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3º Encontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia:
Amazônia e Sociologia: fronteiras do século XXI
GT7: Fronteiras nas Amazônias: processos sociais e simbólicos
Cultura e Identidade no Alto Rio Negro: uma analíse histórico-cultural da
comunidade indígena Itacoatiara Mirim
1Leticia Alves da Silva;
2Marilene Alves da Silva
1; 2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas.
Manaus, 26, 27 e 28 de setembro de 2012
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Cultura e Identidade no Alto Rio Negro: uma analíse histórico-cultural da
comunidade indígena Itacoatiara Mirim 1Letícia Alves da Silva
2Marilene Alves da Silva
RESUMO
O presente artigo pretende delinear um breve percurso histórico-cultural da comunidade
indígena Itacoatiara Mirim evidenciando sua dinâmica sócio-espacial e demonstrando que o
território é produto histórico e condições de processos sociais, com formas e territorialidades,
interações entre sociedade e natureza, lugar de identidade e patrimônio cultural. Nesse
sentido, o objetivo do estudo é demonstrar que apesar das transformações contemporâneas na
vida da população indígena da Amazônia, muitas delas recorrem a sua identidade, como
forma de manter sua cultura por meio de um sistema de símbolos.
A pesquisa foi desenvolvida junto aos moradores da comunidade de Itaquatiara Mirim com o
auxilio dos discentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas –
Campus São Gabriel da Cachoeira. Para a coleta de dados foram utilizadas entrevistas semi-
estruturadas abordando os seguintes pontos: aspectos sociais, históricos, culturais,
econômicos e ambientais.
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Cultura e Identidade no Alto Rio Negro: uma analíse histórico-cultural da
comunidade indígena Itacoatiara Mirim
RESUMO
O Alto Rio Negro localiza-se a noroeste do Estado do Amazonas a 853 quilômetros de
Manaus. A região é habitada por 22 etnias indígenas distribuídas no município de Santa Isabel
e São Gabriel da Cachoeira. Por ser considerada como uma região da tríplice fronteira (Brasil
/ Colômbia / Venezuela) o município de São Gabriel da Cachoeira foi enquadrada como área
de segurança nacional onde se faz presente as Forças Armadas, ordens religiosas, instituições
públicas e privadas como bancos, escolas, hospitais, etc., o que leva a população indígena
migrar para a área urbana da cidade em busca de emprego, educação, saúde, entre outros.
A origem da comunidade indígena Itacoatiara Mirim é um exemplo de migração da área rural
para a área urbana de São Gabriel da Cachoeira. Localizada no perímetro urbano do
município numa área denominada Zona Comunitária Indígena, a comunidade surgiu a mais de
20 anos motivada por famílias da etnia baniwa. A comunidade foi fundada na área periférica
por conta da dificuldade que sua população tinha em manter suas tradições culturais no centro
da cidade, aliado com o medo de perder sua identidade indígena. Desde então, a comunidade
vem tentando resgatar o modo de viver como seus antepassados, valorizando suas danças,
culinárias, artesanatos, confecção de instrumentos e rituais, etc.
Desse modo, o presente artigo pretende delinear um breve percurso histórico-cultural da
comunidade indígena Itacoatiara Mirim evidenciando sua dinâmica sócio-espacial e
demonstrando que o território é produto histórico e condições de processos sociais, com
formas e territorialidades, interações entre sociedade e natureza, lugar de identidade e
patrimônio cultural. Nesse sentido, o objetivo do estudo é demonstrar que apesar das
transformações contemporâneas na vida da população indígena da Amazônia, muitas delas
recorrem a sua identidade, como forma de manter sua cultura por meio de um sistema de
símbolos.
A pesquisa foi desenvolvida junto aos moradores da comunidade de Itaquatiara Mirim com o
auxilio dos discentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas –
Campus São Gabriel da Cachoeira. Para a coleta de dados foram utilizadas entrevistas semi-
estruturadas abordando os seguintes pontos: aspectos sociais, históricos, culturais,
econômicos e ambientais.
Palavras - chave: Cultura, Identidade, Comunidades Indígena, migração.
