identidade fragmentada: um estudo sobre a história do negro na educação brasileira 1993-2005

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    um estudo sobre a histria do negro naeducao brasileira

    1993-2005

    Identidade fragmentada

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    Braslia-DF

    2007

    Rensia Cristina Garcia

    um estudo sobre a histria do negro naeducao brasileira

    1993-2005

    Identidade fragmentada

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    Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicaes (CGLEP)

    Lia Scholze | [email protected]

    Coordenadora de Produo Editorial

    Rosa dos Anjos Oliveira | [email protected]

    Coordenadora de Programao Visual

    Mrcia Terezinha dos Reis | [email protected]

    Editor Executivo

    Jair Santana Moraes | [email protected]

    Reviso

    Zippy Comunicao Ltda.

    Projeto grfico, capa, diagramao e arte-final

    Niepson Ramos Raul | [email protected]

    Editoria

    Inep/MEC Instituto Nacional de Estudose Pesquisas Educacionais Ansio TeixeiraEsplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo I,

    4 Andar, Sala 418CEP 70047-900 Braslia-DF BrasilFones: (61)2104-8438, (61)2104-8042Fax: (61)[email protected]

    Distribuio

    Inep Instituto Nacional de Estudose Pesquisas Educacionais Ansio TeixeiraEsplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo II,

    4 Andar, Sala 414CEP 70047-900 Braslia-DF BrasilFone: (61)[email protected]://www.publicacoes.inep.gov.br

    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep) permitida a reproduo total ou parcial desta publicao, desde que citada a fonte.

    Dados Internacionais de Catalogao na Fonte (CIP)Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep)

    Garcia, Rensia Cristina.Identidade fragmentada: um estudo sobre a histria do negro na educao

    brasileira: 1993-2005 / Rensia Cristina Garcia. Braslia : Instituto Nacional deEstudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira, 2007.

    111p.

    ISBN 978-85-86260-83-4

    1. Negros. 2. Histria da Educao. 3. Brasil. I. Ttulo.

    CDU 376.74(=414/=45) (81)

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    O ponto central da questo , sem dvida, o problema escolar.Se eu fizer questo de mand-los escola moderna, exclamao chefe dos diallob, eles iro em massa. Mas, aprendendo,tambm esquecero. Ser que o que vo aprender tem o mesmovalor daquilo que vo esquecer?

    E vai mais longe: A escola, para onde fao questo de mandarmeus filhos, matar neles o que hoje conservamos com zelo e

    por motivos bvios. E depois, a que leva a escola europia?Acivilizao uma arquitetura de respostas... A felicidade no funo do conjunto de respostas, mas da distribuio destasrespostas. preciso procurar um equilbrio....

    (Kane, 1984)

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    Lista de grficos ..................................................................................... 9Lista de tabelas ....................................................................................... 9Lista de quadros.................................................................................... 11

    Introduo ......................................................................................................... 13

    1 Contextualizao histrica ........................................................................... 23

    1.1 Fim do Brasil-Imprio e instaurao daPrimeira Repblica 1850-1894 ................................................... 23

    1.2 Brasil-Imprio: direitos civis e privilgios a diferena entre os nascidos livres e os libertos ........................... 25

    1.3 Brasil-Imprio: os escravizados e os libertosno mundo do trabalho .................................................................... 26

    1.4 Identidade fragmentada: Quem so os negros?Quem so os pardos?...................................................................... 29

    2 Marcos institucionais .................................................................................... 33

    2.1 As atuaes governamentais e da imprensana construo da invisibilidade social do negro ........................ 33

    2.2 O negro na histria da educao no Brasil oua histria da educao do branco brasileiro? ................................. 34

    2.3 A atuao do Movimento Negro no Brasil..................................... 352.4 Programas de aes afirmativas ..................................................... 37

    3 Diagnstico ..................................................................................................... 39

    3.1 Analisando historicamente os nmeros:o que ser negro no Brasil, hoje? .................................................. 39

    3.2 Perfil demogrfico e racial da populao brasileira ...................... 40

    3.3 Desigualdade de oportunidades na educaoe desigualdade racial no Brasil ...................................................... 45

    3.4 Analfabetismo ................................................................................. 483.5 Educao infantil ............................................................................ 51

    3.5.1 Creche .................................................................................... 513.5.2 Pr-Escola.............................................................................. 52

    3.6 Ensino fundamental ........................................................................ 53

    Sumrio

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    3.7 Ensino mdio .................................................................................. 633.7.1 A participao de mulheres no ensino mdio,

    com base no Censo Escolar 2005 .......................................... 663.7.2 A eqidade e o rendimento dos participantes

    do Enem nas provas de redao e objetiva ........................... 67

    4 Ensino superior ............................................................................................. 71

    4.1 O perfil dos participantes do Enade 2004 ...................................... 79

    5 Escolaridade e insero dos negros no mercado de trabalho .................. 89

    5.1 A relao populao ocupada e anos de estudo,segundo critrios de raa/cor ......................................................... 92

    6 Negro e pobre: dupla discriminao ........................................................... 95

    6.1 Escolaridade, raa e gnero interfaces daexcluso contra negros ................................................................... 96

    Consideraes finais ......................................................................................... 99

    Referncias bibliogrficas ............................................................................. 103

    Sobre a autora ................................................................................................ 111

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    9Identidade Fragmentada

    Lista de tabelas

    Tabela 1 Populao residente total, por raa/cor, por grandes regies1996/2003/2004 ................................................................................ 40

    Tabela 2 Distribuio da populao residente, segundo raa ou cor,por grandes gegies 1999/2003 ..................................................... 42

    Tabela 3 Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou maisde idade, por cor, segundo as grandes regies 2003 ..................... 48

    Tabela 4 Taxa de analfabetismo funcional das pessoas de 15 anos ou maisde idade, por cor, segundo as grandes regies 1993/2003 ........... 49

    Tabela 5 Percentual de estudantes por cor/raa, segundo ocurso que freqentam Brasil 2002.............................................. 51

    Tabela 6 Nmero de matrculas iniciais na educao infantil Creche,por raa, segundo as grandes regies 2005 .................................. 51

    Tabela 7 Nmero de matrculas iniciais na educao infantil Pr-escola,por raa/cor e sexo, segundo as grandes regies 2005 ................ 53

    Lista de grficos

    Grfico 1 Distribuio da populao residente, segundo raaou cor, por grandes regies 1993/2003 ........................................ 43

    Grfico 2 Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou maisde idade, por cor, segundo as grandes regies 2003.................... 49

    Grfico 3 Taxa de analfabetismo funcional das pessoasde 15 anos ou mais de idade, por cor, segundoas grandes regies 1993/2003 ...................................................... 50

    Grfico 4 Voc conhece algum racista? ........................................................ 59

    Grfico 5 Participantes do Enem segundo raa/cor 2001 ........................... 64

    Grfico 6 Participantes do Enem segundo raa/cor 2003 ........................... 65

    Grfico 7 Participao dos negros nas maiores 500empresas do Brasil 2003 .............................................................. 90

    Grfico 8 Distribuio dos negros nos diferentes nveis hierrquicosdas 500 maiores empresas por raa/cor 2003 .............................. 91

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    10 Rensia Cristina Garcia

    Tabela 8 Censo Escolar 2005 Nmero de matrculas iniciais no ensinofundamental regular, por raa/cor e sexo,segundo as grandes regies .............................................................. 54

    Tabela 9 Nmero e variao da matrcula no ensino fundamental Brasil e regies 1995/2001/2005 .................................................. 55

    Tabela 10 Taxa de escolarizao, independente do nvel de ensino, daspessoas de 5 a 24 anos de idade, por cor e gruposde idade segundo as grandes regies 2003 ................................. 56

    Tabela 11 Taxa de permanncia na educao bsica, na faixa etria

    de 7 a 14 anos, por raa/cor Brasil 2000/2003 ........................ 57

    Tabela 12 Proficincia segundo raa dos alunos da 8 srieem Matemtica ............................................................................... 61

    Tabela 13 Taxa de permanncia no ensino mdio, por raa/cor Brasil 2000/2003 ......................................................................... 63

    Tabela 14 Nmero de matrculas iniciais no ensino mdio regular,por raa/cor e sexo, segundo as grandes regies 2005 ............... 66

    Tabela 15 Distribuio da nota mdia na redao dos participantesdo Enem por sexo e raa/cor 1998-2004 .................................... 68

    Tabela 16 Distribuio da nota mdia na parte objetiva dos participantesdo Enem por sexo e raa/cor 1998-2004 .................................... 69

    Tabela 17 Nmero de estudantes participantes do ENC (Provo) comdesempenho acima do percentil 75 por grandes regies,segundo o sexo e a cor 1999/2003 .............................................. 73

    Tabela 18 Nmero de concluintes em cursos de graduao presenciais,participantes do ENC (Provo) 2003, por raa/cor Brasil .......... 77

    Tabela 19 Nmero e desempenho de ingressantes e concluintes em cursosde graduao presencial, participantes do Enade/2004,por raa/cor Brasil e Regies ...................................................... 80

    Tabela 20 Percentual de respostas de ingressantes e concluintes,participantes do Enade/2004, nos cursos de graduaopresenciais, sobre temas socialmente relevantes ........................... 83

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    11Identidade Fragmentada

    Tabela 21 Populao ocupada com predominncia de cor e suarespectiva distribuio percentual em relao posiona ocupao, segundo as grandes regies 2003 ......................... 92

    Tabela 22 Populao ocupada, por cor e grupos de anos de estudo,segundo as grandes regies 2003................................................ 93

    Tabela 23 Rendimento mdio mensal em salrios mnimos da populaoocupada, por cor e grupos de anos de estudo,segundo as grandes regies 2003................................................ 93

    Tabela 24 Distribuio percentual do rendimento dos 10% mais pobres

    e do 1% mais rico em relao ao total de pessoas,por cor, segundo as grandes regies 2003 .................................. 95

    Tabela 25 Rendimento mdio mensal de todos os trabalhos da populaoocupada, em reais, por cor e sexo, segundoas grandes regies 2003 .............................................................. 96

    Lista de quadros

    Quadro 1 Percentual de brancos em cursos superiores .................................. 78

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    14 Rensia Cristina Garcia

    S a partir de 1995, foram acrescentados os itens preto e pardo nosquestionrios scio-econmicos implementados pelo Inep por suas diferentesdiretorias,2 responsveis por fornecerem as balizas para uma avaliao nacionalda educao bsica ao ensino superior.

