: no caso, a voz e os sons. A voz do pai é árida e fria, com um

travo de mel na direcção do garoto e uma rouquidão de charuto inconfundível; a mãe

fala como se estivesse agachada debaixo dos móveis ou escondida atrás da porta ou

pisando um charco de piranhas ou procurando não despertar um ladrão (ultimamen-

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Page 48: Continhos de Alfarrobeira

te tenho notado alguma tensão matrimonial); o filho produz uma grande variedade de

sons guturais nas brincadeiras bélicas com que invade o ascensor, o átrio do prédio

ou mesmo os patamares da escada, dizimando plantas de andar em andar; a sua voz

de meio-soprano pré-pubertária evola um denso véu de neblina pedinchona e capri-

chosa, ao jeito de poluição sonora, em torno dos restantes inquilinos, afectando-lhes

gravemente a saúde dos pulmões consumidores, pelo entupimento brônquico que as

constantes exigências produzem ao calcular mental e involuntariamente, o incauto

vizinho condicionado aos cifrões, a soma que a satisfação dessas mesmas exigên-

cias implicaria. Assim se têm multiplicado desmesuradamente as infecções financei-

ras por todo o prédio, patologia das sociedades capitais de resto mortal na mesma

proporção em que a tísica ceifou vidas no início do outro século. Moléstia negra,

ostracizante de facto.

Um outro sentido permite distinguir claramente a presença da família invisível: pelo

olfacto é-nos dada a conhecer a preferência do pai em relação às águas de colónia

frutadas, o gosto da mãe pelos perfumes quentes ou a data da última partida de bas-

quetebol do miúdo sem recorrer ao carbono catorze (embora isto exija um grau de

precisão nasal só ao alcance de algumas elites treinadas – autênticos espeleólogos

olfactivos – ou, em alternativa, dos cães-polícia da vigésima primeira esquadra). O

cão da família passa mais despercebido, na medida em que só a trela carmesim,

quando a traz, o denuncia – é assim que o mais distraído passeante pode sujeitar-se,

sem que dê conta, a uma mordidela imprevista em lugar incerto. Dir-me-ão que isto

constitui uma pura utopia, todavia não representa senão a mais cristalina verdade dos

factos, neles botando as raizes e deles extraindo, espargidos, longos ramos. Nestes

indícios e perigos do que é translúcido, que vos venho descrevendo e nos quais qual-

quer um pode incorrer, não há nem mais nem menos que a realidade da experiência

e o conhecimento de causa da ficção. Na verdade, o mundo transparente imita o

opaco numa diversidade de situações (que, pelo atrás entrevisto, ficaria lato aqui

expor), contando-se ao fim e ao cabo muito mais semelhanças que divergências entre

eles – e resulta esta conclusão da acurada leitura comparativa que tenho dedicado à

matéria nos últimos anos, aproveitando a tribo do quarto esquerdo para o desenvol-

vimento dum estudo de caso longitudinal, com complexas variáveis envolvidas, bem

entendido, mas convenhamos igualmente que fascinante no seu cerne historico-poli-

tico-filosófico-social, extremamente rico em magma daquele cariz científico que em

geral se associa à investigação. Tenho verificado que, ao contrário daquilo que à pri-

meira vista se poderia pensar, o mundo transparente comporta em si os mesmos ele-

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Page 49: Continhos de Alfarrobeira

mentos e modos relacionais que o nosso mundo, só que com a diferença de não

poderem ser vistos. O conhecimento da sua existência é-nos dado pela verificação

das consequências dos actos ou a observação de acessórios mais ou menos secun-

dários que acompanham uma determinada situação.

Aqui no Bronx as pessoas conhecem-se umas às outras e, em regra, desconhe-

cem os estranhos que se aventurem por estas ruas – mas como reconhecer o que

não se vê? Esta é uma questão pertinente. Não posso dizer do meu vizinho do quar-

to esquerdo que “conheço a sua cara dalgum lado”, e isto levanta todo um problema

de definição da Identidade, aliás truncada, no mundo transparente. Na realidade,

dizer que pai e mãe são transparentes e o filho cor de vidro não basta, é necessário

algo mais sob pena de o indivíduo se ver desorientado, melhor dizendo à nora. Em

relação a si próprio, não saber quem é... E quem é que lhe vai dizer o que é que ele

é? Nós: definindo-lhe uma identidade. Bom, uma característica comum aos espéci-

mes transparentes, amplamente divulgada e dispersa nos seus sub-grupos (que tam-

bém os há, e disso falaremos mais adiante), é a sua agressividade. Uma agressivida-

de naturalmente e sobremaneira exacerbada em relação ao que é uso comum entre

os seus co-habitantes visíveis (e falta aqui registar que, por ocorrência fortuita, eu sou

opaco – opaco opacíssimo, e por ocorrência fortuita não é bem assim: pelo facto de

os meus ascendentes serem dois opacos de estirpe pura que se fossem, por exem-

plo, uma opaca e um translúcido, eu já sairia invisível à vista...). Quer isto dizer que,

por uma questão de combinação matemática e leis genéticas, a população transpa-

rente está em maioria – o que me torna parte duma burguesia social de certo modo

privilegiada, por ter o dom da cor e do riso ao espelho em sinal de contentamento.

Privilegiada excepto num âmbito: o facto de sermos visíveis deixa-nos mais facilmen-

te à mercê dos predadores, ao abandono de todo o género de marginais, pelo que

temos de arranjar instrumentos de vigilância à altura dessa quase-fraqueza inata. Por

outro lado, há que reconhecer que a transparência constitui uma vantagem para

quem quer ludibriar os outros – daí que os seres invisíveis mostrem maior propensão

para a criminalidade, sem dúvida (e tenho aqui estatísticas levadas a cabo por enti-

dades independentes que demonstram isso mesmo).

O mundo transparente abarca diversos sub-grupos de indivíduos: os ascetas, que

não se vêem senão orando e caminhando sempre estrada fora para parte incerta (têm

uma vida religiosa e espiritual muito forte, que os preserva de quase tudo e os afas-

ta da realidade concreta em que o comum dos visíveis vive; são sobretudo mulheres),

os negociantes (a larga maioria, homens e mulheres de negócios, bem sucedidos e

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Page 50: Continhos de Alfarrobeira

capitalistas ao máximo), os conservacionistas (dedicados a manter a memória das

tradições herdadas ao longo de séculos, são conhecidos pela sua sensatez e perse-

verança; este sub-grupo é constituído maioritariamente por jovens), os abolicionistas

(pretendem criar sub-culturas totalmente novas, arrancando por conseguinte todo e

qualquer pedaço herdado no tempo das vivências modernas e urbanas; querem criar

um mundo novo e absolutamente original, derretendo em cera todas as tradições e

instituições ou hábitos estabelecidos para começar tudo de novo, porventura de forma

absolutamente diferente) e os animais (estes representam uma vida orgânica perfei-

tamente satisfeita, longe da metafísica e das preocupações ambientais, sem grande

vida intelectual ou conflitos éticos de qualquer espécie; reflectem a estereotipia da

modernidade e estão ligados de forma privilegiada ao que é primitivo; como a ética,

também a estética e o belo lhes são alheios: um animal não admira uma estátua, cobi-

ça um gelado). Não será difícil conceber que os nossos dispositivos de segurança

têm de se adaptar preferencialmente a este ou àquele sub-grupo, podendo estabele-

cer-se uma hierarquia de perigosidade para estes seres tão intrigantes quanto funes-

tos: animais, negociantes, abolicionistas, conservacionistas e ascetas atacam em

escala decrescente os membros do mundo visível. Poder-se-ia pensar que os aboli-

cionistas, pelo carácter extremo da sua ideologia, constituiriam muito maior ameaça

à nossa segurança, no entanto eles procuram destruir as heranças do mundo trans-

parente, tornando-se de facto verdadeiros aliados da cultura e dos entes opacos,

minoritários como já se disse.

Confesso que é estranho estender a mão em sinal de cumprimento e não saber se

o outro me estará a fazer um manguito. Esta ambiguidade torna as relações difíceis

entre as comunidades visível e invisível. Além de hábitos alimentares distintos (os

sujeitos transparentes não digerem o glúten, são mais sensíveis aos raios solares –

queimam-lhes as extremidades do corpo – e denotam muito maior cupidez, por isso

se dedicando com tão grande regularidade ao negócio), nós celebramos o Natal a

vinte e cinco e os “cristais” (assim alcunhamos os membros da comunidade transpa-

rente) a doze de Dezembro, e os nossos filhos são baptizados numa igreja diferente

do barracão onde se iniciam os “quartzos” na respectiva doutrina, ou seja, os peque-

ninos filhos dos cristais, acabados de vir ao mundo. Ser transparente tem uma clara

vantagem: não se aparece nos jornais e, para todos os efeitos, não existe a pessoa

que praticou tal ou tal acto escandaloso, senão que é inferida a sua existência. Não

dá a cara, não faz trejeitos nem gestos belicosos, não conta nada: a pessoa transpa-

rente é uma reificação abortada dos conceitos abstractos “etnia” ou “classe”. Esses

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Page 51: Continhos de Alfarrobeira

conceitos não precisam de coisificação porque se bastam a si mesmos – como os de

raça, género, partido. Isto no caso dos transparentes.

No nosso caso (da gente visível e mostrável, quero dizer), individualização é sinó-

nimo de humanização, respeito pelos direitos dos outros, bondade, convergência na

diferença; nunca de competição, isolamento, reducionismo, pobreza, mesquinhez,

coisa sovina. Daí que eu não confie lá muito nos cumprimentos do meu vizinho e me

encoste ao espelho do elevador de cada vez que me apercebo da entrada dalgum

cristal. Também não deixo o meu miúdo jogar basquetebol com o terrorista invisível,

não vá o outro distribuir cotoveladas a torto e a direito ou cometer faltas que o meu

não tem maneira de provar, e só a ideia de que a minha mulher (que sempre gostou

de águas de colónia frutadas) pode ter um amante que eu não enxergue nem alcan-

ce põe-me doente. Por isso tenho passado os dois últimos anos – confesso-vos, não

sem algum vexame... – a espiar os costumes e as modas da tribo do quarto esquer-

do (sobre a vida sexual dos cristais, já agora, também temos algumas anedotas:

escusar-me-ei a contá-las aqui), espiando em particular o pai de família, que muito

me deixa a desejar em termos de confiança. Tenho escondido diversas cassetes na

cómoda do quarto: as gravações contêm, em geral, uma estranha tosse pigarreia...

Agora, depois de ter confessado a minha cisma apreensiva e explanado o tema, vou

pousar os binóculos e fazer o jantar, se me dão licença.

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Page 52: Continhos de Alfarrobeira

Boca da Trompete

A Belle e Mónica R.,

pela amizade companheira

- Meu Deus, como é que tão longe da tua terra isso foi acontecer? – o Frederico

tirou a boina e coçou a careca lentamente, os dedos recurvados sobre o polimento da

epiderme, triste piássaba.

A menina Constança subia sempre as escadas arfando do decote, sentava-se à

varanda de madeira cáustica olhando o mar em delongas de laranjadas e bolachas

inglesas de estalar no dente dispostas de forma concêntrica no pratinho de porcela-

nosa branca envernizada, um vidrado que não desfalecia com o ar agreste vindo do

oceano repleto de sal, iodo e do grasnar das gaivotas espelhando o sol. Ficava tar-

des esquecidas a olhar o farol listrado e as correntes de mar, a nossa princesa da

varanda de madeira vermelha onde trepam caracóis de casca espiralada assumindo

diversas tonalidades conforme os limos da estação. Cada joelho dela um arbusto

longo com o qual implora, roçando as colunas torneadas do gradeamento em madei-

ra, atenções felinas que não recebe ao perto de machos passando ao longe sobre a

ponte ou no passeio: «Uma gata, reparem! Uma gata lá em cima!», eriçavam-se eles

apontando uns aos outros na distância a morena de cabelo ondulado e pele tostada

entre assobios que se misturavam com o anúncio breve das sereias. Após subir as

escadas rebofuda e roçar-se no varandim encarnado que ansiava com desprezo pelo

calor másculo, a nossa sereia sentava-se no cadeirão de verga vendo o sol nascer,

crescer, bailar no horizonte a ensaiar na água brilhos dispersos. Abaixo do corrimão

onde se prostrava, num canteiro quase junto à areia, flores: são carne de cereja estas

flores, tenra e fibrosa. O atropelamento mortal da Boca do Inferno foi por isso um

acontecimento brutal e apócrifo a suspender por um fio os doces usos da vida paca-

ta que levava a melosa princesa inalcançável da casa acastelada. Tão flexível de lom-

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Page 53: Continhos de Alfarrobeira

bos, a pequena, quanto os gatos do capelista dos postais da Boca do Inferno a espre-

guiçarem-se ao sol nuns tocos ásperos de oliveira. É neste cabo que finalmente chei-

ra a mar, uns calhaus roliços cor de âmbar lá em baixo, pontes de rocha. Heróica de

pé, a motoreta Trendline do sacristão-capelista, inolvidável, cyan e esmaltada. Há

muros entaipados com buxos muito verdes, mansões parabólicas. Sol brilhando no

espaço, uma correnteza fluente, muitas correntezas escamosas. À noitinha, gaivota

Irmã em voo asa-delta sob a lua:

Tem dias que a princesa solta trança e enverga camisola às riscas como o farol de

Santa Marta, lamparinas acesas no tecto da varanda romanticizam a coisa.

Estendia-se um corredor de sol cadente sobre o mar camomila na penugem aérea

dessa manhã. Dizzie Gallespie com uma boina na cabeça acabava de passar na cal-

çada atrasado para um show em hora de fecho – ou assim considerava a princesa

tostada o homem apressado na rua –, sob o varandim magenta e altaneiro, quando o

caso sucedeu. Dizzie Gallespie passou o Villa Galé, mudou de passeio: caminhando

no tartan das bicicletas com o sol a adornar-lhe a pele sépia e distraído a olhar um

poncho preto – tamanho XXL – com flocos de neve brancos que um feirante acabara

de suspender do toldo mole cor de galão por um cabide trémulo, foi atropelado de

forma brutal por uma bicicleta que, acabando de desenhar uma curva, veio embater-

lhe pelas costas a velocidade muito acelerada tendo mesmo, segundo um detalhe

mórbido nos jornais do dia seguinte, impresso o rasto borrachudo a todo o compri-

mento da coluna vertebral do jazzeur. A fatalidade não passou portanto indiferente

nem aos media da região nem aos inúmeros corredores de fundo e meio-fundo incau-

tos com pendentes de cães, ciclistas ou amigos sempre a acompanhá-los nos pas-

seios, desses que se detêm de vez em quando no chafarizinho em granito da Boca

do Inferno para uma poça d’água na palma da mão e umas gotas preguiçosas a

escorrerem dos dedos frios. Entre os arbustos, os buxos e as moitinhas marítimas da

orla costeira, Dizzie pôde entrever, antes de finar-se de modo inesperado e trágico,

uma idosa que descalçava as pantufas sentada nas rochas com cuidados e vagares

de senhora experimentada: tacteou com os dedos a pedra de crateras, massajou as

plantas dos pés muitíssimo devagar, começou a fazer uma espécie de fisioterapia

(por baixo da saia modesta avistava-se uma joelheira elástica na rótula esquerda)

com movimentos lentos. Dizzie viu também, antes de falecer, um mendigo fumando

nas escarpas. E Dizzie de chapéu de aba, fato escuro pré-defunto, caminhava em

passos largos na calçada com uma trompete luzidia em tons açafrão presa por baixo

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do sovaco, ambas as mãos nos bolsos das calças em sarja castanha-escura.

Assobiava pela manhã uma melodia dispersa que haveria de tocar mais logo na trom-

pete de orquestra para deleite dos espiões reformados no Hotel Palace. Senhores

enigmáticos de cabelos grisalhos e amarelos, olhos nórdicos, sotaques exóticos ou

agrestes conforme as andanças do passado – que não pertenciam já de nascença a

terra nenhuma, muito mais denunciando aquelas que os haviam acolhido na condi-

ção de forasteiros à paisana –, laços às bolinhas ou de tons pouco discretos como um

salmão atrevido. A bicicleta passou-lhe com o rodado sobre a coluna vertebral (tal

qual uma alcatifa vermelha engomada pelo ferro à medida que se desenrola), Dizzie

agonizou e a trompete dourada deu um salto no ar. O capelista da Boca do Inferno

resgatou o instrumento do espaço enquanto olhava Dizzie horrorizado:

- Meu Deus, como é que tão longe da tua terra isso foi acontecer? – murmurou bai-

xinho em tom de condolência, deixando uma mão escorregar ao de leve a limpar a

trompete e comprimindo em seguida o botão do Ré com qualquer dedo ao acaso, em

jeito de elegia fúnebre.

Os gatos do capelista miaram gemidos arrastados de felino, triste choro selvagem,

uma andorinha do mar veio pousar sobre o chapéu de aba de Gallespie amarrotado

no tartan, sujo do óleo das correntes da bicicleta. O ciclista estupefacto, um arranhão

único no joelho, colocou os óculos espelhados sobre o cabelo molhado pelo esforço

muscular, abriu a boca numa tentativa vã: emudecera. Ainda gesticulou bom quarto

de hora (já a polícia, a ambulância e toda a espécie de curiosos se aglomeravam)

quando soltou a primeira sílaba audível – ironia do destino, seguiu-se aquilo que pare-

cia uma espécie de melodia engendrada por Gallespie até que a garganta do rapaz

pudesse articular uma só frase com sentido.

- Não tenho a culpa, juro! – implorou o ciclista apertado na roupa de lycra de mãos

juntas e olhar aterrado antes de benzer-se com devoção fervorosa. Tirou o fio de ouro

com crucifixo para fora da camisola dos treinos, beijou um cristo minúsculo descarac-

terizado pela dor, aumentou-lhe nos olhos o sobressalto ao observar de novo o cadá-

ver mulato e esguio estirado no chão. A princesa desceu da varanda para junto da

plebe pela primeira vez que se soubesse em longos anos e veio dar o ombro tostado

às lágrimas aflitas do ciclista, para inveja masculina geral. O vagabundo do tabaco de

enrolar ofereceu-se para ajudar na fisioterapia da velhinha das pantufas, que entre-

tanto viera sentar-se no chafariz em granito a rodar o tornozelo que uma artrite cor-

roía com vagares de malvadez. Foi então que uma senhora polícia, examinando os

documentos nos bolsos do finado, se virou para o capelista dos postais (que exami-

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Page 55: Continhos de Alfarrobeira

nava já a possibilidade de expôr um ou outro artigo sobre os botões da trompete, em

homenagem ao amigo) com a voz autoritária e um dedo em gancho:

- Chegue aqui! Sabe alguma coisa disto?? – perguntou a senhora comissária rís-

pida e feroz, algo máscula.

O capelista de gato amarelo no regaço e trompete ao ombro como um enxadão leu

atento um papelito sarnento que a comissária lhe estendia (pertencente de origem a

um bloco de linhas), levou uma mão à boca deixando o gato cair no chão, exclamou

siderado:

- Valha-nos Nossa Senhora! Eu não, minha senhora, tinha eu lá maneira de saber!

S’eu soubesse não tinha acontecido... Valha-nos Deus!!

A comissária revelou o conteúdo do papel a um fotojornalista mais curioso, toda a

assistência de pescoços esticados se surpreendeu em seguida:

«Eu, Dizzy Gillespie de nome – não tendo em conta as intromissões da oralidade

–, trompetista de profissão faz trinta e dois anos em Agosto, declaro a quem por mise-

ricórdia e bondade de Deus encontrar este papel que decidi pôr termo à vida no dia

22 de Março de 2004, no passeio para ciclistas da Boca do Inferno, atirando de pro-

pósito e por livre vontade este corpo cansado contra um velocípede circulando a alta

velocidade na pista, pelos meus cálculos prévios às 10h47m da manhã sensivelmen-

te.

Decidi morrer frente ao mar e às velas brancas espetadas contra o céu no horizon-

te líquido: não tenham, por isso, qualquer pena de mim.

Assinado:

O vosso amigo

Dizzie Gallespie

P.S. – Além do mais, estou certo que Deus tem uma banda de jazz à minha espe-

ra no céu, aguardando ansiosa pela orientação sábia deste vosso amigo...

Cumprimentos jazzísticos.»

- Bom, sempre achei esquisito que os querubins tivessem trombeta, agora isto

acho ridículo! – indignou-se o ciclista, reagindo por fim – E quem me paga o arranjo

da biciclete??

- Biciclete rima com chiclete... – notou a nossa princesa finalmente alcançável

rodeando-lhe o pescoço com os dois braços e mascando de boca aberta a pastilha

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Page 56: Continhos de Alfarrobeira

nipónica de aumentar os seios que faz furor por essa Europa fora – Quanto é o pre-

juízo, amor?

Os masculinos das corridas desdenharam o físico do ciclista à medida que ela se

debruçava em atenções exageradas sobre o campeão soltando a trança, de peito a

crescer-lhe na camisola às riscas moda farol.

- Bom, pouco mais de vinte contos será, mas há também a considerar os danos

morais e a maçada... – aventou o campeão com ares de ingénuo.

- O senhor não tente, que ele era pobrezinho... – advertiu zangado o capelista para

salvaguardar qualquer golpe oportuno.

O corpo de Dizzie coberto por um lençol alvo foi nesse momento recolhido para o

interior duma ambulância, com o chapéu amolgado e sujo pousado sobre a barriga

em jeito de coroa fúnebre.

- Eu era o melhor amigo dele: tenho direito à recordação... Não é, Faneco? – con-

cluiu o capelista definitivo exibindo a trompete e olhando com tristeza o gato amare-

lo que lagartixava de barriga para cima na terra quente, ausente de tudo aquilo.

Ninguém se lhe opôs.

- Ainda temos de fazer averiguações, ver o que deixou em herança... Talvez mais

tarde possamos compensá-lo. – assegurou a comissária ao campeão das bicicletas

de modo seguro e competente.

O capelista afastou-se devagar a mancar duma perna, o peso todo do mundo

sobre dois ombros demasiado pequenos para suportar a morte do amigo. Dirigiu-se

até à pontezinha em pedra na companhia do Faneco, olhou para baixo e ficou a pen-

sar como o mundo parecia virado do avesso ultimamente: caminhava no sentido erra-

do ou girava numa direcção enganosa, tanto faz. Quantos amigos lhe restavam?

Eram sobretudo os amigos não-humanos que o escutavam e lhe acudiam nos últimos

tempos. Abanou a cabeça incrédulo:

- C’um caneco, Faneco... – e voltou ao posto de venda no interior da capelinha com

o ar salgado que lhe enchia os pulmões a conferir algum alento aos seus passos assi-

méticos. Sentou-se, tirou a boina, coçou a careca devagar, pôs-se a engraxar um

sapato roto no lugar do mindinho para ocupar a cabeça e as mãos nalguma coisa.

À medida que a polícia desmobilizava, a nossa princesa estreou-se a convidar

alguém para uns scones na sua varanda fuchsia: o ciclista campeão desgostoso do

atropelamento. Os restantes homens invejavam cá de baixo o rapaz à medida que a

dona da casa acastelada se desiludia: ficou a saber que o moço morava bastante

atrás, numa casa com marquise de losangos laranja com vista para a baía e os pen-

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Page 57: Continhos de Alfarrobeira

teados rastafarianos das palmeiras, no entanto era pintor de construção, ocupação

pouco digna para um pretendente a uma donzela de sangue azul com ligações direc-

tas à monarquia. O pintor ensaiou o charme numa chalaça a respeito das ligações

directas envolvendo o furto de automóveis e motocicletas na adolescência, o que a

fez expulsá-lo da varanda com grande escândalo, erguendo ao ar uma cadeira em

bambu e palhinha (mais dispensável, portanto) como argumento último:

- Fora, ladrão!

O rapaz fugiu o mais rápido que pôde na direcção do Forte, com medo que algum

polícia transviado ainda desse pelo sucedido: levava a bicicleta a seu lado por impos-

sibilidade manifesta em pedalá-la. O capelista da Boca do Inferno veio mais tarde a

saber que Dizzie não deixou um tostão com o qual pudesse indemnizar-se o rapazi-

to pelos estragos: o artista fez questão de gastar até ao último cêntimo do pé-de-meia

em álcool, antes de morrer-se matado. Todos os dias de manhã o amigo vem apear-

se da motoreta Trendline, abre a porta do casinholo com vagar, pega na trompete

reverente:

- C’um caneco, Faneco...

Põe-a a luzir com uma espécie de algodão em rama pardacento que retira com

todo o cuidado duma latinha áurea, toca o Ré, coloca cá fora o instrumento ao alto

junto à parede branca, pega num postal de Cascais e noutro de Nova Iorque e expõe-

os de forma meticulosa sobre as teclas da trompete, direitos ao milímetro com o preço

de um euro indicado por cima, desenhado a marcador de feltro preto no reverso da

folhita amarelecida dum bloco às riscas. Há quem venha de Tóquio à Boca do Inferno

para rezar mesmo é à boca da trompete, quem queira um postal junto ao capelista ou

rogue por parte do músico finado toda a intervenção divina possível.