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Introdução
A região do Alto Rio Negro está localizada no noroeste amazônico, habitada por 22
povos indígenas pertencentes as famílias lingüísticas Tukano Oriental (Desana, Tukano, Pira-
tapuia, Arapaso, Wanano, Kubeu, Tuyuka, Miriti-tapuia, Makuna, Bará, Suriano, Yurutí e
Karapanã), Aruak (Tariana, Baniwa-Kuripako, Warekena e Baré), Maku (Hupda, Yuhupde,
Nadêb e Dou e Yanomami(Yanomami), representando 10% do total da população indígena do
país. Pode-se afirmar que a população indígena da referida região se mantém hegemônica,
constituindo cerca de 90% do total. Essas sociedades desenvolveram nessa área, ao longo de
milênios, formas sofisticadas de adaptação ao meio ambiente regional e práticas diversas e
complementares de subsistência em ecossistemas tidos como os mais pobres da Amazônia,
em virtude da baixa fertilidade de suas terras e pobreza dos rios em peixes.
Desta forma, verifica-se que essa diversidade étnica está distribuída pela sede do
município de São Gabriel da Cachoeira nas 750 comunidades indígenas, localizadas as
margens dos principais rios da região e nas cinco reservas indígenas demarcadas e
homologadas em 1998: Terra Indígena Alto Rio Negro, Terra Indígena Médio Rio Negro I,
Terra Indígena Médio Rio Negro II, Terra Indígena Apaporis, e Terra Indígena Rio Téa. Além
dessas, a Terra Indígena Yanomami também possui uma pequena extensão que faz parte do
município, conforme o mapa abaixo:
Terras Indígenas do Alto e Médio rio Negro (Fonte: AZEVEDO, 2006).
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O município de São Gabriel da Cachoeira está localizado na tríplice fronteira: Brasil,
Colômbia e a Venezuela. Sua extensão territorial é de 112.255 Km², representa quase 8% da
área total do Estado do Amazonas, com uma população de 41.885 habitantes (IBGE, 2009)
sendo que os habitantes de origem indígena correspondem a 40% da população indígena do
Amazonas.
O principal centro urbano do Alto Rio Negro é a cidade de São Gabriel da Cachoeira,
que tem sua origem no século XVII com a chegada das Ordens religiosas e posteriormente
com a entrada dos militares portugueses em 1759, que tinham objetivo de promover um novo
padrão de organização social no rio Negro, formando aldeias e depois as vilas, para onde eram
“descidas” as tribos indígenas e submetidos a catequese, a cultura ocidental e ao trabalho
forçado ocasionado pelas expedições que buscavam as “drogas do sertão”.
As marcas das mudanças ocorridas na organização social do Alto Rio Negro no
período colonial são verificadas no modo de vida dos grupos indígenas atuais que deslocam-
se periodicamente de suas comunidades ribeirinhas para a sede do município, na procura de
trabalho em órgãos públicos, no acesso a gêneros alimentícios e vestuário da cultura ocidental
e atendimento hospitalar. Isso pressupõe não só a transformação nos hábitos culturais
indígenas, como também colabora para a descaracterização identitária do ser indígena.
Entretanto, alguns grupos indígenas que migram para o centro urbano de São Gabriel
da Cachoeira conseguem ainda manter viva sua cultura. Podemos evidenciar este fato no
histórico da fundação de uma comunidade indígena chamada Itacoatiara Mirim, localizada na
periferia urbana da cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde seus membros, que antes se
localizavam nas cabeceiras dos rios do Alto Rio Negro, mudaram-se geograficamente de lugar
e levaram consigo não só seus parentes mais também a sua comunidade em si e sua cultura
material e imaterial.
Desta forma, o presente trabalho pretende delinear um breve percurso histórico-
cultural da comunidade indígena Itacoatiara Mirim evidenciando sua dinâmica sócio-espacial
e demonstrando que o território é produto histórico e condições de processos sociais, com
formas e territorialidades, interações entre sociedade e natureza, lugar de identidade e
patrimônio cultural. Nesse sentido, o objetivo do estudo é demonstrar que apesar das
transformações contemporâneas na vida da população indígena da Amazônia, muitas delas
recorrem a sua identidade, como forma de manter sua cultura por meio de um sistema de
símbolos.