    Em 1995, o Sistema de Avaliao da Educao Bsica (Saeb) passou aanalisar o rendimento dos alunos da 4 srie do ensino fundamental (EF), da 8srie do EF e 3 srie do EF, nas disciplinas de Matemtica e Portugus, referindo-se raa. No Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem), a varivel raa foi inseridaem 1998, mas s adquiriu maior destaque nos materiais publicados, em 2001.Assim como no ensino superior. No ENC (Provo), a varivel j existia em2001, 2002 e 2003, mas s no Enade/ 2004, ela foi mais detalhada, quando se

    descreve o perfil do aluno. Tornando-se assim, um interessante material deanlise.

    Muito embora existam importantes informaes nos microdados coletadose arquivados no Inep, estes no foram trabalhados por raa considerando variveisque permitiriam reunir informaes esclarecedoras,3 que subsidiariam uma anlisecom mais propriedade das implicaes internas e externas sobre o percurso escolardas populaes negras.Foram os dados disponveis, juntamente com o CensoEscolar 2005, que confrontados com os do Pnad/IBGE 1993-2000, encaminharamo recorte cronolgico estabelecido, 1993-2005.

    Os dados foram tratados dentro de uma perspectiva histrica e dentro deuma prospectiva analtico-histrico crtica.4

    2 Diretorias de Avaliao da Educao Bsica (Daeb), Diretoria para Certificao de Competncias(DACC) e Diretoria de Estatstica e Avaliao da Educao Superior (Daes).3 Em relao ao Saeb, por exemplo: rendimento escolar/freqncia (verificar se o estudante participantefalta s aulas ou teve que abandon-las por um tempo), rendimento escolar/acesso a meios decomunicao (se os participantes tinham acesso a jornal e televiso), assim como algumas caractersticasfamiliares (se o estudante mora com o pai e a me, ou em outra situao).4 A opo em tratar os dados numa perspectiva histrica e prospectiva analtica ancora-se em umaexplicao metodolgica e conceitual.

    Problematizar uma poca por meio da representao de uma linha do tempo considerada tradicionalno significa assumir essa linha como fundamental, ou melhor, fundante. O simples fato de se utilizaras datas-smbolos no significa para ns historiadores, estamos atuando dentro de uma perspectivapositivista e de causalidade.

    J a prospectiva histrico-crtica baseada na concepo marxista considera que a anlise processualdas transformaes histricas se iniciam na infra-estrutura, ou seja, na anlise das relaes de trabalho(no caso, escravizado-senhor), e se refletem no campo da supra-estrutura, ou seja, como as aeshumanas dialogam com as representaes de mundo vinculadas pelas instituies Estado, Igreja,Famlia, Educao.

    A discusso metodolgica do estudo apresentado, a nosso ver, passa pela identificao da representaode tempo histrico que permeia toda a discusso e esta de longa durao. O tempo histrico apresentado neste estudo como dialtica da durao, com suas continuidades, rupturas,permanncias... Seria uma desacelerao cautelosa (termo usado pela Escola dos Annales). H umaclara tentativa de superao do evento (data-smbolo) a partir da anlise dos aspectos econmicos,culturais, sociais que envolvem os homens, no seu Fazer, no seu processo histrico.

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    15Identidade Fragmentada

    preciso ter claro que um olhar mais atento para os negros no significabeneficiar um segmento em detrimento de outro. Refere-se a tratar o desigual jque assim que o negro vem se constituindo historicamente , como desigual, porum perodo de tempo, para que, no futuro, se possa de fato (e de direito) galgar aigualdade.

    Inserir os negros na anlise dos dados, sem intrpretes, torna-sefundamental para se compreender com mais profundidade a especificidade dasituao de racismo5 a que esto submetidos dia aps dia.

    Infere-se, dos dados analisados, que h tratamento diferenciado paranegros e brancos no espao escolar e no mercado de trabalho, e que esse no umfenmeno recente. A constatao do preconceito e da discriminao6 baseada no

    pertencimento racial, enquanto processo estruturante e constituinte na formaohistrica e social brasileira, consequentemente, no imaginrio social brasileiro,demandou que houvesse um dilogo entre presente e passado.

    Ao interpretar os dados, senti a necessidade de retroceder ao sculo XIX,na poca do Brasil-Imprio. O recorte foi histrico e cultural, com breves

    No h aqui o enfoque na causalidade pura e simplesmente, mas na relao entre os fatos ao longodos anos. Busca-se compreender a histria como rea de conflitos sociais que levaram os homens amodificar (ou no) sua forma de produzir, suas concepes de mundo. Ou seja, tentar pensar comocada perodo caracterizado segundo um modo de produo especfico, que engendra relaesespecficas, mas que dialogam entre si ao longo do tempo. neste universo que insiro a importncia

    de perceber a representao dos negros construda ao longo dos anos e que se instala no imaginriosocial coletivo.

    Segundo Pierre Villar, a crtica de Marx historiografia tradicional no se deve ao seu carter factual,mas fragmentao resultante de uma viso estanque das mltiplas dimenses do real [...] o que h deconcreto na vivncia humana a produo material da vida (anlise do mundo do trabalho) [...].Assim, a constatao de que a experincia coletiva dos homens tem infinitas possibilidades demanifestao no conduz o conhecimento necessariamente, justaposio de fatores estanques, jque possvel estabelecer a articulao dinmica entre eles (Villar apudDAlessio, 1998).

    Ressalto que em nenhum momento tive ou tenho a inteno de transitar no universo da histria linear/causal. No mximo, a associao Histria das Mentalidades, ou Mentalidade Colet iva, como diriaCarlo Ginzburg, dada a tentativa em perceber os elementos que permanecem, obscuros, inconsciente,que perduram por longo tempo no imaginrio social coletivo. Subjaz a esta anlise a conscincia daexistncia de uma dada cultura hegemnica que, articulada ao poder econmico, instaura lugares dememria, monumentos e documentos, e, nestes, pouco espao h para o registro da contribuioafricana para a formao da sociedade brasileira.

    5 Racismo uma ideologia, uma estrutura e um processo pelo qual grupos especficos, com base emcaractersticas biolgicas e culturais verdadeiras ou atribudas, so percebidos como uma raa ougrupo tnico inerentemente diferente ou inferior (Santos, 1999). em funo desse sentido histricoque se mantm a utilizao do termo raa neste estudo. Afinal, o racismo s existe em funo dasrelaes histricas que permitiram a sua existncia e esta passa necessariamente, pelo termo raa..6 Diferena: Preconceito atitude negativa, dirigida a pessoas ou grupo de pessoas e implica umapredisposio negativa contra algum. E discriminao um conceito mais amplo e dinmico quepreconceito: a discriminao racial significa qualquer distino, excluso, restrio ou prefernciasbaseadas em raa, cor, descendncia ou origem nacional ou tnica, que tenha como objeto ou efeitoanular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou exerccio, em condies de igualdade (Santos, 1999).

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    17Identidade Fragmentada

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    Mito da Democracia Racial o mito que difunde a crena de que, se os negros no atingem osmesmos patamares que os no-negros, por fal ta de competncia ou de interesse, desconsiderando asdesigualdades seculares que a estrutura social hierrquica cria com prejuzos para os negros (Brasil.MEC, 2004, p. 10).9Ideologia do Branqueamento: ainda persiste em nosso Pas um imaginrio tnico-racial que privilegiaa brancura e valoriza principalmente as razes europias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizandoas outras, que so a indgena, a africana, a asitica (Brasil. MEC, 2004, p. 12).10 Vale dizer que educao aqui entendida para alm da educao escolar, e em seu sentido maisamplo, abarcando as relaes familiares, o trabalho, o ensino formal (a escolarizao propriamentedita) e o ensino informal.

    A questo chave : Afinal, por que a cara da pobreza no Brasil negra?Como veremos, o combate pobreza e a universalizao da educao

    bsica no foram suficientes para diminuir a distncia que separa brancos e negros,na sociedade brasileira. O recorte na anlise cultural, paralelo ao econmico, visajustamente problematizar essas questes e tentar pensar algumas conexes possveisentre presente e passado, ou vice-versa.

    O objetivo percorrer uma das trilhas que definiram o lugar do negrono Brasil. Atentando para no referendar uma imagem deturpada, e ao mesmotempo no construir uma viso positiva da escravido, sem, contudo, abstrair dosescravizados a condio tambm de sujeito no processo, no apenas vtima.

    De antemo, defendo que para compreender a desigualdade racial atual

    sob diferentes nuances preciso adentrar no imaginrio social brasileiro. precisoter claro que o racismo, o mito da democracia racial8 e a ideologia dobranqueamento9 no atingem apenas os negros, mas os brancos e outros grupostnico-raciais. Isto grave. Ressalta a urgncia do debate sobre a desigualdade detratamento entre brancos e negros na formao histrica e social brasileira, edemanda prticas efetivas de combate ao racismo.

    Conforme as Diretrizes curriculares nacionais para a educao dasrelaes tnico-raciais e para o ensino de histria e cultura afro-brasileira eafricana, as formas, os nveis e os resultados desses processos incidem de maneiradiferente sobre os diversos sujeitos e interpem diferentes dificuldades nas suastrajetrias de vida escolar e social (Brasil. MEC, 2004, p. 15). Compreender a

    trajetria do negro na educao brasileira significa verificar como esses processosincidem sobre as populaes negras.Assim, remete necessidade de um breve estudo sobre a Histria do

    Brasil mais especificamente, em fins do Imprio e incio da Primeira Repblica(1891), na passagem do trabalho escravo para o trabalho livre.

    preciso ter claro que a realidade atual dialoga com a histria passada. Aeducao, no seu sentido mais amplo,10 sem dvida, um dos maiores mecanismosde conscientizao e esclarecimento de que se tem conhecimento. E pode sertambm espao de ocultamento e deturpao da realidade.

