croco04 2014 final

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A VOZ DO CROCODILO PINTURA - JOÃO DE AZEVEDO - 2014 Nº4 Cinquenta anos depois, João de Azevedo volta a expor na Figueira da Foz, a sua terra natal, mas desta vez no Museu Municipal Santos Rocha, que assinala em 2014 o 120º aniversário da sua fundação. A exposição “A Voz do Crocodilo” integra o programa de eventos de- nominado «Maio é Museu», promovido pelo terceiro ano consecutivo. Assinala também a reorganização de parte da exposição permanen- te de etnografia da instituição museológica e a apresentação pública de objetos pertencentes à coleção de Timor. Patente de 31 de maio a 14 de agosto Rua Calouste Gulbenkian 3080-084. Figueira da Foz Tel. 233 402 840 | email:museu@cm-figfoz.pt www.figueiradigital.com | www.facebook.com/museu.rocha Horário até 30 junho: 3ª a 6ª feira, das 09h30 às 17h00 Sábados, das 14h00 às 19h00 a partir de 1 de julho: 3ª a 6ª feira, das 09h30 às 18h00 Sábados, domingos e feriados, das 14h00 às 19h00 Esta manhã encontrei umas cartas, religiosamente bem guar- dadas, do meu amigo João de Azevedo. Tinham sido enviadas de Roma, onde vivia nos anos 70. E, ao lê-las, senti-me, se não cul- pado, pelo menos irritado comigo mesmo. É que, no alegre caos em que nos deixávamos perder, não fui capaz de ver o seu desejo mais pungente. E, no entanto, quantas vezes nestas cartas não era exactamente essa a questão! Pintar, desenhar, era o que o fazia feliz. Mas nunca afirma poder dedicar-se exclusivamente a isso. Os ideais políticos da nossa juventude não o permitiam. No entanto o caminho estava aberto: galeristas e coleccionadores interessavam-se pelo seu trabalho, interesse que o João só tinha então em conta do ponto de vista da subsistência. Exaspera-me tentar hoje conquistar tudo o que foi então adi- ado. Na verdade o conflito começa na adolescência. João quer entrar na faculdade de Belas-Artes de Lisboa contra a vontade do pai que prefere vê-lo a estudar engenharia naval. Não seguirá nenhum dos caminhos. Depois de um ano na Faculdade de Direito, foge aos dezoito anos da ditadura salazarista, pedindo asilo político na Bélgica onde começa uma nova história. A sua existência torna-se rica, generosa e inventiva. E chega agora a hora de, sem reservas, desfrutar dos pincéis desfrutando do seu talento em plenitude. Foi ele mesmo quem compreendeu que essa hora chegara, e fico contente por isso. A reviravolta deu-se em Timor, onde passou dois anos de 2005 a 2007. Nesta ilha de forma estranha- mente parecida com a de um crocodilo, apaixonou-se pelas len- das locais e pela relação intensa que os Timorenses mantêm com a figura do crocodilo. Resultou daí uma série de pinturas de cores explosivas onde o homem e o sáurio se cruzam como se fossem um centauro invertido. Assim como em Picasso com o encontro do homem com o touro – pensando em particular nos quadros que dizem respeito ao Minotauro – o encontro do homem com o crocodilo de João de Azevedo tem uma natureza fortemente erótica. Inquietante, tam- bém: haverá figura mais evocativa da castração que o crocodilo? Perguntem ao capitão Hook que pensa ele disto. Mas para os falantes a castração está no coração da econo- mia do desejo. No seu seminário “A relação do objecto”, Jacques Lacan evoca o crocodilo para ilustrar a alegria maternal devo- radora, e do falo faz um bastão que se posiciona entre os dois maxilares não deixando que se fechem. Não sei o que os timo- renses pensariam desta analogia! Em Moçambique onde o João trabalhou onze anos, um pintor conhecido tem o nome de Malangatana Ngwenya, que significa Malangatana Crocodilo. Em Timor, ele torna-se João Crocodilo! Yves Depelsenaire *Psicanalista da École de la Cause Freudienne (ECF), crítico de arte e autor de “Le Musée Imaginaire Lacanien” (Lettre Volée, Bruxelas, 2009) e ”L’envers du décor” (Psyché, Éditions Nouvelles Cécile Défaut, Nantes, 2013) Design: Ivone Ralha Edição e tradução: Rosa de Azevedo João Croco O encontro do homem com o cro- codilo de João de Azevedo tem uma natureza fortemente erótica. Inquietante, também: haverá fi- gura mais evocativa da castração que o crocodilo? JOÃO DE AZEVEDO CV/PINTURA DE AZEVEDO, João Manuel Silva Mendonça Data e lugar de nascimento: 2 Fevereiro 1950, Figueira da Foz, Portugal Nacionalidade: Portuguesa Estado civil: Casado, 4 filhos Endereço mail:[email protected] Telefone em Portugal: 00351 967 829 032 Telefone na Holanda: 0031 626 045 432 — Exposições na Figueira da Foz, em 1964 – 1965, no Casino e numa Galeria local. — Seleccionado no âmbito do concurso Prémios Estímulo, da Sociedade Nacio- nal de Belas Artes, em Lisboa (exposição na SNBA, Outubro 1965). — Colaborador do suplemento Juvenil do Diário de Lisboa. Co-fundador do suplemento Juvenil “Onda”, do jornal semanário Mar Alto, da Figueira da Foz, e colaborei regularmente em suplementos juvenis e literários nacionais e em an- tologias de estudantes. — Partida para Bruxelas em Setembro de 1968 para estudar no Institut Na- tional