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Material e Métodos
Para o desenvolvimento do trabalho, optou-se por adotar a pesquisa documental e de
campo, uma vez que se trata de um estudo que requer o levantamento de dados secundários
sobre a História da colonização imposta aos grupos indígenas do Alto Rio Negro, causas das
ondas migratórias e reflexos da cultura ocidental sobre as sociedades indígenas da região,
visando assim compreender o processo histórico anterior e atual, levantamentos de dados
primários por meio da observação direta, registro fotográfico e entrevistas semi-estruturadas
com os moradores da comunidade Itacoatiara Mirim, para identificar e entender as causas de
sua migração para a sede do município, alteração nos aspectos socioculturais e como os
comunitários tem se organizado para fortalecer sua identidade cultural.
O método a ser adotado na referida pesquisa é a abordagem qualitativa, onde as
estratégias para obtenção de dados inserem-se nas características desse tipo de investigação,
nas quais, os dados são recolhidos e complementados pela informação obtida através do
contato direto, buscando sempre a análise da totalidade dos materiais registrados; havendo
necessidade de freqüência constante no local de estudo, pois os investigadores qualitativos
defendem que o comportamento humano é bastante influenciado, pelo contexto de inserção;
os dados são recolhidos minuciosamente em forma de palavras ou imagens, sem tanta
utilização de números, exigência que o universo em estudo seja examinado, considerando que
tudo é importante para a constituição de pistas, as quais permitem uma compreensão
esclarecedora do objeto em estudo.
Dessa maneira, entende-se que para os investigadores qualitativos é muito importante
questionar-se os sujeitos de investigação, visando perceber o que experenciam e a maneira
que interpretam tais experiências, tendo elementos para estruturarem o mundo social que
vivenciam.
Com base nos estudos da pesquisa documental e de campo demonstraremos que o
território é produto histórico e condições de processos sociais, e a busca e fortalecimento da
identidade indígena por parte dos comunitários de Itacoatiara Mirim são mecanismos
preponderantes para manutenção da cultura daquele povo.
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RESULTADOS
Histórico da colonização do Alto Rio Negro
No Alto Rio Negro, os primeiros contatos deram-se no início do século XVII, onde o
colonialismo português se impôs na região, através da construção de missões e fortes
objetivando abrandar as entradas dos exploradores europeus e controlar a mão de obra
indígena. Posteriormente verifica-se a entrada de missionários da Congregação Carmelita a
partir de 1764, seguida dos Capuchinhos italianos, uma subdivisão da congregação
franciscana (1880) e a Congregação salesiana em 1914 com intuito de conquistar as almas
indígenas objetivando o domínio de seus territórios.
Os primeiros contatos com os missionários no Alto Rio Negro influenciaram de
maneira significante a organização social indígena. A respeito deste processo, Silva (1996),
salienta que os missionários estruturaram um vasto programa de trabalho que incluía a
modificação dos hábitos culturais dos indígenas, iniciando desde o ensino da língua
portuguesa, preparo técnico nos ofícios mecânicos, agrupamentos das tribos em núcleos
urbanos e modificação do regime de trabalho dispersivo num trabalho disciplinado, de fundo
agrícola.
Na metade do século XVIII no período pombalino, a região do Alto Rio Negro era
vista como um território de permanente preocupação diplomática, por localizar-se na faixa de
fronteira entre os impérios coloniais de Portugal e Espanha. Esta situação agravou ainda mais
o estado das populações indígenas da região, que foram subjugadas ao controle espiritual das
ordens religiosas, acrescido a repressão e exploração de sua mão de obra através da atuação
dos militares portugueses.
A colonização portuguesa no Alto Rio Negro desdobra-se no início do século XIX e
intensifica-se no final do mesmo século com a exploração do trabalho indígena nos seringais,
como relata Calbazar e Ricardo (2006, p. 88):
Este processo levou, no século XIX, a um esvaziamento de muitas comunidades
indígenas dos rios Uaupés, Içana e Xié, cujas famílias eram levadas à força para o
baixo e médio rio Negro. Muitos índios foram envolvidos na exploração extrativa e
submetidos a trabalhos compulsórios. Isto deu início a uma migração forçada,
sobretudo dos Tukano, Desana e Tariana, que foram transportados pelos
comerciantes desde o alto Uaupés, para trabalharem nos seringais do rio Negro.