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    18 Rensia Cristina Garcia

    Os educadores, por diferentes motivos,11 nem sempre tm interferido nosconflitos cotidianos que se estabelecem em funo de raa e gnero. Seja poromisso, por desconhecimento da forma como agir ou por estarem simplesmenterepassando as informaes contidas nos livros didticos.12

    Para se compreender melhor as razes da discriminao brasileira,que foi construda ao longo desses ltimos 400 anos, e vem sendo paulatinamenteomitida, justamente pela instituio que deveria ser a mais esclarecedora nestesentido a escola, como formadora que dos portadores sociais da nao(Botelho, 2002), preciso quebrar com o presentismo13 e retroceder no tempo.

    O tratamento dado pela historiografia vivncia dos negros no facilitauma anlise histrica, minimamente ordenada, acerca da trajetria das populaes

    negras na educao brasileira. As prticas educativas exercidas pelos negros notiveram o mesmo tratamento daquelas desempenhadas pela elite branca brasileira,e quando o tiveram, mostraram-se impregnadas por uma viso eurocntrica quecoloca os negros ora como coisa, no sentido de mercadoria, ora como inferiores(calcada no racismo cientfico), ora como iguais (respaldada pelos ideais daRevoluo Francesa).

    Nascimento (2005) alerta-nos que os trabalhos sobre os negros, no perodops-abolio, ao ressaltar que eles foram largados a prpria sorte tendo quemorar em favelas, viver margem da sociedade, trabalhar nos pioresempregos, e que o desemprego os levou a roubar, a se tornarem bbados,miserveis, a se prostituir etc. descaracteriza a histria dessas populaes.

    certo que outras histrias tambm ocorreram, e no so to deprimentes.Sobre estas, pouco se conhece. Assim, com tantas informaes negativas difcilpensar o negro de uma forma diferente.

    As lacunas polticas se estendem ao processo de escolarizao dosegmento negro em qualquer fase da Histria do Brasil.

    A valorizao das estruturas econmicas, polticas e ideolgicas pelahistoriografia brasileira resultaram numa viso fragmentada sobre a Histria doBrasil que pretendia descrever (Gomes, F. 2005). S a partir da dcada de 60, com

    11 Falta de embasamento terico, de sensibilidade para a questo, por desprezo ou simplesmente, porno tomar conhecimento do fato so alguns dos motivos que se pode citar. Contudo, entende-se que

    todos estes pontos, de uma forma ou de outra, tm a ver com a forma como a imagem do negro foiconstruda ao longo dos anos.12 Os livros-texto que descrevem os negros como preguiosos ou no-civilizados e violentos socomuns nas escolas brasileiras apesar de, recentemente, os ministrios da Justia e da Educao teremtentado substituir e banir todos os que tinham contedo racista, alcanando um sucesso parcial.Mesmo assim Telles (2003) alerta que esses livros-texto ainda se encontram nas bibliotecas. Outrafonte de grande importncia sobre essa temtica Munanga (2005).13 Ao tratar da sociedade da informao no sculo XX, Sevscenko (2001) identifica na forma aceleradacomo as informaes so produzidas e divulgadas, uma tendncia extrema valorizao do presente do aqui agora, que ele chama de presentismo.

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    19Identidade Fragmentada

    o advento da Histria Social no Brasil, essas populaes foram revisitadas pornovas abordagens, emergindo sob formas de resistncia e conformao. Contudo,os mais beneficiados com esses olhares foram as classes operrias e os partidospolticos, pouco alterando em relao participao poltica das populaes negrasna constituio da sociedade brasileira.

    Como ressalta Nascimento (2005), em estudos de socilogos comoFlorestan Fernandes, Otvio Ianini e Fernando Henrique Cardoso, o negro aparece:

    como seres apticos e submissos, indivduos embrutecidos que receberam acondio alienada da liberdade que lhe ofereciam. Ou seja, as diferenas scio-econmicas apresentadas entre brancos e negros estavam diretamente ligadas

    escravido, que degradou os segundos, desenvolveu o preconceito e adiscriminao raciais e provocou o pauperismo dos primeiros.

    Muito embora tenham produzido ricas discusses acerca da existncia deuma sociedade brasileira altamente preconceituosa fornecendo balizas para adesconstruo (terica) do mito da democracia racial, a forma como descreveramos ex-escravizados e todo o seu sofrimento e embrutecimento foram divulgadasnos livros didticos e permanecem at hoje. Propagados nos espaos educacionaisintegram o imaginrio social dos estudantes brasileiros, da educao bsica aoensino superior, sobre os negros.

    Longe de negar a face cruel do perodo escravocrata preciso resgatar naHistria do Brasil uma outra face. Construiu-se a imagem dos escravizados ora

    como violentos e irracionais ( semelhana de animais), ora vtimas e submissos,distanciando-se em muito, dos sujeitos histricos, atuantes e conscientes que noprocesso, fizeram escolhas. Resistiram, se conformaram, aceitaram e negaram oque lhes era oferecido.

    Assim, a trajetria dessas populaes aparece na Histria do Brasil,fragmentada, deturpada e no contempla a complexidade das relaes estabelecidasentre brancos e negros, do perodo escravagista at a atualidade.

    O estudo do negro na educao brasileira exige um grande esforo paraacompanhar as relaes imbricadas que envolvem as populaes autodeclaradasbrancas e negras. So relaes de poder de um grupo tentando violentamente sesobrepor ao outro, e esse outro reagindo e construindo sua prpria histria.

    Este prembulo visa esclarecer sobre o carter poltico com que os dadosesto sendo tratados. Mesmo porque no h como desvincular a educao dapoltica. O educar um ato poltico. Afinal,

    As escolas no controlam apenas pessoas; elas tambm ajudam a controlarsignificados. Desde que preservam e distribuem o que considerado como oconhecimento legtimo o conhecimento que todos devemos ter as escolasconferem legitimao cultural ao conhecimento de grupos especficos. Mas issono tudo, pois a capacidade de um grupo tornar seu conhecimento em

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    14 Entende-se que resguardadas as especificidades histricas das lutas possvel fazer esta relao. Ado Movimento Negro em suas diferentes fases - na luta por maior participao na naobrasileira(dcada de 40); e mais articulado politicamente, com um cunho de combate discriminaoracial (dcada de 70). E tambm os escravizados na sua luta cotidiana, por liberdade e direitos (mesmoque naquele momento no houvesse uma articulao poltica como se conheceu no Brasil Repblica).Ver: Guimares (2003) e Nascimento (2005).15 No vdeo Atlntico Negro na Rota dos Orixs, de Renato Barbieri, os depoimentos dos africanosda regio do Benin (frica) fazem referncias explcitas contribuio dos Aguds, os afro-brasileirosque nasceram no Brasil e voltaram para a frica aps a revolta dos Mals, na Bahia em 1835. gritante as discrepncias existentes entre o olhar do negro africano sobre o Agud e a forma comoos estudantes, dentre eles alguns negros, vem o mesmo negro brasileiro. Se, em sala de aula areferncia ao mundo do trabalho dos negros apenas a mo de obra braal, no Benim, no. As profissesdesenvolvidas pelos Aguds so apontadas como diversificadas: carpinteiros, marceneiros, arquitetos,barbeiros, economistas, sendo responsveis pela economia de ponta de regio, e eles, os afro-brasileirosque voltaram a viver na frica, tidos como altamente capazes e criativos (Garcia, 1997). Ver tambm:Guran (2000).16 Alguns livros que contribuem para reverter esta viso negativa sobre o negro: Schwartz (1995),Silva (1999) e Silveira (2002).

    conhecimento para todos est relacionada ao poder desse grupo no campo deao poltico e econmico mais amplo. Poder e cultura, ento, precisam ser vistos,no como entidades estticas sem conexo entre si, mas como atributos dasrelaes econmicas existentes numa sociedade. (Apple, 1996).

    A questo complexa. Este texto apenas uma das leituras possveis deserem feitas, permanecendo em aberto para ser explorado e aprofundado por quemassim o desejar.

    preciso ter claro que no s os intelectuais e lderes comunitrios negros,mas tambm as populaes negras em suas atividades rotineiras lutaram (e lutam)pela conquista da liberdade e de direitos.14

    Apesar disso, os negros ocuparam (e ainda ocupam) nos materiais

    didticos e paradidticos uma condio inferior. Ainda so retratados de formajocosa, ou como vtimas submissas aos mandos e desmandos do senhor. Pouco,ou nada, se fala dos excelentes carpinteiros, marceneiros, canoeiros, vendedores,alm de agricultores e pecuaristas,15 negros, do Brasil-Colnia e do Brasil-Imprio,no sentido de reverter esta viso negativa16 do escravizado submisso eanimalizado.

    Por assim ser, este estudo alerta tambm para a necessidade de se resga-tar o papel dos escravizados como sujeitos histricos, que processualmente foramforjando sua liberdade. As leis do perodo imperial sejam elas do Ventre Livre(1871), do Sexagenrio (1885), da Abolio (1888) no podem mais ser vistascomo benefcio do senhor para com o escravizado, e sim conquista desse, forjada

    por disputas constantes. Isto sem desmerecer, claro, a atuao de importantesabolicionistas como Joaquim Nabuco, Jos Bonifcio, Luiz Gama, Andr Rebouase outros. Muitos escravizados tambm tinham conscincia de que eram lutas pordireitos e no por privilgios.

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    17Programas de Aes Afirmativas so polticas de reparaes e reconhecimento. Isto , conjuntosde aes polticas dirigidas correo de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta detratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalizao criadas e mantidas porestrutura social excludente e discriminatria. Aes Afirmativas atendem ao determinado pelo ProgramaNacional de Direitos Humanos, bem como a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil(Brasil. MEC, 2004, p. 11).

    preciso retomar uma necessidade atual e antiga ao mesmo tempo,resqucios do Brasil-Imprio, os programas de aes afirmativas.17 Estes no soprivilgios e sim direitos positivos. Garantias legais e constitucionais de acesso educao, sade, emprego em condies de igualdade entre brancos, negros edemais etnias, que no sero aqui tratadas.

    A complexidade da situao se faz sentir. Neste sentido, analisar os dadoseducacionais a partir do recorte raa/cor de fundamental importncia para umasociedade que se pretende mais igualitria e democrtica.