des Arts et du Spectacle (Teatro e Comunicação) — Residência em Roma, Itália, até 1975, onde exerci permanentemente a activi- dade de pintor. Em Itália participei em várias exposições colectivas e realizei duas exposições individuais. Destas últimas destaco a exposição realizada no Centro Culturale per l’Informazione Visiva (Fevereiro–Março 1975). Numa crítica dessa exposição, Dário Micacchi, crítico entre os mais respeitados na época, escrevia no quotidiano L’Unitá (edição de 4 de Março 1975, pág. 9): Il portoghese João de Azevedo è nato nel 1950 a Figueira da Foz, e vive da alcuni anni in Itália dove há trovato, in relazione alla sinistra artística italiana, quelle con- dizioni per cercare ed esprimersi che in terra sua gli erano negate, come a tanti altri giovani latino-americani, spagnoli, greci, turchi, nord-mericani anche. Ora che così straordinari rivolgimenti sono avviati in Portogallo, questo giovane dimostra di avere fatto la sua parte, almeno per quel che un pittore può. Non conosco la situazione attuale dell’arte portoghese per illustrare nel modo gius- to la sua ricerca. La sua cultura sembra complessa, fatta di caratteri nazionali fusi con certi caratteri del fantastico profondo di un Klee, del brutalismo di un Dubuffet, della violenza del momento dada di Dix e Grosz; ma questi caratteri colti si direbbero riportati al dolore e all’animismo delle maschere nere angolane o della pittura del volto e del corpo. Due motivi figurati in tempere e in pitture con intaglio su tavola: l’uomo strozza- to dalla garrotta, una figura alata, tra demonio e angelo, che viene in primo piano da profondità abissali. La tecnica combina colore, incisione del legno, acidatura a mordere, e rende assai bene la sofferenza e la violenza sia dell’uomo torturato sia della nascita di un possibile angelo, uomo alato, dall’orrendo e dal demoniaco. La crudele deformazione dell’anatomia è straziante ma sembra che la bestialità generi il suo contrario. indimenticabile il demonio-angelo nei cui occhi nascono due pupille a falce e martello”. — Regresso a Portugal no Verão de 1975. Participei como animador cultural em apoio às lutas de camponeses sem terra e em apoio a embriões de cooperativas agrícolas: residente na Cooperativa Agrícola Popular da Torrebela. Nesse verão realizei também a capa para o disco “Com as minhas Tamanquinhas” de José Afonso. — Partida para Moçambique em Fevereiro de 1977, para trabalhar como assis- tente da Universidade Eduardo Mondlane (1977-1981), no Centro de Estudos de Comunicação. Ainda em Moçambique, para o Ministério da Agricultura, trabalhei num projecto de desenvolvimento cooperativo (1981 – 1984) e com responsabili- dades pedagógicas num centro de Formação Agrária e de Desenvolvimento Rural (1984-1988). — Regresso a Itália em 1988, onde permaneci até 1992, como consultor da Liga Nacional das Cooperativas e Mutualidades italiana (LNCM), assim como da FAO, FIDA e outras instituições internacionais. Com essas instituições internacionais trabalhei em múltiplos países africanos e na Palestina. — Chefe de um projecto da OIT (Organização Internacional do Trabalho), no Níger, entre 1992 e 1999, centrado sobre uma forte participação das empresas cooperativas e dos seus associados na segurança alimentar e no desenvolvimen- to local, e conselheiro do Coordenador do Programa Nacional de Luta contra a Pobreza desse país, entre 1999 e 2001, para o PNUD (Programa das Nações Uni- das para o Desenvolvimento). — Regresso a Portugal em 2001, trabalhando até hoje como consultor nacional e internacional, nomeadamente para as Nações Unidas e Comissão Europeia, principalmente como perito de avaliação. Instalei-me em Alportel, S. Brás de Alportel. — Residência de dois anos em Timor-Leste (2005 – 2006), por motivos famil- iares. Foi em Timor-Leste que trabalhei na pintura mais intensivamente. De facto, nesse dois anos, concentrei-me decisivamente na pintura, tendo produzido cerca de 100 peças. Desde esses anos continuei, em Portugal e na Holanda a fazer pintura. Exposições nestes 3 últimos anos: O Olhar do pintor sobre a República Portuguesa, Paula Cabral-Galeria de Arte, Maio-Junho, 2010, Lisboa Café dos Artistas, Janeiro-Fevereiro 2011, Lisboa (paula.cabral-artgallery.com) Zem-Arte, Dezembro-Janeiro 2012, S. Brás de Alportel (http://www.zem-arte.com) La Menuiserie, Abril-Maio 2013, Rodez, França (www.lamenuiserie.net) Studio-galerie Here Comes Everybody (HCE) , Outubro 2013, Paris-S. Denis (http:// hcestudiogalerie.free.fr) Estes crocodilos são uma consequência da minha estadia em Timor-Leste durante dois anos, desde Fevereiro 2005. As pinturas são feitas com tintas acrílicas, a sua maior parte sobre papel Fabriano de algodão 600- 850 gr. Esta capa do disco do Zeca Afonso é o meu cartão- -de-visita mais antigo, feita no Verão de 1975. Nas- ci em 1950, tinha então 25 anos e por essa altura parei com a pintura. Deixei de pintar quando fui de Itália para Portugal, onde passei a fazer outras coi- sas. Porém, em