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Page 58: Continhos de Alfarrobeira

O Buda de Lisboa

Ao João Louro,

por tudo o que me ensinou e pelo

brilhozinho nos olhos quando se fala de livros

E foi então que me tocou à campainha extasiado, ofegante, aquele homem estra-

nho com pele cor de cacau e percentagem de gordura semelhando a do cacau, vindo

directamente da lojeca onde padecia as agruras de ser boneco com carne espiritual:

demanda ingrata para um manequim sagrado aturar ateus algozes de bonecos, fiéis

devotos porém de santo pilim. Olhos em bico, dentuça de fora e sorridente como

sucede em certas cerâmicas do Zé Povinho, cara larga, achatada de sapo. O leite-

creme não lhe passa despercebido, ao Buda desditoso. Tão-pouco francas gulosei-

mas como doce de abóbora. Agradam-lhe os programas da têvê, as meninas italia-

nas da Rai-Uno ao domingo à tarde, chocolate belga em forma de búzio e vinho fran-

cês por encomenda. Salta à corda quando ultrapassa os cento e sete quilogramas,

dieta peculiar mas rigorosa, eficácia cientificamente comprovada em latim como os

bifidus activus, denotando um perfeccionismo cirúrgico e um sentido estético muito

característico. Outro dia apareceu aí em casa com duas magnólias em flor no interior

duns vasos quadradões e tem especial predilecção por bonsais amendoeira com pon-

tezinhas, pedregulhos, cabanas por perto no interior das quais anciãos magricelas em

jejum com barba palha-de-aço grisalha a escorrer-lhes na túnica junto ao peito,

segundo se supõe. Buda floricultor. A certa altura da fantástica jornada ele retirou-se

do sofá de minha casa para a Azambuja. Disto só sei que viu qualquer coisa à jane-

la: não era um castanheiro, era uma bétula, uma pérgula no terraço sombreando a

tarde. A paisagem irreal, como o sol-compota por trás dum nevoeiro de auroras lila-

ses, luz compacta na penugem dos pinheiros. Pouco mais viu. A nossa divindade far-

tou-se, no entanto, rapidamente da aridez confrangedora dos subúrbios metalizados

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Page 59: Continhos de Alfarrobeira

e da penugem dos pinheiros a espalhar ainda a sua luz grisalha: arranjou emprego a

lavar pratos – onde o visitei com maior frequência –, tem também por hábito escrever

nalgum sítio misterioso que, esse sim, é-me vedado. Após a aventura de periferia e

as angústias do lava-loiças, Senhor Buda ocupou outra vez a minha sala, o déspota,

e arrancou logo flausino em direcção ao Oriente. Por lá ficou, pois trabalha agora na

Marina da Expo.

Pança inchada na lojeca, umbigo-botão, perna em cruz, sentado no meio de mon-

tes nus que simulam o deserto do Arizona ou picos de térmitas erodidos: salta um

esguicho de água da fonte mística em forma de esfera rotativa e camaleónica, brota

o líquido precioso do sagrado berlinde e corre montanhas carecas do Tibete abaixo

(mas sem neve – dir-se-iam achocolatadas numa perícia de pasteleiro) demolhando

os pés do gordo santo num caldo fervoroso a exortação. Eis o cenário do sujeito. Vem

o miúdo herege mascando pastilha (a hóstia dos petizes), puxa-lhe a tanga, chapinha

a água salobre com ambas as palmas abertas no leito enxofroso da lagoa das Furnas,

aplica a pastilha de morango num dos vulcões simulando lava intersticial, golpe fatal

e derradeiro passadas as advertências da mãe. Sai chapada no puto, a marca do

Buda aviltando-lhe a face, recordação amarga dum dia no shopping.

Chega a jovem que orgasma com velas e incensos, bota-lhe três flores flutuantes

a arder junto aos pés – duas margaridas de cor âmbar fluorescente e um gerbério ver-

melho junto a uma campânula em alperce mortiço com brilhantes prateados e esca-

mosos cintilando pulverizados no avesso da chamita interna – e vai-se em risinhos

pueris mais as amigas, cada qual tendo orado ao Buda solicitações carnudas e

macias de afrodisíacos para apurar em potência másculo-mística o namoro mais logo

à noite.

Esfrega-lhe a barriga em botão um bem-humorado catita, daqueles que andam

sempre contentes a reboque de toda a gente e se encarregam no emprego dos fre-

tes que os outros desdenham com uma alegria tola e inconsciente por se verem afi-

nal capachos úteis, espécie de super-heróis na luta contra o aborrecimento tirando

em cuidados de pinça ao espelho, na casa-de-banho após o almoço, dois agriões da

sopa entalados entre os dentes. Tenta o bem-humorado polir a careca ao Buda des-

ditoso, enfia-lhe um brinco na orelha esquerda com uma folha de Uma, Duas, Três

(não é folha de plátano), Quatro, Cinco pontas (é folha canabinácea) desenhada em

tons pistacho.

Chega a da mala em ferraduras e óculos Guerra das Estrelas, loiríssima até à

ponta da raiz dos cabelos da peruca: estica o beiço vermelho à bochecha cheia do

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Page 60: Continhos de Alfarrobeira

Buda (castanha reluzente em função do plástico mas supõe-se que rechonchuda e

fofa lá no céu, com o polimento esmerado das virgens e graxa incolor a apurar o bri-

lho se necessário), pretende deixar marcas do crime mas sai-lhe a intenção furada

pois olvidara ter posto o novo e ultramoderno baton máscara-carapaça à prova de

marcas de crime e com brilho metálico de armadura medieval nessa manhã, especial-

mente dedicado a delinquentes amorosos vanguardistas. Vem-me à ideia o pedregu-

lho sagrado enorme a atirar para o redondo, em tons doirados de damasco e sílica

brilhante (sílica, feldspato, mica...) sob os raios solares do Oriente distante, equilibra-

do em prodígio na pontinha dum desfiladeiro enorme, acreditando-se nas redondezas

que aquilo que o mantém suspenso é um fiozinho do cabelo de Buda entalado sob a

bola de pedra como uma cunha a suster o mundo. Por ora, nem sinais de pedregu-

lho perto deste Buda sedentário e mulato: abusador de pizzas e McDonalds ou prati-

cante de Sumo obeso caído em tenra idade num poço de algas japonesas Miso com

doze meses de fermentação e uma receita milenar por trás, transmitida de geração

em geração ou talvez nada disso, apenas estratégia de venda tão astuciosa quanto

eficiente.

Vem o das patilhas com camisa cor de rosa: cabeleireiro, taxista ou motorista da

Carris, troca o pendente cannabis por duas perolazinhas rosadas a fingir, uma em

cada lóbulo de orelha (estas parecem ameixas nipónicas de exportação secas com

sal, Ubeshimo ou coisa que o valha), põe-lhe um colar em flores de plástico ao pes-

coço e o nosso Buda é havaiano, mistura exótica de raças transfigurando-se com

rapidez. Falta-lhe o saiote de palha para dançar o hula-hula lá do sítio, contudo não

se sabe se aqueles tornozelos miúdos aguentarão as pernas anafadas direitas e de

pé.

(Aparte: há alguém que sai do governo e, disse-me ele mais tarde, tem o desplan-

te de colar na testa do Buda um selo com um avião das linhas aéreas angolanas mais

uma trancinha de fingir com conta amarela na ponta, decorada a motivos zulus.)

Apresenta-se um reformado de orelhas de abano em toques sábios de reflexologia

nos dedos dos pés do senhor Buda como se apalpasse meloas cheirosas no merca-

do da Ribeira ou integrasse a comitiva da excursão a uma exposição de esculturas

para ceguinhos. Ora bem, aqui o umbigo do Buda remexeu-se e os joelhos juntaram-

se-lhe pesadamente a contragosto com vista a salvaguardar que não lhe investigas-

sem igualmente as curvas, textura e densidade das partes baixas aventando em jeito

de desculpa favorável qualquer coisa envolvendo a contemplação de Neo-Realismos

intrigantes ou cobiçados estilos transculturais. A boca sorridente trancou os dentes a

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Page 61: Continhos de Alfarrobeira

suster uma certa raiva, as bochechas acafezadas resfolegaram-lhe impacientes.

Veio a avioneta sobre a cidade lançar publicidades laranja ao yoga da meditação,

de maneira que o Buda chegou a ver na lojeca uns insuspeitos com papéis nas unhas

que semelhavam fotografias de si próprio – ele que nunca vaidoso a um espelho por

ausência de espelho, uma falta de maleabilidade do pescoço que o obrigava a man-

ter a posição rígida de queixo e cabeça exigida por aquelas torturas dos oftalmologis-

tas que consistem em fazer esguichar um líquido a grande velocidade e de forma

inesperada na direcção das nossas pálpebras abertas, e pelo facto de na água a seus

pés apenas a duplicação ondulante das luzinhas do tecto a fazer-se sentir rebrilhan-

do. Os papéis esvoaçavam nas unhas dos insuspeitos entre tilintares melodiosos mas

irritantes de espanta-espíritos, sandálias em palmeira, cortinas musselinosas e pen-

dentes de vão de porta contra a maleita das moscas mais o esvoaçar elegante das

libélulas concebidos em materiais leves, coloridos, transparentes e inovadores como

o plástico translúcido.

Eis então que se apresenta aquela dos argumentos definitivos, meias em grossos

padrões tipo atelier de puta haute-couture, casaco mais comprido que os restantes

trajes a tapar a mini-saia da figurinha. Sai fausta e fresca, o rapaz como um cão de

rabito entre as pernas a latir baixinho a seu lado – qualquer um dos lados, tanto faz,

da colega platónica e decisória, irrevogável. Já não lhe falta a ele, o rafeirito, qualquer

coisa como uma dona indiferente mas cumpridora, quem lhe coloque a capeline a

proteger o focinho e o impermeável no lombo a resguardá-lo da chuva, e lhe ponha

na mesa a lata da comida e o leve à rua de madrugada para que, aliviado, inunde o

passeio de dejectos. Uma dona pseudoindependente, feminista autoproclamada por

decreto caseiro, ditadora dos justos em questões de trabalho. A vaidade deve vir-lhe,

à aloirada de olhos azuis, cabelo em repuxo para trás com travessão no cocuruto –

não tanto a vaidade quanto o nariz empinado, na realidade –, do facto de algum ges-

tor novinho, engravatado, gel no cabelo, ter por hábito criativo (traição desconhecida

do rafeiro) ir buscá-la às sextas para o cinema nocturno no seu BM e oferecer-lhe um

bouquet de rosas tão rosa (que querido...) e coiso e tal no Dia dos Namorados – D.N.,

sigla a designar esse dia segundo convencionou o casal –, bouquet que traz atado

com um laço rosa bebé igualmente e deitado em mil cautelas sobre os estofos no lado

dela. Todos esses pormenores românticos em silicone, sensibilidade postiça a insu-

flar a vaidade, são desconhecidos do rafeiro na mesma proporção em que lhe ocu-

pam o raciocínio os monges transatlânticos ignotos do Pireu ou as tradições pigmeias

fantasma da Nova Guiné. De maneira que a dona da trela, com manto de Vénus,

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Page 62: Continhos de Alfarrobeira

abusa e despreza do cimo do seu altar mariano em pau carunchoso, a virgem santa

coralídea. O Buda observa.

Passa o teleférico dezanove por cima da minha cabeça enquanto recordo isto, uma

sombra etérea nas ondas turvas. E a gaivota a baloiçar nelas como um patinho no

banho, asas coladas ao dorso de penas. Paredões em betão armado com as amar-

ras em ferro entrançadas e estendidas (cordas onde a turvação das ondas praticas-

se exercício pela tarde) a segurar o cais da Porta do Tejo. Não há quem escreva este

casal de mãos dadas ondulando no passeio calcetado, depois no de madeira – o

marítimo? É cada mergulho de gaivota fenomenal! O casal de Leste que passa (de

Leste ou nórdico?), ele diz Bom dia, pergunta pelo Aquário: “Have a Relaxing Bath,

come to the chill out zone”; “Aproveche el Buceo, venga a la zona de chill out”.

Italianos, alemães, portuguesa esbaforida na corrida diária. Somos uma cidade-acal-

mia na ponta da Europa, longe de tudo excepto do mar e dos passarocos aquáticos

debaixo do sol. Ninguém é afoito quando se trata de querer saber: tinha de haver

alguma coisa para animar a modorra solitária, qualquer coisa como uma excitação

brava além-mar. Sorte a nossa o avião, portugueses do século XXI – penso eu. Um

helicóptero e um avião, corvos gigantes falcões pardos águias negras, como queiram,

sobre a base aérea do Montijo e o castelo ao fundo, casario debruado a vermelho a

escorrer pela encosta. Ai o Barreiro, o Barreiro das fumarolas, porto industrial de peri-

feria. O que não é periférico, neste cabo soterrado do velho Continente? Rai’s partam

a insularidade da Península Ibérica! E manos espanhóis, vinde: estais perdoados. As

senhoras com sacos das compras passeando rente ao Tejo misturadas com os atlé-

ticos heróicos. Os estetas câmara-digitalistas a fotografar a partir do passadiço hori-

zontes de pontes abauladas.

(silêncio-espaço em branco seguido de

Por que razão não escreves aqui? ‘Inda gostava eu de saber...) As maquinetas do

outro lado do Tejo ouvem-se daqui, desabar metálico e rústico: como explicá-lo? O rio

é água turva com cheiro a azeitonas. (Deves preferir Cascais não sei porquê...) Bóias

triangulares ferrugentas a sinalizar coisas misteriosas para os navios. Afinal não tem

mistério nenhum, é uma sinalização aldrabada da passagem mais alta por baixo da

ponte. Por falar nisso, duas meninas elegantérrimas passeiam janotas, caracóis oxi-

genados.

(silêncio-espaço em branco seguido de

Por falar nisso, no quê? ‘Inda gostava eu de saber...) Que mergulho estupendo o

da gaivota branca de escalpo negro, completamente a pique! Que gozo que elas tiram

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Page 63: Continhos de Alfarrobeira

daquilo, o bico na vertical lá das alturas, sacudir o cheiro a azeitonas das penas à

saída da água turva! Pesqueiras! Fenomenais! (Parece que a bóia afinal é vermelha...

e larga, rechonchuda, insuflada, um mergulhão a pousar nela.) «- E o teu genro?; - É

engenheiro dos lixos – eles andam para lá já sempre a separar essas porcarias –,

aquilo tem muita química, muita matemática...”» (conversa mantida por duas senho-

ras de braço dado). Sentou-se um serial killer atrás de mim a enrolar um papel de

rebuçado: está a contemplar o horizonte num banco em cimento listrado. Saco de

plástico da Casa dos Leitões certamente repleto de membros humanos decepados e

corações por descongelar. Brinca com o isqueiro ao vento da tarde, o infantil. Tira

uma língua humana acompanhada de coirato e põe-se a mastigar a sandes olhando

atónito a paisagem, planeando o próximo homicídio perfeito. Passa o da bike tenro e

enxuto, carreto na mudança vinte e dois, mão no bolso do blusão polar para proteger

do vento antárctico. Oceano Antárctico, Marina Clube, Luna. Uma lancha, uma lan-

cha! Bandeirinha portuguesa à proa sobre a cabine azul-tranquilitatis e uma amarra-

ção encarnada no convés, comandante à popa. Segue as indicações crípticas das

bóias flutuantes, lá passa o túnel mais alto por baixo da travessa da ponte. E o deza-

nove teleférico de novo a bailar sobre as nossas cabeças. Um privado que levanta

voo próximo à Portela vai lesto sobre o leito do rio, paralelo à costa. Fumo ao longe

no horizonte, para os lados de Alcochete. Uma garça enorme, cinza esplêndida, pou-

sada mesmo na pontinha da Porta do Tejo, junto a uma sineta e à placa:

LX-300-AL

CALECUTE

As patinhas laranja de três dedos das gaivotas como ventosas no tecto a escorrer

água do centro comercial. Aquela agora, peito branco-lixívia trampolinando num toldo

da Porta do Tejo, grasnando um protesto sem-vergonha. Alhandra é tão feia, meu

Deus, tanto ao longe como ao perto – constato. Esta ponte não é assim tão grande

coisa. P’ra nós sim, p’ra nós sim! O assassino em série desistiu, depositou no lixo o

saco dos leitões com restos de membros humanos e foi-se embora. Segunda lancha,

bandeira portuguesa amarelada, tejadilho, dois pesos brancos de lado a baloiçarem

no impacto das ondas. Tão lindo este passaroco de perfil: meia-lua preta a crescer na

cabeça. (Afinal a bóia parece que é laranja, não dissemos já isso? ...Ou estaremos

enganados?) Uma fumarada cinza agora mais ao perto, sobre o Montijo. Vai-se

embora a segunda lancha, devagarinho a bambolear. Alemães dos Jogos Olímpicos

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Page 64: Continhos de Alfarrobeira

de Inverno no Canadá a fotografarem o teleférico em camisolas de alças com dois

graus à sombra – eu de luvas a misturar-me com eles, que combinação estrambóli-

ca. “As estrelas se aproximam, se completam (...)/ cada um de nós é um a sós/ e

assim você surgiu” – canta Gal Costa. LX-303-AL, Bugix, Titanix, Maria La Gorda,

Oceano Pacífico, Oceano Índico, Café del Rio. Café a oitenta cêntimos! Adolescentes

surfando em bando no Jardim das Ondas, um Puma camuflado a cruzar os céus

sobre o Oceano Árctico. No quiosque Cuba Livre, casais de gays ao poente mais o

empregado brasileiro com caracóis doirados, pêra amarela de bode escocês, óculos

escuros circulares bem ao jeito dum hippie progressista. Uma canção que se quer

certeza: “O acaso vai me proteger/ enquanto eu andar distraído...”; “Devia ter compli-

cado menos, trabalhado menos/ ter visto o sol se pôr/ devia ter morrido de amor, acei-

tado a vida como ela é” – uma confissão. “Quero una chica de Marte que seya since-

ra”, diz a cantora enquanto passa ao largo a terceira traineira: rodelas negras como

bagos de uva inchados ao longo do casco. Um passarão pardo faz-se à Portela, os

morcegos do Bacardi espraiam as asas nas mesas. Tudo isto o Buda viu.

Ele traz um trapo à cinta e alimenta-se exclusivamente de folhas de mangueira faz

seis dias quando toca, mais ditoso, à minha campainha com os pés numa lástima –

recebo-o de braços abertos, cabeça em vénia recurva respeitosa para com a divinda-

de, embora naturalmente surpreso: não é todos os dias que um boneco decorativo se

anima e desata a correr quase nu em meio ao trânsito da cidade, esparvoado como

uma doninha esfolada. Interroguei-me ao jantar sobre os gostos gastronómicos do

Senhor Buda, preparei um caril que supus agradar-lhe e o caprichoso desdenhou –

mandou vir um chinês ao domicílio que mesmo com muito boa vontade não podia tra-

gar-se nem na pontinha mais tenra das líchias. Levei-o nesse fim-de-semana a

Sesimbra a ver as traineiras oculto no porta-bagagens do Coupé; acalmou-se um

pouco com os ares marítimos, pôde contar-me a sua história desde o início.

Partilhámos o quarto embora não a enxerga, foram-me dados a observar em êxtase

divino os sagrados vapores de alabastro, autêntico fog londrino, que pareciam ema-

nar-lhe de todos os buracos da cabeça enquanto ressonava um trovão principesco de

mãos traçadas sobre o ventre. O Buda sonha e produz nevoeiro, chora tempestades,

ri secas sem par, ofusca o sol no cansaço do sono. Mar e algas fazem-lhe companhia:

um é suor diário e chatarrão, as outras denunciam sujidade acumulada ao longo de

anos sedentários dispensando cuidados de higiene de maior. O tipo é sarcástico, tem

um sentido de humor extraordinário devo confessar. Sai-lhe cada uma da boca que

parecem duas. Mas então, tem uma história dramática. É careca de nascença: nunca

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Page 65: Continhos de Alfarrobeira

a família deixou que os caracóis loiros lhe adejassem à menina coquete pelos ombros

cor de canela. Viram-no no metro a fazer pela vida, depois trepou à cúpula transpa-

rente dum centro comercial (por mera excentricidade, confidencia envergonhado...) e

a partir daí a polícia passou a persegui-lo. Buda foragido.

Da última vez que o apanharam levaram-no a uma clínica médica de alta tecnolo-

gia na Universidade do Winscoatchim a fazer um electroencefalogramómetro topo-

de-gama com vista a determinar pontas-onda e ondas-ponta de baixa frequência,

grande amplitude, pontiagudas não-corrompidas pelo raciocínio hamburguerizado

ocidental derivadas da musculação cerebral produzida pela celebração eucarística do

levante, o recolhimento meditativo no Oriente dum modo geral. Ora isto não agradou

ao nosso Buda, que é gente simples apesar de sarcástica – enfim, pouco ecuménica

nas qualidades. Aperceberam-se ainda os investigadores que os miolos da divindade

desditosa eram mais banhados em sangue que o habitual, digitalizaram a coisa para

precisar os pontos onde o por assim dizer ketchup fervilhava com maior intensidade

e chegaram à conclusão que o nosso Buda era um fenómeno transcendental da natu-

reza. Ele assustou-se só com o palavrão, fugiu pela porta automática do centro tec-

nológico ainda com os eléctrodos na cabeça e gel tipo baba de caracol a escorrer-lhe

da careca para o interior dos ouvidos. Veio cá parar à lusitânia terra outra vez, um

amigo arranjou-lhe uma cunha na lojeca. E nesse dia de trabalho particularmente difí-

cil chegou a minha casa exausto, transido depois dum polícia alternativo ter também

tentado assediá-lo.

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A Décima-terceira História

Se alguma coisa não se pode fazer nesta vida é pedir a um homem muito livre para

que seja menos livre. E exigir-lho é crime. Um homem livre só pode vir a ser tão ou

mais livre do que já é: esta é uma lei universal. O homem que ama é duplamente livre

e o que tem uma arte é-o a triplicar, porque ama a humanidade antes de mais. Não

raras vezes essa humanidade o despreza por não se deixar domar. Na manhã em

que um remorso nos inaugura o pensamento, toda a amplidão da culpa se compreen-

de: é a culpa de si próprio sem outra razão de ser que não a oposição da maioria,

mas é sobretudo a carga da culpa que é de todos os outros e que eles expulsam de

si mesmos, arrancando-a à força e negando todos os actos dos quais pudessem vir

a arrepender-se – porque arrependimento não existe nestes seres quando assim

actuam –, para aventarem essa mesma culpa sobre o homem livre e assim o subor-

dinarem ao seu suposto poder.

Há histórias inventadas como um embuste, outras inocentes; umas carregam o

peso de séculos, aqueloutras projectam-se no futuro, ao passo que aquelas de mais

além se perdem no mistério das paixões; umas são amargos de boca, outras doces

derretendo com maior ou menor lentidão numa avalanche solene. A décima-terceira

história é uma delícia na boca dos outros. Porque aquela avó chinesa está além sen-

tada com um bebé no colo – o bebé todo pedante e sorridente, a avó a segredar-lhe

ao ouvido –, brincando com o garoto que traz uma chupeta doce na boca; aquela avó

chinesa tem as íris gastas e o cabelo de neve a namorar-lhe os ombros.

Quando se aperceberam eles de que a fogosidade duma paixão juvenil lhes tinha

invadido os corpos, arrombado as portas do pensamento vergando à força mil tran-

cas e fechaduras de ferro, inoculado na carne veneno para o qual – é sabido – não

há remédio senão o das carícias primaveris e excedidas, os beijos ardentes, os

toques sedosos, a festa dos suores em corpos rijos e sãos, urdido mil teias rendadas

em torno dum coração demasiado sôfrego para poder recusar tanto enlevo e ternura

mais comovida que aquela, quando eles se aperceberam... era já demasiado tarde.

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Ela tomava banho em pó de cardamomo dissolvido nas águas ferventes e iludido com

sais da Toscanha; quando saía da espuma espalhava água de rosas por todo o corpo

e embrulhava-se num roupão de cetim indiano da cor do gengibre, acabado de engo-

mar com mil cuidados e um borrifo de talco pela passadeira zelosa; às mãos, calha-

va envolvê-las num óleo de amêndoas cheiroso ou numa mistura de leite com mel,

aquele que fosse puro oiro e do mais fino – porém via ela nesses hábitos novos ape-

nas um deleite resultante da descoberta recente de novos modos de bem-estar. Por

sua vez, ele dava longos passeios, ao fim da tarde, pelos jardins e à beira-mar, des-

calço na areia acobreada com um tecto de gaivotas despontando-lhe acima da cabe-

ça – e então sentia uma paz de espírito incrível e uma liberdade para pensar nela sem

fim, e via-a com ternura enquanto a espuma das vagas simulava uma noiva florida

que, escorregando no altar, espalhasse dezenas de rosas brancas aos pés dos con-

vidados num bouquet partilhado e feliz e tornava a recordá-la com uma ternura ainda

maior – o coiro das gaivotas amplificando o seu grasnido como num cântico de igre-

ja fazendo ricochete nas naves laterais –, embora não tivesse associado nunca, por

descuido ou simples recusa, esse estado de espírito a um amor florescente.

Apanhou-os desprevenidos a ânsia de se verem ao pé um do outro, o comprimen-

to da espinha que lhes golpeava a garganta como uma serrilha de segador acaso se

desencontrassem, a canícula do sorriso na boca do outro, a alfazema dele no carda-

momo dela, as mãos uma na outra, os corações passeando tontos pela pele, a inten-

sidade dos suspiros que traziam chá dentro numa noite de Inverno, e cómodas col-

chas e almofadas aconchegantes. Além do mais, o colo dela podia bem servir na nuca

dele – e isso surpreendeu-os assim que o experimentaram –, como um chapéu à

medida ou uma tatuagem extravagante; os seus pescoços enrolar-se-iam ainda em

gestos flamingos para beijarem em cada um a derme perfumada que fica por trás dos

ouvidos.

«Escuta-me», pensava ele à beira-mar quando o tecto de gaivotas lhe cedia uma

clareira de silêncio sobre a qual reflectir e os reflexos do sol na água verde, densa,

imitavam vitrais. «Escuta-me: é verdade que esta ânsia, este fervor no sangue, abre

as asas dum amor por vir ou já muito antigo, escondido de nós? Que jogos são estes,

que cristas de onda, que rosas escarlate derretidas na areia e marés-borboleta pou-

sadas nos jardins me arrastam o sentimento para ti?». Não que as suas palavras

encontrassem eco nas falésias, não que ela mesma pudesse esclarecê-lo de imedia-

to e em pessoa porque não ali – simplesmente ele dirigia-se a ela até na sua ausên-

cia, e isso começava a perturbá-lo. Rosalina Ling tinha os olhos oblíquos e placidez

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de marmota, uma cintura muito estreita, um belo rosto oriental e redondo com pele da

cor e textura do pêssego; ressoavam os seus passos pela cabeça dele, na calçada

húmida ao anoitecer, e o aroma da laranja deixava ela como rasto a quem quisesse

espiar-lhe os movimentos.