    A importncia deste trabalho, alm de fornecer balizas para dialogar sobrea qualidade na educao, acesso e combate a disparidades econmicas e sociais ea busca pela eqidade regional, aquecer o debate contra a discriminao racial e

    salientar a necessidade de anlises mais qualitativas acerca das relaes tnico-raciais que envolvem brancos e negros, no interior das instituies de ensinobrasileiras, da educao infantil ao ensino superior.

    Assim, para explicar com mais solidez a trajetria do negro na educaobrasileira, visto que no possvel desconsiderar nenhuma destas informaes, otexto foi dividido em seis partes:

    1 Contextualizao histrica;2 Marcos institucionais;3 Diagnstico;4 Ensino superior;

    5 Escolaridade e insero do negro no mercado de trabalho;6 Negro e pobre: dupla discriminao.

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    1 Contextualizao histrica

    1.1 Fim do Brasil-Imprio e instaurao da Primeira Repblica

    1850-1894

    Em fins do sculo XIX, no Brasil, comea a se configurar nas relaescotidianas, a diferenciao entre os nascidos livres (beneficiados pela Lei do

    Ventre Livre 1871) e os libertos, aqueles que compraram sua alforria ou foramlibertados pela Lei da Abolio de 13 de maio de 1888.Trata-se de um momento de transio bem especfico, de crise do modelo

    agrrio-comercial exportador dependente e da tentativa de incentivo industrializao (1870-1894), configurando-se no fim do Imprio e instauraoda Primeira Repblica (1891) (Ribeiro, 2000).

    A sociedade imperial, em princpio, no exerceu sua autoridade sobre osnegros respaldada no direito positivo, nos princpios universalistas, mas sim napropriedade. O poder privado do senhor sobre o escravizado define a ordemescravista. Nessa perspectiva, os negros africanos recm trazidos para o Brasileram tidos como mercadoria, coisa e no pessoas.

    A unio da Igreja com o Estado Imperial foi uma das estratgias utilizadas

    para a manuteno dessa situao. A dispensa da adoo do registro civil e a garantiados direitos civis dos cidados (livres), na prtica, foram solucionadas com autilizao dos Livros Eclesisticos. Havia distintos Livros Eclesisticos parao registro de nascimentos, de casamentos e bitos, separando, tambm, livres ecativos.

    Essa atitude desobrigava o Estado de legislar sobre uma diferena deconcepo entre o direito civil e natural e uma concepo patrimonial de direito,conseqentemente a vida em sociedade (Castro, 2002).

    Desde o Brasil-Colnia a caracterstica mais marcante da colonizaoportuguesa foi a explorao e a conseqente mercantilizao dos produtos. DoBrasil, as riquezas se esvaam indo se acumular nos cofres europeus.

    Assim, a priori, o Imprio Portugus dispensou o discurso cientficoracista,18 baseando-se em um sentido mercantilista para o comrcio de escravizados.Em funo dessa postura adotada pelo Imprio Portugus, a questo da

    linhagem (origem) se estabeleceu socialmente no Brasil, como um divisor deguas entre aqueles que poderiam alar algum prestgio social e os que no podiam.

    18 O preconceito de raa fundamenta-se em ideologias europias, que remontam do sculo XV eforam reformuladas no sculo XIX. Os europeus aprimoraram o sentido de raa que passou a assumir

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    uma perspectiva cientfica de cunho biolgico, mais do que cultural, e que s chegou de fato, noBrasil, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX. preciso atentar para a especificidade dodiscurso da mestiagem no Brasil-Imprio e a busca pelo embranquecimento da populao. Acomplexidade tamanha. Paralelo ao estmulo mestiagem, o preconceito de marca vigorou. Amarca do cativeiro era preta, parda, mestia. Todavia, no se tem conhecimento de um arcabouoterico que tentasse convencer que isso fosse para melhorar a raa (mesmo que estivessesubentendido). Nesse perodo, menos preocupados com discursos cientficos, os senhores tentavam,

    de toda sorte, camuflar os conflitos por meio de uma coero moral que vinculasse o ex-escravo e suafamlia s suas terras.

    Mais especificamente no incio do sculo XX, em um Brasil que se pretendia moderno, a reformulaohistrico-cientfica gerou uma nova categoria aglutinadora das aspiraes nacionais, o mestio.Estava criado o mito da democracia racial, a Fbula das trs raas - brancos, negros e ndios que secompletam harmonicamente (Da Matta, 1997). Mesmo que o negro, na Europa, fosse tratado comoraa inferior e no Brasil-Imprio como mercadoria, essa elaborao terica cientfica dialoga com acultura senhorial perceptvel no Brasil de fins do sculo XVIII e sculo XIX. Em ambas as situaes,a marca (cor) alvo de discriminao e preconceito, todavia racismo, especificamente, s na primeiradcada do sculo XX.

    Findo o trfico de escravos (1850) e estabelecida a abolio (1888), como aquecimento do trfico interno (migraes intra-regies), a carncia de mo-de-obra e as dificuldades e exigncias que se configuravam nos acordos trabalhistas,que passaram a vigorar entre ex-escravizados e senhores, geraram algumasdiferenciaes fundamentais nas relaes escravistas de at ento.

    Em 1872, 41% da populao livre brasileira eram constitudas pordescendentes de africanos. A ausncia de fronteira racial absolutamente definidaentre escravido (negros cativos) e liberdade (pretos, pardos e mulatos livres)fazia com que os fatos jurdicos que conformavam condio de livre ou cativodecorressem das relaes costumeiras.

    Segundo Castro (2002), para que um descendente de africano fosse

    escravo era preciso que ele assim se reconhecesse e fosse reconhecido como tal.Um olhar um pouco mais atento (embora limitado, dada natureza do

    estudo aqui empreendido) demonstra nuances de conscientizao dos ex-escravizados sobre os seus direitos de livres, bem diferentes da situao deescravizado.

    Por outro lado, os senhores tambm cnscios da situao tentavam, detoda sorte, transformar direitos universais em privilgios, alimentando, ou melhor,tentando alimentar nos ex-escravizados relaes de amizade, solidariedade efidelidade, para que se mantivessem nas suas terras em condies semelhantes escravido. O que era prontamente recusado por alguns, acompanhado por umalista de reivindicaes por melhoria nas condies de trabalho. Alguns conseguindo,

    inclusive, atuar como parceiros ou meeiros dos senhores (Castro, 2002).Esta complexa disputa que se estabeleceu entre senhores, escravos elibertos, entre direitos e privilgios, tinha um sentido. Afinal, com direitos nohaveria escravos.

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    1.2 Brasil-Imprio: direitos civis e privilgios a diferena

    entre os nascidos livres e os libertos

    Antes da extino do trfico, alguns cativos pressionavam mais porprivilgios que por direitos. Atendidos em suas reivindicaes, sentiam-seum pouco menos escravos que os outros.19 Tinham para si bem definidos o maucativeiro e o bom cativeiro.

    Com a abolio em 1888, os libertos passaram a reivindicar, maisefetivamente, os direitos civis dedicados aos nascidos livres. Por outro lado, ossenhores tentavam de toda forma utilizar a abolio para resgatar a ascendncia

    moral sobre os ex-cativos, restabelecendo laos de fidelidade e gratido paratoda a sua famlia (Castro, 2002).Aps 1888, os recm-libertos identificados pelo qualitativo negro20 no

    foram facilmente aceitos no convvio social, pelos homens e mulheres livres. Oque lhes dificultava, entre outras coisas, o acesso terra. Os laos afetivos efamiliares herdados dos cativeiros eram o que influenciava na sua opo demigrao ou permanncia nas roas. Por vrias vezes tentavam ter as rdeas dotrabalho a ser desenvolvido.

    Devido carncia de mo-de-obra discutida anteriormente, os senhorespassaram a arrendar suas terras a alguns, assim, os ex-escravizados que optarampor ficar nas fazendas, entendiam-se como scios. Em alguns casos, tentavamnegociar a forma como queriam ser tratados, nem sempre sendo atendidos.

    Paradoxalmente, apesar da misria e do despreparo de muitos ex-escravizados, Castro (2002) defende que, nesse caso especfico, a situao semostrava favorvel ao liberto. Assim como na cidade, as atividades manuaisestavam por ser feitas, a colheita tambm precisava ser feita. Brancos e pardoslivres no se mostravam interessados em trabalhar nas lavouras, servio tido comotrabalho de escravizados, de negro, e nem nas cidades, em trabalhos queconsideravam degradantes.

    Em princpio (antes da vinda dos imigrantes), no campo, os libertos eramdisputados pelos proprietrios. Os ex-escravizados negociavam a sua manutenona fazenda, com um senhor totalmente despreparado para esse feito e altamentereticente em reconhecer-lhes os direitos de livres.

    Vale registrar que os brancos pobres tambm foram submetidos ao trabalhocompulsrio, e enquanto durasse o servio, eram tratados como escravizados.Contudo a sua escravido diferia, na base, daquela vivenciada pelos negros

    19 Um exemplo pode ser dado de negociaes que ocorriam entre senhores e os escravizados domsticos.Por manterem uma relao mais ntima na casa grande acabavam por se apresentar, aos olhos dosdemais escravizados, numa condio de superioridade.20 Sinnimo de ex-cativo no direito costumeiro.

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    21 Sobre o poder de barganha dos escravos, ver: Aguiar (2001) e Paiva (2000).22 O canto, muitas vezes, era uma forma de protesto e garra de negros que no se deixavam vencer.

    africanos. O elemento hereditariedade, a linhagem, como ficou conhecido noBrasil, era o fator determinante da temporalidade de realizao dos seus servios.Diferentemente, o africano, em sua imensa maioria, no sabia como e nem paraonde haviam sido encaminhados seus familiares.

    Tal fato revestiu-se de grande importncia para os escravizados. Localizar,identificar e manter os familiares prximos passou a ser a pauta central de suasreivindicaes.

    Com o passar dos anos, os libertos passaram a pressionar mais por direitosuniversais do que pessoais. A expectativa do movimento pela liberdade tinha umadimenso familiar libertar a si e a seus familiares.

    Em 1860, o Estado, em funo das lutas polticas que envolviam senhores

    e escravos, reconhece alguns desses direitos a no separao da famlia, o direitoao peclio e a autocompra em especial. Pautas essas duramente reivindicadaspelos cativos e ex-cativos.