Itália fui pintor activo, entre 1972 e 1975. Fiz duas exposições individuais e participei em várias colectivas (em Itália e fora dela). Parei então de pintar porque nessa altura me parecia desajustado fazer coisas para as pessoas com din- heiro comprarem. Tive uma espécie de embaraço, hesitação maior, pouca autoconfiança. Queria mudar de vida, mas não sabia bem para que vida mudar. Ia com as coisas, durante tantos anos, mas sempre acompanhado pelos pincéis e tintas, que ficavam numa caixa fechada. Desde então tenho participado, desde 1977, em actividades do (por vezes mau) desenvolvimento. Entre elas: 11 anos em Moçambique, como coope- rante do governo local, quase 10 anos nas Nações Unidas, no Níger e, desde 2001 como consultor in- dependente, em África e Ásia. O mais recente regresso às pinturas, deve-se, em primeiro lugar, à vontade de fazer algum tra- balho manual. Fazer trabalhar as mãos e passar por cima do determinismo que nos empurra a manifestar apenas uma pequena parte dos nossos talentos, usar apenas uma parte do nosso corpo, ou a cabeça ou as mãos, ou outra parte qualquer. Por outro lado penso que pintar dá muito gozo; que o trabalho manual já vale outra vez nos dias de hoje, depois de ter sido tão desvalorizado. Penso que para o futuro é preciso fazer um trabalho mais integrado, mais holístico. O pouco que sabemos sobre nós próprios aponta para essa necessidade: reintegrar as nossas forças, os nossos lados emo- cionais, os nossos lados espirituais, o nosso inter- esse pelo ambiente. Timor e as minhas citações dos crocodilos Com os significados profundos dos crocodilos fui aprendendo na prática – e não só nos livros – que as sociedades primitivas não tinham os homens no centro do universo (desnecessário citar Lévi- -Strauss). A natureza, os outros seres vivos foram desvalorizados, “arrancando-lhes o homem para o colocar num lugar de eleição”, o que na altura foi considerado, no mundo ocidental, como uma conquista do humanismo e do racionalismo. Esse desprezo do ambiente virá daí. Visto de Timor, na minha vivência com aquelas pessoas dali, esta convicção “ganhou-me” para o lado dos crocodi- los. Estes animais têm ali uma ambiguidade signifi- cante, com alta densidade histórica. As lendas são povoadas pelos crocodilos. Apesar de tentativas de modernização, eles continuam presentes no ima- ginário como parceiros dos sonhos e da vida real. Nessas narrativas adoptam várias cores, segundo as zonas, as ocasiões, as intenções, as testemun- has. As mulheres de certos povos mauberes não são mulheres senão à vista, porque mal voltas as costas, são crocodilos. Um rei de um outro povo deu a filha mais velha ao crocodilo, para ganhar a guerra. Antes de os indonésios desembarcarem, em 1975, conta-se que a invasão foi largamente anun- ciada pelo aparecimento de muitos crocodilos na baía de Díli. Uma conhecida lenda conta que a ilha de Timor tem a forma de um crocodilo, depois de velho e morto e de ter sido companheiro de um ra- paz, de quem foi muito amigo. Há sempre uma narrativa segunda a qual “na se- mana passada” os crocodilos vieram e levaram 1, 3 ou mais pessoas. Esses animais são a parte escondi- da e mágica do território. Eu cito essas histórias não para as ilustrar, mas porque procuro essa percep- ção, a relação da humanidade com esses animais. Acrescento que o crocodilo em Timor é um ani- mal sagrado (lulik), sendo considerado pelos timo- renses como antepassado. Daí o nome de avô, bei-nai. É o senhor das águas, o we-nai. Segundo o mito de origem, é considerado o responsável pelo povoamento de Timor. Esses animais são geralmente muito respeita- dos, são rápidos e poderosos. Podem, de facto, atacar e comer pessoas. Toda a região está infes- tada. Na costa norte da Austrália é absolutamente proibido tomar banho nas praias, de Novembro a Abril. Existem desde há talvez 200 milhões de anos, são dos mais velhos sobreviventes, são hoje espécies protegidas. No meu caso, e com eles, voltando aos pincéis depois de tantos anos, jogo com as cores, para es- pantar e seduzir os parceiros e os públicos. Croco- dilos homens e mulheres, e vice-versa, homens e mulheres crocodilos. Acasalamentos, pesade- los, combates; não ilustro nada, são citações de ocasiões que poderiam ter acontecido. Em Dili fui obtendo algum feed back. Houve mesmo uns velhos que me disseram: “Até parece que o senhor João estava lá!”. Os crocodilos estão arquivados em: http://joaodeazevedopaintings.blogspot.com/ João de Azevedo ALGUMA APRESENTAÇÃO, DOS CROCOS E MINHA «Ce que je constate : ce sont les ravages actuels; c’est la disparition effrayante des espèces vivantes, qu’elles soient végétales ou animales; et le fait que du fait même de sa densité actuelle, l’espèce humaine vit sous une sorte de régime d’empoisonnement interne — si je puis dire — et je pense au présent et au monde dans lequel je suis en train de finir mon existence. Ce n’est pas un monde que j’aime.» Lévi Strauss, Entrevista a France 2 em 2005. EDIÇÃO ESPECIAL FIGUEIRA DA FOZ