Ele, como ela, entretiveram-se longo tempo nas piadas fraternas antes de passa-

rem aos actos: sabiam perfeitamente a quantos descuidos exagerados podia condu-

zi-los a emoção exaltada que lhes fazia estremecer o corpo (um choque eléctrico se

se dava tocarem-se), tão-pouco quereriam estragar uma bela amizade, todavia esta-

vam bem ao correntes de que quanto mais reprimissem tal afecto maior e mais

estrondoso seria o impacto inevitável. Não se continham nem queriam conter-se. Um

dia houve em que Xuji Chang bateu à porta de Rosalina Ling: fê-lo em tom de ceri-

mónia, com três pancadas secas e breves. Estava excitado, nervoso – o que procu-

rava ocultar com uma determinação estudada e pose séria digna dum enterro –, tra-

zia no estômago uma sensação feérica e uma agonia áspera em simultâneo, esta últi-

ma envolvendo-lhe os membros por inteiro, que lhe desenhavam no ar gestos des-

propositados e involuntários, como parecia evidente. «Como segui-lo nos seus propó-

sitos, como escutá-lo nas suas intenções?», pensava Rosalina sem o ouvir, quando

assomou à porta, acompanhando-lhe fascinada aqueles movimentos esquisitos.

«Não me desconcertes mais ainda, anda, ouve-me...», dizia para consigo Xuji no

meio da sua escandalosa verborreia. Ela só conseguiu perceber o pedido de Xuji para

que o acompanhasse ao café, julgou que pretendendo o rapaz uma das conversas

costumeiras onde tinham o hábito de misturar gracejos, boatos acerca de terceiros,

confidências sinceras e conselhos oportunos, tudo isso envolto numa nuvem de cari-

nho muito densa e no sabor do chá com leite que lhes acertava a temperatura do

corpo, atacada de intempéries na presença um do outro. O riso de Rosalina ecoava

por vezes nos espelhos do café, e então ele encolhia-se a um canto, meio tímido meio

tonto (era como se aquela gargalhada fulgente lhe ressoasse por dentro, em cada

parede dos tubos do organismo, no revestimento dos nervos, nos meandros do seu

corpo), correspondendo à alegria espontânea da amiga com um sorriso fechado, dia-

gonal, sedutor. Naquele dia quase correu com ela de mão dada rua fora, puxando-a

com força – uma força que espantou Rosalina Ling e, no entanto, a não magoou,

antes lhe transmitiu uma confiança segura difícil de justificar ou entender – até à

esplanada do café, depois para o recato interior do aroma das bicas e da pastelaria

cremosa, dos chás, dos galões num dia frio. «É assim: eu não sei se tu sabes ou se

já reparaste, mas aquilo que nós temos andado a fazer parece-se muito com...»

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começou Xuji Chang num tom um pouco irritado, como se sentisse que ela lhe escon-

dera algo durante todo aquele tempo, algo em relação ao qual só agora ele começa-

va a tomar consciência. Não acabou a frase: ficou a observar Rosalina absolutamen-

te encantado. «Com quê?» quis saber ela, admirada de todo; «Com... com...» gague-

java Chang. «O quê? – insistiu Rosalina – Não me vais dizer que me arrastaste até

aqui para não terminares a frase?!». «Bem, é que... Ouve lá, tu gostas de mim??»

quis ele saber sem mais quê; «Se gosto de ti? – gargalhou ela – Mas é claro que

gosto de ti, senão não te aturava estas cenas! Agora a sério: claro que sim, estive

sempre ao teu lado, não estive? O que é que te faz agora duvidar? Realmente, tens

cada uma!». «Não é isso! – depois o rapaz murmurou – Se gostas de mim... tu

sabes...»; ela olhou-o com uma ternura crescente, enrolando numa das mãos os

cabelos antracite: «E tu? ...Gostas de mim... tu sabes?», sorriu; «Bem, não é isso...

quer dizer... De início não, não foi assim, mas agora que penso nisso... isto é, ocu-

pas-me cada vez mais tempo. Ou seja: sim.»; «Deveras? Bolas, nunca imaginei...»;

«Não? – surpreendeu-se ele – E eu que cheguei a pensar que me tinhas armado o

anzol!»; «...Que fosse correspondida... Isso é que eu nunca pensei. Sabes, nos últi-

mos tempos dou por mim com certos desejos...».

Xiju Chang e Rosalina Ling casaram a quatro de Agosto, depois das vénias sola-

res ao padroeiro Agostinho. Eram festas que não deixavam dormir a cidade durante

três dias: muito altas honrarias se prestavam ao santo fanfarrão, com grandes ban-

quetes um pouco por todo o lado, carroças em desfile puxadas por éguas novas,

repletas de ramos de hortênsias, alecrim, orquídeas e pétalas de rosa em todos os

matizes e formatos. Guiavam as carroças mulheres vestidas de negro – saia rodada

a preceito e blusa em veludo de breu – com fitas carmim a tiracolo, duas por veículo

e não mais velhas que os trinta anos (assim rezava a tradição), trazendo no banco da

carroça pousado entre ambos os colos um grande saco de linho cru cheio com as car-

caças de pão em oferenda ao santo. O desfile dos meninos fazia-se pelo fim da tarde

em duas ruelas estreitinhas onde um cheiro a coco pulava pelas janelas dando sabor

ao frango guisado que era uso nessa noite, os meninos salivando todos das gengivas

em trajes brancos e desenhando duas filas indianas em formação militar, pisando cal-

canhares alheios à frente e polegares atrás, com sapatinhos de couro apertados nos

pés, procurando recitar acertadamente as orações ao padroeiro enquanto mascavam

caramelos e arrancavam flores de papel dos peitoris vizinhos. Ao segundo dia mata-

va-se o porco e levavam-se à brasa três javalis, galinholas, perdizes, meia dúzia de

tordos, faziam-se com couves viçosas, muito alho e bom azeite as migas do pão, mol-

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davam-se os fritos açucarados para a ceia, espalhava-se canela nas maçãs quentes

que fumegavam as salas nos seus tabuleiros; juntavam-se na praça principal um con-

junto de baile e dezenas de pares dançantes, elas de saia rodada e lenço encarnado

ao pescoço, eles com chapéu preto e um colete acetinado – do branco ao lilás, do

preto ao castanho – donde pendiam correntes de oiro. Ao terceiro dia vinham as mas-

sas folhadas e o esparguete doce, três botes subiam o rio enfeitados de bandeiras e

recebiam no casco um litro de champanhe em paga pelo esforço, depois ficavam

cinco ou seis dias a bambolear no cais até as ressacas da festa amainarem.

Desfaziam-se as tranças das meninas e aos catraios lavavam-se-lhes os cabelos da

brilhantina, e murchavam as rosas de papel e os cravos encarnados em cetim, as tre-

padeiras em plástico ou de chita listrada.

Foi quando a festa desbotou e santo Agostinho empanturrado, bêbedo como um

esfregão, satisfeito da vida, cheio de ofertas benzidas, dormitava já que Xiju Chang e

Rosalina Ling se casaram. A cerimónia foi simples, curta e duma elegância discreta,

tendo passado quase despercebida: compareceram apenas os parentes mais próxi-

mos trazendo cada um, a pedido dos noivos mas não com pouca estranheza, uma

alfarrobeira de presente. No final da celebração os convidados abandonaram os ver-

mutes e despediram-se, deixando o casal a sós com os seus estranhos presentes: foi

nesse dia que Rosalina e Xuji Chang plantaram as treze alfarrobeiras na grande pro-

priedade, num monte à beira da estrada ocre que sai da vila serpenteando e se avis-

ta do café onde tantas confidências trocaram juntos, por longos anos antes e depois

de darem o nó. É no espaço desse café, agora convertido em restaurante da filha, que

Rosalina Ling gosta de vir sentar-se nas tardes de Inverno – como tantas vezes fez

com Xuji, desaparecido há treze anos por causa dum AVC fulminante – muito direita

no fato aprumado de lã escura em xadrez, bem junto à vidraça e com um chá espar-

gindo-lhe de vapor o rosto redondo que entretanto ovalou volvendo-se opaco, o neto

brincando no seu colo enquanto ela murmura segredos íntimos: um garoto oriental de

riso aberto e chupeta doce, mãos coladas na janela fria, a quem contou durante o ano

inteiro, de todas as vezes que aí veio, a história das alfarrobeiras que avista ao longe,

as treze alfarrobeiras floridas dum amor faz exactamente esse tempo perdido.

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Ibêje-Ìbeji

No dia em que os gémeos nasceram, o deus dos azares soprou cedo a chama do

sol por trás da mata desenhando um cerco à obscura e recôndita cidade de Santa

Clara Bóia. Rodivaldo e Rodimiro Argento, filhos de Rodrigo Almiro e Valquíria

Argento, são dois gémeos cearenses de ascendência japonesa por parte da mãe e

avô paterno judeu: «Foi», dita um; «Pois sim», confirma logo o outro, e as suas cabe-

ças lembrando na forma alcachofras gigantes acenam afirmativas, seguras, adiante e

atrás alternadamente, como se crineiras inquietas num par de cavalos incomodados

pelos arreios. Compreendam: impossível descrever um sem o outro, porque um é na

sombra do outro, e para cúmulo outro ilumina a existência dum, como tecidos adja-

centes crescendo no interior do mesmo organismo.

«Não foi, manu?» - perguntava o mano um; «Foi sim, chápá trêiss» - respondia o

mano dois; «Issu’qui é bom...» - regozijava o mano primeiro – e assim se entenderam

eles infância fora, mesmo que despertando as suas manhas certa indignação entre

os garotos da equipa adversária. Raramente chegava a perceber-se de que assuntos

falavam na verdade entre si e suscitavam essas conversas, com demasiada frequên-

cia, uma certa inveja ou um rancor difuso em quem as escutava, pelo facto de os dois

irmãos partilharem todo um mundo de afinidades inacessíveis e ocultas socorrendo-

se somente de monossílabos: «Sim»; «Issu»; «Pôiss»; «Cérrtu»; «Ôkay», «É bein...»,

e acenavam veementes com as grandes cabeças vegetais, confirmando-se um ao

outro em cada gesto ou sílaba, e crescia irresistível essa corroboração como água na

boca quando um se encontrava na presença do outro – ou seja, quase sempre – tal

qual um acto reflexo. Morenos olhos diagonais, seus rostos acenando de perfil lem-

bravam uma serpente bicéfala pronta a engolir sem vacilar qualquer animal rasteiro;

apesar de fisicamente idênticos, Rodivaldo brilhava na cara uma espantosa parecen-

ça com a mãe, ao passo que Rodimiro tinha, sem tirar nem pôr pêlo, o rosto hirsuto

do pai. Antes de saírem de casa enfarpelados a preceito para o baile dos bombeiros

ou a missa na catedral de Santa Clara Bóia, questionava Rodivaldo o seu mano, ou

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vice-versa, ansiando aprovações:

- Qui taul isstô?

- ‘Cê ‘tá com cara dji mim. – respondia o irmão.

- I qu’é qui cê ácha? – impacientava-se o primeiro.

- Básstantji bêin! – sorria Rodimiro com uma chispa de vaidade riscando-lhe as íris

de fresco, ele que sempre se achava apanhado na surpresa de ver-se ao espelho

sem espelho, um nitrato de prata humano acenando no outro lado da moldura.

Em crianças, seu entretém predilecto era o «jogo dos reflexos cruzados»:

- Quando eu lêvantá meu braço djireitu, ‘cê lêvanta seu braçu issquêrdu, entendji-

duu? – ordenava Rodimiro.

O irmão obedecia alegremente imitando-o em espelho, e durante tardes inteiras

mimetizavam-se um ao outro até à exaustão, perdendo por mútuo acordo aquele que

se revelasse mais incauto ou distraído nas bexigas:

- Páusa: prêcisu irr nu bânhêru!

- Cumé qui eu vô imitá: com á djireita ou com á izquêrrda? – inquiria o mimo mano.

- Ô ôtáriu, num intéréssa: ácábou u jôgu, né? Ôxentji, mininu!

- Eintão... ‘cê pééérrdjiii! – concluía triunfante o outro irmão.

Ao todo, Rodivaldo perdeu três vezes mais partidas do que o gémeo, talvez por-

que a impaciência fosse um dos seus traços distintivos, enquanto no mano o orgulho

reinava sobre todas as coisas e em quaisquer circunstâncias, ditador absoluto do seu

modo de ser. Possuía Rodivaldo o dom de ver e pesar todas as perspectivas na justa

relatividade de cada uma, o que desembocava numa hesitação crónica colando-se-

lhe ao corpo e a cada um dos membros sem finalidade definida, aparente ou intenta-

da: tal como apenas se permitiam um alongamento das sentenças quando a sós um

com o outro (acaso escondessem uma fraqueza qualquer...), somente nestes gestos

esporádicos diferia o comportamento de Rodivaldo adulto do seu irmão já maduro,

cuja postura era sólida e firme como uma coluna antiga erigida em mármore maciço,

de maneira que ao abanar a cabeça em aprovação ao irmão todo o corpo de Rodimiro

parecia uma estrutura anti-sísmica resistindo intacta, por qualquer milagre da nature-

za, a um violento abalo de ternura. Ao contrário do mano, Rodimiro – que nos seus

anos de juventude efectuara um único e sigiloso trabalho em favor dos Serviços

Secretos –, era um sujeito incrivelmente chorão: dependendo do dia e da susceptibi-

lidade do momento, as lágrimas poderiam gotejar dos beirais daquele edifício abaixo

quer lhe dissessem «Bom dia» ou «Boa tarde», «Está tudo bem» ou «’Cê é um crá-

pula, né cára?». Rodimiro e Rodivaldo estão agora em Portugal com uma missão:

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essa missão é também ela sigilosa.

Passeando-se no metro e escolhendo à toa, sem hora marcada, o destino das via-

gens pelo ponteiro certo dos segredos trocados ou dos acasos, os gémeos cearen-

ses de feições orientais travam conhecimento com um senhor na aparência respeitá-

vel, com uma pomposa barba branca metalizando-lhe o rosto e à primeira vista um

pouco inibido, etiqueta “Paul & Shark” (ou “Paulo e o Tubarão”, em tradução grossei-

ra) à deriva no impermeável fosco. Mas o homem revelou-se profícuo nas falas e

quase voraz nas epístolas: discursava abundantemente, como o caudal dum rio des-

governado, e apesar desse ruído poluidor ambos os gémeos pensaram em uníssono:

«essi homem daí tem um segredo qualquer no seu passado, e tanto se esforça por

reprimi-lo que quase o revela com tanta palavrura, isso independentemente da alian-

ça conjugal e do aspecto tão composto», e logo em seguida disseram-se a si mes-

mos sem jamais o pronunciarem em voz alta: «Mas não se preocupe, meu irmão, que

comigo esse segredo está bem guardado, passando à condição de tripla dobradinha

– segredo não só do homem, como de nós ambos também...».

Eram de facto, os gémeos Argento, os melhores pastores de confidências do

mundo: Rodimiro trazendo ao pescoço um rosário de missanga amarela e Padre

Nossos esmeralda sem cruz, com a sua careca pequeninha e solidez de baleia asso-

prando ao alto um esguicho lacrimoso na serrilha dum mar recortado em lenços de

papel, Rodivaldo com seus tiques múltiplos de levar a mão ao nariz, ao queixo, ao

ouvido ou à boca conforme a impaciência lhe apetecesse, ou de tocar um batuque

estrangeiro improvisado sobre a rótula do seu joelho flamingo. Este irmão, se é calvo

não se lhe vê a tonsura, pois ostenta na cabeça um barrete de Pai Natal campino em

veludo azul cobalto adornado a estrelas prateadas e com uma fiada de luzes escar-

late catrapiscando no rebordo à vez, cingindo-lhe a testa como uma tiara – parece

divertido com o reflexo da sua própria figura no vidro da carruagem, visto que o mano,

ruminando a chiclete, não se lhe juntou na paródia. Mascaram-se os dois com uma

aparência de turistas desgovernados e assim, à medida do seu passo leve, escolhem

à toa uma estação para experimentar o ar na superfície, quais toupeiras do feno

emergindo na calçada da cidade: quando saem à rua o orvalho de luzes tardio abre

a boca dum anjo pasmado na fachada da igreja em frente, então Rodimiro deixa cair

dos seus beirais uma grossa lágrima ao chão:

- U qui fôi, manu? – pergunta Rodivaldo aflito, na ignorância primeira do que sen-

tia o seu gémeo.

- Num sei não, mi bátêu uma cérrta nôstálgia. É qui... nunca máiss ninguêm iscrê-

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vêu cômu Tólstói... – suspirou Rodimiro profundamente, à medida que uma outra

lágrima lhe floria na pálpebra cimeira.

- Ué, má purrquê issu ágóra, manu? – insistiu Rodivaldinho admirado.

- Purrqui à gentji ‘tamu en guérra i eu quêria er’á páizz. – concluiu Rodimiro em tom

definitivo.

O enigma do pensamento filosófico um tanto ou quanto catastrofista formava o ter-

reno favorito deste irmão, bastante mais pragmático, porém, do que o seu gémeo

Rodivaldo. Uma missão sigilosa era então a razão da vinda de ambos: tinham um

contacto em Portugal escrito num papel, deixado pela mãe pouco antes de falecer –

contacto que não sabiam se vivo ou morto – e não tinham mais nada. Vieram à reve-

lia do pai, havia muito tempo separado de dona Val, e que não podia sequer ouvi-los

falar nela, quanto mais sabê-los satisfazendo os seus desejos de defunta. Rodimiro

transportava o rosário, Rodivaldo amachucava, nervoso, o papel que a mãe deixara

escrito no fundo do bolso das calças, e que rezava assim:

“Dei aos gémeos o contacto de X para que pudessem conhecer a avó, tal como eu

havia prometido no caso de vir a morrer primeiro. Carrega o mais velho este papel,

enquanto o seu igual mais novo possuirá um rosário de missanga amarela abraçado

ao pescoço, com Padre Nossos verdes e sem cruz.

Assinado: sua Valquíria”

A avó materna de Rodimiro e Rodivaldo fora uma mulata enxuta a quem um japo-

nês de São Paulo perdido na Caatinga fizera uma filha, fugindo logo depois – devia

ser já uma anciã, nenhum dos gémeos acreditava que pudesse estar ainda viva; ape-

sar disso, os remos da curiosidade e o respeito que o luto impunha moveram-nos

para este lado do Atlântico, quanto mais não fosse ansiosos por conhecer o contac-

to.

Marguerite Attiékê, proprietária da pensão Timbuktu, nascida no Mali directamente

da barriga da mãe para as águas plácidas do Níger, não tinha idade nem sexo, mas

uma voz de abismo. Movimentava-se como se um cordão umbilical invisível a unisse

ainda à superfície espelhada do rio natal e o ar fosse um meio líquido no qual o seu

corpo, qual barco de pesca sem tempo, flutuasse à deriva. Foram encontrá-la no

Martim Moniz, sentada no átrio da loja dos seus vizinhos chineses, a jantar animada-

mente e tomando o seu lugar numa roda de caixas em papelão que simulavam pufes

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inchados. Cumprimentou-os com uma comoção para eles ainda incompreensível,

retirando-se logo depois, de novo para junto dos comensais – enquanto se afastava

assim de costas, o olhar de Rodimiro prendeu-se-lhe ao penteado, um totó na nuca

com trancinhas espetadas em leque como a cauda dum pavão que o enterneceu, e à

túnica azul acetinada caindo-lhe tão bem no corpo largo; Rodimiro, por seu turno, pôs

as mãos nos bolsos e ensaiou uma modinha para disfarçar a timidez (“Éssá bêlêzá/

dá tantá trizztêzá/ qui máizz váliá não sêrr...”), ao mesmo tempo que observava com

olho de falcão o grupo reunido para jantar: era uma família constituída por pai, mãe,

filho adolescente e outra filha ainda bebé, além dum venerável idoso ao lado esquer-

do do qual Marguerite se sentara. No centro da roda, ali mesmo no chão, tinham colo-

cado um fogareiro e sobre ele uma grande caçarola vermelha onde ferviam camarões

com cogumelos enrodilhados em massa Mì Chay. Todos os gestos de Marguerite

eram graciosos e precisos, mesmo quando sorvia a sopa de soja preta ou sorria dos

gracejos que o velho certamente lhe dizia numa língua absolutamente incompreensí-

vel para eles. Rodimiro olhou o irmão: estava deliciado com os timbres agudos do

cantonês, como que pincelados com toda a leveza no ar e só interrompidos pelo

choro intermitente da bebé rabugenta, pelo que repetia baixinho só para si todas as

palavras que conseguia ouvir daquele canto. Encontravam-se os dois colocados de

pé, cerimoniosos e discretos como cabides, um pouco longe do grupo, e aí fizeram

questão de permanecer até a refeição estar terminada: as pessoas ali reunidas come-

ram rapidamente, trocando impressões acaloradas ao mesmo tempo que sorviam chá

de gengibre dumas tacinhas redondas ou uma bebida de tamarindo servida em copos

pequeníssimos. Passaram das massas aos doces de sésamo e amendoim e ao ram-

butan com ananás, enquanto o adolescente atacava uma gelatina multicolorida.

Terminado o jantar, a família dispersou-se – o velho foi o primeiro a recolher-se – e

Marguerite chamou os gémeos para junto de si com acenos vigorosos: «Um de cada

lado, meus meninos, façam favor...». Teve ainda tempo de esticar o queixo na direc-

ção do idoso que se arrastava para fora dali: «Os velhos chineses ficam nos bastido-

res, retiram-se para os armazéns para morrer sozinhos porque acham que a morte é

uma questão privada. Só eles e a maldita, numa luta recatada: jogam às cartas duran-

te todo o dia, saem unicamente para comer...», depois gargalhou: «Já eu, sou cobar-

de sem remédio: viro-lhe as costas sempre que posso!» e inspirou profundamente a

seguir, trocando a expressão límpida por um olhar amargurado e sério: «...Só nunca

pensei que a vossa mãe fosse primeiro».

Abrigaram-se os três um pouquinho neste silêncio último. Aquela clareira aberta e

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nua contrastava com a parafernália de objectos ao redor, nas prateleiras. Rodimiro

lembrou-se de lhe elogiar a beleza quase intacta, ela riu-se brincalhona: «É, estás a

chamar-me uatchika munakazi...».

- Mas que língua é essa agora? – quis saber Rodivaldinho.

- É Kimbundu – esclareceu ela –: aprendi no Brasil com uma amiga angolana. Às

vezes uso-a porque me parece mais natural e verdadeira do que o próprio português

ou a afectada pronúncia francófona. Tem as raízes no coração, podia ser a língua uni-

versal. – e mudando de assunto, inquiriu pensativa: – Com que então, és tu o mais

velho? Vamos – disse, levantando-se com frescura –, ainda tenho de passar pela pen-

são antes de recolher a casa, e só uma vez aí chegados vos direi aquilo que preci-

sam saber.

Quando saíram à rua, viram a fonte estrelada da praça reproduzindo nas suas

águas as estrelas-guia penduradas sobre as ruas e a noite límpida do céu, grávida

em mil astros todos gémeos.

- Sinto-me nascer outra vez. – declarou Marguerite Attiékê, num tom tão misterio-

so quanto belo.

Pelo caminho, repararam que a mulher tinha um adorno de prata ao pescoço com

um polígono branco na ponta – ela explicou-lhes que aquele triângulo aguçado era

um dente de tubarão, e que todos os bichos do mar exerciam um fascínio especial

sobre a sua pessoa. Assim que entraram na pensão, a recepcionista precipitou-se em

queixas:

- Ai, dona Marguerite, eu não sou nenhum almeida, para andar agora a varrer o lixo

dos clientes!

- Por que não jantaste connosco, Maria Rosa? – perguntou a patroa com o seu ar

mais pachorrento.

- A senhora já sabe que o glutamato incha-me o estômago... Eu em Viseu até

comia. – desculpou-se ela acidamente.

Fazendo a sua renda, a recepcionista tinha como companhia sobre o balcão poli-

do um porco de pé, esculpido em cerâmica e com óculos, para o qual não se vislum-

brava finalidade alguma, senão que se adivinhava produto dum gosto decorativo duvi-

doso. Ela sentada com as suas agulhas e o porco erguido vestindo um fraque, ambos

de óculos na ponta do nariz, dir-se-iam parentes. Beirã sem nenhuma dúvida, de

porte atarracado e bochechas carnudas como cerejas, Marguerite calculou depressa

as contas que tinha a ajustar com ela, empurrando logo em seguida ambos os

gémeos pelos rins para o buraco frio da noite.

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Page 77: Continhos de Alfarrobeira

Morava longe, num bairro sossegado e acolhedor derramando-se dengoso pelas

vértebras da encosta. Quando rodou a dupla fechadura da porta, vislumbrou-se no

salão da casa uma grande salamandra soprando calor e espectros de luz pelo com-

partimento, iluminando gravuras de peixes diversos aguareladas nas paredes, um

quadro a lápis de óleo com uma ilha negra e vinhedos claros trepando os montes

sobre um mar tranquilo, e uma kora envernizada emudecida sobre um canapé. Na

mesa nevada, desenhada em blocos de mármore angulosos, havia um prato com

anchovas, além da luz violácea dos olhos-de-boi formando um ramo seco e compac-

to com penugem no caule, as suas corolas espreitando o mundo pelo rebordo duma

jarra açafrão. Sentou-se a mulher num grande maple rosado oferecendo-lhes o sofá

à ilharga, e nesse momento encostou ao braço do cadeirão uma bengala em teca

maciça com duas pálpebras e uma íris de marfim incrustado, que usava para ampa-

rar a dança das ancas ao ritmo do pé mergulhado em gesso. Assim que se sentaram,

os dois gémeos surpreenderam um pequeno animal fixando-os pelo canto do seu

olho rubi ao fundo da sala, no meio da densa penumbra: tinha Marguerite Attiékê um

coelho albino de estimação no interior duma gaiola com hastes em verga cor de mel,

pousada rente ao soalho sobre um tapete escurecido em tons de musgo. Pensaram

que o animal por pouco não tremia pelo nariz todos os calafrios do corpo, ou então

sucedia que farejava com desconfiança nas visitas algum odor diverso das cenouras

costumeiras.

- Não se preocupem com ele – aconselhou Marguerite –, é inofensivo e já vê muito

mal. Vamos antes ao que nos trouxe aqui: eu sou o vosso contacto. Ora, o mistério

do contacto tem de ser resolvido... com tacto. – constatou ela sem conseguir ocultar

alguma impaciência e espargindo mais um suspiro quente pela atmosfera cerrada

daquele lugar – Enfim, esse colar pu-lo eu na vossa mãe quando era bem pequeni-

na.