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Com o deslocamento constante da população indígena do Alto Rio Negro em direção
aos seringais, somando os atritos entre missionários e comerciantes e militares, houve em
1914 a atuação da Congregação Salesiana, com o objetivo de fundar centros missionários para
congregar as populações indígenas.
Conforme Albuquerque (2007), foram fundados pelos Salesianos cinco centros
missionários no Alto Rio Negro: São Gabriel (na sede do município), a partir de 1921;
Taracuá (1925) no rio Uaupés, junto à foz do Tiquié, onde já havia uma concentração
populacional e era lugar de passagem de quem vinha do rio Tiquié; Iauaretê (1930), na
confluência dos rios Uaupés e Papuri; Pari Cachoeira (1938), e Assunção (1950), no Rio
Içana.
Isto posto, os centros missionários constituíram- se em pontos estratégicos, posição
que favoreceu as coordenadas do trabalho e das relações de poder na região. Além do controle
territorial, as ordens religiosas instalaram nas missões, internatos que mantinham um processo
educativo sobre os indígenas descidos de suas aldeias. A educação escolar nos internatos foi
marcada por rígidos códigos disciplinares e doutrina cristã. Este modelo educativo influenciou
de maneira crescente na organização social indígena, pois o mundo vivido do ser indígena
passou a ser negado constantemente, seja na proibição das manifestações culturais destes
povos ou no uso dos idiomas indígenas.
Com o fim do ciclo da borracha e a consequente decadência econômica que ocorreu no
Alto Rio Negro, a presença constante e a atuação dos missionários salesianos tiveram notável
importância entre as populações indígenas, que eram estimuladas a internar seus filhos nos
centros missionários em troca de uma educação profissional.
Esses propósitos foram bem aceitos pela população indígena, haja vista que seu padrão
de organização social estava desarticulado por conta do contato com o colonizador. Este
contexto fica evidente no estudo de Albuquerque (2007, p. 40) sobre a Educação Indígena no
Alto Rio Negro:
[...] há um grande apreço pela educação escolar, a tal ponto que, para que os filhos
continuem seus estudos depois da quarta série do primeiro grau, os pais sacrificam a
própria vivência familiar, para enviá-los à cidade ou aos centros missionários onde
encontram o Ensino Fundamental completo e, por vezes, também, o Ensino Médio.
Não é raro o fato de os pais deixarem a própria terra, de onde tradicionalmente tiram
o sustento, para se mudarem para a cidade de São Gabriel ou para os centros
missionários, acompanhando os filhos [...]
A busca pela educação escolar nos centros missionários pressupõe não só a
modificação nos hábitos culturais indígenas, como também a sua migração para os centros
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urbanos e consequentemente o desaparecimento de comunidades e sítios indígenas, que se
encontra em processo contínuo.
A partir de 1970 o governo federal, sob controle militar, mudou completamente sua
orientação para a Amazônia, retirando toda a política que dava sustentação às oligarquias
regionais e estreitando sua relação com a Igreja local. Nesse espaço de tempo, muitas escolas
foram fechadas, e todo o padrão de organização social da região passou por mudanças
significativas, ficando a população indígena a mercê dos novos colonizadores.
Esse processo culminou na criação do Plano de Integração Nacional, que objetivava
integrar geopoliticamente a região amazônica ao resto do país.
A situação exposta conseguiu moldar um novo padrão de organização social, formado
na luta pela demarcação de Terras Indígenas, criação de Unidades de Conservação e
agravamento dos conflitos socioambientais.
Desta forma, percebe-se na década de 80, o crescimento dos conflitos socioambientais,
ocasionado principalmente com a exploração do ouro na Serra do Traíra, dando início a
“corrida do ouro” na região que durou mais de uma década. Esse episódio foi suficiente para
promover o deslocando de comunidades indígenas, garimpeiros de outras partes do país,
militares e empresas de mineração. Calbazar e Ricardo (2006) descreve a seguinte situação:
Em outubro de 1985 surgiu o primeiro conflito grave na Serra do Traíra, quando
índios mataram três garimpeiros, depois de várias tentativas de negociações
pacíficas. Com a entrada em cena de empresas de mineração, o formato dos
conflitos rapidamente se alterou. A Paranapanema e a GoldAmazon tinham seus
interesses protocolados junto ao Departamento de Produção Mineral (DNPM) em
Brasília e contavam com o apoio de autoridades federais e estaduais. No campo,
mantinham milícias privadas para controlar suas áreas de interesse e afastar os
garimpeiros [...] (p. 99)
Nesse período, as lideranças indígenas do Alto Rio Negro com o apoio dos
missionários salesianos se reúnem no final de abril de 1987 para reivindicar seus direitos
territoriais com a demarcação de suas terras. Nesta ocasião foi fundado a Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN.