    1.3 Brasil-Imprio: os escravizados e os libertos no mundo do

    trabalho

    Esse fato traz embutido indcio de luta pela emancipao por parte dosnegros que, longe de demonstrar submisso, demonstra luta pela liberdade. Denota,tambm, um grau de conscincia poltica e poder de barganha.21

    Desde a abertura dos portos (1808), o sistema colonial entrara emdesagregao dando lugar a uma variante do escravismo moderno que abrigavaescravizados exercendo diferentes atividades que no se restringiam s lavouras.De onde se deduz que a escravido urbana no um fenmeno que se contrape escravido rural, mas sim um desdobramento do escravismo colonial tpico, isto, do escravismo rural. Trata-se de um desdobramento lgico e histrico(Algranti, 1988).

    Servios pblicos de limpeza das ruas e servios de libambos eram feitospor prisioneiros, geralmente ex-escravos ou libertos. As obras de reparos emestradas e conservao de edifcios tambm, e outras tantas atividades.

    Estas tarefas, consideradas degradantes pela sociedade, ficavambasicamente a cargo dos presos do Calabouo que, acorrentados, percorriam as

    ruas levando gua para os edifcios pblicos (Algranti, 1988). Eram os conhecidoslibambos. Cantando suas cantigas africanas iam carregando lata dgua na cabea.22

    Alm do canto, a fuga foi uma das formas de resistncias contumazes.

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    23Advm do termo escravas de ganho.

    Os encarregados de vigiar os servios externos eram miserveis brancose mulatos, que nesse dia largavam seus jornais (atividades) de sapateiros, pedreiros,alfaiates, para atuar como soldados milicianos, o que achavam degradante. Assim,ao invs de guardar os escravos, faziam vista grossa para as tentativas de fugas eessas ocorriam, dando grande prejuzo aos senhores e trabalho polcia.

    Muitos dos escravizados domsticos em funo das caractersticas dasatividades desempenhadas, que os colocavam em contato direto com a vida urbana,possuam uma profisso, constituindo-se no grosso da mo-de-obra no setorprivado, da economia carioca. Carpinteiros, calceteiros, impressores, carregadores,vendedores ambulantes, cirurgies e barbeiros espalhados em diferentes ocupaesespecializadas, semi-especializadas e ocupaes no-manuais.

    Os viajantes estrangeiros, ao entrarem em contato com a vida familiarbrasileira, no deixavam de comentar a presena dos negros nas mais variadasocupaes (Algranti, 1988).

    No trabalho semi-especializado feminino, destacavam-se as lavadeiras epassadeiras. Uma famlia rica beneficiava-se em empregar suas boas negraspara trabalharem para fora, as chamadas escravas de ganho.

    J as costureiras comearam a trabalhar com os preparativos para achegada de D. Joo e no pararam mais. A alta costura era feita ou pelas escravasou pelas famosas modistas francesas.

    Na Bahia, muitas negras ganhadeiras23 se tornaram conhecidas pelas suasvendas de peixe e fazendas.

    Devido lucratividade gerada com escravos especializados, escravosde ganho e escravos de aluguel, surgiram escolas de treinamento. Aprendizagemde jardineiro, cocheiro, ou cozinheiro, ler e escrever, contar e cozer eram algumasdas atividades desenvolvidas nesses espaos.

    Ao ressaltar a atuao diversificada dos negros no mundo do trabalho,objetivo destacar a luta por direitos e no mais por privilgios na busca pelaliberdade. Embora, por vezes, a legitimao de direitos traga embutido privilegiaresse ou aquele grupo, a questo aqui bem especfica.

    Todos os benefcios que, legalmente, os negros foram duramenteconquistando, o senhor, em suas prticas discursivas, destacava como sendo umprivilgio, que ele, bondosamente, concedia-lhes. Mesmo que em algummomento, pela tica do senhor, isso ocorresse, o negro soube se apropriar e

    transformar a ao. Sempre que possvel, principalmente quando era enviado cidade, o negro cativo misturava-se aos livres, comercializava seus servioscom o claro objetivo de comprar sua liberdade.

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    24 O sentido de melhores do negro em relao a outro negro. O que conseguiu ser inserido nomercado de trabalho em funo da profisso adquirida no tempo do cativeiro, e aquele que no teve amesma sorte. Se a comparao fosse feita entre negros e branco, no geral no haveria melhora.Todavia, isso no inviabiliza as conquistas adquiridas pelos negros, muito pelo contrrio. precisoressalt-las dadas as adversidades pelas quais passavam.25 O enfoque dado foi mais nas relaes internas. Muito embora haja cincia de que muito maiscomplexo e que o elemento externo (atuao de ingleses, franceses e portugueses) seja muito importantepara um estudo mais pormenorizado sobre a questo, o que no o caso aqui.

    claro que nem todos tiveram a mesma sorte. Os dados levantados nopermitem fazer maiores inferncias quantitativas sobre quantos tiverammelhores24 oportunidades.

    Essas informaes so fundamentais para que se tenha uma noo daatuao diversificada do negro no mundo do trabalho e sua importncia para aeconomia do Brasil-Colnia e Brasil-Imprio.

    Diante desse prembulo, uma questo deve estar instigando o leitor: Afinal,qual a importncia dessas informaes histricas no contexto da atual trajetriado negro na educao brasileira?

    Entendo que, para o raciocnio que pretendo estabelecer fundamentaldesmistificar a idia de que os escravizados, aps a abolio, apenas foram jogados

    no mercado totalmente despreparados. No que isso no tenha ocorrido paramuitos. S que, apenas isso, no de todo verdade. Essa uma viso histrica, ameu ver, restritiva e que no abre possibilidade para novas perspectivas de anlise.

    preciso resgatar, mesmo que de forma panormica, a luta que vem sendoempreendida, ao longo da histria do Brasil, pela populao negra pela liberdade,pela famlia, pela dignidade no trato, por educao, por salrios dignos etc.,considerando, historicamente, essa ordem nas reivindicaes. Torna-se fundamentalpara que se estabelea outra imagem sobre o negro que no a paradoxalrepresentao, do ora pacfico/submisso ou brutalizado/agressivo.

    Indiretamente, busco ilustrar o processo abolicionista dentro de outraviso, que no a da liberdade dada pela Princesa Isabel to comum ainda em

    livros de Histria do Brasil.Ao analisar de forma ampla a participao dos negros no mundo dotrabalho, a relao intrnseca entre submisso x emancipao vem tona. 25

    Submisso interna refletindo-se no s nas relaes familiares, como lembraGilberto Freire: da esposa em relao ao marido, dos filhos em relao ao pai, doescravo em relao ao senhor etc. (Freyre, 2000). Contudo, alerta-se que a forada opresso pode ter bloqueado, mas no acabou com as manifestaes dedescontentamento e com as articulaes de negros e abolicionistas pela liberdade.

    A situao complexa. Por mais que a liberdade tenha sido uma duraconquista, o que se v aps a abolio da escravatura que a repulsa pelas atividades

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    26 Este um dado histrico sintomtico para aqueles que acham que, no Brasil, o problema de classesocial e no de raa. Miserveis sim, brancos e negros eram. Todavia, os brancos miserveis noaceitavam serem comparados aos negros miserveis. Seria humilhao demais?

    manuais, tidas pelos brancos e nascidos livres como trabalho de negro (ex-cativo),tomou outra configurao.

    Concomitantemente a esses conflitos, que no o propsito aquiaprofundar, ocorria uma nova configurao das relaes entre brancos, pretos epardos que vale ressaltar em funo da conexo com o observado nos dados atuaismapeados.

    Trata-se da formao da identidade dos negros recm-libertos.

    1.4 Identidade fragmentada: Quem so os negros? Quem so os

    pardos?

    Diante das novas relaes estruturadas no perodo ps-abolio, comoficou a fronteira racial estabelecida no direito costumeiro?

    Quanto aos brancos no havia dvida. Eram os descendentes de europeuse ocupavam os melhores postos na sociedade escravocrata imperial. Existiamtambm os brancos miserveis. Esses se negavam a fazer servio de negro, dosex-escravizados. 26 Os pardos, os indgenas, os negros, os mulatos, os crioulos eoutros que o fizesse.

    No geral, como ficaram os que tinham a marca da escravido?A resposta a essa questo fundamental para a compreenso de uma das

    facetas doracismo na atualidade, perceptvel em todos os dados mapeados.

    At 1850, a distino entre escravos e livres dividia a sociedade. SegundoSchwartz (2001),

    a complexidade originou-se da alforria de escravos e do nascimento de indivduosmestios, nascidos livres e outros, escravos, estes ltimos sendo favorecidos nosprocessos de manumisso. Esses indivduos criaram novas categorias sociaisque precisavam ser ajustadas hierarquia social.

    Ainda segundo essa autora, um sistema que combinava definies egraduaes sociais baseadas em estado, funo, identidade corporativa, religio,cultura e cor poderia ter se revelado to confuso a ponto de no se constituir emum sistema, mas no foi o que houve.

    A tendncia foi a formulao de um pr-conceito acerca de cada indivduo.

    Assim, era mais provvel que

    um africano boal fosse pago, negro, no aculturado, sem especializaoprofissional, trabalhador na lavoura e, sem dvida, escravo. Um homem branco

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    era supostamente um livre e aculturado, definido por estado e funo, e tendia asituar-se no topo de vrias classificaes sociais. (Schwartz, 2001).

    J as pessoas de origens mistas no eram to facilmente situadas.No perodo pr-abolio, as pessoas de cor livres, formavam um grupo

    heterogneo com pessoas de vrias origens, habilidades, graus de aculturao ecores, podiam sofrer com incapacidades legais e ultrajes, estarem sujeitos coero legal e ilegal e ser tratados com desprezo, mas seu status era infinitamentemelhor que o dos cativos (Schwartz, 2001).

    De posse dessas informaes, fica um pouco mais claro como seestabeleceu a marca da escravido, o estigma do cativeiro.

    Aos negros nada foi concedido alm da liberdade. Se houve benefcioscomo os descritos anteriormente, esses foram duramente conquistados. Por outrolado, os proprietrios aguardavam uma legislao especial que tinha por base amanuteno da idia da tutela do Estado sobre eles. Eram manobras para for-los a viver numa condio diferenciada dos demais homens livres.