- Cômu ássim? – intrigou-se Rodivaldo – Máis não foi ámiga tárrdjia dá mámãe:

cunhêcida, vizinhá, áfáisstada, sei lá? Neim conhéci nóssá‘vó?

- Não, meu querido, percebeste mal: eu sou o elo e o fim da linha. Fiz esse colar

com estes dedos velhos que aqui vês para sorte da minha filha Valquíria: o amarelo

é a cor de Oxum, ventre e concepção, beleza, amor e fertilidade (creio que por isso

terão nascido gémeos...), o verde-claro simboliza Ossain, deus das plantas medici-

nais e dos remédios (este, verdade seja dita, não lhe valeu de muito no cancro). Já

aquele ali – e virou-se a custo, apontando uma moldura oval, minúscula na estante,

com um retrato de homem amarelecido dentro – é o vosso avô japonês, que tocava

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Page 78: Continhos de Alfarrobeira

no violão as maiores maravilhas audíveis. Fez-me uma serenata a que não resisti:

aqui estão vocês dois, portanto...

Rodimiro abriu a boca um bom bocado, pasmado hipopótamo da vida, contudo os

seus olhos eram desta feita raiados como sulcos argilosos num rio seco:

- Máiss não páreci tão vélha...! Não, neim purr sombráiss!! Veiu imbórá du Bráziu

purrquê?

- A família do teu pai nunca gostou de nós: não ia atrapalhar o casamento duma

filha... – encolheu ela os ombros, vagamente resignada, acendendo um cigarro na

pontinha das unhas lilás.

- Num foi prêcisu: eli si átrápálhôu á si própriu! – ironizou Rodivaldo.

Então os gémeos sentiram-se fundir num ser completo, como Ibêje-Ìbeji, ao calor

maternal daquela mulher – o coelho cego no canto da casa parou de farejar perante

o fenómeno, largou uma cenoura enfadado e piscou seu olho carmesim.

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Page 79: Continhos de Alfarrobeira

A Maldição de Hemingway

“Incêndio destrói museu Hemingway nas Bahamas”

“Um incêndio que deflagrou na manhã de sexta-feira destruiu o museu de Ernest

Hemingway e o bar The Compleat Anger na ilha de Bimini, nas Bahamas. Fotografias

e objectos que pertenceram ao escritor foram consumidos nas chamas, que destruí-

ram o edifício de madeira que constituía a maior atracção turística da pequena ilha e

que, na década de 1930, foi um dos refúgios do romancista americano. Entre jorna-

das de pesca que se diz terem inspirado a sua célebre novela O Velho e o Mar, Ernest

Hemingway (1899-1961) era um cliente habitual do Compleat Anger e trabalhou no

argumento de Ter e Não Ter (filmado por Howard Hawks) em Bimini.”

(in Jornal Público; domingo, 15 de Janeiro de 2006)

Sou de opinião que a notícia não relatou com grande veracidade os incidentes: só

quem não esteve em Bimini. Bimini (eu já lá estive) é um agrupamento encurvado de

ilhotas pequenas situadas nas Bahamas, no Oeste Caribenho, ao largo de Miami e

Fort Lauderdale, a norte da ilha de Andros, North Cat Cay e South Cat Cay, e a leste

de Great Harbour Cay. Nestas ilhotas banhadas a oeste pelo estreito da Florida há

tubarões, golfinhos, marlins-azuis, barcos com capotas em arco, cardumes doirados

e recifes com cachos de corais cilíndricos e flores cor-de-rosa, peixes da cor das

zebras, cobras chamadas Boas e outros peixes ainda chamados Língua de Flamingo,

além de caranguejos gigantes da selva com carapaças verde-mortiço e enormes pin-

ças cortantes. As Bimini, rodeadas de líquidos esmeralda, invadidas de peles gracio-

sas e incandescentes, têm a forma dum útero de mulher e muitos iates em reparação

nos ancoradouros. Existe um nó de navegação Bimini. Há dunas e palmeiras e jun-

cos e algas nas praias; as palmeiras dominam, aquelas palmeiras que parecem um

espanador deitado sobre um mar azul, tão azul que retira o fôlego. Na vegetação exis-

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Page 80: Continhos de Alfarrobeira

te um sopro de vida que nos une ao universo e todos os animais espalham à noite

pelo chão um rumor de sombras fugidias, cheio por dentro do mesmo calor molhado

que nos ensopa a nuca ou escorrega pela espinha e desliza membros abaixo duran-

te o dia. Bimini é o portão de passagem, a porta de entrada nas Bahamas: “The

Gateway to the Bahamas”, como dizem os ianques. Daqui para diante, umas coisas

melhoram e outras pioram, como o feíssimo Hotel Atlantis em Nassau Paradise

Island, a sudeste. Já Rum Cay e Spanish Wells são localizações no mínimo interes-

santes ou curiosas – com tanta água à volta, para que seriam necessários os nume-

rosos poços? Mas eu queria falar-vos das Bimini – o paraíso dos mergulhadores –,

do seu Nixon Harbour e de como convém estar bem perto em relação a South Bimini

Yatch Club quando se põem nuvens de tempestade a protestar espelhadas no mar

tranquilo e traiçoeiro. Convém também distinguir desde já entre North Bimini (digamos

que os ovários no desenho de perfil uterino das ilhotas) e South Bimini (digamos que

uma parte que poderão muito bem os senhores imaginar, ao localizá-la em relação ao

conjunto das outras ilhas, sem que eu a refira explicitamente, o que se tornaria sem

sombra de dúvidas ridículo no que diz respeito a um pedaço bem concreto de terra,

com aeroporto, terminal, torre de rádio e tudo o mais). Queria falar-vos do Bar Fim do

Mundo em Bimini – “End of the World Bar” para os ianques –, feito com tábuas de

madeira gastas caligrafadas a preto, e do arco ogival cor de sangue encimando o por-

tão do Bar Compleat Angler, a sua grande borracheira pouco adiante, com grandes

dentes carnívoros assomando dentro dos cones das folhas numa fúria absoluta, e a

varanda torneada pintada em tons esverdeados consumando na sua aparente tran-

quilidade uma contradição interessante. Ou falar-vos, por exemplo, de Ernest

Hemingway, quando não estava a trabalhar n’O Velho e o Mar nem a conviver com

os habitantes locais no Sloppy Joe’s Bar, emboscando os esquivos marlins-azuis

longe dos bancos de areia, no mar profundo, pendurando-os depois num convés bar-

queiro por meio de complexos sistemas de roldanas e cordas, de bico aguçado como

uma agulha roçando o tabuado para a fotografia gloriosa junto dos compinchas, a

coroar com perfeição e bravura a pescaria.

Devo confessar que a pesca não me atrai tanto quanto outros entreténs: informei-

me sobre os campos de golfe mais viçosos nas Bahamas, comprei o Guia de

Mergulho com todos os detalhes sobre as profundezas atlânticas e inscrevi-me num

pacote promocional com a duração de oito dias e a partir de $499, soltando amarras

em Fort Lauderdale. Fiz-me ao mar caribenho com uma fotocópia da ilustação das

ilhas da autoria de Thomas Medina (’92) dobrada no bolso dos calções – estava um

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Page 81: Continhos de Alfarrobeira

pouco desbotada à chegada, a cor comida pelo vento salgado e pela persistência cor-

tante das marés – onde as ilhotas “Rabbit” de Bimini, as mais meridionais, vinham

representadas com a forma de três pequenos e redondos excrementos de coelho lar-

gados ali em pleno mar, o que me pareceu no mínimo divertido e na melhor das hipó-

teses bizarro. Quando ancorámos, passei os olhos vagamente pela carta marítima

das Bimini que o comandante trazia aberta sobre a mesa da cabine:

255ºM 42mi 045ºM/ Shifting Sandbar/ EAST WELL/ Casa Grand Hotel/ PARADISE

POINT/ Shifting Sandbar/ BAILEY TOWN/ NOTH BIMINI/ Mangroves/ Alec Cay/

Cable Area/ ALICE TOWN/ Marsh/ Pigeon Cay/ BIMINI ISLANDS: see BIM3 Closeup

Bimini Harbour/ Sand Flat Dry at Low Water/ Aero MO (B) R 20 s 23 mi Tower Missing

1997/ Sandbar/ Range/ SOUTH BIMINI/ Airstrip/ PORT ROYAL/ Marsh/ NIXONS

HARBOUR

e não compreendi nada. Senti-me feliz por trazer aquela gravura naïf e desbotada

dobrada no bolso dos calções, sempre seria mais fácil orientar-me através dela (eu já

lá estive mas não houve tempo para um mapa, compreendam: foi bem súbita a minha

partida). Ao reparar que eu observava a sua carta marítima com uma expressão con-

fusa, o velho raivoso lançou-me um olhar recriminatório que não entendi, ou então foi

o pânico a impedir-me de raciocinar sobre o que quer que fosse naquele preciso ins-

tante. Balbuciei aterrado: «Desculpe, comandante» e saí o mais depressa que pude

para o convés da embarcação, querendo juntar-me ao grupo dos restantes passagei-

ros – na maioria turistas – que se agitava já, esbracejando como passarada eufórica

em Março, com a perspectiva de pôr o pé em terra. Gaivotas e outras aves aquáticas

vinham receber-nos com estrépito. Sozinho sentado na amurada do barco, vendo o

porto preguiçoso à nossa frente estendido e uma fiada de palmeiras eriçadas como

ouriços nas suas ramagens ociosas sob o sol quente – o motor do barco a fazer rugir

o chão debaixo dos meus pés e uma brisa salgada entrando-me narinas adentro sem

pedir licença –, pude então tomar consciência daquilo que novamente, sem qualquer

margem para dúvidas, de facto se passara comigo ou na minha presença. Lançara-

me o velho comandante na cabine o tal olhar censório e os seus olhos, que eram até

essa altura escuros como linhito, reflectiram de súbito a cor densa e perpétua do mar,

depois tornaram-se incandescentes, vermelhos e inchados como grandes bagos de

cereja maduros, lançando sobre mim o fogo vivo e perturbador de mil brasas em com-

bustão. Que imagem aterradora aquela! Que tormento hediondo me vinha trazendo

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Page 82: Continhos de Alfarrobeira

por meu pé até onde eu não quereria ou jamais sonhara!

Tudo começou há dois meses atrás, na modesta casa da pequena cidade onde

habito. Nunca fui de grandes conversas, tão-pouco muito numerosas amizades: sigo

o meu instinto e é só, de resto nunca me dei mal com isso. Sucede que na noite do

velório da minha mãe, faz agora precisamente dois meses, não houve intuição nem

bom-senso suficiente ou tão persuasivo que me resguardasse de assistir aos graves

e não menos extraordinários acontecimentos que a seguir relatarei. Daí para cá o

meu mundo tem desabado, persistente, várias vezes ao dia e sem qualquer justifica-

ção – quando eu penso que mais nada será possível, logo o maior de todos fenóme-

nos se revela, e então o meu optimismo passado faz-me desanimar no presente.

Este, o do comandante, não foi senão o último desses episódios numa cronologia que

vinha sendo bem recheada em todo o género de proezas.

Aconteceu o caso, como atrás contei, na noite do velório da minha saudosa mãe.

Morreu a mamã da forma mais inesperada e horrível, embora agora me pareça que

nem esse desaparecimento terá porventura sido fortuito, o que de facto entristece e

faz duvidar no peito uma certa apreensão resignada, semelhante àquela que só pode-

rá sentir-se na presença dum mistério tão fatídico quanto irresolúvel. Não houve volta

a dar-lhe: a mamã saiu bem cedo para as compras na mercearia do bairro, gorro na

cabeça e luvas de lã para resguardar do frio os ossos sensíveis – pensaria ainda por

certo na minha reacção à revelação descuidada que fizera na noite anterior, entre

chá, bolachas e gelado de pepitas, e na qual também eu matutava ainda com o corpo

dormente e amornado pelo aconchego farto do quarto: a revelação de que o meu pai,

o qual eu nunca conhecera, houvera sido outrora alguém famoso, que não teria vali-

do de facto a pena – segundo a mãe – conhecê-lo enquanto vivo tendo em conta o

seu feitio e que ele a fizera, aliás, prometer ainda em vida que nunca, sob hipótese

ou circunstância alguma, me revelaria – a mim, seu filho – a identidade paterna. Ela

cumprira escrupulosamente a promessa até este momento: mas começava a achar-

se velha e a velhice pesava-lhe e amolecia-a, considerava que eu tinha o direito de

saber o segredo, então tomou naquela noite a decisão que a sua consciência vinha

mandando nos últimos tempos. «Era um homem, de qualquer modo, sem grandes

escrúpulos...» disse ela, com um encolher de ombros indiferente, depois de revelar o

nome verdadeiro do meu pai. Pensava a mamã concerteza ainda nesta conversa, e

fechava o sobretudo com as suas mãos magrinhas ao cortante vento matinal, quan-

do um limpa-neves desgovernado irrompeu no mapa astral do seu destino desenhan-

do a rota mais trágica que se possa imaginar: abalroou-lhe o pequeno e surpreso

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Page 83: Continhos de Alfarrobeira

corpo com grandes caninos metálicos chiando ansiosos de carne e matança, maxila-

res em chumbo tragando tudo, uma massa amarela maciça, bruta e gigantesca.

Deixou somente as luvas quentes da mamã abandonadas no local do acidente e,

atrás de si, o rasto horrível duma goteira pingando sangue na neve diáfana como

pétalas de rosa soltas ao acaso.

Apesar do choque sofrido e da estupefacção perante a notícia, tratei de tudo com

clareza de espírito e uma abnegação exemplar – ou, pelo menos, essa seria mais

tarde a avaliação dos vizinhos ao felicitarem-me pelo discernimento que mostrara

naquele momento tão conturbado –, de maneira que pelas sete da tarde desse dia

estava já organizado um velório com toda a gente do bairro e alguns parentes distan-

tes igualmente presentes, a casa adornada de cima a baixo com tecidos escuros e

nobres formando pregas em meia-lua, candelabros antigos e anjos de cepo que vela-

vam cuidadosos pelo sono eterno da mamã, além duma mesa bem composta na sala

ao lado, guarnecida de comida em fartura e licores vários para o beberete. «O seu –

salvo seja – velório está o máximo, deixe-me que lhe diga!» puxavam-me os convida-

dos pelo cotovelo para segredar de parte ao meu ouvido, e assim não tenho qualquer

vergonha (antes orgulho) em admitir, porque é bem revelador do esforço que

empreendi para dignificar a memória da minha querida falecida, que durante o veló-

rio da mamã foram muito mais os que me deram os parabéns felicitando com graça

o evento do que aqueles soturnos preocupados em dirigir-me com fingida mágoa os

seus pêsames. Mas quando, passados poucos minutos sobre as dez da noite, o últi-

mo convidado fechou atrás de si a pesada porta da rua, todos os impossíveis se pre-

cipitaram e os imponderáveis fizeram, por sua vez, questão de comparecer.

Despedi-me daquele antigo colega da mamã com um abraço longo e comovido

que ele retribuiu sem pudor; porém, tinha eu justamente acabado de trancar a porta

principal quando uma luz roxa, vinda da entrada da cozinha, me surpreendeu o rosto

cansado. Dirigi-me para lá e fiquei lívido quando vi o fantasma espectral do meu pai

– ou daquele que a minha mãe revelara ser o meu pai – aparentemente alheado, sen-

tado num banco da cozinha a beber um uísque duplo. Não soube o que dizer; fiz uma

cruz com os braços que também não surtiu efeito: nem dissolveu, fulminante, em

fumo a aparição, nem dissuadiu o fantasma de beberricar o meu álcool. Sentei-me

igualmente e, como ele parecia triste, dirigi-lhe a palavra quer para distraí-lo, quer

para inteirar-me do que fazia ali. Conversámos uma boa hora sobre tudo: ele desmen-

tiu a versão da mamã e negou que eu fosse seu filho, contudo pediu-me um favor que

eu não poderia nunca recusar, sob pena duma maldição se vir a abater também sobre

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Page 84: Continhos de Alfarrobeira

mim. Torna-se agora necessário esclarecer que este era um fantasma atormentado

ao qual deveriam ser satisfeitos todos os pedidos, por mais absurdos ou incoerentes

que pudessem parecer, pois quem assim não fizesse arriscava-se a ser contagiado

com a maldição e a converter-se a si próprio em atormentado assombramento. «O

meu terror foram os homens e a minha maldição foi entender mal o que era ter cora-

gem. A fama também não ajudou...» confidenciou-me o fantasma corando de vergo-

nha, o que de resto não será muito comum em massas transparentes, pálidas e flu-

tuantes animadas pelo espírito dum morto. «Este fantasma é mais vivo e humano»

pensei, e senti-me feliz com a possibilidade de ter sido aquele homem, na verdade, o

meu pai. Falou comigo como se fôssemos amigos próximos há longo tempo – ou

então seria a bebida surtindo já um efeito desinibidor nas suas cordas vocais –, expli-

cou-me com vagar as razões que o animavam e, apesar da ideia me ter parecido ridí-

cula, congratulei-me com a aparente sinceridade da aflição que transparecia no seu

olhar obstinado e líquido. Tinha um problema: vinham invadindo os turistas, nos anos

mais recentes, tanto os recantos íntimos da sua casa predilecta como a garrafeira do

bar onde continuara a abastecer-se depois de morto, de forma que não só sentia a

sua privacidade ser completamente devassada nos últimos tempos, como estava

também sujeito aos efeitos desagradáveis da abstinência – vulgo delirium tremens –

pelo facto de não poder visitar o bar com tanta regularidade como antigamente. Era

um fantasma muito acabrunhado – mostrei compreender as suas preocupações com

um leve e solidário aceno de cabeça. Depois fez-me o pedido: era um pedido muito

simples, com todos os detalhes necessários para que eu pudesse executar o plano

com sucesso, e francamente hesitei um bocado quando solicitou com uma expressão

marota que eu prometesse satisfazer-lho. Afinal, tratava-se quase do equivalente a

cremar ainda em vida um moribundo, juntando todas as suas memórias, roupas,

peças e objectos pessoais, corações admiradores e peitos de entes queridos na

mesma pira ardente e triunfal – além de poder vir ainda a ser considerado um crime.

Sucedeu-me porém olhar o corpo rígido da mãe estendido na sala de jantar entre gri-

naldas e lembrei-me da maldição dos insurrectos, o que me dissuadiu imediatamen-

te de negar qualquer pedido, além do velho fantasma me ter garantido, com uma pis-

cadela de olho atrevida e cúmplice, que só assim poderia descansar em paz – decidi

ceder e tentar satisfazer-lhe esse desejo derradeiro assim que pudesse. Prometi,

embora não com entusiasmo. Satisfeito, pelo contrário, com aquilo que ouvira, o fan-

tasma estalou cinco vezes os dedos da mão esquerda fazendo desaparecer a cada

estalido uma parte do seu corpo, até sumir-se por completo na noite fria, bochechas

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Page 85: Continhos de Alfarrobeira

e tudo, convertido numa luzinha lilás solitária que piscou lá fora três vezes sobre o

monte gelado.

Estava a sala de jantar já na penumbra graças às velas derretidas, mas com uma

atmosfera tépida que intensificava o aroma das flores, quando regressei para fazer

companhia ao pobre corpo maltratado e órfão da minha mãe, sozinho na sala deser-

ta. Maquilhou-se o mais que se pôde aquele cadáver, ainda assim estava a cara

inchada e tivera de cobrir-se o tronco, do pescoço aos pés, com um lençol muito gros-

so para poupar às graves feridas ali expostas os olhos susceptíveis dos convidados.

Assim que me sentei na cadeira preta à ilharga da defunta, a porta da frente – que eu

trancara havia pouco – abriu-se e deixou entrar na casa uma enorme ventania neva-

da, além de três gatos assanhados que irromperam pela sala. Quando acabei de bar-

ricar a porta com um móvel baixo tive de esfregar os olhos com ambas as mãos, pois

ao espreitar pela janela para medir a violência da tempestade pareceu-me ver lá fora,

no lugar do monte, uma montanha tão alta como o Kilimanjaro. E qual não foi a minha

surpresa ao observar que um dos gatos selvagens se erguia apenas sobre as patas

traseiras e toureava os outros dois com galhardia e precisão, auxiliado por uma

pequena capa vermelha! Decidi fechar as três feras na despensa: aí estava, vindo

não sei donde, um grande marlim-azul suspenso dos cabides velhos da mamã pela

barbatana traseira – as escamas cor de prata vibravam-lhe em reflexos múltiplos e o

bico ao baixo, boca aberta, pingava água salgada pelo chão encerado –, além duma

caçadeira de canos cerrados pousada a um canto da divisão, que não percebi nem

com o maior esforço de raciocínio e memória como diabo fora ali parar.

Assemelhavam-se, assim, a gatos à chuva, os três felinos olhando-me humildes, com

a neve derretendo no pêlo espesso e sentados sob o chuveiro salgado que caía da

boca do grande peixe. «Agora, vamos cá ver isto...» disse eu, agachando-me para

apanhar a capa que o gato grande segurava entre as garras – a besta não ofereceu

resistência de maior e pensei que talvez o acessório me viesse a dar jeito para aque-

cer o colo durante a noite mais longa da minha vida. Trancada a porta da despensa,

barricada também esta com um segundo móvel baixo, voltei a sentar-me, aliviado, na

cadeira junto da mamã – «O que seria dos homens sem as mulheres» reflecti ao avis-

tar a sua cara impassível que, devo dizê-lo, me tranquilizou bastante – e adormeci.

Acordei sobressaltado ao som dum repicar de sinos ensurdecedor: pude observar

aterrorizado que a capa vermelha sobre o meu colo se tinha desfeito durante o sono

numa poça de sangue cor de cereja e pegajosa, isto apesar de, aparentemente, eu

próprio me encontrar ileso. Estiquei o dedo indicador e mergulhei-o na poça, em

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Page 86: Continhos de Alfarrobeira

seguida ergui-o à altura da boca e cheirei: era licor de cereja, o líquido que ali esta-

va... Não pude encontrar explicações para o facto, o certo é que já me distraía com a

percepção das emanações tépidas – parecidas com aquelas que se sentem quando

nos sentamos à roda dum braseiro – que exalavam do corpo da minha mãe, lá bem

do fundo dos seus setenta e seis anos atropelados havia quase um dia, e as quais,

na realidade, muito estranhei. Faltavam só dois pares de horas para o funeral, tive de

mudar de roupa para não causar estranheza entre as gentes presentes e de novo o

Kilimanjaro apareceu como que acenando na moldura gelada da minha janela.

Lembro-me de ter pensado: «E agora, como é que eu vou explicar às visitas que o

Kilimanjaro apareceu à minha porta? Esta casa está tão animada que nem parece

haver velório, antes uma festa: ora bolas, já teremos chegado a Paris?!», mas os

meus receios mostraram-se infundados porque à hora combinada os senhores da

funerária e os enlutados carpindo compareceram lá em casa, tudo parecendo nessa

altura normal. Digo “parecendo” porque de novo avistei o fantasma no decorrer do

funeral saltitando entre duas lápides gris ali vizinhas e, para ser franco, estranhas coi-

sas se têm passado com aquela campa nos dois meses últimos, as quais não preci-

sarei por respeito à memória da minha falecida mãe.

Têm sido os dias, desde então e regra geral, senão morrinhentos, pelo menos

extremamente desgastantes para mim. Começaram a ocorrer estranhos fenómenos

com a maior regularidade, acontecimentos tão bizarros que antes da morte da mãe

teriam sido completamente impensáveis ou chocantes e que – não fosse a presença

assídua do fantasma chorando com os cotovelos apoiados sobre a minha secretária

na discreta solidão nocturna – bastariam para eu mesmo pôr em dúvida a minha

saúde mental. O caso vinha sendo, no entanto, de tal modo que a assombração pater-

na, aquele espectro misantropo de gente, desejava ver a minha promessa cumprida

com a maior rapidez possível para assim poder descansar em paz – chantageava-me,

portanto, com toda a espécie de ocorrências estapafúrdias e uma tristeza fecunda

empenhada em molhar os meus papéis de trabalho, se possível inutilizando-os para

sempre. Isto irritava-me profundamente. Quando me apercebi dos seus intentos, o

dilema da promessa deu-me cabo dos nervos, tive de ir ao médico e começar a tomar

calmantes; não resolvi a insónia com chás de ervas, no entanto os sedativos atenua-

ram-na consideravelmente, ainda que com prejuízo da firmeza manual. Mas o fantas-

ma prosseguiu na sua senda, implacável como nunca: ora me apareciam escalpes de

veado embalsamados e pendurados sobre a lareira, ora uma cana de pesca enfiada

no ralo do lavatório com o bilhetinho «Sê um homem» espetado no molinete, ora a

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espinha do marlim-azul – única parte do peixe que logrei salvar da fúria dos gatos bra-

viscos após a quarentena à qual os submetera –, que eu (juro) tencionava entregar

às autoridades competentes para averiguações adicionais, voava por artes mágicas

dissuadindo o meu sensato intento e desaparecendo debaixo do tapete persa sem

deixar nenhum rasto. Até que um dia resolvi ceder. Estive em vias de perder o traba-

lho; ao fim e ao cabo optei por tirar umas curtas férias e resolver em definitivo o

assunto: ficaria ao menos de consciência limpa e promessa cumprida, que o plano a

executar não seria tão custoso que o não pudesse eu cumprir (e poderia outro alguém

fazê-lo?) do modo mais discreto e eficaz possível, sem deixar os mínimos indícios.

«Está bem, já entendi a mensagem: acho que chegou a hora de partir» comuniquei

eu nessa noite ao fantasma, que se desfazia em soluços, gemidos e fluídos lacrimo-

sos dissolvendo num charco os dossiers dos meus últimos seis meses de trabalho,

plangente e ruidoso como uma harpa desafinada. Contive a ira e virei costas, enquan-

to ele desatou a celebrar o facto com gargalhadas sonoras, as quais ignorei. Chegado

ao fundo do escritório, encarei-o com uma expressão descontente e esforcei-me por

conferir um tom imperativo à minha voz: «Mas faça o favor de não se esquecer de

secar toda essa papelada ainda esta noite!».