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EXPOSIÇÃO DE JOÃO AZEVEDO

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A VOZ DO CROCODILOPINTURA - JOÃO DE AZEVEDO - 2014 Nº4

Cinquenta anos depois, João de Azevedo volta a expor na Figueira da Foz, a sua terra natal, mas desta vez no Museu Municipal Santos Rocha, que assinala em 2014 o 120º aniversário da sua fundação.A exposição “A Voz do Crocodilo” integra o programa de eventos de-nominado «Maio é Museu», promovido pelo terceiro ano consecutivo. Assinala também a reorganização de parte da exposição permanen-te de etnografia da instituição museológica e a apresentação pública de objetos pertencentes à coleção de Timor.

Patente de 31 de maio a 14 de agostoRua Calouste Gulbenkian 3080-084. Figueira da Foz Tel. 233 402 840 | email:[email protected] | www.facebook.com/museu.rocha

Horário até 30 junho:3ª a 6ª feira, das 09h30 às 17h00 Sábados, das 14h00 às 19h00

a partir de 1 de julho:3ª a 6ª feira, das 09h30 às 18h00 Sábados, domingos e feriados, das 14h00 às 19h00

Esta manhã encontrei umas cartas, religiosamente bem guar-dadas, do meu amigo João de Azevedo. Tinham sido enviadas de Roma, onde vivia nos anos 70. E, ao lê-las, senti-me, se não cul-pado, pelo menos irritado comigo mesmo. É que, no alegre caos em que nos deixávamos perder, não fui capaz de ver o seu desejo mais pungente. E, no entanto, quantas vezes nestas cartas não era exactamente essa a questão! Pintar, desenhar, era o que o fazia feliz. Mas nunca afirma poder dedicar-se exclusivamente a isso. Os ideais políticos da nossa juventude não o permitiam. No entanto o caminho estava aberto: galeristas e coleccionadores interessavam-se pelo seu trabalho, interesse que o João só tinha então em conta do ponto de vista da subsistência.

Exaspera-me tentar hoje conquistar tudo o que foi então adi-ado. Na verdade o conflito começa na adolescência. João quer entrar na faculdade de Belas-Artes de Lisboa contra a vontade do pai que prefere vê-lo a estudar engenharia naval. Não seguirá nenhum dos caminhos. Depois de um ano na Faculdade de Direito, foge aos dezoito anos da ditadura salazarista, pedindo asilo político na Bélgica onde começa uma nova história. A sua existência torna-se rica, generosa e inventiva. E chega agora a hora de, sem reservas, desfrutar dos pincéis desfrutando do seu talento em plenitude.

Foi ele mesmo quem compreendeu que essa hora chegara, e fico contente por isso. A reviravolta deu-se em Timor, onde passou dois anos de 2005 a 2007. Nesta ilha de forma estranha-mente parecida com a de um crocodilo, apaixonou-se pelas len-das locais e pela relação intensa que os Timorenses mantêm com a figura do crocodilo. Resultou daí uma série de pinturas de cores explosivas onde o homem e o sáurio se cruzam como se fossem um centauro invertido.

Assim como em Picasso com o encontro do homem com o touro – pensando em particular nos quadros que dizem respeito ao Minotauro – o encontro do homem com o crocodilo de João de Azevedo tem uma natureza fortemente erótica. Inquietante, tam-bém: haverá figura mais evocativa da castração que o crocodilo? Perguntem ao capitão Hook que pensa ele disto.

Mas para os falantes a castração está no coração da econo-mia do desejo. No seu seminário “A relação do objecto”, Jacques Lacan evoca o crocodilo para ilustrar a alegria maternal devo-radora, e do falo faz um bastão que se posiciona entre os dois maxilares não deixando que se fechem. Não sei o que os timo-renses pensariam desta analogia!

Em Moçambique onde o João trabalhou onze anos, um pintor conhecido tem o nome de Malangatana Ngwenya, que significa Malangatana Crocodilo. Em Timor, ele torna-se João Crocodilo!

Yves Depelsenaire

*Psicanalista da École de la Cause Freudienne (ECF), crítico de arte e autor de “Le Musée Imaginaire Lacanien” (Lettre Volée, Bruxelas, 2009) e ”L’envers du décor” (Psyché, Éditions Nouvelles Cécile Défaut, Nantes, 2013)

Design: Ivone Ralha Edição e tradução: Rosa de Azevedo

João CrocoO encontro do homem com o cro-

codilo de João de Azevedo tem

uma natureza fortemente erótica.

Inquietante, também: haverá fi-

gura mais evocativa da castração

que o crocodilo?

JOÃO DE AZEVEDO CV/PINTURA

DE AZEVEDO, João Manuel Silva MendonçaData e lugar de nascimento: 2 Fevereiro 1950, Figueira da Foz, Portugal Nacionalidade: PortuguesaEstado civil: Casado, 4 filhosEndereço mail:[email protected] em Portugal: 00351 967 829 032Telefone na Holanda: 0031 626 045 432

— Exposições na Figueira da Foz, em 1964 – 1965, no Casino e numa Galeria local.

— Seleccionado no âmbito do concurso Prémios Estímulo, da Sociedade Nacio-nal de Belas Artes, em Lisboa (exposição na SNBA, Outubro 1965).

— Colaborador do suplemento Juvenil do Diário de Lisboa. Co-fundador do suplemento Juvenil “Onda”, do jornal semanário Mar Alto, da Figueira da Foz, e colaborei regularmente em suplementos juvenis e literários nacionais e em an-tologias de estudantes.

— Partida para Bruxelas em Setembro de 1968 para estudar no Institut Na-tional des Arts et du Spectacle (Teatro e Comunicação)

— Residência em Roma, Itália, até 1975, onde exerci permanentemente a activi-dade de pintor. Em Itália participei em várias exposições colectivas e realizei duas exposições individuais. Destas últimas destaco a exposição realizada no Centro Culturale per l’Informazione Visiva (Fevereiro–Março 1975). Numa crítica dessa exposição, Dário Micacchi, crítico entre os mais respeitados na época, escrevia no quotidiano L’Unitá (edição de 4 de Março 1975, pág. 9):

Il portoghese João de Azevedo è nato nel 1950 a Figueira da Foz, e vive da alcuni anni in Itália dove há trovato, in relazione alla sinistra artística italiana, quelle con-dizioni per cercare ed esprimersi che in terra sua gli erano negate, come a tanti altri giovani latino-americani, spagnoli, greci, turchi, nord-mericani anche.