    Mais de 60% dos negros mantinham-se em zonas cafeeiras e canavieiras.Fora isso, eram obrigados a deixar a regio havendo um decrscimo na populaonegra local.

    Em 1894, congressos agrcolas foram realizados procurando regulamentaros acordos trabalhistas como forma de atrair os imigrantes (Zetirry, apudCastro,2002). Brancos e pardos ainda no eram maioria nas fazendas da Regio Centro-Sul do Pas.

    No perodo ps-abolio, nas relaes costumeiras, os pardos eram osnascidos livres. O ex-escravo, recm-liberto era tratado como preto ou negro.Assim, na dcada de 1890, uma crescente diferenciao se estabelecia entrelibertos e nascidos livres, os cidados brasileiros. Pelo menos, todos osmarcados pela cor tentavam se agarrar a isso, no af de se diferenciarem doslibertos e alar a condio de cidados de cor, mas nascidos livres. Posioessa, cada vez mais, associada aos brancos.

    Segundo Castro (2002), o intercambiamento entre os qualificativos pardo(nascido livre) e negro (nascido escravizado) tornava-se evidente em termosestatsticos. Diminuem os registros de nascimento e de bito de crianas negras,correspondendo a um crescente aumento das crianas pardas, permanecendo

    inalterada a presena proporcional dos brancos. Depreende-se que comearam ase ver como pardos e no mais como negros, como forma de arrancar de si amarca do cativeiro.

    Como se isso fosse possvel. essa marca que, quase meio sculo depois,se encontra na origem dos freqentes debates sobre a questo racial no Brasil,inclusive a razo desse estudo.

    Quatrocentos anos depois da chegada dos primeiros africanos em solobrasileiro, constata-se que os negros conseguiram ascender socialmente, todavia

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    31Identidade Fragmentada

    se juntaram aos pardos numa condio desigual que perdura at a atualidade. Aauto-identificao como pardo, e no mais como negro ou preto, foi a formaencontrada pelos libertos para afirmarem a experincia de liberdade que se abriaaos homens livres despossudos.

    Por isso, possvel ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica(IBGE) agregar pretos e pardos na categoria negros. Os nmeros corroboram como que foi exposto acima. Seja pardo ou preto pertencem raa negra. Os nmeroscomprovam que a condio socioeconmica do negro bem inferior do branco.

    Parece ou no parece que remontamos ao Brasil-Imprio?Entendo que muitas das explicaes estruturadas naquele momento

    perduram at hoje no imaginrio social brasileiro respaldando prticas

    preconceituosas e discriminatrias, acrescidas da ressignificao dada pelo discursocientfico racista da Primeira Repblica e pelas leituras distorcidas constantesna historiografia brasileira, bem como pelo papel desempenhado pela mdia, noBrasil.

    Remontar a esse passado significa perceb-lo como componente essencialpara a diferenciao que se consolidou entre negros e brancos na atualidade.

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    2 Marcos institucionais

    2.1 As atuaes governamentais e da imprensa na construo da

    invisibilidade social do negro

    Anlises sobre discursos, debates e produo de idias sob a classificao deacadmicas ou de polticas muitas vezes foram construdas dissociadas deagentes, interlocutores e, principalmente, de contextos histricos. No tocante srelaes raciais no Brasil no foi diferente. De uma maneira geral, as lutas e as

    organizaes negras no Brasil do sculo XX tm sido analisadas sob umaperspectiva quase sempre aistrica. Acusados de fracos, inconsistentes e semcontinuidade, associaes e movimentos sociais negros no Brasil republicanoforam desenhados em muitos estudos como um processo de luta anti-racista: oradesdobramento linear de um abolicionismo inacabado, ora tradio romantizadadas lutas escravas, tipo quilombos. (Gomes, F. 2005).

    A frase acima introdutria de um artigo de Flvio Gomes (2005), 27 noqual analisa, na imprensa das dcadas de 20 a 40, as matrias dedicadas s atividadesencabeadas por militantes e intelectuais negros. Os resultados encontrados nodiferem em essncia do que foi pontuado no captulo anterior a ausncia deexperincias positivas e biografias de eminentes lderes negros no Brasil

    republicano.Enfatiza-se, nos jornais pesquisados, uma viso de vazios e/ou

    descontinuidades, que supostamente s haveria nos movimentos negros, o queno seria percebido nas lutas operrias e nos partidos polticos.

    Para captar como os cidados negros tm sido atendidos em suasnecessidades bsicas de acesso educao, analisar as lutas polticas empreendidaspelo Movimento Negro ao longo dos anos fundamental. Todavia, como vimos,acompanhar esse percurso tambm no tarefa fcil.

    Alm dos vazios e/ou descontinuidades citados acima, existe umaexplicao histrica para esse fato que dialoga intrinsecamente com osencaminhamentos deste estudo.

    Assim como no se considerava como de substancial importncia osdiferentes percursos educacionais pertinentes s diferentes populaes com suasraas/cores e etnias, o mesmo ocorria com os movimentos sociais e polticosdesencadeados pelos negros. A anlise da imprensa da poca mostrou isso.

    27 Para aqueles que insistem em afirmar que no Brasil, diferentemente dos EUA, no houve umalegislao especfica que cerceasse a participao do negro na sociedade, sugere-se a leitura do textode Seyferth (2005).

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    34 Rensia Cristina Garcia

    No cenrio brasileiro do incio do sculo XX, a ideologia propagadasempre apontava para tratamentos iguais, quando na verdade nunca o foi de fato.

    Assim, as diferenas foram construdas ao longo dos anos, histrica esocialmente, de forma muitas vezes imperceptvel e com resultados altamentesegregacionistas.28

    Um olhar mais atento luta poltica desencadeada pelo Movimento Negroaponta para a necessidade de se considerar a complexa realidade social presentenos vrios momentos histricos, que pode apontar para histrias da educaodiferentes para os grupos sociais existentes.

    2.2 O negro na histria da educao no Brasil ou a histria daeducao do branco brasileiro?

    Em uma situao social, econmica e cultural to dspar29 como a dasociedade brasileira, o questionamento que intitula este item fundamental. Afinal,a diferena na forma de tratamento dada s populaes pobres e carentes, emespecial s negras, saltam aos olhos. Da se pensar o negro na Histria da Educaono Brasil ou uma Histria da Educao especfica para o branco brasileiro?

    Desde a educao jesutica, a opo foi por uma educao livresca,importada e aistrica. A educao no sistema escravocrata com suas escolas deprimeiras letras, diferenciadas por gnero e disciplinas, no permitia a presena

    dos escravizados j que, por lei (art. 6 da Constituio de 1824) era reservada aoscidados brasileiros. Com isso, coibia o ingresso dos escravizados que eram, emlarga escala, africanos de nascimento. Apenas negros libertos provenientes defamlias de algum recurso ou protegidos por ex-senhores poderiam freqent-las.

    A Reforma Couto Ferraz (Decreto n 1.331, de 17 de fevereiro de 1854)institua a obrigatoriedade da escola primria para crianas maiores de 7 anos e agratuidade das escolas primrias e secundrias da Corte. Ressaltam-se dois pontosque denotam a ideologia da interdio: no seriam aceitas crianas com molstiascontagiosas e nem escravas, e no haveria previso de instruo para adultos(Arajo, Luzio, 2005).

    Tcnicas rudimentares de leitura e escrita e a aprendizagem de ofcios

    que beneficiariam financeiramente os senhores por meio dos escravos de aluguis

    28A revista Veja de 15 de maro de 2006 retrata um avano brasileiro no clube do bilho. O pas liderao ranking de bilionrios latinos na lista da revista americana Forbes. o pas latino com o maiornmero de magnatas, 16 brasileiros aparecem no clube do bilho. Por outro lado, continua liderando,tambm, o ranking do pas mais desigual da Amrica Latina e um dos piores em desigualdade socialno mundo.29 Sobre as escolas de primeiras letras ou primrias, ver: Ribeiro (2000) e Dias (2005).

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    35Identidade Fragmentada

    e escravos de ganho foram as possibilidades educacionais oferecidas aosescravizados. Em contrapartida, formavam sociedades secretas uma espcie defranco-maonaria cuja palavra de ordem era proteo mtua (Costa, apudArajo,Luzio, 2005). Essa uma das explicaes para o fato de haver pretos e pardosalfabetizados e multilnges. Apesar das restries, os letrados ensinariam aosoutros.

    O combate ao analfabetismo e introduo da formao patritica pormeio do ensino cvico permite inferir sobre o carter disciplinador e de controlesocial, que impregnava as reformas educacionais30 no incio da Primeira Repblica.

    Arajo e Luzio (2005) destacam a cobrana de taxas e o estabelecimentode exames de admisso na Reforma Rivadvia Corra (1911), visto que suprimia

    o carter oficial do ensino e se articulava a interdio dessas populaes negras ede outros segmentos menos privilegiados.

    As oportunidades educacionais para essas populaes s sero maisperceptveis no incio do sculo XX, mais especificamente nas dcadas de 20 e30, com a disseminao das escolas tcnicas para atender demanda do mercadode trabalho.

    Essas escolas propiciaram a escolarizao profissional e superior de uma pequenaparcela da populao negra, no obstante a existncia de uma conspirao decircunstncias sociais que mantinham os negros fora da escola. Pretos e pardosque obtiveram sucesso nesta direo formaram uma nova classe socialindependente e intelectualizada. (Arajo, Luzio, 2005).

    Essas se constituram na base da organizao das primeiras reivindicaessociais negras na ps-abolio, e do movimento negro brasileiro.

    2.3 A atuao do Movimento Negro no Brasil

    A Frente Negra Brasileira (FNB),31 o Teatro Experimental do Negro (TEN)fundado em 1944 e o Movimento Negro Unificado (MNU), surgido em 1978,foram experincias polticas fundamentais para o encaminhamento dos programasde aes afirmativas atuais e para a visibilidade dos problemas referentes ascensosocial das populaes negras.

    Entretanto, na imprensa da poca, como dissemos, o que se percebe uma viso de desarticulao, de vazios e descontinuidades (Gomes, F. 2005).

    30 Benjamin Constant, Epitcio Pessoa, Rivadvia Crrea, Carlos Maximiliano e Joo Lus Alvesvisavam regulamentar a educao brasileira dentro de uma perspectiva liberal.31 A Frente Negra Brasileira (FNB) foi o maior e mais amplo movimento negro paulista, tendo seexpandido para outros Estados brasileiros como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul,Bahia e Pernambuco.