Era quase sol posto quando aportámos nas Bimini, vieram receber-nos as aves

aquáticas em grande algazarra, recortadas a negro contra um céu vernal que des-

maiava do azul moreno ao roxo pungente. Comprei um pacote turístico para oito dias

onde somente estava prevista uma passagem fugaz por estas ilhas, no entanto eu

decidira ficar três noites até completar com perfeição o serviço. Seguiria à risca as

indicações do maldito fantasma, que me vinha vigiando até na pessoa do comandan-

te da embarcação: só decidi realmente fazê-lo quando cheguei às Bimini e me aper-

cebi desse detalhe; entregaria por completo o meu destino nas suas mãos e a minha

fé na correcção do plano esboçado, antes de mim, por alguém cujos intentos eu não

pudera senão entrever ao de leve ou com bastante imprecisão. Como vinha a noite

debruçada sobre nós quando pisámos o passadiço do porto, decidi dirigir-me rapida-

mente para o hotel, pousar a bagagem e recuperar da jornada. Na manhã seguinte,

depois dum belo banho na praia quase deserta – tão agradável a água fresca e

mansa logo ao amanhecer, provocando um arrepio saudável na coluna que nos des-

perta com langor para um novo dia –, fui à procura do Compleat Angler e da casa do

famoso escritor, seguindo de memória as indicações precisas do fantasma e os dese-

nhos dum novo mapa das Bimini fornecido no hotel. Alcancei o local por volta do

meio-dia, depois de ter tomado um revigorante pequeno-almoço ao lado de três pes-

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cadores locais e me ter perdido um par de vezes, a segunda das quais intencional-

mente, a observar outras atracções das ilhas.

Os turistas sabiam exactamente ao que vinham e onde poderiam encontrar aquilo

que procuravam, como um enxame de numerosas abelhas em busca do pólen mais

precioso: alinhavam-se cá fora para entrar na casa, numa fila ordenada que serpen-

teava ainda uns bons quinhentos metros ao longo do muro exterior. Vinham famílias

inteiras com bebés de colo nos quais as mães enfiavam bonés coloridos e óculos

escuros ao mesmo tempo que lhes tentavam sossegar o choro à custa de gelados

açucarados, vinham também adolescentes com pacotes cheios de frango frito a lam-

buzar as mãos que limpariam mais tarde nas cortinas da casa-museu, vinham final-

mente coleccionadores de todos os manuscritos inéditos e objectos pessoais nos

quais Hemingway tivesse alguma vez, ainda que por breves segundos, pousado as

suas mãos. À minha frente na fila, estava um senhor respeitável segurando com um

guardanapo de pano muito alvo um copo de vidro na mão: queria mostrá-lo ao res-

ponsável pelo museu porque garantia que “mister Ernest” tinha deixado ali, sobre

aquela superfície cristalina e transluzente ao sol forte dos trópicos pela décima-

segunda hora do dia, a sua preciosa impressão digital – segurando o copo com dois

dedos apenas pelo seu finíssimo pé, disse-me o coleccionador que tencionava exigir

um farto reembolso às autoridades responsáveis para poder deixar aquele exemplar

valioso numa vitrina do museu. Nesse momento, senti certa pena de que o fantasma

não deixasse marcas de dedos visíveis nos objectos em que tocava; pareceu-me

somente estranho que se tratasse dum copo tão delicado e não dum recipiente bem

maciço e másculo, destinado preferencialmente a acolher uísque, mas não verbalizei

esta dúvida porque tencionava passar despercebido e não quis melindrar o meu vizi-

nho. Meia hora depois passei o portão de arco ogival, segui o passeio que rasgava o

jardim e entrei no Compleat Angler muito mal-humorado – tinha os pés francamente

doridos. Encontravam-se sentados ao balcão dois turistas americanos com grandes

canecas de cerveja amolecendo na sua frente e um holandês espremido entre

ambos, que devorava uma tacinha de amendoins: falavam sobre O Velho e O Mar tro-

cando ideias e confrontando opiniões divergentes. «Estes nabos – pensei –, além de

invadirem um espaço que não lhes pertence, ainda esvaziam no bar todas as garra-

fas que podem e os depósitos com provisões de malte». Sentei-me numa mesa um

pouco distante e pedi uma água com gás – a qual sabia que não viria a fazer falta a

ninguém posteriormente –, em seguida descalcei os sapatos de verão que trazia,

dobrei o mapa do hotel em forma de leque e, com um entusiasmo repentino, pus-me

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Page 89: Continhos de Alfarrobeira

a observar todos os pormenores relacionados com o Bar que necessitaria em abso-

luto de saber. Lancei com bonomia um último olhar pelo espaço à saída, como quem

abandona o lar um tanto reconfortado.

«Com que então, é esta a casa» pensei inquieto ao entrar no museu. Estavam lá

todos os objectos pessoais que eu nunca vira antes e, no entanto, já sabia de cor,

num misto de solenidade poeirenta e hino à mortandade dos bichos: instrumentos de

escrita diversos misturados com armas de fogo e papéis antigos, candelabros sisu-

dos com marcas de balas maculando os seus suportes esmaltados, aquilo que eu não

soube se seriam punhais ou abre-cartas afiados em tamanho gigante; numerosos ani-

mais de olhos abertos espreitavam-nos aterrorizados em cada recanto da casa e,

num aparte de vida quase comovente, lá estavam as nódoas gordurosas deixadas por

alguns dedos adolescentes nas cortinas sombrias. «Kentucky Fried Chicken» murmu-

rei divertido, enquanto lançava um olhar cúmplice ao casal de turistas alemães que

entrara na sala comigo; dois pares recém-chegados de visitantes japoneses circula-

vam além disso pelo escritório, denotando uma curiosidade discreta e reverente.

Mergulhada estava a casa, devido às enormes portadas abertas, numa luz branca

soberba, só de vez em quando matizada pela sombra ténue das palmeiras altas ao

vento. Não me demorei naquele lugar além do tempo necessário para vislumbrar uma

vez mais o rosto do fantasma piscando-me, maroto, um olho safira no espelho do

armário antigo (não tive coragem de não retribuir a cortesia...) e para observar todos

os pormenores relacionados com a Casa que eu necessitaria em absoluto de saber.

Nessa noite mudei de hotel, tal como houvera previsto: instalei-me num lugar mais

modesto, sem casa-de-banho privativa, e numa ilha diferente daquela onde se encon-

trava a casa-museu. Acordei bem cedo para visitar o Sloppy Joe’s Bar, um lugar obri-

gatório que o fantasma me aconselhara sem hesitações: não pude discernir lá dentro

mais do que cem cabeças de turistas, tão ocupados a disparar máquinas fotográficas

em redor como a retirar o sossego aos locais presentes, os quais massacravam insis-

tentemente com perguntas irrisórias acerca dum americano barbudo que por ali anda-

ra na década de trinta do século passado, ainda a maior parte dos presentes não

seriam concerteza nascidos. Este cenário entristeceu-me e galvanizou-me, encheu-

me duma raiva incrível que foi aumentando ao longo do dia, tendo ajudado a que eu

pudesse satisfazer mais tarde, sem vacilar um segundo, o desejo sórdido que a aven-

tesma me pedira. Passei a tarde na praia a domar a ira como conseguia e a afundar

as pernas entre a espuma das diferentes marés, comprei para a madrugada seguin-

te um lugar no barco da travessia e esperei que o sol se apagasse em chamas sobre

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Page 90: Continhos de Alfarrobeira

o Atlântico, numa festa vibrante; fui então buscar as malas ao humilde hotel e trouxe-

as para uma pensão ainda pior situada na cidade da casa-museu, tendo o cuidado de

me instalar com um nome falso num quarto do rés-do-chão, pagando antecipadamen-

te a noite dormida. Não desfiz as malas; tranquei a porta do quarto por dentro e saí

imediatamente para a rua através da janela fronteira, que deixei aberta no fecho.

Caminhava descontraído pelo passeio, saboreando a fresquidão da noite com uma

pequena mochila às costas, no interior da qual transportava seis latas de conserva e

garrafas de iogurte usadas, cheias de gasolina, uma caixa com seis fósforos e dois

rastilhos de seis metros (seguindo à risca as indicações do fantasma, o número seis

impunha-se por superstição, sabedoria ou outra razão qualquer da minha pessoa

ainda desconhecida). Não foi difícil cumprir o plano com êxito, tão-pouco regressar à

pensão, apanhar as malas e seguir nessa mesma madrugada a bordo do barco da

travessia para um campo de golfe luxuoso plantado em pleno mar caribenho, apro-

veitando assim o que me restava daquele excepcional pacote de férias.

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Page 91: Continhos de Alfarrobeira

Linguagem Óptica

Imagine o senhor uma terra de côncavo e convexo alternados. Os gordos veriam

os magros gordos através de lentes convexas, os magros veriam os gordos magros

através de lentes côncavas e assim sucessivamente – com a vantagem de ser, por

exemplo, muito mais fácil o senhor trocar de óculos do que modificar os seus pensa-

mentos racistas: veriam então os pretos racistas brancos-pretos através das suas len-

tes e os brancos racistas pretos-brancos no interior das armações. Confuso? Não,

senhor, dir-lhe-ei que tanto menos confuso quanto semelhante terra parece que exis-

tiu já e ninguém deu por ela... Não sabe o senhor da sua existência, não houve cá

notícia dela? Pois bem, tratarei então eu de contar-lhe a história do seu surgimento e

declínio, exactamente desde o início.

Terminou o reinado do monarca em exercício nessa terra há não muitos anos, dis-

tando esse sítio pouco mais que meio milhar de quilómetros daqui. Imagine lá o

senhor um montão de terra empoleirado nas onduras do mar, assim tão grande em

inclinação que ultrapassasse sem dúvida as nuvens o planalto no seu topo e não cho-

vesse nunca lá nas alturas por causa de ficar o cimo do monte situado umas boas três

Torre Eifféis acima das nebulosas goteiras mais altas, encarrapitado sobre águias e

estorninhos ou a defeso de geadas e pardais, tanto faz, que para o caso é o mesmo

se a eterna montanha não tinha, por não podê-lo, neve no topo ou estava gelada e

nua a descoberto dos meteoritos, o que é certo é que avistava lá do cimo, altaneira,

toda a terra e arredores ou periferias se assim houveram. Este é o reino, portanto, o

da montanha eterna onde a lua pousa, este o local onde foi feita – há não muitos

anos, creia-me de novo o senhor... – a experiência ou o ensaio de utopia social com

o auxílio das leis da óptica e dos fabricantes de lentes, astutos como sempre se reve-

lam estes nas ocasiões potencialmente mais lucrativas que se alevantam entre os

humanos seus semelhantes.

Sucedeu haver reinado nesse reino eterno, tão elevado quanto elegante, um rei

ainda jovem e bastante distinto dos seus antecessores, porquanto a curiosidade lhe

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Page 92: Continhos de Alfarrobeira

minava as tripas e inteligência era coisa que não lhe faltava, ao passo que o deixa-

vam completamente indiferente as ociosidades do salão. Pelo contrário, filosofias e

religiões de distantes sítios, ciências, crenças, e até superstições – sobretudo o ocul-

to – deixavam-no, ao jovem rei, perfeitamente abismado, mergulhado num complexo

emaranhado ou numa teia-de-aranha de pensamentos fugazes e reflexões alongadas

da qual seria difícil escapar-se, ainda que brevemente, nos momentos seguintes ao

do estímulo que os havia suscitado. De tal maneira submerso nas suas imbricações,

não se espantará decerto o senhor se eu lhe disser que o rei era, naturalmente, um

despistado por excelência – tanto aparentava estar sempre ausente que os criados e

restantes súbditos faziam questão de repetir por duas ou três vezes qualquer palavra

que lhe dirigissem, por pequena que fosse, não fosse dar-se o caso de não ter o

monarca ouvido, assim abstraído e, não raras vezes, de modo excessivo nas suas

elucubrações. Esta característica do rei aplicava-se não só ao que lhe entrava ouvi-

dos dentro como também a todos os movimentos que o corpo lhe esboçava (e aqui

emprega-se “lhe” com propriedade, visto que bastante inconscientemente ou sem

premeditação se movimentava o rei, as mais das vezes movido pela curiosidade, ou

seria desta sorte o monarca um lacaio do seu próprio, ainda esparsamente imberbe

e desconforme esqueleto).

Como se as carnes lhe pesassem após um dia afadigado, decidiu o rei distrair certa

vez o espírito pela galeria principal, tanto aspirando os ares quentes da tarde madu-

ra quanto repousando a vista nas telas raras e relíquias consortes que adornavam o

átrio maior, o qual tinha a forma duma sala ampla em octógono e cúpula transparen-

te, com as esquinas da arquitectónica geometria marcadas por pilares cilíndricos em

mármore esverdeado e maciço, impecavelmente polido, além de paredes num ama-

relo suave com toques doirados amenizando o espaço. De repente, os olhos reais –

verdes da cor exacta dos pilares de mármore, um esmeralda profundo e sem sentido

– pousaram, na ala onde era exposta a porcelana (um corredor mais estreito e atape-

tado a vermelho à esquerda da galeria octogonal), numa jarra que era por certo aqui-

sição nova, duma beleza extrema e simplicidade revoltante, coando o que restava da

luz da tarde por uma só fiada de vidrilhos quadrados embutidos a toda a volta na por-

celana azulada com uma cor doce, os vidrilhos minúsculos na sua tonalidade malva

dir-se-iam por seu turno espantados com o espanto nos olhos do rei, porventura apa-

nhados de surpresa como uma mulher modesta cortejada sem prevê-lo e, por isso,

sentindo lisonja (mesmo que desinteressada do pretendente). A jarra modesta,

sobressaindo-lhe nessa frugalidade a beleza entre todas as outras, douradas ou bor-

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Page 93: Continhos de Alfarrobeira

dadas a fio de prata, da dinastia Ming ou esculpidas em terracota, chamou pela novi-

dade e singeleza a atenção do jovem rei, que se aproximou da banqueta onde ela

estava exposta com o intuito de a examinar melhor. Puxou do óculo reservado para o

efeito que sempre trazia consigo, quando visitava a galeria, num bolso posterior da

vestimenta, um pouco abaixo dos rins, e pôs-se a observar de perto os vidrilhos na

sua transparência rosada: surpreendeu-se encandeado pelos reflexos solares naque-

les pedacinhos de material tão minúsculos, que à vista desarmada e de longe tinham

parecido perfeitamente inofensivos. Se era verdade que se tratava duma peça recen-

te, então teria certamente na base uma etiqueta própria usada pelos curadores do

museu para identificar as novas aquisições enquanto a placa frontal à banqueta, com

todos os pormenores e explicações indispensáveis ao curioso visitante – e esta parte

da galeria era somente aberta à família real ou a convidados ilustres em situações

excepcionais – não era impressa na oficina de artes aplicadas do palácio, com um

selo da monarquia a cada canto, o que deveria demorar mais ou menos uma sema-

na. Então sim, os mínimos detalhes no que às origens, usos e percursos da peça dizia

respeito tornar-se-iam públicos e patentes, além de fantasticamente adornados. Sem

conseguir conter o seu entusiasmo pela nova descoberta, o rei deixou, pois claro, o

corpo e o espírito actuarem livremente, com rédea solta, a seu bel-prazer, e pegou na

peça pelo delicado gargalo para examinar a etiqueta no fundo: ainda mais espantado

e de mau-humor constatou a ausência de qualquer indicação, que atribuiu acto con-

tinuo a uma negligência incompetente dos curadores, desrespeito também para com

a satisfação da natural curiosidade presente nos espíritos da família real. Cansado e

vendo o seu desejo de saber frustrado, não conseguiu impedir que uma chispa de ira

lhe inflamasse o rosto, a qual desceu depois às veias e aos tendões do pescoço, ao

tronco seguindo o percurso da coluna vertebral e derramou, por fim, nos membros um

marejar trémulo que desembocou nos seus dedos, fazendo tremer a bela jarra que

segurava pelo gargalo. Virou-se o rei para ambos os lados a querer descarregar nal-

gum funcionário presente e presumivelmente responsável pela falta a ira sentida, des-

viando-a assim de maiores consequências junto do objecto precioso, mas foi justa-

mente ao virar a cabeça à direita – depois de o ter feito à esquerda sem nenhum

resultado – que o rei deixou escorregar entre o polegar e o indicador tensos a estrei-

ta circunferência que dava forma ao gargalo, e ao escorregar das mãos do rei a jarra

repicou a aresta da base no chão polido, tendo caído fora do tapete sanguíneo, e no

instante seguinte deu um salto de cinquenta centímetros em altura e para diante e,

não conseguindo ainda assim o rei sustê-la com prontidão (embora o tivesse intenta-

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Page 94: Continhos de Alfarrobeira

do agachando-se), bateu de lado e com o borco na laje seguinte, escaqueirou-se de

vez em mil pedaços num registo sonoro bem agudo. Desolado, o rei ficou um minuto

sem reacção, depois os belos olhos esmeralda entristeceram-se-lhe à medida que ele

se agachava para apanhar os pedaços, nada restando já naquele corredor da luz ale-

gre e feérica do dia passado. Quando virou um dos pedaços aguçados resultantes da

quebra, observou o jovem rei que a antiga jarra tinha um interior peculiar, senhores,

aliás como ele nunca houvera visto: uma demão em escarlate e pequeninas imagens

de marfim embutidas representando estranhos animais, meio homens meio bichos.

Quando neste delicado exame se encontrava, dardejando já mil interrogações, uma

voz expressiva e sólida, vinda do fundo do corredor, interrompeu-o:

- Está alguém a querer falar consigo, senhor.

O rei ergueu-se meio estremunhado com o pedaço de jarra na mão, emergindo a

custo das suas pesquisas arqueológicas:

- Hã? – balbuciou curioso, com um tom de voz ainda ausente no pesar – Quem

está aí? És tu, Dórdio?

Dórdio era um dos curadores do museu real, franco nas qualidades e íntimo do rei

porque crescera com ele. Não se tratava de Dórdio.

- Sou eu, Alteza, não me reconheceis?

- Ah, Euclípedes – Euclípedes era um conselheiro do rei especializado em música

e extremamente silencioso no andar –, ouve cá, quem fez este desatino?

- Perdoe Alteza: mas vossa excelência, ao que parece... – disse Euclípedes um

tudo-nada embaraçado, julgando simplesmente tratar-se duma distracção trivial no

jovem monarca.

- Homem, não me referia aos estilhaços... isso está claro, por infortúnio dos deu-

ses, que fui eu. Referia-me à ausência da etiqueta por baixo da jarra, essa deveria cá

estar.

- Deveras, senhor? – aproximou-se Euclípedes, debruçando-se sobre os pedaços

partidos e começando a sentir-se espicaçado pela curiosidade.

- Deveras. Mas anda, diz-me quem quer falar comigo a uma hora destas! – pediu

o rei impaciente, analisando ainda desconsolado, dum lado e do outro, um pedaço de

porcelana.

- Não é isso, senhor. Diz o povo que jarra partida é sinal de estar alguém a querer

falar com quem a partiu... – sorriu Euclípedes, indulgente para com a juventude do

governante.

- A sério? – entusiasmou-se o rei meio a zombar – E quem pensas tu que poderá

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Page 95: Continhos de Alfarrobeira

ser?

- Quem saberá, Alteza, quem saberá... Vossa Alteza ainda é jovem, permanece

forte e já ganhou em charme: quem sabe se uma bela pretendente não anseia em

segredo por vós?

Estas palavras elogiosas fizeram corar o rosto do rei, que logo se aproveitou delas

para cambiar a natureza do assunto:

- Seria necessário que, além de não ter eu esposa, o meu nariz diminuísse em

tamanho de forma considerável... Sabes, Euclípedes, aqui neste pedacinho de jarra

até nem estou nada mal... – constatou o rei ao usar a porcelana como espelho de

mão.

Aproximou-se dele o conselheiro, discretíssimo, para examinar a imagem produzi-

da em reflexo e assentiu com um meneio de cabeça que, pois sim senhor, estava sua

Alteza muito elegante tanto nasalmente como no geral, no reverso vidrado daquele

bocado que não era a direito mas côncavo em geografia e de rebordo – porque par-

tido –, está claro, desigual.

Dando subitamente dois pulos seguidos à mesma altura, gritou o rei sobressaltan-

do o conselheiro:

- Já sei, Euclípedes! Tive uma ideia que vai por certo resolver os principais proble-

mas, desavenças ou conflitos deste reino!! Uma ideia genial, Euclípedes! Seria Deus

quem me estava a querer falar? – e tendo dito isto beijou na testa o conselheiro com

uma naturalidade e rapidez desarmantes – Eureka! Fosse ou não fosse, quem agora

quer reunir todos os conselheiros para comunicar-lhes o decidido sou eu!!

- «Reunir os conselheiros para comunicar-lhes o decidido»... Não detecta Vossa

Alteza nessa afirmação alguma incongruência? – retorquiu com sensatez e sincerida-

de Euclípedes.

- Incongruência é o meu nome do meio, mas rei ainda é o meu título... Despacha-

te a convocá-los, anda! – ordenou o monarca sem ceder a quaisquer pressões.

O ar era um pouco rarefeito na encosta atrás do castelo, sempre a pique até ao

cimo daquele monte perfeito que era o reino, aterrado no topo como uma pista de

aviação. À altura do palácio ainda havia nuvens, embora não muitas: eram farripas

contra o chão como os cabelos dum homem calvo e enleavam-se nos joelhos das

pessoas enquanto elas caminhavam, porque andavam (ou voavam) muito cá por

baixo. Se uma pessoa não tinha cuidado, as nuvens perseguiam-na, pelo menos, até

entrar em casa: uma questão de electricidade estática. Tinham assim, os jardins do

palácio, um ambiente peculiar, na medida em que os cedros, ciprestes, rosas e figuei-

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Page 96: Continhos de Alfarrobeira

ras tiravam a cabeça de fora por entre aglomerações de nuvens débeis que se asse-

melhavam a nevoeiro. Não me acredita o senhor? Pois só visto e sentido, que assim

mesmo é que se está no mundo e se conhecem as coisas! Andava o rei vagueando

através deste jardim sui generis na manhã do dia seguinte quando um criado veio

chamá-lo de modo a que se apresentasse na reunião de conselheiros, que aguarda-

vam já – mesmo assim, com carácter prévio a qualquer discussão, e de certo modo

resignados – pelo seu misterioso comunicado final.

Anunciou o rei:

- Meus senhores, tenho uma importante decisão a comunicar-lhes, a qual afectará

por certo a vida neste reino de agora em diante.

Um audível zunzum percorreu a sala, coro de especulações a respeito das inten-

ções do rei – um coro temeroso em relação às mudanças a anunciar.

- Não é necessário temerem porque não são más as notícias. – sossegou-os o

jovem – Antes pelo contrário, creio ter descoberto a solução para grande parte dos

conflitos imanentes neste reino!

O espanto foi a princípio geral, mas depois uma expectativa descrente tomou conta

da audiência, enquanto o rei guardava deliberadamente um minuto de silêncio –

segundo ele, «em memória dum passado atroz e conflituoso que jamais se repetirá».

Euclípedes inclinou-se respeitoso e segredou-lhe ao ouvido com toda a delicadeza:

- Se sua Alteza me permite: pois, se é passado...

- Não é isso, Euclípedes! – irritou-se ligeiramente o rei – Já vais ver!!

O monarca ergueu-se do trono; em pé, cobiçou o jardim ensolarado e quieto atra-

vés das grandes vidraças do salão, encarou finalmente o círculo de conselheiros

ansiosos e rabugentos, cedo despertos naquele dia, que ansiavam pelas novas pro-

paladas:

- Meus senhores, a partir deste dia ordeno eu – e ai de quem neste reino me deso-

bedecer – que sejam fabricadas lentes correctivas em massa para todos os que aqui

padeçam de problemas de comunicação, sociabilidade e raciocínio (vulgo preconcei-

tos) em relação a algum grupo em particular: lentes correctivas que transformem os

pretos em brancos na perspectiva dos racistas brancos e os brancos em pretos

segundo a visão dos racistas pretos, os gordos em magros para todos os magros into-

lerantes ou estetas radicais, os magros em gordos para todos os obesos ressentidos

ou invejosos, e assim por diante para todos aqueles que tiverem problemas relacio-

nados com a aparência de alguns ou muitos dos seus semelhantes, que desembo-

quem em conflitos incontornáveis e atitudes menos próprias ou discriminatórias, ofen-

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Page 97: Continhos de Alfarrobeira

sivas da dignidade dos segundos. Sugere-se igualmente que os machistas usem len-

tes masculinizantes e as feministas óculos feminilizantes, pois é sabido que normal-

mente nesses grupos entre iguais não há disparos, cada qual se considerando melhor

e mais importante do que os sujeitos pertencentes ao grupo sexualmente diferente,

logo, unidos aos do seu próprio grupo por afinidade de genitália e perfeições deriva-

das, por mais feia que ela possa ser – a genitália – em cada um desses grupos e não

se perceba que qualidades ou talentos possam dela – qualquer delas as duas... –

advir ou germinar. Dou igualmente permissão, fique escrito, para que as lentes cor-

rectivas destinadas aos machistas possam vir a ser utilizadas por historiadores, artis-

tas, políticos e patrões suspeitosamente tendenciosos ou que caem na falácia de

reproduzir nas suas obras as respectivas distorções e preconceitos mentais.

Reconheço esta decisão como definitiva, pois considero-a em favor do bem comum

e dou, por conseguinte – se vossas excelências ainda me ouvirem no meio desse tar-

tamudear verdadeiramente irritante –, dou por terminada esta sessão solene, em fun-

ção do poder que ainda detenho enquanto governante supremo deste reino (e do

qual, independentemente daquilo que vossas excelências possam agora pensar, con-

sidero que faço bom uso). Bem hajam, longa vida a todos!

Esta despedida do rei deixou os conselheiros um pouco surpreendidos: apesar de

serem todos mais velhos que o governante (uns o dobro dos anos, outros o triplo),

nunca Sua Alteza lhes houvera desejado longa vida assim sorridente, pelo que seria

de acreditar que se encontrava de facto muito bem disposto, convicto de ter tomado,

quiçá, a resolução mais acertada ou inteligente em todo o seu reinado.

Assim como o rei ordenou nessa altura, assim se fez: fabricaram-se lentes correc-

tivas para todo aquele cujas acções fossem por demais influenciadas pela sua esté-

tica particular, prejudicando grupos de terceiros à luz de determinadas características

visíveis e, para grande espanto dos conselheiros, os conflitos diminuíram substancial-

mente em todo o reino durante quatro anos. Ao longo desse tempo, viveu-se no

monte do soberano uma paz idílica com a qual não só ninguém sonhara anteriormen-

te como não se atrevera nunca, por consequência, a desbravar terreno no sentido de

a tornar possível. Todo o povo se orgulhava em ter por governante supremo um rei

sonhador.