Este período ficou conhecido como a época da afirmação da identidade étnica no Alto
Rio Negro e o resgate do modo de viver indígena. Pois, de acordo com Saquet (2007, p. 47)
[...] Quando uma comunidade se sente ameaçada por constantes mudanças, ela pode recorrer a
sua iconografia, a sua identidade, como forma de resistência e reforço da coesão interna,
através de um sistema símbolos.
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Saquet (2007) relata que a identidade é um componente fundamental na constituição
territorial, sendo concebida como unidade relacional, produto histórico e condição da
reprodução social. A identidade é, constantemente, reconstruída histórica e coletivamente, e
se territorializa, especialmente, através de ações políticas e culturais
Assim, o território não pode ser percebido apenas como uma posse, mas como uma
parcela de identidade, fonte de uma relação entre homem e natureza. Desta forma, torna-se
importante analisar todos o processo perpassado pelos moradores da comunidade indígena
Itacoatiara Mirim desde a migração do Rio Ayari até a busca de instrumentos que vem
contribuindo para o fortalecimento dos laços identitários do ser indígena dentro de um
perímetro urbano permeado de uma vasta invasão de aspectos culturais do ocidente, seja pela
presença das forças armadas advindas de outros Estados da Federação, seja pelas instituições
políticas e econômicas implantadas pelo poder público Estadual e Federal, seja pela constante
presença de forasteiros que alteram o modo de vida dos grupos indígenas dentro e fora da
sede do município.
Caracterização da Comunidade Itacoatiara Mirim
A comunidade Itacoatiara-Mirim está localizada a 10 km do centro da cidade do
município de São Gabriel da Cachoeira – Amazonas (Figura 1). Atualmente na comunidade
vivem 28 famílias indígenas, predominantemente da etnia Baniwa, mas que convivem
também com índios Desano, Kuripako, Tukano, Wanano, Kubeu, Tuyuca, Barassana e
Siriano. A denominação Itacoatiara-Mirim significa em nheengatú “pequena pedra pintada”.
Figura 1: Vista periurbana da Comunidade de Itacoatiara Mirim
Fonte: Pesquisa de campo (2012)
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A comunidade Itacoatiara Mirim foi fundada em 1992, sendo o primeiro líder, o
senhor Lauriano Joaquim já falecido. O terreno da comunidade foi doado pela prefeitura
Municipal.
A comunidade surgiu há mais 25 anos atrás, quando em 1983 a família do senhor
Luiz Laureano (Baniwa do clã Hohoodene), migrou da comunidade Camarão, no Rio Ayari,
rumo à cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Desta forma, o histórico de ocupação humana da comunidade deu-se pelo fluxo
migratório de outras comunidades como: Camarão, no rio Ayari, Lago Tucunaré, Jerusalém,
rio Içana, Mawaca rio Içana, Panapana, rio Içana, Maua Cachoeira, Miriti Igarapé e Nazaré no
rio Içana. Também pessoas de outros Estados, municípios e fronteiras, tais como: Maranhão,
Santa Isabel do Rio Negro e Colômbia.
Os principais motivos que levaram os moradores da Comunidade de Itacoatiara
Mirim a migrarem para a sede do município foi em busca de educação escolar para os filhos,
emprego, casamento, briga entre famílias e busca de melhorias de vida.
No Plano Diretor do Município de São Gabriel da Cachoeira a comunidade de
Itacoatiara Mirim foi enquadrada em 1997, como Zona Comunitária Indígena. Esse
reconhecimento propicia aos moradores da comunidade a permanência das formas de uso e
ocupação do solo segundo os seus costumes, a manifestação das suas tradições e o direito de
planejar o seu espaço de ocupação, junto ao poder público municipal.