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    36 Rensia Cristina Garcia

    A Frente Negra Brasileira, por exemplo, funcionava como escola queatendia s populaes negras ministrando msica, ingls, Educao Moral e Cvicae promovendo a alfabetizao dessas pessoas.

    Os frentenegrinos, como eram chamados, estudavam Engenharia eComrcio. Muitos davam aulas. Buscavam estruturar pequenos projetos que dessemcontinuidade a uma identidade negra livre das limitaes e imposies do racismo(Francisco Lucrcio, apudArajo, Luzio, 2005).

    Na mesma vertente, o Teatro Experimental do Negro proposto por Abdiasdo Nascimento em 1944, alm dos ensaios de peas, promovia cursos dealfabetizao de adultos. A educao nesse espao no encontra relaosimplesmente com a escolarizao. Ela incorporou a perspectiva emancipatria

    do negro no seu percurso poltico e consciente de insero no mercado de trabalho.32

    A perspectiva no era a afirmao da frica como centro do modelosocial, mas, da identidade do negro de origem africana como uma instncia possvel,embora ainda no como referncia constitutiva de um modelo social (Romo,2005).

    Nessas e em outras organizaes, a dimenso poltica est posta comoforma de negao da suposta inferioridade natural do negro.

    Todavia, na historiografia brasileira, foi to somente abordada como ummovimento poltico, marcado por contradies e equvocos. Os temas soanalisados superficialmente no se dando o devido valor ao impacto social e polticoproduzido.

    Flvio Gomes (2005) ressalta a necessidade de resgatar mais essa face dahistria da educao do negro brasileiro,

    reconstituindo as historicidades (contradies, expectativas, dilogos) deintelectuais negros, associaes anti-racistas e movimentos sociais nos anos 40 e50. Mais do que supostos vazios, descontinuidades e invisibilidades, torna-senecessrio avaliar tenses, contextos e expectativas em questo.

    Conhecer a histria da educao do negro significa, dentre outras coisas,a necessidade de adentrar esses diferentes tipos de escolarizao e educao, comoespaos de construo da cidadania e fonte de conscientizao da origem afro-brasileira. Conseqentemente, a invisibilidade social desnaturalizada fazendo

    emergir as diferenas nas formas de tratamento, a desigualdade racial e social.Os poucos exemplos citados do mostra do exclusivismo que foi aeducao brasileira para as populaes brancas, em especial as de posse. A algunsbrancos era vetada a participao nesses espaos educacionais, em funo da classesocial que ocupavam, ou seja, foram excludos efetivamente por questes

    32 Formavam profissionais para atuar no campo artstico do teatro (Romo, 2005).

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    38 Rensia Cristina Garcia

    No perodo conhecido como de redemocratizao do Brasil, na segundametade da dcada de 80 e durante a dcada de 90, os movimentos sociais quenunca deixaram de atuar , ganharam mais visibilidade e passaram a agir maisefetivamente no sentido de exigir uma postura mais ativa do Poder Pblico diantedas demandas das minorias.35

    Nesse universo, o Movimento Negro atuava exigindo a adoo de medidasespecficas para a soluo das demandas surgidas historicamente e que se estendemat hoje. No quadro delineado, a partir dos dados coletados pelo MEC/Inep, osnegros aparecem, claramente, numa condio socioeconmica e educacionalinferior do branco, em virtude das prticas discriminatrias e preconceituosasque vm ocorrendo, sutis ou no, para forjar a desigualdade entre negros e brancos

    em todos os espaos que permitam certa visibilidade social. nesse sentido que o mito da democracia racial, forjado nos idos da

    dcada de 30, permanece no imaginrio social brasileiro, embora, institucionalmente,esteja sendo mais combatido nos governos atuais.36 Atuao essa, no se podedeixar de registrar, resultado das presses sistematicamente empreendidas desdeos escravizados at o Movimento Negro organizado.

    Recentemente, a Organizao das Naes Unidas promoveu uma sriede conferncias internacionais no sentido de dar conta das demandas sociais nacontemporaneidade.

    Em 2001, na III Conferncia Mundial de Combate ao Racismo,Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada em Durban,

    frica do Sul, a ONU instou os Estados participantes a coletarem, compilarem,analisarem, disseminarem e publicarem dados estatsticos confiveis, em nveislocal e nacional, relativos a indivduos e membros de grupos e comunidades sujeitos discriminao.

    O diagnstico exposto a seguir resultado dessa determinao e foielaborado com dados coletados pelo Instituto de Estudos e Pesquisas EducacionaisAnsio Teixeira (Inep) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).

    35 Grupos organizados de homossexuais, indgenas, ambientalistas, negros, mulheres etc.36 Uma maior ateno ao preconcei to racial no Brasil, em ateno s demandas do Movimento Negro,foi dada pelo Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), tendo sido dado continuidade peloatual Presidente Luis Incio Lula da Silva (2002 at a atualidade).

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    40 Rensia Cristina Garcia

    Tabela 1 Populao residente, total por raa/cor, por grandes regies

    1996/2003/2004

    Fonte: IBGE Pnad.

    () At 2003, exclusive a populao da rea rural de Rondnia, Acre, Amazonas, Roraima, Par eAmap.

    () Negros somatria dos que se declaram da cor preta e parda.

    No se justifica, mas compreende-se a resistncia ao reconhecimento dasociedade brasileira como extremamente preconceituosa e racista. ParafraseandoFlorestan Fernandes, no Brasil existe o preconceito de ter preconceito (Cardoso,1997).

    A anlise dos dados, como veremos, altamente desigual em relao spopulaes negras e brancas.

    3.2 Perfil demogrfico e racial da populao brasileira

    A anlise dos indicadores sociais brasileiros37 evidencia a desigualdade

    existente entre os grupos raciais especialmente entre os grupos populacionaisbrancos e negros.38

    Existe hoje o reconhecimento de que o estudo da trajetria dos negros essencial para um pas comprometido com a promoo de uma sociedade,efetivamente, democrtica.

    fato que o preconceito e a discriminao abarcam indistintamentepobres, deficientes fsicos, obesos, ndios, idosos etc. Esta a argumentao maiscomum, no sentido de desracializar os debates. Os dados da Tabela 1 so, a meuver, o que torna a discriminao aos pretos e pardos mais gritante, no Brasil.

    37 Os dados pesquisados no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira(Inep/MEC) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) sero apresentados no decorrerdo texto, considerando as diferentes etapas de ensino, da educao bsica Educao Superior. Emborafoque mais a questo racial, sero explorados outros indicadores como sexo, gnero, renda e a questoda eqidade regional permeia todo o trabalho.38 Este texto enfoca a desigualdade tico-racial a partir do recorte especfico da populao afro-descendente.

    Ano Total Brancos (%) Brancos Negros (2) (%) Negros

    1996 154.360.589 85.267.617 55,2 68.166.345 44,1

    2003 173.966.052 90.573.832 52,1 82.295.722 47,3

    2004 182.060.108 93.604.435 51,4 87.374.950 47,9

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    41Identidade Fragmentada

    Em 2004, a populao total do Brasil era de 182.060.108 habitantes,indicando um crescimento em torno de 17,9%, em relao a 1996. Do totalpopulacional em 2004, os negros representavam 47,9 % da populao brasileira eos brancos, 51,4%. Este ndice torna o Brasil o pas no-africano com a maiorpopulao negra do mundo e o segundo maior, se considerarmos todo o globoterrestre, perdendo somente para a Nigria.

    O dado que chama a ateno a alterao da populao negra de 1996para 2003. O nmero de pessoas que se autodeclararam negras aumentou de 44,1%para 47,3%, ou seja, 3,8% no total geral. Uma anlise mais detalhada deixa entreverque o aumento dos autodeclarados negros no correspondeu a um aumento dosautoclassificados brancos, muito pelo contrrio, houve um decrscimo de brancos

    em 3,8%.Infere-se que a causa dessa mobilidade tem a ver com a visibilidade que

    tem sido dada temtica racial nesse milnio, pelos rgos governamentais. Emfuno das demandas desencadeadas desde a dcada de 30, mais efetivamente nasdcadas de 80 e 90, pelo Movimento Negro, fazendo com que as pessoasreformulem suas questes de identidade.

    Hasenbalg (1997) j fazia esse alerta em um seminrio internacional,39

    realizado em So Paulo, com o objetivo declarado de contribuir para o debatesobre a questo do racismo no Brasil.

    cabvel considerar a possibilidade de que o incio de programas efetivos deao afirmativa tenha como conseqncia no-intencionada um rearranjo dasidentidades e classificaes raciais no Pas; algo como uma reverso, ditada emboa medida por um clculo utilitrio, dos processos de branqueamento, induzidospelo sistema brasileiro de relaes raciais. (Hasenbalg, 1997).

    Tambm Ferreira (1999), em seu estudo sobre a construo da identidadede afro-descendentes, afirma que o Brasil est submetido a uma ideologia dobranqueamento e, por assim ser, muitas pessoas ao responderem aos quesitos dorecenseamento, negam as caractersticas raciais, determinando um ndice que noreflete, de fato, o perfil tnico-racial do povo brasileiro, permitindo supor queseja bem superior ao oficial apresentado.

    Uma anlise histrica comparativa de 1999 a 2003 nos remete novamente

    a essa premonio de Hasenbalg (1997) e afirmao de Ferreira (1999).Acompanhemos na Tabela 2, luz das disparidades regionais, quais as regiesque sustentam esse avano numrico de pessoas autodeclaradas negras.

    39 Seminrio Internacional Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ao Afirmativa nos EstadosDemocrticos Contemporneos, organizado pelo Departamento dos Direitos da Cidadania doMinistrio da Justia (Souza, 1997).

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    Tabela 2 Distribuio da populao residente, segundo raa ou cor, por

    grandes regies 1999/2003

    Fonte: IBGE Pnad 1999; Pnad 2003.

    () Exclusive a populao rural de Rondnia, Acre, Amazonas, Roraima, Par e Amap.() Exclusive a populao rural.