E a seguir, o que aconteceu a seguir? – perguntar-me-á vossa excelência. Bom, no

seguimento deste paraíso utópico aconteceu a maior tragédia humana que possa o

senhor imaginar: sucedeu que o nosso rei se destruiu a si próprio e ao seu querido

país sem o querer. Não avisaram os nossos fabricantes de lentes que num prazo de

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Page 98: Continhos de Alfarrobeira

quatro anos os “óculos da paz” (assim foi o nome que oficialmente lhes deram) teriam

de ser renovados por se encontrarem fora de prazo – mas menos ainda se precave-

ram a desenhar com a devida antecedência as listas de espera e a fabricar a tempo

os óculos substitutivos futuros, que demoravam em média duas a três semanas a

estarem prontos. Foi graças a esta negligência incompreensível que, passados exac-

tamente quatro anos e um mês sobre a declaração do rei anunciando as mudanças

sociais futuras em linguagem óptica, todos os óculos e lentes de todos os habitantes

do reino, os quais se havia anteriormente provado necessitarem de tais acessórios,

caducaram simultaneamente. Vendo as negociatas que haviam feito com pessoas

que detestavam, os amigos doutras cores, raças e sexos e o extremo equilíbrio dos

seus juízos num passado recente, estes indivíduos revoltaram-se profundamente

contra os seus compatriotas e em desfavor do rei que, querendo convencê-los a de

novo colocarem as novas lentes, só conseguiu aumentar ainda mais a ira dos seus

súbditos, que se sentiam enganados de modo vil. Após manifestações violentas fren-

te ao palácio de Sua Majestade, quiseram eles depor o monarca – e foi então que o

rei teve a brilhante ideia de arranjar lentes para que o não vissem a ele, os revolto-

sos, como quem era. Se antes era duvidoso que os tivesse enganado, desta feita ten-

tava, desesperado por alcançar novamente a anterior harmonia entre o seu povo e

ser outra vez aclamado como o mais justo dos soberanos sobre a terra, ludibriá-los

sem qualquer escrúpulo. Mas um infiltrado na corte revelou os planos secretos do rei

(houve quem dissesse que fora Euclípedes, antes obrigado a colocar lentes para cor-

rigir o seu ódio aos truões de baixa estatura...) e então toda a insurreição explodiu,

tendo o povo ateado fogo ao palácio real nessa mesma noite. O fumo vindo dos apo-

sentos reais subiu monte acima, enrolou as nuvens, invadiu por fim os óculos astro-

nómicos do observatório que ocupava o planalto. Tendo percebido o que se passava

com as suas lentes de longo alcance, os astrónomos do reino entraram em pânico

mas não tiveram tempo para muito mais – tendo galgado encostas, as chamas trepa-

ram também ao topo daquele país-ilhéu, devorando num segundo todas as instala-

ções científicas erguidas no planalto. Restaram cinzas do pobre reino das experiên-

cias sociais, cinzas e pedaços de lentes entre os corpos carbonizados – foram tanto

estes como aquelas adubo para as murtas que invadiram e, de momento, florescem

nesse monte só, tão triste e imponente. E agora diga-me lá, senhor, quem será o

corajoso a tentar aperfeiçoar de novo essa experiência?

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A Hora do Lagarto

O filósofo ergueu as sobrancelhas ao alto, coroando a expressão surpreendida:

«Isso será de facto assim como me conta? De certeza que não há enganos?».

«Impossível, comendador» inviabilizou o funcionário «Se de outro modo fosse e

menos grave, com certeza que eu não estaria aqui». «Isso respeita portanto a que

data, ora diga-me lá?» anuiu o filósofo rendido, «Onze de Outubro, excelência, não

há dúvida» declarou o funcionário prestimoso, «E o presidente, tem conhecimento do

caso ou é-lhe totalmente alheio por enquanto?» quis saber o filósofo, «Por ora, só

vossa excelência o comendador tomou conhecimento do sucedido, por nos parecer

mais prudente» segredou o funcionário judicial, «Bom, bom... Está correcto» disse o

filósofo disfarçando a lisonja. Saiu pela porta principal o funcionário e imediatamente

entrou por ali dentro um grande camelo, trazendo-o seguro pela rédea um homem

baixo de turbante imaculado. O facalhão de prata à cintura impunha por si só respei-

to suficiente, não fosse o tradutor encarregar-se imediatamente de transmitir que era

usado naquela ocasião sem outro fim em absoluto que o de servir como peça orna-

mental. «Explicaram-me já ao que vinhas e não posso deixar de manifestar alguma

surpresa» disse o filósofo virando-se na direcção do tradutor à medida que falava,

«Mas gostaria de ouvir as razões vindas da tua própria boca», e quando terminou o

discurso olhou apreensivo o homem do turbante. Este esboçou ao de leve uma vénia

quando a tradução findou e começou a falar com rapidez, numa língua bastante ele-

gante: «Ele diz que o senhor comendador deve já saber que não é homem de intri-

gas ou meias-verdades, que estamos bem informados e, por conseguinte, já o sabe-

rá. Ele diz também que acredita que o senhor comendador é um homem bastante

parecido com ele neste aspecto particular, e por essa razão decidiu vir ao seu encon-

tro». «Sim, mas deixemo-nos de rodeios» exasperou-se o filósofo, «Senhor comen-

dador, se me permite, os rodeios fazem parte da cultura Iuverdita, sem passar por

eles não chegará a lado nenhum...» atreveu-se o tradutor, «Pois que continue, então,

mas de modo claro, preferencialmente...» ordenou o filósofo. Com o diálogo dos dois,

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Page 100: Continhos de Alfarrobeira

o homem tinha parado de falar e olhava-os inquisitivo: «O senhor comendador per-

gunta se não pode oferecer-lhe um chá» traduziu o tradutor especializado em dese-

maranhar embaraços diplomáticos com perfeição, «Não, obrigado» agradeceu o sul-

tão com um sorriso apolíneo. «Acreditando eu, portanto, no bom carácter, aliás sen-

sível, do senhor comendador» continuou ele sem interrupção «decidi visitar-vos para

negociar directamente uma contrapartida pela vida ou o resgate do príncipe»,

«Arriscando-vos a ser, vós próprio, raptado?» espantou-se o filósofo, «A minha vida

pouco me importa, meu caro, e não valerá mais do que um pobre sabre de prata –

pouco me importa, dizia, em comparação com a liberdade do meu povo, a quem jurei

fidelidade. Ademais, já tenho eleito um sucessor e não acredito que fôsseis tão bur-

ros a ponto de tocar-me (isso implicava a morte certa do vosso príncipe), pelo que

julgo que, pensando bem, tereis certamente o bom-senso de negociar». O filósofo

fitou-o com uma repulsa contida, perguntou «Que quereis então, em troca da vida do

nosso herdeiro?», «Todas as terras a leste do rio Sabião na posse dos Iuverditas»,

«Impossível!» retorquiu o filósofo indignado – o tradutor preparava-se para traduzir

exactamente quando o comendador o deteve erguendo ao alto a mão esquerda

«Espera, espera... Diz-lhe que ponderaremos o assunto e dentro de dois dias comu-

nicar-lhe-emos uma decisão. Entretanto, ficará aqui alojado. Diz-lhe que pode colocar

o animal onde quiser, inclusivé no jardim que mais apreciar», «Não preciso lembrar-

lhe» respondeu o sultão «que todas as terras a leste do rio eram nossas por herança

e tradição, e que delas tiramos tudo o que comemos como o vosso povo tira dos vos-

sos monarcas toda a orientação de espírito e vontade, pelo que a proposta de troca

parece mais que justa...», «Muito bem» acedeu o filósofo meneando levemente a

cabeça «ele agora pode retirar-se»: «O senhor pode retirar-se quando o entender e

desejar, diz o senhor comendador» traduziu o tradutor, apaziguando o sultão com um

sorriso. Este fez uma outra vénia forçada, puxou o camelo bem aparelhado de pano

e sela por uma rédea e virou costas com o turbante dançando no ar. Uma vez chega-

do à porta principal, virou-se para trás olhando o comendador seriamente: «Dou-lhe

até depois de amanhã, à hora do lagarto...». Saiu. O filósofo, indiferente, ficou a pen-

sar como raio iria explicar ao presidente do governo que o príncipe, o próprio filho do

rei, deixara raptar-se pelos soldados rebeldes dum exército duzentas vezes mais

pequeno, enviando ainda por cima como emissário não um oficial digno mas um fun-

cionário judicial predilecto que ninguém na corte percebia (ou queria perceber) por

que razão tinha por conselheiro. Absorto nestes pensamentos, emergiu deles com

uma questão súbita, dirigida ao tradutor: «Mas o que é, afinal, a hora do lagarto?»,

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Page 101: Continhos de Alfarrobeira

«Senhor comendador, a pergunta que me faz é deveras complexa, uma vez que para

os Iuverditas cada hora tem o seu animal e, às vezes, serve o mesmo bicho para mais

que uma. O lagarto prevalece das sete às oito da manhã e das cinco às seis da tarde,

no entanto muita gente defende que o animal das sete é de facto uma salamandra, e

assim já poderá ver com maior clareza a que hora se referiu realmente o sultão...». O

filósofo cofiou a barba rala e prateada sob um nariz estreito e curvo: «Ora essa...

Donde vem semelhante tradição?» quis saber, «Lendas antigas, senhor comendador,

e muitas histórias inexistentes...», «Bom, bom...» desembaraçou-se o filósofo «Deixa-

me a sós a reflectir, anda...» – o tradutor cumpriu a ordem e afastou-se reverente sem

fazer o menor barulho, flutuando sobre o chão polido como o génio da lâmpada.

«Também não precisas de flutuar!» irritou-se o filósofo com a sua discrição «Podes

perfeitamente pisar o solo, como aliás bem sabes desde o primeiro dia em que me

serves! Reconheço que traz isso a vantagem de sair ileso dos tremores-de-terra, mas

chateia-me que voem ao meu redor, pois aqui quem tem asas no pensamento sou

eu!!»; o tradutor fez uma nova vénia, aterrou dizendo «Sim, senhor comendador» e

saiu da sala. A sós, o filósofo pensou, pensou até adormecer no grande cadeirão de

veludo.

Dois dias depois, os sete lugares do salão estavam ocupados para um último con-

selho régio, improvisado ali mesmo nas instalações do comendador filósofo – o regi-

me em vigor naquele país poder-se-ia definir como uma monarquia presidencialista,

tipo de regime cujas particularidades e regulamentos resultaria lato aqui expor –, ini-

ciado pela manhã e prolongando-se até depois do almoço. O rei, com a sua enorme

barriga e pose de estado convicta, estava sentado ao centro, com três conselheiros

de cada lado: tinha um bigode muito bem aparado e encerado em forma de fuso,

botas pretas de cano alto, uma casaca com botões doirados formando uma fiada a

meio do peito e calças em veludo castanho; a calvície alastrava-lhe como uma epide-

mia insaciável por três quartos do crânio, sobre o olho azul e a sobrancelha densa e

o nariz enorme, rasgado, aberto e fumegante de bovino. Era um homem cauteloso

mas, nalguns aspectos, ingénuo, tendo ficado francamente abalado com as más notí-

cias recentes, uma vez que julgava o seu filho, só porque herdeiro varão do trono e

educado com cautela, bastante menos estúpido do que ele era: além das palermices

que assiduamente cometia, deixava o pai no mais completo desconhecimento dos

actos imponderados em que se envolvia, tanto por despeito para com a autoridade

paterna e real, quanto por teimosia desmiolada pura e simples. Sentavam-se então à

esquerda do rei, respectivamente, o comendador filósofo, um juiz da corte e o tesou-

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Page 102: Continhos de Alfarrobeira

reiro da nação – este com uns óculos em circunferência perfeita na ponta do nariz,

magríssimo e de boina, aquele com uma densa cabeleira aos caracóis – que era real

embora parecesse imitar uma peruca de justiceiro –, dedos esguios e ágeis de águia

ou manipulador de marioneta, pele castanha como a casca duma cebola e tempera-

mento traiçoeiro. O filósofo, apesar da sua rudeza, impunha um respeito pronto e

reassegurador. À direita do rei estava sentado o presidente na sua pose impecável e

disposição cooperante, um primeiro-ministro irritadiço e débil em termos de saúde

(sempre anémico ou colérico, em crises de certo modo alternadas) e um músico con-

ceituado em representação das classes artísticas e dos valores culturais – que sem-

pre se esperava que o estado defendesse, não obstante o carácter frustrado da maio-

ria dos intentos deste conselheiro –, de cabeça e barba rapadas, voz melodiosa a

sobressair por baixo do catarro do primeiro-ministro e um casaco de malha verde

caindo-lhe largo sobre o peito. Em cima da mesa, papéis e processos vários forma-

vam as pétalas duma flor central com corola de acepipes diversos e demarcada por

copinhos de água mineral. Discutiram-se à mesa todos os aspectos fundamentais e

paralelos, opacos e cristalinos do problema do resgate em questão, pesaram-se alter-

nativas viáveis, contrapropostas possíveis e razões de estado prementes, susceptibi-

lidades diplomáticas, argumentos fulcrais, reivindicações populares e todos estavam

de acordo e partilhavam ao menos um ponto de vista, subsidiário do assunto que ali

os reunira: o príncipe tinha, de facto, cometido uma das maiores asneiras de sempre.

Tão unânime era esta conclusão como a elacção que dela facilmente se retiraria, a

saber: a de que se encontravam as decisões do estado quase por completo na mão

dos Iuverditas. Pesando todos estes pormenores, mas também a impopularidade que

acarretariam medidas tais como a cedência de todos os territórios a leste do rio

Sabião aos árabes, cada conselheiro disse com sinceridade o que lhe parecia a res-

peito daquele problema – o comendador filósofo foi o último a falar, usando nesse

momento de argumentos inabaláveis para expor a sua posição. Coube a palavra der-

radeira ao rei (cujo voto valeria pelo de dois conselheiros) antes de se proceder ao

escrutínio final das opiniões à mesa, com aprovação da perspectiva maioritária. E

assim, quando às cinco e meia da tarde o sultão entrou, pontual e impaciente, na sala

espelhada com o sabre à cintura, o tradutor flutuando atrás de si, puxando o bonito

camelo por uma rédea dourada, o conselho régio possuía já uma resposta definitiva

para lhe dar a respeito das exigências feitas, a qual – esclarecidos todos os presen-

tes sobre o simbolismo zoológico do padrão horário para os Iuverditas – lhe transmi-

tiram precisamente passada a primeira metade da chamada hora do lagarto.

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Page 103: Continhos de Alfarrobeira

A Alegoria da Gaiola

Irei agora propor aquilo que por manifesta insuficiência da clássica Alegoria da

Caverna convencionei chamar, salvo os devidos equívocos e a minha manifesta falta

de gosto, a Alegoria da Gaiola. Isto porque se Platão propôs que a linguagem, liber-

tando os brutos pré-históricos das grilhetas, os levava a ver a luz pondo-os no cami-

nho da verdadeira sabedoria, parece-me, por outro lado, sobejamente notório que

pululam por esse mundo fora os brutos, mesmo sabendo ler e escrever. Uma ques-

tão pertinente a colocar, sobre a do acesso à linguagem como um acto consumado,

é portanto a do uso mesmo que dessa linguagem se possa fazer, a sujeição a regras

ou a adopção de uma atitude crítica perante elas, a renovação da linguagem ou a

acomodação ao que já existe, a reprodução maquinal da realidade evidente no

mundo ou a invenção de novas realidades, fantásticas ou aventurosas, não palpáveis

porque irreais, mas sentidas como reais por cada um dentro de si, através duma lin-

guagem nova e inaugural, mais ligada ao que se sente ser verdade, universalmente

óbvia a quem disponha de suficiente sensibilidade, profética por vezes, mas de todos

os modos distinta e num patamar cimeiro ao do uso corrente da linguagem comum,

feita para comunicar sem, na maioria das vezes, pôr em causa e sobretudo já feita em

forma, feitio e sentido por muitos alguéns anteriores àquele que a usa. Um código que

ninguém põe em causa, a abolição de neologismos (estes profundamente ligados a

modos de sentir pessoais), diferenças de ritmo, comparações e metáforas, estilos e

contra-estilos, é uma língua morta antes de mais, um comunicar vazio por não se

adaptar a quem comunica, formatado como está para ser utilizado por todos sem a

aceitação de diferenças nos modos de ser individuais. Uma linguagem viva, pelo con-

trário, deverá estar colocada ao serviço do ser para melhor exprimi-lo e com maior

precisão comunicar, ou seja, não deverá por outra banda cair no reduto confuso do

incompreensível, por tão subjectiva se tornar que não será já código comum mas

excentricidade pessoal. É no domínio desta linguagem nova e inaugural que a seme-

lhança entre a poesia e a busca de verdades eternas ou universais, ainda que sub-

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jectivamente sentidas por cada um, se torna patente. A poesia é, por definição, uma

arte-oráculo e um dom inexpugnável para quem a traz, como fonte, dentro de si – um

poeta não conseguirá jamais ser um autómato e não apreciará nunca ver-se manda-

do por outrém: ele é, antes do mais, um homem livre, livre para voar de asas soltas

fora da gaiola dos signos convencionais e/ou dos significados estabelecidos. Ele é um

inventor de novas sensações porque sabe recombinar as existentes, isto é, um artis-

ta. Os artistas são os seres mais livres e menos socialmente conformados que se

podem encontrar – uma sociedade sem artistas é uma podridão nauseabunda sem

capacidade inventiva nem esperança de futuro mais risonho que o da discussão alco-

viteira e flatulenta, cuspida. Vem isto a propósito dos novos usos (e prementes) da lin-

guagem, da quebra de regras na invenção multiforme, do espedaçar da corrente na

gaiola do ser para libertar o espírito em voos maiores que o do uso cadavérico duma

linguagem obsoleta e estabelecida, uniforme, logo, longe das verdades e dos senti-

dos maiores, tanto os já achados como – mais gravemente – aqueles que se encon-

tram por descobrir ou pôr em evidência. A alegoria da gaiola segundo Magritte é um

homem sentado com um objecto que tal no lugar do estômago e a liberdade à espe-

ra do nunca mais. Libertar o pássaro da consciência implicará um burilar cuidadoso e

inventivo da linguagem em primeiro lugar, porque é através dela e, tantas vezes, rom-

pendo-a ou retorcendo-a, toureando-a com destreza, que o pensamento trabalha

para dar à luz novas reflexões e esclarecer sentidos, para libertar enfim o ser dessas

outras grilhetas representadas pela gaiola linguística, sendo o não-nomeado e o não-

nomeável somente o ar que circula entre as grades da gaiola ou nesgas de céu aber-

to e possível.

Vêm estas considerações acima dispersas justamente a propósito do facto de nos

parecer a Alegoria da Caverna manifestamente insuficiente para dar conta destas rea-

lidades maiores que são os complexos usos da linguagem e a possibilidade de ace-

der à liberdade de espírito através (ou apesar) dela.

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Page 105: Continhos de Alfarrobeira

Na Metade do Meio

Parecia que estava à chuva e, no entanto, não chovia, parecia um chileno desafor-

tunado em Paris. Do outro lado da vidraça com a morrinha imaginária a bater-lhe na

nuca. Quando saí do café puxou-me vigoroso por um braço: «Venha, vou mostrar-lhe

então a minha morada». Veio esta resposta diferida no tempo, a satisfazer duma

maneira solícita que eu não aguardava a minha anterior pergunta – anterior até à

minha entrada no estabelecimento, quando ele decidira ficar lá fora a aguardar de pé,

espreitando-me de vez em quando pela vidraça como um chileno desafortunado à

chuva em Paris –, a minha pergunta impertinente sobre o local onde residia. «Vamos

por ali, na direcção da biblioteca» indicou ele com um tom de voz amigável e ameno,

como se a simples ideia de lar confortasse imenso o seu “tormento francês”; segui

devagar a seu lado, divertindo-me com o som da neve clara debaixo dos pés e aspi-

rando em paz o ar frio, na paisagem purificada por aquele nobre manto. Aproximámo-

nos do edifício da biblioteca, aí a neve encontrava-se salpicada por folhas lilases de

plátano, então ele parou e, para meu grande espanto, anunciou com certa solenida-

de e uma ponta de orgulho: «É aqui». «Aqui?» pensei, mas limitei-me a fazer um olhar

interessado, seguindo-o respeitosamente, portão dos jardins adentro. Cumprimentou

os funcionários que acabavam o seu dia de trabalho e subiu a escadaria em madei-

ra sempre num passo leve: eu fui atrás dele. Dei por nós no primeiro andar, na ponta

dum grande corredor atapetado, com diversas portas laterais. «Bem-vindo ao meu

humilde sítio» disse ele virando a cabeça para mim sobre o ombro com uns olhos

quase comovidos, e após dizer isto entrou na segunda porta à esquerda, abrindo-a

com uma chave de cobre antiga que tirou do bolso traseiro das calças. Assim que

empurrou com o corpo o rectângulo de madeira, dois feixes de luz viva invadiram a

penumbra do corredor iluminando o pó que circulava no ar, e as figuras do forro de

azulejos que cobria as paredes até à altura da cintura animaram-se nos seus movi-

mentos cobalto: uns pajens tocando flauta, um cão saltando, duas damas abanando

os respectivos leques e um cocheiro embrulhado num paletó atiçando dois cavalos

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Page 106: Continhos de Alfarrobeira

sobressaltados. Entrei atrás dele: na divisão havia apenas uma enxerga, dois gran-

des janelões sem cortinas, uma poltrona, uma mesa e uma cadeira. Obedecendo à

sua indicação, sentei-me na cadeira com os joelhos muito juntos: «Obrigado – agra-

deci – Mas então, é aqui que mora?». Lá fora o sol gotejava tímido os últimos raios

por sobre as árvores despidas, com os seus troncos e ramos prateados pelo reflexo

da neve clara, humedecidos num quebranto. Aquele que poderia ser chileno, um chi-

leno exilado em Paris, confirmou: «Exactamente» e, não tendo dado quaisquer expli-

cações adicionais, levantou-se para apanhar um livro que, segundo ele, «estava ali,

na metade do meio» duma pilha erguida ao canto do compartimento. Este homem

robusto, de pele corada, bigode e olheiras tristes, sentou-se depois, satisfeito como

uma criança, na beirinha da cama, enquanto eu me aproximava dele – recostei-me

no braço do cadeirão – para vê-lo abrir o livro numa página ao calhas e ouvir contar:

«Era uma vez um homem que parecia que estava à chuva e, no entanto, não chovia,

parecia um chileno exilado em Paris. Esse homem habitava no primeiro andar duma

biblioteca estatal, num pequeno compartimento com muito pouca mobília e dois gran-

des janelões sem cortina que davam para os jardins cobertos de neve da biblioteca,

que era a sua casa. Um dia esse homem levou um amigo lá a casa, tirou um livro da

metade do meio duma pilha erguida ao canto do quarto e sentou-se na beirinha da

cama a contar...».

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Page 107: Continhos de Alfarrobeira

Naturalmente Feliz

A senhora dona escritora sentou-se no café às seis e meia da tarde com o cabelo

muito branco penteado em leque e um cachecol de lã grosso. O café só se tornava

café com as decorações natalícias, o resto do tempo era uma triste vitrine. «Deveria

permanecer decorado o ano inteiro» pensou ela, e assim que terminou de pensar isto

uma garota com idade para sua neta sentou-se com destreza numa mesa à frente

dela e começou a enrolar um cigarro. Levava com cuidado à boca, a senhora dona

escritora, uma chávena de chá amarelo e vaporoso que vertera dum bule em forma

de coco – e ora fazia isto, ora pegava num bolo de gengibre, esverdeado pelo coran-

te, com o polegar e o indicador. Soltou a rapariga uma primeira baforada cheirosa do

cigarro que levou à boca com desdém enquanto desdobrava um mapa sobre a mesa:

então a senhora escritora, que era uma dona mulher, pôs-se a imaginar sozinha como

seria estar na pele daquela garota, ou seja, a inventar-se muito mais nova do que era

de facto e a recordar entrelinhas como a juventude lhe passara num ai. Tratava-a

como a uma prima afastada e campónia, à juventude, pela qual – talvez devido à sua

pobre inocência – sentia, contudo, algum disperso carinho. Preparava-se dona escri-

tora para interrogar os afazeres da garota numa terra que desconhecia entre duas

dentadas no gengibre açucarado quando reparou, lendo às avessas e com duplo

esforço porque disfarçadamente as gordas letras do cabeçalho, que o mapa deitado

como um lençol sob as migalhas do croque monsieur da rapariga era da Argélia.

«Bom, isto já se torna mais interessante...» reflectiu a senhora escritora, ajustando ao

pescoço o cachecol «Eu, na minha juventude, nunca tive oportunidade de galgar fron-

teiras – não que o não desejasse, pelo contrário – e a nossa noção de país vizinho

(nossa, da minha geração, digo) era qualquer povoação que distasse uns cem quiló-

metros da casa paterna». «Mas talvez seja isso mesmo» continuou a supor a senho-

ra dona escritora «quem sabe a rapariga não tem lugar nem cheta para ir – a frugali-

dade nota-se-lhe bem na mala rasgada – mais longe do que a sua própria casa ou

até a dos papás: nesse caso, aproveitam-lhe os desenhos de geografias distantes

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decerto para inventar aventuras ou sonhar-se a coitada longe, desbravando essas

paisagens ansiadas com toda uma fúria imaginativa e maravilhosa. Ah, a força

esplêndida de quem tão poucos anos carrega na memória!» completou a escritora o

seu raciocínio com esta frase murmurada, antes de sorver e sentir escorrer quente

pela garganta um outro gole de chá. Aqueceu-lhe a ponta dos membros o líquido fer-

vente como um vapor que depressa corresse pelas veias a aconchegar dedos e ten-

dões, carnes nas extremidades.