Por esta via, podemos analisar que a caracterização da comunidade concebida como
Zona Comunitária Indígena contribui grandemente para resgatar e fortalecer aspectos
culturais até então vivenciados pelos mesmos na sua comunidade de origem em contraposição
a influência do modo de vida urbano.
O nível de escolaridade da população abrange desde o ensino fundamental ao ensino
médio. Sendo identificado pela pesquisa a existência de uma escola municipal de ensino
fundamental incompleto de 1ª a 4ª série na comunidade.
A religião praticada pela população distribui-se entre catolicismo e protestantismo. A
organização sócio-político é composta por líderes comunitários, onde o atual líder da
comunidade é o senhor Feliciano da Silva e o vice-líder é o senhor Lucas Cardoso Garrido.
Também há pessoas que organizam as reuniões da comunidade, agricultores, pois a atividade
econômica que mantêm a subsistência dos comunitários é a roça de mandioca e frutas.
Foi observado, que há muitos estudantes jovens na comunidade e grande parte
destes não falam as línguas indígenas de seus ancentrais. Assim, percebe-se que só os mais
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velhos é que utilizam a língua Baniwa Wanano e Tukano. E mediante esta evidência existe
uma preocupação da comunidade com os jovens e crianças, no sentido dos mesmos perderem
o vínculo com a língua indígena devido à intensa utilização da língua portuguesa mantida
principalmente através da educação escolar, meios de comunicação de massa como a televisão
e rádio. Também a incidência do uso de bebidas alcóolicas, influência das festas na cidade, o
desemprego e a falta de projetos sociais para os jovens trouxeram problemas para a
comunidade como o alcoolismo, consumo de drogas, prostituição entre outros problemas
sociais.
Para conter essa realidade que atinge a comunidade de Itaquatiara-Mirim, os
comunitários sob o comando do senhor Luiz Laureano Baniwa, filho do primeiro líder da
comunidade, tem se preocupado em criar mecanismos que visem criar atividades
socioculturais objetivando a valorização, fortalecimento e reafirmação dos conhecimentos
tradicionais da etnia Baniwa, que eram vivenciados pelos comunitários mais antigos quando
viviam na comunidade de Camarão, localizado no rio Ayari.
Desta forma, com ajuda da Federação das Organizações Indígenas do rio Negro a
comunidade apresentou em 2007 a Petrobras e ao Ministério da Cultura, o projeto Podaáli
com intuito de criar oportunidades para a valorização, registro e transmissão de
conhecimentos de músicas e danças tradicionais Baniwa. Assim, o projeto conseguiu recursos
para implementar as atividades previstas tais como a construção de um espaço de transmissão
de conhecimento de músicas e danças tradicionais e de intercâmbio cultural denominado
posteriormente como “Casa do Conhecimento”.
Figura 2: A maloca denominada “Casa do Conhecimento”, fruto do projeto Podaáli
Fonte: Pesquisa de campo(2012)
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Além da FOIRN, outras instituições contribuíram para a construção da “Casa do
Conhecimento” como: Agência Católica para o Desenvolvimento, ISA, UFAM, Associação
Cultural Indígena Casa de Conhecimento, Escola Agrotécnica Federal de São Gabriel da
Cachoeira(atual IFAM) e da Prefeitura Municipal.
É interessante salientar o esforço da comunidade para construir a maloca, que no
período 2006/2007/2008 organizou ajuri com ajuda de crianças, jovens e anciãos. Nesse
contexto foi realizada uma oficina em agosto de 2008 com a participação dos comunitários e
de alguns assessores do Instituto Sociambiental para pensar como seria concebida a maloca.
Desta oficina os moradores salientaram a importância da maloca como um espaço
importante para o povo Baniwa, como espaço de transmissão e aprendizagem da cultura
Baniwa. Destacaram a necessidade do benzimento sobre o terreno e nos materiais utilizados
na sua confeccção (palha, esteio, cipó, casca de pau, paxiuba, etc). Destacaram a notoriedade
da presença constante dentro da maloca dos seus utensílios, ferramentas, instrumentos
provenientes de sua cultura material como Japurutu, cariçu, colares para distribuição na hora
do dabucuri ou cariçú.