Ora che così straordinari rivolgimenti sono avviati in Portogallo, questo giovane dimostra di avere fatto la sua parte, almeno per quel che un pittore può. Non conosco la situazione attuale dell’arte portoghese per illustrare nel modo gius-to la sua ricerca. La sua cultura sembra complessa, fatta di caratteri nazionali fusi con certi caratteri del fantastico profondo di un Klee, del brutalismo di un Dubuffet, della violenza del momento dada di Dix e Grosz; ma questi caratteri colti si direbbero riportati al dolore e all’animismo delle maschere nere angolane o della pittura del volto e del corpo.

Due motivi figurati in tempere e in pitture con intaglio su tavola: l’uomo strozza-to dalla garrotta, una figura alata, tra demonio e angelo, che viene in primo piano da profondità abissali. La tecnica combina colore, incisione del legno, acidatura a mordere, e rende assai bene la sofferenza e la violenza sia dell’uomo torturato sia della nascita di un possibile angelo, uomo alato, dall’orrendo e dal demoniaco. La crudele deformazione dell’anatomia è straziante ma sembra che la bestialità generi il suo contrario. indimenticabile il demonio-angelo nei cui occhi nascono due pupille a falce e martello”.— Regresso a Portugal no Verão de 1975. Participei como animador cultural em

apoio às lutas de camponeses sem terra e em apoio a embriões de cooperativas agrícolas: residente na Cooperativa Agrícola Popular da Torrebela. Nesse verão realizei também a capa para o disco “Com as minhas Tamanquinhas” de José Afonso.

— Partida para Moçambique em Fevereiro de 1977, para trabalhar como assis-tente da Universidade Eduardo Mondlane (1977-1981), no Centro de Estudos de Comunicação. Ainda em Moçambique, para o Ministério da Agricultura, trabalhei num projecto de desenvolvimento cooperativo (1981 – 1984) e com responsabili-dades pedagógicas num centro de Formação Agrária e de Desenvolvimento Rural (1984-1988).

— Regresso a Itália em 1988, onde permaneci até 1992, como consultor da Liga Nacional das Cooperativas e Mutualidades italiana (LNCM), assim como da FAO, FIDA e outras instituições internacionais. Com essas instituições internacionais trabalhei em múltiplos países africanos e na Palestina.

— Chefe de um projecto da OIT (Organização Internacional do Trabalho), no Níger, entre 1992 e 1999, centrado sobre uma forte participação das empresas cooperativas e dos seus associados na segurança alimentar e no desenvolvimen-to local, e conselheiro do Coordenador do Programa Nacional de Luta contra a Pobreza desse país, entre 1999 e 2001, para o PNUD (Programa das Nações Uni-das para o Desenvolvimento).

— Regresso a Portugal em 2001, trabalhando até hoje como consultor nacional e internacional, nomeadamente para as Nações Unidas e Comissão Europeia, principalmente como perito de avaliação. Instalei-me em Alportel, S. Brás de Alportel.

— Residência de dois anos em Timor-Leste (2005 – 2006), por motivos famil-iares. Foi em Timor-Leste que trabalhei na pintura mais intensivamente. De facto, nesse dois anos, concentrei-me decisivamente na pintura, tendo produzido cerca de 100 peças. Desde esses anos continuei, em Portugal e na Holanda a fazer pintura.

Exposições nestes 3 últimos anos:

O Olhar do pintor sobre a República Portuguesa, Paula Cabral-Galeria de Arte, Maio-Junho, 2010, Lisboa

Café dos Artistas, Janeiro-Fevereiro 2011, Lisboa (paula.cabral-artgallery.com)Zem-Arte, Dezembro-Janeiro 2012, S. Brás de Alportel (http://www.zem-arte.com)La Menuiserie, Abril-Maio 2013, Rodez, França (www.lamenuiserie.net) Studio-galerie Here Comes Everybody (HCE), Outubro 2013, Paris-S. Denis (http://

hcestudiogalerie.free.fr)

Estes crocodilos são uma consequência da minha estadia em Timor-Leste durante dois anos, desde Fevereiro 2005. As pinturas são feitas com tintas acrílicas, a sua maior parte sobre papel Fabriano de algodão 600- 850 gr.

Esta capa do disco do Zeca Afonso é o meu cartão- -de-visita mais antigo, feita no Verão de 1975. Nas- ci em 1950, tinha então 25 anos e por essa altura parei com a pintura. Deixei de pintar quando fui de Itália para Portugal, onde passei a fazer outras coi-sas. Porém, em Itália fui pintor activo, entre 1972 e 1975. Fiz duas exposições individuais e participei em várias colectivas (em Itália e fora dela). Parei então de pintar porque nessa altura me parecia desajustado fazer coisas para as pessoas com din-heiro comprarem. Tive uma espécie de embaraço, hesitação maior, pouca autoconfiança. Queria mudar de vida, mas não sabia bem para que vida mudar. Ia com as coisas, durante tantos anos, mas sempre acompanhado pelos pincéis e tintas, que ficavam numa caixa fechada.

Desde então tenho participado, desde 1977, em actividades do (por vezes mau) desenvolvimento. Entre elas: 11 anos em Moçambique, como coope- rante do governo local, quase 10 anos nas Nações Unidas, no Níger e, desde 2001 como consultor in-dependente, em África e Ásia.