Da outra ponta do café – que só se parecia com um café com todas aquelas luzes

na montra enforcadas – ressoou a tosse dum cavalheiro distinto sobressaltando e

desviando por momentos a atenção da rapariga do mapa. «Engraçado, como se inte-

ressa por tudo, curiosa do mundo – até pelo catarro dum pobre diabo...» reparou para

consigo a senhora escritora circunspecta diante dela, e então encaixou com a mão

em concha a mola do brinco esquerdo enquanto virava ao de leve a cabeça para

atentar também melhor no cavalheiro pigarrento: com excepção do chapéu para ati-

rar aos patos e a outras aves selvagens quaisquer cujo nome não lembrou à senho-

ra dona escritora, e do blusão de caça escondendo um cachecol axadrezado, nada

nele sobressaía. Dir-se-ia ali por completo hábito ou pleno acaso, com efeito tinha

cara de gente anónima, uma tez baça e um olhar transparente sem conteúdo que

pudesse palpar-se ou sequer pressentir-se, mesmo para quem insistisse em fixá-lo.

A rapariga voltou ao mapa com uma perscrutação redobrada, procurando um ponto

qualquer que talvez já nem se distinguisse assinalado à superfície graças ao papel

avelhentado, e a senhora dona escritora olhou-a agora com ternura, procurando indí-

cios da sua juventude enforcada. Toda ela era luminosa: de ventre e de rosto, de

mãos e de braços, o seu odor brilhava num rasto e reverberava nas paredes do café,

o sorriso – e raras vezes sorria, talvez apenas o tivesse feito ao receber um chocola-

te quente das mãos do empregado, e mesmo nesta ocasião fizera-o, reparou a escri-

tora, mais por cortesia e menos por vontade – tinha um notável odor a cravinho, ou

pelo menos indiciava-o no lugar da língua, aromatizando bochechas e gengivas para

afastar da boca o sabor agre do tabaco. «A tua, é uma idade agridoce» reflectiu a

escritora «eu, quando era tu, sabia muito bem o que queria e mal conhecia o que

desejava. Mas era naturalmente feliz. Por infortúnio, com a idade perde-se, às vezes,

essa graça espontânea que nos impele e tanto atrai os homens como os afasta. Ao

empregado agradou o teu sorriso, pequena; no entanto, só eu o reconheci forçado.

Talvez só eu o pudesse reconhecer: onde sorri eu já por frete assim, num tempo muito

longe da memória e fingindo deveras bem amabilidade? Em que cafés desbravei eu

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esses mapas de países que só muito mais tarde vim a conhecer? A tua é uma aven-

tura excelente, perpetua-a e proclama-a à chegada. Eu cá, sinto que estou perto da

meta, aproximo-me a passos largos do fim. Talvez sejas a maneira mais alta de pro-

clamar a minha odisseia pessoal, relembrando em ti e no teu rosto toda a pujança dos

meus sóis entretanto enforcados – por favor, continua que eu não te perturbo, far-te-

ei (far-me-ás) companhia neste fim». A jovem aquecia as mãos geladas na chávena

de chocolate, depois o seu dedo escorria por um rio e toda ela se debruçava sobre

um ponto preciso, procurando alguma coisa que tardava em encontrar. Irritou-se e

puxou com força o fumo do tabaco, então enterrou o dedo numa duna do deserto e

soprou uma baforada no ar, estudadamente encarreirada para as bandas do cavalhei-

ro distinto. «Foi um suplício lidar com os homens no meu tempo, tudo se perfilava em

favor dos dotes menos maus e mulher que não era puta, não fumava. Salvaram-se-

me os pulmões mas foi-se-me a inocência: as maiores putas são as que se dão por

comodismo e desistência a um homem, ou então as que nada pedem da vida, nada

esperam ou anseiam lutando por isso (antes sonham ou nem sonham, iludem-se e a

ilusão não enche boca nem espírito). Sei que não és assim mas naturalmente feliz e

que a tua inquietação não te deixa sossegada – ainda bem; crês de facto que chega-

rás um dia ao ponto que procuras com tanto afinco no mapa, na realidade farás tudo

o que estiver ao teu alcance para consegui-lo: também eu creio que lá chegarás. A

tua teimosia não te dará tréguas, podes refrear todos os sentimentos menos esse de

fazer o que crês certo no momento que acreditas exacto – se é que o certo e o erra-

do existem, coisa da qual não terás, por esta altura, muita certeza. A novidade que

tenho a dar-te é a seguinte: daqui por meio século não terás alcançado ainda qual-

quer verdade a esse respeito». A senhora escritora suspirou do alto das suas elucu-

brações, aspergindo em redor o fumo do chá: isto chamou a atenção da rapariga, que

ergueu os olhos do mapa observando-a um pouco fixamente. «Que queres rapariga,

deram-te os olhos para indagar?» pensou a escritora no exacto momento em que trin-

cava com ar blasé o último pedaço de bolo. Aproveitou o súbito interesse da moça

para esquadrinhar-lhe as feições: o fato era modesto e descuidado, um pouco largo,

lenço ao pescoço cor de malva e meio transparente; o rosto era quase perfeitamente

redondo, corado em simetria e os olhos muito pequenos e afastados conferiam-lhe

um ar sóbrio, coerente. No pulso esquerdo uma pulseira de fita e uma madeixa loira

do lado direito do rosto, sobressaindo na escura cabeleira. «Esse teu dever por vir é

um amanhã muito depois» constatou a escritora captando-lhe a liberdade no tutano

da existência; «Sabes muito bem que pouco mais do que nada sabes, e esse é um

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Page 110: Continhos de Alfarrobeira

bom começo...» insistiu para consigo, deliciada com o bigode de chocolate quente

desenhado sobre os lábios finos da rapariga «Deve começar-se por algum lado e, a

começar-se, sinceramente: que seja por aí. Sonhas com esse lugar onde sei que tu

nunca e só daqui por algum tempo, coisa de nada em anos de jovem... Porém respei-

to-te e admiro-te já pelo que fui, que és quase tu mas distintamente. Não me permite

a vida esperar o tempo suficiente para ver-te concretizá-lo, esse teu sonho, nem

outros tantos que de igual modo acalentarás, com uma chama doce, funda e quente

no coração desperto. A tua razão tem muito de sentir – ou, ao menos, assim sucedia

comigo: sendo eu tu quando me suponho nesse teu lugar, e por conseguinte sentin-

do-o como meu escassos instantes. Terás com certeza, por agora, desperto já o espí-

rito para as questões ocultas da natureza, aqueles grandes problemas que a todos

nós, homens, nos ultrapassam tão bravamente, deixando-nos à toa num mundo sem

grande fé se a não procuramos – a ti, segundo calculo, aconteceu procurá-la e acon-

teceu ainda que nenhuma te satisfez; as respostas feitas não te agradam, ou agra-

dam-te tão pouco como as perguntas por fazer: depressa podes inferir-lhes falsida-

des práticas e fragilidades teóricas, e isto submetendo-as somente ao rigor obstina-

do da tua experiência. Em nenhuma fé são as virtudes plenas ou os pecados risíveis,

nenhuma te dá um inferno ameaçando com um céu – são apelativas, como é óbvio.

Mas só nesses termos, pois não podem suprir de modo algum as necessidades dum

espírito irrequieto, embora seja verdade poderem serenar os atormentados, aneste-

siando-os com um caldo místico susceptível de substituir os soníferos. Não se passa,

portanto, nenhum sonambulismo deste género com o teu ser que, debruçado sobre o

mapa da Argélia, parece contudo a pontos de adormecer».

«Não é sono, não, senhora, aquilo que agora me atormenta, senão um pensamen-

to persistente que me deixa – naturalmente – feliz e me há-de levar até si».

Ergueu-se inesperadamente a rapariga, pôs a mala ao ombro, dobrou bem o mapa

e caminhou na direcção da senhora: não já os sóis enforcados, antes um cometa

refulgente e bem desperto. «Aproximou-se de mim, parou de pé à frente do bule,

corou ainda mais. Gaguejou de início, depois lá acertou com o tom e o ritmo conve-

niente na voz para perguntar:

- Desculpe a questão despropositada, mas a senhora por acaso não será também

escritora?».

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Posição Yoguística

Penso às vezes como seria se o cacto não tivesse crescido. Está certo que, no iní-

cio, era uma planta ornamental e rústica, impondo até certo respeito, mesmo quando

o seu tamanho não ultrapassava ainda os dois palmos, com olhos espiralados e rosá-

ceas de espinhos, flores fugidias de primavera ociosa em tons açafrão raiados a bran-

co, um tufo denso de raízes finas e emaranhadas, bem moldado pelo vaso que as

continha. Não amarelecia de inverno e resplandecia no estio, com os seus grandes

lábios abertos, carnudos e vegetais, a respirarem a noite húmida: podia ouvir à noite

na varanda, quem se embalasse na rede ou sentasse num cadeirão, o ruído lento de

válvula hidráulica produzido pelos pulmões do cacto, que se dispunha a crescer até

ocupar um vaso e mais outro, consecutivamente maiores, e finalmente toda a varan-

da, estendendo ambos os braços para os lados até incharem no alpendre como um

balão de hélio gigantesco. Finalmente, houve que pôr a planta ao ar livre, para não

derrubar os pilares da grande varanda com o seu músculo tenso de clorofila. Cresceu

dias e noites seguidas, sob o luar, ao vento, debaixo de aguaceiros ou neve, e atin-

giu em tamanho tais proporções que, não fosse em termos de espécie distinguir-se

completamente, muitos a julgariam próxima do feijoeiro mágico que erguia uma esca-

da colossal entre terra e céu. Os picos do cacto tinham a grossura de chaminés fabris,

transudava ele na noite um orvalho puro que chegaria para regar o restante jardim (ou

o que restava do restante jardim, por assim dizer...) e suspirava aquela planta o tro-

vão de duzentos camiões quando o sol se punha para lá dos montes, nostálgica

daquilo que ninguém aqui conhecera – pois é verdade que o cacto parecia uma

encarnação doutro mundo distante, onde os vegetais reinavam adquirindo proporções

apocalípticas e onde todas as regras do ar e do chão, do tempo e do espaço e dos

tamanhos, lhes estavam submetidas. Existiriam nesse mundo ranúnculos gigantes,

nabos como abóboras e abóboras com o diâmetro de piscinas, rosas alcançando em

tamanho as cidades médias, com odores tão intensos que não se poderiam cheirar a

menos de cinco quilómetros de distância, sob pena de asfixiarem quem o ousasse,

111

Page 112: Continhos de Alfarrobeira

tal como o enxofre sufoca aqueles que se atrevem na cratera dum vulcão. Que mundo

fantástico esse seria, cheio de estranhas surpresas! Os canteiros teriam o tamanho

de países, embora países não houvesse com certeza nesse mundo, pois as frontei-

ras limitariam o crescimento das plantas. Impraticável e caótica – semelhante regra

nesse mundo... Os fertilizantes seriam proibidos como as armas ou os venenos no

nosso, as podas consideradas um atentado contra a vida e severamente punidas, os

enxertos abordados sob a perspectiva duma possibilidade delicada, levantando

sérias questões éticas. Enfim, um mundo bem longe das nossas medidas e condi-

ções, desconcertante e cheio de intriga a seu modo, perigoso (não direi que não...)

mas fascinante e educativo para qualquer humano que por lá se atrevesse.

Não vou aventurar-me em mais conjecturas sobre a proveniência fantástica do

grande cacto, bastará dizer que era uma planta, como se compreende, bastante ori-

ginal e distinta das outras, cuja seiva concentrada a fazia crescer desmesuradamen-

te a caminho das nuvens baixas, circulando distraídas sob a abóbada celeste. Seiva

concentrada, sim: era necessário um sabre para lhe arrebentar a pele e quando

semelhante caso sucedesse (sucedeu semelhante caso por duas vezes) não geme-

ria a planta nem definharia, antes soltaria com admirável languidez uma gelatina pare-

cida com a dos ramos do pessegueiro, espessa e ambarina, no lugar da ferida, e dei-

xaria correr esse sangue para o chão durante muito tempo, até a geleia se solidificar

em crosta e se soltar, revelando por baixo um tecido novo. Geleia, de facto: alimenta-

va passarocos e bichos vários enquanto não amolecia, caracóis, lagartos, texugos,

estorninhos. Tinha também propriedades curativas nas feridas próprias das pessoas,

promovendo uma cicatrização mais rápida e sem deixar marcas dérmicas. Das duas

vezes em que sucedeu esfolar-se a pele ao cacto, recolhi alguma seiva para fabricar

velas, o que na realidade resultou – ardia nessas velas uma fragrância fresca e ter-

restre, lembrando um campo de feno ou um prado recém-cortado ou terra de estio

inundada pelas águas na derradeira rega de Maio, e alumiavam a noite inteira os

pavios dessas velas, pois a resina do cacto nem tão depressa derretia quanto a cera

nos círios mais comum. Tinha, por conseguinte, muitas e boas propriedades a dita

seiva, servindo igualmente como requintado tempero nas ementas mais diversas e

conferindo aos alimentos a textura tenra com a qual se devem honrar as visitas que

são bem-vindas, isto além dum aroma, em boa verdade, divinal.

A planta pródiga em transcendência cresceu de modo a ocupar grande espaço, pri-

meiro o equivalente a um depósito de cerveja, depois o mesmo que um pavilhão e,

por fim, o correspondente a um estádio de futebol ou a uma grande sala de espectá-

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Page 113: Continhos de Alfarrobeira

culos, abarcando em largura já uns bons quinhentos metros por alturas do seu primei-

ro ano de vida. Abri enfim uma bilheteira no portão do quintal e comecei a cobrar

entrada aos turistas para poderem acercar-se do fenómeno, como se o meu jardim

fosse um museu botânico do qual constasse um espécime único, espantoso e gigan-

tesco, ou um novo parque dos jurássicos vegetais. Não foi difícil angariar visitantes

nem rentabilizar o espaço tão-pouco; tornou-se o meu quintal o mais concorrido das

redondezas, aliás tive a certa altura que comprar o espaço do quintal vizinho para

poder a planta estender-se conforme entendesse sem causar-me constrangimentos

ou vergonhas maiores, isto apesar do meu quintal ser em comprimento ainda consi-

derável e a minha disposição para mondá-lo sempre pronta, de modo a deixar espa-

ço ao tropismo insaciável daquele querido espinhento. Arranquei três arbustos e duas

árvores de fruto (uma ameixoeira, um pessegueiro de pêssegos carecas) com o

objectivo de dar passagem ao cacto gigante, aparei primeiro a relva em seu redor e

mais tarde arranquei-a com diligência feroz ao verificar que poderia afectar-lhe o cres-

cimento, abri a cerca separando o meu quintal do quintal vizinho depois de comprar

o terreno sobranceiro com uma boa proposta, envolvendo charme e dinheiro à vista.

Planta privilegiada aquela, sem dúvida.

Se algumas certezas haviam, estavam essas certezas relacionadas com o facto de

o cacto apresentar algumas características peculiares: sombreava a planta, por

exemplo, para a esquerda nos dias pares e para a direita nos dias ímpares e isso,

embora acontecendo desde o primeiro momento em que ali se encontrara, tornara-se

com o passar do tempo francamente notório. Esta evidência causou a princípio estra-

nheza, pois era sem dúvida irregular que assim acontecesse independentemente do

lado donde o sol estivesse a bater, trocando as voltas ao astro com certa graça tei-

mosa. No verão, já se sabia – tendo atingido o cacto proporções maiores –, que havia

que mudar de posição as cadeiras, não com o decorrer do dia, mas conforme os dias,

alternando o repouso num lado e noutro (o que se tornava, com franqueza, bastante

mais prático). Uma outra particularidade do cacto era gemer quando a lua estava

cheia – começou isto tinha ele ultrapassado em diâmetro os quatro metros, quiçá por-

que só então se tornaram os lamentos mais audíveis. Esta característica, tendo pro-

vocado tanta estranheza quanto a anterior, não causava divertimento como ela, mas

uma apreensão até compreensível. Não se sabia se os gemidos eram dor de alma

até se perceber que eram dor de crescimento, o que aliviou um pouco toda a gente –

estava o tropismo intensificado por alturas da lua gorda e era isso bem verificável a

olho nu, tendo em conta o crescimento vegetal desenfreado que acontecia nos dias

113

Page 114: Continhos de Alfarrobeira

rondando o fenómeno natural. «É como um adolescente desastrado» pensei por

várias vezes, e todos os meus esforços foram no sentido de procurar alguma palavra

humana dispersa e perceptível nos gemidos, o que, no entanto, não pude encontrar.

Nem procurei com mais afinco quando se tornou patente a razão de tanta lamúria.

Disse-lhe «Boa noite, cacto» e fiz-lhe uma festa meiga na pele escorregadia cor de

mentol, procurando embalar-lhe a pena ou torná-la, por meio de afectos, mais leve.

Esse pesado choro findou, porém, quando atingiu a planta as suas dimensões

maturas ou finais, o que em termos de perímetro correspondia exactamente àquele

que poderia ser medido em torno dum estádio de grande envergadura (por esta altu-

ra não bastavam já o meu quintal e o quintal vizinho para albergar o grande exemplar,

senão que era necessária toda a periferia da cidade – felizmente não me endividei

graças a esse crescimento exagerado porque, com o passar do tempo, surgiu um

movimento de cidadania “pró-cacto”, apoiaram-me ambientalistas solidários, chega-

ram fundos camarários e governamentais). A planta tinha agora uma forma redonda

abaulada, medindo em altura o equivalente a duas torres catedrais. Juntaram-se

especialistas de vários pontos do globo para analisar o fenómeno e duas centenas de

voluntários com o objectivo de erguer uma cerca protectora. Fizeram-se debates e

mesas-redondas sobre a originalidade do espécime, sessões de esclarecimento à

população com o objectivo de sensibilizar para a preservação do cacto e prevenir

eventuais actos de vandalismo, os quais, felizmente, não vieram a ocorrer. O único

incidente registado ocorreu certo fim de tarde ameno, quando foi detectado um indi-

víduo anónimo a urinar junto à planta, contudo a polícia tomou de imediato conta da

ocorrência: algemaram o indivíduo e levaram-no a passar uma noite na esquadra

quentinha por questões de precaução, embora tivessem detectado quase de imedia-

to que o sujeito estava irremediavelmente embriagado, tendo confundido a pele do

meu cacto com uma gigantesca e húmida parede verde onde pôde aliviar temporaria-

mente a bexiga.

O cacto congregava portanto, desde sempre, opiniões unânimes e afectos mais ou

menos intensos, pois se uns amavam toda a espécie botânica, incluindo por conse-

quência o cacto, outros afeiçoaram-se ao meu picudo em particular, nutrindo por ele

uma estima semelhante àquela que os unia a parentes e familiares bem chegados, e

outros ainda, menos tenros de peito ou com menor propensão para se comoverem

com plantas achavam, ainda assim, que o fenómeno traria turistas ou estimularia o

comércio da zona, a indústria, os serviços, a fama agrícola ou as investigações de

cariz científico, o que traria de qualquer modo benefícios para a cidade, logo, para

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Page 115: Continhos de Alfarrobeira

aqueles que nela trabalhavam e viviam ou nela simplesmente estavam, por razões

que a vida ditou e a vontade quis e o acaso acedeu. Era uma planta de esperanças

e consensos, aquela, uma planta viçosa, ainda que carregando no dorso o desenvol-

vimento de toda uma cidade. Ninguém esperava que recuperasse com solenidade e

bravura glórias antigas, mas sim que se constituísse ela mesma como glória actual e

catapultasse um sem-número de vitórias futuras.

Até que o dia foi chegado em que a planta esmoreceu. Verdade seja dita, ninguém

esperava por um fenómeno segundo depois do primeiro fenómeno, e ainda menos

em sentido inverso ao da proeza original, o que ocasionou primeiro profunda apreen-

são, depois uma tristeza crescente e, por fim, um sentimento de impotência mistura-

do com uma espécie de raiva desiludida. Para quem viu com acertados olhos o suce-

dido, não há dúvidas que o desastre ou a doença começou a dar sinais de si decor-

ridos dois anos e nove meses sobre a data em que a planta veio, ainda minúscula,

para esta casa (colhida numa estufa onde nem antes nem depois se voltariam a

encontrar anormalidades ou excepções deste género, nem mesmo entre exemplares

daquela espécie precisa). O desastre começou por fornecer enquanto sinais premo-

nitórios um amarelecimento progressivo da pele e a queda dos picos do cacto; duas

semanas depois do definhamento ter iniciado, a planta mostrava-se já uma sombra

daquele luxuriante espécime que fora: sem picos e com as estrias da cúpula perden-

do dia a dia a saliência, mirrava em tamanho, perdia o vigor e encardia-lhe a clorofi-

la a olhos vistos. Os especialistas multiplicaram-se em esforços para salvar a beleza

rara, trouxeram estufas climatizadas, sais minerais, princípios da cultura hidropónica

e a melhor das vontades. Os habitantes da cidade resolveram, por outro lado, falar

com a planta no decorrer do seu passeio diário e fazer-lhe festas no dorso – como se

dum golfinho perdido em pleno areal se tratasse – a meio do cross matinal. Alguns

traziam também adubos e mezinhas, os quais não resultaram, e era, além disso, esta

intromissão do desagrado dos cientistas. De novo um gemido, desta feita abafado e

rouco, em desespero, inundou as noites como uma mágoa de morte e – contraria-

mente ao que sucedera com a dor do crescimento – foi perdendo alento, perdendo,

até ser quase um fio de voz imperceptível nas noites de lua cheia. Não era o ruído,

mas a possibilidade de o meu cacto morrer, que me tirava o sono durante a noite ou

o inquietava em pesadelos horríveis, abrindo fendas pavorosas no esperançoso solo

da consciência além-vigia e minando, dessa forma, o meu descanso com toda a

espécie de sortilégios aterradores. Mas o dia chegou em que aquilo que eu temia nos

sonhos aconteceu deveras. Passadas duas semanas e três dias dos dois anos e nove

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Page 116: Continhos de Alfarrobeira

meses, o cacto mirrou visivelmente, as estrias viçosas de seiva transformaram-se-lhe

em rugas secas de velho; outros dois dias passados, a cor amarela escureceu-lhe

num pálido castanho e, logo a seguir, num sépia profundo. Era aqui já visível que a

planta definhava e apodrecia de modo irremediável. Às duas semanas e cinco dias

uma parte da bela cúpula abobadada caiu de surpresa ao solo, como se tivesse sofri-

do uma mutilação grosseira, e ao sexto dia a planta enegreceu por completo, além de

ter perdido mais alguns bocados que a deixaram com um recorte estranho, como se

o seu perfil representasse um hindu experimentado e flexível executando complexa

posição yoguística. Ao sétimo dia a planta suspirou e o meu querido cacto despido de

espinhos, como um hindu cansado, caiu por terra e morreu. Decidimos enterrá-lo ali

mesmo, o que foi – do mal o menos – uma boa ideia, por causa da qualidade do fer-

tilizante que forneceu: não sei hoje imaginar o meu quintal robusto nem o meu jardim

de árvores frondosas sem aquilo que restou dele.

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Page 117: Continhos de Alfarrobeira

O Espelho Antropomórfico

Agora que o cacto morreu, sento-me na relva frondosa à sombra das árvores

robustas, escrevo ensaios como o que se segue:

“O Espelho Antropomórfico

A internet como ilusão de possibilidades no domínio da oportunidade real de vida

O carácter virtual dum meio como a internet introduz, muitas vezes, o utilizador

num universo aparentemente ilimitado em oportunidades e inesgotável em potencia-

lidades, que se derrama como um leque e alastra sem freio a quase todas as áreas

da sua vida. Este ilusório sem-número de oportunidades, à primeira vista ao alcance

do utilizador, transformou a internet no meio da democratização por excelência, ao

tornar acessíveis a milhões de sujeitos os mesmos conteúdos, numa era em que se

ouve dizer que «ter informação é ter poder». Se é verdade que a informação educa,

não é menos verdade que certos conteúdos podem alimentar degenerações e perver-

sidades, instruindo-as a sofisticarem-se – como tão bem sabemos dos famosos casos

das redes pedófilas internacionais, dos comunicados à imprensa por parte de grupos

radicais, das complexas redes de comunicação estabelecidas entre terroristas ou dos

atentados à privacidade dos cidadãos e à autonomia de outros estados por parte dos

serviços secretos das nações ocidentais hegemónicas. Mesmo que isto não fosse

verdade e a world wide web tivesse, por hipótese, sobretudo aspectos positivos,

ainda assim, seria necessário que nos questionássemos: de que forma educa a infor-

mação fornecida – e será sempre um papel formativo, aquele que a net desempenha?

Quanto a esta última questão, parece óbvio que a resposta é negativa – já aquela

outra remete-nos para os detentores desse supra-poder que é o poder de seleccionar

a informação. A sociedade virtual, porque feita de pessoas reais, continua afinal a ser

tão estratificada como a das relações presenciais de todos os dias, embora um

mesmo indivíduo possa ocupar uma diferente camada com a transição do vivere para

o vere. Isto torna a internet aliciante: antes de mais, porque se trata dum simulador

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Page 118: Continhos de Alfarrobeira

de cadeias sociais que permite ao indivíduo, não só testar um comportamento e as

suas consequências imediatas antes de decidir aplicá-lo nas suas relações de todos

os dias (talvez por esta razão tenha tão rapidamente adquirido a net tão grande fama

entre os adolescentes), como também movimentar-se entre camadas sociais, experi-

mentando a pertença a uma outra e a comunicação com pessoas com as quais nunca

comunicaria doutro modo, como se o facto de a maioria dos homens poder falar e/ou

escrever – ou seja, comunicar entre si – anulasse as barreiras reais entre eles exis-

tentes de facto. Esta ideia torna-se tanto mais absurda, adquirindo o carácter de ver-

dadeira falácia da virtualidade, se o leitor pensar que, por exemplo, por dizer «Bom

dia» ao seu patrão não troca, obviamente, de posto laboral com ele, tão-pouco se tor-

nará (como muitas vezes é sugerido nos meios virtuais) íntimo dele do dia para a

noite.