Figura 3: Assessores do ISA e comunitários da Comunidade Itacoatiara Mirim
Fonte: ISA/Caroline Pinheiro
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Por conseguinte, a “Casa do Conhecimento” foi inaugurado entre os dia 03 e 05 de
setembro de 2008, onde os comunitários e convidados da comunidade de São José do rio
Ayari puderam reviver as tradições de seus antepassados sobre comando do madzero (mestre
de cerimônias na língua Baniwa) Luiz Laureano comandou a festa que se revezou entre
danças do cariçú baniwa e cariçú dos tukano e tuyuka. Durante o evento, jovens e crianças da
comunidade participaram das referidas danças, e vivenciaram a dança da saúva, de origem
baniwa, visto que estes nunca haviam participado dessa manifestação cultural. Também foi
apresentado a dança do macará pelo grupo de dança tuyuca “wese” convidado para a
inauguração da maloca. Também os comunitários reviveram o som oriundo das flautas
japurutu tocados pelos mais velhos. E durante os dias de festa, comunitários e convidados
consumiram o caxiri (bebida tradicional feita de caldo de mandioca fermentado) sendo
entremeada pelo consumo coletivo de mingau e pela realização de práticas esportivas
indígenas e não-indígenas.
Figura 4: Inauguração da “Casa do Conhecimento” em setembro de 2008
Fonte: ISA/Gabriel Cortês.
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É interessante observar o quanto a identidade é atrelada as práticas socioculturais, e os
moradores de Itacoatiara Mirim perceberam a necessidade da construção da casa comunal
“Casa do Conhecimento” como um mecanismo para resgatar e tentar vivenciar a cultura
ancestral de seu povo, compartilhando sentimentos e estilos de vida próprios, enfim lutar
contra a perda da identidade cultural apesar de estarem em uma área periurbana.
Desse modo, a vida na comunidade em oposição à vida urbana é relatada por Lasmar
(2005) como uma referência simbólica importante para as pessoas que nela vivem e para as
que a deixam, pois na comunidade vive-se como irmão.
[...] Os valores da comunidade são os valores do parentesco. Nesse sentido, o
adulto ideal para a vida em comunidade é aquele que respeita e trata com
consideração os parentes, compartilha alimentos e bens, é capaz de frear seus
impulsos individuais quando estes podem ameaçar o bem-estar coletivo e a
integridade da comunidade. [...] A comunidade precisa, assim, ser permanentemente
construída por meio do investimento coletivo na boa convivência e na partilha.
(LASMAR, p. 101).
Isto posto, o território para as sociedades indígenas é compreendido não só por um
princípio material de apropriação, mais por um princípio cultural de identificação, ou melhor,
de pertencimento. Assim, o território não pode ser percebido apenas como uma posse, mas
como uma parcela de identidade, fonte de uma relação entre homem e natureza.
Atualmente, a maloca vem recebendo grandes pajés e lideranças indígenas do Alto Rio
Negro, como também visita de alunos das escolas locais de ensino médio e fundamental,
como também instituições de ensino superior, antropólogos e artistas conhecidos
nacionalmente como Gilberto Gil. A “Casa do Conhecimento” tornou-se um exemplo para
outras etnias de como um espaço cultural pode fortalecer a cultura e unir as pessoas. Pois, os
comunitários, convidados e visitantes que usufruem da “Casa do Conhecimento” podem ouvir
dos mais velhos várias histórias de seus ancestrais, comer juntos a quinhãpira e o mingau pela
manhã, dançar o carriçu ou dabukuri, confeccionar seu próprios instrumentos tradicionais e
artesanatos utilizados no dia a dia, ensinando aos jovens como os antigos faziam, conhecer os
ritos de iniciação de moças e rapazes, tipos de benzimentos e das plantas medicinais e
alimentícias que são utilizadas na comunidade.
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Figura 5: Maloca “ Casa do Conhecimento - Fonte: ISA/Andreza Andrade.