    Em todas as regies brasileiras houve uma diminuio das pessoasautodeclaradas brancas. Por ordem numrica decrescente, as porcentagens

    reduzidas foram as seguintes: Regio Centro-Oeste (3,2%); Regio Sudeste (2,0%);Regio Sul (1,4%); Regio Norte (1,3%), e Regio Nordeste (1,2%).

    Em relao populao autodeclarada negra, considerando a somatriados pretos e pardos, o fenmeno foi o inverso. Os acrscimos de 1999 para 2003,regionalmente, foram: Centro-Oeste (3,3%), Norte (2,4%), Sudeste (2,1%) Sul(1,5%) e Nordeste (0,9%) (Tabela 2 e Grfico 1).

    Ainda no Grfico 1, percebe-se que a Regio Nordeste em 1993 era a quetinha o maior nmero de negros, 70,1%, muito prximo Regio Norte (70,5%).Em 2003, h uma inverso. Primeiro a Regio Norte (72,9%), em segundo oNordeste (71,0%); depois, respectivamente, o Centro-Oeste (56,3%), o Sudeste(37,2%) e por ltimo a Regio Sul (16,7%).

    Chama a ateno as diferenas entre as regies Nordeste e Norte. Ambas,respectivamente, com a maior populao negra do Brasil. Todavia, na RegioNorte, de 1999 a 20003, o aumento de pessoas autodeclaradas negras (2,4%) foisuperior ao crescimento populacional (0,6%) (Tabela 2 e Grfico 1).

    H de se pesquisar como tem sido o investimento dos Estados e municpiosno combate discriminao racial e o estimulo capacitao de docentes sobre asrelaes tnico-raciais. Sendo a educao, o pilar central na anlise aquidesenvolvida, verificar se houve, paralelo ao aumento do acesso educao bsica

    Cor (%)Grandesregies Total Branca Preta Parda Amarela e indgena

    1999Brasil

    (1)100,0 54,0 5,4 40,0 0,6

    Norte 100,0 28,4 2,3 68,2 1,1Nordeste 100,0 29,8 5,6 64,5 0,2Sudeste 100,0 64,0 6,7 28,4 0,8

    Sul 100,0 83,7 3,0 12,6 0,7

    Centro-Oeste

    Centro-Oeste

    100,0 46,2 3,5 49,5 0,8

    2003Brasil (2) 100,0 52,1 5,9 41,4 0,6Norte 100,0 26,6 3,9 69,0 0,5Nordeste 100,0 28,6 6,4 64,6 0,4

    Sudeste 100,0 62,0 6,9 30,3 0,8

    Sul 100,0 82,3 3,7 13,4 0,6

    100,0 43,0 4,5 51,8 0,7

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    Grfico 1 Distribuio da populao residente, segundo raa ou cor, por

    grandes regies 1993/2003

    e ensino superior, uma mudana no encaminhamento das questes raciais nos

    espaos intra-escolar e extra-escolar. Em que medida essas prticas j tm resultadoem mudanas na auto-imagem das pessoas, em relao ao pertencimento racial.

    visvel que o trato da questo tem avanado na mdia eletrnica eimpressa, atingindo a populao como um todo. Acresce-se a isso, a criao deleis que cobem a prtica do racismo e forjam uma maior visibilidade para osnegros, atuando mais efetivamente na busca da equidade em todos os campos.

    Assim, no se deve desmerecer a atuao dos meios de comunicaonesse processo. Pelo carter ligeiro com que a informao atinge o telespectador,

    1993

    5

    4

    ,0

    2

    8,4

    29

    ,8

    6

    4

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    4

    6,2

    5

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    2

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    5

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    6

    ,7

    3

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    3

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    40

    ,0

    6

    8,2

    64

    ,5

    2

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    1

    2,6

    4

    9,5

    83

    ,7

    Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

    Branca Preta Parda

    Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

    Branca Preta Parda

    2003

    5

    2

    ,1

    2

    6

    ,6

    2

    8

    ,6

    6

    2

    ,0

    8

    2

    ,3

    4

    3

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    5

    ,9

    3

    ,9

    6

    ,4

    6

    ,9

    3

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    Fonte: IBGE Pnad 1999; Pnad 2003.

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    40 IBGE. Sntese de indicadores sociais. 2004.

    influenciando na sua percepo do mundo e de si mesmo, vale a pena pesquisar asrepresentaes de negros propagadas e a sua importncia no processo de auto-identificao da populao brasileira.

    Vale ressaltar que, para o IBGE, comparando dados da Pnad de 1993 a2003, essas so pequenas alteraes em nvel nacional.40 No estamos dizendoque no o so, sugerimos que se pesquisem os indcios de uma sutil mudana nasociedade brasileira, mesmo porque o aumento de autodeclarados negros continuaavanando, pouco, mas ano a ano.

    Estudos realizados no sentido de acompanhar esta mobilidadepopulacional, comumente, tomam como base de anlise o papel da migrao. Em1890, o branco era minoria, representando 44% da populao brasileira. No final

    do sculo XIX e nos anos 30, a forte imigrao europia conduz a umarecomposio racial, os brancos chegando a 64% no recenseamento de 1940. Apso sculo XX, fatores como mortalidade, fecundidade e tambm o padro deintercasamento passam a ser a referncia (Henriques, 2000).

    Mas, e atualmente? O que estaria impulsionando essas mudanas? Oaumento na taxa de fecundidade e natalidade? Tem havido um aumento dapopulao negra que explique as flutuaes observadas?

    Estas podem ser algumas das explicaes. Todavia, entendo que aidentificao racial no algo esttico e sim um processo social construdo aolongo da vida: o pertencimento racial no constitui um dado imutvel na vidadas pessoas. possvel que na sua trajetria haja mudanas no processo de

    autoclassificao das pessoas (Piza, Rosemberg, apudCarvalho, 2005). Baseadonessa premissa que sugiro um estudo mais aprofundado acerca dos currculos edos contedos ministrados, assim como em relao ao trato para com os negros noambiente escolar. Registrando, mais uma vez, a necessidade de se avaliar asmudanas ocorridas na legislao e nas representaes do negro na mdia impressae eletrnica.

    A visibilidade institucional fato. A Constituio Federal de 1988 emseu Artigo 3, inciso IV, traz o texto que garante a promoo do bem de todos, sempreconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminao; o inciso 42 do Artigo 5 trata da prtica do racismo como crimeinafianvel e imprescritvel, alm de outros como o pargrafo 1 do Artigo 215que trata da proteo das manifestaes culturais.

    Em termos legais, aps a dcada de 80, houve uma srie de instrumentosnormativos voltados para assegurar a presena histrica das lutas empreendidaspelo Movimento Negro, na Constituio do Pas.

    Sem dvida, houve uma produo significativa em termos de darvisibilidade questo racial. Questiono se esta movimentao do poder pblico

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    41 Refiro-me as produes cientficas que reforam uma viso deturpada sobre os negros e que foi,por muitos anos, tida como verdade absoluta (Nina Rodrigues, Silvio Romero, Gilberto Freyreetc.).

    reforou, por parte do sistema social como um todo, tambm uma movimentao.Se, ao dar visibilidade temtica racial em suas diferentes instncias, estejaocorrendo o que Hasenbalg destacou em 1997.

    fato que a articulao dos movimentos sociais ao longo das ltimasdcadas tenha impulsionado o processo de conscientizao, todavia a abrangnciaalcanada por programas de Aes Afirmativas, em carter nacional, no pode serdesmerecido. Outro ponto a ateno da mdia aos debates pblicos sobre a questoracial no Brasil. Tudo isso contribui para a conscientizao, desencadeado semdvida, pela capacidade de influncia do Movimento Negro sobre os governantes.

    Apesar do exposto nas Tabelas 1 e 2, ou seja, populao negra ser de47% da populao brasileira, os dados referentes desigualdade de oportunidades

    seja na educao ou no mercado de trabalho permanecem inalterados.

    3.3 Desigualdade de oportunidades na educao e desigualdade

    racial no Brasil

    As pesquisas que privilegiam a questo racial tornam perceptvel, nasociedade brasileira, a materializao de uma lgica da segregao ancorada emesteretipos e preconceitos raciais disseminados e fortalecidos ao longo dos anospelo discurso competente cientfico,41 abarcando, por longo tempo, instituiessociais como a famlia e os meios de comunicao.

    Para uma anlise da histria do negro na educao brasileira, coerente e

    fundamentada, deve-se levar em conta o espao escolar em suas diferentesinterfaces com a sociedade. Os conflitos que a atingem interferem no sujeitohistrico aluno, em sala de aula. Nessa vertente, preciso compreender a educaoem seus diversos matizes.

    Um exemplo seria a educao na sua relao com o universo simblico,considerando os mitos, as representaes e os valores, em suma, as formassimblicas por meio das quais homens e mulheres, crianas, jovens e adultos negrosconstroem a sua identidade dentro e fora do ambiente escolar (Gomes, 2002).Esta construo interfere diretamente no rendimento do aluno.

    A escola considerada o locus privilegiado para a educao em direitoshumanos, porque nela se d a formao por meio da transmisso cultural. Nesse

    sentido, valores e hbitos se perpetuam extrapolando o ambiente escolar einfluenciando a convivncia social, no seu sentido mais amplo.Para alguns autores que se vinculam tradio marxista (Ponce, 2000;

    Ribeiro, 2000; Manacorda, 2000) a escola vista como o local onde ocorre a

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    reproduo dos valores da classe dominante, palco de lutas e conflitos, reflexo daproblemtica vivenciada pela sociedade como um todo. Seria, ento, o espaoonde esses saberes vinculados classe dominante seriam reproduzidos.

    Ancorada na pedagogia crtica destaco que o conhecimento nunca neutroe objetivo. O conhecimento uma construo social profundamente enraizadaem um nexo de relaes de poder (MacLaren, 1999).

    No universo deste estudo, a escola percebida como uma arena ondediferentes interesses se digladiam. Assim, busca-se indagar como e por que oconhecimento foi construdo de forma a beneficiar os brancos em detrimento dosnegros.

    A escola aqui percebida como um sistema complexo de relaes sociais,por isso local onde deveria ocorrer diferentes apropriaes do saber, visto seremredimensionados por olhares autnomos. Se isso no ocorre, h que se preocupare questionar os porqus. Da a necessidade de se observar por que o conhecimento