Uma outra questão deve ser focada, a qual nos deverá ocupar mais longamente:

afinal, quem selecciona, escolhe, parte, mistura e que tipo de informação? Estes são

talvez – os grupos que a internet serve e favorece – os senhores dos nossos tempos,

senão vejamos: o próprio software utilizado, a língua de navegação à qual recorre a

maioria, os principais servidores e as questões de compatibilidade – todas estas

escolhas, inscrevendo-se mais no domínio da realidade do que da hipotética poten-

cialidade virtual, conferem as uns (os que escolhem) o poder sobre os outros (os que

utilizam os serviços), ao seleccionarem previamente os conteúdos aos quais estes

poderão aceder. Mas aceder a conteúdos não é o mesmo que aceder a experiência,

daí que haja uma parcela importante de sabedoria à qual simplesmente não se pode

aceder através dessa informação que, se é de certo modo seleccionada em termos

de conteúdo, é por outro lado desregrada em termos de apresentação, uma autênti-

ca “rede” onde o utilizador tanto se pode perder como enlear em definitivo, perdendo

de vista o carácter orientado da pesquisa que empreendia ou saindo desse labirinto

informativo ainda mais confuso do que entrara, como que anestesiado para a refle-

xão pela sobrecarga de conteúdos e o seu (tantas vezes presente) apelo ao choque

e ao sentimento. O choque emocional gera apatia (isto é evidente, talvez em maior

grau, nos noticiários televisivos...), o excesso informativo uma desorientação vital, a

falta de objectivo e propósito definido do pensamento e, não raras vezes, uma dilui-

ção do rigor. É por isso que a televisão é o meio do sonambulismo por definição e a

internet um limbo para os dias que afasta do real, da acção e da reflexão imediatas.

Reproduz o real sem criá-lo, ou no máximo recriando-o sob a forma frustrante de um

reflexo (das teias, cadeias e problemas locais), um micro-mundo tão inacessível

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Page 119: Continhos de Alfarrobeira

quanto ilusório nas suas possibilidades de acesso e oportunidades de vida susceptí-

veis de serem através dele criadas.”

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Page 120: Continhos de Alfarrobeira

O Passarão Invisível

A certa altura em certa aldeia haviam certas duas mulheres. A primeira mulher certa

não se via, a segunda pouco se destrinçava nas suas formas do contorno da serra ou

do recorte dos montes. A primeira mulher era uma fonte, a segunda uma torneira – e

a segunda mulher cantava, a primeira sempre gemia. Eram as duas viúvas e ambas

desde sempre. Não tinham vizinhos, amigos, enteados ou patrões – e ainda menos

maridos, e estes mais do que ilusões. A primeira mulher gemia, a segunda nunca

assim se manifestava. Chorava música a segunda, a primeira em caso algum have-

ria de deixar-se vislumbrar por quem quer que fosse. Porque eram de poucos homens

e ainda menos de vaga-lumes, certo dia enamorou-se a primeira por um pastor bas-

tante franco: este, contudo, não podia vê-la. Usou a primeira mulher, apesar de a

segunda a desencorajar, todas as artimanhas e mezinhas conhecidas para poder tor-

nar-se visível aos olhos do seu amado – o qual, graças à sua esperteza franca e

manifesta desenvoltura de cabeça, merecera entre os outros homens e pastores ali

morantes a alcunha de “passarão”. Resultaram, porém, infrutíferas todas essas ten-

tativas – foram esperanças vãs e má fortuna que levaram os anseios ribeira abaixo.

Lembrou-se então, a mulher enamorada, de que se a não podia ver, podia ao menos

escutá-la o bem-amado: logo se pôs a ciciar para quem quisesse ouvi-las as mais

belas canções de amores desamparados. Conhecia-as de cor, num frémito as com-

pôs e alinhavou para seduzir o incauto sequioso que a água de sua amiga, segunda

certa mulher com forma mui necessária e evidente, fosse a beber.

Assim foi de tal feitio que veio o pastor beber a água lá pelo meio da tarde impla-

cável e, matreiro como era, compreendeu logo a quem se destinavam as cantigas, só

não compreendeu quem as cantava: fechou a torneira, limpou a testa a um lenço de

linho azul – um azul suspenso do azul do céu – e arredou com as mãos um canavial

que se erguia ali perto, a procurar qualquer rapariga. Nada viu. Não tendo visto

mulher alguma, retornou para junto da torneira a apanhar o cajado de cerejeira e a

encher o seu cantil: foi então que notou que o som vinha ali mesmo de perto, dum

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Page 121: Continhos de Alfarrobeira

lugar impossível de vazio. Apanhou água fresca nas duas mãos em concha sob aque-

le sol abrasador, a ver se o canto vinha na alma líquida, mas não lho pareceu escu-

tando de perto. Foi-se a indagar mais junto à torneira e então sim, parece que palpou

o óbvio: sustentava-a um tubo recto vindo do chão mas a voz vinha dali, como duma

parede invisível à rectaguarda do manípulo; além do exposto, era caso estranho que

a água da torneira, ao invés de alagar o chão, se escoasse como por magia supunha-

mos que pelo ralo duma fonte que, na realidade, ali não estava, pelo menos de tal

modo que olhos humanos pudessem vê-la. O “passarão” pragmático palpou o ar nada

achando, porém, entre os dedos: viu-se a braços com um dilema e, assim sendo,

resolveu solucionar também por meio de som o mistério que o vinha atando.

Começou a falar com a fonte, ou melhor, com a voz que cantava chorosa dirigindo-

lhe a ele mesmo – já não tinha quaisquer dúvidas a esse respeito – as mais belas ele-

gias. A princípio, Passarão ainda colocara a hipótese de se tratar de alucinação sua

resultante do estômago vazio ou horas à torreira, salvo que tomara nesse dia gran-

dessíssimo pequeno-almoço e vinha tendo sempre o cuidado de abrigar-se do sol na

sombra das árvores ou do guarda-chuva, por cima da boina que tinha por companhei-

ra usual. Mas não: a gradação do som indicava, sem mais margens para dúvidas, que

a voz vinha dali mesmo, duma parede imaginária por detrás da fonte – tanto assim

era que a “alucinação”, acaso o fosse, não o acompanhava no ouvido para onde ele

se deslocasse. Empreendeu o pastor, hábil, um fértil diálogo com a primeira mulher,

soube-lhe a vida, o formato, a razão dos amores – se razão eles têm que ultrapasse

o mero intuir – e comoveu-se. Daquela conversa frutuosa e do mais que se seguiu

(que ninguém o soube e é difícil tarefa imaginar) resultou um filho, afilhado da mulher

segunda, na aparência todo a mãe e no feitio parecido com o pai, incluindo a esper-

teza: houve nome esse filho de Passarão Invisível, e grande auxílio prestou durante

a sua juventude ao pai, pastoreando o gado com rigorosa, inata discrição.

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Page 122: Continhos de Alfarrobeira

Um Tuaregue e Dois Cavalos

Não havia tempo a perder quando Izidoro passou o monte – corria o mais que

podia e as calças descaíam-lhe pela cintura magra, os ombros eram mastros derru-

bados e os membros queixavam-se como cascos doridos, o suor alagava-lhe em bica

o tecido fresco da camisa larga. Não havia tempo a perder, nem um só minuto olhou

para trás: «Tornei-me nómada» pensou. E galgou duas moitas dum salto só, camba-

leou na erva húmida ao aterrar, desatou numa corrida louca monte abaixo a pensar

um pensamento único que era ânsia e desejo e felicidade igualmente, e era esse pen-

samento só assim: que lá em baixo, no vale, atravessaria com os seus próprios pés

a linha imaginária da fronteira, essa linha que tudo derruba, tudo encolhe e desfale-

ce e torna medíocre em Portugal – na banda para o lado da linha que afaga o mar –:

«que não é linha coisa nenhuma, pura estupidez que degrada a gente: pois se vejo à

minha frente o mesmo verdejante e contínuo vale... linha de políticos para criar reinos

onde a maior parte soçobra» pensou Izidoro. E tendo pensado isto propulsionou as

duas pernas ainda com maior vigor, esforçou os músculos tanto quanto podia, exigiu

ao corpo aquilo de que ele não era capaz com o intuito de alcançar mais rápido a linha

ou o vale – «tanto faz» pensou – sem tirar os olhos do horizonte verde e das nuvens

claras drapejando no céu de Agosto. Puxava ao máximo todas as fibras de todos os

músculos numa corrida fulgurante e atroz, e foi então que uma estranha sensação lhe

sacudiu o corpo a partir dos tornozelos: as suas pernas eram como dois cavalos movi-

dos para diante graças a uma vontade própria, com tendões equinos e cascos apa-

rados calcando a terra com resolução. Auxiliou a corrida dos membros inferiores com

movimentos largos de antebraço e cotovelos, um pescoço inclinado para a frente

como certas aves de papo grande, e fez isto sem despregar os olhos do vale nem

piscá-los por um momento sequer, o vento seco e forte a bater-lhe nas pálpebras que

ardiam fortemente. Enquanto se precipitava encosta abaixo esfregando um pulso nas

pestanas, os cardos agarravam-se-lhe às calças de linho, fustigavam-lhe a barriga

das pernas e os tornozelos nus. Isso não o deteve nem desanimou, antes o incitou a

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Page 123: Continhos de Alfarrobeira

fugir mais rápido daquela erva maldita que lhe comia a carne em bolhas infames.

Quis saber com os seus próprios pés que era só um todo aquele vale – e do outro

lado da imaginária divisão, tão bem que se viveria! Para começar, as casas ali não

tinham comparação com as de cá (e era todo o mesmo vale, de facto...), isto tanto ao

longe como ao perto – pelo que não seria ilusão óptica –, com justa verdade se afir-

mando que até os cães tinham lá melhor vida do que os humanos desta banda – se

a explorados não se sujeitassem eles –: sempre tão invejosos, mesquinhos e impedi-

tivos entre si da iniciativa tanto particular como geral. «Vem-lhes esta maneira de ser

de muita frustração acumulada – esta sentença surgiu na cabeça de Izidoro mais

enquanto evidência experimentada do que como pensamento articulado –, uma revo-

lução que se cumpriu e agora se descumpre sem qualquer tipo de pudor nem vergo-

nha nem remorso, gerações atrás de gerações com as pernas cortadas e os sonhos

desfeitos dá nisto: um povo passivo e sem juízo na mioleira que se deixa governar

por qualquer canalha e de novo se vai meter na boca dos lobos, ou melhor, até deixa

os lobos saneados regressarem a casa como filhos pródigos, espera eternamente

pelo Messias que o salve da burrice centenária. São, meus caros, os benditos frutos

do catolicismo, essa maldição eterna que continua a assolar a nossa terra como peste

– mas são sobretudo as sementes do desamparo, do desespero e do sacrifício con-

tínuo deste povo que o fazem agarrar-se à fé em busca duma compensação post-

mortem e divina para aquilo que não acolhe e o repugna nesta terra». As tripas de

Izidoro revoltaram-se, nesta altura, por dentro até à náusea, sentiu um ímpeto para

parar e vomitar ali mesmo numa qualquer valeta: mas não conseguiu, pois era o dese-

jo de alcançar o outro lado maior e mais forte do que quantos enjoos houvesse a

suportar.

«Que juízos são estes, vendo fé e providência onde é humana e mais que injusta

a decisão? Que gente é esta, que acha por bem sacrificar sonho, anseio e ambição,

enterrar tudo, calafetá-lo muito bem, espalhar por cima uns numerosos baldes de

cimento, aplanar a massa e esquecer o assunto, sem se importar com o facto de per-

der coração e perder tudo, isto para manter uma unidade que cansa e desgasta os

indivíduos, esses moribundos mortos-vivos que uivam à noite nos cemitérios da exis-

tência?? E quem diz tapar o assunto, diz tapar o corpo duma mulher espancada ou

duma criança violada e queimada até à morte, tapar os homens livres mais as suas

opiniões, ou tapar a hipocrisia nacional, que é tudo (e não é bem, claro que não...) a

mesma coisa. Usam-se expressões difíceis como “défice democrático” para designar

um défice crónico de humanidade e uma impunidade geral associada a tudo isso. –

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Page 124: Continhos de Alfarrobeira

isto alcançou Izidoro de forma límpida, como uma evidência soberba – Razão teriam

os japoneses em chamar-lhes “bárbaros do Sul”... e em limpar-lhes o sebo, aí muita

razão tiveram. Trata-se, neste caso, de fazer lá a justiça que os portugueses não

saberão nunca fazer aqui entre si próprios sobre aqueles crimes hediondos que os

levam a matarem-se em vida uns aos outros. Paciência, é lá com eles...», e com esta

frase deu por terminada a intuição, já a ideia mantivera-se sempre no fito da estúpi-

da linha imaginária que não deveria com certeza era existir – «E não é que não exis-

te mesmo?!» constatou Izidoro com uma alegria inefável e triunfante: «Os homens

deviam nascer era sem mapas na cabeça, ou pelo menos sem mapas a pesarem

sobre ela como guilhotinas...». Tendo observado isto sentiu-se nómada e tuaregue

entre os homens da terra donde provinha, fundiram-se as suas vísceras naquele ins-

tante com a terra e com o sol que desaparecia, com a noite pejada de astros altivos

anunciando para ele um novo dia: «Sou nómada e tenho asas nos pés, não sei se

cavalo ou Pégaso o que sou...». Queria esquecer todas as ideias que lhe tinham

vindo antes minar o espírito de recordações abjectas e indecorosas; estava cansado,

muito cansado de tudo aquilo, e era chegado o momento, bem sabia que não have-

ria tempo a perder: o seu desejo continha a paz toda e a esperança aventurosa que

impele, de asas abertas alturas acima, um falcão pelas escadarias aéreas do zénite.

«Como é possível um país viver, em tempos que são, apesar de tudo, de paz, em

guerra contra a própria iniciativa? Estranho meio de sabotar tudo, matando os pró-

prios filhos tanto metafórica como literalmente.» – com esta conclusão a respeito de

atitudes que não quis perceber (estava exausto, compreendam, e com muito pouca

vontade de o fazer – além de duvidar que tal fosse possível, restando nessa hipóte-

se pouco mais do que a condenação ou o desprezo como alternativas), passou dum

estado atormentado e exausto à paz dum espírito em branco, esvaziado de todas as

preocupações possíveis.

Vinham os seus pés corpóreos como que raspando o chão com grande inclemên-

cia e ferocidade, porém ao atravessar a linha imaginária que um marco despojado e

solitário assinalava tudo mudou (o vale era à primeira vista igual de ambos os lados,

isto pôde garantir Izidoro mais tarde com todo o rigor: «pelo menos em termos natu-

rais, ao menos desde que existe; mas os homens fizeram-no diferente entre si...» afir-

mou, sem saber se se fizera compreender realmente e com um leve, discreto triste-

zameteorito cruzando-lhe o olhar entre dois pólos). Quando atravessou a ansiada

linha o espírito flutuou-lhe sem pesar e as asas que parecia ter nos pés – com um

pouco de atenção poderia sentir-lhes as plumas – ergueram-se acima da relva: foi

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Page 125: Continhos de Alfarrobeira

então que pôde alcançar uma panorâmica geral da situação, tendo descoberto com

os seus próprios olhos as diferenças entre um e outro lado (das quais, como se pode-

rá perceber, já vinha antes suspeitando: quer porque simplesmente o intuísse, quer

porque lho insinuassem amigos e conhecidos, murmurando de vergonha entredentes

os “atrasos” bem patentes do estrangeiro). Leve e solto, vazio por dentro e em paz,

como que purificado, observou com maior clareza as disparidades, mesmo ao nível

do seu estado de espírito: dissipou-se o pesadume do cansaço que o vinha torturan-

do, como uma gelatina despegou-se ocioso da forma há longo tempo preenchida e,

uma vez descolada a modorra, uma alegria fecunda tomou conta dele, cresceu-lhe no

corpo até rebentar em nova energia. «Um homem livre é um homem livre» justificou-

se, e então sentiu-se à vontade para flutuar um pouco no espaço por sobre aquela

terra nova que era, não obstante, a mesma terra (é importante que não o esqueça-

mos), donde avistava já com certa nostalgia – não há como evitá-la quando se manda

à fava uma raiz – ou antes, com uma certa pena, aqueles homens vergados pelo

medo e paralisados no veneno da própria inveja que não haviam conhecido outra

coisa para além daquele modo de vida triste que os consumia – a si próprios e uns

aos outros –, convictos na sua redoma de que aquela forma de não ser tão peculiar

os transformaria em país mais cedo ou mais tarde, justamente a eles: uns incompe-

tentes teimosos insistindo em brincar sozinhos às nações rigorosas dos adultos.

Tudo era, pode-se afirmá-lo sem pudor, cinzento e conformado do outro lado, os

homens mais magros e pobres, as pessoas mais brancas, o seguidismo a nova

ordem. Ninguém tinha opinião própria do outro lado: todos disfarçavam que a pos-

suíam sem nada acrescentar de relevante a qualquer assunto, ou seja, limitavam-se

a obedecer fingindo liberdade nessa obediência. Os que denunciassem o caso esta-

riam por certo falando com paredes ou muros altos e sentir-se-iam por isso, mais

cedo que tarde, tão frustrados – porque oprimidos – como os conformistas (pois se é

dito que até as paredes têm ouvidos, nem estas nem os muros demonstravam pos-

suí-los neste caso...). Era (ou é já?) um país onde só se aceitava a uniformidade e

apenas se louvavam os que exaltavam a pátria com fervor, mesmo que unicamente

o fizessem com o interesse imediato da sobrevivência, sem quaisquer sentimentos

nacionalistas prévios ou anteriores (onde, aliás, não poderia sequer havê-los por fal-

tarem as razões) nem sinceridades maiores que a duma fome sincera. Era um país

escurecido pela luz do sol, contrastando na cor com a vivacidade deste – os que tives-

sem fome e quisessem, não obstante, por teimosia ou dignidade escusadas, conti-

nuar a ser sinceros, então que escolhessem o exílio. «Escolham-no – diziam –, afinal

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a escolha é livre mesmo que não tenham dinheiro para comer: afinal tudo não passa

dum grande equívoco vosso porque vivemos num país livre. Sois livres para sair!».

Esta frase ecoou na cabeça dele por longo tempo «Sois livres para sair!», o único

conteúdo no seu cérebro quente, como um lixo por varrer esquecido ao canto da casa

ou um último pesadelo na noite atormentada, a seguir desvaneceu-se e deu lugar a

uma outra sentença, que ele considerava mais correcta, isto é, aquela que deveria ter

sido proferida no lugar da anterior: «Sois livre para sê-lo!». Sê-lo, o quê? Escolhera

ele «ser tuaregue em vez de exilado», foi isto que lhe veio ao coração nesta sequên-

cia em torvelinho – quiçá porque lhe amenizasse em remorsos o espírito desarrepen-

dido –, ou acaso o escolheria se tivesse acontecido Aladino condensar-se diante dele

com a sua cauda vaporosa a sair pelo biquinho da lâmpada – isto porque um tuare-

gue não tem país e, por inerência lógica, não tem destas vergonhas sob a forma de

resquícios inoportunos, constrangimentos ou embaraços antigos de qualquer espécie

ou género. «Nem penas imerecidas, esperemos... Um tuaregue com dois cavalos, um

em cada perna»: nem mesmo estes aparelhados de arreios, selas ou estribos, nem

mesmo estes domáveis porque indomados e naturais, com crinas longas e soltas

assinalando brisas, no lugar de cortadas rente ao pêlo por um tratador impertinente.

«Dois cavalos selvagens percorrendo montes e vales em busca do voo secreto». E,

tendo tomado consciência disto, Izidoro quis repousar do assunto levando os dois pés

ao chão.

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Para Sempre Porque Sim

Não lhe apetecia nada. «Não digo» dizia, «Não faço», «Não quero», «Não posso»,

«Não me apetece». E quanto dizia era só por não lhe apetecer. Recusava tudo: qual-

quer proposta, qualquer negócio, qualquer convite. Não entrava em jogos, negocia-

tas, visitas, excursões, conversas, curiosidades, apetites. Não saía à noite nem se

resguardava do frio. Não tinha medo dos ladrões. Não desobedecia à lei nem fazia

por obedecer-lhe: ignorava-a (fazia bem neste ponto, visto que a justiça humana e

estatal era uma injustiça estabelecida para com tanta gente, ou seja, uma forma de

os poderosos se resguardarem do linchamento popular quando as coisas ficavam

pretas). Estamos a falar duma mulher-renúncia. Era esguia, de olhos castanhos e

cabelos negros muito lisos; tinha do lado esquerdo do pescoço um sinal em forma de

coração: tapava-o com o cachecol como se se sentisse vulnerável com ele à mostra.

Não estava perto nem longe de ser alta, o seu tamanho era comum. Vestia com

sobriedade uma camisa de cor lilás desmaiada e calças pretas – isto na maioria dos

dias. Andava com renúncia, como que ausente de cabeça e corpo, e recusava-se a

gesticular quando falava. «Era do contra» dizem uns, «Nada, só podia ser oposição»

opinam outros. Digo eu que não era de nada nem de ninguém, como uma boa mulher-

renúncia que se preze. Também se recusava a ser boa e a prezar a renúncia; tinha

um humor cáustico mas condescendente – por mais incrível que esse adjectivo possa

parecer numa mulher que renuncia a tudo ou quase. Quando lhe perguntam a quê

não renuncia, a mulher-renúncia faz um jeito meio tímido, enrolando o cachecol ao

pescoço, e responde: «Não digo». «Mas por que razão não diz, minha senhora?»,

«Não posso», «E por que razão não pode?», «Não quero». E estava dita a conversa

redonda que indica renúncia e desvontade. Exasperavam os repórteres em torno da

mulher-renúncia, reclamando explicações racionais e lógicas: ela sempre os envolvia

numa teia de negações que aprisionava os argumentos mais lestos. Queriam dar-lhe

concordância e assentimento pelo Natal como qualidades, os vizinhos da mulher-

renúncia, porém o mais que conseguiram foi que ela lhes recusasse e devolvesse

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polidamente os presentes: «Não, obrigada» disse. A mulher-renúncia recusava-se a

ter um cão e a passeá-lo; também não saía à chuva por menos que chovesse. Ao tele-

fone respondia com silêncios ou nãos a todas as perguntas; era raro que se visse ao

espelho, esta mulher, e quando o fazia desaprovava geralmente a sua imagem mur-

murando: «Que ridícula», depois ria-se da figura no espelho porque renunciara à tris-

teza havia muito tempo. Recusava-se, a mulher-renúncia, a não tirar férias, o que

durante muitos anos lhe deu problemas patronais, uns sérios outros nem tanto, pelo

facto de não querer antes renunciar ao descanso em favor do trabalho. «Quem esco-

lhe ao que deve renunciar sou eu!» impunha-se a mulher-renúncia, e isto aconteceu

até ao dia em que ela renunciou ao patrão e decidiu começar a trabalhar por conta

própria. Então sim, grande parte dos seus problemas findaram. A mulher-renúncia

sentiu nesse momento que tinha feito a escolha certa. «O seu patrão declarou que

era uma má empregada, o que tem a declarar a respeito disto, mulher-renúncia?»

interrogavam-na os jornalistas à saída de casa, «Nada, meus senhores, nada!» sor-

ria a mulher-renúncia, enrolando melhor o cachecol em torno do seu pescoço.

Pensou ela que assim era, com efeito: uma má empregada, e portanto nada tinha a

objectar. Passou a trabalhar para si mesma daí em diante, está claro que mais feliz

do que nunca.

Um dia, sempre conheceu a mulher-renúncia um homem-renúncia que se recusou

a convidá-la para jantar: o caso foi de novo intrigante para a imprensa, embora

nenhum dos dois tenha prestado quaisquer declarações. Mas o homem-renúncia

recusou-se a ficar indiferente, na realidade parecia mesmo era obstinado: um dia che-

gou ao pé da mulher-renúncia e quis beijá-la, ao que ela renunciou com elegância,

agradecendo a pretensão da cortesia. Outro dia a mulher-renúncia levou o homem-

renúncia a passear e, tendo visto uma bonita paisagem que a comoveu, quis dar-lhe

a mão: o homem-renúncia retirou a sua sorrindo. Recusavam muitas vezes ao telefo-

ne ir a casa um do outro, isto para manterem uma certa compostura. Mas certo dia a

mulher-renúncia quis levar o cão do homem-renúncia a passear, e este deu-lhe a mão

e foi com ela. Quando os repórteres lhe perguntaram por que razão iam casar, ten-

cionando ser felizes para sempre, a mulher-renúncia respondeu simplesmente:

«Porque sim»

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Alfarrobeira – (rubrica: Angiospermas) árvore frondosa (Ceratonia siliqua) da

família das leguminosas, subfamília cesalpinioídea, de caule tortuoso, folhas paripe-

nadas, flores apétalas, avermelhadas ou esverdeadas, e grandes vagens cilíndricas,

castanho-escuras; alfarroba, ervilhaca-parda, fava-rica, figueira-de-pitágoras, figuei-

ra-do-egipto, pão-de-são-joão [Nativa do Mediterrâneo, é cultivada pela madeira e

especialmente pelo fruto, adstringente e tanífero, depois com polpa adocicada e

comestível, também muito usada como forragem].

(dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

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Alexandra Pereira (n. 1980) é licenciada em Psicologia pela Universidade de

Coimbra. Fez vários cursos de escrita criativa e guionismo, incluindo com José

Eduardo Agualusa. Já trabalhou como guionista, psicóloga e jornalista freelancer,

tanto em Portugal como na Finlândia. Escreveu para revistas como "Africa Today"

(Luanda), Gallery Magazine, Ovi Magazine, 6Degrees Magazine e Free! Magazine

(Helsínquia), Elle e LeCoolMagazine (Lisboa). Foi seleccionada para a área da

Literatura no concurso Jovens Criadores em 2005 e 2006, ganhou o III prémio de

Narrativa de Ficção da C.M. Montijo em 2005, com o romance "Expresso Latino". Em

2006 ganhou um Concurso Internacional Literário de São Paulo, com o conto "Cristais

como Nós". Tem escrito romance, conto, ensaio, crítica de arte e artigo jornalístico,

guiões para teatro e cinema.

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Continhos de Alfarrobeira é uma colectânea de 25 contos de inspiração pop e mági-

co-realista, metade dos quais dedicados a algumas personalidades da cultura lusó-

fona e internacional, gratidões da autora. Alfarrobeiras Em Flor, o primeiro conto, dá

nome à colectânea que agora se apresenta. O conto Cristais Como Nós, que aborda

o problema do racismo e da exclusão social, ganhou o primeiro prémio num concur-

so internacional literário de São Paulo, no Brasil. «A arte do conto é a de ser sucin-

to, pragmático e poético ao mesmo tempo...», diz-nos Alexandra Pereira.