O mais recente regresso às pinturas, deve-se, em primeiro lugar, à vontade de fazer algum tra-balho manual. Fazer trabalhar as mãos e passar por cima do determinismo que nos empurra a manifestar apenas uma pequena parte dos nossos talentos, usar apenas uma parte do nosso corpo, ou a cabeça ou as mãos, ou outra parte qualquer. Por outro lado penso que pintar dá muito gozo; que o trabalho manual já vale outra vez nos dias de hoje, depois de ter sido tão desvalorizado. Penso que para o futuro é preciso fazer um trabalho mais integrado, mais holístico. O pouco que sabemos sobre nós próprios aponta para essa necessidade: reintegrar as nossas forças, os nossos lados emo-cionais, os nossos lados espirituais, o nosso inter-esse pelo ambiente.

Timor e as minhas citações dos crocodilos

Com os significados profundos dos crocodilos fui aprendendo na prática – e não só nos livros – que as sociedades primitivas não tinham os homens no centro do universo (desnecessário citar Lévi- -Strauss). A natureza, os outros seres vivos foram

desvalorizados, “arrancando-lhes o homem para o colocar num lugar de eleição”, o que na altura foi considerado, no mundo ocidental, como uma conquista do humanismo e do racionalismo. Esse desprezo do ambiente virá daí. Visto de Timor, na minha vivência com aquelas pessoas dali, esta convicção “ganhou-me” para o lado dos crocodi-los.

Estes animais têm ali uma ambiguidade signifi-cante, com alta densidade histórica. As lendas são povoadas pelos crocodilos. Apesar de tentativas de modernização, eles continuam presentes no ima- ginário como parceiros dos sonhos e da vida real. Nessas narrativas adoptam várias cores, segundo as zonas, as ocasiões, as intenções, as testemun-has. As mulheres de certos povos mauberes não são mulheres senão à vista, porque mal voltas as costas, são crocodilos. Um rei de um outro povo deu a filha mais velha ao crocodilo, para ganhar a guerra.

Antes de os indonésios desembarcarem, em 1975, conta-se que a invasão foi largamente anun-ciada pelo aparecimento de muitos crocodilos na baía de Díli. Uma conhecida lenda conta que a ilha de Timor tem a forma de um crocodilo, depois de velho e morto e de ter sido companheiro de um ra-paz, de quem foi muito amigo.

Há sempre uma narrativa segunda a qual “na se-mana passada” os crocodilos vieram e levaram 1, 3 ou mais pessoas. Esses animais são a parte escondi-da e mágica do território. Eu cito essas histórias não para as ilustrar, mas porque procuro essa percep-ção, a relação da humanidade com esses animais.

Acrescento que o crocodilo em Timor é um ani-mal sagrado (lulik), sendo considerado pelos timo-renses como antepassado. Daí o nome de avô, bei-nai. É o senhor das águas, o we-nai. Segundo o mito de origem, é considerado o responsável pelo povoamento de Timor.

Esses animais são geralmente muito respeita-dos, são rápidos e poderosos. Podem, de facto, atacar e comer pessoas. Toda a região está infes-tada. Na costa norte da Austrália é absolutamente proibido tomar banho nas praias, de Novembro a Abril. Existem desde há talvez 200 milhões de anos, são dos mais velhos sobreviventes, são hoje espécies protegidas.

No meu caso, e com eles, voltando aos pincéis depois de tantos anos, jogo com as cores, para es-pantar e seduzir os parceiros e os públicos. Croco-dilos homens e mulheres, e vice-versa, homens e mulheres crocodilos. Acasalamentos, pesade-los, combates; não ilustro nada, são citações de ocasiões que poderiam ter acontecido. Em Dili fui obtendo algum feed back. Houve mesmo uns velhos que me disseram: “Até parece que o senhor João estava lá!”.

Os crocodilos estão arquivados em:http://joaodeazevedopaintings.blogspot.com/

João de Azevedo

ALGUMA APRESENTAÇÃO, DOS CROCOS E MINHA

«Ce que je constate : ce sont les ravages actuels; c’est la disparition

effrayante des espèces vivantes, qu’elles soient végétales ou animales; et le

fait que du fait même de sa densité actuelle, l’espèce humaine vit sous une

sorte de régime d’empoisonnement interne — si je puis dire — et je pense au

présent et au monde dans lequel je suis en train de finir mon existence. Ce

n’est pas un monde que j’aime.» Lévi Strauss, Entrevista a France 2 em 2005.

EDIÇÃO ESPECIAL FIGUEIRA DA FOZ

Page 2: Croco04 2014 final

A pequena nascente de água cristalina do alto da mon-tanha perde-se nas profundezas da mãe Terra e reaparece mais além, numa lagoa de águas calmas, tranquilas. Os fetos gigantes e os bambus agitam-se ao ritmo da brisa, as kako´aks1 tagarelam, namoram manhã cedo, kakoan-do ora em tom alegre, ora apenas segredando kako´ak, kako´ak, kako´ak...

Contam-nos os katuas2 que há muitos, muitos anos, ain-da Timor e o Jaco constituíam uma só terra, aquela lagoa era mar e, numa trajectória inversa, o mar ia à nascente atravessando as funduras da mãe Terra. E com o mar, iam os seres marinhos e também os da terra.

Era uma vez... Noi-Meta regressava a casa, cansada das horas passadas no mercado da aldeia. O Sol queimava naquele dia de Dezembro. Noi-Meta tinha sede, precisava de descansar!