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Outra extensão do projeto Podaáli visou registrar em forma de um documentário
uma viagem ao rio Ayari, para resgatar as flautas sagradas dos Baniwas denominadas Kowai
(jurupari), enterradas no igarapé de Camarão, rio Ayari, depois do último ritual que a
comunidade realizou antes de migrar para a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Pois havia
o desejo de alguns membros da comunidade, principalmente os mais velhos, de regressar ao
Ayari e reencontrar suas flautas sagradas.
As flautas são proibidas, sobretudo para as mulheres Baniwas e de outras etnias do
rio Negro. Pois simbolizam a vida e a morte e delineiam as regras da sociabilidade humana na
cultura Baníwa e há toda uma mitologia envolta nesse sentido.
Em outubro de 2008, a comunidade realizou uma viagem de reencontro com as
flautas sagradas e toda a expedição foi registrada por jovens indígenas que participaram das
oficinas de preparação do documentário.
A equipe que registrou o resgate das flautas Kuwai obedeceu a um conjunto de regras
pactuadas durante as oficinas e reuniões que antecederam a viagem. Todos os participantes do
documentário foram treinados antes do resgate das flautas com o conhecimento sobre esse
ritual e utilização dos instrumentos para que não houvesse nenhum impasse tanto para os
comunitários de Itacoatiara Mirim, quanto para outras comunidades que ainda praticam esse
tipo de ritual. Durante a filmagem, foi registrado apenas os sons das flautas.
Para a realização do documentário, a comunidade contou com o apoio do Instituto
Socioambiental, projeto Vídeo nas aldeias, cineasta Petrônio Lorena e do fotógrafo e
pesquisador Hans Denis Schnider que realizaram oficinas para formação dos cineastas
indígenas.
E no dia 04 de novembro de 2011, os moradores de Itacoatiara Mirim e autoridades
do município de São Gabriel da Cachoeira reencontraram-se com as flautas sagradas,
assistindo o documentário Podaáli: um documentário da música Baniwa na Maloca Casa do
Conhecimento. O documentário foi dirigido por dois indígenas de Itacoatita-Mirim, Moisés
Baniwa e Paulinho Baniwa.
Com este recurso audiovisual, a comunidade percebeu o quanto torna-se
imprescindível a valorização desses elementos como forma de oportunizar e enfrentar os
atuais desafios para a sua autodeterminação cultural em meio a um cenário urbano que a
comunidade enfrenta cotidianamente.
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Foto 6: Moradores da comunidade Itacoatiara Miriam assistindo o documentário: Podáali
Fonte:ISA/Adeilson Lopes da Silva
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CONCLUSÃO
É nítido que a iniciativa em documentar, registrar e vivenciar a cultura ancestral dos
moradores da comunidade Itacoatiara Miriam vem demonstrar a necessidade de resgate
identitário de pertecimento cultural que estes povos tem sentido ao longo de sua vivência na
área urbana do município, iniciativa como essa são importantes no sentido que conseguem
resgatar o elo temporariamente perdido da vida em comunidade em contraposição a influência
de vida ocidental que beira a inexistência. A preocupação em vivenciar a vida comunal na
maloca, em regastar as flautas sagradas vem de encontro com o sentido que os baniwas tem
com relação ao mundo em que vivem, demarca seu lugar no mundo e sua relação com o
território. A presença desta comunidade baniwa no mundo, vem abrir e reforçar canais de
comunicação e transmissão de conhecimentos no que diz respeito à relação com os ancestrais
míticos e com as passagens dos ciclos de vida e no que diz respeito ao manejo das relações
com os parentes indígenas e com modo de vida ocidental (mundo do brancos).
Apesar das alterações na cultura dos moradores da comunidade indígena Itacoatiara a
comunidade Itacoatiara Mirim tem sido um referencial no que diz respeito a auto
sustentabilidade manifestada na fabricação de artesanatos, preservação de hábitos oriundos
das comunidades de origem e sobretudo do esforço para integrar todos seus moradores nas
atividades socioculturais realizadas semanalmente. Ao mesmo tempo em que, existe uma
gradual mudança nas moradias tradicionais, ora substituídas por construções no estilo
ocidental(Alvenaria), apesar desse processo, preserva-se o grande malocão e as casas mais
antigas no estilo indígena do Alto Rio Negro.
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REFERÊNCIAS
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espaço possível de subjetivação na resistência. Campinas. São Paulo. Tese (Doutorado).
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