De cócoras, as mãos em concha, Noi-Meta recolhe a água cristalina e sorve-a de um só trago. Sente-se leve, esvoaça, entra num Mundo à parte!

Não há brisa. Noi-Meta estranha o ondular repentino das águas. Num arrepio, compreende que está sob o Sol do meio- -dia, a hora dos rai-nain3 e recorda que a sua avó lhe contara que a lagoa era lulik4. A hora é de silêncio e as kako´aks estão longe, em respeito aos rai-nain...

As águas agitam-se num remoinho violento, agitam-se os fetos e os bambus. E Noi-Meta vê-o, ao crocodilo, enorme, possante, assustador.

— Por que vieste? Não sabes que este é o meu reino e aqui só entra quem eu convido?

Noi-Meta treme mais que os bambus. Mas, vencendo o medo, titubeando, responde num sussurro: não me faças mal, eu só tinha sede...

— Quem beber desta água, será meu servo para sempre! Ou morrerá; eu me alimentarei da sua carne e porei fim ao seu ciclo de vida, como castigo pela sua falta de respeito!

Eu sou o Rei, sou o Avô, sou o Rai-Nain!As lágrimas rolam pelo rosto moreno de Noi-Meta, as

mãos contorcem-se, o corpo estremece...O jovem crocodilo enternece-se, o seu coração bate

mais forte quando repara como Noi-Meta é bonita, muito bonita! Morena, olhos negros a condizer com os cabelos apanhados em volumoso carrapito presos por um ul´suku5 de prata, os lábios carnudos da cor do sangue cheirando a bétel, areca e cal, sinal de consciencioso cumprimento do ritual de bua e malus6... sim, Noi-Meta é linda e só pode ser de fina estirpe! Tanto, que pode ser a futura rainha do seu reino!

— Não chores. Eu sou o Rei e o Rai-Nain, tenho poder, traço o destino dos humanos, simples e frágeis mortais. Poupo-te a vida se te casares comigo!

— Ahnn? Eu sou uma mulher, tu és um lafaek! Como é que isso pode ser? — replica surpresa a jovem.

Os céus fecham-se num instante, ao Sol sobrevém a chuva, ribombam trovões e os relâmpagos cortam os ares. Regressam as kako´aks, os lorikos e as rolas batendo rui-dosamente as asas num presságio de milagre; as águas em turbilhão marcam a aparição repentina que quase faz perder os sentidos a Noi-Meta: à sua frente, cresce, desta-ca-se o homem, quiçá o mais belo timorense que ela vira até então!

Noi-Meta apreendeu o milagre, o poder e a capacidade de metamorfosear-se do jovem Lafaek, o Rai-Nain das águas, do Mar e da Terra...

Sem meias nem peias, sem barreiras, sem medos, logo ali se apaixonou, se entregou e se deu a Lafaek. Feita rainha, Noi-Meta ganhou a capacidade de também ela se metamorfosear. Fez-se Crocodilo, alcandorou-se a liurai-feto7 das águas, do Mar e da Terra, e desapareceu com Lafaek nas profundezas da lagoa.

Nunca mais ninguém a viu. Noi-Meta não voltou a casa e não aparece nem mesmo quando a mãe e as irmãs cantam ao luar:

Loron atu tu´un ona, fulan atu sa´e ona mamã bolu ita fali eh..Mai fali eh, fila fali eh...Mamã bolu ita fali eh8...

Mas Noi-Meta não perdeu o coração e sente como gente... e dizem as vozes do povo que Noi-Meta também tem saudades...

... e no mercado, ao meio-dia, envolta em longo manto, surge, de vez em quando deslizando suavemente, uma estranha mulher, esguia, de olhos oblíquos semi-cerra-dos, pele dourada, um certo cheiro a terra, a lama, a sal e mar...

Maria Ângela Carrascalão

1 Pequeno pássaro típico das zonas montanhosas 2 Velho, ancião 3 Senhor, dono da Terra 4 Sagrado 5 Gancho ou alfinete de cabelo 6 Areca e bétel 7 Rainha 8 Canção tradicional em tétum, cantada em toada lenta,

indolente: O Sol está a pôr-se, a Lua está a nascer, a mamã chama-te de novo...regressa, volta... a mamã chama-te uma vez mais...

A globalização trouxe outros mundos ao mundo, desde sempre. Aumentando-o, gizando-o em novas direcções, abrindo novos planos, também e sobretudo imaginários, que antes lá não havia. E de cada vez a seu modo assim se fez e faz e tornará a fazer até que o tempo coincida absolutamente com o espaço.

Agora, que a globalização já não se faz com naus nem caravelas, mas com computadores e bolsas on-line ca-pazes de alimentar a cobiça (madre-eterna) daqueles mais ansiosos do vão poder do mundo, e com as notí-cias em directo da TV, a outra peregrinação global, a do espírito, essa faz-se também ela de outro modo: onde antes, meio milênio atrás, o Fernão Mendes Pinto de gloriosa memória elocubrava as aventuras de uma desco-berta maravilhada desse cruzamento incerto entre mito e história, hoje outros entendem, desentendem, sobre-entendem, numa epifania breve, as janelas que se abrem de repente sobre os planos mais incertos e caóticos do tempo, e o desdobram, mostrando-o em outras dobras, em outras convulsões, em outras configurações.

Assim João de Azevedo.Longamente hipotecado a uma paixão aventureira que

o levou aos trópicos, de Moçambique a Timor passando por tantos outros lugares, joão trouxe, porque levava para tanto a intuição, notícia de outros mundos haver, para além da racionalidade estreita deste nosso em perpé-tuas crises, outros lugares onde o trágico coabita com o vulgar e o ordinário, paredes meias com o sonho, fazen-do e desfazendo entre este e a chamada realidade. Uma realidade menos óbvia do que a nossa, já se vê. Onde os animais ainda e sempre falam.

E se nessas aventuras chegou a colaborar de perto, apaixonadamente, com o renascimento de nações, ou captar o essencial desse registo gráfico, quase dia-gramático, de uma visão outra do mundo, que depois igualmente sabe traduzir em longas e sábias conversas noite fora, em que descreve os mitos como se os houvera assistido desde o seu nascimento, é nos seus quadro de longa e paciente factura que mais os elabora, re-elabora, tornando-os pouco a pouco seus e nossos, através do seu sábio e sempre inocente olhar.

Já se vê que o crocodilo é um poderoso símbolo erótico. E que, como a todo símbolo, o melhor é não o afectar a uma única coisa, já que de muitas fala, e ao mesmo tempo. E já se vê que ele caminha veloz nestas pinturas, onde também a cor transporta a alegria das descobertas mais vastas do espaço e do tempo. Mas, humaníssimo, e não só por ser portador desses impulsos vitais, também ele o temível crocodilo é retrato e auto-retrato, mágico instrumento de uma soberana re-interpretação do mundo, deste e do out-ro, mensageiro subtil que se desloca entre os dois.

Os crocodilos de João de Azevedo, as suas ninfas, as suas cores quase puras, são outros tantos sinais can-tantes de haver sempre mais mundos e contadores de histórias desses mundos, hoje como antes, há muito tempo atrás na peregrinação do outro. Porque perpétuo é o homem no seu sonho como na sua imperfeição.

São artes destas que tornam o mundo maior. E que no-lo trazem, paradoxalmente, até junto à porta.

Obrigado João.Bernardo Pinto de Almeida*

Novas Peregrinações

*critique d’art, poète, professeur (Faculté des Beaux-Arts, Porto)

no país dos crocodilos

A primeira peregrinação do João leva-nos para um país real, uma antiga colónia portuguesa, Timor-Leste. Esta ilha do arquipélago “indonésio” tem como animal totémi-co o crocodilo, criador do mundo e origem de todo o bem e todo o mal. João viveu aí alguns anos.

O pincel aflora as lendas deixando a marca do croco-dilo, um patchwork de peças coladas, peças que marcam a passagem deste “Ser de Sonho” com uma grande vir-tuosidade de formas e de cores, um puzzle do imaginário. A carne do mundo está presente nesta esticada pele de crocodilo.

Estas formas divertidas, este conjunto de cores, esta surpresa estupefacta, esta orgia, prendem-se com as-pectos litúrgicos tanto de saudação como de celebração.

Deitado no divã do psicanalista a sua boca abre-se como que a engolir a essência do mundo, o reino da cas-tração, da voracidade e dos fantasmas que todos temos com monstros que devoram.

mergulhado no coração da fragilidade

Nos mares mediterrâneo e outros mares do sul po-demos verificar o drama de milhares de homens cujo país os expulsou com violência, tentando assim atingir as costas da Europa e da Austrália. Chamamos-lhes os “harragas”, a partir de uma palavra do árabe que significa “queimar os papéis para não voltar mais”, abandonando a sua identidade. João pinta esta humanidade extenuada, os olhares sem esperança, embarcações apinhadas em direcções desconhecidas numa série de quadros que ex-ploram uma precariedade que recusa a própria represen-tação. Como representar este nada, os confins do mundo e da humanidade, como criar esta visão?

Diante destes “harragas” uma coisa é certa: a vertigem. Nada esgota o mau estar e a precariedade humana, tão bem retratados nestes quadros.

A pena de morte: a morte e o sol não se olham de frente

No início dos anos 70 a execução de inúmeros presos políticos na Espanha de Franco comoveu a Europa. João saiu de Portugal para fugir ao regime de Salazar, nesta época, e foi sempre sensível à pena de morte, que se tor-nou tema da sua pintura. O instrumento utilizado nestas representações é sempre o mesmo, um objecto cinzento que acompanha uma expressão de rosto que mostra a destruição do que há de mais precioso: o olhar, o ouvido, o pensamento e a palavra.

Ícaro, ou o regresso à juventude

O mito de Ícaro tem tudo para fascinar o João: como Ícaro, está exilado da sua terra a que quer regressar, é engenhoso, pronto a tudo e ambicioso.

A lenda transforma Ícaro num presunçoso, aquele que se enreda no seu engenho, que queima as asas por quer-er voar muito alto. João retém do mito a vontade de ter asas. Mas Ícaro aqui não tem asas de cera e sim asas com todas as cores e desenhos.

Terminamos a viagem com este ser alado, onde João assina o seu manifesto artístico: a cor, sempre, porque é necessária para elevar a obra, para viver, para cativar o horror que todos conhecemos mesmo que não queira-mos ver.

Sem qualquer dúvida o João nunca quis dar nenhuma lição e certamente não gosta da palavra manifesto. É im-portante, no entanto, ver esta exposição com um senti-mento de alegria, porque o artista deixa-nos aqui o seu “saber alegre”. Este Ícaro não é Eros mas em todas es-tas tantas variantes encontramos um leque de emoções daquele que, como o Ícaro de João, quer abrir as asas.

Obrigado João por nos teres “transportado” desta forma.

Georges Quidet*, 2013

Noi Meta, a mulher crocodiloConto

Pequeno guia para uma viagem em quatro etapas

*Galeria Here Comes Everybody (HCE). Paris – S. Denis